BoLetiM Doença de Alzheimer pode prejudicar a capacidade de

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BoLetiM Doença de Alzheimer pode prejudicar a capacidade de
ABNews
BoLetiM
uma publicação da academia Brasileira de Neurologia | ano 11 | edição 3 | Mai/Jun 2015 | iSSN 2175-1080
Doença de
Alzheimer pode
prejudicar a
capacidade
de identificar
emoções Página 7
Abordagem clínica
na concussão
Entenda melhor o
estado de mal epiléptico
Página 5
Caracterizado por perda súbita de
consciência, movimentos desordenados,
bruscos e involuntários da musculatura
corporal, e aumento da atividade glandular,
com salivação e vômitos, o estado de mal
epiléptico é uma afecção grave e com altos
índices de mortalidade. É indispensável
compreender melhor seus aspectos, bem
como as alternativas de tratamento e as
novidades científicas. Página 3
Como a especialidade
se posiciona nos
Conselhos de Medicina
Página 6
Planejamento financeiro
no início da carreira
Página 10
A Neurologia como
ferramenta preventiva
Página 11
Cultura gota a gota:
o mundo, da janela
Página 12
Conscientização sobre
doença de Pompe
A ABN realizou, em todo o Brasil,
a terceira edição da Campanha
Nacional de Conscientização
sobre Doença de Pompe, afecção
genética rara que acomete o
tecido muscular. Neste ano, o
tema foi “Tempo é músculo, e
músculo é vida”. Página 9
2 editorial
ABNews
BOLETIM
Diretoria Executiva da ABN
Presidente
Rubens José Gagliardi
Rubens José Gagliardi
Presidente
Você merece sempre o melhor
C
olega neurologista, mais uma vez nosso Boletim ABNews traz conteúdo de altíssimo nível com informações diferenciadas para garantir a
todos os associados acesso aos conteúdos mais recentes e confiáveis
do ponto de vista científico.
Na seção “Entrevista com o Autor”, apresentamos importante estudo sobre o
reconhecimento das emoções faciais em pacientes com doença de Alzheimer.
Trata-se de aspecto essencial para a elaboração de estratégias que contribuam
com a interação social dos portadores de doença de Alzheimer, além da perspectiva de se tornar ferramenta diagnóstica em um futuro próximo.
Já em “Consenso”, abordamos o estado de mal epiléptico, enfatizando as alternativas terapêuticas e o que há de mais novo em discussão nos principais
centros de Neurologia. Para aqueles que lidam com a doença em sua prática
diária, é fundamental a leitura dessa entrevista.
A seção “Diretrizes” destaca a concussão, discorrendo sobre a relevância
clínica e a incidência, particularmente em atletas e vítimas de acidentes
de trânsito.
Pelo conjunto da obra que discorri acima, afirmo, sem medo de errar, que
temos informações de excelência, extremamente úteis para os neurologistas
e demais profissionais que vivem o dia a dia de nossa especialidade.
Aliás, nossa preocupação transpõe o científico. Sempre trabalhamos para
oferecer aos cidadãos orientações e assistência de qualidade, como no caso
da Campanha Nacional de Conscientização sobre Doença de Pompe. Organizamos mais de 50 eventos, em 23 Estados, disseminando o conhecimento,
despertando o interesse da população e dos médicos de todas as regiões, e,
consequentemente, possibilitando um número maior de diagnósticos.
Já na seção “Em Defesa do Neurologista”, as ações dos Conselhos de Medicina em prol da especialidade ganham espaço, reiterando a contínua luta da
ABN pelo fortalecimento da Neurologia. E em “Canal do Residente”, há dicas
valiosas para o planejamento financeiro no início da carreira.
Para concluir esta edição, dois de nossos membros, na seção “Emérito &
Aspirante”, discorrem sobre a Neurologia como ferramenta preventiva, pensando na promoção da saúde e do bem-estar da população.
Espero que tenha uma leitura prazerosa e enriquecedora. Até a próxima!
Boletim ABNews – www.abneuro.org.br
Secretário-geral
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Primeiro-secretário
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ISSN 2175-1080
Publicação dirigida ao profissional de saúde
Edição nacional com distribuição gratuita
CoNSeNSo 3
Entenda melhor o estado de mal epiléptico
C
aracterizado por perda súbita de consciência, movimentos desordenados, bruscos
e involuntários da musculatura corporal, e
aumento da atividade glandular, com salivação e
vômitos, o estado de mal epiléptico (EME) é uma
afecção grave e com altos índices de mortalidade. É indispensável compreender melhor seus aspectos, bem como as alternativas de tratamento
e as novidades científicas, conforme destaca, na
entrevista a seguir, a neurologista Eliana Garzon,
médica responsável pelo Laboratório de Eletroencefalografia do Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo.
Quais as definições atuais do EME?
Classicamente, o EME é definido como repetidas
crises epilépticas ou uma crise prolongada capaz
de provocar uma condição duradoura e invariável.
Embora esteja implícita nessa definição uma longa
duração e uma situação clínica relativamente grave,
não há inferência sobre o limite de tempo. Para a
prática diária, muitos autores adotam a chamada
definição operacional, utilizando como critério o
tempo e o estado de consciência. Assim, a definição para EME é uma crise epiléptica com duração
≥ 30 minutos, além de repetidas crises de menor
duração, porém sem recuperação da consciência
entre elas. Crises epilépticas com duração mínima
de 30 minutos foram comparadas com aquelas de
duração entre 10 minutos e 29 minutos1,2. Embora
os dois grupos de pacientes demonstrassem características epidemiológicas similares, 93% dos casos
com duração ≥ 30 minutos necessitaram de administração de fármacos antiepilépticos para encerrar
os ataques. No grupo com acessos que duravam de
10 minutos a 29 minutos, a interrupção foi espontânea em 43% dos pacientes. A mortalidade também foi significativamente diferente entre os dois
grupos, sendo de 19% entre aqueles com duração
mínima de 30 minutos e de 2,6% no grupo de 10
minutos a 29 minutos. Esses dados demonstraram
que o limite de tempo de 30 minutos parece ser o
ideal para a definição de EME, embora, na prática
clínica, não seja recomendado esperar esse limite
para iniciar a terapêutica específica. O tratamento
deve ter início o mais brevemente possível, ainda
na fase denominada pré-EME ou EME iminente,
com o intuito de evitar a evolução para EME estabelecido e EME refratário. Entretanto, deve-se
considerar que, do ponto de vista de classificação,
prognóstico e evolução, as crises com duração de
até 29 minutos são diferentes das situações com
duração mínima de 30 minutos. Mais recentemente, no glossário de terminologia proposto pela
International League against Epilepsy (ILAE)3, definiu-se EME como uma crise epiléptica que não demonstre nenhum sinal clínico de interrupção após
um período esperado para seu fim, na maioria dos
pacientes, ou ainda em quadros recorrentes sem o
retorno das funções neurológicas basais, incluindo
não somente distúrbio da consciência, mas qualquer tipo de déficit neurológico persistente. Apesar
de, mais uma vez, não haver um limite de tempo
preciso estabelecido, essa definição nos parece
muito mais ampla, pois fica implícita uma duração
muito inferior a 30 minutos. Pessoas com ataques
recorrentes e com quaisquer déficits neurológicos
também estão incluídas nessa definição.
Em momentos de crise, qual benzodiazepínico intravenoso usar?
