o perfume do tempo

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o perfume do tempo
Doze
Marzo-Maggio 2015
enTreVisTA
O PERFUME DO TEMPO
A Doze falou com Lorenzo Villoresi, um dos grandes perfumistas do nosso
tempo que, a partir de Florença, cria fragrâncias com os olhos postos
no futuro mas com portas abertas para o passado
TexTo César Brigante
Numa prova cega, dificilmente as fragrâncias de Lorenzo
Villoresi seriam conotadas com o passado e a tradição, antes
pelo contrário, modernidade e originalidade são adjectivos que
habitualmente são utilizados para descrever o seu trabalho e que,
a par de outras qualidades, lhe valeram em 2006, o “Prix François
Coty”, o mais respeitado e ambicionado galardão da indústria
perfumista atribuído apenas uma vez na vida de um criador.
No mundo da perfumaria não são raras as alusões ao passado,
embora em muitos casos estejamos apenas perante uma associação algo fantasiosa ao serviço das estratégias de marketing;
porém, no trabalho deste perfumista toscano, a história e a
tradição desempenham um papel muito mais importante do que
à partida poderíamos ser levados a pensar.
Oriundo de uma família toscana e franco-húngara cujos membros incluem músicos, pintores, exploradores, arqueólogos,
joalheiros e coleccionadores, tudo indicava que Lorenzo Villoresi
teria à sua frente uma promissora carreira académica em filosofia,
disciplina que elegera como área de estudo, mas uma reveladora
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viagem ao Oriente, levou-o a abandonar a universidade para se
dedicar por inteiro à perfumaria, aquela que descobriu ser a sua
verdadeira paixão.
No entanto, os estudos clássicos acabaram por se revelar
determinantes quer na forma como encara o seu mister ao
conferir-lhe uma perspectiva histórica e conceptual invulgar, quer
servindo-lhe de inesgotável fonte de inspiração que advém, em
grande parte, dos mitos e lendas da antiguidade.
Depois de um período de aprendizagem e experimentação,
em Maio de 1990, no seguimento de um convite da Fendi
para criar uma linha de fragrâncias para a casa, Villoresi deu
início à sua actividade.
Já instalado no palácio quatrocentista da família na Via de Bardi,
em Florença, num atelier com vista para o rio Arno, Villoresi
criou a sua primeira fragrância pessoal Uomo, a que seguiu de
imediato a fragrância feminina Donna. De lá para cá construiu
um portefolio considerável onde, para além da revisitação de
matérias-primas clássicas como o vetiver, o sândalo ou o
patchouli, figuram os seus aromas inspirados em mitos e lendas
como Dilmun, Alamut, Iperborea e Theseus. Em simultâneo
à sua actividade como perfumista, Villoresi participa com
frequência em conferências e congressos, ao mesmo tempo que
desenvolve trabalho como autor, tendo já publicadas duas obras:
“Il Profumo” (1995) e “L’Arte del Bagno” (1996).
No entanto, as suas atenções centram-se agora no projecto que
abrirá no final de 2015 e que provisoriamente dá pelo nome de
“Academia da arte do perfume”.
Instalado no palácio da família, a Academia tem como objectivo
envolver um vasto grupo de pessoas com actividades relacionadas
com a perfumaria e, ao mesmo tempo, criar um local privilegiado
em que crianças e jovens possam conhecer melhor, o não poucas
vezes menosprezado, sentido do olfacto. Com 1000m2 divididos
por três pisos, contará com um jardim interno com 200m2 e
estará dividido em várias áreas temáticas como o centro de
experiências olfactivas, uma biblioteca e centro de investigação,
salas de conferências e um centro olfactivo especializado.
Lorenzo Villoresi acedeu ao pedido da Doze para responder a
algumas perguntas, que aqui deixamos, e que, esperamos, ajudem
a perceber melhor não só o processo criativo como o conceito que
rege as criações olfactivas deste notável perfumista florentino.
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De que forma a sua formação académica,
por um lado, e a sua pesquisa e conhecimento da perfumaria na antiguidade,
têm influência nas suas criações?
Não sou propriamente um especialista em
perfumaria antiga (e também não se pode
falar de “uma” perfumaria antiga). Estudei
filosofia antiga e filologia bíblica e li
muitos livros de perfumaria antiga em
diversas partes do mundo. Fui influenciado pelo estudo do antigo Egipto e da
civilização mesopotâmica e pelas lendas e
mitos acádicos (acádios) e sumérios,
como a história de Dilmun, um paraíso
mítico mesopotâmico que encontrei na
saga de Gilgamesh e em outros textos.
Sempre me senti fascinado por mitos e
lendas de todos os tempos e culturas.
Filósofos e perfumistas têm em comum
a sua procura pela “essência” das coisas:
não têm receio de ir ao fundo dos sentimentos, conceitos e ideias de forma a
apanhar a sua identidade. O meu conhecimento de textos antigos de perfumaria
levam-me por vezes a gostar de resinas
perfumadas, que gosto de combinar
com ingredientes modernos para obter
misturas originais.
