A Fonte da Vida Toda

Transcrição

A Fonte da Vida Toda
COLEÇÃO FILOSOFIA E INTERDISCIPLINARIDADE
Copyright 2012, by Editora Sophos Ltda.
Editor:
Silvio Wonsovicz
Revisão:
Capa, projeto gráfico e diagramação:
Editora Sophos
Ficha Catalográfica
Coleção Filosofia e Interdisciplinaridade
Cantar é Filosofar – soongbook filosófico
Filosofia e Teatros – resultado 1º Concurso Peças Teatrais filosóficas
____________
2012
Editora Sophos
Rua Cristóvão Nunes Pires, 161 – Centro
88010-120 Florianópolis / SC – Fone/Fax (48) 3222.8826
www.editorasophos.com.br – e-mail: [email protected]
Filiada à Câmara Catarinense do Livro
SUMÁRIO
Primeiras Palavras
Origem desse livro
Uma breve abordagem sobre a relação entre Teatro e Filosofia (Vanessa)
O papel do Teatro nas práticas pedagógicas escolares (Graziella)
O uso da representação teatral no processo de Ensino de Valores para Crianças (Ana Bárbara e Olavo)
O Projeto – Concurso de Peças Teatrais Filosóficas
As Peças:
Teatro Infantil (Educação infantil)
BARQUINHO BARCÃO TODOS SOMOS IMPORTANTES
UMA NOTINHA SOZINHA NÃO FAZ CANÇÃO 1º LUGAR
18
23
Teatro Infantil (Ensino Fundamental I – 1º. ao 5º. ano)
A FONTE DA VIDA TODA
FAMÍLIA VITAMINA
VIDA DE BRINQUEDO
O BEIJA-FLOR E O GAVIÃO
ESCRITO NAS ESTRELAS
28
37
40
51
60
Teatro Infanto-juvenil (Ensino Fundamental II – 6ª. ao 9ª. ano)
AS VOZES QUE OUVIMOS A VIDA QUE ESCOLHEMOS
A CIDADE PERDIDA DOS MENINOS-PEIXES
78
83
Teatro Adulto (Professores e Pais)
MULHER: MAS QUE MULHER É ESSA NEGRA!
97
Primeiras Palavras
Editora Sophos
4
Florianópolis, 2012
Uma breve abordagem sobre a relação
entre Teatro e Filosofia
• Profª. Vanessa L. Arienti.
Contam os historiadores que o teatro surgiu na antiga Grécia...assim como a filosofia... Sua finalidade era propagar os mitos fundantes de tal sociedade e homenagear os deuses.
— Glauco está muito bem no papel de circe, hê, hê!
— Eu falei que ele tinha futuro executando papéis femininos! hê, hê...
— Até que os pobretões servem para alguma coisa, fazem belo coro!
— Sisssss, silêncio!
Em todo Panteão divino grego, o deus mais homenageado pelo teatro era Dionísio, também conhecido como deus
do vinho. Por causa deste deus inventou-se um gênero teatral chamado tragédia. Esta palavra tem origem no termo
tragos e significa bode, pois os gregos sempre sacrificavam um bode no início dos festivais teatrais.
— Oh! Não. Homenagens a Dioniso de novo, não! Quem de nós vai para o abate agora?
— Brincadeira! Por que um bode? Não podia ser um unicórnio? Ou um humano? Que depressão!
Ignorando o apelo dos bodes, seguem-se as considerações sobre esta arte, a representação, o teatro. Grande
filósofo conhecido como pai da ciência, a tragédia é uma peça que aborda principalmente a morte de um parente
consangüíneo e apresenta duas etapas, o enredo e o desfecho. A tragédia também apresenta um elemento chamado
catarse e, a catarse se dá quando o expectador se reconhece na ação representada pelo ator, atingindo assim uma
comunhão de emoções que, segundo este filósofo, permite um efeito terapêutico no indivíduo.
— Édipo Rei, belo exemplo de tragédia!
— Óh Edipo!
— Antígona Humpf!
— Vou embora!
Para Platão, filósofo que foi professor de Aristóteles, o teatro não era grande coisa não...
— E aí mestre, gostou da peça?
— Jovem Aristóteles, teatro é uma mera imitação e nos afasta ainda mais da verdade... prefiro a
música.
Embora a música fosse um elemento fundamental no teatro grego, Platão alegava que a poesia e o teatro divulgavam maus exemplos de conduta.
Posteriormente Aristóteles discordou de seu mestre em relação a imitação (mímesis)
— “Imitar é natural ao homem desde a infância, e nisso difere dos outros animais, em ser o mais
capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação e todos tem prazer
em imitar...”
Os autores da tragédia clássica no que se refere a comédia, outro gênero teatral desenvolvido pelos gregos, não
tem um estudo filosófico específico das suas manifestações. Visto que um dos únicos tratados escrito por Aristóteles
sobre o assunto se perdeu na história e, segundo este filósofo, a palavra comédia pode ser entendida como “canto da
vila”, pois os atores de comédia eram tão inconvenientes que eram tocados para fora das cidades e obrigados a vagar
pelas vilas e suburbios destas. Talvez esta incoveniência se dê pelo fato deste gênero teatral debochar dos costumes e
comportamentos padrões de tal sociedade. Como ressaltava Aristóteles, a comédia é a imitação do feio.
Um cara que se deu bem escrevendo estas sátiras e “imitando o feio” foi Aristófanes na peça “As Nuvens”, muito
famosa por sinal, este autor demonstra toda a sua perspicácia na hora de tecer críticas ao método filosófico do também famoso Sócrates:
5
— Ironía, refutação e maiêutica
— Sai fora sofista...
Este rico legado, o teatro como representação da condição humana, deixado pelos gregos, foi assumindo várias
facetas ao longo da história, enriquecendo cada vez mais as manifestações cênicas.
Quanto a Roma, esta civilização não apresenta muitas novidades em relação aos gregos, sabe-se que preferiam a
comédia, Plauto e Terêncio foram os grandes representantes desta arte em roma.
— Que legal isso aqui! Vou copiar, hê hê!
Na tragédia a referência romana é o filósofo Sêneca, suas obras eram destinadas mais à leitura do que à representação. Dizem que sua vida não deve nada às tragédias que escreveu. Foi preceptor de Nero e no final de sua vida
àquele que foi seu pupilo o condenou ao exílio.
— Professôôôr,vou colocar fogo no palácio...
— Sim Nero, faça o que quiser, mas deixe-me terminar de escrever a minha peça, por favor!!! Que
menino mimado!!!
— Professor chato, ele me paga!
Já na Idade Média, as manifestações teatrais ficaram sob a égide da Igreja, assim como as investigações filosóficas, salvo os menestréis e bobos da corte que faziam espetáculos para os reis.
O Teatro Medieval consistia em representar os dogmas cristãos, os pecados capitais, o juízo final e os demônios
na terra, além de passagens bíblicas. Estas peças eram encenadas ao ar livre e no adro das igrejas e foram classificadas como mistérios, milagres e moralidades. Os mistérios encenavam passagens bíblicas marcantes. Os milagres
narravam a vida dos santos e, as moralidades demonstravam comportamentos exemplares e as consequências de
não acatá-los. Por fim, o teatro que foi tão marginalizado pela Igreja Católica em seus primórdios que acabou sendo
utilizado como instrumento de proselitismo pela mesma!
Assim o tempo passou e chegamos a um período denominado Renascimento. Neste período histórico há um
resgate dos valores clássicos e o ser-humano resignifica sua posição ante o mundo, tomando como referência a sua
própria razão. A Filosofia, a Ciência e a Arte passam por um grande desenvolvimento. O teatro assume diversos formatos, cada país europeu apresenta novidades na arte da representação. A tragédia faz enorme sucesso nas rodas
aristocráticas, assim como a comédia erudita. O expoente máximo da comédia erudita renascentista foi também
filósofo Nicolau Maquiavel, muito reconhecido pelo seu tradado político ‘O Príncipe’. Ele escreveu uma peça fabulosa
chamada “A Mandrágora’’ tanto que se diz “mandrágora é a comédia da sociedade da qual o príncipe é a tragédia”.
Também neste período surgiu entre as camadas populares, a famosa comédia dell’arte, que através de estereótipos, satirizava veemente a sociedade da época. Foi desta fonte que, mais tarde bebeu Molière, a mistura entre o
erudito e o popular é que garantiu o sucesso de suas peças, coroando a comédia moderna.
— Molière, qual é o segredo para escrever ótimas comédias?
— É um misto de rigor cartesiano e libertinagem naturalista hê, hê, hê, hê...
Quanto a tragédia moderna, quem se deu bem foi Racine
— Oh! Racine suas tragédias são ótimas!
— Que nada devo muito aos clássicos, a Eurípedes, etc, etc, etc...
6
Há aproximadamente 200 anos depois, o filosófo Nietzche publica a sua primeira obra filosófica intitulada “O
Nascimento da tragédia’’ muito do que cohecemos hoje a respeito da tragédia clássica se deve a este filosófo que,
inclusive, resignificou vários aspectos desta arte, assim como aspectos da vida dos gregos.
Exatamente 40 anos depois da morte de Nietzsche, Jean-Paul Sartre, aclamado escritor e filósofo francês, foi
levado a um campo de conentração nazista chamado Stalag, lá, em meio a todos os contratempos da vida de prisioneiro, Sartre escreveu a sua primeira peça teatral intitulada “Bariona”. Esta peça foi encenada na noite de natal pelos
próprios prisioneiros, ela é ambientada na época do nascimento de Cristo e faz, de maneira muito sutil, uma crítica
ao regime nazista. Desde então, Sartre escreveu peças que ficaram muito famosas por veicularem críticas muito pertinetes às situações vividas em sua época. As peças: “As moscas” e “entre 4 paredes” demonstram muito bem essas
situações, aliás, para Sartre, o teatro é a arte engajada por excelência, como ele dizia:
— Eu escrevo peças que resistem!
É bom lembrar que os teóricos de Frankfurt propuseram novas abordagens sobre o teatro, vale a pena conferir!
— Embora, não tenha sido possível abordar todas as peculiaridades do Teatro e da sua relação com a
Filosofia nesta breve exposição, vimos a importância destes na construção e na problematização
das diretrizes sociais.
De agora em diante, a continuação dessa história é com vocês!....
O papel do Teatro nas práticas pedagógicas escolares
• Graziela Becker
Desde a época em que habitava as cavernas, o ser humano vem manipulando cores, formas, gestos, espaços, sons,
silêncios, superfícies, movimentos, luzes, com a intenção de dar sentido a algo, de comunicar-se com os outros.
A comunicação entre as pessoas e a leitura de mundo não se dá apenas por meio da palavra. Muito do que sabemos sobre o pensamento e o sentimento das mais diversas pessoas, povos, países, épocas são conhecimentos que se
obteve através da linguagem, porém não exclusivamente dela.
Para apropriar-se de uma linguagem, entender, interpretar e dar sentido a ela, é preciso que se aprenda a operar
com seus códigos. Do mesmo modo que existe na escola um espaço destinado a alfabetização na linguagem das palavras, é preciso existir um espaço também para a alfabetização nas linguagens da arte.
O ser humano é por natureza um ser de expressão total. Tudo o que sente, pensa e sabe pode ser expresso através
de múltiplas linguagens: pelo olhar, movimento, gesto, choro, fala, desenho, pintura, modelagem, escultura, música,
canto, escrita… A livre expressão destaca a vivência da criança, seus sentimentos, sua vida afetiva e seus conhecimentos anteriores, fazendo dela, um ser único e rico, consciente de seu valor. A expressão da criança só será livre em um
clima de confiança, de permissão e de aceitação no ambiente em que estiver inserida.
Dentre a Arte, o teatro enquanto linguagem, interpretação e representação do mundo, é forma privilegiada dos
processos de representação humana, é instrumento essencial para o desenvolvimento da consciência, pois propicia ao
aluno contato consigo mesmo e com o universo. Dramatizar é uma forma que a criança tem de entender o contexto ao
seu redor e relacionar-se com ele. Ao expressar-se por meio do teatro, o aluno manifesta seus desejos, expressa seus
sentimentos, expõe enfim sua personalidade. Bronowski apud Alencar (1986, p. 90):
As descobertas da ciência, as obras de arte, são explorações; ainda mais: explosões de ocultas semelhanças. O descobridor e o artista apresentam nelas dois aspectos da natureza e fundem-no num só.
Este é o ato de criação, no qual nasce um pensamento original e é o mesmo ato de ciência original e na
arte original.
A criança, o adolescente e o jovem trazem consigo uma bagagem cultural adquirida em sua experiência de vida.
Cabe ao professor abrir espaço para que eles ampliem sua leitura de mundo, proporcionando situações que possibilitem o contato com a Arte de forma que a criança possa compreender sua função social, deixando-a interagir para
descobrir como funciona. É preciso deixá-los sentir, perceber e vivenciar todas as suas possibilidades, proporcionando-lhes as melhores condições e cuidar para que esse crescimento se dê de forma harmoniosa, proporcional às potencialidades de cada um, preservando sua autenticidade, sua potencialidade e sua criatividade.
A expressão criadora manifesta-se em todo seu fazer, no contato com a realidade do mundo, fazendo com que
passe por um processo de mudança de si mesma.
A criança não pode dramatizar, envolver-se com o teatro, se não for dada a ela a oportunidade de vivenciar e explorar esta ferramenta. Mais do que apenas brincar a criança e o adolescente podem envolver-se com teatro de forma
significativa, buscando neste momento construir, paulatinamente, na sala de aula sua sensibilidade. É preciso abrir
espaço para que a criança possa desvelar o que pensa, sente e sabe, ampliando sua percepção para uma compreensão
de mundo mais rica e significativa.
7
Já evidenciava esta força criadora e realçava a importância da mão humana, a qual em interação com o cérebro não somente cria mil coisas úteis e fantásticas, mais cria e desenvolve o próprio
homem, conscientizando-o, ao mesmo tempo que o personaliza e o socializa. (ARISTÓTELES, 1985)
É parte do ofício de educar, buscar traduzir e fazer presente no cotidiano escolar a crença na importância de sermos
livres para voar, para criar e para viver com leveza grande parte dos momentos de nossas vidas, aqueles que passamos
juntos sem, no entanto, perder o elo comprometido e crítico com a realidade que nos cerca. Kant (1975, p. 186) foi o
primeiro (na Crítica do Juízo) a defender e a comprovar convincentemente a autonomia da arte. Isto quer dizer que
ela não depende de atividades e de conhecimentos teóricos; quer dizer também, que se deve distinguir a lógica da
imaginação em confronto com a mágica do conhecimento racional e científica. O teatro, bem com a linguagem, oscila
constantemente entre um pólo objetivo e um subjetivo.
Portanto, só a busca de uma educação criativa, pautada numa Pedagogia centrada na relação dialógica pode
resgatar e potencializar a capacidade criativa do educando, valorizando assim a sua experiência de vida e sua autonomia. Partindo desse princípio, uma prática pedagógica onde há um espaço para as brincadeiras cênicas, o teatro e
a dramatização, passando por todos os níveis de ensino, terão um caráter criador, e será capaz de conceber uma nova
concepção de mundo, do homem e da mulher, da sociedade e da vida.
É no teatro, que o educando encontra uma das formas mais completas de se exprimir, porque, sendo um campo
onde há predominância de sensibilidade, o sentir, o perceber, o imaginar e o criar levam-no a envolver-se todo na
expressão; a crescer em sua individualidade; a aprender, a compreender e a controlar as situações; a explorar novas
possibilidades que se reestruturam em situações novas e impulsionam a outras descobertas.
A descoberta de novas realidades impulsiona-se a Read (1980, p.10):
(...) vemos o que queremos ver, e o que queremos ver é determinado, não pelas inevitáveis leis
da óptica ou mesmo (...) por um instinto de sobrevivência , mas pelo desejo de descobrir ou construir um mundo verossímil. O que nós vemos deve fazer-se real. Assim a arte converte-se na construção da realidade.
Ao dramatizar, o indivíduo tem a oportunidade de formar um novo e simplificado todo. Através desse processo,
tanto a criança, quanto o adolescente ou o jovem, proporciona mais do que um desenho ou uma imagem de um personagem, pois ele coloca no que faz parte de si próprio, como pensa, como sente como vê.
Cabe à educação encorajar o desenvolvimento do que é individual em cada ser humano, favorecendo o equilíbrio
entre a individualidade conquistada e a unidade do grupo social do qual a pessoa faz parte, fazendo com que individualização e integração sejam duas tarefas básicas para o processamento educacional.
Trabalhar com peças de teatro, envolve não apenas uma atividade livre de produção artística, mas também envolve
compreender o que se faz e o que os outros fazem, através do conhecimento da percepção estética e do conhecimento
do contexto histórico em que as peças trabalhadas foram escritas, principalmente, quando propiciam-se peças reflexivas que possibilitam discussões e análises de conceitos e comportamentos.
Quanto mais o aluno tiver oportunidade de ressignificar o mundo por meio do teatro, mais poder de percepção
sensível, memória significativa e imaginação criadora ele terá para formar consciência de si mesmo e do mundo.
O trabalho com as artes cênicas, deve permitir aos alunos não apenas dramatizar peças de teatro prontas, mas
também examiná-las e avaliá-las com um olhar crítico e capaz de refletir sobre o que elas querem transmitir. Também
é preciso que eles entendam a importância da produção artística e superem a idéia de que quando desenham, cantam, dançam ou encenam uma peça de teatro estão se distraindo da “seriedade” das outras disciplinas.
Em um segundo momento, é possível propiciar aos alunos também que escrevam suas próprias peças de teatro,
desenvolvendo suas idéias e transferindo seus significados para a arte de encenar. O trabalho de estimular a percepção do aluno diante do mundo e da obra de arte é parte dessa formação.
Se considerarmos que a criação consiste, no seu verdadeiro sentido psicológico, em fazer algo
novo, é fácil chegar à conclusão de que todos podemos criar em grau maior ou menor e que a criação é o acom panhante normal e per manente do desenvolvimento infantil (VYGOTSKY, 1982, p.
46-47).
8
A imaginação criadora antecede a razão e predomina em toda a ação infantil. Por esse motivo, percebemos a
criança, desde pequena, como um ser potencialmente criativo e imaginativo. É apenas necessário que as escolas e os
educadores estimulem e abram espaços para que esta prática e esta capacidade criadora aconteçam...
O uso da representação teatral no processo
de ensino de valores para crianças
• Ana Bárbara da Silva Nascimento
• Olavo Leopoldino da Silva Filho
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Ensino de Filosofia – NEPEEFIL
Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Alagoas – UFAL
Departamento de Física, Universidade de Brasília – UnB
Resumo
O campo da filosofia para crianças está fundamentalmente interessado na apreensão e/ou constituição de Valores. Neste trabalho, propomos uma abordagem que utiliza a representação teatral como
metodologia básica para a compreensão filosófica de Valores por crianças. Uma abordagem usando a representação teatral já é há muito utilizada com sucesso em psicologia, sendo a área terapêutica conhecida
como Psicodrama, iniciada por J. L. Moreno. A despeito das muitas semelhanças envolvidas, deseja-se aqui
utilizar a representação teatral para acessar filosoficamente conceitos. O método baseia-se na capacidade
da representação teatral gerar vivências nas quais um ou mais conceitos valorativos estão presentes. A
representação teatral serve a este propósito pelo conjunto de possibilidades que proporciona; a troca de
papéis, por exemplo, implica na possibilidade de representações-vivências em que comparecem relações
como Eu-Outro (interesse, igualdade, amizade, etc.), Eu-Outros (interesse, amizade, bem comum, etc.)
e, principalmente, Eu-como-um-Outro (alteridade, identidade-diferença, gênero, raça, etc.), permitindo
ao professor trabalhar alguns Valores segundo as diferentes perspectivas proporcionadas pelos diversos
papéis das personagens. A representação teatral tem também a capacidade única de por em movimento
(temporalizar) o Valor. O método baseia-se em uma etapa prévia de representação de um texto teatral especialmente construído para fazer emergir um ou mais (poucos) conceitos valorativos em que os alunos assumem, nas sucessivas representações, variados papéis através dos quais estabelecem diferentes vivências
(perspectivas); em uma segunda fase, é feita uma reflexão sobre os conceitos representados-vivenciados
na peça, estimulando a emergência do conceito em suas diversas facetas filosoficamente relevantes sem
tentar minorar eventuais conflitos inerentes aos Valores em foco. Assim, o uso da representação teatral
funciona como etapa na qual o conceito valorativo é desenvolvido em sua realização sintética, enquanto
que a discussão posterior trabalha o plano analítico. Adaptações do método também podem ser utilizadas,
dependendo das condições de aplicação da instituição de ensino (e.g. o formato representação-discussão-representação, de modo a fazer com que a segunda etapa de representação já implique em uma vivência
perpassada pela consideração filosófica e evidencie as mudanças que tal consideração propicia). A presente abordagem abre todo um novo campo de atuação do profissional de ensino da filosofia para crianças,
na medida em que exige capacitações novas, como a de ser capaz de escrever peças teatrais que trabalhem
um ou mais conceitos valorativos de maneira sistemática e filosoficamente relevante.
Palavras chaves: Criança, Conceito, Filosofia, Teatro, Valores.
1. Introdução:
Filosofia é a área, ou áreas de estudos, que se propõe a analisar, questionar, indagar e refletir sobre as mais diversas idéias e visões de mundo, sejam elas em sentido abstrato ou concreto. Essa atividade do pensamento nasceu
de uma inquietação diante da realidade. As interpretações surgidas em uma sociedade basicamente mítica , passam
em determinado momento a não mais responderem às indagações feitas pela sociedade. A nova ordem social passou
então a buscar na observação de fenômenos naturais e nas dimensões que o relacionamento social proporcionavam
novas respostas para suas dúvidas, gerando o fenômeno da filosofia pré-socrática. Esse movimento de busca por
soluções sob a égide de uma nova racionalidade, denominado filosofia, pode ser historicamente situado na Grécia Antiga. A própria palavra “filosofia”, ao que consta, foi usada pela primeira vez pelo famoso filósofo grego Pitágoras por
volta do século V a. C., um pensador pré-socrático, ao responder a um de seus discípulos que ele não era um "sábio",
mas apenas alguém que amava a sabedoria. A explicação pitagórica dá a gênese filológica do termo que se mantém
até nossos dias: philo – amigo/amante e sophia – sabedoria. A filosofia, sob suas mais diversas manifestações, vem
sendo, desde então, o ponto de partida de uma enorme parcela do conhecimento humano organizado, que nasce da
9
incessante necessidade de questionar a realidade. Assim, a filosofia é fruto da capacidade do homem de se admirar
com as coisas, deixando-se afetar por elas, mas também decorre dessa inquietude racionalmente organizada que o
leva a questionar sempre.
Fazer filosofia para criança é uma atividade que implica o lançar-se na tentativa de construir um elo entre dois
mundos: o mundo das crianças e o mundo da filosofia. Tal tentativa torna-se um marco na história do pensamento
Ocidental se nos lembrarmos do conjunto de restrições (mulheres: na visão de Santo Agostinho, massas: na filosofia
de Scheler, crianças: nos discursos acadêmicos) que sempre se impuseram ao seu exercício. Para os professores, verdadeiros entusiastas dessa nova área da filosofia, as crianças são filósofos inatos, não somente pelas perguntas que
inundam os diálogos infantis, mas pela capacidade de admiração que elas possuem para com o mundo. Ao contrário
dos adultos, a infância está despida da vergonha da ignorância de não saber. A mente infantil curiosa, criativa e insatisfeita com qualquer resposta pouco convincente, não fecha as possibilidades de busca pela compreensão do que
quer que seja. A criança dessa forma, se coloca numa posição similar àquela dos primeiro filósofos gregos: aberta ao
maravilhamento pelas novas descobertas e movida por uma inquietude que procura sempre ordenar o mundo:
“Só os filósofos têm ousadia para se lançar nesta jornada rumo aos limites da linguagem e da
existência.” (GAARDER, 1995).
Assim, a filosofia enquanto área investigativa das já citadas idéias e visões de mundo, não só não pode ser considerada uma atividade que não seja interessante ou possível às crianças, mas parece mesmo ser congênere a elas:
“Filosofia é um assunto que não interessa só ao especialista porque, — por mais estranho que
isto pareça — provavelmente não há homem que não filosofe; ou pelo menos, todo homem se torna
filósofo em alguma circunstância da vida”. (BOCHENSKI, 1977).
Do ponto de vista metodológico, após a enorme ruptura que permitiu ao Ocidente considerar a possibilidade de se
trabalhar filosofia com crianças, sua realização é, na maioria das vezes, uma tarefa pautada na apresentação e discussão de afirmações e perguntas, feitas por crianças e respondidas por professores, e também pelas próprias crianças
em ciclos de interações dialéticas. Esses diálogos são criados e desenvolvidos com base em escritos de autores que
lidam com a filosofia, a pedagogia e a psicologia de forma usualmente teórica.
1. Como se pode ver nos cantos de Hesíodo: Teogonia e
Os trabalhos e os dias. No primeiro,também conhecido
por Genealogia dos Deuses, o autor descreve a origem
do mundo a partir dos deuses (Cronos, Zeus e Urano) e
a união entre os mortais e os deuses, dando origem aos
mitos e heróis. No segundo, Hesíodo trata do mundo
dos mortais, discutindo os conceitos: trabalho e justiça.
Assim, a maneira usual de se trabalhar com filosofia para crianças termina por ser, acreditamos, excessivamente externalista, na medida em que
as coloca existencialmente fora do processo de construção dos conceitos.
Não há dúvida que este modo de ensinar filosofia para crianças possibilita
uma apreensão em formato analítico, afim com esta perspectiva externalista.
Há, entretanto, uma outra dimensão da filosofia, internalista, que também
confiamos ser crucial para a apreensão dos conceitos filosóficos em geral,
e aqueles vinculados a Valores, em particular. A dimensão internalista, por
sua vez, é favorecida por mecanismos de acesso aos elementos filosóficos de um tipo sintético. Externo/interno e
analítico/sintético são pois dois binômios que não apenas constituem as duas grandes correntes do pensamento filosófico como este se deu na história do Ocidente, mas também, no âmbito puramente do indivíduo, realizam as duas
dimensões próprias da filosofia. Pode-se dizer que no fenômeno mesmo do maravilhamento do homem grego sempre
estiveram presentes ambas as dimensões, uma vez que o mesmo não apenas questionava o mundo, mas também o
vivia. Partindo desse ponto de vista, é justo considerar que as crianças podem e devem criar, através das suas escolhas,
sua própria maneira de filosofar, utilizando-se da liberdade proporcionada pela arte para tal atividade.
A arte, aqui sendo enfatizada a representação teatral, é uma dimensão do conhecimento humano que utiliza a
10
“Serão as crianças que construirão suas filosofias e seus modos de produzi-las. Não é
mostrando que as crianças podem pensar como adultos que vamos revogar o desterro de sua voz.
Pelo contrário, nesse caso haveremos cooptado, o que constitui uma outra forma de silenciá-las.
Seria mais adequado preparar-nos para escutar uma voz diferente como expressão de uma filosofia
diferente, uma razão diferente, uma teoria do conhecimento diferente, uma ética diferente e uma
política diferente: aquela voz historicamente silenciada pelo simples fato do emanar de pessoas estigmatizadas na categoria de não adultos.” (KOHAN, 1999).
perspectiva internalista da compreensão. O teatro tem suas origens nas sociedades arcaicas. Essas sociedades utilizavam as danças como forma de imitação da natureza criando rituais que favorecessem a sua sobrevivência. Nos processos ritualísticos, o homem mítico (em todas as faixas etárias) jamais era um espectador, não havia a noção de representação, e o rito era a maneira de constituir as estruturas espaço-temporais básicas desse tipo de ser-no-mundo
. Apenas como exemplo, a dança do curandeiro representava, assim, uma maneira de constituir na temporalidade um
ponto de ruptura, pelo qual os tempos primordiais eram revividos e, sendo eles mesmos puros, eram também capazes
de purificar o doente. A função soteriológica do mito, realizada pela vivência do rito, não se constituía em interferir na
corporeidade do doente, mas apenas em transportá-lo por uma epifania, ontologicamente, para o mundo originário
no qual a corrupção ainda não se instalou.
Com o aparecimento da nova filosofia pré-socrática, aparece também o Teatro, como o conhecemos nos dias atuais
(do grego: Théatron” = lugar onde se vê). Continuou-se a fazer manifestações e rituais imitativos, mas agora tratava-se de uma representação dedicada aos deuses e heróis. Pode-se encontrar homenagens teatrais ao deus Dionísio
datadas do século V a.C. na Grécia Antiga. A ruptura com o mundo mítico ocorre aqui justamente da instauração, pelo
teatro, de um duplo registro de sua ação: como vivência interna (pelos atores) e como vivência externa (pelos espectadores). O surgimento do teatro, portanto, é o próprio marco que separa uma imersão totalmente sintético-internalista
nos processos ordenadores do mundo, daquele analítico-externalista pelo qual se pode ser um espectador de uma
trama e assim, refletir sobre ela.
Do ponto de vista mais específico dos atores, o teatro é uma forma de conhecer o mundo multilateralmente, que
se realiza nas estratégias necessárias para a construção das diversas personagens e no confronto que se realiza entre
elas no palco. No conflito, os atores exercitam o autoconhecimento quando vêem confrontados seus limites com os
limites e fluxos próprios da personagem. Por fim, a prática da atuação possibilita a percepção do outro através de si
mesmo de maneira mais visceral, num movimento intenso do interno para o externo, em sentido especificamente
fenomenológico existencial compreensivo. O ator/atriz na condição de interpretar a personagem, sai da antiga condição de homem teórico para a condição de homem artístico. Para Nietzsche, este último é o estágio em que o homem
torna-se superior, pelo fato de na representação teatral afirmar a sua existência e
2. Eliade, M. O Sagrado e o Profano. É na a incriá-la. O conhecimento e a apreensão de conceitos que a atividade teatral possiteração com o mundo através das estruturas
bilita são próprios da representação, que é um momento ímpar da compreensão da
espaço-temporais básicas, que o homem funda ontologicamente o Mundo, onde o homem
fundamentação filosófica dos conceitos.
sente-se igual a si mesmo, semelhante e difeAssim há, defendemos aqui, uma intimidade profunda entre o que é a
rente do outro, é o lugar onde o humano cria,
filosofia, o que é ensinar filosofia para crianças e a representação teatral. A criantrabalha e desenvolve a consciência de si.
ça, com o seu poder de maravilhamento e a ausência das construções protetoras
já sedimentadas nos adultos, é aquela que se mostra mais capaz de se lançar
no momento mais fortemente sintético da vivência de uma personagem teatral. Neste processo de imersão vivencial constitui conceitos de uma maneira originária que podem ser, posteriormente, trabalhados de maneira analítica
para justamente reconstruir os dois grandes momentos da compreensão filosófica do mundo. A transição entre as
condições de homem artístico e homem teórico, que o teatro possibilita nos seus dois momentos de representação e
interpretação, abre o campo de possibilidades de se apresentar o vasto mundo da filosofia às crianças,
abrangendo as duas dimensões do conhecimento: o sintético/internalista/representacional e o analítico/externalista/interpretacional.
2. Contextualização:
O presente texto intenta apresentar uma alternativa para desenvolver a construção de conceitos filosóficos sobre
os Valores utilizando-se da representação teatral no trabalho com crianças, em analogia com a área terapêutica da
psicologia conhecida como Psicodrama , respeitando a devida faixa de idade e o desenvolvimento cognitivo.
“O estudo da criança contextualizada possibilita que se perceba que, entre os seus recursos e os
do seu meio, instala-se uma dinâmica de determinações recíprocas: a cada idade estabelece-se um
tipo particular de interações entre o sujeito e o seu ambiente”. (GALVÃO, 2003).
Dessa forma, a filosofia contextualizada pela representação teatral pode ser percebida e utilizada como algo concreto, que busca esclarecer dúvidas e apresentar novidades relativas aos conceitos fundamentais que são o alicerce
das formas humanas de se relacionar com os outros e com o mundo a sua volta. Ao mesmo tempo, esta abordagem
não compromete a aquisição filosófica e conceitual própria ao fazer da filosofia. Pretende, de fato, ser um amálgama
de ambas.
11
O teatro como forma de auxílio no ensino de Valores para crianças é uma proposta interessante dada a própria
ligação entre educação e teatro ao longo da história da humanidade.
A educação grega valorizava as mais diversas produções artísticas e literárias, dentre elas o teatro como forma de
espetáculo educativo onde eram expostos temas religiosos e sociais, que além de preparar para a vida, proporcionavam também momentos de prazer. Era um dos pilares da noção de Paidéa . Essa idéia foi adotada pelos romanos
que utilizaram o teatro como forma de educação moral.
Na Idade Média o teatro foi condenado, uma vez que a Igreja considerava pecado imitar o mundo seguindo as
idéias deletérias sobre a imitação, já existentes no texto platônico e passadas ao cristianismo pelos filósofos neoplatônicos. As representações teatrais realizavam-se somente junto aos altares, por ocasião das festas litúrgicas, de caráter
religioso, agindo dessa forma para a construção de uma educação rígida e cristianizada .
3. Trabalho inicialmente desenvolvido por J. L. Moreno. O Psicodrama é uma forma
de terapia baseada na representação de papéis. Tornou-se uma abordagem pioneira no desenvolvimento de estudos grupais para problemas de saúde mental e
organização social.
4. Jaeger,W. Paidéia: a formação do homem grego. Paideia (� �����������), (de
paidos - ����������� - criança) significava inicialmente só: criação dos meninos.
Com o tempo o conceito passou a descrever a formação geral que tem por tarefa
construir o homem como homem e como cidadão.
5. Eco,H. O nome da rosa. É um romance cuja trama se desenrola em um mosteiro
italiano na última semana de novembro de 1327. O autor faz uma descrição perfeita
do sentido do riso como forma de pecado e a tentativa dos monges em dosar o
conhecimento para os simples, leia-se os escolhidos e preparados para conhecer .
Na modernidade, o entusiasmo de recuperar elementos do mundo greco-romano, em particular nos filósofos do Romantismo , traz de volta a importância do
teatro como forma de refletir sobre o homem inserido
na sociedade de sua época.
Do século XX em diante, o teatro encontrou lugar
na escola e passou a exercer um papel bem próximo
àquele que possuía na Grécia Antiga. Sua valorização
no âmbito escolar visa encontrar elos entre as diversas
disciplinas, proporcionando a interação entre os indivíduos e seu desenvolvimento global. Tais atividades,
entretanto, não possuem ainda uma perspectiva propriamente filosófica e não são explicitamente utilizadas
no ensino de filosofia para crianças.
Assim, diferentemente da maneira como o teatro foi utilizado em todos estes séculos, em que as crianças ora
foram expectadores ora consideradas meramente como atores mirins (em papéis não filosoficamente trabalhados),
a presente proposta pretende torná-las personagens de tramas filosoficamente estruturadas e com um método particular de imersão e reflexão, tornando assim a apreensão dos conceitos filosóficos um elemento vital, existencial e
interno, e não meramente externo. Voltaremos a este ponto mais adiante.
3. Justificativa:
Entendemos os Valores como conceitos que possuem importância para a experiência da realização humana, a
ponto de servirem como parâmetros para a maneira como vivemos nossas vidas, não somente na relação com nós
mesmos, mas nas relações que estabelecemos: com o outro (Eu-Outro - interpessoal); com os outros (Eu-Outros interpessoal) e, principalmente, na relação que estabeleço comigo mesmo, visto no papel de um outro (Eu-como-um-Outro - intrapessoal).
12
Assim, a distinção entre o eu e o outro nos três registros acima citados, que só é adquirida num processo de interação social, impede o estabelecimento de relações coisificadoras (Eu-Isso) muito recorrentes na sociedade contemporânea, que dificultam uma reflexão sobre os Valores na sua dimensão mais complexa, o que termina por propiciar a
adoção de um referencial individualista sem qualquer reflexão mais aprofundada.
Do ponto de vista didático, uma aula dinâmica traz resultados por vezes mais surpreendentes que a atividade
formal de dar aula. Por estimular as potencialidades criativas e expressivas dos alunos, a linguagem corporal possibilita uma apreensão integral do conteúdo, porque envolve todos os sentidos e oportuniza a atividade motora. O
teatro utilizado como forma de ensinar filosofia através da atuação dos próprios alunos, exercita pela motricidade o
relacionamento das crianças com o grupo, levando-as a trabalhar de forma integral a socialização do seu comportamento e a vivenciar as situações pelas quais passam as personagens, permitindo assim que elas façam seus próprios
julgamentos e seja iniciado o processo de reflexão filosófica que favorece a formação dos conceitos. Essa abordagem
teatral deve ser individualizada e contextualizada, para que o foco não se perca,
Saltando do objetivo de trabalhar os Valores através dos conceitos filosóficos para um trabalho puramente teatral,
em que as crianças são meros atores.
Assim, esta abordagem pretende ir além daquela usualmente adotada nas salas de aula, em que os estudantes
ocupam sempre posição passiva diante das questões propriamente filosóficas que lhe são colocadas, desenvolvendo
apenas uma perspectiva analítica quanto aos assuntos. A abordagem em que ocorre a imersão teatral, pela qual o
aluno preenche sucessivamente diversas personagens-aspecto de uma situação valorativa complexa,
possibilita uma compreensão sintética dos conceitos,
complementar àquela analítica, também importante.
A compreensão sintética é assim usada como ponto
de partida para a compreensão analítica.
6. Schelling (Discute a experiência da intuição estética.), Schiller (Tenta estabelecer um
critério objetivo para o belo.), etc.
7. Buber, M. Eu e Tu. O autor discute nesta obra a questão antropológica da relação,
o paradoxo da existência humana, do lugar da pessoa dentro da sociedade e como
complementariedade, no movimento de atuar no mundo, que é a expressão da linguagem que usa.
“Mas o tempo da verdadeira atividade filosófica, da verdadeira atividade artística, são os momentos em que eu, com entendimento e sentidos, leio dentro do mundo de modo puramente objetivo; estes
momentos não são intencionais, não são involuntários, eles são a mim dados, a mim particularmente,
são o que me faz filósofo; neles concebo a essência do mundo, sem simultaneamente saber que a
concebo. Seu resultado será, freqüentemente, só muito tempo depois, de modo fraco, extraído da
lembrança, repetindo-se em conceitos e assim fixado de modo duradouro” (SCHOPENHAUER, 1991).
Nossa abordagem se justifica no ensino de filosofia para crianças quando se reconhece o direito das crianças à
educação e à arte, em uma visão bastante difundida entre os estudiosas da infância, como pode-se ler à seguir:
“Expressar-se significa exteriorizar-se, colocar-se em confronto com o outro, organizar-se. Na
escola, este movimento de exteriorização do eu pode ser propiciado por atividades no campo da arte,
campo que favorece a expressão de estados e vivências subjetivas”. (GALVÃO, 2003).
4. Método:
A experiência teatral no mundo infantil possibilita a discussão desses conceitos e Valores através da arte, abrindo
espaço para que o imaginário infantil conheça e reconheça caminhos que levam a criança a pensar os acontecimentos
a sua volta, seja no âmbito da escola e suas relações internas, seja no mundo familiar e social no qual esteja inserida.
A problematização de conceitos como: admiração; amizade; amor; beleza; certo; comportamento; diferença; errado; família; feiúra; igualdade; lealdade; pobreza; riqueza; respeito; entre outros, pode ser transferida das enfileiradas
cadeiras da sala de aula ou das rodas de discussão para as encenações produzidas especialmente para esse ou aquele
ponto filosófico a ser trabalhado. É através da cultura, das várias formas de linguagem e da troca de vivência que o
pensamento recebe informações para evoluir.