O EME é uma emergência médica e, como tal, as
medidas gerais devem merecer a mesma atenção
que as medidas farmacológicas específicas4. No
caso da farmacoterapia, todo serviço de urgência
deve ter um protocolo sistematizado para tratamento baseado nas recomendações vigentes na
literatura, no perfil dos pacientes e na disponibilidade de recursos. Sugerimos iniciar por infusão
intravenosa de 40 ml a 60 ml de glicose a 50% para
adultos e de 2 ml/kg de glicose a 25% para crianças, independentemente de história de
diabetes melito, com o duplo intuito de
impedir lesões neuronais decorrentes da hipoglicemia e interromper o
EME, se essa for sua etiologia. Caso
ocorra, a hiperglicemia poderá ser
facilmente corrigida após a checagem dos resultados dos exames
laboratoriais. Simultaneamente à
infusão de glicose, devem ainda ser
injetados 100 mg a 250 mg de tiamina por via endovenosa em pacientes
com história de etilismo e de 50 mg a
200 mg de piridoxina em crianças com menos de
18 meses de idade para o teste diagnóstico de uma
condição metabólica rara, porém tratável, com piridoxina: a dependência de piridoxina. Pelo seu
rápido tempo de ação, os benzodiazepínicos são
os fármacos mais eficientes na fase aguda. Alguns
protocolos sugerem como primeiras opções diazepam ou midazolam5. O diazepam é usado em
bolus e sem diluição, inicialmente na dose de 5 mg
a 10 mg em adultos (não ultrapassar 40 mg) e de
0,2 mg/kg a 0,3 mg/kg em crianças, não excedendo a velocidade de infusão de 2 mg/min a 5 mg/
min em adultos e de 1 mg/kg/min em crianças. Os
principais efeitos colaterais são depressão da consciência e depressão respiratória. O controle do EME
pode ser obtido entre 1 minuto e 10 minutos após
a administração do diazepam. O midazolam pode
ser usado na dose de 5 mg a 15 mg no paciente
adulto e de 0,15 mg/kg a 0,3 mg/kg na criança.
Se a via intravenosa não estiver imediatamente disponível, como proceder?
O diazepam não é bem absorvido por via intramuscular, mas pode ser uma excelente opção
via retal, especialmente em crianças, na dose de
0,5 mg/kg. O midazolam tem a vantagem das
múltiplas vias para uso, como intranasal, bucal
ou mesmo intramuscular. As doses preconizadas
para as vias intramuscular, intranasal ou bucal é
de 5 mg a 10 mg no adulto e de 0,15 mg/kg a
0,5 mg/kg na criança. Alguns autores sugerem
que existe maior eficácia quanto ao controle das
crises com o uso de midazolam bucal comparativamente ao diazepam retal6.
Quais os medicamentos de primeira e segunda linhas após utilização de benzodiazepínicos?
A fenitoína deve ser utilizada na sequência, mesmo que as crises sejam interrompidas, em função
da alta probabilidade de recidiva, decorrente da
curta meia-vida dos benzodiazepínicos. A dose de
ataque de fenitoína para adultos e crianças é de 20
mg/kg, em bolus, de preferência sem diluição. Caso
seja necessário, diluir em solução salina a 0,9% utilizando equipos de soro com filtros para remoção
dos grumos de precipitação. A velocidade de
infusão não deve ultrapassar 50 mg/min
em adultos, 25 mg/min em crianças e 20
mg/min em pacientes idosos. Os principais efeitos colaterais são arritmia
cardíaca e hipotensão arterial. A
infusão deve ser feita com monitoramento eletrocardiográfico. O
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4 CoNSeNSo
controle do EME pode ser esperado entre 10 minutos e 30 minutos após sua administração. Nos casos
resistentes, doses adicionais de diazepam podem
ser utilizadas, até a dose total de 30 mg a 40 mg em
adultos e de 0,4 mg/kg a 0,5 mg/kg em crianças.
Outra dose adicional de fenitoína até completar a
dose máxima de 30 mg/kg/dia (crianças e adultos)
também é alternativa. Se não houver controle do
EME com essas medidas, utilizam-se os fármacos de
segunda linha como o fenobarbital, solução aquosa, na dose de 5 mg/kg a 10 mg/kg por via endovenosa em adultos e de 10 mg/kg a 20 mg/kg em
crianças, na velocidade de infusão de 100 mg/min.
Em altas doses, os efeitos colaterais esperados são
hipotensão arterial, depressão respiratória e depressão da consciência. Se as crises persistirem após as
etapas terapêuticas descritas, ou seja, sem resposta
satisfatória ao tratamento com os fármacos antiepilépticos de primeira e segunda escolhas (benzodiazepínicos, fenitoína e fenobarbital), chegando-se
ao tempo de 60 minutos sem controle das crises,
define-se EME refratário. Atualmente, antecedendo
o coma barbitúrico (tratamento clássico), o midazolam contínuo é uma opção para o controle do EME
refratário. Muitos serviços, na tentativa de evitar os
efeitos sedativos do fenobarbital, iniciam o midazolam contínuo mesmo antes da realização do fenobarbital sódico endovenoso.
Há novos fármacos antiepilépticos para
tratamento do EME?
Para o EME que não respondeu às medicações
de primeira e segunda linhas, estudos demonstram
que novos fármacos, como topiramato e levetiracetam, valproato endovenoso e, mais recentemente,
lacosamida, são possibilidades terapêuticas com
significativa probabilidade de eficácia. O topiramato
é uma opção após falha em todas as tentativas habituais de controle7-10. Como anticonvulsivante com
múltiplos mecanismos de ação, em receptores e canais iônicos, pode ser mais eficiente que os fármacos
convencionais para o tratamento do EME refratário.
A dose utilizada em adultos varia de 300 mg a 1.600
mg/dia, em três tomadas diárias, e em crianças, de 2
mg/kg/dia a 25 mg/kg/dia. Os comprimidos devem
ser amassados, diluídos em água e administrados
por sonda nasogástrica. As doses são tituladas em
um período de 24 horas a 72 horas. Seu efeito terapêutico é esperado em 12 horas a 48 horas, porém
uma ação benéfica é notável em cerca de 6 horas
no EME parcial complexo ou em até 10 dias se for
utilizada baixa dosagem (200 mg/dia) em casos de
EME generalizados9. Estudos em animais demonstram que, apesar de seu benefício no controle das
crises, o topiramato não apresenta efeito neuroprotetor no EME, como incialmente presumido10. Outra
opção para o tratamento em situação refratária é o
uso de valproato endovenoso e do levetiracetam.
O valproato tem a vantagem de possuir amplo espectro de ação e apresentar baixa ligação proteica
e cinética linear11,12. Quanto aos efeitos colaterais,
pode haver alterações hematológicas e hepáticas,
felizmente raras, porém potencialmente graves. A
dose utilizada é de 30 mg/kg em 15 minutos, após
as medidas e medicações iniciais já citadas, seguidos
de 10 mg/kg após 10 minutos, caso não haja controle das crises. Sua eficácia parece ser semelhante à
da fenitoína, com a vantagem de menor incidência
de efeitos colaterais, entre os quais menor interação
com outros fármacos é da cinética linear. O valproato endovenoso está disponível no Brasil. O levetiracetam apresenta pequena taxa de metabolização hepática, baixa toxicidade
aguda, além de pouca interação com
outros fármacos; sua desvantagem,
porém, reside na chance de aumento
de sonolência, agressividade e complicações psiquiátricas. As doses variam
de 1.000 mg a 3.000 mg ou de 20 mg/
kg a 60 mg/kg, com sucesso em abortar as
crises em 31% a 100% dos casos, a maioria
em EME com parciais complexas, porém há
casos de EME com crises generalizadas e
EME não convulsivo13-16. Sua vantagem é a
diminuta indução enzimática hepática, o
que o faz ser boa escolha nos casos em que
haja comprometimento do fígado; no entanto, dois casos de trombocitopenia transitória
foram relacionados a seu uso15. Em crianças, o
uso do levetiracetam no EME refratário demonstrou eficácia em 47% dos casos utilizando 40
mg/kg/dia, sem efeitos colaterais significativos,
com resposta média em 1,5 dia (variando de 1 dia a
8 dias)16. Em EME experimental, houve menor dano
hipocampal nos ratos que receberam levetiracetam,
comparativamente ao grupo controle17. Vale lembrar que o levetiracetam ainda não está disponível
no Brasil, seja em formulação oral ou intravenosa. A
lacosamida é outro novo fármaco com as vantagens
de estar liberada no Brasil e de ser aplicável por via
intravenosa. Com o objetivo de rever a eficácia da
lacosamida para EME refratário, há um estudo de
revisão sistemática usando bases de dados como
MEDLINE, PubMed, EMBASE, IPA, Google e Google Scholar18. Foram encontrados 13 estudos com
lacosamida em EME refratário, dos quais 11 relataram boa eficácia (média 64,7%) no que se refere ao
controle das crises18. Os efeitos colaterais relatados
foram tontura (21,8%), alterações visuais (10,4%),
sonolência (7,4%), cefaleia (7%), náusea (6,5%) e incoordenação motora (5,8%)18.
