estratégias de ação política dos movimentos sociais na era

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estratégias de ação política dos movimentos sociais na era
Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas
ISSN 2238-1627, Ano IV, Nº 8, setembro de 2014
ESTRATÉGIAS DE AÇÃO POLÍTICA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA ERA
DIGITAL: O DISCURSO SOCIOAMBIENTAL DO MOVIMENTO DOS
TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST) NA LUTA PELA REFORMA
AGRÁRIA POPULAR
Janecleide Moura de Aguiar1
[email protected]
Carlos Frederico Loureiro2
[email protected]
RESUMO
No atual momento de organização dos movimentos sociais, as formas de ação direta, tradicionalmente acionadas,
podem se conjugar com práticas e estratégias muito próprias das novas tecnologias de informação e comunicação. Este
artigo tem como objetivo apresentar considerações preliminares sobre a ampliação das formas de ação política
utilizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sobretudo a partir do uso sistemático de um
aparato de tecnologia digital. Portanto, na medida em que o MST passa a ocupar espaços de sociabilidade digital, sua
luta política ganha outros contornos, revelando impactos sobre a mobilização dos militantes nos acampamentos e
assentamentos, no sentido de construir a chamada “Reforma Agrária Popular”. Por intermédio de uma política de
inclusão digital, construída dialogicamente com o poder público, se amplia o horizonte de possibilidades para a ação do
movimento em si e de seus militantes, além de potencializar a difusão de princípios e valores para além das fronteiras
identitárias, que marcam esse campo político. O intuito de analisar o ativismo digital de um movimento social de grande
expressão no cenário agrário brasileiro ainda se encontra em fase exploratória, sendo pautado por um recurso
metodológico muito característico: a netnografia. Assim, a análise se fundamenta, sobretudo, no teor propositivo das
publicações feitas no site, no blog e nas redes sociais utilizadas pelo MST. O discurso ambiental do movimento, ao
utilizar os princípios da agroecologia e da sustentabilidade, integra uma ampla frente de luta contra o sistema capitalista
e de enfrentamento do agronegócio. Nesses termos, a luta pela terra visa a soberania alimentar e se conecta com práticas
de valorização dos alimentos orgânicos.
PALAVRAS-CHAVE: Agroecologia, Cultura Digital, Ecologia Política, , Educação Ambiental, Movimentos
Sociais, MST, Reforma Agrária
1
Doutoranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pelo programa EICOS/UFRJ; integrante do LIEAS/UFRJ
(Laboratório de Investigação em Educação, Ambiente e Sociedade).
2
Doutor em Serviço Social e professor Associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Coordenador do LIEAS/UFRJ; Orientador da pesquisa deste artigo.
1
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ABSTRACT
The present moment of social movement organizations, the forms of direct action, traditionally driven, can be combined
with practices and strategies of the new technologies of information and communication. This article aims to present
preliminary considerations on broadening the forms of political action used by the Landless Rural Workers Movement
(MST), mainly from the systematic use of an apparatus of digital technology. Therefore, considering that the MST now
occupies spaces of digital sociality, its political struggle takes different shapes, revealing impacts on the mobilization of
militant camps and settlements, to build the entitled "Popular Agrarian Reform." Through a policy of digital inclusion,
dialogically constructed with public power, the horizon of possibilities is higher for the movement action, enhancing the
diffusion of principles and values beyond the boundaries of this political field. The purpose of analyzing the digital
activism of such a great expression social movement in Brazilian agrarian scenario is still in the exploratory stage, being
guided by a very distinctive methodological resource: netnography. Thus, the analysis is based primarily on
propositional publications made on the website, blog and social networks used by the MST content. The environmental
movement speech uses the principles of agroecology and sustainability, integrating a broad front of struggle against the
capitalist system and coping agribusiness. In these terms, the struggle for land aims food sovereignty and is connected
to organic food practices.
KEYWORDS: Agroecology, Digital Culture, Environmental Education, Land Reform, MST, Political Ecology,
Social Movements
INTRODUÇÃO
Esse artigo expressa algumas reflexões iniciais oriundas de uma pesquisa em curso para uma tese de
doutoramento que pretende, dentre outros aspectos, contribuir para o entendimento da dinâmica dos
movimentos sociais no século XXI. Diante do cenário atual que entrelaça relações sociais e ações
políticas no mundo, sempre de forma complexa, cabe analisar a profundidade e o teor das
transformações que se delineiam. Desta maneira, o atual sistema de comunicação em rede – que
funciona de forma integrada e articulada, dentro de premissas da virtualidade, agregando e
disponibilizando documentos nos formatos de texto, imagem, áudio e vídeo – parece ser produto de
uma conjunção de mudanças na sociedade, em geral, e que repercutem sobre o processo de
produção e veiculação de informações. Sendo assim, atualmente não há como desconhecer a
importância das redes telemáticas, inclusive porque influenciam a dinâmica dos movimentos
sociais, até por serem estruturas inerentes ao aparato informacional das sociedades contemporâneas
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e por oferecerem uma maior agilidade na transmissão de dados, agregando, simultaneamente, as
telecomunicações e a informática3.
Sem a pretensão de esgotar o conjunto de questões, o presente trabalho parte da constatação de uma
patente lacuna que se revela pelo descompasso entre o ritmo das transformações e os estudos
acadêmicos já sistematizados sobre a temática. Reconhecer essa lacuna significa, dentre outras
tarefas, transcender às limitações que envolvem inclusive a definição de procedimentos
metodológicos e a seleção de referenciais teóricos consistentes para o entendimento do impacto
causado pelo uso de novas tecnologias digitais, especialmente na forma como os movimentos
sociais divulgam suas ações e mobilizam estratégias políticas de transformação da realidade, a partir
de Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC).4
Embora no contexto brasileiro a apropriação instrumental dessas tecnologias digitais pelos
movimentos sociais seja relativamente recente, temos um caso expressivo que precisa ser analisado.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que, a partir de sua política de inclusão
digital, passou a incorporar, sistematicamente, estratégias de ação política mediadas pelas
tecnologias de informação e comunicação. Concretamente, a estrutura do MST conta com um setor
de tecnologia, a Frente Digital, que disponibiliza e articula o funcionamento de quase uma centena
de Telecentros e Casas Digitais em assentamentos, cooperativas, centros de formação e escolas do
movimento. De fato, apolítica de inclusão social e digital promovida pelo MST potencializa
mudanças na sua organização política e também em suas respectivas formas de ação direta,
inclusive relacionando o enfrentamento do sistema capitalista a uma dinâmica de “substituição do
software proprietário pelo software livre”5.
Embora não pareça tão evidente, a tarefa de analisar os princípios ideológicos mais gerais do
movimento parece indicar uma vinculação entre tal estrutura – que define a relevância e a
operacionalização de um aparato tecnológico e digital para o enfrentamento político – e o projeto
defendido pelo MST de uma “Reforma Agrária Popular”. E esse processo se consolida, na medida
3
De modo geral, as “telecomunicações” envolvem aparatos tecnológicos de telefonia, satélite, cabo, etc. Já a
“informática” desenvolve computadores, periféricos, softwares e hardwares.
4
Enfim, o entendimento das formas assumidas pelo ativismo político na atualidade requer o acompanhamento da
“World Wide Web” (www), como a principal interface gráfica da internet. Por isso, o levantamento de dados, para os
fins dessa pesquisa, foi basicamente feito em websites, home pages e redes sociais.