A representação teatral, pela sua dinâmica e capacidade de inserir a personagem na ação própria do comportamento moral, oportuniza de maneira especial a elaboração dos três momentos importantes da constituição dos
conceitos dos Valores morais em sua forma sintética.
De fato, no processo de representação, a criança toma contato com sua personagem-aspecto que a insere em um
agir moral veiculador de princípios de comportamento frente às outras personagens-aspectos, constituindo os dois
primeiros momentos da tríade acima apresentada: Eu-Outro, Eu-Outros. O processo de representação teatral consegue isso na medida em que fornece ao Outro/Outros uma voz através das outras personagens.
Este ponto, entretanto, não é suficiente. É necessário que a criança seja ainda capaz de se colocar na posição do
Outro. Esta é a função da rotatividade dos papéis entre as crianças. Em cada papel há a elaboração de uma vivência
que pode se opor às outras vivências, mas no momento de troca de papéis, esta oposição é internalizada, gerando a
vivência de uma multiplicidade de perspectivas. Assim, ainda no plano propriamente sintético, estabelece-se um conjunto de vivências que possibilitará um aproveitamento muito mais profundo do momento analítico.
“O pensamento divergente é um processo que permite pesquisar de maneira pluridirecional as
numerosas idéias ou respostas a partir de um simples ponto de partida. De acordo com Guilford
(1950) o pensamento divergente é uma capacidade essencial para a criatividade. Pensando de uma
maneira divergente, várias idéias diferentes podem ser geradas, e existirão, assim várias eventualidades a considerar e várias pistas a seguir; a probabilidade de encontrar uma nova idéia adaptada
é muito grande”. (LUBART, 2007).
13
O momento analítico, por sua vez, faz o esclarecimento de cada uma das personagens-vivências no exercício de
reflexão filosófica acerca dos conceitos. Há, então, a passagem de um conceito vivido internamente para um conceito
visto externamente. Tal exteriorização se vale, metodologicamente, da rotatividade dos papéis e da constituição, ainda
como vivência, das diversas perspectivas existenciais que subsidiam hipostasiações conceituais ulteriores.
Com o momento analítico, fecha-se o círculo da constituição do conceito filosófico em uma síntese, que leva em
conta ao mesmo tempo os elementos existenciais e formais imanentes à percepção moral do mundo.
1o. Momento: construção da trama teatral a ser trabalhada em sala de aula. A produção da trama a ser representada, tem duas fontes possíveis – a) o próprio professor pode, usando de sua criatividade e materiais disponíveis,
criar uma peça autêntica ou – b) pode adaptar de outras literaturas já existentes. Em ambos os casos, não pode deixar
de incluir os aspectos filosóficos necessários à produção dos conceitos de Valores e nem esquecer a importância da
contextualização da faixa etária.
O texto escolhido precisa apresentar flexibilidade para ser adaptado ao mundo teatral, requisito que não apresenta
dificuldades extremas dadas as múltiplas capacidades criativas do imaginário infantil.
2o. Momento:
estabelecimento dos papéis pelo professor. Através da experiência de representar, a criança é levada a interagir
com o lúdico, fantasioso e maravilhoso mundo da imaginação. No estabelecimento dos papéis, faz-se necessário
esclarecer para as crianças que cada uma delas ocupa um papel na peça de igual importância e que todos as personagens precisam trabalhar juntas para o pleno desenvolvimento do espetáculo, ressaltando-se, para isso, a rotatividade.
A criança que representar determinado papel poderá vivenciar a ação de sua personagem-aspecto, das dificuldades
de sua representação e da reação das demais personagens-aspecto para com ela e com o grupo. Isso possibilita a
apreensão de conceitos que talvez na linguagem oral ou escrita, distante da representação, fosse mais complexo para
ela absorver, gerando um ciclo de adaptações necessárias para o desenvolvimento do capacidade de conscientização,
defendido pela psicologia vigotskyana:
“Nós nos conscientizamos daquilo que estamos fazendo na proporção da dificuldade que vivenciamos para nos adaptar à situação”. (VYGOTSKY, 2003).
Também é preciso que a história escolhida: poesia, conto, mito, parábola, entre outras formas literárias, seja lida
com o grupo. É a fase chamada de compreensão da história: qual o tema da história, de que assunto trata, que personagens existem na história, como são eles, o que acontece na história e qual o enredo.
3o. Momento:
Dinâmica da representação. Faz-se a primeira representação da peça. Após esta primeira representação, há um
rodízio de papéis. Nele, cada criança poderá em diferentes momentos dos ensaios atuar nos mais diversos papéis,
podendo estar em diferentes lugares do pensamento, sentimento e compreensão das personagens e de suas ações,
tendo a oportunidade de conhecer a sua opinião e a dos demais a respeito de um mesmo ponto e onde tais pensamentos se aproximam e divergem, pois é nessa troca de entendimentos e vivências que os conceitos passam a serem
formados; divergir é um fator de crescimento, uma forma de amadurecer a percepção e exercitar a tolerância para
com a opinião do outro.
14
4o. Momento:
Reflexão sobre as diversas vivências. Neste momento, o professor tem diversas opções tipicamente analíticas:
criar mecanismos de reconhecimento do problema moral da história, a natureza do conflito – pessoal (intra/inter),
ambiental, social –; os valores orientam as decisões (boas/más/duvidosas/ambíguas); análise das alternativas, possibilidades e conseqüências de e para todas as personagens. Também pode ser feita uma avaliação das personagens:
qual a personagem que mais chamou a atenção de cada um e porque; como cada um agiria naquela situação; qual é
a avaliação individual da escolha da personagem, etc.
Este é, mais precisamente, o momento analítico através do qual as várias vivências são confrontadas de modo
intra e intersubjetivo. Este é, de fato, o momento que justifica a metodologia do rodízio de papéis. Enquanto a criança
se desenvolve no interior de uma mesma personagem, constitui sinteticamente apenas uma vivência particular, de
onde pode só precariamente por em curso uma reflexão filosófica mais profunda e existencialmente valiosa. Em uma
situação assim, seria uma contribuição relevante o diálogo com as outras vivências para a constituição do conceito,
mas tal constituição se daria sempre a partir de um conflito que só se estabelece externamente.
No momento em que cada criança ocupa alguns (não necessariamente todos os) papéis estrategicamente distribuídos de modo a gerar um conflito interno das diversas posições filosóficas plausíveis incitadas pela trama da peça
(plano intra-subjetivo), sua ida ao plano inter-subjetivo, no qual aparece o conflito externo, intensifica aquele interno,
gerando uma reflexão que coloca em questão todas as dimensões da existência do indivíduo. O Eu se desenvolve,
no processo dialógico, como um Eu-oposto-ao-outro, um Eu-oposto-aos-outros e também, e principalmente, um
Eu-oposto-a-mim-mesmo. O processo de reflexão se torna, para usar uma noção kantiana, também um processo
reflexionante (que é como que a versão kantiana da noção nietzschiana de homem artístico, referida a um discurso
eminentemente analítico, ao contrário do discurso de Nietzsche). Se fôssemos usar o discurso sartriano , então poderíamos dizer que o conceito de conflito, que sempre se coloca entre uma consciência posicional que é externa a outra e
que a quer constituir, é aqui também interiorizado, de modo a fazer com que os “buracos no Ser” que nossa consciência posicional sempre faz como Ser-aí que somos, também os faça no ser que somos. A criança se constitui, de modo
essencial, como projeto. De fato, poderíamos usar muitos registros distintos, baseados nas diversas filosofias que se
desenvolveram nos séculos XIX e XX, que tão fortemente tematizaram a arte. Heidegger seria uma outra possibilidade
bastante óbvia. Entretanto, consideramos que os exemplos citados são já suficientes para tornar clara nossa posição.
De resto, é importante ressaltar, em termos metodológicos, que cabe ao professor uma análise prévia mais profunda da trama a ser trabalhada, no sentido de selecionar classes de papéis que possam colocar em jogo diferentes
perspectivas filosófico-valorativas de uma mesma situação filosoficamente relevante. Assim, o rodízio deve ser feito
em termos dessas classes de papéis, eliminando a necessidade de um rodízio personagem a personagem, que seria
impraticável e eminentemente tedioso.
5. Expectativas da aplicação da proposta:
Quando se trabalha filosofia com crianças, é necessário colocar em pauta que os conceitos não são rótulos ou
conjuntos de palavras fossilizadas, mas antes são uma rede aberta, um sistema em construção, para ser mais claro,
de forma conotativa: são como um bordado artesanal, seus fios se entrelaçam para formar um desenho cuja gravura
será desenvolvida pelas crianças a partir de seu entendimento. Para que isto ocorra, deve-se dar total importância à
maneira como as crianças se relacionam com os elementos fornecidos a elas. É através da curiosidade, indagação,
debate, reflexão, investigação e porque não da representação artística (teatro), que seus fios tomam forma e passam
a transformar-se em imagens nítidas e compreensíveis, no formato sintético. A representação teatral tem também
a capacidade única de por em movimento (temporalizar) o Valor, esse conceito tão importante para as abordagens
filosóficas que trabalham a infância. Essa dinâmica da construção do conceito é reafirmada por Vygotsky:
“Os conceitos não ficam guardados na mente da criança
como ervilhas em um saco, sem qualquer vínculo que os una. Se
assim fosse, nenhuma operação intelectual que exigisse coordenação de pensamentos seria possível, assim como nenhuma
concepção geral do mundo. Nem mesmo poderiam existir conceitos isolados enquanto tais; a sua própria natureza pressupõe
um sistema”. (VYGOTSKY,1993).
8. Kant, I. Crítica da razão prática. Kant não busca os fundamentos
de sua moral na metafísica, ele estabelece os fundamentos de uma
metafísica na moral, a título de postulados da razão prática.
9. Sartre, J. P. O Ser e o Nada. O foco principal deste livro é definir a
consciência como transcendente, tornando-se a obra fundamental do
existencialismo.
O trabalho com crianças nesta perspectiva da representação teatral se baseia justamente na capacidade da criança de viver a personagem-aspecto – uma capacidade que parece ser muito maior na criança e no adolescente do que
no indivíduo adulto. Qualquer um que tenha já visto uma criança construindo uma estória no processo de brincar pode
entender exatamente o que defendemos aqui. É precisamente esta capacidade de imersão que nos dá a expectativa
de um enorme impacto advindo da aplicação da técnica que aqui expomos. De fato, especificamente no campo dos
Valores, considerando-se que a introjeção do princípio é fundamental para uma existência autônoma (que dá a lei a
si mesma), a componente vivencial dificilmente pode ser negligenciada.
As expectativas globais do trabalho filosófico desenvolvido com as crianças através do teatro, germinam a semente
de um estilo próprio de fazer filosofia com as crianças, propõe uma abordagem ousada, mas não inviável, como afirma
Lipman na citação abaixo:
"Se as crianças podem fazer filosofia, elas devem fazê-la com estilo. Se esse estilo pode ser
identificado, ele pode portanto ocupar seu lugar nessa república estilística onde todos os estilos filosóficos acham-se em pé de igualdade, e pode servir, com efeito, para contestar a opinião daqueles
para quem infância e filosofia são necessariamente
15
Através da arte, as percepções e a apreensão dos conceitos alheios podem ser avaliadas e internalizadas juntas,
num movimento de mútua cooperação que possibilita que a criança a crie seus próprios conceitos. A filosofia cumpre
então sua tarefa de aproximar os amantes (as crianças) do objeto amado (a sabedoria), através da curiosidade e do
maravilhamento habitual da infância, alicerçando a compreensão dos Valores de modo sintético e analítico, respeitando o movimento dialético que se dá entre essas duas dimensões.
As crianças podem e devem filosofar, é justo e correto dar a elas a oportunidade de pensar por si mesmas; e que
movimento no sentido de conquistar a autonomia é esse, de pensar por si mesmas, que não o da própria filosofia? É
necessário encarar as crianças como capazes de independência intelectual e não como meras reprodutoras de conceitos. Assim, concordamos com Sharp:
"Se me perguntassem por que em me envolvi na idéia de que as crianças façam filosofia, diria
que é porque me sinto ofendida com a idéia de que tratamos crianças como se fossem depósitos e as
mutilamos até que sejam maiores de idade. Elas fazem dezoito anos e continuam utilizando palavras
como amor, amizade sem saber do que estão falando.” (SHARP, 1998).
10. Kant, I. Crítica da razão prática. Este livro é a análise d as condições de possibilidade para uma moral com pretensão universalista e a apresentação mais uma vez
do imperativo categórico, como forma da lei moral para uma vontade imperfeita.
A junção dos elementos sintético-vivenciais e daqueles analítico-reflexivos, para a constituição do homem artístico em processo reflexionante se traduz em uma expectativa positiva de que o tipo de aluno que emergirá de um tal
processo, quando bem sucedido, terá em si as diversas dimensões do fazer filosófico e se tornará, nesse sentido, em
um indivíduo completo.
16
Teatro Infantil
(Educação infantil)
BARQUINHO
BARCÃO TODOS
SOMOS IMPORTANTES
Adriana Meyer Torres
[email protected]
Entra Neo (um menino vestido de um barco de papelão), por uma lateral, que tem
como cenário um cais, olhando para a platéia com cara de admiração e felicidade. Ele vai
caminhando em diagonal, como se estivesse avançando para o alto mar, toca uma música
animada.
Quando Neo estiver bem próximo à platéia, a música aumenta e ele ri descontraídamente.
Neste momento, na outra ponta do palco (sentido contrario ao do cais), surge um
homem caracterizado com um outro barco bem maior. No meio da música alta toca uma
buzina.
Neo continua rindo, navegando e distraído.
A música vai abaixando e a buzina ficando mais nítida e com menos intervalo.
Finalmente Neo ouve e olha para trás, toma um susto, pula de lado e o navio passa
atropelando-o.
— You are crazy! You are crazy! – o homem - navio grita.
18
Neo fica um pouco parado e volta chorando para o cenário do cais.
Triste e cabisbaixo, ele fica soluçando.
Surge do lado contrario um barco pesqueiro, também pequeno.
— E aí Neo? Tudo bem?
— Tudo – Neo responde com voz bem baixa, balançando afirmativamente a cabeça.
— Tá chorando mano?
— Não – responde negando, mas com bico e a voz ainda mais baixa.
— Fala sério! Você tá chorando que eu sei. O que aconteceu?
— Nada não amigo.
— Então tá! – dá de ombros o barco pesqueiro e vira de costas para Neo, e fica
olhando para o público.
— Bem na verdade eu estou chorando sim.
— Nossa Neo, o mar hoje não está para barco que pega peixe.
— Estou tão triste, mas tão triste que poderia chorar até enferrujar inteiro.
— Naveguei 3 horas e não pesquei nada. Deve ser a poluição – o outro fala olhando
para o público e sem prestar atenção no amigo.
— Toddy. Você está me ouvindo?
— Aonde eu vou encontro plástico, copo e sujeira. Peixe que é bom nada.
— TODDY. VOCÊ ESTÁ SURDO?
Toddy olha assustado o amigo.
— Eu aqui, triste e precisando de um amigo e você só sabe falar de você? – Neo fala
acusando-o.
— Mas eu perguntei o que você tinha. Você é que disse que não tinha nada.
— Disse isso só para você se mostrar preocupado e insistir. Mas você nem liga. Eu
já estou cansado Toddy, de ser pequeno e sozinho.
— Mas Neo, nós somos amigos.
— Amigos? Se o meu problema é ser pequeno e você é tão pequeno quanto eu, o
que adianta sermos amigos?
— Como eu sou pequeno? Eu sou seu maior amigo e depois...
— Você é meu maior amigo Toddy, mas é tão pequeno quanto eu. Eu quero ser um
barco cargueiro. Preciso crescer para poder cruzar os mares. Preciso conhecer amigos
que me ensinem a viajar para longe. Como eu vou ter coragem e sabedoria só conversando
com você.
— Mano você endoidou? Está negando a nossa amizade? Fala sério? Tomou muito
sol no casco não foi?
Os dois se olham e olham para a platéia.
Toddy pega uma bolinha de espuma e começa a jogar para o público.
Neo fica olhando o amigo e começa a se irritar.
Toddy bem devagar joga mais duas.
Neo vira de costas.
Toddy joga mais duas e então fala:
— Neo?
O outro vira para frente e suspira.
— Que é Toddy?
— Quer brincar comigo?
— BRINCAR? Não Toddy, eu quero CRESCER! Será que você não consegue entender?
— Entendi sim! Eu não sou burro! Até acho que você está ficando bem grande.
Neo se estica e sorri.
— Grande eu? Imagina!
— Um grande CHATO – Toddy joga a última bola, vira e saí do palco.
Neo olha para ele e balança a mão gesticulando “deixa para lá”.
19
Volta à frente do palco e senta de frente para a platéia.
Olha novamente para o local onde Toddy saiu de cena e volta a gesticular igual.
— Eu chato? Chato é ele. Só porque quero ser um grande barco cargueiro ele me
chama de chato. Barquinho idiota.
No fundo do palco entra um outro barco semelhante ao modelo de Neo, mas um
pouco mais enferrujado e envelhecido.
Ele olha para trás e pra Neo se aproximando devagar.
20
— Chato e idiota é este Toddy – Neo continua resmungando.
— Nossa, o que aconteceu? – este outro barco pergunta.
— Olá tio Bill.
— Olá Neo! O que deu em Toddy? Passou por mim igual um barco no meio da ventania. Vocês brigaram?
— Ele me chamou de chato.
— Te chamou de chato? Por quê?
— Sei lá. Acho que está com cocô de gaivota no mastro.
— Neo, Neo, o que você aprontou?
— Nada tio, não seja injusto! Eu não fiz nada!
— Não sei não. Neste mar tem caroço.
— Tio, por que você chegou cedo hoje? Não chegou e nem vai sair barco do porto?
— Tem sim. Tem um navio de soja carregando para sair daqui a pouco. Só vim trocar
o óleo e já estou voltando para trabalhar.
— Um navio de soja! Grande? De onde ele vem? Para onde vai? Quando chegou? É
grande.
— Calma garoto. Como eu posso responder vinte perguntas ao mesmo tempo?
— Ah! Desculpe, é que sou curioso.
— O navio de soja chegou semana passada. Estava carregado de milho. Veio da Dinamarca. Demorou dois dias para descarregar. Esta demorando três dias para encher de
soja. É um cargueiro enorme. Por isso demora tanto.
— E parte hoje?
— Parte sim. Daqui a umas três horas. Por isso vim me preparar.
— Tio? Você nunca teve vontade de ser um cargueiro?
— E atravessar os mares de um país a outro?
— Isso!
— Nunca.
— Como não tio! Já imaginou carregar todas estas mercadorias? Balançar aquelas
bandeiras coloridas? Visitar os mais diferentes lugares? Conhecer as mais diferentes culturas? Visitar vários portos e ser recebido com festa e cerimônia em cada um?
— Já imaginei sim.
— E não deve ser maravilhoso? Não é um trabalho importantíssimo?
— Não. Deve ser até sem graça!
— Não?
— Não. Até acho que deve ser uma chatice viajar tanto.
— Chatice? Está louco? Como pode um barco querer ser outra coisa na vida que não
seja um cargueiro?
— Pode sim. Pode ser como eu. Um rebocador.
— Um rebocador? E quem quer ser um rebocador?
— Eu quero. E sou. Com muito orgulho por sinal.
— Não acredito tio que você seja feliz em ser um simples rebocador.
— Simples rebocador? Ninguém entra ou saí deste porto se não for com a minha ajuda. Pode ser enorme, forte, grande, de qualquer país; o titio aqui é quem sabe o caminho.
Eu sou muito importante!
— Mas eu não quero esta vidinha sem graça e boba. Eu quero muito mais.
— Ser um rebocador é muito legal. Não tem nada de bobo e sem graça.
— Desculpe tio. Sem te ofender. Isso que você faz não é uma coisa muito grandiosa.
— Ah não? Então ser rebocador por toda uma geração não é motivo de orgulho? Fazer o que seu bisavô fazia, o que seu avô fez, o que seu pai fez e o que seu tio faz, não é
motivo de orgulho?
— Qualquer um faz o que vocês fazem!
— Como qualquer um faz? Os barcos grandes que você tanto admira não seriam
nada se não fosse o nosso trabalho. Eles não poderiam entrar e nem sair do porto. Sabia
o que significa isso? Nem trariam seus valiosos produtos e nem levariam nada. São totalmente dependentes dos barcos pequenos.
— Não seja infantil tio. Acha que vou acreditar que eles não servem para nada sem
a sua ajuda.
— Não Neo. Você não entendeu. Eles são muito importantes. Fazem o transporte
de produtos entre países. Se não fossem os cargueiros não haveria comercio e faltariam
muitos produtos nos países. Mas não são os únicos importantes nesta história. Os cargueiros são bons no que fazem e dependemos deles. Assim como os rebocadores também são
importantes para que eles cheguem e saíam dos portos. É simples! Todos têm a sua devida
importância. Entendeu?
— Sim.
— Ufa, garoto.
— Você se acha muito importante e eu também acho.
— Ah! Finalmente.
— Mas nós dois sabemos que os cargueiros são bem mais. Só que você não aceita
isso.
— Garoto! Agora eu sei por que o Toddy te chamou de chato. Mas você não é só chato. É muito teimoso também.
— Tio. Por que vocês não entendem que não dá para ser feliz sendo pequeno e inútil?
— Neo. Por que você teima em só ver importância no que os outros fazem?
— Não é isso tio. Eu só queria ser grande.
— acho que já é hora de você aprender o que é ser grande Neo.
— Não entendi.
— Tudo bem. Eu vou te mostrar. Venha!
— Aonde vamos tio Bill?
— Descobrir a vida garoto. Siga-me e observe.
Os dois saem do palco e enquanto toca uma música de aventura o cenário é substituído por um porto cheio de pedaços de navios enormes.
Bill e Neo passam pelo meio das gigantes embarcações e vão empurrando e puxando
os cenários de navio.
Bill está concentrado e sério.
Neo vai sorrindo e observando de perto tudo o que o tio faz.
A luz do palco vai enfraquecendo, até que escurece.
Os grandes barcos ascendem suas luzes iluminando o palco, para representar a noite.
Aos poucos vão sendo conduzidos para fora do palco e deixam uma lua enorme iluminando tudo.
Neo senta em um canto do palco e espera o tio tirar os dois últimos barcos.
Quando o tio termina o trabalho e se a próxima, Neo bate palmas bem animado.
Bill agradece e se senta perto do sobrinho.
— Então? Viu como tenho muito e importante trabalho?
— Sim. Eu vi que realmente você é muito importante.
— percebe então que cada um tem o seu valor? Independente de ser ou não grande?
21
— Desculpe-me tio. Acho que fui injusto com você e com a nossa família.
— O que importa é que agora você entendeu o nosso valor. Estou orgulhoso de você
ter mostrado suas dúvidas e ter se interessado em compreender as respostas.
— E eu estou orgulhoso em ser um rebocador.
— Que tal ir-mos descansar?
— Adoraria tio. Mas não posso. Tenho mais um problema para resolver.
— Problema para resolver?
— Vou procurar Toddy, pedir desculpa e contar o que aprendi.
— E o que foi que você aprendeu Neo?
— Que apesar do Sol ser muito maior, mais forte e iluminar tudo, só a lua e as estrelas são capazes de iluminar a noite.
Neo levanta e sai rápido do palco, pega Toddy e juntos voltam a dar a mão para Bill
que recebe os cumprimentos e agradecem.
22
Obs: É importante que todos estejam na saída da
platéia para receber e tirar foto com o público.
Texto de:
Maria Inês Resende
[email protected]
Uma notinha sozinha
não faz canção
Adaptação Teatral:
Paulo Roberto Antunes
Tiago Cristian Barbosa Nunes
[email protected]
Cenário: Ao fundo, um gigantesco painel no qual estão desenhadas as notas musicais numa pauta. Um imenso globo
terrestre, aceso fracamente, cai do teto, à esquerda, e gira lentamente. O chão é recoberto com pano cor de terra. No
espaço cênico, alguns relevos simulando montes de areia altos e baixos. À esquerda, um pouco ao fundo, dois coqueiros
e entre eles uma rede de balanço onde está deitado Deus, de chinelas, óculos escuros, roupa de surfista, tatuagem no
braço, tomando água de coco.
ILUMINAÇÃO: Luz se acende gradativamente iluminando a cena dando a idéia de um intenso dia ensolarado.
SONOPLASTIA: Música “Aquarela”, de Toquinho.
(Os atores, trajando batas e calças cor pérola, cada qual pintado excessivamente no rosto e nas mãos, formam uma
banda e entram pela platéia indo em direção ao palco tocando a música já mencionada e iniciada anteriormente. Cada
qual posta-se no seu local de cena.)
23
NARRADOR 1 – (Sorridente) – Olhando Deus, naquele dia, nem dava para imaginá-lo como justiceiro. Tinha
uma cara de bonachão. E mesmo sem que Ele sorrisse, ficava com dois buraquinhos, duas marquinhas de covinhas
nas bochechas.
NARRADOR 2 – (Simpático e feliz) – Se me pedissem para sair e comprar algumas roupas para Ele, naquele dia,
eu lhe compraria uma camiseta rosa-bebê, uma bermuda e um par de chinelos e, ainda, de brinde, lhe entregaria
um coco, láááááá de Canoa Quebrada, com muita água – e geladinha! –, uma rede e um... um... (Orgulhoso) UM
LIVRO! (Solene) UM LIVRO DA CORA CORALINA!
NARRADOR 3 – (Desanimado) – Mas não deu tempo de isso acontecer. (Nervoso) O Mundo atrapalhou. (Outro
tom) O mundo suspirou. E láááá se foi Deus. Foi saber porque suspirava o Mundo.
NARRADOR 4 – (Irritado) – E o Mundo estava muito reclamão. Reclamou da solidão. Reclamou do tédio. Reclamou do silêncio. (Amedrontado) Reclamou do silêncio. (Em surdina e tom grave) Reclamou do silêncio...
NARRADOR 5 – (Desolado) – E não é que tive que concordar com o Mundo: (Confuso) ele... ele estava mesmo
muito sem gracinha... Muito... Muito silencioso.
NARRADOR 6 – (Pensativo) – E Deus ficou... Matutando. Procurando um... um jeito de resolver o problema do
Mundo. (Iluminando-se) E foi nessa busca que ELE, o TODO PODEROSO, se encontrou com a idéia de criar as notas
musicais. (Orgulhoso) E criou!
NARRADOR 1 – Ah! Agora você vai me perguntar:
DEMAIS NARRADORES (exceto o narrador 1) – (Voz fanhosa, fininha e lenta) – Mas a Cora Coralina que já estava
nesta história, não nasceu antes das notas musicais?
NARRADOR 1 – (Firme) Nasceu! (Maravilhado) Ela nasceu com o Mundo. (Poético) Nasceu no momento em que
se fez o verbo. (Ao acaso) Ah, e se você não entendeu, não faz mal. Um mistério a mais, um mistério a menos, é só
um mistério a mais ou a menos.
NARRADOR 2 – (Explicativo e simpático) – O que conta aqui, nesta história, é que naquele dia nasceram as sete
notas musicais. Nasceram porque o Mundo... (Suspirando) Ah! o mundo suspirou por elas.
NARRADOR 3 – (Sorridente) – Deus as abençoou e as batizou com os nomes de (cantando desafinadamente,
desequilibrando-se) Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Siiiiiiiiiiiii... (Quase cai e é amparado pelos demais. Retoma fôlego e
retorna ao seu lugar)
NARRADOR 4 – (Orgulhoso) Deus falou-lhes do quanto eram caras e bem-vindas. Falou-lhes que eram irmãs da
beleza, da saudade, da tristeza, da alegria, da poesia... Contou-lhes que o Mundo suspirara por elas e que a vida...
(Suspirando) Ah! A vida precisava de uma TRILHA SONORA.
DEMAIS NARRADORES – (Entusiasmo total) – BRAVO! VIVA! MUITO BEM! BRAAAAVÍÍÍÍSIMO!
NARRADOR 5 – (Sussurrando, horrorizado) – E foi aí, nessa hora que, sem pedir licença, sem ser convidada, a
vaidade entrou e foi subindo pelas cabeças.
NARRADOR 6 – (Horrorizado, em tom de fofoca) – Aaaah, meniiiiino! Quando vi... cada notinha já se sentia a
maior... a mais MELODIOSA... a mais ILUMINADA. A mais SONORA. (Aborrecido) Ficaram TÃO vaidosas que nem
ouviram Deus lhes dizer que:
DEUS – (Tom solene. Fazendo com as mãos o sinal da cruz) – A beleza de cada uma será capaz de embalar o
Mundo quando se unir à beleza das outras.
NARRADOR 6 – (Consternado) – Que pena. Pena para elas. (Lentamente) Pena para todos nós.
24
NARRADOR 1 – (Desagradado) – E foi por causa dessa tal de vaidade que elas gastaram muito de seu tempo só
se olhando no espelho e cantando uma musiquinha chata de uma nota só.
NARRADOR 2 – (Entristecido) – Coitado do mundo! (Outro tom) Primeiro ficou todo entusiasmado, todo cheio
de esperança. Depois percebeu o estrago que a vaidade fazia e decidiu que, cada dia, visitaria uma das notas
musicais.
NARRADOR 3 – (Explicativo) – A primeira a ser visitada foi a nota Dó. Ela estava tão entretida consigo mesma
que nem percebeu a presença do Mundo. E olha que o mundo é grande. (Aborrecido) Pena que ela não o viu.
(Suspira. Triste) Ele achou melancólica essa história de quem só enxerga o próprio umbigo.
NARRADOR 4 – Pensou que poderia acontecer com Dó o que, no futuro, aconteceria com uma moça de uma
canção do Chico. (Outro tom) Meio triste, o mundo cantarolou:
MUNDO – (Melífluo) – “(...) A vida passou na janela e só Carolina não viu... (...)”
NARRADOR 4 – (Entristecido) – Nem assim foi notado. Ficou com um nó, com um dó e resmungou baixinho:
MUNDO – (Triste) – Vai ver é por isso que ela se chama Dó. Que dó!
NARRADOR 5 – (Obstinado) – Mas não desistiu. No outro dia, bem cedinho, foi ter com Ré. (Aborrecido) Ih! Teve
vontade de sumir, de DAR NO PÉ, de SAIR DE RÉ. (Irritado) Não há de ver que aquela nota também não se largava
do espelho e repetia um som chato de uma nota só? (Outro tom) Mas ele pensou:
MUNDO – (Intrigado) – Vai ver que me encontrei foi com Ré menor.
NARRADOR 6 – E saiu para se encontrar com Mi. (Entusiasmado) Quem sabe Mi é maior? (Desolado) Que
nada! Concluiu que é até melhor ouvir o mi do (imitando um gato miando prolongadamente) miaaaaaauuu do
gato louco do que ficar ali a ouvir a nota Mi se repetir.
NARRADOR 1 – (Contrariado) – Foi atrás da nota Fá. E fácil não foi. Era tanto (voz estridente e monocórdia) fá
fá fá fá fá fáááááá´, que num de seus efes ele (assovia) se foi.
NARRADOR 2 – (Animadíssimo) – Pensou na nota Sol e se iluminou:
MUNDO – (Com prazer e sensualidade) – Essa deve ser redondinha! Deve ser quente! Deve ser diferente!
NARRADOR 3 – (Irritado) Que nada! Era um sol quadrado! (Desanimado) Exclamou:
MUNDO – (Animado) – Quem sabe se não é a nota Lá que vai me encantar? (Sorridente e sonoro) Afinal, lá é
um ooooutro lugar!
NARRADOR 3 – (Grave) – Mas no lugar onde vivia Lá, só cabia o seu (desafinadíssimo) lá lá lá lá lá lááááááááá´.
Urgh!
NARRADOR 4 – (Desesperançado) – Restava a nota Si.
MUNDO – (Com uma ponta de esperança) – E se Si fosse a solução?
NARRADOR 4 – (Triste) Mas ouviu o Si se repetindo. (Desolado) Sentiu saudade do silêncio sem Si. Saiu de si.
SONOPLASTIA – Sons de ventania, tempestade, trovões, vidros quebrando vão surgindo lentamente até dominarem a
cena.
ILUMINAÇÃO – As luzes oscilam-se até se apagarem. Uma estroboscópica é ligada sobre a cena para simular o efeito
de câmera lenta.
(Excetuando-se Deus, os demais personagens correm perdidos pelo palco, juntam-se, caem ao chão... O caos, enquanto o Narrador 5 gesticula e fala como um deus furioso.)
25
NARRADOR 5 – (Forte e Aterrorizador) – Saiu de si. Indignou-se! Relampejou! Sacudiu! Trovejou! (Irado) Teve
vontade de explodir. (Drástico) Ventou. Quebrou galhos, quebrou telhas, quebrou espelhos, muitos espelhos. (Lento e enigmático) Fez com que toda gente se sentisse pequena e tivesse medo do azar e de ficar sozinha. (Amedrontado e voltando ao tom normal) As notinhas se assustaram, se juntaram, se abraçaram. Olharam umas para
as outras e começaram a cantar para os seus males espantar.
SONOPLASTIA – Gradativamente o som morre no ar.
ILUMINAÇÃO – Gradativamente as luzes voltam ao normal e cessa-se o efeito da estroboscópica.
NARRADOR 6 – (Triunfante) – E foi de repente que se deram conta de que juntas eram magníficas. (Brilhante)
Juntas eram Villa-Lobos, Mozart, Bach, Wagner, Beethoven. Juntas eram sinfonia, cantiga, melodia. (Num crescendo solene) Juntas eram banda, orquestra, coral. Juntas eram um espetáculo. UUUM SHOOOW!!!
NARRADOR 1 – (Simpático e explicador) – E foi assim que, naquele dia, a beleza se manifestou. Foi assim que
o Mundo serenou e a música o embalou. (Pausa. Melífluo) Calou-se o suspiro. (Pausa. Idem) Calou-se... a dor.
NARRADOR 2 – (Valente) – E, desta vez, não dei tempo para que o Mundo suspirasse e um outro problema
acordasse. (Ao acaso) Aliás, os problemas sempre acordam. O que não deixa de ser bom. Afinal, é assim que a
gente se encontra com o novo. E se encontrar com o novo é surpreendente, é bacana! (Outro tom) Ah, mas isso é
assunto para uma outra história...
NARRADOR 3 – (Simpático) – O que interessa aqui é que aproveitei o momento em que a “banda passava” e
fui buscar aquelas roupas, a rede, a água de coco e o livro da Cora. Entreguei tudo para Deus e falei: Já é hora de
devolver os espelhos, Deus. Acredito que já não fazem mal. Fazem é bem.
NARRADOR 4 – (Feliz e sorridente) – Deus sorriu largo e sumiu. Deve estar por aí, estreando os presentes que
lhe dei, entre os coqueiros, num ponto azul sob o Cruzeiro do Sul.
(Alegria geral. Os atores pegam os instrumentos e se põem a tocar a música “A Banda”, de Chico Buarque. Dançam
e cantam em cena numa coreografia alegre. Posteriormente, saem pela platéia convidando o público para engrossar o
cortejo que segue até o hall de entrada do teatro onde todos fazem uma grande festa, cantando e dançando).
26
Teatro Infantil (Ensino Fundamental I – 1º. ao 5º. ano)
Teatro Infantil
(Ensino Fundamental I –
1º. ao 5º. ano)
A Fonte da
Vida Toda
Elizete Gomes
[email protected]
Toque de sino. Como um sino escolar. Ouvem-se vozes de crianças. A menina Janaína entra em cena. Pensativa, ela
caminha à frente de uma empanada, (palco para bonecos), onde, acima, vários bonecos passam realizando tarefas do dia
a dia.
JANAÍNA
(Ela observa a ação das personagens. Aproxima-se de uma delas e questiona) Com licença dona Maria. A senhora pode me dizer, assim, meio sem querer. O que seria pra senhora a coisa mais importante na vida?
DONA MARIA
Pra mim é a saúde. Tudo tem que estar bem limpinho caso contrário dá doença!
(Menina concorda com um gesto. Afasta-se pensativa).
28
JANAÍNA
(Observando a ação de outra personagem e dirigindo-se a ela). Seu Joaquim.
Desculpa incomodar. Mas o senhor já pensou na coisa mais importante da vida?
SEU JOAQUIM
Tenho pra mim que é a economia que a gente faz. Saber usar bem hoje pra não faltar amanhã! (Menina concorda com um gesto. Afasta-se pensativa).
JANAÍNA
(Após observar a ação de mais uma personagem. Dirigi-se a ela). Com licença, mas, você por acaso já parou pra
pensar na coisa mais importante da vida?
CHICO
Pra mim é a amizade. A união. Quando tem alguém perto pra ajudar. Pra conversar. Trocar idéia. Parece que
fica mais fácil a gente entender e fazer as coisas. (Menina concorda com um gesto adianta-se e começa fazer
anotações. Entrada das crianças bonecos).
CRIANÇA 01
Janaína! Vamos brincar?
JANAÍNA
Agora não dá!
CRIANÇA 02
Ué! Porque? Você ta doente!
JANAÍNA
Não!
CRIANÇA 01
Então! Vem brincar com a gente. O dia é curto. Daqui a pouco acaba!
CRIANÇA 02
É. Daqui a pouco você cresce e nem percebeu!
CRIANÇA 01
É! E o que era doce...Acabou-se!
JANAÍNA
Acontece que eu tenho uma tarefa. Quero descobrir a resposta da minha aula de hoje!
CRIANÇA 02
É difícil? É muito complicado?
JANAÍNA
Um bocado.
CRIANÇA 01
É que pergunta é essa que te deixou tão séria?
JANAÍNA
Hoje na escola minha professora nos pediu que pensássemos em uma coisa muito importante para nossas
vidas.
(Professora aparece em outro plano. Sugestão: acima e ao fundo. Sugestão para que seja uma atriz em um balanço,
como um trapézio, que não cessa nunca seu movimento enquanto personagem estiver em cena).
PROFESSORA
Pensem! Pensem! O que seria importante para vocês? Para mim! Para a vida de todos! Para a vida inteira!
(Atriz repete as frases, agora, baixinhas).
CRIANÇA 02
Esquisita essa sua professora!
JANAÍNA
Daí eu pedi uma pista.
PROFESSORA
Observe o dia a dia de sua vida. O lugar que você mora. Comece pelas coisas do lugar em que você está. Pelo
próximo. É observando o perto que se enxerga o longe. (Ela repete, baixinho, as mesmas frases. Luz reduz progressivamente)
29
CRIANÇA 01
Muito estranha essa professora!
JANAÍNA
Deve ser algo bem complicado. Talvez... Difícil de se responder! Pra falar a verdade não sei por onde começar!
CRIANÇAS 01 E 02
Comece pelo começo. Comece pelo começo. (Dão pequenas risadas e saem brincando da cena)
JANAÍNA
Começar do começo! Do começo! (Dá pequenos passos enquanto organiza o pensamento). Bom... A primeira
coisa que faço ao me levantar é ir ao banheiro e fazer xixi. Vou até a cozinha. Lá minha mãe... O que faz mesmo
minha mãe? Ah! Claro! Ela cata feijão e coloca na panela para cozinhar. Daí ela sempre fala: (Sugestão para atriz
ou boneca representar a mãe. Ela interfere na cena com xícara na mão servindo o liquido em cena).
MÃE
Filha quer lanchar?
JANAÍNA
Daí eu respondo: Quero sim. Saio pra brincar! Não! Antes escovo os dentes. Engraçado. Tem alguma coisa
diferente! (Ela começa a perceber algo que antes não percebia).
(Música de fundo. bonecos personagens do cotidiano retornam executando as situações indicadas pelo texto que será
dado a seguir por janaína).