Como analisa o papel de novos antiepilépticos?
Com a possibilidade de novos fármacos, há
um potencial significativo de avanços no tratamento do EME. Atualmente, as opções são limitadas, muitos fármacos apresentam importantes
efeitos colaterais e nem sempre proporcionam a
eficácia desejada. Neste momento, todos os novos fármacos são utilizados em EME refratário, o
que pode demonstrar eficácia modesta, uma vez
que a fisiopatologia nessa situação é complexa, e
envolvem alterações de membrana, receptores e
de neurotransmissão. Mesmo com respostas semelhantes, a tendência é optar por fármacos com
menor incidência de efeitos colaterais e menor
interação com outros fármacos. Poucos estudos
comparam a utilização de novos fármacos na fase
de EME estabelecido. Na literatura, há um estudo
interessante sobre esse tema19. Após avaliação sistemática de eficácia baseada em evidência, cinco
fármacos antiepilépticos foram comparados em
EME convulsivo que não respondeu a benzodiazepínicos. Foram incluídos 22 estudos para metanálise. A eficácia do levetiracetam foi de 68,5%; do
fenobarbital, de 73,6%; da fenitoína, de 50,2%; e
do valproato, de 75,7%. Os estudos relacionados à
lacosamida foram excluídos da metanálise por dados insuficientes. Há uma necessidade urgente de
mais estudos, com maior número de casos com
resposta de alta eficácia, assim como efeitos colaterais desses fármacos, não apenas em EME refratário mas também no estabelecido e até no iminente. Além dos fármacos, outras medidas, como
o papel da hipotermia em EME, precisam de melhor avaliação. Sabe-se que o EME tem apresentações clínicas heterogêneas e, principalmente, que
as formas não convulsivas ainda representam um
desafio para o diagnóstico. EME é emergência em
Neurologia e ainda é um desafio em vários aspectos. Muitos estudos na área são esperados, incluindo protocolos de conduta e tratamento, para um
prognóstico mais adequado.
As referências citadas na entrevista podem ser encontradas no website da ABN (www.abneuro.org.br).
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RECOMENDAÇÃO DOS DCs 5
Abordagem clínica na concussão
Por Renato Anghinah*
A
relevância clínica da concussão vem
sendo debatida cada vez mais. As concussões nos atletas e nos militares, antes
consideradas problemas pequenos, agora são
vistas como problemas de saúde pública. Em
1997, a American Academy of Neurology (AAN)
publicou a primeira diretriz sobre concussão nos
esportes, na esperança de fornecer um quadro
claro para os médicos para que eles pudessem
diagnosticar e manejar a concussão1. No Brasil,
o cenário não é muito diferente quando contabilizamos as inúmeras vítimas dos acidentes de
trânsito, que é epidêmico em nosso País.
Definição
A concussão é definida como uma complexa
resposta fisiopatológica a forças biomecânicas
transmitidas ao cérebro2,3. Também tem sido descrita como uma constelação de sintomas neurológicos transitórios que refletem uma lesão funcional,
em vez de estrutural1. Na maioria das definições, é
tomado cuidado para diferenciar a concussão de
traumas cranioencefálicos (TCEs) mais graves, que
usualmente são aqueles relacionados a um escore
de 12 ou menos na Escala de Coma de Glasgow.
Por esse motivo, o termo TCE leve tem sido amplamente utilizado como sinônimo de concussão.
A falta de alterações agudas vistas nos exames de
rotina de neuroimagem (tomografia computadorizada ou ressonância magnética padrão) também é
importante para o diagnóstico de concussão.
A fisiopatologia da concussão continua a ser
elucidada. Atualmente, presume-se que a síndrome clínica da concussão seja o resultado de
forças biomecânicas que induzem uma cascata
metabólica complexa envolvendo um prejuízo
na função dos neurotransmissores, excitotoxici-
dade, e concentrações intracelulares e extracelulares anormais de íons4. Em modelos animais, a
maioria desses efeitos dura de horas a vários dias.
Ainda não se sabe o papel exato dos efeitos do
estiramento axonal na concussão. O fluxo sanguíneo cerebral diminui significativamente (cerca de 50% do normal) dias após uma concussão
induzida em animais5. Não é necessário que um
objeto entre em contato com o crânio ou com
a cabeça para que o cérebro desencadeie essa
cascata. O único pré-requisito biomecânico para
a lesão é a presença de uma força de aceleração/
desaceleração grande o suficiente.
A falta de um teste objetivo disponível demonstrando a presença da lesão fisiológica anteriormente descrita faz com que a concussão
continue sendo um diagnóstico clínico. O termo
“subconcussão” tem sido usado para descrever
um tipo de TCE leve, em que não há manifestação de sintomas clínicos6.
As apresentações clínicas da concussão são
heterogêneas e, não surpreendentemente, é
difícil localizar uma região anatômica específica.
A natureza difusa da lesão, em vez disso, produz
síndromes clínicas que envolvem frequentemente a ruptura de redes cerebrais funcionais, tais
como as responsáveis pela memória, pelo equilíbrio e pelo controle vestibular.
Habilidades
Como mencionado anteriormente, não existe
nenhum teste objetivo confiável para o diagnóstico de concussão. Por isso, os médicos devem
confiar em sua habilidade e experiência em fazer
um diagnóstico neurológico clínico2,6. No entanto,
o diagnóstico de concussão pode nem sempre
ser claro, independentemente da qualidade da
avaliação e da habilidade do examinador.
Para oferecer o melhor atendimento possível,
é preciso também decidir se o paciente deve ou
não ser tratado como se tivesse o diagnóstico de
concussão. Para auxiliar nessa decisão, pode ser
extremamente útil classificar os diagnósticos de
concussão por graus de certeza7:
1. Concussão possível – a concussão não é a
causa mais provável da apresentação clínica. Outras possíveis explicações são identificadas, tais
como enxaqueca, desidratação ou doença viral. A
lesão traumática presumida não foi testemunhada
ou é difícil de descrever. O manejo é situacional,
cabendo ao médico decidir se tratará como uma
concussão ou não, baseando-se naquela situação
clínica específica. Pode ser necessária a observação
detalhada e uma avaliação diária desses pacientes.
2. Concussão provável – a concussão é a
causa mais provável da apresentação clínica.
Embora existam outras explicações possíveis,
elas são consideradas menos prováveis. A lesão
traumática foi claramente definida por testemunhas ou pode ser identificada em um vídeo. Em
relação ao manejo, o paciente deve ser tratado
como tendo uma concussão.
3. Concussão definitiva – os pacientes apresentam clara perda/alteração de consciência após
trauma biomecânico testemunhado. Os sintomas
podem ser considerados como causa das manifestações clínicas. Na ausência de perda de consciência,
a observação da postura do paciente – se feita por
um médico experiente em identificar esse sinal físico
– pode ser útil para determinar se se trata de concussão definitiva. Na maioria dos casos de concussão definida, no entanto, não é observada nenhuma
perda de consciência nem de postura. Em vez disso,
uma síndrome clínica clara de concussão existe na
ausência de qualquer outra explicação razoável para
os sintomas. Nesses casos duvidosos, o paciente
deve ser tratado como tendo uma concussão.