5
Essa questão não será abordada no presente artigo, sendo um debate importante no contexto da tese.
3
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em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra participa de uma rede que se vincula
fortemente, mas não exclusivamente, pelo viés da virtualidade, ao integrar o Fórum Nacional da
Reforma Agrária e também por participar da Coordenação dos Movimentos Sociais da Via
Campesina6. Recentemente, os canais de comunicação digital foram massivamente utilizados, no
sentido de atualizar e difundir as bases ideológicas na celebração dos 30 anos do movimento.
Assim, no VI Congresso Nacional do MST7se discutiu, com a participação de militantes assentados
e acampados, um “Projeto de Reforma Agrária Popular” pautado em um “Projeto Popular para o
Brasil”. De fato, o MST inscreve a Reforma Agrária num contexto mais amplo, de reformulação do
histórico “Projeto Popular para o Brasil”, não somente pela democratização do acesso à terra e à
produção de alimentos, mas também pela possibilidade de amplo acesso aos instrumentos de
circulação da informação e da cultura digital8.
“Inclusão digital não é só internet, telefone celular, tablet e outras coisas. É principalmente
dominar as tecnologias de produção e transmissão da informação, que são desenvolvidas
por trabalhadores, mas apropriadas pelas grandes empresas concentradoras do capital.”
(RAUL AMORIM, Juventude do MST)
Vários discursos proferidos por lideranças do MST apontam para um entendimento de que a
formulação e a implementação de uma política de inclusão digital no meio rural viabiliza tanto a
permanência dos trabalhadores no campo, sobretudo os jovens, quanto garante condições de
sustentabilidade para a produção de alimentos por parte do movimento social. Evidente que esse
discurso da inclusão digital cria uma dinâmica muito própria e se constitui numa correlação de
forças com o poder público, com outros movimentos sociais e também com setores da sociedade
civil organizada.
6
A Via Campesina congrega os movimentos sociais do campo dos cinco continentes.
7
O evento aconteceu entre 10-14 de fevereiro de 2014, em Brasília, e contou com a participação de 16 mil delegados,
mais 750 Sem Terrinhas e 250 delegados internacionais, numa estrutura com 40 mil metros quadrados. Duas grandes
mobilizações representaram marcos comemorativos do MST em seus 30 anos: a ocupação do MEC por 750 Sem
Terrinhas mobilizados contra o fechamento das Escolas do Campo e reivindicando melhores condições para a Educação
campesina; e a Marcha pela Reforma Agrária Popular, com 16 mil militantes Sem Terra nas ruas de Brasília.
8
“Cultura digital é um conceito novo. Parte da ideia de que a revolução das tecnologias digitais é, em essência, cultural.
O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do
software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento, maximizar os
potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a
nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte”. (Gilberto Gil, exMinistro da Cultura em 2004, disponível em http://www2.cultura.gov.br/culturaviva/category/cultura-ecidadania/cultura-digital/).
4
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“Discurso é pratica social, materialidade que não se confunde com atividade puramente
individual nem é algo reflexo de determinações econômicas. E, mais, expressa correlação de
forças sociais, relações de poder e hegemonia e qualifica posições e projetos políticos em
disputa na sociedade. Nenhum discurso é neutro. (...) o discurso é condicionado pela
estrutura social e é socialmente constitutivo.” (LOUREIRO, 2012, p.33)
O discurso que reconhece a importância das políticas de inclusão digital voltadas para o campo
ganha ressonância, se amplificando dentro e fora do movimento. Exatamente porque consegue
qualificar um posicionamento estratégico, na medida em que o escoamento da produção de
alimentos, oriunda dos assentamentos do MST, ganha ainda mais agilidade com o uso das novas
tecnologias de informação e comunicação disponíveis. Seguindo essa linha de raciocínio, o MST
vem buscando parcerias com o poder público e também com diversos órgãos de fomento, visando
garantir não somente o acesso à terra, mas também viabilizar estratégias de apoio para a apropriação
dos meios tecnológicos. Ao que parece, nas comunidades rurais em que foram implementadas
iniciativas de inclusão digital houve uma significativa redução do êxodo de jovens. Assim, um olhar
mais detalhado sobre a realidade concreta do próprio movimento reforça a tarefa de investigar em
que medida os Telecentros e as Casas Digitais, ao ampliarem a possibilidade de acesso aos meios
tecnológicos no meio rural, podem garantir uma maior fixação dos militantes nos assentamentos do
MST.
Em linhas gerais, dentro de uma proposta de autonomia digital voltada para sua luta política pela
terra, o MST busca articular a transmissão e a divulgação de informações, a partir de uma interface
com diferentes formatos e mídias para a produção de conteúdo, sobretudo em quatro 9 níveis
integrados: a) na estrutura organizacional do próprio movimento, no sentido de possibilitar uma
maior interatividade entre assentados, acampados e as lideranças locais/regionais/nacionais,
sobretudo pelo fato do MST estar disseminado ao longo de todo o território nacional; b) no rápido
escoamento da produção dos assentamentos, especialmente de alimentos orgânicos; c) na
propagação dos princípios da agroecologia e da sustentabilidade, especialmente entre os militantes,
mas também com o propósito de ampliar esse debate para o conjunto da população brasileira e
garantir a chamada soberania alimentar; d) na luta política mais ampla, por uma sociedade mais
justa e igualitária, para além dos limites impostos por um modelo capitalista excludente e predatório
– representado pelo agronegócio, pelo latifúndio e pelas transnacionais.
9
O levantamento inicial de dados apontou esses 4 níveis que serão, oportunamente, objeto de reflexão e análise da tese.
5
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Na prática, a pesquisa já começa a revelar não somente as possibilidades de uso, mas também as
contradições e rupturas, provocadas pela incorporação de um conjunto de tecnologias digitais na
dinâmica de ação política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
O MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA: AMPLIANDO AS
FORMAS DE AÇÃO POLÍTICA NOS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADE DIGITAL
Diante do reconhecimento e da afirmação do ponto de vista ontológico, que permite e exige a
captura do objeto como totalidade, temos a tarefa de definir um conjunto mais amplo de
procedimentos, métodos e técnicas de pesquisa, que potencializem aproximações sucessivas, no
que se refere ao processo concreto de reprodução do objeto. No caso do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, a netnografia10– popularmente conhecida como etnografia virtual–
representa o caminho inicial e exploratório11 para o levantamento de dados sobre as formas de ação
política do movimento no âmbito digital. Assim, o escopo metodológico pode ser sintetizado pelo
conjunto que envolve este mapeamento, junto com a posterior análise das entrevistas e dos
questionários tabulados. Para iniciar a tarefa de investigar o uso das novas tecnologias por parte do
MST cabe enumerar e acompanhar, sistematicamente, os diferentes espaços de sociabilidade digital.
Em linhas gerais, temos um website, um blog, um jornal virtual, um canal audiovisual, além das
plataformas de redes sociais utilizadas pelo movimento.12
 Website13:
http://www.mst.org.br
10
Seguindo a tradição antropológica, o diário de campo – com observações diretas e virtuais – está sendo
potencialmente utilizado para registro do processo de coleta e análise dos dados.
11
Na caracterização descrita por Kozinets (2007) seria a chamada “entrée cultural”, como um momento de preparação
para o trabalho de campo.