JANAÍNA
Na rua, Dona Maria, a vizinha, regava seu jardim! Seu Joaquim lavava o carro e Chico, filho da tia Jussara dava
banho no cachorro. Peraí! Acho que já sei o que é mais importante nessa vida! (Bonecos param de fazer suas ações
e olham para Janaína). Rápido!Caderno, lápis e borracha. Acho que já posso responder essa pergunta!
(A cena que se segue é um pequeno musical. jánaína e bonecos ilustram a cena enquanto cantam a canção).
POEMA PARA SER MUSICADO
QUANDO ACORDO
OLHA ELA LÁ
NA PIA DO BANHEIRO
NO RALO DO CHUVEIRO
NO ORVALHO DA PLANTA
NO BULE DA COZINHA
OLHA ELA LÁ
NA PANELA DO FEIJÃO
E ATÉ NO XIXI FEITO NO COLCHÃO
ELA ESTA PRESENTE
EM TODOS OS MOMENTOS
É INSEPARÁVEL
É INACREDITÁVEL
OLHA ELA LÁ
ESTÁ SEMPRE AO NOSSO LADO
PRA DAR BANHO NO CACHORRO
PRA LIMPAR O NOSSO CORPO
NAS HORAS BOAS E NAS HORAS MÁS
ELA ESTA CONOSCO
DOS PÉS ATÉ O PESCOÇO
(Saem bonecos e sob luz que aumenta progressivamente surge novamente a professora sobre o trapezio).
JANAÍNA
Professora! Já tenho a resposta. A coisa mais importante da vida é sem duvida nenhuma a água!
PROFESSORA
Eu concordo Janaína! Eu concordo com você! Todos dependem dela. O tempo todo em todos os lugares. (Ela
repete as frases. Sussurrando).
30
JANAÍNA
Nas pequenas coisas e nas coisas grandes. É inseparável. É inacreditável!
PROFESSORA
Que tal então uma nova questão? Pense! Pense Janaína! De onde vem a água. Ela nasce na pia da cozinha?
Mora nas nuvens do céu ou brota do chão?
(Enquanto luz diminui progressivamente a voz da professora vai diminuindo repetindo as perguntas. Sussurrando).
JANAÍNA
Uma nova questão? (A menina volta-se para ainda perguntar a professora, mas, a personagem já não está
mais lá).
JANAINA
Vou continuar seguindo a pista. Gleidmilson!
GLEIDMILSON
(Sugestão para que seja um ator. Aqui a personagem é histriônica, meio nervosa, impaciente. Realiza tudo
muito rápido) Quem me chama? Estou ocupado lavando meus sapatos. (Gotas respingam. Ele entra e sai da empanada realizando diversas atividades onde o uso da água se fará presente). Preciso molhar as plantas. Colocar água
no filtro. Estender a roupa no varal. (Enquanto faz as ações menina o segue nas entradas e saídas da empanada.
Como um jogo de pique pega).
JANAINA
Você que é metido a sabichão sem pensar responda rápido! Aonde nasce a fonte da vida?
GLEIDMILSON
Que pergunta é essa? Que hora mais indiscreta? Não vê que estou ocupado lavando meus sapatos?
JANAINA
Pois é! Estou falando da água que você usa! Diga-me! Da onde ela vem? Da torneira do quintal? Da caixa dágua do telhado? Do supermercado? Vamos responda logo! Estou curiosa!
GLEIDMILSON
Vou começar a falar difícil. Daí não gosto quando você me chama de metido!
JANAÍNA
Porque? É tão complicado entender como é porque acontece o nascimento da água?
GLEIDMILSON
Água não nasce! Ela existe! Como posso disser...? Ela vive dentro de um ciclo. Jura que se eu falar não vai me
chamar de metido?
JANAÍNA
Juro!
GLEIDIMILSON
Ciclo hidrológico!
JANAÍNA
Hidro o que?
GLEIDMILSON
Viu só?! Deixa pra lá!
JANAÍNA
Não! Nada disso! Parece muito interessante. Fale meu amigo! Por favor!
GLEIDMILSON
Ciclo hidrológico! O grande ciclo que não tem fim, nem tem inicio. Que não para nunca. Que vai. Que vem. Que
sobe da terra ao céu. Que do céu cai a terra também. Nem uma gota a mais, nem uma gota a menos. Sabe? Eu
conheço alguém que melhor do que ninguém vai poder explicar pra você. Tintin por tintin o movimento mágico da
água... (Entrada do Doutor Clorofila que interrompe Gleidmilson. Entra tossindo desesperadamente. Apóia-se na
menina. Adianta-se até o proscênio. Tosse até esparramar-se no chão). (Sugestão para personagem: estar caracterizado com figurino, acessório e adereços em tons de verde. Clorofila como referencia ao catalisador vegetal que
através da fotossíntese libera o gás oxigênio necessário a vida dos animais).
GLEIDMILSON
Rápido Janaína! Traga um copo d`agua.
DOUTOR CLOROFILA
Verifique antes se é filtrada. De preferência que já tenha sido fervida. Nunca se sabe a fonte. A procedência.
31
De onde veio? Ou se é contaminada!
JANAÍNA
Que exagero! Isso parece mesmo coisa de médico
GLEIDMILSON
Aí você se engana. Ele não é médico de gente. É muito sabido pra falar dos caminhos que a água faz. (Auxiliam
Clorofila).
DOUTOR CLOROFILA
Ai que já me recomponho.(Fala enquanto se levanta). Pois bem. Porque fui chamado? Não é comum, para mim,
aparecer assim.
GLEIDMILSON
É uma causa urgente. Um motivo especial. A menina Janaína esta estudando para entender o nascimento do
elemento água.
DOUTOR CLOROFILA
Vamos por parte! Água não nasce!
GLEIDMILSON
Não disse!
DOUTOR CLOROFILA
Ela existe há bilhões de anos no planeta. De várias formas e em vários lugares. Em alguns locais mais, em
outros bem menos.
JANAÍNA
Mas, se ela não nasce, de onde ela vem?
DOUTOR CLOROFILA
Para entender será preciso imaginar. Viajar junto com esse elemento, aparentemente ausente, no entanto,
sempre presente. Vamos para a primeira parte: Já ouviu falar de evaporação?
JANAINA
Evaporação?
DOUTOR CLOROFILA
E de precipitação?
JANAINA
Precipitação? Viu só?! Ta parecendo coisa de médico!
DOUTOR CLOROFILA
Bem... A água que você usa na sua casa é canalizada. Anda! Caminha por um monte de canos que a levam de
um lugar para dentro do seu lar. Uma fonte de água doce, boa de beber, que normalmente é represada de um rio.
Só que ela, a água, não fica parada lá nesse lugar. Ela o tempo todo se transforma. Ela evapora pela ação da temperatura. Eleva-se às alturas. Vira chuva pra cair na terra de novo. Uma parte vai pro rio outra entra terra à dentro.
Outra parte ainda escorre pro mar.
JANAINA
Puxa Gleidmilson. Ele fala mais complicado que você!
GLEIDMILSON
É doutor. Assim não vai ajudar muito...
DOUTOR CLOROFILA
Calma. Calma. Vamos começar de novo! Dessa vez vamos usar da tecnologia. Afinal tanto progresso cientifico.
Tantas maravilhas da criação humana devem servir para proteger a fonte de toda a vida.
(Sugestão para que sejam projetadas em telão ao fundo imagens da água. Chuva. Rios limpos. Reservatórios.
Pessoas usando água. A idéia é transmitir e reforçar a sensação reconfortante que o elemento causa. Música).
32
POEMA PARA SER MUSICADO
AGUA FRIA
AGUA CORRENTE
ÁGUA DA CHUVA
NO RIO. DENTRO DO CORPO DA GENTE
NA PIA PRA ESCOVAR OS DENTES
EMBAIXO DA TERRA.
NO VAPOR DA FERVURA
AGUA DA COMIDA
LIQUIDO DA BEBIDA
COM O SOL SE EVAPORA
EM TUDO SE TRANSFORMA
SE OLHAR DE PERTO
ELA NÃO PARA
VIVE CORRENDO
CICLO CONSTANTE
ÁS VEZES VISÍVEL,
ÁS VEZES APARENTEMENTE AUSENTE
TUDO QUE É SABIDO SABE
QUE TUDO QUE É VIVO TEM
(Gleidmilson toma o controle e muda seqüência de imagens. Clorofila disputa com ele a posse do controle).
DOUTOR CLOROFILA
Ah! Tava tão legal. Não muda de canal. Afinal toda a tecnologia da humanidade deve servir enfim para ajudar
a evitar o desperdício. (Gleidmilson e Clorofila continuam disputa pela posse do controle).
JANAINA
Estou começando a entender o que estão querendo dizer: Água não nasce, ela existe em todo lugar. Ela não vem,
já esta. Água não para. Circula no tempo por todo espaço. Corre no rio, escorre na mão. Toma forma do corpo em
que está. Mas também parada não quer ficar. Vezes sólida, Vezes gasoso. Ora pela terra, ora pelo ar. Preciso de mais
respostas. Ainda estou curiosa. Gleidmilson! Doutor Clorofila!
GLEIDMILSON
O que é dessa vez garota!
JANAINA
Preciso que me digam pra onde vai a água depois de usada.
DOUTOR CLOROFILA
Deixa ver se entendi. Você quer saber da água usada na descarga. Da água da roupa lavada...
JANAINA
É! Quem é que lava a água que já foi usada?
GLEIDMILSON
Que pergunta mais cabeluda? Vai precisar de uma grande resposta. Tem outra pessoa que quero que conheça.
(Entrada da personagem hemoglobina. Atriz ou ator caracterizado de vermelho. Todos os acessórios e adereços
em tons de vermelho. A personagem é uma referência ao pigmento catalisador no sangue dos animais responsável
pela liberação de gás carbônico alimento para os vegetais).
DOUTOR CLOROFILA
(Extasiado com a presença de Hemoglobina) Eis a minha lua!
HEMOGLOBINA
Eis o meu sol! (Os dois se aproximam).
DOUTOR CLOROFILA
Meu complemento! Meu outro lado! Eu vivo nos vegetais. Ela no sangue quente dos animais.
JANAÍNA
Um depende do outro?
HEMOGLOBINA
Um depende de todos! (os dois se fitam como que apaixonados).
DOUTOR CLOROFILA
Todos dependem de um! Eu sou o ar que ela respira. Ela o ar que eu necessito!
GLEIDMILSON
Ai que romântico! Podemos voltar ao assunto e explicar para a menina qual o destino da água quando não é
bem usada?
DOUTOR CLOROFILA
33
Nem me fale dessa parte. Só de lembrar sinto calafrios. Fale Hemoglobina. Esse é seu departamento.
HEMOGLOBINA
Ta bom! Ta bom! Mas se preparem. São muitas as preocupações. Quem tiver coração fraco é melhor não ficar
no pedaço.
JANAÍNA
Cruzes! Será tão terrível assim? Fale. Estou muito curiosa.
HEMOGLOBINA
Serei curta e grossa. Grande parte da água depois de usada não é tratada. Ou seja, vai embora perdendo sua
principal função: o consumo dos seres vivos. Toda água, limpa ou não, que vai para o esgoto fica na sua maioria
condenada. Vai assim diminuindo a cada dia a porção de água boa para beber. Mas é muito importante saber que
o ser humano, no seu uso doméstico, não é o maior responsável pelo grande desperdício. A gente, em casa, usa
uma porção bem pequena da água boa.
DOUTOR CLOROFILA
O que não quer dizer que não se deva economizar. Todos podem de um modo ou de outro colaborar.
HEMOGLOBINA
Claro! O que quero dizer é que quem mais usa deve ter maior responsabilidade.
JANAÍNA
Temos um vilão na historia?
HEMOGLOBINA
Se é vilão ou não... Não cabe aqui julgar! Sabe menina Janaína houve um tempo em que as pessoas pensavam
que os seres humanos eram o centro da vida. Com o passar dos anos foram percebendo que não é bem assim.
Primeiro não existe centro. Existem teias. Teias que se ligam. Que se unem. Que se trocam. Que se intercambiam!
JANAÍNA
Dá pra ser mais clara. Dito desse modo fica tão confuso como antes.
HEMOGLOBINA
Vamos mostrar um pouco do que acontece com a água mal usada! Clorofila nos ligue ao canal da informação
que urgente precisa ser visto. Afinal tanta tecnologia, tantas maravilhas da criação humana devem servir pra evitar
o desperdício.
DOUTOR CLOROFILA
Ah não! É tão desumano! Tão horrendo de se ver!! Tão insano!
HEMOGLOBINA
Vamos! Não temos muito tempo. Estamos falando da vida no planeta. De mim. De você. De toda forma de vida!
DOUTOR CLOROFILA
Eu sei! Eu sei! Será que não tem outro jeito.
HEMOGLOBINA
É do próprio veneno que se faz o remédio. Não se cura a doença escondendo seus sintomas. Só podemos tratar
aquilo que sabemos que precisamos tratar.
JANAÍNA
To dizendo! Falou igual médico!
(Sugestão para projeção de imagens que mostram o descaso com o uso da água. Água poluída. Grandes lavouras. Desperdício. Lixo nas margens dos rios. Rios assoreados. Dejetos de industrias).
34
POEMA PARA SER MUSICADO
ABRA BEM OS OLHOS
VEJA BEM O QUE ACONTECE
QUANDO MAL USADA
QUANDO DESPERDIÇADA
PARE OLHE PENSE
É PRECISO MUITA ÁGUA PARA SE GERIR A VIDA
ÁGUA MAL TRATADA
ÁGUA DESPERDIÇADA
VIDA AFOGADA
TEIA EMARANHADA.
BEM COMUM JOGADO FORA
ABRA BEM OS OLHOS
SEU CORAÇÃO
SUA RAZÃO
SE NÃO CUIDA
TODO O CICLO
VAI ESTAR CONTAMINADO
DOUTOR CLOROFILA
(Voltando a tossir desesperadamente). Ai que me deu um nervoso. Tirem desse canal. Sou fraco para tanto
impacto. Agora sim preciso de um médico. Já sinto os pulmões. Momo minha lua. Não sou nada sem você.
(Janaína se afasta. Esta aparentemente chocada e envergonhada).
HEMOGLOBINA
(Os dois. Hemoglobina e Clorofila em um plano mais alto ao fundo olham para a menina).
Sem drama Clorofila. Com a ajuda de Janaina acho que as coisas serão diferentes.
DOUTOR CLOROFILA
Mas é só uma menina!
HEMOGLOBINA
Que na história é quem representa uma geração inteira. Ela tem os olhos bem abertos. Daqui ouço seu coração.
Sua emoção já conversa com a razão. Busca forma de compreender e transformar.
CLOROFILA
Mas será que respondemos as perguntas da menina?
HEMOGLOBINA
Talvez não. Algumas perguntas são respondidas com o tempo. (Eles saem de cena. Professora vem surgindo
no trapézio que vai descendo até tocar o chão. Janaína se vira como ainda para se relacionar com Hemoglobina e
Clorofila).
JANAÍNA
Dessa vez eu pergunto. Onde está o erro? Porque ainda se desperdiça tanta água limpa? Porque parece que
ninguém percebe o que ta acontecendo? Porquê a escola não ensina como proteger a vida? Porque que a gente
não aprende como separar o lixo? Porquê tanta embalagem? Porquê tanta arvore cortada? Tanta mata desmatada?
Eu não entendo! Eu não entendo! Todo mundo que eu conheço quer ver os filhos crescerem. Todos querem morrer
velhinhos. Mas se a água boa ta acabando? Onde é que vamos parar? Quando é que vamos parar?
PROFESSORA
Sabe menina. Tem um mecanismo todo que é preciso alterar. A escola é importante, mas, não dá jeito sozinha.
Tem muita decisão que é preciso tomar que passa longe do banco da escola. É preciso aprender um modo novo de
viver sobre esse planeta. Não um de nós. Todos. A grande lição que a água dá é que a sede é igual pra todo ser vivo.
Todos! Todos sem exceção precisam ir a fonte para matar a sede. Tem gente que ainda não percebeu que a fonte
está secando. Que já tem gente brigando!
JANAÍNA
Não responde minhas perguntas. Se ninguém sabe as respostas então para tudo como está. Para o uso para
também o mau uso. O jeito é esse! Para tudo como está! Que eu sai da aula de hoje diferente para sempre.
(Ouve-se o sino da escola. Professora senta-se no balanço que a eleva de novo de onde surgiu. Personagens
bonecos surgem fazendo atividades. Dona Maria, Seu Joaquim. Chico filho da Tia Jussara. Crianças correm. Param
e falam sobre a menina que meio cabisbaixa caminha para sair de cena).
CRIANÇA 01
O que foi que Janaína aprendeu que tirou o seu sorriso.
CRIANÇA 02
Janaína ta doente?
CRIANÇA 01
Vem brincar com a gente.
CRIANÇA 02
Você cresce e nem percebe!
35
CRIANÇA 02
E o que era doce...Acabou-se!
(Bonecos cantam. Simultaneamente atores vão se revelando à frente da empanada. Professora sai de seu balanço).
POEMA PARA SER MUSICADO
ÁGUA DO PLANETA
BEM COMUM
MAU USADA
DESPERDIÇADA.
MUITA GENTE SOBRE A TERRA
MUITA ÁGUA DERRAMADA
QUEM POLUI QUE OUÇA ALTO
COMPREENDA DE UMA VEZ
ÁGUA BOA ÁGUA DO BEM
QUE SEJA DE TODOS
QUE TODOS A TENHAM
ESSA É NOSSA ORAÇÃO
PEQUENA COLABORAÇÃO
QUE TODOS AO SAIR
SAIAM DIFERENTES
PARA SEMPRE
NOSSA CANÇÃO
NOSSA ORAÇÃO
NOSSA COLABORAÇÃO
36
Família
Vitamina
Ione Maria Adad
[email protected]
Há muito tempo, no colorido reino das frutas e verduras, vive a Família Vitamina. Uma de suas filhas, muuuito
importante, a conhecida vitamina A, lamentava baixinho enquanto passeava por um lindo pomar.
— Ah! Queria tanto ajudar as pessoas a terem mais saúde... Mas se ninguém me quer, como posso ajudar?
Então ela encontrou uma de suas irmãs, a vitamina K:
— Oi maninha, tudo bom?
— Bom nada. - respondeu a vitamina K, meio triste meio brava, chutando uma pedrinha. - Outro dia o Pedrinho
estava brincando no pátio da escola, caiu e bateu o nariz. Saiu taaanto sangue...
— E aí, o que aconteceu? - perguntou a vitamina A, curiosa com o acidente do Pedrinho.
— Levaram o Pedrinho para o hospital porque seu nariz não parava de sangrar. Se eu estivesse com ele teria
feito o sangue parar rapidinho, na escola mesmo - disse a vitamina K, ciente do seu poder coagulante.
— Eu também estou triste. Ontem eu estava numa linda maçã vermelha quando a Marina me escolheu. Enquanto sua mãe fazia compras pelo mercado ela ficou me segurando em suas mãos. Eu estava super feliz porque
finalmente eu ia ajudar. Mas aí...
— Aí o quê, vitamina A? Conta logo.
37
— Ela trocou a maçã por um pacote de balas, que não tem nadica de nada de vitamina. Só caloria vazia!
— Ééé? Mas, a caloria vazia não ajuda?
— Claro que não! Olha só o nome dela: vazia. Ela só atrapalha.
— Ééé? Como? - perguntou a vitamina K, interessada na estória da malvada caloria vazia.
— Ela destrói a nossa prima, a vitamina B1. Daí, as crianças ficam doentes, irritadas, choram muito.
— Ééé?
— É verdade. Além de tudo isso, a caloria vazia é uma ladra.
— Opsss! Ladra? O que é que ela rouba? Jóias?
— Não vitamina K, a caloria vazia rouba algo muito mais valioso que jóia. Ela rouba o cálcio que fica armazenado
no corpo das crianças...
— Cálcio? Eu heim!, não conheço esse negócio esquisito.
— Calma vitamina K. Tem muita gente que não conhece o cálcio, mas todo mundo tem este mineral no corpo. É
o cálcio que deixa nossos ossos e nossos dentes fortes e brancos.
— Então, se roubam o cálcio das crianças elas ficam com os dentes fracos? - perguntou a vitamina k indignada.
— Isso mesmo. Os dentes ficam fracos e adoecem fácil, fácil. Aparecem as cáries e a criança precisa ir ao dentista cuidar do dente.
— Éééé? Esse tal de cálcio é poderoso, né? - diz a vitamina K meio enciumada.
— Muito poderoso. Sem o cálcio até os ossos podem ficar fracos e quebradiços.
— Argh! Se a caloria vazia é tão malvada assim quero falar com ela agora mesmo. Onde é que ela mora? - disse
a vitamina K, agora muito furiosa.
— A caloria vazia mora nas balas, nos chicletes, refrigerantes, sorvetes e sucos de pacotinho. Mas não adianta
falar com ela. Precisamos falar com as crianças.
— Isso mesmo! As crianças precisam saber que nós, as vitaminas, somos suas amigas e queremos ajudar a
cuidar da saúde delas. Onde está a nossa guerreira, a vitamina C?
— Está se preparando para lutar com os possíveis inimigos que aparecem por aqui todo dia, como o bichinho da
gripe... Por falar em luta, você ouviu um barulho estranho? - mal a vitamina A termina de falar e a vitamina C entra
com uma espada em punho lutando com um super hiper, mega, master dulcíssimo pirulito cheio de caloria vazia.
Logo atrás dele vêem algumas balas que, apesar de pequenas, são tão maldosas quanto o pirulitão.
— Irra! irra! - gritava a vitamina C enquanto espetava o enorme pirulito do mau. Apesar de grande, o pirulito era
fracote, pois não tinha nenhuma vitamina. Numa luta que mais parecia uma dança, o grandalhão se atrapalhava a
todo instante, até que a vitamina C, rápida e muito esperta, perfura seu inimigo. O pirulito se abre e deixa escorrer
uma porção de caloria vazia de dentro dele ficando estendido no chão.
— Eu não disse que você era do mau? - diz a vitamina C, um pouco assustada com sua própria coragem. Ao ver
que o pirulitão cai e mostra sua verdadeira essência, as balas, que também eram do mau, fogem apavoradas. Enquanto isso, as vitaminas A e K assistem a luta boquiaberta, torcendo por um final feliz. Ao final da luta elas batem
palmas e pulam de alegria. As três irmãs se abraçam e gritam: Sa-ú-de!
— Parabéns vitamina C. Mais uma vez você venceu.
— Ora, não foi nada... Retrucou a corajosa vitamina C. Onde está nossa irmã, a vitamina D?
— Deve estar no parque, - disse a vitamina A.
— Pois vamos até lá. Precisamos falar com ela. Se a família vitamina permanecer unida, venceremos as malvadas calorias vazias. Vamos andando. Rápido.
38
As vitaminas-irmãs A, C e K acompanhadas do Sr. cálcio foram procurar a vitamina D. Pelo caminho elas encontraram
muitas calorias vazias. Embora fossem malvadas, disfarçavam seu mau caráter com risadinhas forçadas e lindas “roupas”
coloridas e brilhantes. A vitamina K estava muito brava por saber que as calorias vazias deixavam as crianças doentes e
não conteve sua ira; quis enfrentar as calorias vazias. Mas estas, sabendo que são muito fraquinhas, corriam de medo das
irmãs vitaminas.
O senhor cálcio só se manifestou ao ver a vitamina D brincando feliz com as crianças no parque:
— Ora! Ora! Ora! Aqui está minha companheira incansável na tarefa de fortalecer os ossos da meninada. Gostamos de ajudar principalmente quem brinca no sol, não é verdade vitamina D? - disse Sr. cálcio abraçando sua
colega e entrando na brincadeira com as crianças.
— Vitamina D - disse a guerreira vitamina C - temos uma tarefa urgente. Precisamos mostrar às crianças como
nosso reino é colorido e saboroso. Contar para as crianças que nós as vitaminas moramos em todas as frutas e
verduras amarelas, vermelhas, laranjadas...
— E também nos alimentos verdes! - completou a vitamina A.
— Isso mesmo. Se as crianças continuarem comendo muuuitas calorias vazias poderão ficar doentes e tristes.
Já imaginou como o mundo seria sem a alegria das crianças? - falou a vitamina K
— Iiiiihhh. Acho que sem alegria o mundo seria muito feio e sem graça. Não podemos deixar que isto aconteça.
— Decretou a vitamina C.
— Nós temos o poder! Nossa missão é melhorar o mundo ajudando as crianças a serem mais fortes e saudáveis.
O que você acha, prima B1? - pergunta a vitamina K, olhando para a vitamina B1 que aparece de repente.
— Deixa comigo! O que eu gosto de ver é criança feliz. - gritou a vitamina B1 super animada com o convite para
melhorar o mundo.
— Eu cuido da pele e dos cabelos. - disse a atenciosa vitamina A com ar de professora.
— E eu não deixarei ninguém perder muito sangue. - exclamou a vitamina K disposta a não deixar nenhum
machucado sangrar muito.
— Eu vou fortificar os ossos e os dentes. - disse a vitamina D, agora mais segura ainda na companhia do branquela Sr Cálcio.
— E eu lutarei contra todos os inimigos invasores. - gritou a guerreira vitamina C, ensaiando alguns passos de
karatê e dando seu grito de guerra.
As crianças que assistiam a tudo compreenderam que as vitaminas são suas amigas verdadeiras e convidaram a Família Vitamina para brincar e participar dos lanches da escola.
A cidade passou a ter mais quitandas e feiras livres onde a grande variedade de frutas e verduras fazia a alegria das
crianças. Já o numero de lojas que vendiam calorias vazias nas balas e pirulitos diminuiu muito, e só algumas crianças iam
até lá. Evidentemente era só uma questão de tempo, até que alguém de boa vontade - pai, mãe, tio, amigo ou professor apresentasse a estas crianças a Família Vitamina.
Quanto mais frutas e verduras as crianças consumiam, menos vontade de comer doce elas tinham. O doutor Filgud que
compreende perfeitamente o fato explica: com uma quantidade adequada de vitaminas e minerais o corpo funciona melhor
e sabe diferenciar o que é bom e o que é ruim pra ele.
A Família Vitamina comparecia no café da manhã e no almoço das crianças que passaram a tomar suco de laranja,
comer maçã, banana, abacaxi, mamão, morango, manga... Uma infinidade de frutas.
Os pais também compreenderam que a Família Vitamina estava ali para ajudar e acompanhavam seus filhos em todas
as refeições. No almoço comiam saladinhas multicoloridas com os filhos.
O esforço da Família Vitamina foi reconhecido pelo prefeito da cidade que deu a cada vitamina uma faixa com o título
de “Amiga da Vital”, ou seja, amiga que nunca pode faltar.
As crianças eram saudáveis, tinham as bochechas coradas e muita vontade de brincar.
Eram realmente crianças muito felizes!
39
Vida de
Brinquedo
Alcebíades Gabriel da Silva
[email protected]
Ranger da corda de uma caixinha de música.
Música da caixinha. (gravação)
Abre o pano.
Luz tênue. Amanhecer.
Primeira jornada.
Cenário:
(Caixas de papelão de tamanhos variados, em preto e branco, dispostas pelo palco. Cortes de tecido rasgados, pendurados aleatoriamente no fundo do palco, como se fosse um varal com roupas penduradas).
Andrezinho ressona. Ouve-se o ressono.
Um despertador ressoa. Luz a pino no palco, é dia. Andrezinho surge por trás de um dos tecidos pendurados.
Andrezinho senta de repente, esfrega os olhos.
ANDREZINHO - Boneco de lata! Acorda boneco de lata, temos que jurar a bandeira e cantar o hino nacional!
(pausa) Bonequinho!...Bonequinho de lata! Onde está você?
BONECO DE LATA – (saindo de uma caixa) Eu queria saber por que tenho que ir jurar a bandeira e cantar o hino
nacional com você todos os dias, se sou apenas um simples boneco de lata?...Você é que é o soldado! A autoridade!
40
ANDREZINHO – É que você é o meu melhor amigo... E mais, eu gosto da sua companhia, apesar de ter dias que
você está insuportável.
BONECO DE LATA – Será por isso mesmo?...Na verdade você tem medo do velho do saco, não é?
ANDREZINHO – (ajustando no corpo, a farda) Imagina! Eu sou um soldado, um representante da lei e não tenho
medo de nada!
BONECO DE LATA – Então tchau! Vou voltar a dormir e você que vá sozinho fazer sua obrigação de representante
da lei! Não vê que ainda tenho quase cinqüenta anos pra ficar nesse lugar!... Dormindo, o tempo passa mais rápido,
seu soldado medroso!
Andrezinho fica triste. Caixinha de música toca.
Boneco de lata arrisca um olhar pelas bordas da caixa.
BONECO DE LATA – Ta bem!...Você sempre me convence com essa cara de mamão mole. Mais eu vou logo dizendo
que se o velho do saco aparecer, eu vou me transformar numa lata, não quero enferrujar dentro daquele saco que
ele carrega nas costas!
ANDREZINHO – Para com isso! Não vê que ele pode ouvir e se vingar de você.
BONECO DE LATA – Se ele aparecer você vai prendê-lo. Afinal você é a autoridade policial e não vai deixar um
velho barbudo e corcunda ficar pegando criancinhas pra roubar o sorriso delas! Disseram que ele pegou o boneco de
palito de picolé e transformou numa cerquinha de jardim! O pobre do boneco chorava feito um bebe, e ficou tanto
tempo lá que os cupins comeram metade das pernas dele!
ANDREZINHO – Coitado!
BONECO DE LATA – E ainda jogou ele dentro de um monte de comida azeda, só porque ele disse que sonhava
morar num lixão reciclável!
ANDREZINHO – Esse velho do saco é mesmo mau!
Piar de coruja. Luz sombria.
BONECO DE LATA – Ta vendo? Dizem que quando o velho vai aparecer, a coruja pia.
ANDREZINHO – Minha mãezinha do céu... O que faço?
BONECO DE LATA – Ta com medo é?
ANDREZINHO – Claro que não! Soldado não tem medo!
BONECO DE LATA - Dê voz de prisão ao meliante, afinal você é a autoridade máxima desse lixão. E nada de falar
em reciclagem senão ele lhe joga dentro de um monte de comida azeda.
Andrezinho para observando o boneco de lata. Andrezinho saca de sua baioneta.
Os tecidos pendurados se movem com o vento.
ANDREZINHO – Esteja preso ou bandido meliante!
Boneco de lata cai na gargalhada.
BONECO DE LATA – Você é mesmo muito bobo! Como pode pensar que existe esse tal velho do saco! É apenas
uma coruja piando, seu tolo.
ANDREZINHO – Há! Como pode fazer isso com seu melhor amigo.
BONECO DE LATA – E quem disse que sou seu melhor amigo? Você nunca me deixa dormir! Ta vendo a hora que
você me tira da minha caixa quentinha, pra cumprir com você suas obrigações de soldado do lixão? Isso não é coisa
de amigo! Eu sou um boneco de lata jogado num lixão sem serventia nenhuma, já estou aqui há quase cinqüenta
anos, e vou ficar ainda mais cinqüenta pra ser absorvido pelo solo! Tenho todo esse problema e você fica enchendo
meu saco soldado chato!
ANDREZINHO – Desculpe, eu achei que você gostava de passear comigo, e de jurar a bandeira comigo.
BONECO DE LATA – Pois não gosto! E também não gosto de acordar cedo! Eu sou um boneco de lata , e aqui nesse
lugar eu só espero o tempo passar, então, só quero dormir, mais você não me deixa!
ANDREZINHO – Ta bem. Eu vou sozinho, pode voltar para o seu sono... Mais saiba que gosto muito de você, apesar
de não querer ser meu melhor amigo!
Boneco de lata entra na caixa e fecha a tampa.
Andrezinho sai caminhando. Muda luz.
Clarão.
Surge a fadinha de papelão voando entre o os tecidos pendurados no fundo do palco.
Andrezinho fica atônito, parado, catatônico.
41
FADA DE PAPELÃO – Oi! ...Você ta com medo de mim? Soldado de plástico, você ta me ouvindo! Hei!...
A fada pousa e observa Andrezinho de todos os ângulos.
Andrezinho desperta do susto.
ANDREZINHO – Hem!... Não me chame de soldado de plástico! Não vê que sou um soldado de respeito! Eu não
gosto que me chame de soldado de plástico porque sou uma autoridade e se você seja quem for não me respeitar,
vou ter que lhe enquadrar nos rigores da lei, vou ter que lhe jogar no calabouço de casca de frutas podres!(atônito)
Você voa? Ai meu Deus deve ser uma alma!
Andrezinho tenta se esconder.
FADA DE PAPELÃO – Alma que nada, boneco tagarela, parece ate que engoliu um microsister!
ANDREZINHO – Micro o quê?
FADA DE PAPELÃO – Microsister!...Um aparelho que toca musica.
ANDREZINHO – Há uma radiola?
A fada cai na gargalhada.
FADA DE PAPELÃO - Como você é antigo! Ainda é do tempo de radiola?
ANDREZINHO – É eu já estou há muito tempo aqui, não sei muita coisa do mundo atual. Como você me disse sou
de plástico, e demoro a desintegrar.
FADA DE PAPELÃO - Vem cá? Onde é que eu estou? Que lugar é esse?
ANDREZINHO – Isso é um lixão. Aonde você veio parar. Vem cá, você é de papelão?
FADA DE PAPELÃO – Sou sim. Minha dona me recortou de uma caixa de brinquedo, eu sou o desenho do brinquedo. E porque eu vim parar aqui?
ANDREZINHO – Porque ela lhe botou no lixo.
FADA DE PAPELÃO – Lixo! E o que é lixo?
ANDREZINHO – Lixo... Lixo são coisas que as pessoas não querem mais, elas jogam fora. Veja eu... (muda luz)...
Eu fui muito desejado pelas crianças, fui o maior mimo do meu dono, ele me ganhou de presente de natal, eu era
tão limpinho, ate os amiguinhos dele brigavam pra brincar comigo, e eu gostava. Meu dono me chamava de Andrezinho, não sei por que ele me colocou esse nome! Ele cuidava tão bem de mim... Eu participava de todas as festas
dele, tomava banho de piscina, dormia no travesseiro fofo. Era tão bom! Até que foram surgindo brinquedos novos,
que se moviam soldados que tinham armas com um tal de raio lazer, e, ele foi me esquecendo aos poucos... Eu
fiquei muito tempo dentro de um armário escuro. Um dia uma tia do meu dono ia chegar de visita e me jogaram
aqui pra desocupar o armário. Tenho que viver quarenta anos voltando sempre pra esse lugar, É fadinha de papelão! Quarenta anos, veja a minha situação.
FADA DE PAPELÃO – Que historia triste a sua. Só não vou chorar porque sou de papelão e não posso me molhar.
Eu não vou ficar aqui!
Andrezinho olha a fada por instantes. Cai na gargalhada.
ANDREZINHO – Sua boba! Você não pode sair daqui! Esquece que é de papelão? Daqui a duas semanas você não
existe mais! Logo vai ficar encharcada, vai derreter e virar lama. Eu já tou aqui há muito tempo como já te falei e
vou viver muito mais, pois sou de plástico! Ainda vou entupir bueiros, boiar em rios, atrapalhar as ruas, voltar pra cá
de novo, poluir o ar, e assim vou vivendo. Se eu tivesse ido parar no lixo reciclável, como devia, hoje eu seria outro
brinquedo ou alguma coisa útil.
FADA DE PAPELÃO – Lixo reciclável? O que é isso?
Andrezinho sorrir e se aproxima da fada.
ANDREZINHO – É o lixo como nós, plástico, papelão, vidro e tudo mais que pode ser reaproveitado.
FADA DE PAPELÃO – Há! Então vamos pra lá.
42
Luz difusa.
Boneco de lata abre a caixa de rompante. Luz a pino na caixa.
BONECO DE LATA – mais o que é que ta havendo aqui?
A fada de papelão se esconde.
ANDREZINHO – Calma fadinha de papelão é apenas o mal humorado do boneco de lata... Venha! Não tenha
medo.
BONECO DE LATA – Mais quem é essa belezura?
Boneco de lata sai de dentro da caixa e se aproxima lentamente da fadinha de papelão.
Muda luz. Caixinha de música toca.
BONECO DE LATA – Como você é linda! De onde você veio?
FADA DE PAPELÃO – Ele disse que minha dona me botou no lixo, e que vou derreter virar lama assim que vier a
primeira enxurrada, que daqui a duas semanas eu serei lama!
Boneco de lata puxa Andrezinho num canto do palco.
BONECO DE LATA – Como você vai dizer uma coisa dessas a uma fadinha tão linda? Não vê que ta assustando à
pobrezinha seu soldado linguarudo!
FADA DE PAPELÃO – Hei! Vocês dois que estão conversando? Eu não posso ouvir?
BONECO DE LATA – É que esse boneco linguarudo fala demais, fica falando coisas pra lhe assustar.
FADA DE PAPELÃO – Quer dizer que eu não vou virar lama, como ele disse?
Boneco de lata vai ao encontro da fadinha.
BONECO DE LATA – Não se preocupe minha linda fadinha que nós dois, eu e o Andrezinho, vamos lhe proteger!
Não é Soldado?
ANDREZINHO – E como nós vamos proteger ela da chuva? E do monte de lixo molhado que jogam todos os dias
em cima de nós? E do velho do saco que rouba sorriso de criança? Do fogo?...Como?
BONECO DE LATA – É! Bem que você poderia ser de lata.
FADA DE PAPELÃO – Então esse é o fim de quem vem parar nesse lugar? Eu não tenho saída? Eu vou virar lama
em duas semanas? Ai como eu sofro!
BONECO DE LATA – Não, em quatro! Você é de papelão e resiste mais, todos nós teremos esse fim. Mais o seu
não vai ser desse jeito! Vamos construir um abrigo, e pensarei no que fazer! Você é muito linda minha fadinha de
papelão pra virar lama nesse lugar feio.
ANDREZINHO – Eh! Ele ta apaixonado! Ele se apaixonou pela fadinha de papelão!
BONECO DE LATA – Você quer namorar comigo fadinha de papelão?
FADA DE PAPELÃO – Mais nós nem nos conhecemos direito. Além do mais eu não sei namorar, pois ate hoje só
tive uma paquera com um palhacinho de lã... E também quero ir embora daqui! Eu não vou suportar viver nesse
lugar.
(Som do uivo do vento. Piar da coruja).
Luz difusa violeta em todo palco.
O vento insiste em seu uivo.
ANDREZINHO – Oh Deus dos soldados de plástico! É o velho do saco que se aproxima. Que faremos amigo de
lata?
BONECO DE LATA – Eu não sou seu amigo!...Sou apenas um boneco de lata sem serventia. E você não é a autoridade? Então o prenda!
ANDREZINHO – Peraí! Você disse que o velho do saco não existia.
Surge do fundo do palco o boneco de palito de picolé mancando.
Muda luz. Luz a pino no boneco de palito de picolé.
BONECO PALITO – Oi pessoal! Sou eu. Andrezinho, boneco de lata sou eu, o boneco de palito de picolé.
BONECO DE LATA – Ah! Você voltou! Vem fadinha, vamos conversar é apenas um boneco manco.
FADA DE PAPELÃO – Não fala assim com ele, seu boneco mal humorado, não vê que ele ta doente.
BONECO DE LATA – Desculpe.
43
A fada se aproxima do boneco de palito de picolé.
Andrezinho também se aproxima.
Boneco de lata sai devagar e senta num canto do palco.
ANDREZINHO – Então o velho do saco existe?
FADA DE PAPELÃO – Meu Deus! Foi ele que fez isso com a sua perna?
BONECO PALITO – Quem é você? Como você é linda!
