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Mateus 6.14-20 Tema da Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial – FLM Stuttgart, Alemanha, 20-27 de julho de 2010 Lema da IECLB para 2010 Prédica proferida pelo pastor presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Dr. Walter Altmann Paróquia Norte, Stuttgart, Alemanha, 25/07/2010 Estimadas irmãs e estimados irmãos em Cristo: “Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia.” Esta é a quarta petição contida na oração que Jesus Cristo nos ensinou, o Pai-nosso. Foi escolhida como tema da Assembleia Geral da Federação Luterana Mundial – FLM, neste ano de 2010, tema que a IECLB adotou como lema bíblico para este mesmo ano, acompanhando o tema “Missão de Deus – nossa paixão”, que já nos orienta pelo segundo ano consecutivo e que inspira a ação missionária da IECLB no período de 2008 a 2012. Com esse lema acentuamos como igreja neste ano a dimensão diaconal de nosso compromisso missionário, a dimensão do servir. Numa compreensão ampla e integral do ser missionário da Igreja, não pode faltar a dimensão diaconal. No Plano de Ação Missionária da IECLB (PAMI), a diaconia, juntamente com a evangelização, a comunhão e a liturgia, constituem a missão integral, em suas quatro dimensões. Deixemo-nos inspirar também por nosso lema, essa petição tão conhecida, que repetimos a cada culto, quando proferimos a oração do Pai-nosso. Qual é seu significado? Primeiramente, trata-se do pão. O pão é algo essencial para o nosso sustento. Nas mais diferentes culturas, o pão é o alimento básico. Ele pode ser confeccionado da farinha de diferentes cereais. Mas sempre simbolizará aquilo que necessitamos para viver. Alguém poderia perguntar, semi-escandalizado com Jesus: que faz algo assim material na oração que nos é ensinada como a mais profunda conversação espiritual que podemos ter com Deus? Por que essa preocupação com nosso corpo, se o que importa é nossa relação íntima com Deus? Ora, também o cuidado com o material é parte da missão de Deus que abraçamos com paixão. Em nossa fé, não separamos o material do espiritual, nem colocamos o material em plano secundário, porque tudo, tanto o espiritual quanto o material, é parte da boa criação de Deus. Sem pão não podemos viver, embora o mesmo Jesus também nos tenha recordado o preceito já contido no Antigo Testamento, na Lei de Deus, de que “nem só de pão viverá o ser humano, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mateus 4.4). Assim, valorizamos o material, como devemos, embora não sejamos materialistas, porque sempre conferimos uma dimensão espiritual ao que é material, quando o reconhecemos como dádiva de Deus a nós concedida na criação. Portanto: “Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia.” Em segundo lugar, pedimos pelo “pão nosso”. Ou seja: superamos o individualismo e o egoísmo, pois não pedimos o pão, cada qual para si mesmo, mas sempre o pão que sacie e sustente não apenas a pessoa que ora, mas pedimos por aquele pão que seja compartilhado, saciando e sustentando também o nosso próximo. Ao orarmos pelo “pão nosso”, podemos ter em mente nossos próximos mais imediatos, minha família e meus amigos. Aliás, o compartilhar das necessidades na família, uns carregando as necessidades dos demais, compartilhando recursos, para que todas as pessoas da família possam usufruir da mesma dignidade, serve de bela imagem pelo que intercedemos para comunhões mais amplas. Referimo-nos, por exemplo, à comunidade de fé, à comunidade eclesial. Na I Epístola aos Coríntios, o apóstolo Paulo exorta a seus membros que, quando se reúnam, não apenas o façam para culto (com celebração da eucaristia), mas também compartilhem da comida, sem distinção entre as pessoas livres e as que eram escravas. Olhemos, porém, para a humanidade inteira, com suas penúrias e injustiças. O poeta peruano César Vallejo expressou assim sua dor pelo sofrimento humano: Jamás, hombres humanos, hubo tanto dolor en el pecho [...] Crece la desdicha, hermanos hombres, Más pronto que la máquina, a diez máquinas. [...] Estoy triste hasta la cabeza, y más triste hasta el tobillo, De ver el pan crucificado.” Assim quando pedimos que o pão nosso nos seja dado a cada dia, pedimos como integrantes de uma família global, da humanidade inteira. Em face do “pão crucificado”, imploramos então pelo “pão ressuscitado”. Pedimos que as desigualdades no mundo sejam superadas, que a miséria e a fome sejam vencidas, em suma, que cada ser humano, imagem do próprio Deus, tenha o sustento necessário para dignamente viver. Assim como na família, os membros que estejam adoentados ou não possam prover seu sustento (por serem ainda menores dependentes ou já idosos) não são abandonadas à própria sorte, assim também é correto que advoguemos, tanto em nossos países quanto em nível global, por uma ordem social em que ninguém seja excluído ou marginalizado. Ou seja, essa petição do Pai Nosso tem também um claro componente político no seu sentido mais amplo. Portanto: “Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia.” Em terceiro lugar, pedimos que nos seja dado o pão nosso de cada dia. E pedimos que