12
No entanto, diante dos propósitos do presente artigo somente serão apresentados aqui o Website, além dos perfis no
Facebook, Twitter e Youtube. Portanto, não se disponibilizará informações oriundas do Blog ou mesmo do Jornal Brasil
de Fato.
13
Um website ou site (sítio eletrônico ou sítio, sítio eletrónico/web/da internet) é um conjunto de páginas web, isto é, de
hipertextos acessíveis geralmente pelo protocolo HTTP na internet. O conjunto de todos os sites públicos existentes
compõe a World Wide Web. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Site)
6
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Este espaço reúne o conjunto mais amplo de informações sobre o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, com uma gama diversificada de temas e diferentes formatos.
14
A
interconectividade e a interatividade constituem marcas importantes do site que podem ser
visualizadas de diversas formas. O site fornece a possibilidade de receber atualizações de conteúdo,
através de feeds RSS15, disponibilizando também links com as páginas do MST no Facebook e
Twitter; além do clássico “Fale Conosco” ou “Indicamos” – com sugestão de links importantes. Há
também recursos visuais interessantes: por exemplo, quando se clica em pontos de um mapa do
Brasil é possível conhecer algumas experiências de cooperativas do MST, por cada região do país.
Além disso, dados quantitativos sobre a estrutura de organização do movimento também são
apresentados, até mesmo para reforçar sua amplitude e extensão 16 .O site também apresenta as
seguintes seções: “Lutadores do Povo”, “Poemas e Poesias”, “Notas Oficiais”; “Vídeos”;
“Especiais”, “Mural”, “Eu apoio o MST” e “Sem Terrinha17”. No plano comercial é possível assinar
o Jornal Sem Terra ou mesmo comprar produtos da “Loja da Reforma Agrária 18”. Duas publicações
estão parcialmente disponibilizadas no site no formato PDF: o Jornal Sem Terra19 e a Revista Sem
Terra 20 . Utilizando também a dinâmica da virtualidade no site, o MST lança princípios mais
gerais21, disponibilizando publicações e explicitando suas “bandeiras de luta”. Tudo isso revela um
nítido esforço em democratizar o debate acerca dos princípios políticos e ideológicos do movimento
e para além dele próprio, além de estabelecer os caminhos da organização e da ação direta que
conduz o conjunto dos militantes.
14
Em termos de recursos humanos temos um editor chefe e 13 jornalistas, distribuídos por vários estados do Brasil: SP,
PE, SC, CE, MA, RJ, DF, RS, MG, AL e PR. No entanto, não é fornecida a vinculação de cada um deles com o
movimento.
15
“A tecnologia do RSS permite aos usuários da internet se inscreverem em sites que fornecem "feeds" RSS. Estes são
tipicamente sites que mudam ou atualizam o seu conteúdo regularmente. Para isso, são utilizados Feeds RSS que
recebem estas atualizações, desta maneira o utilizador pode permanecer informado de diversas atualizações em diversos
sites sem precisar visitá-los um a um. Os feeds RSS oferecem conteúdo Web ou resumos de conteúdo juntamente com
os links para as versões completas deste conteúdo.” (http://pt.wikipedia.org/wiki/RSS)
16
Presente em 24 estados das cinco regiões do país, congregando cerca de 350 mil famílias, mais de 100 cooperativas e
de 1,9 mil associações nos assentamentos.
17
Com conteúdo político voltado para o público infantil. Disponível em http://www.mst.org.br/semterrinha/jornais
18
A loja comercializa produtos com a marca/temática do MST: agendas, bonés, broches, chaveiros, cartões postais,
fotos e CDs.
19
O acervo disponível vai desde o número 293, publicado junho de 2009, até o último número mais recente do jornal, o
322, que saiu em out/nov de 2013.
20
O acervo disponível vai desde o número 24, publicado em mai/jun de 2004, até o último número da revista, o 56, que
saiu em outubro de 2010.
21
Estes pontos aparecem, de forma recorrente, em outros espaços de sociabilidade digital do MST. Reforma Agrária,
cultura e educação, combate à violência sexista, democratização da comunicação, saúde pública, desenvolvimento,
diversidade étnica, sistema político, soberania nacional e popular.
7
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Facebook22:
https://www.facebook.com/MovimentoSemTerra
Disponibiliza postagens do movimento – com textos e imagens – que podem ser comentadas e
curtidas 23 por outros usuários, além de possibilitar a conexão com textos completos no site do
movimento ou mesmo com o Twitter; além de fornecer link para os vídeos do canal do MST no
YouTube.
Twitter24:
https://twitter.com/MST_Oficial
O Twitter funciona com a publicação de chamadas rápidas e objetivas, no formato de manchetes.
Em geral, os tweets, de até 140 caracteres, estabelecem conexão com o site do MST, através de um
link, onde é possível consultar o texto completo sobre o assunto da publicação.25
 YouTube26:
http://www.youtube.com/user/videosmst
O MST mantém um canal de vídeos no YouTube, no qual disponibiliza material audiovisual digital,
sempre com conteúdo que envolve a sua luta política. Também é possível acessar uma “Playlist” ou
participar de uma “Lista de Discussão”.
O acompanhamento sistemático desses espaços de sociabilidade – com formatos diversificados:
sites, blogs, canais de vídeo, jornais e revistas virtuais, além das redes sociais – precisa estar
ancorado também em ferramentas analíticas centradas na problematização direta.
Portanto,
algumas questões são pertinentes aos objetivos previamente definidos: Quem utiliza esses recursos
22
“Facebook é um site e serviço de rede social. (...) Os usuários devem se registrar antes de utilizar o site, após isso,
podem criar um perfil pessoal, adicionar outros usuários como amigos e trocar mensagens, incluindo notificações
automáticas quando atualizarem o seu perfil. Além disso, os usuários podem participar de grupos de interesse comum
de outros utilizadores, organizados por escola, trabalho ou faculdade, ou outras características, e categorizar seus
amigos em listas como ‘as pessoas do trabalho’ ou ‘amigos íntimos’”. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Facebook)
23
Na data de 09/03/14, a página contava com 5018 curtidas de usuários da rede social. Um ponto importante é que
comentários contrários aos princípios, práticas e ações do movimento, feitos por alguns usuários, não são retirados das
publicações.
24
Twitter é uma rede social e servidor para microblogging que permite aos usuários enviar e receber atualizações
pessoais de outros contatos (em textos de até 140 caracteres, conhecidos como "tweets"), por meio do website do
serviço, por SMS e por softwares específicos de gerenciamento.As atualizações são exibidas no perfil de um usuário em
tempo real e também enviadas a outros usuários seguidores que tenham assinado para recebê-las. As atualizações de um
perfil ocorrem por meio do site do Twitter, por RSS, por SMS ou programa especializado para gerenciamento.
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Twitter)
25
Na data de 09/03/14, o perfil contava com 7.674 tweets e 42,5 mil seguidores.
26
“YouTube é um site que permite que seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato digital. (...).Hospeda
uma grande variedade de filmes, videoclipes e materiais caseiros. O material encontrado no YouTube pode ser
disponibilizado em blogs e sites pessoais.” (http://pt.wikipedia.org/wiki/YouTube)
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digitais? A quem se destina o material produzido? Quem são os aliados, os mediadores e os
opositores na dinâmica da luta política? Em que circunstâncias as correlações de força podem
se transformar? Quais princípios e valores são acionados para fomentar a luta política? Há
algum mecanismo de acompanhamento dos resultados? Mecanismos quantitativos ou
qualitativos?