FADA DE PAPELÃO – Sou a mais nova moradora desse lugar feio! A fada de papelão...Mais diga, quem fez isso
com a sua perna? Foi mesmo o velho do saco? Então ele existe? Vou fazer um curativo.
BONECO PALITO – Não! Não foi o velho do saco, é que tive um susto com barulho, e caí numa vala.
ANDREZINHO – É que ele, fadinha, quando ouve qualquer barulho mais forte se assusta. (aproximando-se da
fada) Ele lembra do barulho da motoserra que derrubou a árvore de onde ele veio... (para boneco de lata) Boneco
de lata! Vamos ajudar ao nosso amigo!
Boneco de lata se aproxima.
BONECO DE LATA - Você me desculpa por ter te chamado de boneco manco?
BONECO PALITO – Claro que sim.
Os bonecos apertam as mãos. A fada e Andrezinho batem palma.
BONECO DE LATA – Então porque não cuidamos de consertar o boneco manco... Desculpe! E depois construiremos um abrigo pra todos, principalmente pra minha fadinha de papelão. Vamos!
Saem de mãos dadas.
Caixinha de musica toca. (gravação)
Fecha pano
Abre pano
Segunda jornada
Cenário: (Palco limpo). No centro os quatro personagens se aglomeram de pé, no CB do palco, debaixo de um guarda
chuva velho.
No fundo do palco o varal de lençóis balança com o vento forte.
Luz forte de ribalta (set light)
Luz pisca. (relâmpago)
Som de trovão.
(Som de tormenta)
BONECO PALITO – Tinha que chover logo hoje que eu consegui chegar aqui? Ai minha perna? Como dói!
BONECO DE LATA – Deixa de reclamar! Esse curativo ta muito bem feito! E não invente de cair de novo, senão,
pode ficar dentro da vala até apodrecer!...E enquanto não apodrece e vira adubo, vai junto com outros entulhos
entupir esgotos, poluir rios, lagos, valas e alagar cidades! O próprio homem sofre as conseqüências de nos jogar
fora, mais, por favor, não contribua pra isso!
Relâmpago.
Som de trovoada.
Lençóis balançam no fundo do palco, som de trovoada.
FADA DE PAPELÃO – Ai! Estou ficando toda úmida,... estou com tonturas,... Está ficando tudo escuro. Tenho
medo do escuro,... acho que vou desmaiar!
BONECO DE LATA – Tá vendo! Você com essa reclamação toda, não serve nem pra proteger quem emendou sua
perna!
Relâmpago.
Som de trovoada.
Lençóis balançam.
FADA DE PAPELÃO – Ai que frio! O que acontece comigo?
44
ANDREZINHO – Calma minha fadinha! E não tenha medo do escuro, é só uma nuvem negra de chuva, logo
passa!... Acho que você ta começando a derreter?
BONECO DE LATA – Não diga isso, soldado linguarudo! Não vê que está piorando a situação!
Relâmpago.
Som de trovoada.
FADA DE PAPELÃO – Ai como eu sofro!
ANDREZINHO – Desculpe!...É que acho que ela tem que saber da nossa realidade. Jogaram a gente aqui, e esse
é o nosso fim.
Relâmpago
Som de trovoada.
BONECO DE LATA – Não podemos deixar que ela se molhe, soldado!
BONECO PALITO - Também você arranjou um guarda chuva todo furado!
Relâmpago.
Som de trovoada.
Lençóis balançam.
BONECO DE LATA – E você acha que alguém vai botar guarda chuva novo no lixo, boneco manco?
BONECO PALITO – Não me chame de boneco manco, seu enferrujado!
Blecaute.
Som de trovoada.
Uivo do vento.
Luz a pino. Clarão.
O boneco palito sumiu levado pela enxurrada.
ANDREZINHO – Meu Deus, o boneco palito foi levado pela enxurrada! Coitadinho, ainda nem se recuperou do
tombo que sofreu de medo da motoserra, e já foi levado pela correnteza. Que sina triste tem esse boneco, que vivia
tão bem na floresta como uma frondosa árvore, e foi cortada e transformada em palito de picolé... Certa vez ele me
contou, que lá na floresta onde ele vivia como arvore, era tudo tão bonito, tudo verde, rios de águas claras, pássaros
de todas as cores pousavam em seus galhos, e quando chovia era uma festa na floresta, pois a vida se renovava, e
quem diria que a chuva que lhe deu um dia festa, ia um dia lhe arrastar pro fim. Pobre boneco palito... Vamos nos
abraçar pra ficarmos mais fortes, senão a correnteza nos lava.
FADA DE PAPELÃO – Tou com medo! Nunca pensei parar num lugar como esse... Eu que fui tão cobiçada pela
menina que me recortou da caixa de papelão... Todos os dias ela me limpava e guardava o brinquedo do qual eu
sou o desenho. Acho que ela gostava mais de mim, apesar de ser só um desenho numa caixa de papelão. Meu Deus
como eu sofro desde que vim parar aqui nesse lugar fedorento e feio. E O pobre do boneco palito? Acho que não
vamos mais vê-lo, a correnteza está bastante forte! E nós vamos terminar do mesmo jeito.
Os três se abraçam, baixam a cabeça.
Muda luz. Tênue.
Lençóis param de balançar.
Luz intensa.
Boneco de lata estica o braço fora do guarda chuva.
BONECO DE LATA – A chuva passou!
ANDREZINHO – Agora vem o pior. Enfrentar a lama.
BONECO DE LATA – Temos que encontrar um lugar quente e seguro para abrigar a linda fadinha, senão, ela vai
virar pirão de papel. Veja só como ela está!
A fada está caída de lado do que restou do velho guarda chuva.
ANDREZINHO – E o pobre do boneco palito?
BONECO DE LATA – É, parece que dessa vez ele não volta mais.
A fada senta.
FADA DE PAPELÃO – Hei! Vocês dois, eu tou morrendo!...Por favor, me ajudem não me deixem terminar num lugar
como este... Por favor!
45
O dois vão até a fada.
Caixinha de musica toca. (gravação)
Luz lateral. Luz dura nos três.
BONECO DE LATA – Oh! Minha fadinha linda!...É claro que nós não vamos deixar que você acabe num lugar como
este... Sabe fadinha, antes de você chegar nesse lixão, minha vida estava sem sentido, eu só queria dormir, dormir e
dormir, mais depois que você chegou minha vida mudou, como diz os humanos, passei a ser melhor, e tou gostando
disso, hoje sou um boneco de lata mais feliz.
FADA DE PAPELÃO – Não fala assim, senão vou chorar e ficar ainda mais molhada, seu boneco de lata feliz, eu
também estou feliz, quer dizer, apesar de ta derretendo fico feliz por sua felicidade.
ANDREZINHO – Vocês querem me fazer chorar, é? Não é melhor deixar de blá, blá, blá e botarmos a fadinha pra
secar no sol?
FADA DE PAPELÃO – Por favor, meus amigos, preciso secar rápido.
Os dois carregam a fada à boca de cena.
Colocam a fada estendida.
Muda luz.
Caixinha de musica toca.
Os dois rodeiam a fada como se brincassem de roda.
A fada senta.
Luz tênue no varal de lençóis no fundo do palco.
Um vulto passa nos lençóis.
Andrezinho o vê.
ANDREZINHO – Ai meu Deus dos soldados de plástico, quando é que a gente vai ter sossego?
BONECO DE LATA – Que foi soldado? Parece ate que viu fantasma? Tá branco feito pino de boliche!
FADA DE PAPELÃO – Ele desbotou de tanto tomar sol!
Boneco de lata e a fada caem na gargalhada.
O vulto passa novamente nos lençóis do fundo do palco.
Andrezinho está sem voz, só gesto. (teatralidade)
O vulto passa novamente.
Boneco e fada olham Andrezinho e gargalham.
Alguém arranha a garganta no fundo do palco.
A fada e o boneco enfim percebem, e se juntam a Andrezinho com medo.
BONECO DE LATA – Temos que ir embora daqui!...Só pode ser o velho do saco, e é o fim de todos nós!
FADA DE PAPELÃO – Tou com medo!
ANDREZINHO - Meu Deus! Acho que chegamos ao fim! Como vim parar num lugar desses!...Por que não me
mandaram pra reciclagem?... Ele vai trancar a gente pra sempre no seu saco, e nunca mais veremos a luz do sol!
BONECO DE LATA – E eu que estava tão feliz, por ter conhecido você fadinha, mais vejo que é o fim.
Surge devagar de entre os lençóis um velho barbudo, de roupas rasgadas com um saco nas costas.
Os três se abraçam esperando o fim.
O velho barbudo se aproxima devagar.
Luz a pino nos três bonecos trêmulos de medo.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Oi!
FADA DE PAPELÃO – Oi! Quem é o senhor?
BONECO DE LATA – Não fala com ele! Não Vêem que ele vai nos fazer prisioneiros dentro desse saco que leva
nas costas?
FADA DE PAPELÃO – O senhor parece com alguém que conheço?(A fadinha arregala os olhos e grita) - Papai
Noel! É o senhor, papai Noel?
46
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Sim. Sou o Papai Noel, minha fadinha. Você lembra de mim?
FADA DE PAPELÃO – Claro que lembro! Foi você quem me levou de presente de Natal, pra minha dona! Como você
ficou nesse estado? Olha só! Os meus amigos estão com medo do senhor.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Então você lembra fadinha? Eu também lembro! Vem cá? Mais você também era
mais bonitinha, mais limpinha! Não merecia vim parar aqui!
FADA DE PAPELÃO – Você também era bem mais bonito? É o sonho de qualquer criança. Cadê sua casaca de
papai Noel? E seu gorro?
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Há minha fadinha de papelão! Você não sabe o que me aconteceu. (pausa) (Caixinha de musica toca). Já faz um ano que quando meu trenó sobrevoava esse lixão, as minhas renas se sentiram
mal. Foram sufocadas pelos gases desse lugar, os gases que esse lixão exala e polui o ar! Coitadinhas, acostumadas
com a pureza do ártico, (que, diga-se de passagem, já não é tão puro), não agüentaram e sucumbiram. Desde
então minha fadinha, eu tenho andado de um lado pra outro desse lugar sem conseguir sair.
FADA DE PAPELÃO – Coitadinho! Temos que ajuda-lo!
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Mais parece que vocês também estão passando maus bocados? Pelo jeito de
vocês. E seus amigos? Não me apresenta?
FADA DE PAPELÃO - Há! Estes são o boneco de lata e o soldado de plástico!
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Sei! Esse soldado eu me lembro dele... Há muitos anos eu o levei de presente pra
um menino que tinha lhe pedido como presente de Natal! Não lembra de mim?
ANDREZINHO – Então você não é o velho do saco?
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Não! Essas fofocas foram um monte de urubus que moravam aqui nesse lixão,
que espalharam por aí! Eles queriam fazer medo aos brinquedos, como vocês, que viviam aqui, só por maldade!...E
esse aí é o boneco de lata? Você eu não conheço, mais percebo que tá um bocado amassado. Quer que eu te conserte?
BONECO DE LATA – Eu não!...Eu não conheço você. E como vai me consertar?
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Lhe desamassando com um martelo!
BONECO DE LATA – O que seu velho do saco? Você pensa que vai me fazer sofrer debaixo de um martelo, mais
do que já sofro nesse lixão fedorento a côcô!... Pois saiba, que eu fui feito de lata por um menino pobrezinho, que
não tinha de quem ganhar um presente de Natal, e que sempre esperou papai Noel e ele nunca veio só porque ele
era pobre e não tinha dinheiro pra ir no shoping center comprar presente... Ele me adorava, eu era tudo pra ele, era
tudo que ele podia ter mais tudo mudou um dia!... (muda luz)... No começo era tudo tão bom, ele corria pra lá e pra
cá, brincando comigo e com seu aviãozinho, também de lata... Participava de todas as suas brincadeiras, ele era
órfão, e um dia arranjou uma família pra lhe adotar... Quando ele foi embora, me esqueceu debaixo de um banco...
Você sabe Papai Noel que eu posso demorar até um século pra voltar pra natureza?
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Sim, sei! E sinto muito por você ter vindo parar aqui.
ANDREZINHO – É nos acabamos de passar por uma tempestade, que ate levou nosso amigo boneco de palito de
picolé, a fadinha tava toda encharcada, agora queremos ir embora daqui antes que ela se desintegre.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL - Sei! E porque ela não faz uma mágica? Ela tem poderes!
BONECO DE LATA – É mesmo? As fadas têm poderes! Como não pensamos nisso antes!
ANDREZINHO – Então está tudo resolvido.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Claro que sim, soldado de plástico! Basta que ela os toque com sua varinha de
condão, que vocês irão parar num lixão reciclável!
Boneco de lata olha a fadinha
Andrezinho se aproxima.
Andrezinho e Boneco de lata têm pressa.
ANDREZINHO - Cadê sua varinha de condão?
FADA DE PAPELÃO – Minha varinha de condão?
ANDREZINHO - Sim, fadinha de papelão, sua varinha de condão! Onde colocou?
FADA DE PAPELÃO - Eu... Eu... Eu usei pra consertar a perna do boneco de palito de picolé!
BONECO DE LATA – Oh céus! Aquele boneco manco tinha que voltar todo arrebentado e depois sumir na enxurrada levando a varinha de condão como curativo!
47
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Não creio! Sem a varinha de condão, a fadinha não tem poderes!
FADA DE PAPELÃO – Ai como eu sofro!
BONECO DE LATA – Temos que encontrar os pedaços do boneco de palito de picolé!
ANDREZINHO – É, temos que encontrar a varinha de condão!
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Sei! Então vamos, unidos acharemos a varinha de condão!
Luz em baixa resistência. Palco escuro
Os quatros saem abraçados pelo fundo do palco.
Caixinha de musica toca.
Fecha o pano
Abre o pano
Terceira Jornada
Cenário:
Quadrados de papel em branco e preto dispostos no palco.
Varal de lençóis brancos no fundo do palco.
No CB do palco um banco de praça velho.
Os quatro estão sentados no banco olhando a platéia.
BONECO DE LATA – Eu não agüento mais andar pra cima e pra baixo nesse lugar feio! Ora que meus pezinhos de
lata tão mais amassados do que nunca.
ANDREZINHO – Deixa de reclamar, e descansa boneco mal humorado, que logo temos que seguir jornada a
procura do boneco de palito de picolé e da varinha de condão.
FADA DE PAPELÃO – Acho que fico por aqui, estou muito fraca, temo que não consiga dar mais um passo... Nunca pensei que este fosse o meu fim.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Calma fadinha, nós vamos lhe proteger e tenho certeza que juntos vamos conseguir sair daqui.
BONECO DE LATA – É minha fadinha! Como disse o velho do saco, nós vamos conseguir sair daqui!
E vamos ser felizes novamente... (muda luz/caixinha de música toca)... Ai como eu já tive dias felizes na minha vida de
boneco, e tenho certeza que ainda vamos conseguir sair desse lugar horrível que só nos dar tristeza.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Não me chame de velho do saco, boneco de lata, sou o papai Noel!
BONECO DE LATA – E de onde você veio? Pra mim é apenas um desconhecido!
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Sei! Então ta querendo é saber de mim, não é boneco curioso?
BONECO DE LATA – É que só eu não fui levado de presente por você, como eu já disse meu dono mesmo me fez,
e eu queria ter sido levado pelo papai Noel.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Calma boneco! Isso não quer dizer que você seja um brinquedo menos importante do que os outros! Se seu dono lhe fez é porque ele sonhava com suas formas, ele te desenhou te recortou te pintou te fez por completo, boneco bobo! Ele já gostava de você mesmo quando você ainda era uma lata de alumínio.
BONECO DE LATA - Ah! Eu nunca tinha pensado dessa forma.
ANDREZINHO – Então peça desculpas ao papai Noel, por ter sido grosseiro.
FADA DE PAPELÃO – É boneco de lata, não devemos gritar com as pessoas. Eu não gosto de quem grita com as
pessoas.
Muda luz.
Boneco de lata levanta do banco e devagar senta num lado do palco.
ANDREZINHO – Ta com birra. Daqui a pouco ele volta. Ele perdeu até a mania de dormir, mais não perdeu o mau
humor!
FADA DE PAPELÃO – Oh céus! Acho que fui grosseira com ele.
48
ANDREZINHO – Foi nada. Esse boneco é muito desaforado.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Sei! Eu aposto como logo ele vai voltar pra cá. Escute só. (falando alto) Então pra
passar o tempo enquanto descansamos para seguirmos jornada, como diz o Andrezinho, irei contar uma historia!
Vocês querem ouvir uma historia? Sei! Ta bem, eu vou contar pra vocês a minha historia, a historia de como surgiu
o papai Noel.
O boneco de lata apura os ouvidos e olha de lado meio afobado.
ANDREZINHO – Vem boneco de lata! Vem ouvir a historia de papai Noel!
Boneco de lata se aproxima devagar.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Sei! Bem vamos começar pelo começo...
BONECO DE LATA – Você me desculpa papai Noel por ter falado alto com você?...Eu gostei tanto de como me
explicou o que não entendia... Eu sou mesmo um boneco desaforado, bobo e malcriado!
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – É claro que desculpo boneco de lata! Senta! Bem, saibam vocês meus amiguinhos
do lixão, que o papai Noel existe há 1705 anos.
BONECO DE LATA – O senhor não parece ter essa idade?
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – É claro que não boneco de lata! O que digo é que há muitos séculos o mito do
papai Noel existe no mundo, existem vários papais Noeis espalhados por todo esse mundão, em todas as partes,
todos os lugares. E eu sou um deles. Sabe meus amiguinhos que quando eu era bem pequeno eu sabia que quando
crescesse seria um papai Noel Bem!(caixinha de musica toca) Viveu há muito tempo, na Ásia menor, um lugar bem
distante, um menino chamado Nicolau, esse menino, era o único filho amado de um homem muito rico, o homem
mais rico da cidade! Desde pequenino Nicolau sempre praticou o bem, ele gostava de dividir tudo que tinha com as
pessoas que não tinham, ele ajudava a todas as pessoas pobres do seu lugar, principalmente as crianças... Nicolau
cresceu amado pelas pessoas que o rodeavam, e amando a todos de igual pra igual... Um dia o pai de Nicolau morreu, ele então seguiu sempre ajudando quem necessitava. Gostava de presentear as crianças pobres, pois gostava
de vê-las alegres como ficaram as crianças que receberam vocês de presente na noite de natal.
FADA DE PAPELÃO – Que historia linda a de papai Noel.
BONECO DE LATA – Se eu fosse muito rico, eu ia ser como o Nicolau!
ANDREZINHO – Eu também!
Risos.
Algo estronda no fundo do palco escuro, entre os lençóis pendurados.
Silêncio
Os quatro se assustam, e se escondem atrás do banco.
Abre luz no fundo do palco.
O boneco de palito de picolé bate o pó, e tenta levantar da queda em meio ao monte de entulhos. (Tintas guache junto
com os entulhos)
BONECO PALITO – Eu não agüento mais outra queda... Porque foram me tirar da floresta? Acredito que se eu
estivesse lá nada disso estaria acontecendo comigo! Como diz a linda fadinha de papelão, que há essas horas já
deve ter virado lama, ai como eu sofro! Primeiro caio numa vala, e quase perco a perna, depois vem à enxurrada
e me leva me deixando três dias dentro de um bueiro cheio de ratos, agora despenco desse caminhão! Oh céus!
Os quatro saem de trás do banco de praça.
Devagar, vão ao encontro do boneco palito.
ANDREZINHO – Boneco de palito de picolé! É você?...Não acredito!
BONECO DE LATA – É mesmo você? Cadê a varinha de condão?
BONECO PALITO – Que varinha de condão? Ajuda-me seu boneco dorminhoco, não vê que caí de uma grande
altura!
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL –(tentando ajudar) Eu te ajudo boneco palito!
BONECO PALITO – (se esquivando) Ai meu Deus! É o velho do saco! Como sou azarado vim cair exatamente nas
mãos do velho do saco!(puxando Andrezinho) Vem cá! Ele ta com vocês como reféns, me diga logo, por favor! Ai
como eu sou azarado! Tudo de errado acontece comigo. Preferia ser espetinho de churrasco de gato, do que ter
vindo parar de novo nesse lugar...
FADA DE PAPELÃO –... Calma Boneco palito! Ele é nosso amigo! É o papai Noel.
49
BONECO PALITO – Papai Noel? E cadê as roupas de papai Noel?
BONECO DE LATA – É uma longa estória. (apertando a perna do boneco) Queremos saber como vai sua perna?
Onde está o remendo que a fadinha colocou na sua perna quebrada?
BONECO PALITO – Calma boneco de lata! Não me apalpa! Não ver que estou todo dolorido de tanto sofrer! O
remendo ta bem! Quer dizer, tava, antes de mais uma queda. Mais porque o interesse nesse remendo?
ANDREZINHO – É que esse remendo é a varinha de condão da fadinha de papelão, e com ela nas mãos a fada vai
fazer uma mágica e nos transportar pra um lixão reciclável para que viremos novamente outro brinquedo...
Boneco de lata bajula o boneco palito.
BONECO DE LATA -... Para! Ele já entendeu! Eu acho bonequinho de palitinho de picolezinho, que vamos ter que
desfazer seu curativo pra que possamos sair daqui!
BONECO PALITO – Está bem! Mais eu também quero ir! (levantando a calça) Do jeito que sou azarado é capaz
dessa varinha não funcionar com boneco de palito!
Boneco palito levanta a calça.
A varinha cai partida em dois pedaços.
O boneco de lata apanha e entrega a fadinha.
Muda luz. Caixinha de musica toca.
FADA DE PAPELÃO – Está quebrada.
BONECO DE LATA – Ela ainda faz mágica, não é?
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Sei! Amigos sinto dizer, mais com a varinha de condão quebrada, a fadinha só
poderá realizar um pedido! E pelas leis que regem o estatuto das fadas de papelão, esse pedido é totalmente individual! Isso quer dizer que a fadinha terá que escolher um de nós pra salvar desse lugar perdido!
BONECO DE LATA – (para Andrezinho) Como é que esse cara entende tanto de fada?
ANDREZINHO – Ele é papai Noel, especialista em brinquedos!
BONECO DE LATA – (para todos) Agora eu é que faço como a linda fadinha de varinha quebrada, ai como eu sofro!
ANDREZINHO – Voltamos à estaca zero!...Acho que nunca que nós vamos conseguir sair daqui, vou continuar
jurando a bandeira e cantando o hino nacional todos os dias como faz um bom soldado... Já estou perdendo a
esperança.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Não desanimem meus amigos. Sei que no final tudo dará certo!
BONECO DE LATA – Como dará certo, papai Noel? Veja a nossa situação! O Andrezinho, todo furado, o boneco
palito todo quebrado, a fadinha toda amassada, e eu largando a tinta!
BONECO PALITO – Ah! Falando em tinta, eu achei umas tintas e podemos lhe pintar!
FADA DE PAPELÃO – Que maravilha! Então vamos pintar o boneco de lata pra que ele fique novinho. E também
vamos colorir esse lugar pra que ele fique mais alegre!
Final um
Os bonecos e o papai Noel pegam as tintas no fundo do palco e começam a pintar o boneco de lata.
O boneco de lata vai à boca de cena e convida a platéia a participar.
Todos pegam os lençóis pendurados no fundo do palco e os quadrados de cartolina e começam a colorir o lixão.
Final dois
FADA DE PAPELÃO – Já que a varinha de condão está quebrada e só posso realizar um desejo, vou mandar papai
Noel pra o pólo norte pra que ele consiga novas renas para o seu trenó e venha nos buscar pra que possamos ser
consertados.
VELHO DO SACO/PAPAI NOEL – Boa idéia fadinha!
50
A fada de papelão toca papai Noel com a varinha de condão.
Luz difusa azul.
Fade out.
Caixinha de música toca (gravação)
Fade in.
O velho do saco está no centro do palco vestido de papai Noel.
Todos dão as mãos e saem de cena levados pelo papai Noel.
O Beija-flor e o
Gavião
Zemaria Pinto de Figueiredo
[email protected]
Carol Figueiredo, Néia Lopes e Maria Moraes, que me estimularam a escrever.
E para Leonardo Boff, que refletiu com beleza sobre a história da águia que pensava ser uma galinha.
Cena I
Varanda da casa de Mãe-Velha. Terreiro. O palco vai sendo ocupado e iluminado aos poucos. As crianças entram correndo. Mãe-Velha dirige-se lentamente para uma cadeira de balanço. As crianças tentam organizar alguma brincadeira, mas
não se entendem. Uma delas se destaca por se manter à margem. Para melhor compreensão do texto, essa criança será
chamada de X, enquanto as demais serão identificadas por um número.
Criança 1
Se vocês não querem brincar é melhor não atrapalhar quem quer!
Criança 2
A gente só não quer essa brincadeira boba.
Coro de “bobo! bobo!” vindo de um grupo, enquanto o outro grupo ensaia uma espécie de vaia. Confusão generalizada,
a Criança X assiste a tudo com ar de tédio.
Criança 3
Tenho uma idéia! Uma não, duas! A primeira: vamo parar com essa briga idiota. A gente veio passar o fim de
semana na casa da Mãe-Velha pra se divertir, não pra ficar brigando um com o outro.
Nova confusão. Uns apóiam, outros vaiam. A Criança X continua indiferente a tudo.
Criança 3
Deixa eu falar?! Deixa eu falar?! A segunda idéia é, depois de parar de brigar, vamo pedir pra Mãe-Velha contar
uma estória.
Criança 2
E a Mãe-Velha lá sabe contar estória, mermão! E não é estória, não, tá ligado? É história...
51
Criança 3
Você é uma besta quadrada mesmo, hein? A Mãe-Velha é a maior contadeira de estória...
Criança 2
Contadeira! Ele falou contadeira! Quem que é besta, mesmo?
Criança 3
Você que me deixa nervoso. A Mãe-Velha é a maior contadora de estória da região. Já deu até entrevista na
televisão. E se você não sabe a diferença entre história e estória, todo mundo aqui sabe, não sabe pessoal?
Nova divisão no grupo. Uns dizem sim; outros, não.
Criança 1
Eu sei, eu sei: história é aquilo que aconteceu de verdade. Estória é aquilo que só aconteceu na nossa imaginação.
Criança 2
Mas uma coisa que só aconteceu na nossa imaginação não aconteceu, logo não é nada.
Criança 1
Claro que é, bobão: quando você vê um filme é uma história de verdade?
Criança 2
Depende, se for um documentário...
Criança 1
Saco! Eu tou falando de filme filme, sacumé? O Senhor dos Anéis, Guerra na Estrelas, Batman, Homem-Aranha...
Criança 3
Chega de discussão! Vamo ou não vamo ouvir a Mãe-Velha?
Nova algazarra. A Criança 2, voto vencido, acaba se deixando levar pelo grupo, que se dirige à Mãe-Velha.
Criança 3
Mãe-Velha, conta uma história pra gente...
Até então, Mãe-Velha mantivera-se distante de tudo. Ao ouvir o pedido, ela pára o que estava fazendo, olha lentamente
em derredor – faz-se um silêncio respeitoso. Ela então fixa os olhos na Criança X.
Mãe-Velha
Vocês não estão esquecendo alguém?
Todos os olhos se voltam para a Criança X.
Criança 2
Ah, esse aí não tá com nada!
Criança 1
Ele nunca brinca com a gente...
Criança 3
Ele é muito esquisito...
Mãe-Velha dirige-se à Criança X. (Música: um adágio.) Gesticula suavemente durante algum tempo. A criança aos poucos cede aos apelos; esboça um sorriso; estende os braços e deixa-se levar até a varanda. As outras crianças aplaudem. A
Criança X se esconde atrás de Mãe-Velha. Todos se ajeitam para ouvir a estória. Mãe-Velha senta a Criança X em seu colo.
52
Mãe-Velha
A estória que vou contar é muito muito antiga... Eu a ouvi da minha avó, que por sua vez a escutou da avó dela...
E é uma estória que pode ser contada de várias maneiras... O importante é, para quem a escuta, compreender sua
mensagem... Uma mensagem de fé e de esperança de que nós somos muito mais fortes e capazes do que nos
fazem crer... Era um terreiro como este... Com muitos animais domésticos, mas com a predominância de galinhas.
Galinhas de todas as cores, umas mais gordas, outras mais magras... Uma delas se destacava, porque era uma
galinha muito feia... Sim, porque a gente sabe o que é uma galinha, aí estabelece padrões, não é? Esta é bonita,
aquela é simpática, aquela outra, coitada, é tão feínha... Mas essa galinha não era só feínha, ela era muito feia,
tão feia que... nem parecia uma galinha. Mas quem olhava de perto, bem de perto, via que era uma galinha, sim:
andava como uma galinha, cacarejava como uma galinha, ciscava como uma galinha... Pelo seu tamanho, pelo bico
torto, pela suas garras afiadas, que faziam com que andasse com o maior cuidado, para não machucar os outros,
passaram a chamá-la, desde quando ela ainda era uma frangota, de Grandona...
A música (Czardas, de Vittorio Monti – preferencialmente, com Paco de Lucia) cresce e sobrepõe a voz de Mãe-Velha. As
crianças acompanham extasiadas. A Criança X também acompanha com evidente interesse a narrativa. A música diminui
de volume até poder se ouvir novamente a voz de Mãe-Velha.
Mãe-Velha
Pois esta é a história, meus filhos, de Grandona, o gavião que pensava que era uma galinha, e de Beijinho, o
beija-flor, que foi para Grandona, ou melhor, para o gavião, um verdadeiro anjinho.
As crianças, sem exceção, aplaudem a narradora.
Criança 3
Mãe-Velha, tenho uma idéia!
Criança 2
Você sempre tem idéias...
Criança 3
Por que a gente não representa a história de Grandona e de Beijinho. Podia ser amanhã, no fim da tarde, quando todos se reúnem para fazer nada...
Criança 1
É, Mãe-Velha, tem muito adulto por aí que precisa descobrir o gavião que tem dentro de si...
Criança 2
Falou bunito, muleque! São umas galinhas conformadas... Cocoricó! Cocoricó!
Mãe-Velha
Tudo bem, se vocês querem... Com uma condição: todos, sem exceção, vão participar.
Cena II
Preparativos para a encenação. A música de fundo deve ser ligeira, um alegro. Mãe-Velha gesticula, dirigindo os demais. Durante a encenação propriamente ela ficará à parte, mas à vista do público, reagindo de forma emocionada. Os
adultos referidos no primeiro ato são a própria platéia: é para ela que as crianças encenarão.
Esse início de cena deverá ser coreografado de forma a mostrar à platéia as personalidades em cena. Pedrês é uma
galinha fútil e vaidosa. Uma galinha de shopping. Garnisé é baixinha e arrogante. Cacilda, a galinha caipira, sonha em ser
cantora. Espora é um galo machista, inseguro, violento. Grandona é desajeitada, desengonçada e tímida. Fala sempre
olhando para o chão. Beijinho, já totalmente integrado na turma, é... o cão chupando manga, mas é um amor de criatura.
Outros bichos aparecem, como o porco Edmundo, um boboca, o pato Lino, um chato que só fala “quac, quac” o tempo todo,
o cão Serapião, velho e desdentado, o gato Nicolau, vaidoso e violento, que, não podendo mais brigar com Serapião, vive a
implicar com Espora.
A não ser nos quadros em que há indicação em contrário, os animais estão sempre se movimentando e fazendo barulho
– o pato falando “quac, quac”; o cachorro velho tentando latir; o gato miando etc.
Mãe-Velha
Então, estão todos prontos?
Faz o gesto de quem abre de leve uma cortina.
Mãe-Velha
As pessoas já estão chegando... Vamos, a seus postos.
Aos poucos todos assumem lugares previamente marcados, como se esperassem uma ordem para começar. Faz-se
silêncio. Mãe-Velha fala sussurrando.
Mãe-Velha
Prestem atenção: vocês já não são mais vocês; são seus personagens; vivam-nos com garra e com sentimento.
Vou contar até cinco para abrir a cortina. Merda para todos!
Ao ouvir a saudação, alguns dos atores, especialmente Beijinho, não conseguem segurar o riso.
Mãe-Velha
Shhhhhhhhh... Isto é uma saudação; quer dizer: um bom espetáculo!...
53
Ouve-se o som da cortina sendo aberta. O espetáculo tem início.
Pedrês (olhando-se num espelho)
Oh, vocês não acham que eu estou cada vez mais linda?
Garnisé
Linda! Celulite no balde, meu!
Pedrês
Celulite, eu, baixinha? Você é muito é despeitada... Aliás, você não é muito, você é to-tal-men-te despeitada.
Devia mandar botar um silicone...
Cacilda
Estão aí as galinhas da cidade cacarejando suas futilidades... Pena que nenhuma cante como eu canto e encanto... Poderíamos formar uma bela dupla sertaneja – seria uma coisa benfazeja. Infelizmente, terei que seguir
carreira solo, mas eu não me amolo...
Espora
Vamo pará com a confusão aí. Daqui do meu terreiro ninguém sai na carreira, não, tá ligado?
Cacilda
Sai fora, Espora, seu tempo já passou, galo gagá!
Garnisé
É isso aí, galo velho... Vai cantar noutro terreiro.
Pedrês
Espora, de hoje em diante você não vai mais estragar a minha maquiagem, correndo atrás de mim.
Garnisé e Cacilda
Nem de mim! Nem de mim!
Espora
Mas o que que é isso, gente? Uma revolução? Era só o que faltava! Esqueceram que eu ainda tenho o meu chicote?
Ele puxa o chicote, ensaia vibrá-lo, mas Garnisé é mais ágil e toma-lhe o chicote. Os outros bichos apenas assistem à
cena.
Cacilda
Chicote é coisa de chefete fracote...
Pedrês
Eu sou dona do meu próprio nariz... Quer dizer, do meu próprio bico...
Garnizé (com o chicote na mão)
Vem tomar o chicote, vem, seu porco machista...
Edmundo
Eu não, eu não sou machista, não; eu sou um porquinho muito legal...
Nicolau
Esquenta não, mano velho... Você ainda tem sob o seu comando a maior galinha do mundo: a Grandona!
Os outros bichos caem na gargalhada, dançando e fazendo careta em torno de Grandona; menos Beijinho, que assiste
a tudo a distância.
Serapião
Quem foi rei não perde a majestade...
Nicolau
Cala boca boca mole!
Espora
Isso não está certo, vai faltar ovo de galinha no mercado!
54
Lino
Quac! Vai ter ovo de pato. Quac! Quer dizer, de pata. Quac! Quac!
Nicolau (passando a mão em Edmundo)
Isso não vai ser problema: eles vão comer presunto...
Edmundo
Comer presunto? Oba! Eu quero, eu quero...
Todos olham assustados para Edmundo. Ele fica pensativo até “cair o crédito”...
Edmundo
Mas eu não gosto de presunto...
Nova gargalhada geral. Edmundo torna-se o centro da gozação dos outros. Beijinho aproxima-se de Grandona. Os outros
animais “congelam”.
Beijinho
E aí, cara, que papo mais mané é esse de Grandona? Se eu fosse do teu tamanho, mano, com essas garras e esse
bico e esse olhar terrível... Ah, eu levava todo mundo no esculacho... Sopapo, rasteira, ippon, wasari, mata-leão, jab
de direita, direto de esquerda... Tu é louco, mano, num deixava um de pé pra contar a história...
Grandona tem o olhar perdido. Parece nem ouvir as palavras de Beijinho.
Beijinho
Eh, qualé, mano? Tu parece uma galinha velha... Perdeu a língua, mermão?
Grandona mantém o mesmo olhar perdido.
Beijinho
Negó seguinte, cara... Qué fica aí com essa cara de bundão, problema teu... Vou voltar pra minhas laranjeiras...
Elas são muito mais interessantes e cheirosas e gostosas... Você é um chato de prima, mermão... Se liga... Um gavião galinha... Era só o que me faltava... Um gavião com cara de bundão... Um gavião com cara de bundão...
Beijinho sai repetindo aquela última frase. Grandona aos poucos desperta da sua letargia e acompanha com os olhos
os movimentos de Beijinho. Nesse momento, os demais animais “descogelam”, provocando uma, digamos assim, pequena
algazarra em cena. Sem saber exatamente porque, todos se põem a repetir o refrão de Beijinho: “um gavião com cara de
bundão; um gavião com cara de bundão”. Grandona levanta-se atordoada com o barulho – que não era dirigido a ela – e vai
atrás de Beijinho. Quando o alcança os demais “congelam”.
Grandona
Ei, pequenino, por que você me chamou de gavião? Que brincadeira é essa? Já chega de tanta humilhação! Eu,
uma pobre galinha triste ser confundida com um gavião...
Beijinho
Nuacredito! Tu pensa mermo que tu é uma galinha?... Sériooooooo?
Grandona
Eu nasci galinha. Me criei galinha. Vou morrer galinha...
Beijinho
Caraca, meu! E tu bota ovo?
Beijinho não disfarça a malícia.
Grandona
Que é isso, pequenino! Eu sou uma galinha de respeito! Comigo só casando! Mas cá entre nós, com esse Espora
aí, nem morta!
Beijinho
Nuacredito, meu! Que loucura!
Beijinho está meio zonzo com a descoberta. Por alguns instantes ele parece ter dúvidas.
Beijinho
Se liga, mermão! Tu pode ter sido criado como galinha... Tu pode até morrer como galinha... Mas tu nasceu
gavião, tá ligado?
Grandona olha para seu próprio corpo, procurando uma explicação para as palavras de Beijinho. Ela pega o espelho de
Pedrês e se olha.
55
Grandona
Não, não, gente... É claro que eu sou uma galinha...
Beijinho
Galinha porcaria nenhuma! Você é um gavião! Um gavião, sacou?! O maior de todos os caçadores! De todos os
predadores! O mais temido! O mais corajoso! O mais rápido! O mais violento! O mais bonito! O mais...
A música, um presto, cobre a fala de Beijinho, que continua gesticulando com empolgação, acompanhado por uma
Grandona ligeiramente empolgada. Mas nem tanto.
Grandona
Você é louco! É muito adjetivo para mim, que sou feia, desengonçada, atrapalhada... Medíocre, para mim, é
elogio...
Beijinho
Esse é o problema, meu amigo, de quem não acredita em si mesmo: achar que ser igual aos outros, estar na
média – ser medíocre, enfim – é o máximo!
Grandona
Mas eu não posso lutar contra minha natureza!...
Beijinho
Claro que pode, cara... Além do mais, a tua natureza é muito mais do que o que você pensa que é... Se liga: por
trás dessa carcaça tem uma inteligência, tem uma garra de vencer, de ser feliz... A tua natureza...
Beijinho faz uma pausa, dando pinta de que teve uma grande idéia.
Beijinho
Natureza, é? Pois eu vou provar que você é o maior de todos os gaviões desta região. Mas é preciso acreditar em
mim, pelo menos um pouquinho, porque depois você vai ter que acreditar é em você mesmo...
Grandona
Você é muito engraçado, beija-flor... Como é mesmo o seu nome?
Beijinho faz evoluções em torno de Grandona.
Beijinho
Qual seria o nome mais apropriado para um beija-florzinho tão simpático como eu, meu amigo gavião?
Grandona
Beijinho?...
Beijinho (Piscando para a platéia)
Show! Taí um sinal da inteligência do gavião que existe em você! Acertou de prima, mermão!
Os dois se cumprimentam com jovial efusão. Grandona aos poucos vai se transformando.
Grandona
E o que eu tenho que fazer?
Beijinho
Vamos fazer uma pequena viagem... Está vendo aquela serra, lá atrás de onde nasce o sol?
Grandona
Claro, vejo muito bem...
Beijinho
Também, com essa visão de gavião... Mas, você nunca foi lá, certo?
Grandona
Na verdade, nunca passei da cancela do galinheiro...
Beijinho
Então, vamos!