Lendo a sua biografia constata-se que a
sua relação com a perfumaria começou
com uma viagem. Foi uma espécie de
epifania ou o seu gosto pelos aromas já
vinha de trás?
Que experiências olfactivas o marcaram
na sua infância?
Digamos que me apercebi melhor da
minha paixão por fragrâncias depois de
uma longa viagem que efectuei ao Médio
Oriente em 1981. Nessa altura tinha 25
anos, a viagem durou aproximadamente
cinco meses e o Egipto impressionou-me
bastante, particularmente o Cairo. Cresci
no campo, perto de Florença, e estive
exposto aos aromas da natureza desde
pequeno. Gostava particularmente do
cheiro do louro, papoilas e folhas de
tomate, notas que continuo a usar aqui e
ali nos meus perfumes. Mas também tive
a oportunidade de apreciar as especiarias
e as ervas tradicionalmente usadas na
comida, como o rosmaninho e o tomilho,
sálvia e segurelha e especialmente uma
espécie de hortelã selvagem, a calamintabrava que na Toscana cresce junto às
oliveiras e é usada para cozinhar os
cogumelos porcino.
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Existem perfumes antigos e perfumes
modernos? O que é que os diferencia?
Os perfumes representam uma forma de
arte muito antiga. Têm acompanhado a
humanidade desde o início e evoluíram
ao longo do tempo com a mudança de
gostos e hábitos, com a descoberta de
novas terras e a introdução de novos
ingredientes. Mas nas civilizações antigas,
a escolha de ingredientes era limitada a
100 ou 150 materiais aromáticos, porque
estes eram, e continuam a ser, os principais ingredientes de origem natural
(madeiras, flores, raízes, folhas, etc).
Depois, a partir do séc. XIX, a química
descobriu novos ingredientes que passaram a ser produzidos dando à perfumaria
extraordinárias oportunidades e possibilitando aos perfumistas um infindável
número de combinações. A perfumaria
moderna tem início no séc. XIX com um
crescente conhecimento da estrutura da
natureza e do enorme mosaico constituído pelos materiais aromáticos.
A idade de ouro da arte da perfumaria
centra-se entre os finais do séc. XIX e os
princípios do séc. XX e corresponde ao
florescimento da perfumaria em Grasse,
devendo-se aos cada vez mais refinados
sistemas de análise e extracção dos materiais aromáticos. É também o tempo
dos grandes criadores e fabricantes de
frascos de cristal como Lalique e Baccarat
e de perfumistas extraordinários como
François Coty, Ernest Beaux, Jacques
Guerlain, além de ser a época em que as
fragrâncias começam a ser produzidas e
distribuídas a uma escala muito maior.
Nos nossos dias, a perfumaria, infelizmente, tornou-se muitas vezes banal e
comercial. Apesar de estarem disponíveis
excelentes ingredientes tanto naturais
como sintéticos, poucos perfumistas se
atrevem, ou estão autorizados, a criar
fórmulas originais: assim, muitas são
as fragrâncias que são apenas imitações
de outras bem sucedidas... Hoje existe
todos os anos, uma quantidade enorme de
lançamentos de novas marcas e fragrâncias; porém, as verdadeiramente inovadoras são extremamente raras.
Se como diz, o seu trabalho se reparte
entre a revisitação de clássicos como a
água de colónia, ou essências clássicas
como o vetiver ou o sândalo e a criação
de originais, pode-nos dizer como em
ambos os casos se desenrola o seu
método criativo?
Bem, um perfumista pode ser inovador
até mesmo quando se confronta com um
tema clássico, como por exemplo uma
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colónia, um vetiver, um âmbar ou um sândalo. Nestes casos prefiro ser “verdadeiro”,
fiel ao tema dado que, por vezes, implica
o uso de materiais extremamente preciosos e caros. Outras criações podem
começar com um sonho ou uma visão,
algumas vezes quase como uma “necessidade”: por exemplo, Yerbamate responde
à necessidade de verde infinito e natureza,
de paz, de intermináveis campos de erva
num lado e no outro o céu. No meio, um
ritual simples, quente e aconchegante,
com um chá-mate, com fogo e fumo.
Outras fragrâncias, como a Teint de
Neige, representam a emoção de estar
perto — na imaginação — de uma mulher
elegante, com o corpo coberto por um pó
macio de aroma floral intenso (dando-lhe
o toque de porcelana na pele característico
das fascinantes damas do séc. XIX).