Embora não se possa ainda apresentar respostas consistentes, tais questionamentos representam
parâmetros para compreender a dinâmica de tal arena virtual ao longo do processo de pesquisa.
PROBLEMATIZANDO
A
REALIDADE
SOCIAL
PELO
FIO
CONDUTOR
DA
HISTORICIDADE
Diante das considerações anteriormente apresentadas sobre o cenário em questão, caberia
aprofundar uma reflexão pertinente acerca da contradição fundamental constituinte de tais relações
sociais. Portanto, inicialmente se pode vislumbrar a seguinte problematização: Em que medida a
tecnologia digital, surgida no cerne do sistema capitalista e a serviço dos interesses da classe
dominante, poderia contribuir para formular elementos consistentes para a superação do próprio
sistema e para a emancipação da classe trabalhadora?
Compreender tal problematização, no sentido da totalidade, requer que se comece a reconstituir o
caminho de uma historicidade fragmentada e perdida pela falta de documentação conformada pelo
próprio movimento de trabalhadores rurais. O projeto de inclusão digital27 começa a ganhar espaço
no MST a partir de 2003, sobretudo com a criação de toda uma estrutura de formação e
comunicação espalhada por 23 estados e instrumentalizada por cerca de dois mil computadores
obtidos por doações. No ano seguinte, os primeiros Telecentros28 foram instalados, com o objetivo
27
A Frente Digital representa o setor responsável por administrar a área de tecnologia do movimento e, a rigor, deveria
disponibilizar documentos e manuais na rede. No entanto, ao que parece, esse conjunto de informações não se encontra
sistematizado e, portanto, não pode ser divulgado publicamente.
28
Os primeiros telecentros estavam localizados em Cantagalo (PR), Guararema e Ribeirão Preto (SP), Palmeiras de
Goiás (GO), Quissamã (SE), São Mateus (ES), Caruaru (PE) e em Igarapé do Meio (MA). Como não havia uma rede de
telefonia disponível, a conexão do Telecentro com a internet era feita através de antenas Gesac fornecidas pelo
Ministério das Comunicações (Departamento de Infraestrutura para Inclusão Digital), sendo um projeto voltado para
comunidades em situação de vulnerabilidade social O principal objetivo do Programa Gesac seria promover a inclusão
digital em todo o território nacional, disponibilizando para os Telecentros conexão de internet via satélite e terrestre.
9
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de promover a capacitação e a mobilização das comunidades 29 , em estruturas previamente
existentes, particularmente em cooperativas, escolas e centros de formação.
Nesse contexto mais amplo, começa a se priorizar a utilização de software livre. E esse processo
parece ter sido originalmente motivado/potencializado pela inserção, dentro da estrutura do MST,
de um modelo de organização oriundo da sociedade civil: os chamados Pontos de Cultura (PdC)30.
De fato, esse projeto de inclusão digital coaduna-se com um movimento estrutural do poder público
para definir e implementar políticas públicas com essa finalidade(inclusive para o campesinato).
Um campo relacional que, pela perspectiva da totalidade, acaba sendo marcado por disputas,
contradições, retrocessos e alguns acúmulos.
As Políticas Públicas de Inclusão Digital

Programa Cultura Viva31, executado pela Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural do
Ministério da Cultura (MinC). Disponibiliza recursos para equipamentos multimídia, especialmente
para produção de áudio e vídeo, com a condição de utilizar “software livre”. A Frente Digital
propôs a transformação dos Telecentros do MST em Pontos de Cultura, provavelmente para se
habilitar a concorrer nos editais, visando atualizar os equipamentos de mídia.

Programa Territórios da Cidadania, coordenado pelo Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em parceria
com órgãos do Governo Federal, estados, municípios, entidades públicas e sociedade civil. Em
2008, o MDA criou o projeto Territórios Digitais, com o objetivo de oferecer gratuitamente o
acesso à informática e internet para populações rurais, por meio da implantação de Casas Digitais.
Visa a instalação de Casas Digitais em comunidades rurais, ampliando o exercício da cidadania para
assentados da reforma agrária, agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais. Ao que
parece, no MST os Telecentros estão sendo renomeados como Casas Digitais.
29
Em geral, os cursos oferecidos utilizam a metodologia mais ampla do MST para a capacitação de militantes, incluindo
formação política, cultural, além de autogestão.
30
Entidades surgidas originalmente no âmbito da sociedade civil, mas que conseguiram conquistar o estatuto de política
pública do MinC. Os Pontos de Cultura podem ser descritos como instâncias de organização da sociedade civil que
conseguiram atingir um grau de institucionalização muito particular, notadamente pela possibilidade de sedimentação
oferecida por sua transformação provisória em política pública de governo pelo Ministério da Cultura, inclusive
incluindo uma estrutura de apoio financeiro. Os PdC emergem de uma política pública que tem como suposto articular
aspectos da cultura popular e digital nas ações voltadas para a comunidade.
31
Embora não seja voltado exclusivamente para o campesinato, o MST se utiliza de recursos dessa natureza ao integrar
o modelo do PdC ao seu modo interno de organização.
10
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A implementação dessas políticas públicas revela nuances do papel do Estado e, ao mesmo tempo,
exemplifica alguns efeitos concretos sobre os movimentos sociais. Nesse caso específico, a
estrutura do MST sofre influências da sociedade política – na figura do Ministério da Cultura e do
Ministério do Desenvolvimento Agrário – e da sociedade civil – no modelo dos Pontos de Cultura –
revelando um “modelo de gestão compartilhada”. A caracterização de uma imbricação entre Estado
e sociedade civil pode criar novos mecanismos de “opressão pública”, por vezes sutis, constituídos
em torno dos interesses do capital, até por envolver um projeto hegemônico32. Assim, inúmeras
organizações da sociedade civil e até mesmo movimentos sociais passam a ser cooptados pelo
grupo dirigente, criando situações de embate entre “projetos de dominação” e “projetos de
emancipação”.
Limitações, contradições e possibilidades oriundas da incorporação das tecnologias digitais no
cotidiano do MST
No nível do senso comum, a utilização de estratégias, práticas e ações do mundo digital pelos
movimentos sociais pode parecer um avanço linear e positivo. Todavia, no âmbito prático do MST
temos contradições, descompassos e alguns obstáculos que ainda não foram superados – até porque
são contradições estruturais que guardam relação com o sistema capitalista propriamente dito. No
plano da experiência cotidiana do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra evidenciam-se
algumas limitações em termos de hardware: como o uso de equipamentos defasados nos
assentamentos, máquinas de segunda linha; além de problemas técnicos que não podem ser
solucionados, justamente porque não há reposição de peças. Por fim, a defasagem dos
computadores também pode gerar dificuldades para que se consiga trabalhar com o material de
edição de áudio e vídeo. Em se tratando de software, também se pode identificar uma limitação
relacionada com a falta de familiaridade dos militantes com a interface gráfica dos programas
desenvolvidos pelas comunidades de “software livre”. Dificuldade, provavelmente, incutida pela
imposição ao longo do tempo do modelo hegemônico do “software proprietário”. Por outro lado,
também se pode enfatizar aspectos favoráveis no cotidiano dos assentamentos. Por exemplo, os
cursos de formação preconizam não somente garantir uma formação técnica em hardware e
32
Para Acanda (2006), a sociedade civil articula a estrutura material da cultura, garantindo o consentimento e a adesão
das classes dominadas. O conceito de “Estado ampliado” em A. Gramsci também se mostra vigoroso para compreender
as contradições observadas na referida relação.