56
Nesse momento, os outros animais “descongelam” e cercam Grandona, quando ela vai transpor a cancela. Burburinho
geral. A polifonia das perguntas baseia-se no mesmo texto: “Pra onde você vai? Por que você vai?” Cada animal formula a
pergunta de acordo com sua personalidade. Grandona olha furiosa – um olhar de gavião – e fala com autoridade – de gavião,
claro.
Grandona
Vou porque quero! Cansei dessa vidinha mais ou menos. Cansei de ser humilhada, maltratada. Não tenho nada
a perder a não ser esse estado de infelicidade em que vivo... Então, não esperem por mim. Fui!
Os animais “congelam”. Menos Grandona e Beijinho, que saem de cena. Mãe-Velha aplaude, discretamente, a performance.
Cena III
Beijinho e Grandona sobem à serra. Beijinho é lépido como um beija-flor. Grandona mostra-se cansada.
Grandona
Falta muito?
Beijinho
Olha, se você voasse, a gente chegava logo...
Grandona
Galinha não voa, seu bobo. Quer dizer, galinha não tem autonomia de vôo... Uns pulos, apenas; é tudo o que
conseguimos.
Beijinho
Mas você é um gavião; e gaviões voam! Voam pra caramba, meu!
Grandona
Quem me dera... Poder me lançar no espaço e voar em direção ao sol...
Nesse momento, uma luz forte – a luz do sol – brilha intensamente no palco.
Beijinho
Só depende você, mermão, só depende de você...
A luz volta ao normal. A música, um alegro, sobe. Beijinho gesticula muito. Grandona dá sinais de cansaço, ameaça
recuar; Beijinho a empurra e eles prosseguem a jornada. A música baixa lentamente.
Beijinho
Chegamos. Aqui começa o nosso aprendizado.
Grandona
E o quico?
Beijinho
Quico? Que quico? O que é quico?
Grandona
E o quico eu vou aprender?
Beijinho
Ah, mermão, filosofia, saca?... Brincadeirinha... Você vai, primeiro, aprender a ver.
Grandona
Mas eu já vejo... Ou você acha que eu sou míope?
Beijinho
Não meu caro, você olha... Mas não vê... Olha lá embaixo; o que você está vendo?
Grandona
Mato... Mato, mato e mato...
Beijinho
Só? Só mato? Você não é míope não, é cego mesmo! Presta atenção, cara, olha direito!
Grandona
Tou olhando... Tem... Tem o caminho, por onde a gente veio... Uma linha vermelha, torta, no meio do verde...
Beijinho
Oh, muito bem, muito bem, muito bem bem bem... Estamos progredindo... Continua olhando... O que mais você
vê?
57
Grandona
Ah, tem umas flores muito bonitas, no meio das folhas... Engraçado, eu não vi essas flores no caminho...
Beijinho
Claro, você ainda não sabia ver flores... (Para a platéia) Aliás, essa é uma especialidade minha...
Grandona
Eu estou vendo também... Olha, Beijinho... Uns bichinhos do mato, paca, tatu, preá... e pássaros, de várias espécies... E borboletas...
Beijinho
Tou te falando, meu... Olha mais lá adiante, na direção da fazenda... O que você consegue ver?
Grandona
A cancela e os animais todos... Olha lá, a Pedrês, aquela ridícula... Ó, a baixinha Garnisé, tão baixinha que eu
quase não enxergo... Como foi que você conseguiu isso, Beijinho?
Beijinho
Eu? Eu não fiz nada, meu caro... Essa visão poderosa você sempre teve. O problema é que você sempre olhou
para o chão... E quem olha para o chão não vê o mundo...
Grandona
Só vê o próprio dedão!
Beijinho
É isso aí!
Eles se cumprimentam com entusiasmo.
Beijinho
Vamos agora para o próximo passo, mas não o último, porque você ainda tem muito a aprender... Mas depois
do que você vai descobrir agora, você vai ter que se virar sozinho, meu...
Grandona
E o que é que eu ainda tenho a descobrir, meu amigo beija-flor?
Beijinho
Você vai reaprender a voar...
Grandona
E como é que eu posso reaprender o que eu nunca aprendi? E se eu nunca aprendi, eu não posso ter desaprendido! E se eu não desaprendi, como é que eu vou reaprender, ó beija-flor lelé?
Beijinho
Calma, calma, muita calma nessa hora... Você vai reaprender, sim, porque voar é da sua natureza. As águias,
como os beija-flores não precisam aprender a voar, porque eles já nascem sabendo. Mas é preciso exercitar...
Na seqüência, enquanto Grandona fala de seu sonho, a luz do sol se faz intensa, iluminando todo o palco.
Grandona
Sabe, Beijinho, vou te contar um segredo... Muitas e muitas vezes eu sonhava que estava voando, acredita? Sonhava com o sol... Eu voava em direção ao sol e olhava diretamente pra ele e me sentia muito bem, como se o sol,
entrando pelos meus olhos, me enchesse de uma força que eu não sabia explicar... Depois, acordado, eu lembrava
daqueles sonhos e sonhava em voar para longe daquela fazenda fedorenta...
Beijinho
É, meu amigo, aposto como um beija-flor psicólogo poderia interpretar esse seu sonho como... Ah, deixa pra lá:
você não está mais sonhando; isso aqui é a realidade, velho, vem...
A música sobe, um presto. Esta seqüência é toda gestual, mas eles falam, uma ou outra palavra, de acordo com o estado
de espírito de cada um. Beijinho ensina Grandona a voar. Abre as “asas” e se joga, mas ela é desengonçada e só consegue
“pulos” de galinha. Beijinho está quase desistindo. Grandona é a imagem do cansaço e do medo.
58
Beijinho
Você só pode estar brincando comigo, seu gavião bundão... Tem medo de quê? Quer voltar lá pro meio daquelas
galinhas fofoqueiras?
Grandona
Mas eu não consigo... Ainda que eu tenha nascido um gavião, vivi a vida inteira como galinha... É a minha sina...
Beijinho
Nem sina, nem sino, é você quem faz seu destino... Você é um gavião, sim, e vai voar, ou nunca mais me chamarei Beijinho, o beija-flor!
Grandona fala olhando para o chão, como no início. Tristíssima.
Grandona
Sempre foi assim, dia após dia... A cada alvorada, a cada crepúsculo... Sonhava que era um gavião... Acordava,
era a mesma galinha. Vinha outro dia e mais outro e mais outro... Cada nascer do sol... Cada pôr-do-sol... A mesma
galinha...
Beijinho
Sol, você falou sol, gavião? Filho da mãe!... O sol, cadê o sol? Que venha o sol! O sol! O sol!
A luz se torna intensa ao chamamento de Beijinho. Grandona levanta-se, olha em volta com ar superior, abre as asas
com elegância e lentamente alça vôo. Beijinho dá cambalhotas e vibra com a vitória do amigo, que exibe suas habilidades
por todo o palco.
Epílogo
Beijinho e Grandona (óps, o gavião) ainda evoluem pelo palco quando Mãe-Velha e as demais crianças entram. Mãe-Velha dirige-se ao público, mas sem perder de vista as crianças que estão ao seu redor.
Mãe-Velha
Então, gostaram? Eu estava ali atrás o tempo todo, torcendo pelas crianças... Mas deu tudo certo, não? Até o
que deu errado... E eu espero que vocês não tenham percebido... O importante foi que nos comunicamos. E como
a comunicação tem um emissor e um receptor, sem vocês nós não teríamos conseguido nada. Viram como é difícil
passar de galinha a gavião? É preciso determinação, força de vontade e, sobretudo, é preciso buscar a luz do sol... O
sol é uma metáfora para muita coisa: o amor, a fé, o conhecimento... Cada um tem que descobrir o seu próprio sol...
Muitos passam a vida inteira na escuridão... Contemplando o próprio dedão... A amizade não é menos importante.
O apoio de um Beijinho teimoso, que nos dá força quando pensamos em desistir, é essencial... Desejo que vocês
deixem de lado essa mania de galinha, e liberem de vez o gavião que existe dentro de cada um de vocês... Mas
façam isso bem devagarzinho, assim como o nosso personagem... Fica esquisito agora chamá-lo de Grandona, não
é mesmo? Vocês observaram que só os animais domesticados têm nome? O Beijinho, por exemplo, aceitou o nome
que o gavião lhe deu. Agora os dois estão por aí, vivendo a plenitude de sua liberdade...
Beijinho, que estivera o tempo todo ao lado de Mãe-Velha, agarra-se com ela.
Bem, parece que o Beijinho quer continuar por aqui... Crianças, uma salva de palmas para a nossa platéia.
59
Escrito nas
Estrelas
Renata da Costa Maia Martins
[email protected]
Personagens: (três crianças)
KIKA
LIA
ROSA
KIKA: E aí?
ROSA: Conta vai!
KIKA: O que aconteceu no final?
ROSA: Termina de uma vez por todas de contar, Lia.
LIA: Não quero.
KIKA: De novo.
ROSA: O que custa você tentar contar o final da história, hein?
KIKA: É, poxa! Então eu conto, me dá.
LIA: Não, não quero.
KIKA: Isso a gente já sabe.
ROSA: Mas por que não?
LIA: Vocês sabem.
KIKA: Isso a gente não sabe.
LIA: Eu não gosto do final, já disse.
ROSA: Como não gosta se você nunca contou?
60
KIKA: Você nunca nem leu esse final, Lia.
LIA: Por isso. Porque eu nunca vou gostar do final. Depois do fim não tem mais nada, a história acaba e eu não
quero isso.
KIKA: Mas todas as histórias acabam no final.
LIA: Por isso eu nunca leio, nunca vejo a última página dos livros.
ROSA: E nunca sabe como termina.
LIA: Pra que saber? O bom é viver sempre o que acontece. Eu gosto do começo, do meio mais ainda, mas final
é triste.
ROSA: Mas tem os finais felizes; o príncipe levando a princesa.
KIKA: A bruxa virando fada.
ROSA: O feitiço acabado.
KIKA: Eles sendo felizes para sempre.
LIA: E depois disso tudo? O que acontece?
KIKA: Ué, nada.
LIA: Viu só, nada. Eu não quero que a minha história vire nada.
ROSA: Quando acabar, você pega outro livro e começa outra história.
LIA: E o que eu faço com esse livro aqui? Jogo fora?
KIKA: (Pegando o livro) Não, você guarda lá..
LIA: Não! Não quero guardar. Um dia a gente esquece onde guardou e aí nunca mais encontra.
KIKA: Isso é mesmo.
ROSA: Se eu perder a minha flor nunca mais vou andar por aí. Não vou à escola, ao cinema, ao parque e nem
ler nenhum livro.
LIA: Por quê?
ROSA: Porque vou sentir saudade dela.
KIKA: E você nem sabe o que é saudade. Só quando crescer vai saber.
ROSA: Mas eu sei.
LIA: E o que é?
ROSA: É olhar pro jardim e sentir falta da única flor que não está ali. É sentir o perfume dela em todos os brinquedos. Isso é saudade sim.
LIA: Deixa-me sentir?
ROSA: O que? Saudade?
LIA: Não, o cheirinho dela.
ROSA: Não.
LIA: Por que não?
ROSA: Porque ela não é flor que se cheire.
KIKA: Porque ela não deixa ninguém chegar perto dessa flor. É ciúme.
ROSA: Ciúme, ciúme. Você não sabe o que é ciúme. Só quando crescer vai saber.
KIKA: Sei sim. É coisa que roda aqui dentro. (NA BARRIGA) Não dá par fazer parar.
LIA: É enjôo?
ROSA: Deve ser.
KIKA: É assim; é minha essa bola, é minha há muito tempo. Eu gosto dela mais que todos os outros brinquedos,
então tinha que ficar só aqui comigo, mas às vezes todo mundo quer brincar com ela e a minha bola vai rolando,
rodando, quicando...e eu não vou gostando de ficar só olhando feito boba.
(Lia e Rosa, brincam com a bola enquanto Kika observa)
61
KIKA: Eu não quero mais brincar!
LIA: Ah! Por que não?
KIKA: Porque vocês podem furar a minha bola.
ROSA: É nova?
KIKA: Não, é velha. Os brinquedos velhos podem estragar de uma hora pra outra e eu não vou achar outra bola
igual à minha.
LIA: Bola é tudo igual e essa aí que você ganhou quando era bebê, já ta toda murcha.
KIKA: Se você falar mais uma vez que a minha bola ta murcha eu conto o final da sua história.
ROSA: Bem feito!
LIA: Se você falar mais uma vez “bem feito” eu cheiro a sua flor.
AS TRÊS: Ta bom!
KIKA: Eu não quero crescer.
ROSA: Eu quero.
LIA: Eu não sei se quero.
ROSA: Quando eu for grande vou conquistar o mundo. Realizar todos os meus sonhos.
KIKA: Enquanto eu não for grande, posso só brincar até a hora de o sono chegar.
LIA: E não dá pra juntar as duas coisas?
ROSA: É tão incrível crescer e aparecer!
LIA: Às vezes a história não é assim.
KIKA: Então eu acho melhor deixar rolar uma brincadeira.
LIA: Vamos brincar de que?
ROSA: Bobinho!
KIKA: Ai, de novo não... Pára... Me dá...
(Cada um pega o brinquedo da outra. se olham)
LIA: Não.
ROSA: Devolve.
KIKA: Me dá.
LIA: Se você...
ROSA: Eu nunca mais...
KIKA: Sou sua amiga.
(Todas devolvem ao mesmo tempo)
LIA: Um dia... não vamos mais ser amigas?
ROSA: Vamos! Vamos ser amigas pra sempre!
KIKA: Como você sabe?
ROSA: Eu sei ué! Sempre fomos amigas.
LIA: Sempre é pra sempre?
ROSA: Não sei.
KIKA: E quem sabe então?
62
(As três olham para cima procurando a resposta)
LIA: Alguém lá em cima.
KIKA: Quem?
LIA: Está escrito nas estrelas.
ROSA: Em todas?
LIA: Não. Cada uma tem a sua estrela e é nela que esta escrita às histórias das nossas vidas.
ROSA: Eu quero conhecer a minha.
KIKA: Será que é longe?
LIA: Longe é um lugar que não existe.
KIKA: Então, mesmo que seja um sonho, eu quero ir. Quero chegar lá, nas estrelas.
ROSA: E quando nós vamos?
LIA: Hoje! Agora! Nesse momento!!
KIKA: Agora?
ROSA: Assim?
KIKA: De que?
ROSA: Como?
LIA: Vamos agora, sim. Toma a sua e a sua.
KIKA: Isso é a passagem?
LIA: Não. Isso são as instruções. Estão preparadas?
KIKA: É...
ROSA: Eu preciso fazer minhas malas.
LIA: Não dá pra levar mala.
ROSA: Não pode levar nem uma coisinha?
LIA: Só o que for muito importante.
ROSA E KIKA: Está bem!
(Kika pega a bola, lia pega o livro e rosa pega a flor de pano)
ROSA: Lia, se longe é mesmo um lugar que não existe, a gente pode nem chegar nas estrelas.
LIA: Por quê?
ROSA: Porque eu não tenho certeza se elas existem.
LIA: Você nunca olhou pro céu não, é?
ROSA: Olhei, mas eu não conheço ninguém que um dia foi nas estrelas.
LIA: É porque ninguém nunca teve essa idéia.
ROSA: Então não é melhor a gente esquecer que teve essa idéia e voltar?
KIKA: Voltar pra onde se a gente nem saiu do lugar?
LIA: Psiu!!!! Não pode falar isso. Tem que acreditar que já estamos muito longe, senão dá tudo errado.
KIKA: Ah, desculpe. Eu já acredito que estamos looonge. Não tô nem mais vendo a janela do meu quarto.
ROSA: Eu tô achando melhor esquecer essa idéia de ver nossas histórias.
KIKA: Não é melhor nada. Eu quero conhecer a minha história de qualquer maneira. Se eu não gostar de alguma coisa posso mudar o final.
LIA: (Medo) O final?
KIKA: Ou o meio, o início, sei lá.
ROSA: O que você mudaria, por exemplo, Kika?
63
KIKA: Ah! algumas coisas.
ROSA: O que?
LIA: Chegamos!
KIKA: Nas estrelas?
(Lia faz uma cara de reprovação)
KIKA: Desculpe. Tem que acreditar, eu sei. Eu já tô vendo tudo brilhando
LIA: Não chegamos nas estrelas ainda, estamos no primeiro caminho.
ROSA: Primeiro? São quantos?
LIA: Não sei, mas devem ter vários.
KIKA: Já vi que vamos ficar rodando horas.
LIA: Vou ler as regras;
ROSA: (Desânimo) Regras?
LIA: É, ué! Toda brincadeira tem regras. A minha é a primeira.
(Lendo) “Vocês deram o primeiro passo. Para continuar o caminho precisam pagar.”
KIKA: Ih logo vi! Eu sabia.
ROSA: Eu não trouxe dinheiro. Kika, se você sabia que tinha que pagar, porque não me avisou. A Lia disse pra
trazer só o que fosse importante.
KIKA: Eu também não sabia.
ROSA: Mas você disse: “ Eu sabia!”
KIKA: É mania de falar. Muita gente sempre diz “Eu sabia” sem saber nada.
ROSA: E agora?
LIA: E agora eu posso continuar lendo as regras? (LENDO) “O pagamento da viagem tem que ser inteiro. Nada
disso de dividir em mil pedaços. Pra que serve um brinquedo todo partido?” Continua, Rosa, eu não quero ler o
final.
ROSA: (Lendo) “Pode ser usado e bem velhinho, mas precisa ser perfeito. Só precisa deixar 1 brinquedo para
ganhar milhões de passos. Se o sonho é importante, o pagamento também tem que ser!”
KIKA: Não entendi.
LIA: Não vou deixar meu livro. Ele não é brinquedo.
ROSA: Também não vou deixar minha flor, não é brinquedo.
KIKA: Não entendi!
LIA: Pra gente sair daqui...
ROSA: Pra gente chegar nas estrelas..
LIA: Tem que deixar 1 brinquedo como pagamento.
ROSA: E como a sua bola é o único brinquedo...
KIKA: Não entendi.
LIA E ROSA: Você vai ter que deixar a sua bola.
KIKA: Não entendi!
ROSA: Ótimo! É melhor não entender mesmo.
LIA: É só deixar sua bolinha murcha.
64
KIKA: Eu entendi tudo direitinho; que tem que pagar, que livro não é brinquedo e flor também não e que eu vou
ter que deixar a minha bola. Mas isso que eu não entendi: Por que a minha bola, hein?
ROSA: Porque temos que deixar um brinquedo.
LIA: Pra chegar nas estrelas.
KIKA: Poxa, mas nunca mais vou poder brincar com ela, nem apertar bem forte feito abraço. Ela tão pequena!
Quem vai proteger quando começar a quicar por aí.. Quicar... Quicar.. Quica ...Quica....
ROSA: Kika! Kika! KIKA, você tá crescendo. A bola não cresce nunca. Outra criança vai cuidar dela.
LIA: A gente não precisa do ciúme pra ser feliz.
ROSA: E nem pra chegar nas estrelas, né?!
Música: (durante a música, kika entrega sua bola para uma criança da platéia)
Música: tema de Kika
Sem você não sei viver
Quero ter você sempre ao meu lado
Não sei ficar longe dessa grande paixão
Se não posso ter você comigo
Não vou querer deixar você cair em outras mãos
Todos vão dizer que é ciúme
O que eu sinto ninguém pode entender
Sei que quero estar junto contigo
Pois com você me sinto bem e sem não sei viver
Junto com você tudo é tão lindo
Vem cá perto de mim
Eu fico assim alegre e rindo
Você me faz sentir...
Que tenho algo a mais que com você eu sou capaz de transformar a vida em diversão oh oh oh
Sem você eu perco a paz
Me sinto mal não quero mais te ver fazer alguém feliz assim
Chega de pensar eu vou embora
É bem difícil te deixar para crescer
Nunca senti tanto como agora
Mas sei que um dia saberei
Quem sou sem ter você
Pode ser que um dia eu te esqueça
Mas ainda sinto que você é parte de mim
Antes que outro dia amanheça
Sei que fará outra pessoa sentir algo assim...
ROSA: Lia, as estrelas caem do céu, às vezes?
LIA: Acho que não. Nunca vi nenhuma aqui embaixo.
ROSA: E se elas caem apagadas? Aí, não dá pra ver.
KIKA: E o que que tem cair, ué? Todo mundo cai. Estrela também pode.
ROSA: Mas se a estrela que tem a minha história já caiu?
LIA: Acho que a nossa estrela só cai quando a gente..
ROSA: A gente o que?
(Lia faz mímica)
KIKA: Cospe? Solta pum? Engasga? Não sei? Acaba?
LIA: Isso.
ROSA: Quando a gente acaba?! (Estranhando) A gente acaba?
LIA: É, mas ainda falta muito pra isso acontecer então não vamos mais falar nesse assunto.
KIKA: Sabe qual o assunto que eu gosto? De namorado.
65
ROSA: Que isso, Kika!
KIKA: Que isso por quê? Eu já cresci, esqueceram? Cadê a minha bola? Não estou carregando mais nenhum
brinquedo, viu?
ROSA: Kika, mas a gente não cresce assim de uma hora para outra.
LIA: E não é porque você não carrega mais um brinquedo debaixo do braço que já cresceu.
KIKA: Não? Então como é que cresce?
ROSA: Devagar. Não dá pra ver assim. Tem o lado do não e o lado do sim. Eles crescem juntinhos; Sim, Não,
sim, não, sim, não..
KIKA: Que difícil é crescer!
ROSA: Sim.
KIKA: Não posso ver.
LIA: Não.
KIKA: Mas posso sentir!
ROSA: Sim.
KIKA: Não consigo alcançar o teto..
LIA: Não.
KIKA: Mas posso chegar nas estrelas.
ROSA: Sim.
KIKA: Já entendi, ainda falta muito pra eu crescer.
LIA: Não!!!
KIKA: Tá na vez do sim?
ROSA: Sim!!
KIKA: Então agora eu já posso namorar?
LIA e ROSA: Não!
KIKA: Vocês vão ver só! Na minha estrela vai ter um príncipe encantado sentadinho esperando por mim.
ROSA: Posso ler a segunda regra, que tá comigo ?
KIKA: Se eu fosse você eu não LIA!
LIA: Mas não lê o final, não.
ROSA: Regra número 2: (LENDO) “Vocês estão muito perto das estrelas...
KIKA: Tô sentindo.
ROSA: (Lendo) “Para continuar o caminho, tem que deixar..” Ah, eu não quero. (ENTREGA A REGRA PARA LIA)
LIA: (Lendo)“Para continuar o caminho, tem que deixar..” Ah, eu não quero.
KIKA: Para continuar o caminho tem que deixar de bobeira e ler a regra até o final, gente.
ROSA: Eu não quero deixar alguma coisa importante.
LIA: Nem eu.
KIKA: Dessa vez a Kika não tem nada pra deixar.
ROSA: Eu não posso deixar a minha flor, ela nem é tão importante assim. O seu livro é muito mais, Lia.
LIA: Nada disso. Ele nem é tão importante, não vai servir.
66
KIKA: Que coisa feia. Isso é egoísmo. (Silêncio). Então, se nenhuma tem nada de importante pra deixar aqui, eu
fico. Eu sou muito importante e prefiro ficar sozinha a atrapalhar o caminho das minhas amigas.
ROSA: Você?
LIA: Não, Kika. Temos que seguir juntas.
ROSA: Nossa história sem você fica triste.
LIA: E ninguém pode deixar uma amiga assim pra trás.
ROSA: Olha, você é muito mais importante que a minha flor, mas acho que o dono da regra, seja ele quem for,
vai aceitar a florzinha como pagamento. Ela é a coisa mais importante que eu tenho, porque você não é coisa, é
amiga!
LIA: Não, Rosa. Eu deixo o meu livro.
ROSA: A minha flor fica, eu já disse, mas tudo que conversei com ela na minha vida toda, vai comigo. Os meus
segredos, às vezes que eu chorei o cheirinho. Acho que todo mundo precisa mesmo da saudade pra ser feliz.
LIA: Saudade das coisas boas, né?
ROSA: Saudade é sempre de coisa boa. Se a minha flor que me fez conhecer a saudade é uma coisa boa, então
não pode existir saudade de coisa ruim.
LIA: Será que as outras crianças também vão entender assim?
Música: (rosa entrega sua flor para uma criança da platéia)
Música: tema de Rosa
Lembrar de você
Sinto que te perdi
Ninguém mais pode me ajudar
Quis outras coisas me distraí
E agora você não vai voltar...
Um vazio ficou
Não quero mais o que me restou
Tá tudo cinza pois não há mais
As suas cores nesse lugar...
Só quero lembrar de você comigo
Como sinto falta de você
Seu cheiro, seus olhos e seu sorriso
Nunca vou querer me esquecer
A saudade me machuca muito
Eu tenho vontade de gritar
Preciso lembrar que ainda existem
Amigos com quem posso contar
Me diz agora o que vou fazer
Não sei por onde vou começar
Eu vou voltar a me divertir
Já tive tempo pra me recuperar
Mas a dor não passou
Talvez pra sempre ela vai ficar
Mas vou viver feliz mesmo assim
Pois em você ela me faz pensar
Só quero lembrar de você comigo
Sinto tanta falta de você
Seu cheiro, seus olhos, seu sorriso...
Nunca vou poder me esquecer
Até que a saudade se transforma
E quando me lembro o que passou
Me bate uma sensação gostosa
Por já ter vivido tanto amor...
Só quero lembrar de você comigo
67
Sinto tanta falta de você
Seu cheiro, seus olhos, seu sorriso...
Nunca vou poder me esquecer
Só quero lembrar de você comigo
Comigo...
Seu cheiro, seus olhos, seu sorriso...
Nunca vou poder me esquecer
LIA: Você tem muitos segredos, Rosa?
(Silêncio)
KIKA: Você disse que a flor conhecia os seus segredos.
LIA: Conta pra gente?
ROSA: Não posso.
KIKA: Um só.
ROSA: Então escolhe. (Mostra as mãos fechadas)
(Cada uma escolhe uma mão até decidirem juntas, um lado só)
ROSA: Essa aqui.. (OLHANDO DENTRO DA MÃO) não pode!
KIKA: Então a outra, vai.
ROSA: Hum.. Essa aqui.. também não pode.
LIA: Ah, você prometeu.
KIKA: Se não contar a gente vai fazer muitas cócegas, até você abrir essa mão.
(Fazem cócegas. rosa ri até abrir as mãos)
ROSA: Viu só; agora acabou.
LIA: Acabou o que, Rosa? Não tinha nada nessa mão.
ROSA: Tinha. Vocês não acreditam, né? Por isso eu não queria contar. A gente não pode contar segredo pra
quem não acredita.
LIA: E não vai contar nunca mais?
ROSA: Segredo deixa de ser segredo quando conta. Se tem uma caixa, ou um papel, ou um lugar que esconde
um segredo e você abre: Pronto! Você descobre o que é e nunca mais, nunca mais mesmo volta lá pra querer saber
o que tem. Perde a graça, não é mais segredo.
LIA: Mas pra gente continua sendo, você ainda não contou.
ROSA: Mas agora eu não tenho mais nada guardado.
KIKA: E antes? Tinha?
ROSA: Antes eu ia inventar.
KIKA: Então inventa agora. A gente vai acreditar.
ROSA: Agora não tem mais graça. O que pode ter de secreto em uma mão aberta?
LIA: Muita coisa. Pode ter a minha mão que esconde outra mão, que esconde outra e mais outra e outra e lá
dentro guarda um segredo que a gente nunca vai deixar fugir, promete?
(Elas brincam de adivinhar o que tem dentro das mãos que estão juntas.)
LIA: Se a gente descobrir a nossa história escrita nas estrelas, nunca mais vai querer ir lá de novo porque não
vai ser mais segredo.
KIKA: Que bom, porque esse caminho é muito complicado. Andar sem quase sair do lugar, cansa.
68
ROSA: E também não vamos mais precisar voltar lá, é só trazer a estrela e pronto.
KIKA: É Lia, ninguém fica indo nas estrelas toda hora e eu acho que tá na hora é de ler a terceira regra, que por
sinal é a minha. Posso ler?
ROSA: Se eu fosse você eu não LIA!
(Lia está olhando para o céu)
KIKA: Lia!! Posso ler?
LIA: (Indecisa) Pode.
KIKA: Até o final? (Lendo) “Muito bem! Vocês estão há dois passos de chegar às estrelas. Foi um longo caminho,
não foi? Então agora é a vez de deixar uma longa história para ..
LIA: Chega!!!
ROSA: Às vezes nem precisa ler o final pra saber o que vai acontecer.
LIA: Eu não quero final nenhum, não quero mais saber minha história, não quero mais acreditar, não quero
mais estrela, não quero mais brincar.
ROSA: Você não quer, mas a gente quer.
LIA: Então vão sozinhas.
ROSA: Mas não temos mais nenhuma longa história pra deixar.
LIA: Eu não quero deixar o meu livro, ponto final.
ROSA: Eu também não queria deixar a minha flor, vírgula.
KIKA: Eu também não queria deixar a minha bola, dois pontos.
ROSA: Mas é regra.
KIKA: Regra é regra.
LIA: E quem foi que inventou essa regra? Vamos mudar.
ROSA: Mudar agora, Lia, no final?
KIKA: Só faltam dois passos pra chegar nas estrelas e você quer mudar tudo?
LIA: 1, 2, pronto, já dei dois passos. Não tô vendo estrela nenhuma.
KIKA: (Debochando) Assim sem acreditar, você não chega a lugar nenhum.
ROSA: Assim você faz o final ser o mais chato, sem graça e triste de todos.
LIA: É que...Eu tenho medo.
KIKA: Medo? Por quê? Você ouviu algum barulho? Eu também tenho medo!
LIA: Ué, você não tá crescendo? Então o medo tem que diminuir.
KIKA: (Roendo unha) Quem disse isso?
LIA: Eu acho que é assim: Quanto maior, mais forte.
ROSA: Eu que sou a mais forte. Kika pára de roer unha, você já tá uma moça. Lia me dá esse livro agora que
outras crianças querem ler.
LIA: (Com medo) Outras crianças?
ROSA: É sim. Livro não tem que ficar pendurado debaixo do braço. Você tá crescendo e daqui a pouco ele vai ficar
fedendo a cecê, de tanto que você o espreme aí.
LIA: Fedendo? Então eu passo perfume.
ROSA: Perfume vai molhar as páginas todas.
LIA: Mas se eu deixar ele pra trás, vai molhar da mesma forma, porque eu vou chorar.
KIKA: Pode chorar um pouquinho, é assim que a dor vai embora.
ROSA: Você tá crescendo, Lia.
69
LIA: Eu não quero crescer.
KIKA: Não dá pra não querer.
LIA: E quando a gente cresce, chora mais ou menos?
ROSA: Você precisa crescer pra descobrir.
LIA: Não adianta mesmo ter medo de crescer, não é? Por que então eu tenho esse medo bobo de ir até o final?
KIKA: Já tava na hora de entender isso, viu.
ROSA: Mas esse final aqui, (Aponta o livro) agora, quem vai saber não é você. Tem muitas histórias pra conhecer pela frente.
Música (Lia entrega o livro para uma criança da platéia. no final da música, várias estrelas devem estar no palco. fica
a critério do diretor como será a colocação das estrelas. )
Música: Tema de Lia
Medo do Fim
É, pra toda história, há um início, um meio e um fim
Porque será que toda hora
Alguém insiste que a vida é assim?
Porque não congelamos tudo agora antes de um fim...
O dia hoje pode ser toda a história
Pra sempre um dia feliz!
Preste atenção
Olha o mundo inteiro seguindo em várias direções
O fim está na mente de quem pára e perde muitas emoções:
Um festival de experiências novas
Um carrossel de paixões
Um novo aprendizado a cada instante
Vivemos novas sensações
Um verdadeiro mar de novidades
Há sempre uma nova missão
Um instrumento de felicidade
Tocando uma linda canção!
É, pra toda história, há um início, um meio e um fim
Que bom será se toda hora
For uma história completa pra mim
Pois nossa vida tem muitas histórias
E nenhum final é o fim
É o início de uma nova hora
As chances existem assim
É um caminho para se trilhar
Você pode fazer renascer
A esperança de alguém que chora
E precisa muito de você!
LIA: Kika, você ainda tá com medo?
KIKA: Não, por quê?
LIA: Você já deu os dois passos que faltavam?
KIKA: Já dei milhões de passos, e o que tem isso?
LIA: (Sussurando) Acho que nós chegamos!
KIKA: Chegamos aonde, Lia?
70
LIA: Como aonde? Nas estrelas.
Kika olha pra cima
LIA: Não é pra cima que você tem que olhar, é pra baixo. Nós estamos em cima delas.
KIKA: (Assustada) Mas isso..
LIA: Não pula, não se mexe muito, cuidado, muito equilíbrio.
(Rosa está saltando por cima de todas)
ROSA: São lindas! São muitas e de todos os tamanhos!
KIKA: Lia, então é verdade! Nós chegamos mesmo nas estrelas! Você pode me dizer como isso aconteceu, porque eu não tava acreditando muito nessa história, mas agora..
ROSA: Será que todas guardam histórias? Será que eu posso conhecer todas?
LIA: Será que não é perigoso ficar saltando assim?
KIKA: Não deve ser , vamos , Lia!
LIA: Eu não sou muito boa em saltos..
ROSA: Então dança.., vem, não é difícil
(Música instrumental. as amigas saltam e dançam nas estrelas)
KIKA: E agora? Tem-se um monte, como vou descobrir a minha?
ROSA: É só ver uma por uma até encontrar a sua. (VIRA UMA ESTRELA)
LIA: Não! Não é assim. A gente não pode mexer na estrela do outro.
ROSA: Por que não?
LIA: Porque você não pode conhecer alguém antes da hora certa.
KIKA: Tá bom, então me diz logo como eu vou encontrar a minha.
LIA: Eu não sei.
ROSA: Lia você fez a gente vir até aqui pra dizer que não sabe como vamos encontrar a estrela certa?
LIA: Eu disse que nunca sabia o final, não disse?
KIKA: Eu não tô acreditando!
LIA: Pois então acredite se quiser.
KIKA: Eu quero conhecer a minha história agora, Lia!
LIA: Eu não tenho nada a ver com a sua história, Kika.
KIKA: Mas tem a ver com toda essa palhaçada aqui.
LIA: Se é palhaçada, por que você quer tanto saber? Vai embora.
KIKA: Vou mesmo, vou.
ROSA: Ei! parem com isso. A gente não brigou até agora, o que tá acontecendo com vocês?
KIKA: Tá acontecendo que essa garota é uma sem noção!
LIA: Você que não acredita em nada. Se acha adulta.
KIKA: E você se acha o que? A sabida!
LIA: Sabe o que tá acontecendo com você?
KIKA: Eu acho melhor você nunca mais falar comigo.
LIA: Eu acho é que a gente..
ROSA: Tá crescendo. (Silêncio) É isso. Essa briga toda é só por causa disso. Nós estamos crescendo. Tudo que
era muito fácil, agora tá mais difícil, até acreditar numa estrela.
LIA: A culpa foi dela.
KIKA: Foi sua.
71
ROSA: A culpa não foi de ninguém, foi do tempo. Uma hora isso tinha que acontecer.
KIKA: O que? A gente brigar?
ROSA: Não. A gente crescer.
LIA: E todo mundo que cresce tem que brigar?
ROSA: Isso eu não sei, mas todos os adultos brigam feio.
LIA: Mas a gente ainda não é adulta.
KIKA: E sabe de uma coisa, eu acho que criança briga bem mais que adulto.
ROSA: Mas é briga que fica de bem depois. Vocês estão até esquecendo porque a gente veio aqui, não é?
KIKA: Pra conhecer a minha história.
LIA: Pra conhecer a nooossa história.
ROSA: E pra saber se nós três íamos ser amigas pra sempre. Se a gente brigar agora e for cada uma prum canto,
nem precisa mais encontrar a estrela certa porque a resposta é não, não vamos mais ser amigas para sempre.
LIA: Não, eu...
KIKA: Eu não quero brigar com a Lia.
LIA: Nem eu quero brigar com a Kika.
KIKA: Acho que eu não quero mesmo é crescer. Coisa chata perder os brinquedos, brigar com a amiga.
LIA: Só acontecem essas coisas ruins se a gente deixar.
ROSA: E você não falou que ia mudar sua história se tivesse alguma coisa que não gostasse? Então, chegou a
hora!!
KIKA: Que hora se eu nem sei qual dessas todas é a minha?
ROSA: Deve Ter um jeito de cada uma encontrar a sua.
KIKA: Que jeito?
LIA: Cada um inventa um jeito, que tal?
KIKA: Tá bom, então o meu jeito é assim.... pronto essa é a minha (Vira uma estrela)
(Silêncio)
ROSA: E aí, Kika?
KIKA: Não tem nada.
ROSA: Nada? Olha bem.
KIKA: (Vira outra)
ROSA: Nada?
KIKA: Nada!... Nada!.... Nada!...
(Começam a virar todas sem encontra nada. recolhem todas deixando somente três)
KIKA: Chega. Acabou a brincadeira. Nenhuma tem nada escrito.
ROSA: Mas ainda faltam três Kika.
KIKA: Eu cansei.
ROSA: Tá vendo, mais um sinal que você tá crescendo, criança não cansa nunca.
LIA: Peraí olha: só faltam três estrelas!
KIKA: Se a gente não achou nada até agora...
72
LIA: Mas nós somos três e, se faltam três, elas podem ser as nossas.
ROSA: Será, Lia?
LIA: Não sei, mas não vamos deixar de ver agora no finalzinho, ne´?
KIKA: Eu nem sei se acredito nisso, mas depois do que acabei de ouvir a Lia dizer, tudo muda!!.
LIA: O que eu falei?
ROSA: Que quer ver o que tem no final!
KIKA: Isso quer dizer que você não tem mais medo dos finais!
LIA: Sério? Ai gente, por que vocês foram lembrar? Medo é uma coisa que quando acaba ninguém tem quer
lembrar que um dia ele existiu.
KIKA: Então esquece e vamos logo ver se tem alguma coisa nessas estrelas.
(Cada uma vira uma estrela . os sinais estão trocados. elas falam quase ao mesmo tempo)
KIKA: Na minha..
LIA: Na minha tem...
ROSA: Tem..
KIKA: Uma flor!
LIA: Uma bola!
ROSA: Um livro!
(Se olham)
KIKA: Vamos trocar!
LIA: Espera! Engraçado é que tomamos tanto cuidado pros nossos brinquedos não pararem na mão da outra que
acabamos assim: com as histórias misturadas.
ROSA: É, mas vamos trocar logo que eu não agüento mais esperar.
KIKA: Tem que ser ao mesmo tempo, hein!
AS TRÊS: 1, 2, 3 e Já!
(Cada uma pega a sua estrela).
ROSA: (Desconsolada): Eu... não tô vendo nada escrito
KIKA: Na minha também não tem nada, só o desenho da bola.
LIA: E na minha, um livro.
ROSA: Mas livros sempre têm coisa escrita. Deixa eu ver!
KIKA: Mas livro tem uma história que não é a da Lia. Ela não é a Cinderela, nem a Pequena Sereia, nem vive no
mundo de OZ.
LIA: Eu ia gostar de ter uma história como a dos contos de fadas.
KIKA: Eu também queria um príncipe esperando por mim aqui, e cadê?
Não tem príncipe e nada.
ROSA: Então a gente não vai encontrar mais nada que uma bola, uma flor e um livro?
LIA: Isso deve ser sinais.
KIKA: Que sinais? Que a sua história é um livro aberto, que a Rosa vai ser uma flor e que eu vou ficar bem gorda
como uma bola?