Diagnóstico
Embora comumente associada à concussão, a
perda de consciência não é um requisito para o diagnóstico de concussão. Na verdade, menos de 10%
das concussões diagnosticadas envolvem perda de
consciência2,6. Algum grau de amnésia anterógrada
ou retrógrada é muito mais comum na concussão
que a perda de consciência, ocorrendo em cerca de
30% a 50% dos pacientes, enquanto dor de cabeça é o sintoma mais comum relatado no geral8. Os
pacientes com concussão geralmente apresentam
uma síndrome clínica semelhante àquelas observadas em outros pacientes neurológicos. Por exemplo,
os sintomas físicos de desequilíbrio e tontura irão
lembrar o neurologista de pacientes com causas
centrais ou periféricas de vertigem:
1. Sinais e sintomas na cognição/no estado mental – desatenção, raciocínio lento, amnésia, confusão,
desorientação, olhar vago, perda de consciência.
2. Sinais e sintomas físicos – dor de cabeça,
náusea/vômito, fotofobia, fonofobia, tontura, fala
“arrastada”, visão borrada, incoordenação.
3. Sinais e sintomas na labilidade emocional –
depressão, ansiedade, mania.
4. Sinais e sintomas no sono – aumento da latência do sono, despertar frequente, aumento/
diminuição do tempo de sono.
Em concussão, o tema unificador para a história
natural de qualquer sinal ou sintoma é o curso de
duração de vários dias a duas semanas com resolução gradual, mas completa, dos sintomas. Isso
ocorre na maioria dos casos (cerca de 85%)2,6.
Diagnóstico e manejo do paciente
Como mencionado anteriormente, o diagnóstico de concussão é feito com base clínica.
O manejo da concussão subsequente, portanto, é mais bem ditado por avaliações seriadas
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6 RECOMENDAÇÃO DOS DCs
Em defesa do neurologista
frequentes. A abordagem começa com uma
avaliação neurológica antes da lesão, em caso
de esportes, normalmente na pré-temporada
(para jogadores). Quando houver suspeita de
concussão, uma avaliação inicial de concussão
é realizada. Uma vez diagnosticadas, as concussões são mais bem gerenciadas com o uso de
avaliações seriadas para determinar a ausência
de quaisquer sinais ou sintomas de concussão
em repouso. Em seguida, o paciente passa por
um processo de retorno gradual do esforço (seja
físico ou mental), que acaba por conduzir à decisão de retorno ao trabalho ou à atividade física7.
Referências
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the Quality Standards Subcommittee. Practice
parameter: The management of concussion in
sports. Neurology. 1997;48(3):581-5.
2. McCrory P, Meeuwisse WH, Aubry M, Cantu B, Dvorák J, Echemendia RJ, et al. Consensus
statement on concussion in sport: the 4th International Conference on Concussion in Sport
held in Zurich, November 2012. Br J Sports Med.
2013;47(5):250-8.
3. Sports-related concussions in youth: improving the science, changing the culture. Institute
of Medicine of the National Academies website
[acessado em 3 de outubro de 2014]. Disponível em: www.iom.edu/Reports/2013/Sports-Related-Concussions-in-Youth-Improving-the-Science Changing-the-Culture.aspx. Published
October 30, 2013.
4. Giza CC, Hovda DA. The neurometabolic cascade of concussion. J Athl Train. 2001;36(3):228-35.
5. Hardman JM, Manoukian A. Pathology
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2002;12(2):175-87.
6. Giza CC, Kutcher JS, Ashwal S, Barth J, Getchius TSD, Gioia GA, et al. Summary of evidence-based guideline update: Evaluation and management of concussion in sports. Report of the
Guideline Development Subcommittee of the
American Academy of Neurology. Neurology.
2013;80(24):2250-7.
7. Kutcher JS, Giza CC. Sports concussion diagnosis and management. Continuum (Minneap
Minn). 2014;20(6 Sports Neurology):1552-69.
8. McCrea M, Guskiewicz K, Randolph C, et al.
Incidence, clinical course, and predictors of prolonged recovery time following sport-related
concussion in high school and college athletes. J
Int Neuropsychol Soc. 2013;19(1):22-33.
* Coordenador do Departamento Científico
de Trauma da ABN, presidente da Associação
Brasileira de Traumatismo Cranioencefálico,
chefe do Serviço de Reabilitação Cognitiva PósTraumatismo Cranioencefálico do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (FMUSP), e professor livre-docente do
Departamento de Neurologia da FMUSP.
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Como a especialidade
se posiciona nos
Conselhos de Medicina
A
Neurologia de São Paulo precisa, obrigatoriamente, ter voz ativa em todos os
fóruns de representação médica. A interface com associações, sindicatos, conselhos e
demais sociedades de especialidades é essencial
para fortalecer a especialidade, assim como para
criar condições mais favoráveis de remuneração
e exercício profissional.
Com o intuito de dar conhecimento a você
de como a ABN ocupa espaço nessas esferas, o
Boletim ABNews traz o vivencial de Osvaldo Massaiti Takayanagui, professor titular de Neurologia e
diretor clínico do Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo (FAMERP-USP), que atua como delegado
de Ribeirão Preto no Conselho Regional de Medicina. Trata-se de um retrato do que também ocorre
em várias outras localidades do Brasil.
Em Ribeirão Preto, há 15 membros representando a Neurologia, entre neurologistas, neurocirurgiões e neuropediatras. Reuniões mensais discutem dúvidas e demandas dos colegas da região.
Dedica-se cuidado especial às sindicâncias sobre
as denúncias contra os médicos. Solicitações de
esclarecimentos quanto a procedimentos adotados por denunciados são prestadas pela Câmara
Técnica da especialidade com o intuito de elucidar a correção das condutas.
“Temos certa frequência de queixas contra a
Neurologia e a Neurocirurgia, relacionadas ao
manejo em casos de acidente vascular cerebral,
traumatismo e lesão medular, por exemplo”,
explica Takayanagui. “Entretanto, não é somente em reclamações que a especialidade marca
posição no Conselho. Recentemente, houve a
polêmica do uso terapêutico do canabidiol, que
necessitou de nosso parecer. Os neurologistas
conselheiros contribuíram com a decisão, da
mesma forma que nossa Câmara Técnica.”
O Conselho também está permanentemente
aberto à consulta para médicos e instituições,
especialmente no que tange às questões éticas. Além disso, é possível solicitar sessão com
simulação de julgamento, elucidando o Código
de Ética e colaborando para evitar eventual falha em atendimento. “Viabiliza, ainda, a reunião
com seus conselheiros para ajudar grupos de
neurologistas, incluindo a ABN, e se coloca como
aliado em lutas e reivindicações por melhores
condições de trabalho.”
Ética e educação
Takayanagui reforça que a instituição tem muito a acrescentar à Neurologia e à ABN, especificamente. Afora as questões jurídicas, a Câmara
Técnica conta com atividades de ensino, como
o Programa de Educação Continuada (PEC), em
busca de excelência na prática médica. “A Medicina é uma profissão nobre, que deve ser exercida com senso de humanismo e elevado grau de
responsabilidade. Lamentavelmente, a formação
ética não é priorizada de maneira uniforme na
graduação. É preciso então aprimoramento nesse sentido, já durante o aprendizado. Esperamos
que exista conscientização sobre a importância
desse aspecto. Enquanto isso não ocorre, nos
desdobramos para melhorar esse aspecto por
meio de nosso órgão maior, o Conselho.”
entrevista com o autor 7
Doença de Alzheimer pode prejudicar a
capacidade de identificar emoções
T
radicionalmente, nesta seção, apresentamos entrevista com um dos autores de
artigo de destaque da revista Arquivos
de Neuro-Psiquiatria, o jornal científico oficial
da ABN. A seleção do artigo é realizada pelos editores da própria revista ou pelo corpo editorial
do Boletim ABNews.