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software, com módulos presenciais e a distância, mas também promover um fortalecimento dos
princípios agroecológicos e dos vínculos entre os militantes diretamente envolvidos e destes com
suas respectivas comunidades de origem.
Para além das atividades cotidianas e pensando no nível mais amplo de todo o movimento, as
lideranças do MST preconizam que os militantes assumam o compromisso histórico de serem os
“Comunicadores da Reforma Agrária Popular”. Para tanto, as tecnologias de informação e
comunicação são fundamentais e estratégicas. Porém, emerge a necessidade de se construir veículos
de comunicação contra hegemônicos33, de caráter popular e emancipatório, inclusive para combater
a hegemonia do agronegócio reforçada pela grande mídia. Por fim, compreender as possibilidades e
limites das ferramentas digitais 34 para os movimentos sociais não significa que tenhamos que
delimitar o escopo metodológico, apenas para os diferentes canais de comunicação virtual utilizados
pelo MST, mas sim percebê-los em sua relação dialética com as práticas políticas de ação direta,
que são acionadas pelo movimento em seu cotidiano e em situações mais amplas de embate e
conflito. E mais do que isso, também supõe acionar referenciais teóricos capazes de embasar as
análises.
“[...] todo objeto, intrínseca e extrinsecamente, é e se manifesta como um feixe entrelaçado
de inúmeras determinações, para cuja adequada reprodução teórica são indispensáveis a
delimitação e a articulação das abstrações razoáveis.,” (CHASIN, 2009, pág. 130)
Reconhecer o argumento de Chasi,
35
de que a realidade social se expressa pela
multidimensionalidade, permite realizar um movimento para situar o uso de novas tecnologias
digitais pelo MST em sua luta política, exatamente no movimento dialético que envolve “múltiplas
determinações entrelaçadas”. Vale frisar que as análises previamente apresentadas se fundamentam
na tradição crítica de pensamento, originalmente inspirada nos escritos de Marx. Portanto, o
entendimento das estratégias de ação política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
33
Durante o VI Congresso Nacional do MST, realizado em Brasília em fevereiro de 2014, a Mídia Ninja fez a cobertura
de várias ações diretas realizadas pelo movimento durante o evento. A Mídia Ninja (Narrativas Independentes,
Jornalismo e Ação) é um grupo de mídia independente que se tornou conhecido durante as “Jornadas de junho” de
2013. As transmissões realizadas pelo coletivo utilizam câmeras de celulares e são disponibilizadas em tempo real pela
Internet.
34
Em alguns casos, o levantamento de dados pode ser complementado por ferramentas de busca e de pesquisa on-line.
35
Para situar a argumentação de Chasin vale contextualizar todo esse debate, como tendo sido originalmente formulado
por Marx nos Grundisse. O autor vai descrever a realidade como uma “rica totalidade de muitas determinações e
relações”.
“O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão,
o concreto aparece no pensamento como processo de asíntese, como resultado, não como ponto de partida (...)” (Marx,
2011, página 54).
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na esfera digital toma como foco a multidimensionalidade. Assim, o rigor analítico se pauta no
método dialético e inclui uma série de categorias - como contradição, totalidade e historicidadeque são sumariamente apresentadas em situações concretas ao longo do texto.
O
DISCURSO
SOCIOAMBIENTAL
DO
MST:
A
AGROECOLOGIA
E
A
SUSTENTABILIDADE NA CONSTRUÇÃO DA “REFORMA AGRÁRIA POPULAR”
Historicamente, os movimentos sociais aparecem como atores políticos fundamentais no processo
de reestruturação da sociedade, a partir de lutas populares e democráticas de amplo espectro. A
questão ambiental começa a tomar novos contornos na década de 60, com a politização do discurso
e das ações dos movimentos sociais. Para além das limitações analíticas oriundas do paradigma dos
“Novos Movimentos Sociais” (de autores como Touraine, Offe, Melucci, Laclau, dentre outros), o
presente trabalho se vincula à “Ecologia Política”, até por esta perspectiva trazer questões
fundamentais para o debate público: percepção do impacto da dimensão material e das formas de
produção na organização da sociedade; a finitude dos recursos naturais e os efeitos da crise
socioambiental.
No entanto, nenhuma dessas duas matrizes de pensamento influenciou originalmente o MST no seu
processo de ocupação do espaço agrário. Inicialmente, o modelo de assentamento rural adotado pelo
movimento recebeu forte influência das idéias de Lênin e Kautsky. Propunha-se, portanto,
assentamentos “altamente produtivos, especializados, integrados verticalmente e coletivizados”.
(BORSATTO & CARMO, 2013). Mas, esse modelo adotado pelo MST na ocupação do espaço
rural entra em declínio, mesmo no contexto da “Revolução Verde”, na medida em que se mostrava
muito dependente da lógica estrutural de mercado e lastreado por princípios da concorrência e do
lucro. Já Chayanov desenvolve a idéia de que o campesinato deve assumir seu protagonismo e se
organizar em cooperativas. Por isso, no início do século XXI se cria no MST o Sistema
Cooperativista dos Assentados (SCA) e as Cooperativas de Produção Agropecuária (CPAs) nos
assentamentos, mas tais experiências não lograram êxito. Diante da crise, gerada pelos impasses
econômicos e ideológicos e pela resistência dos militantes, o modelo que conjugava assentamentos
e cooperativas foi sendo, gradativamente, flexibilizado e reestruturado. Assim, na configuração dos
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assentamentos, a tônica nas cooperativas foi sendo substituída pelo debate sobre a agroecologia,
sobretudo a partir da integração do MST ao conjunto da Via Campesina.
Embora a temática da agroecologia, apareça nesse momento como algo ainda difuso no cerne do
movimento, gradativamente, a questão vai ganhando consistência, inclusive com atividades de
capacitação e formação de seus militantes. Esse movimento de reavaliação ideológica esteve em
consonância com a necessidade de propor uma reforma agrária de cunho popular, como um
contraponto ao aparato capitalista de produção, representado no campo pelo agronegócio. Sendo
assim, em meados dos anos 90 o MST começa fomentar o debate sobre a matriz agroecológica. A
perspectiva neonarodnista ecológica, ancorada no populismo russo do século XIX, surge no MST
como base teórica para enfrentar a crise socioambiental, entendida como desdobramento do
desenvolvimento capitalista. Assim, o projeto ecológico do movimento supõe um viés
agroecológico, uma vez que valoriza o conhecimento tradicional do campesinato e fundamenta um
modelo “contra hegemônico” de manejo dos recursos naturais.
O IV Congresso Nacional do MST (2000) representa o grande divisor de águas em dois aspectos:
caracteriza uma nova política institucional para os assentamentos, enfatizando princípios
agroecológicos, com o manejo dos recursos naturais; e também explicita um discurso ambiental. A
luta genérica contra o sistema capitalista se transfere para a arena específica de embate com o
agronegócio, até porque este centraliza a comercialização de sementes geneticamente modificadas e
alimentos transgênicos. Por isso, as “linhas políticas” definidas a partir do evento apontam para os
seguintes pontos: o combate aos transgênicos; a defesa da soberania alimentar, dos alimentos
orgânicos e de um novo modelo tecnológico pautado na sustentabilidade ambiental. De fato, a
agroecologia aparece como um princípio fundamental que pode ser identificado expressivamente
também nos textos do V Congresso Nacional do MST (2007) e na proposta de Reforma Agrária
Popular elaborada pelo movimento.