LIA: Não, Kika, deve ter alguma coisa por trás desses desenhos.
KIKA: (Vira a estrela) Atrás não tem nada. (JOGA A SUA ESTRELA)
LIA: Atrás não é atrás assim atrás.. é... como eu vou dizer.. atrás..
ROSA: É atrás mesmo, Lia. Olha. Atrás da minha flor tem um papel.
KIKA: Então me dá.
73
ROSA: Epa! Esse é o meu. Vai ver na sua, ora essa.
LIA: É mesmo, Rosa!
KIKA: Espera gente, não vale encontrar primeiro. Espera por mim. (CORRE PARA PEGAR A SUA ESTRELA)
LIA: Então é aqui que está escrito!.
ROSA: A nossa vida inteira!
KIKA: Do primeiro até o último dia das nossas vidas?
LIA: Saber se vamos ser amigas para sempre.
KIKA: Eu não sei se quero.
ROSA: Ser nossa amiga?
KIKA: Saber disso. Se a gente tiver que ir cada uma para um lado?
LIA: Gente acho que o meu medo tá voltando. Eu não quero ver o final.
ROSA: Ah, não Lia. Respira fundo.
LIA: E eu posso fechar os olhos?
ROSA: Pode!
KIKA: E você pode deixar de ser tapada, Rosa. De olhos fechados ela não vai ler nada.
ROSA: Então, vamos fazer 1,2, 3 e já, que aí vai de uma vez só.
KIKA: 1
ROSA: 2
LIA: 3 e já!
(As três fazem leitura silenciosa. pode haver uma música instrumental).
KIKA: Mas, cadê o resto?
ROSA: A minha também tá faltando uma parte.
LIA: Tá faltando o final.
ROSA: Só tá escrito o que eu vivi até agora.
KIKA: Aí não tem graça, até agora eu já sabia o que tinha acontecido.
ROSA: Tem escrito todas as nossas brincadeiras, às vezes que a gente caiu e até as promessas; “Eu juro que pra
sempre” “Eu juro que nunca mais”
KIKA: Mas e daqui pra frente? O que vai acontecer comigo quando eu for bem grande? E com a nossa amizade?
Alguém tem que saber!
ROSA: É, mas de uma vez por todas, nas estrelas o futuro tá em branco.
KIKA: Isso quer dizer então que não temos futuro?
LIA:Temos sim!
ROSA: E cadê ele?
LIA: Na sua mão. Na minha. Na da Kika. Esse papel em branco não quer dizer nada.
KIKA: Eu sei disso. Não quer dizer nada mesmo.
LIA: Quer dizer tudo!
ROSA: Tudo?
LIA: Tudo que a gente leu aqui foi o que vivemos até agora, não foi?
74
KIKA: Foi.
LIA: É só isso que a gente precisa saber pra crescer feliz.
ROSA: As brincadeiras? Às vezes que caímos? As promessas?
LIA: Só isso! Essa foi a parte mais importante das nossas histórias. Enquanto somos crianças aprendemos sobre
tudo; (Olha para rosa)saudade... medo.. (Olha para kika)ciúme!
ROSA: Amizade.
KIKA: Sempre amigas!!
LIA: (Insinuando a resposta)E agora, o que vai acontecer daqui pra frente, quem vai escrever nossas histórias?
KIKA: Você?
ROSA: Eu?
LIA: A Kika!
KIKA: A Rosa!
ROSA: A Lia!
KIKA: Nós três!!
LIA: Vamos construir a nossa história daqui pra frente. Podemos decidir ser amigas para sempre e não brigar
nunca.
KIKA: Decidir acreditar em estrelas para sempre...
ROSA:E também olhar as flores quando sentir saudade de quem não estiver mais com a gente. Sem chorar!
KIKA: E deixar a bola passar sem ciúme.
LIA: E ler o final das histórias porque sempre tem outra pra começar.
KIKA: A gente aprendeu tudo isso mesmo, até agora, Lia?
LIA: O que você acha?
ROSA: Que eu nem preciso crescer então! Já sei tudo que eu preciso.
KIKA: Que eu vou fazer a minha história ser bem feliz pra quando eu tiver bem velhinha e quiser voltar nas estrelas, pra ler a outra parte, eu ter certeza que foi muito bom ser criança, mas melhor ainda foi nunca deixado de ser.
ROSA: Mesmo sem nossos brinquedos preferidos, vamos poder chegar às estrelas?
LIA: Acho que agora, as estrelas é que vão chegar na gente!
KIKA: Mas sabe, tem ainda uma coisa que eu quero dizer; eu sei que a minha bola foi parar em boas mãos, mas
às vezes eu sinto tanta falta dela.
ROSA: E eu da minha flor?! Não esqueço o perfume.
LIA: É que a gente tá crescendo de novo. Saudade dos brinquedos, das brincadeiras, de correr, de sentar no chão,
a gente vai ter sempre quando olhar outras crianças vivendo tudo isso.( OLHAM PARA AS CRIANÇAS DA PLATÉIA,
ESPECIALMENTE PARA AS QUE RECEBERAM OS BRINQUEDOS)
ROSA: Eu não disse que saudade é sempre uma coisa boa?
Música final música:
Destino nas Estrelas
Vem, tenho um segredo pra te contar
Toda vez que uma estrela brilhar
E esse brilho alcançar seu olhar
Use o momento para refletir
O silêncio precisa invadir
Pra você saber por onde ir
Vamos sempre em frente não há o que temer dos nós precisamos crescer
Nós podemos sorrir ou sofrer
Mas não desistir é o segredo pro destino acontecer
75
Sempre tão lindo como as histórias que li nos livros
Onde seremos... pra sempre amigos...
Toda vez que eu pedi para saber
“Que será que vai me acontecer?”
Quem agiu foi o meu coração
Ele me faz cada dia acordar
Com amor para tudo olhar
Ser feliz por viver por sonhar...
Os seus sonhos lindos não podem parar
Sua vida não pode esperar
Quem decide o caminho é você...
Mas não desistir é o segredo pro destino acontecer
Sempre tão lindo, como as histórias que li nos livros
Onde seremos... pra sempre amigos...
Novas crianças;
: E aí?
: Conta vai!
: O que aconteceu no final?
: Termina de uma vez por todas de contar.
: Não quero.
: De novo.
: O que custa você tentar contar o final da história, hein
76
Teatro Infanto-juvenil
(Ensino Fundamental II –
6ª. ao 9ª. ano)
As Vozes que Ouvimos
a Vida que Escolhemos...
Guilherme de Almeida Menezes
[email protected]
Personagens:
•Rafael (8 anos de idade)
•Leandro (9 anos de idade), ambos sofrem com as dificuldades do dia a dia.
• Antônio: Pai de Rafael, alcoólatra
• Mãe e pai dos dois
Cenário inicial: Pátio da escola, após a aula.
Rafael e Leandro são 2 dos milhares de pessoas que, mesmo muito cedo na vida, tiveram que fazer escolhas e ouviram
vozes diferentes. Mas o destino vem mostrar que cedo ou tarde, a voz do Bem sempre fala mais alto.
Leandro joga um papel no chão
Rafael: Não faça isso! A professora acabou de dizer que, quando jogamos lixo em qualquer lugar, prejudicamos
o meio ambiente.
Leandro: Ah! Palhaçada!
Rafael: Depois que você me ajudar no dever de matemática, vamos plantar uma árvore?
Com esse problema do aquecimento global!...
Leandro: Pára! Eu vou é jogar meu play station
Cena 2
Rafael chega em casa:
78
Rafael: — Pai, mãe, eu vou plantar essa árvore aqui !
Pai: — Filho, vamos ter que nos mudar por causa do meu trabalho.
Rafael: — Mas, pai e o Leandro? somos tão amigos ... e a escola...???
Pai: — Filho, é preciso!! Depois a gente conversa, vá se despedir do Leandro. Eu já falei com sua professora.
Vamos amanhã, pela manhã.
Cena 3
Rafael se aproxima de Leandro,meio triste, e diz:
Rafael: — Tenho uma coisa pra te dizer. Eu vou me mudar, é por causa do trabalho do meu pai. Nós vamos
amanhã.
Leandro: — Puxa! Agora que somos tão amigos.
Rafael: — Mas a gente se fala por telefone e pela internet! E quem sabe nas férias eu venho pra cá?
Leandro: — Então, tá bom!
Os dois se abraçam
Cena 4
Entra o pai de Rafael com uma garrafa de cerveja:
A esposa diz: Antônio, você sabe que isso te faz mal.
Antônio: — é só uma cervejinha pra comemorar!
E tira a esposa pra dançar...
Após sete anos, o reencontro.
Rafael: — Quanto tempo, amigo!como você mudou!
Leandro: É, (Leandro coçando a cabeça, meio que disfarçando) - você também!
Rafael: — Estava me lembrando quando você me ensinava matemática
Leandro: — É!
Nisso chega alguém:
Bandido: — “Coe, maninho”, tão te esperando lá, pra contar a mercadoria que chegou, uns produtos novos (um
bandido,disfarçando por causa do Rafael)”
Leandro: — Tá bom! “Tô ralando neguinho”, depois a gente conversa ( Leandro se dirigindo a Rafael)
Cena 5
Rafael chega em casa e (sua mãe, ao fogão):
Rafael: — Mãe, encontrei o Leandro, está muito bem, está trabalhando com uns caras!? Fiquei muito feliz de
encontrá-lo. Agora que voltamos, vai ter mais tempo pra matar a saudade.
Mãe: — É meu filho, que bom que você está feliz! Estou indo fazer compras, quer ir comigo?
Rafael: — Vou sim, mãe!
(E saem de cena)
Cena 6
Narrador: A criação, tanto de Rafael, como a do Leandro, se apresenta em lares divididos, sem nenhum tipo de comunicação entre pai e mãe.
Rafael e sua mãe são muito ligados um com o outro e isso serve de ajuda, já a mãe do Leandro, parece não suportar mais
a situação. E o Leandro não ajuda em nada com sua revolta.
O Pai de Leandro chega em casa pra almoçar, chega confuso. abre as panelas.
(Está tudo à mesa: talheres , pratos arrumados etc.)
Pai de Leandro: — “Merda”, você não presta mesmo pra nada! Eu não gosto de frango cozido assim, eu gosto com
batatas.
Mãe de Leandro: — Mas... (A mulher, decepcionada, sem entender nada)
Pai de Leandro: — Ah! Vou almoçar fora, não me espere em casa!
(A mulher começa chorar começa a chorar!)
79
Leandro chega:
Leandro: — Por que está chorando?
Mãe: — (gritando) É seu pai aquele desgraçado, ele vive me maltratando.
Leandro: — Por que ele te trata assim? Dá vontade de me revoltar, de sair fazendo um monte de “merda” por aí...
Mãe: — Vai mesmo, Leandro. Não quero conversa, não. Vá procurar o que fazer!
Leandro: — A senhora também é culpada!
Mãe: — É, sou culpada de ter colocado você no mundo.
Leandro: — Ah! vocês vão ver então , vão ver o que vai acontecer!?
(Leandro sai)
Cena 7
Na casa de Rafael o pai e a mãe também discutem:
Antônio: — Maria, você passou minha camisa?
Mãe de Rafael: — Eu passo rapidinho, eu...
Antônio: — Sua vagabunda, o que você fica fazendo em casa?( chega com sinal de que bebeu um pouco)
Mãe de Rafael: — Eu tava dando faxina no quarto do...
Antônio: — Aquele vagabundo do Rafael, imprestável.
Mãe de Rafael: — Não fala assim dele, ele é esforçado e bom filho.
Antônio: — Bom, nada! (e saí)
Rafael chega:
Rafael: — Mãe, por que você está chorando? É o pai, né? Por que ele faz isso com a senhora?
Mãe: — Teu pai está cansado!
Rafael: — É, pode ser. Mas não fique assim,não! Esquece isso, vou te ajudar na faxina da casa, só não chora
mais, tá?
Nesse momento, o pai de Rafael vai pro bar pra beber sozinho e encher a “cara”. E o pai de Leandro se encontra com
a amante .
Depois de algumas horas...
O pai de Rafael agride a esposa, chuta Rafael, que está dormindo num colchonete no chão, e o obriga a dormir na
varanda, ao relento. Dizendo palavras de humilhação:
— Seu miserável, você não vai dar em nada, é um imprestável, um nada!
(E Rafael começa a chorar!)
Narrador:
Pra muitos, as vozes do Bem e do Mal podem
ser ouvidas e influírem em suas decisões.
No dia seguinte, Leandro e Rafael saem pra rua:
Rafael: — E, aí !
Leandro: — Lá em casa está pesado!
Rafael: — Lá em casa também está um pouco difícil. Mas vamos superar!
— É, vamos sim. (Leandro sai pra beber e “ afogar as mágoas” )
(Nesse momento, na mesa do bar, o Bem e o Mal aparecem)
O Mal: — Isso mesmo, seu pai e sua mãe não te merecem. Você é um cara inteligente.
O Bem: — Vai pra casa! Você já bebeu demais!
O Mal: — Que nada, você “tá numa parada boa”. Trabalha com “os caras” e nem é viciado. Aqui pra nós, “Vagão”
falou que quando você quiser, ele traz uma “parada” pra você. É só hoje, pra aliviar a tensão .
O Bem: — Não faça isso!!
80
(O Bem não consegue ser ouvido.)
Leandro liga pra Vagão:
Leandro : — Poh! Vagão, traz aquela “parada” pra mim, “cara”. Estou “boladão”, com uns problemas lá em casa.
Vagão chega:
Vagão: — Poh , meu “chapa”, não fica assim, não.Trouxe um “negócio bom”! Essa é da Colômbia!
(E saem de cena)
Rafael sai de casa e, logo, na rua, vários pensamentos o atormentam.
O Mal: — Hei! Hei!
Mas Rafael só consegue ouvir as palavras do Bem:
— Calma!
— Paciência!
— Tudo vai dar certo!
O Mal sai frustrado!
Rafael repete as palavras do Bem:
— Tudo vai dar certo!
Leandro está voltando pra casa, muito doidão, bêbado e drogado, passa pela casa de Rafael e o encontra dormindo na
varanda . Rafael se assusta com o barulho e levanta pra falar com Leandro, que quase cai de bêbedo.
Rafael: — O que aconteceu?
Leandro: — Vou matar aquele cara!
Rafael: — Quem, Leandro?
Leandro: — O meu pai aquele desgraçado!
Rafael: — Não faça isso. Calma, o que aconteceu?
Leandro: — Meu pai tem chegado bêbedo em casa, espancando minha mãe, por isso eu “enchi a cara e fumei
unzinho”. Pra ficar igual aquele canalha. Ele não vive reclamando de mim? Vai aprender uma lição, nunca mais
encosta a mão em minha mãe!
Rafael: — Meu pai, também, tem brigado com minha mãe e bebido muito, mas não quero ser igual a ele! Eu
quero ser diferente dele. Eu posso ser diferente.
(Já é de manhã. Rafael entra em casa, após seu pai ter saído para o trabalho. E Leandro vai pra sua casa.)
Cena 8
Narrador:
Quinze anos depois, no campo, próximo a casa do Rafael, duas crianças jogam futebol, enquanto a mãe prepara o
lanche...
— Vamos pra casa, estou com fome.
— Só mais uma partida e a gente vai, tá bom?
E nesse instante, Rafael (15 anos mais velho) vem buscar seus filhos para o lanche...
— Filhos, vamos lanchar, sua mãe está esperando!
Então, os filhos vão correndo pra casa, e seu pai ( Rafael) se vê pensando alto:
(interage com o público)
monólogo
“ - Há quinze anos atrás, naquela mesma noite, Leandro matou o pai com três tiros e se afundou nas drogas. Perdendo
tudo e passando a mendigar, logo ao ser abandonado por sua mãe.”
(surge Leandro como mendigo e ao lado, o pai de Rafael, numa seção do Alcoólicos Anônimos.)
“ — Meu pai aceitou ser tratado no AA e continua desde então, sem beber. Hoje, sou professor de matemática
numa universidade, tenho uma esposa e dois filhos.”
Indo para casa, resolve olhar pra trás, quando vê Leandro e volta dizendo algo:
Rafael: — Leandro que estado você chegou!
Leandro: — Não, não quero sua ajuda.
(Nisso, o Mal se aproxima, soprando para não aceitar ajuda)
81
Mas Rafael segura forte a mão de Leandro, fazendo com que o Mal não resista e saia.
(O Mal sai de cena rastejando.)
Rafael: - Eu conheço um lugar de reabilitação. Eu te levo até lá.
Fique alguns dias, por favor! Vou te acompanhar nesse momento.
(Um pouco baleado mas em estado de lucidez, após a saída do Mal)
Leandro diz:
— Realmente, preciso de ajuda, Rafael. Eu vou me dar essa oportunidade. Quero mudar.
Rafael levanta Leandro do chão e se abraçam emocionados. Nesse momento, vem em suas mentes a lembrança de tudo que se passou!
Rafael insiste:
— Calma, vai dar tudo certo!
Narrador:
Sempre há uma esperança por menor que seja, pode ser uma semente escondida ,que precisa despertar e florescer,
precisando ser regada!
Quem irá regá-la?
82
A Cidade Perdida dos
Meninos-peixes
Zemaria Pinto de Figueiredo
[email protected]
Personagens: Menino-terra
Pai/Professor
Mãe
Menino 1
Menino 2
Menino 3
Menina
Ancião 1
Ancião 2
Boto-vermelho
Boto-cinza
Mãe-velha
Observações: o Menino 1 deve ser o menor e o mais novo do grupo; nas cenas II, VI, VIII e X a XIII outras crianças podem
ser colocadas em cena na condição de extras; o mesmo é válido para as cenas XI e XIII, quando outros extras podem representar os pais das crianças.
Cena I
Rua. As pessoas movimentam-se como se estivessem dentro d’água. A luz de cena dá a impressão do movimento da
água. Os atores aparentam ter o cabelo molhado. As roupas dão a impressão de estarem molhadas. Há muita cordialidade.
Eles trocam cumprimentos. Nesta cena, valoriza-se o gestual, a coreografia. O texto é banal: bom-dia, com licença, obrigado etc. Deve-se buscar mostrar ao público a índole pacífica do povo-água.
83
Cena II
Sala de aula. O professor é suave, mas não é afetado. As crianças parecem não prestar atenção à aula; ou seja, tudo
muito normal, mas sem violência.
PROFESSOR
Nossa aula de hoje é sobre as origens do nosso povo. Já sabemos que a água é o elemento fundamental da
vida. Sem água não há vida. Nosso corpo é formado de 70 por cento de líquido. Os 30 por cento restantes são
apenas a estrutura que nos sustenta. Senão andaríamos nos derramando por aí...
MENINO 3
Professor, é verdade que existem pessoas como nós que vivem fora d’água?
PROFESSOR
Esta é uma lenda muito antiga... A lenda do povo-terra... (Mudança de luz, clima de sonho, as crianças ficam
quietas e ouvem embevecidas). No começo dos tempos, vivíamos todos sob as águas. Próximas uma da outra,
havia duas cidades, que viviam num clima de paz e fraternidade, se ajudando mutuamente. Mas um dia o povo
da outra cidade reuniu-se, armou-se e invadiu nossa cidade e nos escravizou e nos forçou a trabalhar para eles e
fomos humilhados. Os que tinham o poder e as armas, entretanto, continuaram brigando entre si para aumentar
ainda mais o seu poder. E outros grupos se separaram e fundaram outras cidades que guerreavam entre si. Os
vencidos se tornavam escravos dos vencedores. Assim foi por muito, muito, muito, muito tempo...
Mas um dia um escravo falou para o seu grupo – basta! Não podemos continuar assim. Devemos reagir e retomar de volta os nossos lares. E um escravo falou para outro, que falou para outro, que falou para outro... Logo,
todas as cidades tinham o seu grupo de rebeldes. Foi um período ainda mais selvagem que o anterior. Os rebeldes
venceram, e os derrotados, que haviam antes traído seus irmãos, foram punidos com o exílio na terra, condenados
a viver sob e o sol e a chuva. O seu elemento vital passou a ser o ar, o oxigênio...
MENINA
Você já viu um desses homens-terra?
PROFESSOR
Bem, na verdade, não... Mas muitos dos nossos já os viram... De longe, apenas, que eles são muito perigosos.
São predadores terríveis... Mas eles nunca perderam o contato com a água. Para se deslocar de um lugar para
outro usam uma coisa que parece uma baleia gigante chamada navio. E nas guerras que continuam a travar
entre si, usam um artefato maléfico chamado submarino, que tem o poder de navegar submerso, como nós, seus
antepassados...
MENINO 1
Você não terminou de contar a história...
PROFESSOR
Claro, claro... Então, após a vitória dos rebeldes e a expulsão dos traidores, nosso povo se reuniu novamente
e fundou esta grande cidade, onde até hoje reina a paz e a fraternidade. Onde cada um sabe a sua responsabilidade e cumpre com suas obrigações. Onde ninguém tem mais que ninguém, ninguém tem mais do que precisa
e ninguém manda mais que ninguém. Talvez hoje, meus filhos, os exilados sejamos nós... Mas esta é uma outra
história...
Cena III
Casa. Um casal adulto e um casal de crianças, seus filhos.
84
MÃE
É preciso sempre, meus filhos, refletir antes das refeições: o nosso alimento, uma dádiva dos espíritos da Natureza, é fruto de nosso trabalho.
PAI
E é preciso lembrar sempre que o nosso trabalho é digno e que acima de todos os interesses individuais deve
prevalecer o interesse da coletividade.
MENINO 1
Pai, o que é coletividade?PAI (Para a Menina)
Você sabe, responda...
MENINA
Coletividade é a gente e mais todo mundo da nossa cidade, ora... (Faz uma careta para o menino)
MÃE
Não zombe do seu irmão. É importante que ele entenda que a competição só tem sentido quando é para o bem de todos.
MENINO 1
Mãe, e o que é competição?
Música sobe; Menina faz careta zombeteira, mas responde por meio de mímica – e assim eles ficam por alguns instantes se comunicando, sem que o público ouça o que falam, mas entendendo que há um clima de carinho, cordialidade e
confiança mútua naquela família. As crianças retiram-se, os pais começam a desarrumar a mesa.
PAI
Amanhã devo sair mais cedo, pois estou escalado para o mutirão da colheita.
MÃE
Não se preocupe, meu bem, eu cozinho de novo, depois você me dá uma folga...
PAI
No fim de semana, eu prometo, você nem chega perto da cozinha... (Eles se abraçam)
Cena IV
O mesmo cenário. O menino entra em cena, assustado.
MENINO 1
Mãe, pai... Tem uma coisa estranha lá fora...
O Pai atravessa o cenário no sentido inverso ao da entrada do Menino, que o acompanha. Passados alguns instantes,
preenchidos por música, o Pai retorna com outro menino nos braços, seguido pela Mãe e pelas duas crianças. O novo menino veste-se minimamente, com os restos de uma bermuda; está “molhado”, sujo e inconsciente. Cuidadosamente, o pai
o coloca no centro do cenário.
PAI
Precisamos comunicar ao Conselho de Anciãos. É um fato extraordinário...
MENINA (Escondendo-se por trás da Mãe)
É um menino-terra, mãe?
MENINO 1 (Com ar superior)
Não sei por que você tá com medo...
MÃE
Precisamos cuidar dele. Está muito debilitado...
PAI
Eles são diferentes de nós; embora a aparência física seja a mesma, biologicamente somos muito diferentes.
MÃE
Mas precisamos fazer algo com urgência. Ele parece estar morrendo...
PAI
Está apenas desmaiado... Fiquem com ele enquanto vou comunicar ao Conselho de Anciãos.
MENINA
Não demore, pai...
MENINO 1 (Dançando ao redor da Menina)
Você está com medo... Você está com medo...
O Menino-terra começa a se mexer lentamente, como a se acostumar com o novo ambiente. De repente, começa a arfar
até soltar uma golfada de água. Senta-se e tosse, debilmente. A mãe e as duas crianças, assustadas com a golfada, recuaram. Aos poucos, a Mãe se aproxima.
MÃE
Você me entende? (O Menino-terra faz um leve gesto positivo com a cabeça)
MÃE
De onde você veio? (O Menino-terra olha para ela interrogativo, mas nada responde)
MENINO 1
Como é seu nome? (O Menino-terra mantém o mesmo olhar interrogativo, como se buscasse em seus interlocutores uma resposta)
MENINA
Você se perdeu? (Abrindo levemente os braços, o Menino-terra faz um gesto de dúvida)
MÃE
Ele está muito cansado e faminto... Se você nos entende, diga-nos alguma coisa, uma palavra...
85
MENINO-TERRA (Gaguejando, quase inaudível)
Água...
MENINO 1
Ele quer água... (Faz um gesto largo) Fique à vontade... Isso tudo é água...
O Menino-terra encolhe-se como a se proteger de tanta água. Chegam o Pai e dois anciãos.
PAI
Vejam... Acreditam agora?
ANCIÃO 1
Não duvidamos de você, meu caro. Mas é um acontecimento tão singular que duvidamos de nós mesmos...
ANCIÃO 2
É fantástico...
ANCIÃO 1
Diga-nos, menino, quem é você? De onde você veio? (O menino encolhe-se mais ainda)
MÃE
Já tentamos conversar com ele, mas ele parece traumatizado. Só falou uma palavra: água...
ANCIÃO 2
Se ele está fora do seu elemento, é natural a confusão. Deixemos que descanse. Alimentem-no com moderação
e coloquem-no para dormir. Talvez amanhã consiga conversar conosco.
ANCIÃO 1
Outra coisa: mantenham-no sob reserva. Não deixe que se transforme em objeto de simples curiosidade. Isso
pode incomodá-lo também.
ANCIÃO 2
Aos poucos ele compreenderá o nosso mundo e se adaptará a ele. (Os dois anciãos saem. Pausa)
MENINO 1 (Escandindo bem as sílabas)
Mãe, o que é se-a-da-pi-ta-rá?
Cena V
Em cena o Pai e a Mãe. Ele sentado, ela andando de um lado para o outro, nervosa.
86
MÃE
Algo me diz que esse menino-terra só veio nos trazer problemas...
PAI
Você está se precipitando. Ele é um bom menino, muito simpático, já fez amizade com todas as crianças da
vizinhança...
MÃE
É, mas tem algo errado... Aos poucos, ele começa a se lembrar da sua vida na terra. Imagine que hoje, no almoço, ele reclamou da minha comida. Disse que estava fria e que não agüentava mais comer folhas e raízes...
PAI
O organismo dele deve estar sentindo falta de carne. Você sabe que na terra eles criam os animais em casa,
para depois matá-los e comê-los?...
MÃE
São uns selvagens... E eu temo que ele fique assim também...
PAI
Não exagere... Cada cultura tem uma maneira própria de ser. Nós não desenvolvemos esse gosto por carne. Os
peixes são nossos aliados. Na terra, entretanto, eles têm o fogo – você sabia? –, que deixa os alimentos bem macios
e sem gosto de sangue...
MÃE
Não sei como você sabe de tudo isso... Parece até que já esteve entre eles...
PAI
Nos livros, meu bem, nos livros... Muitos dos nossos antepassados tentaram viver na terra, mas não conseguiram se adaptar e voltaram contando histórias fantásticas, que não sabemos se são reais ou mera fantasia...
MÃE
Se fôssemos dar ouvidos a tudo que falam do povo-terra...
Lideradas pelo Menino-terra, várias crianças entram correndo, simulando uma perseguição.
MÃE
O que é isso?
MENINO-TERRA (Sem parar)
É uma guerra espacial. Nós precisamos exterminar esses espíritos malignos que querem dominar nossa galáxia...
MENINO 1
Morra, mutante maldito...
MENINO 2
Morra você, seu monte de gosma fedorenta...
MENINO 3
Assim não vale. Você tem que morrer, você é do mal, ele já matou você...
MENINO 2
É isso mesmo, ou você morre por bem ou por mal...
Confusão generalizada. Os meninos se atracam, se derrubam. Os pais tentam apartar. De fora da confusão, o Menino-terra aplaude a briga e incita os “do bem” a baterem de verdade nos “do mal”. Após alguns instantes, a situação se
acalma. As crianças choram. Os pais estão atordoados, não sabem a quem atender. Apenas o Menino-terra parece ter o
domínio da situação.
MENINO-TERRA
Vocês são uns molengões, desse jeito vão ser sempre escravos dos invasores. Eu não brinco mais com vocês.
Não gosto de ser derrotado... (Sai)
MÃE (Espantada)
Do que ele está falando?...
PAI
Deve ser algum tipo de brincadeira das crianças da terra...
MENINO 3 (Para os outros meninos, autoritário)
Vocês viram? Ele se zangou porque vocês não sabem brincar. De agora em diante, eu serei o líder e quando eu
matar alguém, só pode levantar com a minha ordem. Eu sou o chefe do comando de extermínio...
MENINO 2
Chefe coisa nenhuma, o chefe sou eu, só eu posso matar...
MENINO 1
Vai ter porrada... Vai ter porrada...
PAI e MÃE (Ao mesmo tempo, em falas cruzadas, apartando os meninos, que socam e chutam o ar)
Parem, parem... Eu não admito brigas... Onde já se viu... Parecem uns bichos raivosos... Vão ficar de castigo...
Tem que respeitar o colega... etc. (Os meninos saem)
MÃE
Eu não lhe falei?
PAI
Ora, meu bem, isso é coisa de criança...
MÃE
Alguma vez você viu essas crianças agindo desse jeito? E você, quando criança, alguma vez agiu como louco e
agrediu seus colegas?
PAI
No nosso tempo era diferente...
MÃE
Não, nosso povo sempre foi pacífico e fraterno... As histórias de guerras só existem nos livros antigos.
Cena VI
As crianças estão reunidas em torno do Menino-terra. As silhuetas do Pai e da Mãe, inicialmente, e, posteriormente,
as dos anciãos, devem ser percebidas pelo público.
MENINO-TERRA
Aqui é um saco, sabia?... Não tem emoção, cara... Lá na minha cidade, “escreveu, não leu, o pau comeu”! (Imita
87
alguém atirando) Pá! Pá! Pá!.. Uma cicatriz vale tanto quanto uma tatuagem... Neguinho marcou bobeira, amanhece com a boca cheia de saúva... Varadouro é cafofo de otário... Quem não é “bad boy” vai pro céu mais cedo,
tocar forró pra anjo...
MENINO 1
Como é aquele negócio de automóvel, que você falou ontem?
MENINO-TERRA
Automóvel é uma caixa de aço, em cima de quatro rodas... Tem de vários tamanhos, e, conforme o tamanho,
muda de nome: ônibus, caminhão, carreta... Mas na rua é uma beleza só... Tem de duas rodas, também, que é a
motocicleta, e é mais radical ainda... O sujeito anda se equilibrando pra não cair, a 200 quilômetros por hora...
MENINO 2
Vamos brincar de rua da terra?... (Algazarra de apoio)
MENINO-TERRA
É assim, ó... Cada um de nós é um carro, ou uma motocicleta... A gente tá numa rua lá da terra, aí quem for mais
forte vai em frente e vai derrubando os outros, entenderam? Isso é o trânsito numa cidade lá da terra...
Eles se ajeitam. O Menino-terra fica para trás. Os outros estranham, chamam-no para frente, mas ele permanece atrás.
Ele faz a contagem regressiva e dá a partida. A confusão é geral. Percebe-se, então, que a estratégia do Menino-terra era de
ficar para trás para ter o prazer de ultrapassar e derrubar os demais oponentes. Ao final, apenas ele está de pé.
MENINO-TERRA (Eufórico)
Vocês não são de nada. Eu sou forte! Eu sou um matador! A minha máquina é mortífera! (Imita uma metralhadora) Rá-tá-tá-tá-tá...
MENINO 1 (Choroso)
Você me bateu com força...
MENINO-TERRA
Porque você é uma frutinha podre... Puá! Caiu e vai cair de novo (Derruba o menino com um golpe de jiu-jítsu,
judô ou algo parecido. O menino sai chorando, com o braço machucado). E aí, alguém mais quer cair? (Pausa) Então, vamos caçar ETs! Quem não pegar pelo menos um ET vai ter que raspar a cabeça!... (Saem correndo)
Cena VII
Entram os pais e os anciãos, que a tudo assistiram.
88
ANCIÃO 1
A situação está sob controle...
ANCIÃO 2
Você quer dizer, meu caro, que a situação ainda não está fora de controle...
ANCIÃO 1
E não é a mesma coisa?...
ANCIÃO 2
Não, não é, não... Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Você é muito otimista...
ANCIÃO 1
Você é que é pessimista...
ANCIÃO 2
Não, eu sou realista...
PAI
Por favor, senhores...
MÃE
A situação é grave...
ANCIÃO 2
Gravíssima!
ANCIÃO 1
Bah, vocês exageram! É apenas uma criança...
ANCIÃO 2
Uma criança diferente...
ANCIÃO 1
Especial, é o que você quer dizer... Especial...
PAI
Senhores do Conselho, peço sua atenção. Estamos de acordo quanto a um ponto: nossa rotina foi alterada.
Podemos não ter certeza quanto à gravidade dessa alteração, mas estamos cientes de que ela existe...
MÃE
Nossas crianças estão sendo afetadas por idéias de violência e competição. Tememos pelo futuro delas e de
nossa cidade...
ANCIÃO 2
Mas o que fazer? Vocês têm alguma idéia? Mandá-lo de volta para a terra seria o mesmo que condená-lo à
morte...
ANCIÃO 1
Não sabemos de onde ele veio ou como veio parar aqui...
ANCIÃO 2
A sua sobrevivência e adaptação ao nosso meio ambiente foram algo próximo a um milagre...
ANCIÃO 1
A verdade é que, mesmo reconhecendo o perigo que esse menino possa vir a representar, não temos outra alternativa, a não ser contar com vocês, pais, para que façam com que seus filhos sejam mais fortes espiritualmente
que esse...
ANCIÃO 2
Esse demoniozinho...
ANCIÃO 1
Não fale assim. É apenas uma criança fisicamente saudável...
ANCIÃO 2
Mas mentalmente doentinha, doentinha...
PAI
Por favor, senhores, não recomecemos...
MÃE
Então, podemos combinar assim: faremos uma campanha entre os pais, para que fortaleçam o caráter de seus
filhos, e que estes procurem convencer o Menino-terra a se tornar nosso aliado (Pequena discussão, mas todos
concordam).
Cena VIII
Liderados pelo Menino-terra, as crianças entram em cena. O Menino que fora derrubado tem um dos braços numa tipóia, e assim ficará até o fim da peça. Cada um deles tem um peixe de tamanho médio nas mãos.
MENINO-TERRA
Capturamos os malditos ETs. Agora vamos levá-los para serem dissecados e analisados pelos nossos cientistas.
Precisamos descobrir como os miseráveis conseguem viver sem respirar e só comendo folhas.
MENINO 1
Mas peixes não respiram...
MENINO-TERRA
Eu sei estúpido, e você, que é um menino-peixe também sabe... A gente está fazendo de conta que estes ETs são
desconhecidos... Porque ET quer dizer extraterrestre, ou seja, de fora da terra, logo peixe e menino-peixe também
são ETs...
MENINO 3
Quer dizer que se um de nós, do povo-água, for para terra é isso que vão fazer conosco?
MENINO-TERRA
Vocês seriam uma tremenda descoberta científica... Uma gente que vive dentro d’água, sem ar, sem fogo, sem
avião, nem automóvel... Na verdade, é mais fácil acreditar em ET do espaço que em menino-peixe... Até porque esse
negócio de viver embaixo d’água, lá na terra é só lenda... Eu vi na televisão um filme sobre a Atlântida, que era uma
cidade assim como a de vocês, dentro d’água... Mas só que eles eram bem mais espertos... Tem uns desenhos velhos
e bobos... Acquaman, Príncipe Submarino...
MENINO 1
– O que é televisão?
89
MENINO-TERRA
Saco! Vocês são uns babacas, mesmo... Televisão é um aparelho onde fica passando filme, desenho, videoclipe,
futebol, novela, noticiário nacional e internacional...
MENINO 1
E o que é...
MENINO-TERRA
Calma, calma... Eu explico tudo devagarinho, tim-tim por tim-tim... Ok?
Os “peixes-ets” são deixados de lado; eles se reúnem ao redor do Menino-terra, que, por meio de gestos, conta-lhes
sobre cinema, televisão, vídeo game etc.; seus gestos são sempre violentos; em alguns momentos, para ilustrar a narrativa,
ele agarra outra criança e a atira ao chão. Ao término da “narrativa”, os meninos estão extasiados.
MENINO 3
Pô, cara, que legal... Agora eu entendo porque que você diz que esse nosso mundo é um saco...
MENINO 2
Isso nem chega a ser um mundo... É só um saco...
MENINO 3
Eu tenho uma idéia. Se você chegou aqui e se adaptou, por que nós não podemos ir para a terra e nos adaptar
por lá?...
MENINO-TERRA
Por que você acha que eu ainda não fui embora? Porque eu não sei por onde ir...
MENINO 2
É simples, só precisamos subir, até a tona... Quando encontrarmos o ar teremos chegado...
MENINO 1 (Choroso)
Eu não quero ir...
MENINO-TERRA
Não é assim, tão simples. A terra é muito vasta. A chance de cairmos em um lugar desabitado é muito grande.
Podemos nos perder... Ou parar num país estranho... Podemos ser devorados por animais selvagens... Pior: se mudarmos de idéia, não saberemos retornar para a cidade de vocês...
MENINO 3
Pra mim, você está é com medo...
MENINO 1
Eu não vou...
MENINO 2
É isso mesmo, você está é com medo... Seu bunda-mole...
MENINO-TERRA
Eh, qualé, Mané? Eu não tenho medo de nada...
MENINO 1
Eu não vou deixar a minha mãe e o meu pai...
MENINO-TERRA (À menção dos nomes “mãe” e “pai” o Menino-terra tem um estremecimento)
O que você disse?
MENINO 1
Que eu não vou deixar meu pai, nem minha mãe, nem meus irmãos, nem meus avós... Não vou, não vou e
pronto...
MENINO-TERRA (Para si mesmo, bancando o durão)
Droga! Detesto admitir, mas esse idiotinha me fez lembrar que eu tenho uma casa e que meus pais já devem
estar preocupados com o meu sumiço.
Cena IX
O casal e seus filhos.
90
MÃE
Ele é de um mundo diferente do nosso...
MENINA
Mas, mãe, lá eles vivem bem melhor que a gente... Lá tem geladeira, refrigerante, sorvete, forno de microondas,
pipoca, pizza... Você sabe o que é um Shopping Center, mãe?
PAI
Se fôssemos para lá, você sabe o que iria acontecer? Seríamos aprisionados em um aquário e expostos à visitação pública, como fazem com os botos e peixes-bois...
MÃE
Alguns de nós seriam sacrificados para que os cientistas deles pudessem nos estudar...
PAI
E o que é pior: eles viriam procurar nossa cidade e saqueá-la e exterminar todos os nossos.
MÃE
Claro. Eles fazem isso entre eles mesmos: os povos que vivem nas florestas estão sendo dizimados...
MENINO 1 (Que ouvira tudo com muita atenção)
Está decidido: eu não vou!
MÃE (Abraçando-o)
Ó meu filho, você pelo menos tem juízo...
MENINO 1 (Cochichando pra Mãe)
Eu tenho é medo, mãe... Mas se você for eu vou...
MENINA
Vocês não têm o direito de nos impedir de ser felizes! (Sai, chorando)
PAI
Não adianta. Mais cedo ou mais tarde ele os arrastará consigo...
MÃE
Ele não conseguirá!...
Cena X
Cenário deserto. As crianças preparam-se para a fuga.
MENINO-TERRA
Se alguém está pensando em desistir, a hora é essa. Só não vamos admitir traição.