ele nos seja dado hoje. Sim, necessitamos do alimento diário, a cada dia. Recordamos aquele relato, simbolicamente tão expressivo, acerca do povo de Israel, quando peregrinava no deserto, em direção à terra prometida, peregrinação de 40 anos, sob condições as mais adversas. Deus lhes proveu o sustento, dando diariamente o maná de que necessitavam. Quando quiseram acumular esse recurso, deixando-o para o dia seguinte, ele apodreceu. A tentativa de acumular bens era expressão da falta de confiança em Deus, confiança que devemos renovar a cada dia. Recordamo-nos também da exortação de Jesus de que não andemos “ansiosos pela nossa vida”, inquietando-nos com o “amanhã” (cf. Mateus 6.25-34). Que, ao contrário, nos inspiremos observando as aves no céu e os lírios no campo, dos quais Deus cuida. Alguém haverá de perguntar: essa exortação de Jesus não é ingênua ou, até mesmo, irresponsável? Não devemos planejar o amanhã e prevenirmo-nos para as incertezas e dificuldades que poderão sobrevir? A seguridade social e previdenciária não é uma importante conquista de nossas sociedades? Não é precisamente essa prevenção que nos garante o pão nosso a cada dia? Contudo, devemos fazer distinções. Jesus se volta não contra a prevenção, mas contra a preocupação. São duas coisas diferentes. A preocupação causa angústia; já a prevenção é expressão do cuidado. Mas precisamente aí é também importante que não nos esqueçamos de que a perspectiva a ser observada é daquilo que necessitamos a cada dia, não do acúmulo de bens que venham a faltar a nosso próximo. Por isso, a exortação de Jesus culmina com que busquemos “em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça” e que todas as demais coisas “nos serão acrescentadas” (Mt. 6.33). Portanto: “Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia.” Em quarto lugar, reflitamos sobre o fato de que nessa oração estamos pedindo a Deus que nos dê o pão nosso de cada dia. Mais uma vez nos assaltam perguntas: podemos crer que Deus nos dá o pão nosso de cada dia? Não é assim que o pão nosso de cada dia deve ser angariado com nosso labor? Não é o pão que comemos fruto do trabalho de mãos humanas, seja na produção de seus ingredientes, seja em sua confecção? Como podemos ousar pedir que o pão que necessitamos a cada dia nos seja dado, e dado por Deus? O poeta chileno Pablo Neruda, Prêmio Nobel de Literatura, colocou seu protesto e seu compromisso numa poesia intitulada Oda al Pan, da qual cito um trecho: Oh pan de cada boca, no te imploraremos los hombres no somos mendigos de vagos dioses o de ángeles oscuros: del mar y de la tierra haremos pan, plantaremos de trigo la tierra y los planetas, el pan de cada boca, de cada hombre, en cada día, llegará porque fuimos a sembrarlo y a hacerlo, no para un hombre sino para todos, el pan, el pan para todos los pueblos y con él lo que tiene forma y sabor de pan repartiremos: la tierra, la belleza, el amor, todo eso tiene sabor de pan, forma de pan, germinación de harina, todo nació para ser compartido, para ser entregado, para multiplicarse. No entanto, por mais impressionante que sejam os versos do poeta e por mais que nos somemos ao compromisso por ele expresso, como bem devemos, também somos testemunhas de uma realidade ainda mais profunda. Também a Escritura sabe que “digno é o trabalhador do seu salário”, palavra pronunciada tanto por Jesus (Lucas 10.7) quanto pelo Apóstolo (I Timóteo 5.18). O sentido da petição de que Deus nos dê o pão nosso de cada dia, portanto, não deve ser o de que Deus nos dê o pão nosso de forma mágica, sem o fruto do trabalho humano. A oração não é uma petição interesseira que busca vantagens para si, sem esforço. Mas ela é, isto sim, expressão da fé de que tudo, tudo – realmente tudo – provém de Deus. Os produtos que produzimos e confeccionamos estão dados na maravilhosa criação de Deus. Mais: também nossos dons, nossa capacidade de produzi-los e confeccioná-las é dádiva divina. Em tudo somos devedores, mas por isso mesmo compromissados. Ou seja: a petição de que Deus nos dê diariamente o pão de que necessitamos não é simplesmente um pedido. Ela é muito mais do que isso. Ela é uma confissão de fé, fé em Deus criador e mantenedor da vida. Portanto: “Pai nosso, dá-nos hoje o pão nosso de cada dia.” Ninguém expressou tudo isso melhor do que o Reformador Martim Lutero. No Catecismo Menor ele identificou o pão de cada dia como sendo “tudo o que pertence ao sustento e às necessidades da vida”. Entre os numerosos exemplos que deu, não se limitou à comida e à bebida, mas incluiu relações familiares, profissionais e sociais íntegras, lar e saúde , inclusive tempo bom, paz e bom governo. No primeiro artigo do Credo Apostólico o Reformador já incluíra tudo isso na boa criação de Deus. Deus o criou e ainda o conserva. Na criação, Deus “supre-me abundante e diariamente de todo o necessário para o corpo e a vida”. Ele o faz unicamente por sua misericórdia, não por nossos méritos, razão pela qual “devo dar-lhe graças e louvor, servi-lo e obedecer-lhe. Isso é certissimamente verdade.” Por isso, repetimos uma vez mais, com confiança: “Pai nosso, dá-nos hoje o pão nosso de cada dia.” Amém.