“Indo além da concepção de democratização do acesso à terra, o MST,
através da luta por uma Reforma Agrária Popular, tem avançado no
confronto ao modelo do Capital no campo em outras frentes: na
ressignificação do trato dado pela sociedade à natureza, hoje
mercantilizada; no estabelecimento de novas relações de produção e
assumindo o desafio da transição para uma nova matriz tecnológica no
campo, a agroecologia; e na disputa das instituições do Estado para que
estas reorientem sua atuação, que hoje apenas privilegia o agronegócio, em
detrimento da agricultura camponesa.”
(http://www.brasildefato.com.br/node/27244)
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O viés socioambiental se articula ao modelo de reforma agrária que depende, dentre outros
aspectos, do debate sobre meio ambiente, biodiversidade, água doce, defesa da bacia do São
Francisco e da Amazônia. O movimento também reconhece a necessidade de que a luta pela
reforma agrária seja ampliada, sobretudo para fortalecer a aliança entre trabalhadores do campo e da
cidade, especialmente na interlocução com o poder público, visando garantir a soberania alimentar
da população brasileira. De acordo com Débora Nunes, da coordenação nacional do movimento, o
MST tem adotado uma postura de pressão sobre o poder público, visando à possibilidade de
construir mudanças sociais de cunho estrutural:
“Temos pressionado o Estado para que assuma esta nova política agrícola, com
financiamento público da produção primária, da agroindustrialização, de implantação das
infraestruturas (equipamentos, estruturas públicas, sociais e produtivas – acesso à terra,
escola, telecentros36, estradas, abastecimento de água e energia, mecanização etc), crédito,
comercialização (com abastecimento regulado pelo Estado e não desordenado pelo
mercado) (...) “no atual estágio da luta de classes é preciso inovar na percepção e no
programa que esteja além do campo. Essa proposição não está restrita ao campo; é um
projeto de agricultura para o campo, mas que resolveria problemas estruturais da sociedade
brasileira”. (http://www.brasildefato.com.br/node/27244)
Para o MST, o enfrentamento do capital atualiza-se nos embates do campesinato contra o
agronegócio, as transnacionais e o latifúndio. Todavia, para o movimento a organização da
produção no campo precisa se apresentar em consonância com lutas unificadas voltadas para o
conjunto da classe trabalhadora brasileira, com o objetivo de recompor um bloco histórico e político
de cunho popular. O modelo de Reforma Agrária Popular formulado pelo MST apresenta valores
bem definidos em torno da distribuição democrática de terras, da alimentação saudável e da
soberania alimentar, além da permanência dos jovens no campo.
“A Reforma Agrária Popular (...) um projeto que distribua terra, produza alimento saudável
e que proporcione oportunidades para a juventude se manter no campo. O que estamos
propondo é mais do que uma política distributivista de terras. É uma proposta que
representa uma nova organização da propriedade fundiária que perpassa pela mudança na
organização da produção no campo.” (ALEXANDRE CONCEIÇÃO, da coordenação
nacional do MST acessado em http://www.mst.org.br/node/15753)
Como vimos, a agenda agroecológica também acaba sendo fomentada pelo uso das novas
tecnologias digitais, seja para propagar técnicas de agricultura familiar voltadas para a produção de
36
Grifo meu, em função dos propósitos da pesquisa.
15
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orgânicos, seja para escoar rapidamente a produção e permitir a distribuição em várias localidades,
ou mesmo como uma estratégia para fixar o jovem no campo. Simbolicamente, a agroecologia
também acaba representando a construção de um novo modelo de organização para o campo 37,
sobretudo como uma forma de resgatar o saber tradicional do campesinato, voltado para uma
alimentação mais saudável, notadamente pelo consumo de orgânicos.
“Trabalhar a terra com respeito, sem o uso de agrotóxicos, preservando a natureza para as
futuras gerações. Este é um dos princípios da produção agroecológica, uma alternativa
concreta e viável ao modelo do agronegócio, que destrói o meio ambiente e gera pobreza e
violência para o campo.” (http://www.mst.org.br/jornal/263/destaque)
Como foi demonstrado, a agroecologia apresenta um lugar de destaque no discurso ambiental do
MST. Mas o termo “sustentabilidade” também aparece com certa frequência, embora curiosamente
o site somente disponibilize um único texto/entrevista 38 com essa temática. O entrevistado,
Fernando Almeida 39 , autor do livro “Os desafios da sustentabilidade: uma ruptura urgente 40 ”
descreve uma concepção de sustentabilidade por intermédio de sua obra. De fato, até mesmo o
posicionamento do entrevistado parece ser cambiante, entre a aceitação ou a crítica dessas
expressões.
“Parto do pressuposto de que o atual modelo de desenvolvimento global é insustentável.
Está provocando a falência dos serviços ambientais e o esgarçamento do tecido social, com
o aumento da pobreza, da violência, do terrorismo. Portanto, o nosso maior desafio é
subverter a ordem dos atuais modelos de negócios para provocarmos as mudanças radicais,
pacíficas e urgentes de que a humanidade necessita para continuar a viver neste planeta
(...). O conceito de desenvolvimento sustentável foi concebido em 1987, após a divulgação
do Relatório Brundtland, propondo uma profunda mudança no modelo tradicional de
desenvolvimento, que, já naquela época, se mostrava inviável sob todos os aspectos, por ser
concentrador, excludente e predador. Assim, conceitualmente, o desenvolvimento
sustentável preconiza uma relação integrada e articulada entre as dimensões econômica,
social e ambiental. Contudo, não podemos ser ingênuos de achar que uma atividade
econômica não vá causar impactos no meio ambiente. A instalação de uma mina de extração
de minério ou de uma usina hidrelétrica vai provocar desmatamento ou algum outro
impacto na natureza. A sociedade precisa do metal e energia para continuar se mantendo.
Existem, no entanto, medidas compensatórias, como recuperação de florestas no entorno do
empreendimento, instalação de infra-estrutura de saneamento para evitar contaminação dos
corpos d’água locais etc. Na outra ponta do processo produtivo, a sociedade deve
estabelecer regras para reciclagens e reaproveitamento de matérias-primas. Além disso,
37
Vide o seguinte texto publicado no site: “A Agroecologia: a construção de um novo modelo para o campo.”
<http://www.mst.org.br/jornal/263/destaque>
38
“Desafios do desenvolvimento sustentável”, publicado em 02/08/ 2007.
39
O autor é presidente-executivo do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável e Professor
adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduado em Engenharia. Também atua como engenheiro
sanitarista. Seu mestrado em Engenharia do Meio Ambiente foi obtido no Manhattan College, nos Estados Unidos.
40
ALMEIDA, F. S Os desafios da sustentabilidade: uma ruptura urgente. São Paulo: Ed. Campus/Elsevier, 2007.
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qualquer empreendimento deve contemplar no longo prazo, além da preocupação com a
perenidade dos recursos naturais, o bem-estar daqueles que vivem em seu redor. Sem essa
relação harmoniosa, não há desenvolvimento sustentável e não há sobrevivência.