Noutros casos, como no Alamut e
Dilmun, a evocação da atmosfera dos
mitos antigos de civilizações longínquas
proporcionam o cenário, enquanto Aura
Maris, Theseus e Iperborea, são reminiscências da antiguidade clássica. Cada fragrância é a “tradução” de ideias e emoções
em aromas. É preparada com os ingredientes apropriados, escolhidos criteriosamente para o fim a que se destinam, passo
a passo, acrescentando um pouco ali, retirando um nada dali, como se construísse
um mosaico, umas vezes estruturando a
ideia da fragrância em redor de poucos
ingredientes e juntando-os com extremo
cuidado e atenção. Habitualmente escrevo
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um texto ou um poema que de alguma forma transmita em
palavras o que sinto, o que me ajuda a sublimar esses sentimentos,
enquanto os transformo em perfume.
Onde se inspira para a criação de novas fragrâncias?
Imagino ambientes, sentimentos, visões, sonhos, que são muitas
vezes inspirados por mitos e lendas e tento traduzi-los em
composições perfumísticas.
A perfumaria é semelhante à pintura ou à música. Transformase emoção em qualquer coisa que se pode usar, ver ou ouvir.
Como definiria o homem que usa os seus perfumes?
Acredito que cada vez mais pessoas procuram algo que reflicta a
sua verdadeira personalidade. Querem cheirar da forma que
escolhem. Gosto que os nossos perfumes possam representar
uma resposta ao desejo: “Eu não sou nem quero ser como os
testemunhos homologados de um certo tipo de publicidade. Eu
quero ser eu próprio”.
Os grandes perfumes, para além de agradáveis,
são originais, inovadores, marcantes e ousados,
feitos com excelentes matérias-primas...
Sendo aquilo que geralmente é tido como um “perfumista
independente”, pode explicar-nos o que isso significa e como
é que essa independência o torna diferente das grandes casas
(companhias)?
A principal vantagem é ter liberdade. Liberdade para experimentar e conseguir criar novas fragrâncias, sem ter que seguir o
caminho “académico” seguro, sem ter que reportar a ninguém e
sem ser dirigido por um departamento de marketing. Como um
perfumista independente, tenho também a possibilidade de usar
os melhores ingredientes, por vezes, independentemente do seu
custo. Quando comecei a nossa colecção, decidi investir sempre
na qualidade da fragrância. Na indústria, o orçamento constrange
e os planos de marketing impõem o investimento de uma grande
quantia de dinheiro em promoção e publicidade, o que por vezes
obriga a que seja alocado menos à fragrância.
O que é para si uma fragrância bem conseguida?
Os grandes perfumes, para além de agradáveis, são originais,
inovadores, marcantes e ousados, feitos com excelentes matériasprimas e, por um número de factores imponderáveis, têm sucesso
na interpretação do espírito do seu tempo e, dessa forma,
tornam-se icónicos.
Algumas fragrâncias “antecipam” uma necessidade ou um
desejo comum a muita gente, ou proporcionam sensações que
correspondem às expectativas das pessoas num determinado
momento. Julgo que é o caso do nosso aroma Teint de Neige,
extremamente apreciado tanto em países do norte como do sul,
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da Suécia à África do Sul. Um bom perfume pode ser como
um bom cristal, que ressoa maravilhosamente e se torna profundamente desejado.
que se usa tanto de dia como de noite. Faz-me sentir à vontade
e confiante. Talvez não devesse dizer isto, mas é uma fragrância
com classe, refrescante e profunda.
Como funciona o seu serviço de perfumaria personalizada?
Os aromas feitos por encomenda são criados durante um encontro frente a frente no nosso atelier em Florença. Não há um
procedimento definido, porque o que eu faço é fundamentalmente ouvir quais os desejos expressos pelo cliente e traduzi-los
numa fragrância. Frequentemente, acabamos a falar sobre
memórias de infância ou desejos e sentimentos nunca antes
expressos. Criar uma fragrância personalizada pode ser delicado
e difícil, mas é sempre um desafio e tenho tido oportunidade de
conhecer uma grande variedade de gente muito interessante. E,
no fim da sessão, é um verdadeiro prazer ter êxito em fazer uma
pessoa feliz com a fragrância com que sai daqui.
Tem algum perfume ou perfumista que admire particularmente?
Gosto particularmente da Eau de Rochas original que, por
acaso, cheirei uma vez ainda adolescente.
Evoca frescura, pureza absoluta, as suas notas cintilantes têm
uma longa duração. Tive a oportunidade de conhecer um grande
número de perfumistas e, entre esses, admiro particularmente
Jean Laporte, Annick Goutal, Guy Robert and Maurice
Maurin, de quem me tornei amigo. Tenho muita pena de que
não continuem entre nós para com eles partilhar o nosso novo
projeto — o museu e a academia que abriremos este ano em
Florença — especialmente Guy Robert e Maurice Maurin,
que também nos deram valiosos conselhos e ideias. De entre os
jovens perfumistas, considero Vincent Schaller, de Firmenich
muito talentoso e também tenho uma estima especial por
Alberto Morillas, embora ainda não nos tenhamos conhecido
pessoalmente.
Qual o perfume que usa no dia-a-dia?
Uso a nossa fragrância Uomo. Gosto dela porque é fresca e ao
mesmo tempo complexa, tradicional mas rica em originalidade,
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