MENINO 2
Não se preocupe, estamos todos no mesmo barco... (Todos olham espantados para ele, que dá de ombros)
Maneira de dizer...
MENINO 3 (Cochichando para o Menino-terra)
Não sei se você já percebeu, mas tem uma menina entre nós...
MENINO-TERRA (Sem segredos)
E daí, cara? Na terra, você tem que se despir desses preconceitos bobos. As mulheres estão em todas... Ocupam
os postos que antes só eram de homens... São até candidatas a presidente da República...
MENINA
Diga para esses bobocas que na terra as crianças já não nascem mais da barriga das mães... São fertilizadas
in vitro e clonadas em laboratório...
MENINO-TERRA
Se eu não te conhecesse, diria que você tem assistido televisão demais... (Com voz de comando) Pessoal! Esta é
a nossa última missão na cidade do povo-água. Vamos sair quando todos estiverem dormindo. Só darão pela nossa
falta pela manhã, quando já estivermos muito longe... Vamos repassar o plano...
MENINO 3
Ponto número um: arrumar as sacolas de mantimentos;
MENINO 2
Ponto número dois: cada mochila deverá ter pelo menos uma lanterna;
MENINA (Lendo)
Ponto número três: cada mochila deverá ter pelo menos uma arma – um facão, um arpão ou algo similar... Pra
que isso, gente?...
MENINO-TERRA
Como, “pra que isso”?...
MENINO 3 (Resmungando)
Mulheres!...
91
MENINO-TERRA
Nós vamos nadar durante horas até encontrarmos a superfície. Depois vamos ter que nadar em direção à terra.
Não sabemos aonde vamos parar. Não sabemos os perigos que vamos encontrar. Ou você pensa que vai a um passeio no parque? (Pausa) Aliás, se você for dar um passeio no parque, lá na terra, nunca é demais se prevenir... São
lugares muito perigosos e violentos...
MENINO 3
Ponto número quatro: é expressamente proibido afastar-se dos outros por mais de dois metros...
MENINA
Ei, e como é que eu vou ao banheiro?
MENINO-TERRA
Banheiro? Você vai fazer tudo ao ar livre, mesmo... Mas a gente vira de costas...
MENINO 2
Ponto número cinco: é absolutamente proibido voltar atrás. Adeus, cidade-água. Adeus para nunca mais!
MENINA (Visivelmente emocionada)
Ponto número seis: por mínima que seja, até por brincadeira, é proibida toda e qualquer manifestação de sentimentalismo, como saudades dos pais ou dos irmãos (Desata em choro convulso)...
MENINO-TERRA
Acho que temos nossa primeira baixa... (Falando para si mesmo) O pior é esse nó na garganta... Desde ontem
que eu não penso em outra coisa a não ser voltar pra casa, rever meus pais, meus amigos... (Ele enxuga uma lágrima furtiva e assoa forte o nariz) Pessoal! É o seguinte: essa viagem é muito arriscada. Nós podemos chegar onde
queremos, mas também podemos nos perder para sempre... Vocês não precisam ir comigo... Vocês têm a cidade de
vocês, as famílias de vocês... Eu não... Esse não é o meu mundo... Eu preciso arriscar... Vocês não...
MENINO 3
Negativo, nós vamos com você... (Em dúvida) Não vamos?...
MENINO 2 (Sem muita convicção)
Vamos, sim...
A menina está sentada, ainda chorando. Todos olham para ela.
MENINO-TERRA (Carinhoso)
Não tem problema... Você fica... Nós não vamos ficar chateados... Quem sabe um dia a gente volta e leva você
para um passeio...
MENINA (Ainda emocionada)
Não, eu não quero ficar presa num aquário... O meu lugar é aqui... Aqui eu sou feliz... Mas eu desejo boa sorte
pra vocês...
Cena XI
Os meninos colocam as mochilas nas costas, os pais e os anciãos entram em cena, seguidos por uma mulher de porte
majestoso, idade indefinida, vestida de maneira diferente, muito elegante, que vai se manter, por toda a cena, em segundo
plano.
MENINO-TERRA (Meio sem graça)
Vamos fazer uma excursão...
ANCIÃO 1
Não precisa mentir, meu filho...
ANCIÃO 2
Nós viemos aqui justamente desejar-lhes boa sorte nessa que será uma longa jornada...
PAI (Dirige-se às crianças)
Nós estamos aqui representando os pais de vocês, que por estarem muito tristes, preferiram não vir, para que
suas lágrimas não os impressionem... Na verdade, querem que vocês guardem deles apenas lembranças alegres,
não a tristeza de um adeus...
A Menina abraça-se à Mãe. Os outros meninos deixam transparecer no semblante o medo e a dúvida.
92
MENINO-TERRA
Quer dizer então que vocês não vão fazer nada para nos impedir de ir embora?
ANCIÃO 1
O que podíamos fazer já fizemos...
ANCIÃO 2
Não há o que temer... Vocês estarão protegidos e serão guiados por amigos nossos, que não deixarão que sofram nenhum ataque covarde...
ANCIÃO 1
Vocês sabem... Essas águas guardam mistérios... E nem todos que nelas habitam merecem nossa confiança...
ANCIÃO 2
Infelizmente, nossos amigos só poderão acompanhá-los enquanto vocês estiverem dentro d’água... Eles detestam o ar...
MÃE
E se um dia quiserem voltar, estaremos esperando por vocês (Para o Menino-terra)... Você também, que já é
um dos nossos...
MENINO-TERRA (Tentando disfarçar a melancolia com mau-humor)
Bem, muito obrigado, vocês são muito bons... Bons demais, aliás... Eu acho que lá na terra vocês não se criam...
Vãobora, pessoal... (Visivelmente constrangidos, os meninos o seguem para fora de cena)
ANCIÃO 2 (Enigmático)
Bem, vamos ver por quanto tempo vai durar a aventura...
Cena XII
Os meninos em viagem. Inicialmente, vemos aquela coreografia do início, simulando o movimento dentro d’água. Na
seqüência, eles param e começam o seguinte diálogo.
MENINO 2
Vamos dar uma parada... A gente nada, nada e não chega a lugar nenhum...
MENINO 3
Não me diga que você está arrependido...
MENINO 2
E você? Não está?
MENINO 3
Ora, no nosso trato não cabia arrependimento...
MENINO-TERRA
Vocês podem não estar arrependidos, mas estão em dúvida... Eu também estou em dúvida...
MENINO 3
Dúvida? Que dúvida?
MENINO-TERRA
Será que estamos indo no caminho certo? Eu não confio nesses botos que nos servem de guias...
MENINO 2
Mas eles são amigos. Devemos confiar neles.
MENINO 3
Eles nos protegem... Foram mandados pela Mãe-velha...
MENINO-TERRA
Mãe-velha?...
MENINO 2
É... Ela é a mais antiga e a mais sábia representante do nosso povo. É a líder do Conselho de Anciãos...
MENINO 3
Dizem que ela é do tempo em que ainda nem existia o povo-terra...
MENINO 2
Ela sabe de encantos e magias, segredos que só os anciãos podem saber...
MENINO-TERRA
Eu só sei que lá na terra a gente não confia em boto. Eles destroem as malhadeiras, atrapalham os pescadores... Contam que em noite de lua, eles se transformam em rapazes que fazem filhos nas moças bobocas e nunca
mais aparecem...
MENINO 3
Isso mostra como eles são inteligentes...
93
MENINO 2
Quando eles atrapalham os pescadores, na verdade estão defendendo a espécie...
MENINO-TERRA
Pra mim, isso tudo não passa de um pesadelo... (Ele começa a relembrar) Um dia, eu estava de férias no interior... Me banhava na beira do rio... De repente, ficou tudo escuro... Quando acordei, estava na cidade de vocês...
Eu tinha virado um menino-peixe... E agora sou guiado e protegido por botos... Eu devo estar sonhando mesmo...
Daqui a pouco eu acordo e vai estar tudo bem...
MENINO 3
Ei, vamos deixar de conversa e vamos pra cima... (Eles se entreolham por um breve instante)
MENINO-TERRA
Não!... Vamos voltar...
MENINO 2
É isso mesmo, vamos voltar que eu já estou com saudade de casa...
MENINO-TERRA
Ninguém tem mais saudade de casa do que eu... Mas eu não tenho direito de trocar a minha saudade pela
saudade de todos vocês... Vamos voltar!...
MENINO 3
Arregou... Bundão...
MENINO-TERRA
Pode xingar a vontade... Um dia você vai me agradecer...
MENINO 3
Já começo a agradecer agora... Pra mim tudo aquilo que você falava era mentira...
MENINO 2 (Sem muita convicção)
Mentira...
MENINO-TERRA
É... Faz de conta que era tudo mentira... (À parte) Se é melhor pra você...
MENINO 3
E quer saber do que mais? Você não é um menino-terra coisa nenhuma... Você é menino-peixe também... Só
que é filho de boto com chocadeira...
Os dois se atracam e rolam pelo chão. Para apartá-los, entram em cena dois botos, vestidos de tanga, os corpos pintados, um de vermelho e outro de cinza. Os botos não falam, apenas emitem os sons característicos da sua espécie. E fazem
muito barulho, como se estivessem advertindo os meninos.
MENINO-TERRA
Ele me chamou de filho de boto com chocadeira...
MENINO 3
Eu quero voltar pra minha casa...
MENINO 2
Eu também quero voltar pra casa...
Os botos fazem gestos e emitem sons que dão a idéia de retorno, com o que todos concordam.
Cena XIII
Os pais, os anciãos e os irmãos aguardam o retorno dos meninos. Também a mulher misteriosa, a Mãe-velha, sempre
muito discreta. Os meninos chegam, pelas mãos dos botos. O clima é de alegria, menos para o Menino-terra.
94
ANCIÃO 1 (Ensaiando um discurso)
Meus amigos, nesta data solene...
ANCIÃO 2 (Afastando-o)
Sem discurso, sem discurso, seu velho xarope...
PAI
Em nome de todos os pais, eu quero dar as boas-vindas a vocês...
MÃE
Os filhos pródigos retornam ao lar...
MENINO-TERRA (Dramático)
Eu não retornei... O meu lar não é neste mundo...
Lentamente, a Mãe-velha dirige-se ao proscênio. Todas as atenções voltam-se para ela. Deve haver uma pausa
para criar um clima de suspense com a sua fala.
MÃE-VELHA (Dirigindo-se ao Menino-terra)
Meu filho, você quer mesmo voltar para o seu mundo? (Ele acena positivamente) Por que você quer voltar? Fale-me...
MENINO-TERRA
Sinto saudades de casa...
MÃE-VELHA
Ora, isso não é motivo suficiente... Todos nós sentimos saudade de algo que um dia tivemos e agora não temos
mais... Às vezes sentimos saudade até do que nunca tivemos...
MENINO-TERRA
Meu pai, minha mãe... Meus irmãos...
MÃE-VELHA
Aqui você encontrará carinho e compreensão... Esse é o alicerce da família...
MENINO 1
Mãe, o que é alicerce? (A Mãe dá-lhe um safanão)
MÃE-VELHA
Sem ele a família desmorona como um castelo de areia... Mesmo quando não se tem vontade de dar carinho e
quando não se compreende nada do que acontece, é preciso um esforço extra... Só assim pais, filhos e irmãos se
entendem...
MENINO-TERRA
Mas eu não sou daqui... Eu sou um estranho...
MÃE-VELHA
Meu querido, nem sempre nós conseguimos nos adaptar completamente ao ambiente a nossa volta... Tem sempre alguém chato com quem não simpatizamos... Alguém dando ordens, pisando no calo da gente...
MENINO 1
Buzinando atrás... bi-biii... (Outro safanão)
MÃE-VELHA
Eu, por exemplo, quando canso de ver gente, sumo... E nem dão pela minha falta... (Protestos gerais) Então, com
um pouco de boa vontade, você se acostuma...
MENINO-TERRA
Tem outra coisa, tia...
MÃE-VELHA
Mãe-velha, meu filho, Mãe-velha... Eu já não tenho mais idade para ser tia...
MENINO-TERRA
É que eu compreendi que além de carinho e compreensão vocês têm uma outra coisa que eu não sei explicar...
As pessoas se ajudam umas às outras... Elas não se atropelam, nem mesmo tentam ultrapassar quem está na
frente... Sabe Mãe-velha, logo que eu cheguei aqui, eu achava tudo muito lento, mas agora eu compreendi... O
importante não é chegar na frente... O importante é chegar... Assim todos chegam...
MÃE-VELHA
Maravilhoso... Você já é um dos nossos...
MENINO-TERRA (Insistente)
Mas se eu voltar para o meu mundo, eu vou ensinar isso para os meus amigos... E eles vão ensinar isso para os
amigos deles... E esses amigos ensinarão a outros amigos... E quando nós formos adultos...
A música sobe. Ele continua a falar e fazer gestos largos, dando a entender que todo o mundo seria abarcado pela sua
idéia. Quando ele termina, a Mãe-velha enxuga discretamente uma lágrima.
MÃE-VELHA
Você me convenceu, meu filho, você me convenceu. Se seu desejo é tão forte, será mais fácil realizá-lo...
MENINO-TERRA (Aproxima-se e beija a mão da Mãe-velha)
Muito obrigado, muito obrigado... Eu não vou decepcionar vocês...
MÃE-VELHA
Muito bem... Agora durma, que nossos amigos botos o levarão de volta para casa... Você só vai acordar lá... E se
95
lembrará de nós como se tivesse tido apenas um sonho...
MENINO-TERRA
Um lindo sonho...
MÃE-VELHA
Sim, um lindo sonho, que você passará a sonhar acordado...
O menino deita-se. A Mãe-velha passa a mão no seu rosto, ele adormece. O boto-cinza o toma nos braços, o vermelho o
segue. Eles saem. O povo-água dá-se as mãos e canta em coro.
Uma pessoa sonhando
o sonho de uma pessoa
é sonho se evaporando
é sonho sonhado à toa.
Duas pessoas sonhando
o mesmo sonho dourado
é sonho se desmanchando
caindo no mesmo ocaso.
Três pessoas pretendendo
o mesmo sonho tecer
é sonho se desfazendo
morrendo antes de nascer.
Mas se todos sonham juntos
um sonho de multidão
o sonho se realiza
no fundo do coração.
96
Teatro Adulto
(Professores e Pais)
Mulher: mas que Mulher
é essa Negra!
Dimas Caltagironi
[email protected]
Cena 1
Locutor: Nasce em 08 de dezembro de 1958, Altamira Gonçalves, baiana, negra. De personalidade inebriante.
Desde cedo transforma a sua existência numa história de luta contra a discriminação e o preconceito racial. Esta
é sua história.
Abrem-se as coxias do teatro e dois atores surgem. Um ao extremo do outro. Um homem e outro uma mulher, mas ambos
negros. Vestidos de preto. Transmitem com verdadeira emoção a sua existência no mundo.
98
Carlos Gonçalves – Eu nasci dessa mulher. Desde cedo aprendi que não seria fácil ser negro. O médico, um homem branco aparentando mais ou menos 33 anos, disse que teria que atender as outras mulheres, e que somente
atenderia a negra depois que as brancas não estivessem em risco de vida. Altamira (minha mãe) deu a luz sem, se
quer, ter um atendimento superficial. Deu a luz na garra de seu corpo, na gana de sua esperança. Não podia se dar
ao luxo de esperar que aquele médico viesse a raciocinar na ação preconceituosa que tinha.
Altamira: Pera aí! Não foi bem assim. Naquele dia levantei cedo e pedi a Deus que me desse um filho homem.
O preconceito e o racismo é bem mais acentuado sobre a mulher negra. Pensei nos primeiros dias da escola. Nas
críticas pelo meu cabelo ser crespo. Diziam as minhas coleguinhas de sala de aula: - Nossa hoje o seu cabelo está
puro bom-bril. Saí de perto da gente, sua negrinha fedida. Pensava comigo mesmo! Será que não sou do jeito que
deveria ser? Branca, cabelos lisos e sedosos. Será que foi por castigo divino que nasci assim. Raciocinei e logo percebi no que essas meninas estavam me transformando numa pessoa ruim, que tinha vergonha da minha origem,
da minha cor, da minha raça, que tanto bem trouxe a humanidade, que tanta cultura ensinou. Não poderia ter
vergonha de mim mesmo, muito menos dos traços físicos da minha raça. Pensei! Por que as pessoas constituem
padrões de beleza. Aí então entendi! É para nós o negro, acreditarmos que somos feios e sujos. Acreditarmos numa
inferioridade da raça negra. Descobri neste momento o efeito da palavra discriminação. Vi que teria que enfrentar
as críticas, as ações preconceituosas e que tudo se tornaria mais fácil se não abaixasse a cabeça e chorasse e sofresse. Não queria ter filha mulher, porque tinha medo que ela fosse fraca como minha mãe. Que se escondia da
verdade e preferia ser triste e incrédula. Lembrei do meu pai, homem valente e consciente que brigou muito contra
o preconceito e a discriminação. Foi vencido pelo tempo, pela morte. Então pensei na hora do parto! Tenho que dar
a luz a este filho homem. Deverá ser como meu pai. Exemplo de honestidade, amor, perseverança e luta contra as
injustiças. Por isso não dei chance alguma à desgraça. O preconceito não é velado é, sobretudo, escondido dentro
de uma ideologia branca. Partir para o trabalho de parto e praticamente sozinha dei a luz ao meu primeiro filho.
E lembrei de minha de toda a minha vida e do meu falando: “Não desista nunca”. (Fecha-se a coxia e começa a
história de vida desta negra).
Cena 2
(Esta cena ocorre numa sala no Barraco da casa de Altamira. Nela estão modestos móveis e um Quadro do Navio Negreiro)
Mãe de Altamira: Menina? OH menina! Onde anda este diacho? Será que não aprende que quem brinca é fi de
branco. Fi de negro não pode se dar o luxo de brincar. Tem que aprender desde cedo o ofício do trabalho.
Pai de Altamira: Que é isso munhé. Deixa a menina brincar. Esta menina já ajuda a gente por demais. É uma boa
menina. Estudiosa, educada o que você quer mais?
Mãe de Altamira: Que ela se ponha no lugar dela. Ela não é fia de branco. Vai precisar como nóis e toda nossa
família de trabaiá para subreviver. Você conhece algum de nóis nego, que conseguiu passar a infância só estudando? Num cunhece. Num existe. Nois se quisé mudar de vida, ter um barraco para morar, uma profissão de nego de
verdade, têm que trabaiar desde cedo.
Pai de Altamira: Você acha que Altamira quer ser como você. Trabalhar na casa do soutro e chegar em casa morta
de cansada. Com a cara feia porque não tem nem tempo de sentar. Com mal humor... Sem um pingo de amor para
os filhos, porque é escravizada até hoje, como foram todos os nossos antepassados.
Altamira: Cala a boca! Você não sabe de nada! Acha que iludi a menina falando que o povo negro vai terminar os
estudos, fazer a tal da faculdade. Arranjar um emprego bacana é bom? Você ta muito enganado. Vai fazer ela sofrer
mais. Nóis nego nascemo para servir os brancos, nascemo com esta missão e isto não vai mudar nunca. Nem você,
nem este tal de movimento preto que você arranjou vão conseguir isto.
Pai de Altamira: Não é Movimento Preto, munhé. È Movimento Negro. Preto é cor, nós estamos lutando pela história de uma raça, que construiu a base de muita luta esta nação maravilhosa que é o Brasil. É claro que juntos com
os brancos, amarelos, indígenas. Mas nós também construímos e não podemos desistir de participar dos mesmos
benefícios dados aos brancos! A escola que ela estuda, é tanto dela como da branquinha ou da índia que estuda
com ela. Ela não pode deixar ninguém tirar isso dela. Nós não viemos com a missão de servir não. Nós viemos para
construir, construir juntos, com todas as raças a história e o desenvolvimento desta nação e dos povos desta nação.
O lugar que pode ocupar um branco, pode sim ocupar um negro.
Altamira: AH AH AH (Risos) Você ta ficando é besta, e ta deixando a minina maluquinha com esta estória. Acha
que alguma vez na vida vamos ser igual ao povo branco. Você tá ficando doido home. Acha que algum dia vou ser
chique e bonita como Dona Gercinda. AH AH AH (mais risos) (uma atriz entra em cena e a cena é congelada por
alguns segundos). Você sonha demais homem! Se ponha no seu lugar. Seu lugar de NE-GRO.
Pai de Altamira: A verdade é que você não quer que sua filha seja diferente de você. Você a quer cabisbaixa, falando sim senhor, sim senhora. O que é que eu tenho que fazer senhora? A Senhora quer que eu trabalhe na minha
folga? Eu sei, vai chegar o irmão da senhora! Você não tem auto-estima. Você acha que os negros são para servir,
porque você serviu a vida toda como sua mãe, como seu pai, seus avós e bisavós. Você acha que isto era correto?
Você não acha que devemos transformar esta história de vida? Você não acha que nossos filhos têm o direito a ter
uma vida digna? A trabalhar numa profissão que realmente queiram? A dar condições dignas para seus filhos? Ah
deixa para lá, não tenho mais força para discutir com você. Só gostaria que você deixasse Altamira ser o que ela
realmente quer ser, não interferisse nos seus projetos, nos seus sonhos. Deixasse ela transformar o sonhos dela em
realidade. Isto sim, já é uma boa ajuda.
Cena 3
No canto de palco, uns movimentos de 10 atores negros simulam uma passeata do Movimento Negro na luta por melhores condições de vida, são cartazes com dizeres contra a discriminação no emprego, contra a discriminação racial, a favor
da igualdade entre pretos e brancos e todas as raças. Ao lado direito um grupo reivindica pela prática de sua religião etc. O
pai de Altamira chega. Parece liderar o movimento. (Música ao fundo) “Vida de negro é difícil” – da Novela Escrava Isaura.
(Uma roda de capoeira com birimbau anima as pessoas.)
Negro 1 – 1, 2, 3, 4, 5 e 1000. Queremos para os negros o mesmo que os Brancos têm no Brasil.
Negro 2 – Só liberdade não cura a ferida dos negros. Queremos igualdade.
Negro 3 – Queremos políticas públicas de combate às discriminações.
99
Negro 1 - Somos todos iguais, independentes da nossa cor.
Negro 3 – Está na hora de respeitar os negros. Nos também fizemos à história do Brasil.
Negro 2 – Trabalho, saúde e educação o negro não pode ficar sem esta evolução.
Negro 1 – Não temos democracia racial. Temos hipocrisia racial.
Carlos Gonçalves – Negros unidos jamais serão vencidos. Cidadão negro que está presente nesta manifestação,
precisamos lutar por um país mais justo, onde brancos, amarelos, indígenas e negros possam viver de forma digna.
Onde o preconceito racial não faça parte da nossa história. Precisamos lutar por direitos iguais. Precisamos e devemos enfrentar os obstáculos dessa luta. Não devemos construir na nossa família, o desânimo, a desesperança e,
sobretudo, a ignorância. Negros são discriminados até hoje. Somos discriminados na educação, na saúde pública,
no mercado de trabalho. Somos discriminados na nossa vida e somos discriminados pela nossa cor, não tenham
dúvidas. Somos discriminados pela nossa bela história de resistência.
Negro 3 - Viva Carlos Gonçalves! Viva, viva e viva!
Negro 1 – Vivaaaaaaaa...
Carlos Gonçalves: O que se passa com os negros no Brasil. É sim, uma discriminação velada, escondida, mas
uma discriminação que causa dor, insegurança e deixa marcas, para muitas gerações de negros. Somos discriminados na televisão, na mídia falada e escrita, somos acima de tudo discriminados pela escola. Somos discriminados pelas políticas públicas de habitação, saúde, segurança, cultura e tantas as outras. Ainda hoje famílias brancas
não querem se misturar com famílias negras. Ainda hoje, são as mulheres negras as empregadas domésticas da
maioria dos lares brasileiros. Cuidam de seus filhos, dão-lhes amor, como na escravidão, mas ainda são escravizadas. Basta olhar para a realidade do direito trabalhista das empregadas domésticas do Brasil.
Negro 2 - Olé olé olé olá. Carlos Gonçalves com a discriminação vai acabar.
Negro 1 – E, é, é é e é........ Carlos Gonçalves é guerreiro seus mané.
Carlos Gonçalves: Senhores brancos, negros e amarelos, temos que construir um Brasil de Todos. De todas as
cores, de todas as raças. Temos que ter orgulho dessa mistura sadia que é o Brasileiro. Não podemos calar para
essa gente que acha que o ser humano é melhor por ter uma cor diferente da do outro. Temos que consolidar a democracia. Temos que resgatar a história do povo negro. Temos que lutar por melhores condições de vida. As nossas
mulheres, estas mulheres, não podem tornar-se mulheres objetos de desejos de gringos e abastados em épocas
de festas. Nossas mulheres têm muito mais que coxas e bundas. São mulheres de fibra, de luta e são mulheres de
amor. São mulheres negras que constituíram e construíram história. História e muita cultura.
“Aproximam-se vários policiais (pelo menos 5) policiais fortemente armados, que se adentram no meio da manifestação e começam a agredir os manifestantes”. Um dos policiais fala:
Policial 1 – Negrinho idiota. Repare o seu lugar, ainda ontem tinha saído do tronco. Arrogante acha que tem
direito a alguma coisa?
Policial 2 – Olhe esta Chita aqui. Por que não está limpando os papéis que estão jogados na rua. Está é fazendo
baderna. Estão todos presos. (Se referindo á um ator negro).
Um oficial da Polícia marca Carlos Gonçalves, em seguida grita.
Oficial: É aquele o agitador principal. Dê uns corretivos nele.
Dois policiais começam a agredir Carlos Gonçalves com vários socos e chutes.
Policial 3 – Toma negrinho agitador. Agora não fala mais nada né? Cadê a igualdade entre vocês? Não ta vendo
que eu não igual a você, negro fedido, ladrão. Toma seu negro covarde.
Carlos Gonçalves: Vocês podem me matar. Mas vou deixar para os meus filhos a história de resistência e luta
contra as discriminações e preconceitos raciais. Como Zumbi deixou sua história de resistência. Como Zumbi, não
sou nenhum negro covarde. As covardias aqui são de vocês brancos inescrupulosos como foi também dos senhores
de engenho, como são as de vocês aqui, neste momento.
Oficial: Façam este negrinho calar a boca. Eu estou mandando.
100
Em poucos minutos chegam mais soldados e a manifestação é totalmente evacuada. Carlos Gonçalves ao chão sangrando bastante, se enrola na bandeira do Brasil. Sem forças parece que está nas últimas horas de vida. Muito machucado
começa a cantar o hino Brasileiro. Ao fundo congela-se a cena e todos com a mão no peito cantam o Hino Nacional. (Música
do Hino Nacional Brasileiro e a morte de Carlos Gonçalves ao final do Hino) Carlos Gonçalves chama o nome de Altamira.
Nos instantes finais de vida.
Carlos Gonçalves: Filha, filha Altamira seja forte filha. A discriminação contra as negras é bem pior. Adeus filha.
Mas não se esqueça que o seu pai sempre acreditou e acreditará na força do negro para vencer esta barreira de
preconceito. Adeus minha filha e não desista nunca.
Cena 4
“No centro do palco (acomodam-se móveis para que pareça uma casa). Um caixão no meio da casa indica que está
sendo velado o copo de Carlos Gonçalves. Vários atores estão na cena.”
Mãe de Altamira: (Chorando) Eu num falei que isso de movimento pretu ia dá coisa errada. Isso é coisa de desocupado. Vocês levaram meu marido à morte... Ele não tinha que ter se metido nisso. Oh meu Deus! Carlos porque
você fez isso comigo?
“Altamira: deitada com a cabeça no peito do pai, desconsolava-se em choro. No entanto achava que a sua mãe estava
totalmente errada. Aquelas pessoas não tinham levado seu pai à morte e sim a injustiça preconceituosa da polícia”.
Altamira: Paizinho, paizinho. O que vai ser de mim sem você? Como vou aprender coisas bonitas sobre os negros,
sobre a história de vida da nossa raça? Sobre a luta dos nossos para mudar isto que acontece com nós negros.
Mãe de Altamira: Você ainda ta preocupada com isto Altamira? Não vê no que esta história de racismo, direitos
iguais levou o seu pai. Para já de resmungar besteira. Quer chorar? Que chore! Mas não fique aí resmungando sobre
esta história de racismo, preconceito, e mais, eu me ponho no meu lugar.
“Adalberto, grande amigo de Carlos Gonçalves e integrante do Movimento Negro escutava as lamentações da menina e
também pensava o que o Movimento Negro ia fazer sem Carlos Gonçalves.”
Adalberto: É José esse foi um bravo homem, sensato com as pessoas e extremamente coerente com seus ideais. Morreu fazendo aquilo que mais gostava de fazer, lutar pela conscientização das pessoas. Pela liberdade, pela
democracia e pela justiça social. Não foi só um grande amigo que perdemos. Perdemos também a cabeça do movimento. Perdemos um pouco da história e perspectiva de liberdade com dignidade para os negros. Sua esposa não
o conhecia! É extremamente complicado alguém viver tanto tempo do lado do outro e não o conhecer. Acho que
a menina apesar de viver menos tempo com ele, compreendeu o verdadeiro sentido da vida do pai. Espero que a
gente faça sentido a esta caminhada do Carlos. Que a gente continue lutando pelo que ele tinha certeza que era
verdadeiro.
José: Verdade homem! Nem a igreja está presente neste momento. Nenhum padre e nem pastor vem orar por
sua alma. A Igreja foi responsável direta por muitos dos sofrimentos dos negros e agora mais uma vez não se redime do seu erro. A sorte é que Carlos preservava sua religião africana.
Adalberto: É, vamos nos despedir de Carlos Gonçalves da melhor maneira possível, com birimbau e muita capoeira.
“Entra o grupo de capoeira para velar o corpo de Carlos Gonçalves. Vários atores negros levam Carlos Gonçalves para o
cemitério. Chegando Lá. O discurso de despedida de seus amigos na voz de Adalberto.”
Adalberto: Senhores e senhoras presentes. Este homem que se chama Carlos Gonçalves, jamais será esquecido
por sua gente. Ele foi essencialmente forte quando precisou ser forte, foi extremamente cauteloso quando precisou
ser cauteloso. Foi sempre, e sempre, um lutador pelos direitos de nossa raça. Trouxe para nós a consciência que
todos são iguais independentemente de sua cor. Regatou em nossos corações a força para lutar por dias melhores,
sem discriminação ou preconceito racial. Está indo embora precocemente, está indo embora porque enfrentou, de
cara, o preconceito, as injustiças e tudo mais. Resta para nós o orgulho de tê-lo conhecido e participado com ele
dessa luta. Não queremos que ela seja enterrada com ele. Queremos continuar com aquilo que começou Carlos
Gonçalves. É verdade que não temos a sua mesma garra, nem o seu conhecimento sobre a causa. Mas não podemos deixar que a sua morte seja em vão. Carlos Gonçalves vai ficar orgulhoso de saber que vamos continuar com o
Movimento Negro e com a sua luta. Que descanse em paz irmão guerreiro.
Altamira: Paizinho, paizinho, não me abandone. Por favor, não vá meu paizinho, eu preciso do senhor.
Adalberto: Minha menina ele vai está olhando por você. Também me pediu que caso acontecesse algo de ruim
com ele, eu me fizesse presente na vida de todos você em sua casa. Especialmente de você, que te ensinasse as
razões dessa luta, que você compreenderia e que jamais o acusaria de não ter pensado na família.
José: Vamos enterrá-lo amigo. Está na hora de partir. Pode ter certeza que não vamos abandonar a sua luta.
Viva Carlos Gonçalves. Viva...
Todos: Viva! Viva! E Viva.
“Enterram Carlos Gonçalves Blacaut para a próxima cena.”
101
Cena 5
“Na sala de aula acontece uma aula sobre a história do negro. A professora fala sobre a introdução do negro no cultivo
da cana de açúcar e do ouro.”
102
Professora: Bom Dia.
Alunos: Bom dia professora.
Professora: Hoje eu vou dar uma aula especial para vocês. Como os negros foram introduzidos na economia brasileira. Bem, os negros são pessoas não muito capacitadas para o trabalho intelectual. São extremamente valiosos
no trabalho braçal devido sua força. Ah e na culinária devido sua habilidade com os temperos. Quem não gosta de
uma boa feijoada, de uma rabada, né?
Altamira: Porque que a senhora acha que os negros não são capacitados para o trabalho intelectual? Meu pai me
dizia que isto vinha da condição histórica do negro e não da falta de capacidade intelectual. Porque que a senhora acha que os negros aprenderam a fazer feijoada e rabada. Porque são partes dos animais que os brancos não
queriam comer e nós precisamos sobreviver fisicamente também. São os restos do porco e da vaca, mas que foram
apropriados para nossa subsistência. Foi pura sobrevivência.
Professora: Deixa eu continuar a aula Altamira! Bem, a cana-de-açúcar como produto de lavoura, precisou de um
grupo de trabalhadores que fossem acostumados com o clima tropical e que não sofresse prejuízos na saúde. Os
brancos donos de engenho, pessoas especialmente cultas, vindas das faculdades da Inglaterra e Portugal, acharam
a melhor saída. Deram este tipo de trabalho para os negros, devido sua pele escura eles não sofreriam os malefícios
do sol e também não precisariam queimar fosfato. Já que sua inteligência não era nada boa.
Altamira: Desculpe professora, não concordo com a senhora. Os negros não são e nunca foram mais burros que
os brancos. Sofremos pela falta de oportunidade. Pela forma como fomos colonizados e dominados pelos homens
brancos. Meu pai me disse que, nós negros, fomos drasticamente separados de nossa gente, de nossa cultura e,
sobretudo, de nossa terra. Fomos trazidos para servir ao homem branco. Exploraram o nosso corpo, a nossa alma e
toda a nossa sabedoria.
Professora: Para como isso Altamira, você está me atrapalhando ensinar História para os meninos. Você com
esta estória trabalhada nos ideais do Movimento Negro vai parar aonde seu pai parou. No CE-MI-TÉ-RIO. Para já
com estas besteiras menina. Procure aprender!
Altamira: Eu não acho que o que o meu pai me ensinou foi besteira. Eu acho que a senhora está corrompendo a
cabeça de todos que estão aqui. Está transformando uma aula de História, numa farsa, numa mentira.
Professora: Cale a boca.
Altamira: Não calo não! A Senhora sabe muito bem que nós negros somos tão capazes quanto os brancos. Que
fomos tirados do seio de nossa mãe para aprender a servir. Que não tínhamos chance de estudar e que essa conversa mole de preparados para o trabalho forçado. É pura mentira. É uma medida que acharam para poder dominar
a nossa gente se fazendo de bonzinhos.
Professora: Eu já disse para você calar sua boca e se por no seu lugar...
Altamira: Qual o meu lugar, o de estudante, o de questionadora ou o de negra submissa. A Senhora está ensinando errado e sabe muito bem disso.
Professora: Quem Você pensa que é sua negrinha. Acha que o povo branco ia dar seu lugar para vocês. Vocês são
despreparados, mentirosos e sujos. Nem sequer têm aparência para um alto posto de trabalho. Queriam dar ordem
em nós brancos? Queriam que nós obedecêssemos vocês? Ta ficando é louca. Para fora da sala já. Dá aqui a pouco
converso com você. Desculpe turma...
Altamira: Não vou sair não. A Senhora é racista, preconceituosa e está transformando essa aula numa aula de
injustiça social e racial.
Professora: Cala a Boca...
Altamira: Não calo. Agora a senhora vai me ouvir. A senhora é uma branca racista. Iguais foram tantas na época
da escravidão. Está colocando todos os negros no tronco novamente. É injusta, hipócrita e, sobretudo, violenta. Não
está preparada para viver em sociedade e muito menos para dar aula. A Professora têm que ser sábia, tem que
voltar ao passado analisando todos os fatos. Tem que ser coerente com a história. Tem que ensinar a verdade. Por
mais que ela doa. A senhora está escondendo seu racismo atrás da sala de aula. Está multiplicando muitos racistas
aqui nesta sala de aula e o pior transformando muitos negros em pessoas invisíveis.
Professora: Cala! Cala! Eu não suporto você sua macaquinha de circo. Já fora desta sala negrinha metida. Você
não deveria estudar nesta escola. Para a diretoria já.
Altamira sai chorando, mas extremante feliz por ter conseguido enfrentar a professora. Pensou no seu pai, ergueu o
rosto e foi enfrentar a diretoria.
Cena 6
Diretor: O que houve Altamira? A Professora Luiza Sales me disse que você estava atrapalhando a aula dela. Não
entendo! Você sempre foi uma boa garota. Talvez sejam problemas relacionados à morte do seu pai.
Altamira: Não Diretor. Eu não fiz nada de errado. Ela estava dando uma aula sobre os negros e eu questionei. A
aula não era verdadeira, era cheia de hipocrisia e de falsidades. Questionei e ela simplesmente ficou extremamente
nervosa. Agrediu-me, agrediu ao meu pai e ao meu povo.
Diretor: Altamira nós também somos seu povo. Não acho que a professora Luiza tenha feito isto por mal. Ela
simplesmente ficou nervosa, com você atrapalhando a aula dela. Você não acha que não tem conhecimento suficiente para questioná-la?
Altamira: Sinto muito Diretor, mas acho que tenho sim. Eu vivi a minha vida toda escutando absurdos sobre os
negros. Que eram preguiçosos que não tinham capacidade intelectual, que nasceram para o trabalho braçal. Que a
escravidão foi um processo necessário na história. Que foi um processo voltado para o desenvolvimento do Brasil.
Percebi depois, com debates e estudos promovidos pelo meu pai lá em casa, que isto tudo era mentira. Que os
negros foram usados na história, foram castigados pelos brancos, simplesmente para manter uma gente sujeita
á outra. O Senhor talvez não compreenda isto, pois não é negro. Mas eu sim, sinto isto na pele no dia a dia, quase
todos os dias.
Diretor: Veja bem Altamira, isto não lhe dá o direito, filha, de atrapalhar a aula da sua professora. E nem lhe dá
a certeza de que tudo o que o teu pai dizia era verdadeiro. Você me entende?
Altamira: Não senhor. Não entendo não. Eu fui criada por uma mãe que sempre me disse que nós negros tínhamos que nos colocarmos no nosso lugar. Que não era branco para viver de estudo e de livro. Que era a maior
perca de tempo ir à escola. Meu pai sempre questionou isto. Caso tivéssemos alguma chance de mudar de vida,
de resgatar a cultura do nosso povo, de desmascarar a história falsa pregada por brancos hipócritas, teríamos que
freqüentar a escola. Teríamos que questionar a professora, a coleguinha do lado quando estas falassem algo mentiroso sobre nós negros. Não acho que a professora saiba mais a história dos negros que nós, os próprios negros.
Diretor: Altamira, preste atenção, ela estudou isto filha. Passou por uma faculdade...
Altamira: Estudou a história contada pelos brancos. A história de mentiras e preconceitos. A história racista. De
uma falsa democracia racial que nunca existiu. Nem agora, nem nunca. Temos que mostrar que os negros não acreditam nessa falsa democracia racial. Que somos todos os dias discriminados, nas escolas, na rua onde moramos,
no trabalho, na televisão e muitas vezes até em casa. Porque assim foi ensinado às mães dos negros. Que negro
tem que esconder o cabelo, que o cabelo não é bonito. Que negros e negras são feios. Que não podemos casar com
negros, porque senão nossos filhos serão ainda mais negros. Mas como uma raça “inferior” e “sem alma” que sob
o aval da Igreja Católica foi condenada a séculos de chafurdação nas senzalas e agora nos morros da periferia,
poderia ser bela? Como bem disse Marco Frenete.