Nesta edição ouvimos Bianca Torres, mestranda em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
e neuropsicóloga pela Universidade de São Paulo (USP), que realizou interessante trabalho sobre
reconhecimento de emoções faciais em pacientes com doença de Alzheimer1.
Esse estudo avaliou 30 pacientes com doença de Alzheimer em dois momentos diferentes
e identificou que em estágios iniciais da doença de Alzheimer esses pacientes foram capazes de discriminar expressões faciais e emocionais simples, porém já existe dificuldade de
reconhecer expressões mais complexas. Esses
dados podem ser importantes no desenvolvimento de estratégias para melhor interação
social e capacidade de ação dos cuidadores,
além de, no futuro, ser usados como ferramenta de triagem diagnóstica.
O artigo pode ser obtido, na íntegra, em
www.scielo.br/anp, edição de maio de 2015.
ções. É uma via de mão dupla, que depende
tanto da cognição como da motivação e da
emoção. Quando uma pessoa perde a capacidade de compreender as pistas dadas pelo outro, sua habilidade de pensar sobre as emoções,
as intenções e os desejos da pessoa com quem
está interagindo, o que chamamos de teoria da
mente, fica impossibilitada. A expressão facial
é uma das pistas mais primordiais para o reconhecimento emocional. Dessa maneira, é intuitivo identificar que dificuldades de relacionamento surgirão, resultando em baixa qualidade
de vida dos pacientes e de seus cuidadores e
acarretando prejuízos e dificuldade de interação social. Outro aspecto importante é o diagnóstico diferencial. Apesar da heterogeneidade
de metodologias na literatura, a maior parte dos
autores aponta para uma dificuldade maior entre pacientes com demência frontotemporal e
até mesmo demência vascular quanto ao processamento emocional.
Como os testes de reconhecimento de
emoções são apresentados? Existe um
website em que os neurologistas poderiam
entrar e conhecer a ferramenta?
Utilizamos em nosso estudo um método
experimental, adaptado de Shimokawa et al.2.
Optamos por usar essa técnica como base por
abranger além do reconhecimento facial, com
a possibilidade de detectar se o processamento emocional está acurado também para as
situações que envolvem algum tipo de emo-
ção. Observar se a pessoa com demência consegue ou não identificar a emoção envolvida
em uma situação social é algo mais complexo,
relacionado com as demandas do cotidiano e
a interação com os outros. Por ser uma tarefa
experimental, não está disponível em um website; no entanto, uma explicação mais extensa
a respeito pode ser encontrada no artigo original desses autores2.
Os pacientes selecionados já usavam medicações específicas (anticolinesterásicos
e antidepressivos). Os resultados teriam
sido diferentes se essas medicações não
estivessem em uso?
Acreditamos que sim, pois os anticolinesterásicos melhoram a cognição, o que pode
ajudar no desempenho da tarefa. O uso de
antidepressivos também pode ajudar quanto
à melhora dos sintomas depressivos e, consequentemente, da atenção, uma vez que
não há consenso de que o humor influencia
o processamento emocional na demência. Foi
importante selecionar pacientes medicados,
pois, assim, pudemos replicar o ambiente e o
estado cotidiano deles, avaliando melhor sua
capacidade de reconhecimento emocional.
Como você avalia a obtenção de consentimento de um paciente já com algum
grau de dificuldade cognitiva? Existe
uma nota de corte em algum teste que
possa prever se a capacidade de decisão
está intacta ou não?
Essa é uma questão bastante importante na
pesquisa das demências. A ideia é que
possamos verificar justamente se a capacidade de o paciente decidir sobre
seu tratamento – até mesmo sobre
se quer participar de uma pesquisa – está preservada. No entanto,
Explique um pouco mais sobre
o conceito de cognição social e
por que ele é importante para o
neurologista.
A cognição social se refere a nossa
habilidade de perceber as informações recebidas no ambiente e como
agir de acordo com essas informa-
Boletim ABNews – www.abneuro.org.br
8 entrevista com o autor
"Sabe-se, por
exemplo, que
as demências
frontotemporais são
as que trazem mais
prejuízo ao paciente"
aspectos fundamentais de nossa cognição social,
é o que nos permite “ler” o outro e, a partir disso,
nos comportar. Sabemos que a dificuldade de processamento emocional, inclusive através das faces,
está relacionada ao sofrimento de cuidadores e
pacientes, que acaba se manifestando em baixa
qualidade de vida e em prejuízo na interação social.
um de nossos critérios de exclusão é um escore
entre 20 e 26 no Míni-Exame do Estado Mental.
Outro ponto importante é que o grupo estudado é uma amostra de conveniência, ou seja, são
pacientes e cuidadores atendidos no Centro
de Doença de Alzheimer e Outros Transtornos
Mentais da Velhice. Por ser um centro de referência, há muitos grupos de pesquisadores estudando vários aspectos da demência e da velhice, o que faz com que esses usuários tenham
o costume de participar de pesquisas.
Durante o período de teste, identificou-se certa correlação entre a capacidade
global de reconhecimento de expressões faciais e habilidades cognitivas.
Você acha que esses testes podem ser
usados como forma de diagnosticar a
doença de Alzheimer?
A 5a edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais inclui o prejuízo na
cognição social como um novo critério diagnóstico para doença de Alzheimer. Além disso, há autores que relacionam a conversão de
doença de Alzheimer prodrômica à demência
com a decodificação anormal de informações
sociais, o que estaria relacionado à progressão
da doença para mais regiões do cérebro. Na literatura, há uma diversidade de metodologias,
o que dificulta a generalização dos achados.
No entanto, alguns estudos que tentam estudar amostras separadas classificadas pelo tipo
de demência apontam para resultados interessantes. Sabe-se, por exemplo, que as demências frontotemporais são as que trazem mais
prejuízo ao paciente no que se refere à interação social, o que também acontece com relação ao reconhecimento facial. Outro estudo
do grupo de Shimokawa3 comparou pessoas
com doença de Alzheimer e demência vascular, identificando que pessoas com demência
vascular têm mais prejuízo no reconhecimento
de faces e situações emocionais que pessoas
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com Alzheimer, mesmo quando a amostra é
pareada pela capacidade cognitiva global.
Depressão e ansiedade podem provocar
déficit de atenção, assim como prejudicar
nossa capacidade de identificar emoções.
Essa teoria já foi provada?
Embora a depressão leve a esse padrão anormal de atenção emocional, ainda não há consenso na literatura de que a depressão associada
à demência possa levar à dificuldade de reconhecimento ou a uma tendência negativista na
identificação das emoções. Em nosso estudo,
não pudemos identificar essa relação, pois nossa amostra não mostrou índices significativos de
sintomas depressivos.
Você poderia citar como a perda da capacidade de reconhecimento de emoções
faciais pode influenciar a vida do paciente
com doença de Alzheimer, de sua família e
de seus cuidadores?
A habilidade de reconhecimento facial é um dos
Existe algum plano de continuar acompanhando esse grupo de pacientes para observar sua evolução no reconhecimento de
expressões faciais ao longo dos anos?
Sim. Aliás, eles já estão em reavaliação, inclusive com uma bateria cognitiva mais ampla.
REFERÊNCIAS
1. Torres B, Santos RL, Sousa MFB, Simões Neto
JP, Nogueira MML, Belfort TT, et al. Reconhecimento da expressão facial na doença de Alzheimer: um estudo longitudinal. Arq Neuropsiquiatr.
2015;73(5):383-9.