(http://www.mst.org.br/node/4515)
Ao que parece, o discurso ambiental do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ganha um
teor revolucionário e transformador, quando aciona o princípio da agroecologia no combate ao
agronegócio e ao capitalismo e, por outro lado, assume uma dimensão reformista e integradora ao
defender o desenvolvimento sustentável, dentro dos preceitos do sistema capitalista. Assim, muitas
vezes, na dinâmica de construção do projeto emancipatório, os movimentos de ação direta
incorporam o ambientalismo em suas bandeiras de luta, sem que isso seja feito de forma coerente
ou mesmo reflexiva. Por isso, este é um espaço, por excelência, de percepção das contradições; ou
mesmo de tensões entre projetos de cunho revolucionário e outros de natureza reformista.
“(...) não há consenso universal ou verdade prévia, salvacionismo ou sociedade perfeita. Há
disputas por hegemonia entre projetos de sociedade portados por sujeitos, construindo a
realidade social e a verdade histórica em seu dinamismo.” (LOUREIRO, 2012, p.15)
Podemos considerar a contribuição de Alier41 (2007) como um referencial teórico consistente para
caracterizar as principais correntes do ambientalismo, a partir de valores e princípios, além de
projetos e disputas. E para compreender o papel do MST no referido cenário, cabe considerar a
tipologia42definida pelo autor para consubstanciar algumas reflexões iniciais. Em certa medida, o
discurso do MST parece apontar para a perspectiva da “Justiça ambiental ou do ecologismo dos
pobres”. Nessa visão, os impactos atingem desproporcionalmente os grupos sociais, as chamadas
minorias sociais – grupos indígenas, camponeses e pescadores artesanais. Ao mesmo tempo, o MST
também tangencia o movimento por justiça ambiental. Exatamente ao tentar intervir sobre os
conflitos ecológicos e distributivos, sobretudo na perspectiva dos protagonistas, ou seja, dos grupos
sociais em situação de expropriação e que disputam diferentes projetos de sociedade; com
diferentes propostas de atuação – divisão e concentração dos riscos. Enfim, o projeto de “Reforma
Agrária Popular” inscreve-se nessa lógica. Mas, ao defender o “desenvolvimento sustentável”, o
MST também acaba “rezando na cartilha” do “Evangelho da ecoficiência”. Por isso, é evidente que
o debate feito pelo movimento entre alimentos transgênicos e orgânicos aproxima-se dos conceitos
41
Já Loureiro problematiza a classificação de Alier, no sentido de “ter ou não ter acesso”; na medida em que o acesso
aos bens não é meramente uma questão distributiva.
42
Alier fala do “Culto ao Silvestre”; do “Evangelho da Ecoeficiência”; do Ecologismo dos Pobres e da Justiça
Ambiental”.
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de “desenvolvimento sustentável” e de “modernização ecológica”. Ao se discutir os impactos
ambientais e os sérios riscos à saúde, o movimento acaba argumentando a favor da gestão científica
dos recursos naturais.
Além de ser um termo consagrado pela mídia, a sustentabilidade também se insere em um conjunto
de fins normativos e instrumentais contidos nas formulações da ONU43 para definir a “década da
educação para o desenvolvimento sustentável (2005-2014)”. Mesmo que indiretamente, tais fatores
acabam por legitimar o sistema e sua lógica subjacente de consumo exacerbado. De tal maneira,
problematizar o uso do conceito de “desenvolvimento sustentável” significa revelar a
funcionalidade do termo sustentabilidade 44 , como um instrumento de manutenção do sistema
capitalista. Em suma, a escala da mudança pretendida pelo consumo sustentável é meramente
superficial, já que se concentra no âmbito comportamental, sem questionar a estrutura de
exploração e desigualdade do sistema capitalista. Ao que parece, o debate no MST já consegue
fazer esse tipo de crítica, sobretudo ao estabelecer o enfrentamento com o agronegócio.
A obra de O’Connors (2002) também questiona a validade do conceito de desenvolvimento
sustentável, afirmando ser incompatível com a atual estrutura do capitalismo, a não ser que o
sistema modifique seu eixo fundamental – perdendo sua identidade original de lucro, exploração e
desigualdade. De fato, a viabilidade do desenvolvimento sustentável seria menos um problema
“econômico-ecológico” – de proporcionar os meios de vida aos povos do mundo, sustentar as
formas de vida tradicionais e garantir a sustentabilidade ecológica – do que uma questão “políticoideológica” de manter a acumulação capitalista em escala global. No entanto, a sustentabilidade
econômica, com aumento da taxa de lucro e dos patamares de acumulação, acaba sendo ameaçada
pelos níveis de desigualdade produzidos pelo próprio sistema, na medida em que a economia
mundial criou uma grande quantidade de pobres e miseráveis. Assim, o capitalismo tende à
autodestruição e crise, até mesmo em função da contradição45 entre produção (social) e apropriação
(privada).
43
O desenvolvimento sustentável aparece como uma “ideia-força” dentro dos princípios das classes dominantes
apresentados pela ONU, sendo o conceito oficialmente definido por essa entidade em 1987, pensando o
desenvolvimento associado ao crescimento e à expansão do mercado.
44
O conceito de sustentabilidade, elaborado dentro do campo da Biologia, acaba sendo trazido para o campo da política
e da economia; apresentando como pressuposto definir quanto se pode retirar do sistema sem prejudicá-lo – delimitando
sua capacidade de suporte.
45
O’Connors fala da “crise de demanda” (contradição capital- trabalho) e da “crise de custos” (contradição capitalnatureza).
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Ampliando o debate, Loureiro (2012) tece considerações acerca do conceito de “desenvolvimento
sustentável” e acaba concluindo que este não é compatível com a tradição crítica. A noção de
desenvolvimento sustentável encontra-se impregnada de ranços da tradição científica positivista,
exaltando o primado da razão e da técnica e adotando a noção de progresso linear e hierárquico,
como critério de modernidade e de cientificidade. Esse paradigma reforça um projeto político
dominante, baseado no mercado e na propriedade privada, a partir de uma visão de mundo linear e
mecânica.
Por sua vez, nos conflitos distributivos, a ecologia política propõe um debate para além da
dimensão econômica, tentando estabelecer uma conexão entre os conflitos locais e as redes globais.
E algumas ações diretas e virtuais do MST já parecem reconhecer esses pressupostos, sobretudo ao
estabelecer conexões com redes de movimentos sociais no Brasil e no mundo. Para pensar esse
cenário de conflitos, que envolvem diferentes movimentos sociais, alguns autores (LOUREIRO,
BARBOSA, ZBOROWSKI: 2009) caracterizam o campo ambiental como um espaço de disputas de
poder - transversalmente constituídas, por intermédio de diversos saberes incluídos. Assim,
emergem mecanismos de conflito, pela tensão entre elementos de expropriação/exclusão. E no caso
do MST se inclui especialmente a luta pela terra.