Diretor: Altamira vamos por um ponto final nessa história. Você pede desculpa à professora na frente de todos
os seus coleguinhas e está tudo bem. Amanhã mesmo você volta á sala de aula.
Altamira: Não vou pedir desculpa á ela. Muito menos na frente dos meus colegas. Acho que assim não seria justo
para comigo e para com os colegas que querem aprender e muito menos com o meu pai e todas as pessoas que
acreditaram e acreditam em nossa missão de um mundo mais justo, sem discriminação e preconceito.
Diretor: Então filha. Não posso fazer nada por você. Darei-te trinta dias de suspensão escolar. Espero que estude
em casa para corrigir o atraso que terá, ao invés de estudar sobre o negro. OK.
Cena 7
Sincretismo Religioso
(O ator Locutor da cena I, sentado numa cadeira explica sobre a luta de Altamira para o conhecimento da história do
sincretismo religioso do seu Povo).
Locutor: Vocês querem, entender a principal religião da raça negra. Se querem, prestem muita atenção nesta
mulher. O que Altamira fez já aos dezessete anos de idade é algo fora do normal. Ela apostou na informação como
veículo de transformação da imagem religiosa do seu povo. Apostou que negros que assumissem as suas religiões
de origem não estavam trazendo mal algum para a humanidade, mas exercendo o direito de ter a tão sonhada,
liberdade religiosa. Começou a levar nas manifestações do Movimento Negro a história religiosa do seu povo. Atra-
103
vés da arte, transformou mudos em falantes. Tímidos em assanhados. Transformou a história da suprema religião
negra. Explicou que a religião dos negros era tratada como algo errado pelos brancos por puro domínio sobre a raça.
Que isto fazia parte da ação dominante do homem branco sobre o negro. Então, Altamira explica através da arte
o que são os doze orixás mais cultuados no Brasil. Ela também mostra que no candomblé, a aglutinação com o catolicismo foi uma questão de sobrevivência. Que aqueles colonizadores europeus diziam que as danças e os rituais
africanos eram feitiçaria e que deveriam ser reprimidos. E assim, os negros viram que a única saída era rezar para
um santo católico e enganar os senhores. No entanto, jamais esqueceu de acender a vela para os orixás. AH, Viu
que quando menos se percebeu os santos católicos estavam juntos com os deuses africanos. Assim, surgindo para
quem quisesse ver, a partir do século XX, a influência do espiritismo, criando-se a umbanda, com características
diferentes das do candomblé. E não vou esconder para vocês, o sincretismo religioso é cada vez mais forte no Brasil,
em especial na Bahia, até ao ponto de muitas igrejas católicas, celebrarem cultos com elementos afros. Você quer
conhecer esta história irmão? Quer ver esta apresentação? Façam silêncio e preparem-se para ver o que ninguém
jamais mostrou. Com vocês a apresentação do Grupo da Guerreira Altamira.
Os doze orixás mais cultuados no Brasil
(Os atores em forma de coreografia apresentam os orixás dançando como a representatividade de cada um deles. A
cena é de movimento corporal e muita presença de corpo).
Negro I - EXU
Só através dele é possível invocar os Orixás.
Elemento: fogo
Personalidade: atrevido e agressivo
Símbolo: ogo (um bastão adornado com cabeças e búzios)
Dia da semana: segunda-feira
Colar: vermelho e preto
Roupa: vermelha e preta
Sacrifício: bode e galo preto
Oferendas: farofa com dendê, feijão, inhame, água, mel e aguardente
Negro II - ABALUAIÊ
É o médico dos pobres.
Elemento: terra
Personalidade: tímido e vingativo
Símbolo: xaxará (feixe de palha e búzios)
Dia da semana: segunda-feira
Colar: preto e vermelho, ou vermelho, branco e preto
Roupa: vermelha e preta coberta por palha
Sacrifício: galo, pato, bode e porco
Oferendas: pipoca, feijão preto, farofa e milho, com muito dendê
Negro III - OXÓSSI
É o grande patrono do candomblé brasileiro.
Elemento: floresta
Personalidade: intuitivo e emotivo
Símbolo: rabo de cavalo e chifre de boi
Dia da semana: quinta-feira
Colar: azul claro
Roupa: azul ou verde claro
Sacrifício: galo e bode avermelhado e porco
Oferendas: milho branco e amarelo, peixes de escamas, arroz, feijão e abóbora
Negra IV - OXUM
Deusa das águas doces, ouro, fecundidade, do jogo de búzios e do amor.
Elemento: água
Personalidade: maternal e tranqüila
Símbolo: aberê (leque espalhado)
Dia da semana: sábado
Colar: amarelo-ouro
Roupa: amarelo-ouro
Sacrifício: cabra, galinha e pomba
Oferendas: milho branco, xinxim de galinha, ovos e peixe de água doce
104
Negra V - IANSÃ
É senhora dos raios e dona da alma dos mortos.
Elemento: fogo
Personalidade: impulsiva e imprevisível
Símbolo: espada e rabo de cavalo
Dia da semana: quarta-feira
Colar: vermelho ou marrom escuro
Roupa: vermelha
Sacrifício: cabra e galinha
Oferendas: milho branco, arroz, feijão e acarajé
Negro VI - OGUM
No Brasil é conhecido como Deus guerreiro.
Elemento: ferro
Símbolo: espada
Personalidade: impaciente e obstinado
Dia da semana: terça-feira
Colar: azul-marinho
Roupa: azul, verde escuro, vermelho ou amarelo
Sacrifício: galo e bode avermelhado
Oferendas: feijoada, xinxim, inhame
Negro VII - OSSAIM
Conhece os usos e as palavras mágicas que despertam seus poderes.
Elemento: mata
Personalidade: instável e emotivo
Símbolo: lança com pássaros na forma de leque e feixe de folhas
Dia da semana: quinta-feira
Colar: branco e rajado de verde
Roupa: branco e verde claro
Sacrifício: galo e carneiro
Oferendas: feijão, arroz, milho vermelho e farofa de dendê
Negra VIII - NANÁ
É a Orixá mais velha de todos e, por isso, muito respeitada.
Elemento: terra
Personalidade: vingativa e mascarada
Símbolo: ibiri (centro de palha e búzios)
Dia da semana: sábado
Colar: branco, azul e vermelho
Roupa: branca e azul
Oferendas: milho branco, arroz, feijão, mel e dendê
Negro IX - OXUMARÉ
É, ao mesmo tempo, de natureza masculina e feminina, transporta a água entre o céu e a terra.
Elemento: água
Personalidade: sensível e tranqüilo
Símbolo: cobra de metal
Dia da semana: quinta-feira
Colar: amarelo e verde
Roupa: azul claro e verde claro
Sacrifício: bode, galo e tatu
Oferendas: milho branco, acarajé, coco, mel, inhame e feijão com ovos.
Negra X - IEMANJÁ
É a mãe de todos os orixás.
Elemento: água
Personalidade: maternal e tranqüila
Símbolo: leque e espada
Dia da semana: Sábado
Colar: transparente, verde ou azul claro
Roupa: branco e azul
Sacrifício: porco cobra e galinha
Oferendas: peixe do mar, arroz, milho, camarão com coco
Negro XI - XANGÔ
Castiga os mentirosos e protege advogados e juízes.
Elemento: fogo
Personalidade: atrevido e prepotente
Símbolo: machado duplo (oxé)
Dia da semana: quarta-feira
Colar: brando e vermelho
Roupa: branca e vermelha, com coroa de latão
105
Sacrifício: galo, pato, carneiro e cágado
Oferendas: amalá (quiabo com camarão seco e dendê
Negro XII - OXALÁ
É o orixá que criou os homens.
Elemento: ar
Personalidade: equilibrado e tolerante
Símbolo: oparoxó (cajado de alumínio com adornos)
Dia da semana: sexta-feira
Colar: branco
Roupa: branca
Sacrifício: cabra, galinha, pomba, pata e caracol
Oferendas: arroz, milho branco e massa de inhame
Cena 8
(Cena do assalto)
Na rua, 2 homens brancos aparentando 25 anos e o outro 17, Conversam enquanto Altamira e uma amiga caminham
lentamente. Mais na frente, um grupo de negro conversam animadamente.
Altamira: Pois é. Temos que preparar o material para o ciclo de debates sobre as ações afirmativas. O questionamento é grande a este respeito e não podemos ir despreparadas se não, eles enterram nossa luta.
Marlene: Altamira, você já pensou no que vai preparar?
Altamira: Marlene! Não olha para traz, e também não se preocupe, mas acho que estamos sendo seguidas por
dois homens.
Marlene: Ai meu Deus, vamos correr!!!
Altamira: Você ta louca? Se tiverem armados nos atiram. Vamos continuar conversando, não olhe para traz.
Marlene: Estou muito nervosa. Minhas pernas estão travadas.
Altamira: Calma Marlene, logo ali na frente têm um posto policial.
Ladrão I: - Olha aí comadi . Tem um fumo aí pra gente?
Altamira: Fumo???
Ladrão I: Careta, um cigarrinho madame.
Altamira: Não eu não fumo.
Ladrão II: E atua coleguinha, também não pita?
Altamira: Não, ela não fuma.
Ladrão II : Ta brincando. Então tem um troco aí para gente.
Altamira: Troco?
Ladrão I: - Trocado madame. Uns corró, entendeu, manjou.
Ladrão II: Eu acho que esta puta ta é enrolando a gente. Ta pensando que a gente é trouxa dona. A gente só
queria um careta, mas agora manjou! A senhorita vai nos dá outra coisa.
Altamira: Não por favor, deixe a gente em paz. A minha colega ta muito nervosa. Eu dou para vocês o dinheiro
do cigarro.
Ladrão II: Quem falou que a gente quer dinheiro para careta. A gente quer a grana toda. Passa a bolsa, senão
estouro seus miolos.
Marlene muito nervosa dá uma crise histérica, começa a chorar e não se controla.
Ladrão I: Manda esta puta calar a boca, se não mando vocês duas por inferno. Tá pensando o que, em suas
vadias.
Altamira: Por favor senhor. Leve o dinheiro todo, mas não nos machuque.
Ladrão II: Ta com medo sua gostosa (se referindo à Marlene) (Passa á mão no rosto dela) Nós vamos divertir
com você, enquanto a sua coleguinha assiste. Vai ser muito gostoso. Você vai adorar!
Ladrão I: É isso aí, você vai adorar. Vai querer passar por aqui sempre.
Marlene desesperada chora convulsivamente.
106
Marlene: Não por favor. Não faz isto comigo.
“Um grupo de negros, aparentemente um grupo de HIP HOP percebe que está acontecendo algo errado e resolvem
aproximar-se para observar melhor aquela situação. Eles estão de Skates.”
HAP I – Ó vei, solta moça aí oh.
Ladrão I – Sujeira malandro. Pega a bolsa dela.
Um dos ladrões dá um tapa em Altamira e carrega a sua bolsa. Tentam imediatamente correr, mas o grupo de HIP HOP
também corre se aproximando da situação. Os ladrões se embolam no meio do grupo. Existe uma luta corporal (Coreografia). Os caras do HIP HOP começam a jogar capoeira, tentando derrubar os ladrões e recuperar os pertences de Altamira e
sua amiga. Dois policiais que vêm passando percebe a situação e se aproximam tentando solucionar o caso.
Policial I: Parados aí! Se não vou atirar. È a polícia.
Policial II: Deitados todos no chão.
Um dos ladrões grita.
Ladrão I: To sendo roubado por esses negros, policial. Socorro.
Um dos meninos do grupo de HIP HOP fala
HIP HOP I: Ei! Ele é o ladrão seus policial.
Altamira: Devolve a minha bolsa.
Policial I – Vão embora que a gente vai resolver esse probleminha. Vamos dar um corretivo nesse bando de
negrinhos safados.
Ladrão I – Isso aí seu policial.
Imediatamente os ladrões fogem e os policiais detêm o Grupo de HIP HOP, Altamira e Marlene. Esta não consegue nem
falar de tanto medo.
HIP HOP I: Eu vou atrás desses bandidos.
Policial I – Parado. Se não eu atiro.
HIP HOP I: Você ta ficando louco ele é o bandido.
Policial I: Ta pensando que me enrola negrinho esperto. Já disse parado.
O Negro do HIP HOP corre e o policial atira nas suas costas. Este morre imediatamente.
Policial II – Cara você atirou nele! Acho que o negrinho morreu.
Policial I: Você viu que ele estava fugindo?
Altamira: Você matou o menino. Seu louco! Agora estamos frito.
Policial I: Estamos frito o quê? È só mais um negrinho de bairro. Olha o Tenente ali!
Entra o Tenente em Cena.
Tenente: O que está acontecendo policial? Por que esta gritaria toda?
Policial I : Esses negros estavam tentando roubar dois rapazes agora a pouco. Com sorte conseguimos segura-los e os rapazes foram embora, mas ele tentou fugir para matar os rapazes e eu atirei nele. Acho que ele morreu
Tenente.
Os amigos estão em volta do corpo do Rapaz, este está sangrando já morto. Todos choram convulsionamente.
Altamira: Não! Você não está entendendo. Porque você fez isto com ele.
Policial II : Cala boca sua piranha, ajudando esse bando de negro assaltar gente decente. Não tem vergonha não
sua negrinha bandida.
Altamira: Não senhor...
Policial II - Já disse para calar a boca. Está me desacatando. (para seu superior) Essas duas negrinhas estavam
servindo de isca para que esses negros pudessem assaltar os dois rapazes. Eles utilizavam golpes de capoeira enquanto elas desapercebiam os rapazes, quando imediatamente nós chegamos interrompendo o sinistro. Tenente,
sempre disse que é um perigo danado essas negrinhas bonitinhas com os seus machos. Elas vêm como não querem
nada. Dão mole pros cara, aí os cara caem na delas e aí o bote.acontece. A negrada começa o assalto. A sorte dos
rapazes é que a autoridade tava presente. Ele tentou fugir e levou o balaço.
Altamira: Cala boca seu racista idiota.
Policial I – Vou dar uma bifa nesta negrinha piranha, e é pra já...
Tenente: Calma policial. Temos que chamar socorro para o rapaz. Depois eu deixo a senhorita falar tá.?
Policial I - Mas Tenente...
107
Tenente: Já chega. (o policial caminha para o corpo do rapaz, pega no seu pulso e constata a sua morte. Liga
imediatamente para levarem o corpo do rapaz.) Agora pode prosseguir moça. Este rapaz está morto!
Altamira: Senhor Tenente, nós trabalhamos logo aqui perto. Sou professora universitária e minha colega secretária do escritório do Movimento Negro. Estávamos conversando, quando percebemos dois rapazes seguindo a gente.
Eles aceleraram os passos e nos pediram um cigarro e assim afirmamos que não tínhamos. Aí eles decretaram o
assalto. Um deles queria até abusar da minha amiga. Coitada está tão nervosa. Por sorte da gente vinha este grupo
de rapazes que enfrentaram os bandidos e estes conseguiram apenas as nossas bolsas. Seus policiais apontaram
as armas para nós e os ladrões fizeram que ele pensasse que nós é que éramos os bandidos. Este policial racista
não quis nem saber da história liberou os dois imediatamente e condenou a gente sem nem ter uma prova. É claro
que agiu na condição da discriminação e preconceito. Achou que nós, porque éramos negros, seriamos os verdadeiros bandidos. Estes policiais são racistas e totalmente despreparados para o trabalho de proteção de pessoas.
Eles condenam alguém somente pela cor de sua pele. E o pior atiraram pelas costas no rapaz. Isto é um absurdo.
Tenente: Calma Senhora! A moça tem como provar esta situação?
Altamira: Este aqui é o meu crachá do serviço, e esta minha identidade profissional, por sorte estava no meu
bolso. Foi o único documento que ficou.
Tenente: Eu vou levar a senhora para a Delegacia...
Altamira: Mas Policial...
Tenente: Para prestar depoimento para a ocorrência Policial. Senhora, houve uma morte precisamos averiguar
direito. Tenho quase certeza da veracidade dos fatos relatados pelas senhoras. Mas não vou poder liberar ninguém
antes que o relato formal de vocês, antes que seja formalizado na ocorrência. Espero que os policiais não estejam
totalmente errados, mas também acho que as senhoras e o grupo devem ter alguma razão. Por isso preciso averiguar. Se estiver certa pode mover uma ação na justiça por discriminação e homicídio doloso. Pior de tudo, é que o
crime mais pesado carrega o mais leve. Eles podem até pegar júri popular.
Policial I: Mas Tenente o senhor vai ficar do lado desses negros e contra nós?
Tenente: Cala boca seu ignorante, racista, preconceituoso. Tomara que vocês peguem uma pena por isto. Esse
povo é muito mais gente do que vocês dois.
Marlene: Obrigado Policial (referindo-se ao tenente) por acreditar na gente.
Tenente: Não estou defendendo vocês, eu quero a verdade. E se eles forem totalmente culpados como imagino,
espero que vocês consigam a punição merecida para estes dois. Então vamos!
Cena 9
Cena que leva os dois policiais ao tribunal de júri. Acusados de homicídio doloso e prática de racismo.
108
Advogado de acusação – Meritíssimo Senhor Juiz, promotores, advogados, jurados e demais presentes. Houve um
tempo em que as pessoas achavam que tínhamos uma democracia racial. Que não existia no Brasil a triste realidade da exclusão social dos negros. Que negros e brancos viviam em total união. Era o mito da democracia racial, tão
bem trabalhado no livro “Casa Grande e Senzala”. Esse período perdurou por muito tempo. Criamos instituições e
pessoas muito mais racistas do que imaginávamos. A prova disto está nas suas frentes. Dois indivíduos, dois policiais, agentes públicos, que nasceram para proteger as pessoas e acabam por deixá-las ainda mais desprotegidas.
Que juraram defender a justiça e combater a impunidade. Estes dois Senhores! Não são pessoas desinformadas,
são pessoas que tem uma educação razoável. Mas, no entanto, são pessoas racistas e preconceituosas. Que não
acreditam no direito à equidade. Essa imagem tão cara ao desenvolvimento nacional que foi o “mito da democracia
racial”, ajudou a construir aqui, na representação desses dois policiais, o mito da ignorância racial. São racistas, mas
nem sequer percebem isto. Levam o racismo para todo lugar, para casa, para o trabalho e para os equipamentos
públicos. Não podemos permitir o fortalecimento desta ideologia discriminatória no nosso povo. Não podemos escravizar novamente nossos irmãos negros. É importante que punamos com o maior rigor possível ações preconceituosas de pessoas racistas. Ademais quando este preconceito leva gente inocente à morte. Quero deixar claro que
só podemos acabar com a discriminação racial se acabarmos com a impunidade sobre ela. Eu queria agora poder
interrogar o Policial Carlos Amaral Neto de crime de homicídio doloso e prática de racismo.
Juiz: A Corte chama o Policial Carlos Amaral Neto.
Ajudante do Juiz: Jura dizer a verdade e somente a verdade nada mais que a verdade.
Policial I: Juro
Juiz: Pode interrogá-lo.
Advogado de acusação: Nome do senhor.
Policial 1 – Carlos Amaral Neto
Advogado: Profissão:
Policial 1: Policial Militar.
Advogado de acusação: Cor
Advogado de defesa: Protesto. Não vem ao caso a cor do policial. Ele está induzindo o Júri.
Juiz: Pedido negado. Responda a pergunta.
Policial 1: Branco
Advogado de acusação: Você é racista?
Advogado de defesa: Protesto Meretíssimo. O julgamento é para analisar se o meu cliente tem culpa no homicídio
doloso e justamente se a principal causa disso foi o racismo.
Juiz: Senhor advogado de acusação limita-se a fazer perguntas que sejam relevantes para se fazer no julgamento.
Protesto concedido.
Advogado de acusação: Senhor Amaral, o senhor pode me relatar o que acorreu no dia 19 de novembro de 2003.
Policial 1: Eu vinha com meu colega de serviço, andava atento a situação, quando observei um grupo de negros
realizando algo que me parecia um assalto. Eu e o meu colega nos aproximamos e percebemos que estavam presentes
dois rapazes brancos e que estavam sendo assaltados pelos rapazes negros e mais duas mulheres negras. Perguntamos o ocorrido e os rapazes nos informaram que estavam paquerando as meninas e que as mesmas prepararam um
bote para ele e seu amigo. Que então logo chegaram esse grupo de negros e sinalizaram o assalto. Imediatamente
liberamos os rapazes e logo em seguida um dos rapazes negros tentou fugir. Dei ordem para que permanecesse no
lugar e ele desobedeceu, pensei que estivesse armado e o baleei. Este infelizmente chegou a óbito.
Advogado de acusação: O senhor não percebeu nada de estranho. Os dois rapazes brancos estavam portando uma
bolsa feminina? As duas informavam para os senhores constantemente que estavam sendo assaltadas pelos rapazes
brancos e o senhor ainda deu autorização para que os mesmos fossem embora. Não é supostamente estranho a sua
atitude. Me responda? Nem revistou os rapazes? É comum liberar os suspeitos assim, ou estes não eram suspeitos
porque eram brancos no meio de negros. O senhor ainda atirou nos rapazes mesmo estes informando ao senhor que
não eram bandidos.
Ladrão 1: Estava muito escuro não dava para ver a bolsa direito. Além do mais os negros faziam muito barulho e
atrapalhavam o desenvolvimento da averiguação. A gente é treinado para não deixar bandido escapar. Foi o que eu fiz.
Advogado de acusação: Mas o senhor na acha muito estranho, um policial justamente liberar os dois principais envolvidos no caso. O senhor sempre libera as vítimas de assalto antes de interrogá-las? É claro que não! Liberou porque
queria tirar a vida de um negro. Não é?
Ladrão I: Não Senhor.
Advogado de defesa: Protesto.
Juiz: Protesto negado pode continuar.
Advogado de acusação: Então, o senhor liberou os dois porque a ação se passava de um lado com Brancos e do outro
com Negros. E para o senhor negros são sempre culpados. Negros para o senhor são bandidos, desocupados e aqueles
dois brancos estariam sendo assaltados ao invés de assaltar. Tirou esta conclusão só pelo motivo que os outros envolvidos eram pessoas negras. E branco jamais assalta negros né? Atirou no rapaz porque queria tirar a figura do negro
de circulação na terra. Era como se estivesse matando todos os negros do mundo. Não era?
Advogado de defesa: Protesto. Ele está induzindo uma má resposta do meu cliente Senhor juiz. Está distorcendo os
fatos e penalizando o inocente.
Juiz: Protesto concedido. Vamos nos deter ao fato e não ao julgamento Senhor Advogado.
Advogado de acusação: Não tenho mais perguntas para este senhor. Meretíssimo. Gostaria de interrogar a minha
cliente a Senhora Altamira: (Juiz faz sim com a cabeça)
Ajudante do Juiz: Senhora Altamira. Jura dizer a verdade e somente a verdade nada mais que a verdade.
Altamira: Juro.
Advogado de acusação: Senhora Altamira. Qual a sua profissão?
Altamira: Professora Universitária.
Advogado de acusação: Cor
Altamira: Negra:
Advogado de acusação: É a primeira vez que sofre discriminação racial?
109
Advogado de defesa: Protesto. O meu colega está comprometendo o julgamento Meretíssimo, a resposta seria uma
indução ao júri. Ele quer induzir os jurados para que pensem, que de fato, meus clientes praticaram racismo que o
levaram a praticarem homicídio doloso.
Juiz: Dr. Ricardo, não vou adverti-lo mais. Faça a pergunta de outra forma ou terei que suspender o seu interrogatório.
Advogado de acusação: Sim senhor Meretíssimo. Altamira você recebe com alguma freqüência discriminações raciais?
Altamira: Sim
Advogado de acusação: Onde?
Altamira: Recebo em vários locais. Primeiramente os efeitos dela em casa, depois ela diretamente na escola, no
mercado de trabalho e até mesmo na vizinhança. Paro para pensar todos os dias sobre isto e vejo que na realidade
nós negros, nunca deixamos de ser discriminados. Que o nosso país é e sempre foi racista. Que esse racismo velado, escondido, talvez seja bem pior do que o racismo que sofrem os negros Americanos. Que a história de lutas e
resistências enfrentadas por nossos ancestrais, tem que continuar presente. Que a história de resistência de Zumbi
dos Palmares, foi uma história de resistência muito parecida com a que fez Carlos Gonçalves. Mas que também é a
mesma história de resistência do Movimento Negro e especialmente minha, que acompanhei todos os debates e luta
de Carlos Gonçalves.
Advogado de acusação: Altamira você foi discriminada naquele Fatídico dia?
Altamira: Sim. Não só eu como aqueles negros que estavam lá naquela hora e que tentou nos ajudar. Também
minha colega Marlene e acho que todos os negros do mundo. Vivemos este triste pesadelo todos os dias. Somos condenados pela polícia antes mesmo da ação. Os negros são julgados e condenados pelo olhar branco. Somos excluídos
do mercado de trabalho antes mesmo de procurarmos pelo emprego. Este fato, nunca mudou. Somos negros e sempre
seremos negros. Precisamos avançar no olhar branco. Precisamos criar políticas públicas que possam detectar e corrigir essa triste realidade da discriminação. O pior é quando esta discriminação leva os negros à morte! Hoje a polícia
mata pelo simples fato do envolvido ser um negro.
Advogado de acusação: Obrigado. Gostaria de chamar agora a última testemunha. E um dos envolvidos no caso. O
Senhor Manoel Carvalho Mello. Um dos ladrões. Senhor Manoel o senhor se lembra do ocorrido naquele dia.
Ladrão I: Sim.
Advogado de acusação: Como foi?
Ladrão I: Eu e meu amigo estávamos pitando um baseado, quando vimos surgir duas negrinhas na nossa frente.
Aí ele me falou: E aí Zé, vamos ganhar essas duas. Partimos pro ataque. Pedimos um careta. Ela nem sabia o que era,
mas foi educada e informou que não tinha. Meu amigo ficou com raiva, muita raiva e aí resolveu rouba-lá. Também
queria abusar da amiga dela O-I ta ligado. Disse que ela era muito gostosa e tudo mais. Eu num queria nada disso.
Só queria um careta e relaxar em paz. Derrepente ele começou a passar as mãos na mina. E mandou que eu puxasse
a bolsa da outra. Ela reagiu e eu dei-lhe um tabefe. Mas quando percebemos tinha um grupo de negrinho do HIP HOP
observando. Eles estavam com uns SKATEs nas mãos e resolveram enfrentar a gente. Nós ficamos com muito medo
seu doutor. Puxamos o pé para correr. Aí os cana apareceu, já foi logo acusando os boró e as mina. Nós aproveitamu
da situação e demos uma de vítima moró.
Advogado de acusação: Por quê o senhor acha que eles fizeram isto.
Advogado de Defesa: Protesto está pergunta é indutiva.
Juiz: Negado. Prossiga.
Ladrão I: Foi porque os boró eram negros e as mina também. A gente vê isto pelos cana todo dia. Se ta numa rodinha só encanam com os neguinho. Chegam dando baculejo, xingam os cara de vagabundo, bate e é isto aí doutor.
Advogado de acusação: Não tenho mais perguntas a fazer meretíssimo
Advogado de defesa: Eu gostaria de interrogar o Policial Carlos Amaral Neto. Soldado Amaral o senhor é racista? Me
responda com toda a sinceridade do mundo.
Policial I: Não senhor. Nunca fui racista sempre convivi muito bem com os negros. Até tenho um amigo que é negro,
Doutor. Eu sou policial cuido das pessoas. Jamais faria racismo contra alguém. Eu estava defendendo as pessoas como
jurei na minha formatura. A morte do rapaz foi uma mera ação policial.
Advogado de defesa: O Senhor concorda comigo que o que falou a senhora Altamira e o envolvido no caso O Sr.
Manoel, dá a entender que o senhor é racista. E que matou o rapaz somente porque não gosta de negro.
Policial I: Dá doutor, mas eu juro que não sou racista. Doutor estava muito escuro e a gente sempre depara com
negros assaltando no bairro. Nós sempre encontramos este tipo de sujeira. Não podíamos ficar parados, era nossa
obrigação. E somos sempre avisados que não podemos deixá-los escapar.
110
Advogado de defesa: O Senhor trabalha com quais situações? Digo com bons equipamentos, armas poderosas...
Policial I: Não! Em péssima situação doutor. Nossos colegas levam tiro quase todos os dias. Se bobear a gente
não chega em casa.
Advogado de defesa: Então, o senhor não têm tempo para ficar interrogando as pessoas. Têm que agir rápido se
não, chega em casa no caixote de madeira. Né?
Policial I: É isso aí doutor.
Advogado de defesa: Estão vendo senhores. O senhores concordam que os policiais trabalham sobre pressão.
Que não podem demorar muito para executar uma ação, se não corre o risco de chegar em casa morto. Que assim
suas famílias ficam totalmente desamparadas. Por um momento de segundos podem destruir as vidas de quem
eles mais amam. Senhores (para a platéia) O meu cliente agiu no ímpeto da emoção. Tinha que ser rápido e foi.
Talvez tenha cometido uma injustiça, mas a morte do rapaz foi acidental. Foi puramente para defender as pessoas,
que ele jurou defender. Mas não foi por preconceito racial que o meu cliente atirou naquele rapaz, foi por pura precaução policial nesta selva violenta. Eu queria que todos vocês pensassem na vida de um policial antes de julgá-lo.
Não tenho mais perguntas a fazer.
Juiz: cada um faz suas considerações finais. Primeiro o Senhor Ricardo Advogado de acusação e depois o Senhor
Rodrigo Advogado de defesa
Advogado de acusação: Senhores e Senhoras. O Brasil não é apenas um país pobre. O Brasil é um país pobre e
racista. A raiz dessa má distribuição de renda pode ter justificativa nas desigualdades sociais e raciais. Basta olharmos que são os negros que mais estão fora do mercado de trabalho, são os negros que mais morrem nas filas dos
hospitais públicos e são os negros que mais sofrem nos presídios brasileiros. E que são os negros que morrem pelo
sistema policial A falta de oportunidade anda constantemente de mãos dadas com a falta de justiça. Nossos irmãos
negros sofreram durante séculos com os males da escravidão e hoje sofre, sem dúvida, com os efeitos trazidos pela
não valorização de sua gente. São discriminados, desonrados, incriminados e maltratados na terra que ajudaram a
construir e até mesmo são mortos. Queria deixar claro para vocês, que enquanto a impunidade reinar não teremos
um Brasil de justiça social. Um Brasil de oportunidades, cheio de pessoas mostrando suas culturas. Um Brasil que
só será de todos, quando todos ajudarem a construí-lo sem preconceitos, injustiças e racismos. Assim, neste sentido o Policial Carlos Amaral Neto e o policial Francisco Lisboa são culpados pelo crime de homicídio doloso e pela
prática de racismo. Só com esta pena seremos justo com a família da vítima e, sobretudo, com os negros mortos
injustamente no Brasil, desde a escravidão. Muito obrigado.
Advogado de defesa: Senhores e senhoras presentes. Queria lembrar a vocês que vivemos em plena democracia.
Que respeitamos e valorizamos a cidadania. Que os direitos humanos são defendidos por todos nós. Que o racismo
só é possível na cabeça de racistas. Vivemos em pleno desenvolvimento com oportunidades iguais para quem vai
à luta. Vivemos numa democracia racial. Onde a justiça não defende nem branco, nem negros, defende o justo.
Erram. Porque quem não erra? Erram na iminência de acertar. Erram porque trabalham demais, às vezes mais do
que a jornada necessária. Portanto a justiça, no perfil da polícia, erra porque não pode vacilar e se vacilar morre.
E se morrer quem amparará suas famílias. Senhores Jurados, não existiu preconceito por parte dos meus clientes,
existiu sim, uma falha considerável nos seus trabalhos. Mas uma falha justificada pela vida que vive os policiais
brasileiros. Por isso peço a absolvição dos senhores Carlos Amaral Neto e Francisco Lisboa. Do crime de homicídio
doloso e da prática de racismo. Muito obrigado.
Intervalo para o veredito e os policiais são absolvidos por 5 a 2.( Blacaut de 1 minuto).
Juiz Rafael: Eu juiz Rafael absolvo os réus Carlos Amaral Neto e Francisco Lisboa do crime de homicídio doloso
pelos votos dos jurados, sendo 5 a favor da absolvição e 2 contra a absolvição de crime de homicídio doloso e os
condeno ao pagamento de 10 cestas básicas á uma Instituição Filantrópica e ao pagamento da pena de prestação
de serviço em uma entidade assistencial que lute contra o preconceito racial, durante o período de um ano, um
domingo ao mês. E assim, por achar que mesmo os dois não tendo intenção de praticar o homicídio doloso, utilizaram de racismo e prejudicaram as senhoras Marlene Aguiar e Altamira Gonçalves e a família da vítima. Este é
meu veredicto. Cumpra-se.
Cena 10
(A Palestra se inicia somente com a presença de Altamira e Carlos Gonçalves Neto na mesa, os atores que participaram
da peça vão para a platéia, a platéia é envolvida na cena como se fossem atores do espetáculo. Ao final da cena são abertos
os debates com Altamira e Carlos Gonçalves Neto respondendo as perguntas da platéia) A peça só tem fim depois que todos
da platéia vão embora.
Altamira: Bem, meu nome é Altamira. Sou Professora Universitária, Militante do Movimento Negro como foi o
meu pai Carlos Gonçalves. Aprendi desde cedo que lutar é o ponto de partida para ingressar mulheres e homens
111
112
negros nos resultados positivos desta nação. Precisamos romper os estereópticos feitos pela mídia, pela polícia e
pelos políticos. Vou agora entrar especificamente na palestra para depois poder abrir para os debates. Senhores e
senhoras presentes, o fim do sistema escravista no Brasil impôs a alteração do regime jurídico dos antigos escravizados, abrindo caminho para a construção do reconhecimento formal diante dos demais cidadãos brasileiros.
Entretanto a abolição da escravatura no Brasil, embora necessária e constituída por muitos, da forma como se deu
foi um verdadeiro golpe às aspirações da população afrodescendente. A abolição enquanto uma medida teve seu
conteúdo resumido a dois parágrafos que simplesmente decretava extinta a escravidão, revogando as disposições
em contrário. Esta abolição não trouxe consigo a perspectiva de libertação, com plena inserção dos descendentes
de negros escravizados na sociedade como um todo, isto é, no mercado de trabalho, no sistema educacional, no
acesso à moradia, na posse da terra, entre outras.
Assim, a elite escravocrata traçou estratégias para diminuir o peso da presença negra na população brasileira
no século XIX. Exemplo disso: a facilitação no ingresso de 2,7 milhões de europeus. O projeto de branqueamento
que se desenvolvia no país previa, progressivamente, a assimilação e dizimação da população negra, assim como
da população indígena. Tais grupos sociais, associados ao passado escravista, deveriam ser eliminados durante a
modernização brasileira, para que a nação se tornasse ocidental e branca. Somente assim, segundo a visão escravocrata, o país estaria habilitado ao desenvolvimento econômico e ao progresso. Uma das principais idéias forjadas
pelos intelectuais do país foi o mito da democracia racial, trabalhado por Gilberto Freire e Roberto Da Mata, estabelecendo sobre as relações raciais no Brasil. Inpedindo que o povo reconhecesse o racismo contra o negro. O mito
da democracia racial serviu ainda como um meio de naturalização de tradicionais papéis raciais ocupados pelos
distintos grupos de raça/cor em nossa sociedade. Configurando um modelo de relações sociais pronunciadamente
desiguais, em cuja pirâmide social os negros, negras, índios e índias permanecem ocupando as piores posições.
É importante dizer que na tentativa de fugir da democracia racial, que tem como uma de suas matizes o critério
biológico; a mestiçagem. Surge o Movimento Negro demonstrando que a sociedade brasileira se formou a partir da
ancestralidade africana e indígena, da herança religiosa, intelectual, moral, física, estética, musical, política, geográfica e social do povo negro. Assim, vê que a raça não é um conceito determinado biologicamente, mas sim uma
categoria histórica, construída socialmente.
A história do Movimento Negro desde então, caminha por várias trilhas com o objetivo de pressionar as instituições e sociedade para eliminar a desigualdade e garantir a igualdade de oportunidades e dignidade de tratamento,
exercendo os direitos da população negra. É importante frisar que o movimento das mulheres e o movimento dos
negros começam a perceber a questão imbricada onde estão os dois movimentos. E as mulheres negras dão enormes contribuições para os dois movimentos.
Não posso me ater mais profundamente nestas discussões, devido o tempo é claro. Só queria finalizar afirmando que o novo Projeto de Nação a ser construído no Brasil contemporâneo implica em resgatar de forma crítica
nossas mais significativas tradições organizativas em nome da realização de uma ação democrática. Tal projeto
não se deve esgotar na fórmula assimilacionista ou enganosa como se deu no passado, pois existem outras possibilidades: as que valorizem a diversidade e o respeito às diferenças, a igualdade e o combate à exclusão social; as
que não revalidem moralmente tradicionais papéis sociais, tampouco almejem uma questionável e desnecessária
uniformização estética, cultural e política de nosso povo. Uma das principais missões da sociedade brasileira nos
dias atuais consiste na preservação do patrimônio cultural negro e indígena, totalmente isento de qualquer influência do mito da democracia racial, contribuindo assim, para a construção de um modelo de sociedade justa e sem
desigualdades raciais. Muito obrigada a todos e a todas.
Carlos Gonçalves Neto: Bem pessoal, Gostaria antes de abrir o espaço para os debates fazer algumas considerações. Primeiramente sobre esta mulher extraordinária que é Altamira, minha mãe. Que herdou como herança
do seu pai essa grandiosa missão e que vem dando contribuições valiosas para esta luta. O desânimo, a desesperança e a descrença não fazem parte da história de vida desta mulher. Esta mulher que tenta quebrar a história
do pico coberto de neve do nosso mercado de trabalho onde os brancos estão em cima e os pretos na base da
pirâmide. Fazendo somente trabalhos subalternos. Esta mulher que está sendo fundamental para desconstruir o
mito da democracia racial. Esta mulher fundamental para o processo de elaboração de políticas para a superação
da desigualdade racial e do racismo no Brasil. Esta mulher que trabalha pela mobilidade social dos negros e pela
consolidação de suas culturas transformando na verdadeira identidade nacional. Segundo, que tudo que nos foi
passado hoje, possa de fato fazer um vínculo de pobreza e discriminação e tentar desmistificar o negro como
produto dessa pobreza e dessa discriminação; Trazendo políticas inclusivas, reconhecimento de sujeitos, reconhecimento dos movimentos sociais, trazendo o direito ao reconhecimento da propriedade coletiva, as reivindicações
de direitos historicamente negados para os negros e negras. Para terminar deixo duas mensagens uma falada e
a outra visual. A falada é: Onde você guarda seu racismo? Não importa se você guarda seu racismo na cabeça, no
coração, no medo, nas palavras ou em qualquer outro lugar. Se você admite que guarda esse sentimento, é hora de
repensar seus conceitos e tomar atitudes: converse com sua família, suas amigas e seus amigos, discuta, troque
idéias, denuncie abusos, participe da luta pela igualdade racial. Então agora me resta apresentar a visual. E com
vocês o Grupo de HIP HOP do rapaz assassinado por que tentou ajudar duas mulheres negras. Este grupo é patrocinado por esta mulher negra. Altamira. E a música tocada por eles é: Mulher: Mas que mulher é esta negra. Que
aquele rapaz Chamado Nazaré, descanse em paz. Senhores e Senhoras, depois da apresentação estaremos aberto
aos debates. Meu Muitíssimo obrigado.
(Altamira e Carlos Gonçalves mantêm a posição no palco do começo da peça, um ao extremo do outro. No centro o Grupo
de HIP HOP faz a apresentação e depois saem de cena).
(Apresentação de HIP HOP).
113

Documentos relacionados