2. Shimokawa A, Yatomi N, Anamizu S, Ashikari
I, Kohno M, Maki Y, et al. Comprehension of emotions: comparison between Alzheimer type and
vascular type dementias. Dement Geriatr Cogn
Dis. 2000;11:268-74.
3. Shimokawa A, Yatomi N, Anamizu S, Torii S,
Isono H, Sugai Y. Recognition of facial expressions and emotional situations in patients with
dementia of the Alzheimer and vascular types.
Dement Geriatr Cogn Dis. 2003;15:163-8.
cidadania 9
Conscientização sobre doença de Pompe
A
ABN realizou, em todo o Brasil, a terceira
edição da Campanha Nacional de Conscientização sobre Doença de Pompe,
afecção genética rara que acomete o tecido
muscular. Neste ano, o tema foi “Tempo é músculo, e músculo é vida”.
O mote foi escolhido justamente para ressaltar a importância do diagnóstico precoce para
que o tratamento tenha sua eficácia otimizada. “A
doença de Pompe compromete principalmente
os músculos esqueléticos, levando o indivíduo
a apresentar fraqueza muscular. Mas pode acometer também coração, fígado e músculo liso, e
com frequência é acompanhada por dificuldade
respiratória”, explica o neurologista Elmano Henrique Torres de Carvalho, coordenador do Departamento Científico de Moléstias Neuromusculares
da ABN. Foram mais de 50 eventos em 23 Estados.
O Brasil foi o primeiro país no mundo a estabelecer um dia específico para marcar a divulgação dessa enfermidade: 28 de junho. “São mais
de 8 mil diferentes doenças raras. Não é possível
diagnosticar corretamente se não conhecermos
a doença e se os pacientes não chegarem a especialistas com formação adequada para tal. Por
isso, uma data com o objetivo de informar a população sobre a doença e capacitar os profissionais de saúde a reconhecer seus principais sinais
clínicos é extremamente importante”, afirma Carvalho. O País conta com mais de 100 pacientes
identificados com a doença em 18 Estados. Mas,
como há desconhecimento e subnotificação, é
provável que esse número seja muito maior.
Muitos pacientes com Pompe na fase adulta tiveram sinais e sintomas da enfermidade iniciados
na adolescência ou até mesmo na infância. Entre
a primeira visita ao médico e o diagnóstico final,
o paciente passa por uma longa jornada. Vanessa
Graebin, de 26 anos, conta que teve os primeiros
sintomas aos 13 anos, mas só conseguiu o diagnóstico aos 21. “Na adolescência eu fazia de tudo.
De repente, tive uma queda na aula de educação
física e não consegui levantar logo. Em outra ocasião, nosso dogue alemão bateu no meu joelho
durante uma brincadeira, e a partir daí comecei a cair. Fui piorando ano a ano, apesar de me
consultar com médicos e ir à fisioterapia. E foi o
fisioterapeuta que, após me fazer vários questionamentos, como se eu conseguia pegar um peso
acima da cabeça, recomendou que eu fosse a um
neurologista.” Já Benedito Eduardo Carneiro, de 54
anos, demorou 14 anos para conseguir fechar o
diagnóstico. “Até pouco antes dos 40 anos eu era
cheio de vitalidade e trabalhava como professor
de educação física em São Paulo. De repente, uma
pequena dor na coluna começou a incomodar,
e nenhum médico me classificava além de um
paciente com dor na coluna e nas costas. Acabei
parando de praticar exercícios físicos. Por volta de
2003, passei a ter pressão alta, diabetes e sentir falta de ar constante. Em 2012, ao sair da Unidade
de Terapia Intensiva após um coma, fui diagnosticado com doença de Pompe. Em outubro do
mesmo ano iniciei as infusões para cessar o rompimento das fibras musculares.”
Diagnóstico
Esses são dois exemplos distintos de como
a doença de Pompe é complexa e se confunde
com outras enfermidades. A jornada do paciente
pelo diagnóstico final pode passar por até sete
diferentes profissionais ou especialidades médicas, incluindo neurologista, neurologista neuromuscular, pneumologista, cardiologista, reumatologista, geneticista ou ortopedista, segundo
pesquisa realizada com pacientes brasileiros em
2014. Os profissionais médicos geralmente dão
apenas uma alternativa de diagnóstico geral para
os sintomas, como cansaço ou excesso de peso.
O tempo médio de diagnóstico no Brasil é de
14 anos, mas há casos que demandaram até 20
anos. “Essa demora faz com que muitos indivíduos iniciem o tratamento tardiamente, quando os
sintomas já interferem na vida diária”, esclarece
Carvalho. A mesma pesquisa revela que 66% dos
entrevistados não tiveram familiares diagnosticados, enquanto os 33% restantes, que relataram
outros casos na família, afirmaram que a confirmação ocorreu mais precocemente, em menos de 3
anos, o que possibilita o tratamento precoce e a
melhora da qualidade de vida do paciente. Ainda
foi possível constatar que a primeira consulta ao
especialista ocorreu, em média, 17 anos após os
primeiros sintomas da doença, como problemas
com mobilidade ou fraqueza notados aos 14 anos.
Entre os sintomas mais comuns destacam-se dificuldade para subir escadas e caminhar,
aumento de quedas, dificuldade respiratória
que pode piorar ao deitar-se, fraqueza muscular, fadiga, escoliose, câimbras, dificuldades para
levantar-se das posições sentada ou deitada, e dor
muscular crônica. Dependendo do grau da deficiência da enzima α-glicosidase ácida, relacionada à
afecção, as manifestações podem ser mais graves
e precoces. Podem se iniciar em bebês, quando
não há nenhuma atividade da enzima, ou mais
tardiamente, desde a infância até a vida adulta, se
a atividade apresentar redução menos acentuada.
Na forma mais grave, quando ocorre em bebês, o
envolvimento cardíaco é frequente, e o óbito geralmente ocorre por volta de 1 ano de idade, caso
o tratamento específico de reposição enzimática
não seja iniciado precocemente.
Avanços
Nos últimos anos, houve grande avanço no
conhecimento tanto fisiopatológico como genético da doença, o que levou ao desenvolvimento
de novas técnicas de diagnósticos bioquímicos
e moleculares, bem como melhorias no tratamento específico, que tornaram a terapia de reposição enzimática ainda mais eficaz em alguns
casos. “Isso nos traz esperança de que possamos
no futuro observar melhores resultados terapêuticos. A própria realização da Campanha Nacional de Conscientização sobre Doença de Pompe
proporciona maior conhecimento sobre o tema,
contribuindo para diagnósticos mais precisos e
precoces, bem como um interesse crescente de
neurologistas”, explica Carvalho. “No entanto, nossa experiência com doenças neuromusculares
tem sugerido que sua prevalência ainda pode estar sendo subestimada no Brasil. Assim, consideramos ser de alta relevância a iniciativa da ABN de
promover essa campanha nacional, que será uma
excelente oportunidade para informar a população e de educação médica continuada.”
Mineirinho
de Maceió,
Zico e Juninho
Pernambucano
são apoiadores
famosos
da causa
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10 canal do residente
Planejamento financeiro no início da carreira
Confira as dicas de Syllas
Ramos, CFP®, diretor
do Instituto Brasileiro
de Certificação dos
Profissionais Financeiros
Qual o primeiro passo para alguém
em início de carreira, interessado em
começar um planejamento financeiro?
O primeiro passo seria contar com ajuda,
de preferência de um profissional. Se não
for possível contar com um profissional
planejador financeiro certificado, ele
deve convidar um familiar ou amigo,
mas que o ajude a traçar um roteiro de
perguntas, como: “O que eu quero da
minha carreira?”, “Quais são os principais objetivos da minha vida? Casar?
Casa própria? Pós-graduação daqui a
cinco anos? E essa pós vai custar quanto?”. Dessa forma, ele começa a desenhar objetivos, sonhos e próximos passos. Será obrigatório seguir esses passos
para continuar no planejamento de vida, que
vai estabelecer o ditame financeiro.