“Exatamente porque foi no contexto europeu da reorganização das lutas sociais do
século XX que certos movimentos e organizações sociais e grupos de intelectuais, ao
reconhecerem que há limites nas relações materiais e energéticas que estabelecemos
socialmente com a natureza, colocaram em questão a viabilidade de uma existência
alienada, destrutiva, acumuladora de riquezas.” (LOUREIRO: 2012, p.19)
A desigualdade social aparece como a grande contradição do sistema capitalista, sendo
especialmente revelada pela ecologia política através do binômio “acumulação econômicaexploração da natureza”. Loureiro (2012) reúne dados que demonstram a permanência desse
quadro: concentração de riquezas, poderio das multinacionais, perda da biodiversidade, aumento
dos níveis de miserabilidade e a degradação das condições de vida. E no reconhecimento dessa crise
socioambiental, o MST organiza sua luta política no embate com o capital e com o agronegócio. De
fato, o cerne da questão está em compreender que o problema ambiental está relacionado com uma
determinação social, historicamente oriunda do modo de produção capitalista que estabelece como
prioridade a acumulação de riquezas. Não se trata de culpabilizar a natureza humana, de forma
ampla, ou o gênero humano, abstratamente, pelas ações predatórias, pois o que está em jogo são:
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“(...) modos específicos de relações sociais que determinam formas de uso e apropriação da
natureza, pautadas na exploração intensiva do trabalho e dos recursos vitais
disponibilizados pela natureza (...) atribuir à espécie o que é próprio a formações
socioeconômicas historicamente criadas (...)” (LOUREIRO, 2012, p.25)
E como afirma Harvey (2004), a subordinação e a dependência imperam nos processos econômicos
de cunho global, reforçando, ainda mais, o cenário de desigualdade local, nacional e transnacional;
ampliando o fosso entre os países periféricos e os países centrais. E provavelmente até se amplie a
disparidade histórica entre cidade e campo.
Nos termos da problematização que esse trabalho de pesquisa apresenta, cabe situar as
contribuições de SlavojŽižek 46 para subsidiar o entendimento dos antagonismos inerentes ao
capitalismo mundializado. Para o autor:
“A única questão verdadeira hoje é: o capitalismo global contém antagonismos fortes o
suficiente para impedir sua reprodução indefinida? Existem, penso eu, quatro desses
antagonismos: a ameaça iminente de uma catástrofe ecológica, o caráter inapropriado da
propriedade privada para designar a chamada ‘propriedade intelectual’, as implicações
socioéticas dos novos desenvolvimentos tecno-científicos (especialmente na biogenética) e,
por último, mas não menos importante, as novas formas de apartheid, os novos muros e
favelas.” (ŽIZEK, 2012; páginas 75-76)
Considerando a possibilidade de constituição de uma frente de luta anticapitalista por parte dos
movimentos sociais, cabe investigar em que medida o MST consegue incorporar no seu debate
ideológico, sobre a Reforma Agrária Popular, e na sua luta política, contra o agronegócio, duas
questões fundamentais elencadas por Žižek:
a) A expressão do general intellect47– da inteligência social ou coletiva – sob a forma do trabalho
imaterial contido no software livre. Ao que parece, em termos da apropriação reflexiva dessas
tecnologias digitais por parte dos movimentos sociais, o “software livre”48 pode constituir uma das
46
Autor extremamente perspicaz para identificar o caráter mutante do sistema capitalista, no sentido de se manter
hegemônico, mas igualmente sensível para definir antagonismos vigorosos que inspiram as formulações analíticas
iniciais do presente trabalho.
47
Categoria originalmente utilizada por K. Marx na obra intitulada Grundrisse.
48
Todo programa de computador requer uma licença de software, entendida como um instrumento jurídico que
determina formas de uso ou redistribuição, seja por direitos autorais ou na forma de domínio público. Assim, temos
as “licenças proprietárias” – modelo ditado pelas grandes corporações, basta observar a prevalência do Windows da
Microsoft, que não permitem o compartilhamento e o livre uso do código – e as “licenças de código livre e aberto”.
No modelo de software proprietário, o editor concede o direito de uso, mas não a propriedade do software. A relação
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bases ideológicas do movimento anticapitalista, especialmente na vertente de enfrentamento da
“apropriação privada do general intellect”. Portanto, cabe observar e acompanhar os
tensionamentos, em termos de limites e possibilidades, para que o software livre represente para o
MST uma estratégia “contra hegemônica de embate frente ao sistema capitalista”.
b) A ameaça de uma catástrofe ecológica, no contexto de uma crise socioambiental. No âmbito do
MST, a superação do sistema capitalista se traduz pelo embate direto com o agronegócio. Assim, a
agroecologia aparece como princípio norteador das práticas ambientais, até mesmo porque seu
modelode produção e organização fundiária toma como referência a produção familiar, a
preservação da biodiversidade, além da comercialização e produção de sementes e alimentos
agroecológicos.
As considerações iniciais, apresentadas pelo presente trabalho, pretendem situar as ações do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no contexto de questões e embates produzidos no
campo da Ecologia Política, localizando os limites e as possibilidades, além das contradições
constituintes do projeto ambiental elaborado pelo MST. Assim, já podemos enumerar duas
contradições: a) quando se conjuga um modelo de agroecologia dentro da dinâmica capitalista e do
mercado de trabalho, perdendo o posicionamento de enfrentamento radical do agronegócio; b)
quando se afirma a segurança alimentar das famílias e a soberania alimentar do país e, ao mesmo
tempo, também se fala em dinamizar economias regionais pela geração de mais empregos. Enfim,
em ambos os casos se continua operando dentro dos preceitos do sistema capitalista.
Mas, na perspectiva do método crítico e dialético, as transformações e seus impactos não são
inexoráveis, pois dependem do sentido atribuído e do lugar social dos sujeitos e agentes societários.
Ao eleger a teoria crítica e o método dialético como referenciais para compreender as formas de
ação política do MST no século XXI, estamos claramente negando o conhecimento particularista de
interesse de determinados grupos de poder e assumindo o conhecimento emancipatório, voltado
entre as partes é definida pelo contrato de licença de usuário final (EULA) que estabelece, dentre outros aspectos, o
número de instalações permitidas, os termos de distribuição e a lista de atividades que são restritas. Por outro lado, as
licenças de código aberto podem ser agrupadas em duas categorias: as licenças copyleft e as licenças permissivas. No
modelo de software livre e de código aberto não há a necessidade de adesão aos termos da licença para uso, no
entanto se o usuário final quiser exercer direitos adicionais concedidos por uma licença de software livre, além do
uso, como o direito de redistribuir o software, então ele precisa aceitar a licença. Já as licenças BSD e a MIT, que
não são copyleft, não estabelecem restrição para que o trabalho derivado esteja configurado sob o mesmo tipo de
licença. Nesses termos uma obra criada como software livre, de forma colaborativa, pode ser transformada e ser
novamente licenciada para fins comerciais, perdendo todo seu sentido de contestação da informação como
propriedade. Enfim, nesse caso, há uma conjugação entre software livre e comercialização.
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para a reflexão-ação acerca dos processos estruturais de dominação. Como já foi demonstrada, a
complexidade do cenário em que o MST aciona o aparato de tecnologia digital no enfrentamento da
hegemonia capitalista49, somente pode ser entendida nos termos de uma análise histórica e estrutural
que supõe o entendimento das múltiplas determinações, percebendo as contradições e
reconstituindo o fluxo da totalidade. Por fim, assumir a tarefa de refletir sobre as possibilidades e
limites advindos da experiência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra significa
também revelar, dialeticamente, o sentido e a profundidade da mudança que estamos vivenciando.
REFERÊNCIAS
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