Existe o momento ideal para começar um
planejamento financeiro e poupar dinheiro?
Aos 18 anos, principalmente se o jovem fez financiamento estudantil – neste caso, é indispensável projetar as finanças, porque ele está comprometido a pagar os custos ao término dos estudos.
De qualquer forma, mesmo se o jovem não optou
por crédito estudantil e/ou os pais pagam seus
gastos, ele já deve começar a desenhar sua vida e
construir a história que imagina para si. E ele só terá
sucesso nessa história se tiver uma rota para seguir
e, para isso, precisa de um bom planejamento financeiro que comporte a carreira que almeja ter.
O quanto deve ser destinado à receita e às
despesas, mensalmente?
Depende do estágio da curva de vida em que
está. No começo da vida, seu patrimônio está em
construção. Então, deve empregar suas economias
fortemente. Claro que é difícil poupar. Nesse aspecto,
não poupar nada, mas pagar todos os custos, talvez
até seja um objetivo dentro das metas. No entanto,
depois dessa fase, o jovem deve começar a depositar de 5% a 10% do valor que recebe. Na média idade, depositar, no mínimo, 12%. E na alta maturidade,
quando está no auge da carreira, depositar 20% ou
o quanto puder. Vejo profissionais do ramo de Medicina que poupam mais de 50% de suas entradas,
porque já possuem o patrimônio estabelecido.
Qual é o erro mais comum que os jovens, no
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início da carreira, costumam cometer?
Falar “eu acho que”. Por exemplo: “Eu
juntei um pouco, então eu acho que vai
dar para gastar, depois eu reponho”. Não,
você não consegue repor. Porque você já
poupa o que pode. Depois, você não
consegue acompanhar a velocidade dessa previsão financeira, desse
planejamento. Então, o grande erro
é quebrar o planejamento. É preciso
ser muito fiel ao plano. A vontade de
gastar é enorme, principalmente nos jovens. Mas guardar dinheiro é uma função excelente. A pessoa cria empatia
por guardá-lo e começa a se acostumar a ver a quantia crescer. O jovem
tem, normalmente, aquele ímpeto de
ver o presente e não pensar no futuro. O
planejamento financeiro deve ser toda
hora revisto e atualizado. Se houver um
deslize, errar e gastar com algo fora dos
planos, é importante analisar a situação, reconhecer o erro e não cometê-lo novamente.
Fazer um bom planejamento e conseguir
mantê-lo ajuda no controle emocional?
Sim. Pessoas que não conseguem esperar o momento certo para ter mais não progridem na vida. Faz
parte reconhecer esse período para se apoderar do
que quer. É muito importante na carreira de uma pessoa e no planejamento financeiro. Não adianta abrir a
panela e comer a comida enquanto ela ainda não está
pronta porque não estará saborosa o suficiente.
Quais são os momentos da vida que o neurologista deve repensar seu planejamento
financeiro?
Ele deve estipular alguns degraus em sua vida,
em que será obrigatória a reclassificação do planejamento. Enquanto estudante, fazer o primeiro
planejamento financeiro. Após se formar, quando
começar a ter renda, refazer para colocar as sobras
dos investimentos. Depois, ao chegar próximo da
compra do primeiro imóvel e/ou do casamento, é
necessário redesenhar o planejamento financeiro.
Esse é um degrau importante. Depois, refazer para
a chegada do primeiro bebê, prevendo a criação
do filho por, pelo menos, 27 anos.
O mapa da mina para o jovem médico
Para os jovens médicos, outras dúvidas também podem surgir. Abrir um consultório, trabalhar apenas como plantonista, ser pessoa física ou jurídica, contratar um contador ou não são
alguns exemplos de perguntas que podem cercar os residentes.
Marcio Rocha, diretor da MERC Soluções Empresariais, contador, perito judicial e bacharel
em Direito, esclarece algumas questões referentes ao começo de carreira na Medicina.
Devo declarar meus ganhos (declaração
de Imposto de Renda Pessoa Física –
IRPF)? Quais os benefícios de fazê-lo e de
não fazê-lo?
Sim. Em caso de oportunidade de trabalho
fora do País é obrigatório apresentar cópia das
declarações do IRPF, tornando mais fácil a obtenção do passaporte, por exemplo. Também
o financiamento habitacional (casa própria)
requer, obrigatoriamente, a apresentação das
declarações, entre outros casos.
Posso emitir recibo de pessoa física? Preciso de algum cadastro para isso?
Para a atividade médica, não. Para emissão
de recibo médico é necessário registro como
autônomo na prefeitura da cidade em que
atua profissionalmente e no INSS – efetuar os
recolhimentos previdenciários como tal.
Vale a pena ter um contador se eu apenas trabalho como plantonista e CLT? E
se fizer consultório?
Se o vínculo for apenas como CLT, não é necessária a orientação do profissional. Mas, para
o médico que atua em consultório, é preciso
regular a documentação, preparar mensalmente o Livro Caixa e o Carnê Leão, a fim de
apurar o imposto a recolher – neste caso, então, recomenda-se contratar um profissional.
Vale a pena abrir CNPJ? Quando?
Sim. Quando se tem receita de forma autônoma superior a R$ 4.664,68, sem despesas,
torna-se interessante a pessoa jurídica. Na
pessoa física recolhe-se 27,5% de imposto de
renda; na pessoa jurídica, pela tributação do
Lucro Presumido recolhe-se 13,33% sobre o
faturamento total e no caso de sociedade uniprofissional recolhe-se 11,33% de impostos.
O médico tem uma declaração de IR diferente de outros profissionais?
Não. Entretanto, a atividade médica tem
maior cruzamento de informações por parte
da Receita Federal.
Posso ou devo emitir NFe mesmo sendo
pessoa física?
Não, isso seria uma infração à lei.
Emérito & Aspirante 11
A Neurologia como ferramenta preventiva
A Medicina Preventiva se propõe ao estudo do comportamento
das doenças, avaliando necessidades em saúde da população
e desenvolvendo estratégias para o bem-estar. Baseia-se na
epidemiologia e no estabelecimento de políticas consistentes, entre
outros fatores. Nesse quadro, é essencial o convívio do médico com
os pacientes, pois possibilita a divulgação de informações relativas
à promoção da saúde, além de ser oportunidade para observar de
perto o impacto de diferentes afecções sobre as pessoas.
Para falar sobre o papel do neurologista na
prevenção, ouvimos Sebastião Eurico de Melo-Souza, coordenador de Ensino e Pesquisa do
Instituto de Neurologia de Goiânia, e Eduardo de
Novaes Costa Bergamaschi, residente do Serviço
de Neurologia do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina.
Sebastião Eurico de Melo-Souza,
coordenador de Ensino e Pesquisa do
Instituto de Neurologia de Goiânia
“Todas as ações preventivas são importantes
à saúde do paciente, em quaisquer especialidades. Na Neurologia, é fundamental assumir essa
função. Como prova de sua relevância, o tema é
frequente nos mais recentes trabalhos e pesqui-
sas de nossa área de atuação. Um caso claro é a
prevenção primária da doença vascular cerebral,
como o acidente vascular cerebral, por meio da
promoção de saúde e controle de fatores de risco com a adoção de hábitos de vida saudáveis.
Em síndromes como o Alzheimer já se começa
a pesquisar as condições anteriores ao desenvolvimento da doença para tratar antes mesmo do
estabelecimento do quadro clínico. São avanços
que representam evolução na conduta, resultando em prognóstico favorável, com chances
mais promissoras de recuperação e cura. Nesses
exemplos, é possível observar o quanto a Neurologia é significativa, especialmente na prevenção
das doenças neurológicas.”
Eduardo de Novaes Costa Bergamaschi,
residente do Serviço de Neurologia do
Hospital Universitário da Universidade
Federal de Santa Catarina
“Ao especialista de nossa área compete praticar
a Medicina Preventiva com ênfase no controle das
doenças neurológicas, que representam grande
ônus à população, em termos de mortalidade,
incapacidade, dependência e prejuízo da qualidade de vida. O neurologista clínico pode atuar
diretamente na prevenção primária (evitando a
instalação da doença), secundária (reduzindo o
agravamento da doença), terciária (reabilitando e
reduzindo a incapacidade) ou quaternária (diminuindo as possibilidades de complicações decorrentes). Fazemos prevenção primária, por exemplo, quando estimulamos a prática de atividade
física e de hábitos de vida saudáveis, que podem
reduzir a frequência de doença cerebral vascular
isquêmica. Ou quando estimulamos a atividade
intelectual e a interação social, que se mostram
essenciais à prevenção do declínio cognitivo. Ou
ao reforçar a importância do controle dos fatores
de risco cardiovascular após um ataque isquêmico transitório. E ainda tratando de paciente com
doença de Parkinson, quando podemos ajudá-lo
a recuperar parte de sua independência, entrando
no eixo da terciária. Por fim, atua na quaternária
ao evitar tratamentos e exames complementares
desnecessários e potencialmente prejudiciais ao
bem-estar, o que é particularmente importante
no contexto atual, em que surgem cada vez mais
terapias e se ampliam os leques diagnósticos. É
um papel amplo, que pode ser desempenhado
dentro do consultório e fora dele. Sua formação
o torna especialmente capacitado para o controle
de doenças que trazem grande prejuízo à saúde e
ao bem-estar da população. A Medicina Preventiva, por sua vez, é fundamental para o neurologista, ajudando-o a proporcionar melhor assistência,
uma vez que contribui para a redução de complicações e para a manutenção da funcionalidade e
independência do indivíduo.”
Boletim ABNews – www.abneuro.org.br
12 cultura gota a gota
O mundo,
da janela
Por: Wilson Luiz Sanvito
C
erta ocasião, durante uma leitura a propósito de eufóricos e deprimidos, uma
frase me marcou profundamente: “Dois
homens olham da mesma janela: um vê a lama,
o outro, as estrelas”. A janela é uma espécie de
interface com o mundo e permite a seu usuário
espiar o bulício da rua. Mas isso nem sempre
ocorre. Se, nas pequenas comunidades, a janela aproxima as pessoas e tem a centelha da
comunicação, nas grandes cidades ela perdeu
esse encantamento, esse poder mágico.
No latim vulgar, januella é diminutivo de janua,
que significa porta. A janela liga e, ao mesmo
tempo, isola o seu usuário da rua, ao contrário da
porta, que é o complemento da rua. A janeleira
vê a vida passar e aquele que passa vê a janela
sob diferentes ângulos: o arquiteto se preocupa
com sua estética, o engenheiro, com sua funcionalidade, o antropólogo analisa sua relação com
o mundo, o poeta vê nela sua musa inspiradora
e assim por diante. E já que a janela é um buraco
para espiar o mundo, por extrapolação nós falamos em janela galáctica, janela do computador...
Existem algumas variantes de janela, como janela basculante, com sacada, gradeada e outras
tantas. Entretanto, o tipo tradicional é a janela de
peito, cujo parapeito se situa um pouco acima do
pavimento. Dependendo da ocupante da janela,
essa nomenclatura é perfeita.
Nas megalópoles, onde os megatérios arquitetônicos parecem mais imensas gaiolas, as janelas
perderam sua função socializadora. A cidade vista
por esse espaço torna-se fria, distante, que pouco
comunica. Também a tecnologia da imagem contribui para uma certa negligência da janela; diz-se
até que a televisão matou a janela. Existem também as janelas sempre fechadas, que, nos velhos
casarões, levantam nos mais imaginativos a sus-
peita de acontecimentos misteriosos. Por outro
lado, o descortino de uma paisagem pela janela
de uma cidade como o Rio de Janeiro pode ser
glorioso. Entretanto esse hábito, outrora salutar no
Rio, é hoje de risco em virtude das balas perdidas
na guerrilha urbana. Dentro dessa perspectiva,
temos que concordar com o postulado roseano:
“Viver é coisa perigosa e faz mal à saúde”.
A janela é um espaço em que a pessoa
se posta para ver e para ser vista. Funciona
como uma espécie de vitrina e os ingleses
usam mesmo o vocábulo window-shop com
esse significado. As mulheres são as frequentadoras mais assíduas desse espaço e todas
têm direito à janela: as bonitas, as feias, as
gordas, as magras, as peitudas... até para ver
a banda passar: “A moça feia debruçou na janela/ Pensando que a banda tocava pra ela”.
A janela pode despertar nas pessoas os mais
diferentes sentimentos e intenções. Muitas ficam na janela, como Dona Baratinha, à espera
de pretendentes; são as moças namoradeiras.
A prostituta se posta na janela para atrair os
clientes. As fofoqueiras, são espectadoras privilegiadas para tecerem suas intrigas. O presidiário não pode ver uma janela sem pensar em
serrar as grades e confeccionar logo uma teresa.
O assaltante, ao ver uma janela, maquina logo a
maneira de penetrar na casa da vítima. Não é à
toa que a expressão “entrar pela janela” é pejorativa, pois esta é sempre uma entrada escusa por
onde entram o ladrão, o amante... Cada janela
pode abrigar um drama, um suicida em potencial, um desejo não realizado ou simplesmente a
necessidade de ser visto ou de se comunicar. Tenho bem vivo na memória o caso do jovem de
semblante triste, que eu com frequência via na
janela de um velho casarão de Higienópolis (São
Paulo). Um dia, chamado a ver o caso, descobri
que o jovem era paraplégico. Acidente de moto.
Remetente: Academia Brasileira de Neurologia
Rua Vergueiro, 1.353 – sala 1.404 – Torre Norte
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A janela tem 1.001 utilidades e até Hitchcock
explorou o tema no filme “Janela Indiscreta”,
em que o protagonista (James Stewart) presencia um crime da janela de seu apartamento
e se torna testemunha-chave na identificação
do assassino. A partir daí, o mestre do suspense urde toda uma trama cuja excitação vai num
crescendo e o espectador tem ainda como prêmio a suave Grace Kelly. Existem, também, os
maníacos de janela, cuja obsessão é devassar
a privacidade dos vizinhos. Eles são refinados e
se equipam com dispositivos para espiar a vizinha se despindo ou flagrar a discussão de um
casal. Cada um adota uma estratégia para usar
a janela: o espião (ou detetive) a usa de modo
camuflado, enquanto a namoradeira a usa de
modo ostensivo. A janela tem utilidade até
para os analistas. Se você disser a um analista
freudiano que durante o sonho você tentou
pular uma janela, ele provavelmente vai concluir pela sua ideia fixa na genitália feminina.
Questão de simbologia. Depois de Freud, ninguém mais pode sonhar em paz!
As janelas se vestem a rigor nas festas religiosas ou celebrações cívicas, quando são ornamentadas com imagens, bandeiras, flores etc.
Eu, particularmente, prefiro o espaço ocupado
por uma moça bonita, quando a janela parece a
moldura de um quadro. Nos templos religiosos,
as janelas, com seus vitrais coloridos, filtram os
raios de sol, dando ao ambiente uma atmosfera
de misticismo e rara beleza. Esta é, sem dúvida,
uma das vertentes do espírito das catedrais.
Lamentavelmente na era da televisão e dos
smartphones as janelas ficaram despovoadas. É
preciso resgatar o hábito do uso da janela e eu
até arrisco concluir esta crônica com estes versos (modificados) de Ascenso Ferreira: “Saia da
janela, minha filha, senão você vai virar prostituta/ Deus te ouça, minha mãe”.
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