SONHOS DE TOTALIDADE Sherry Salman Tradução de Nancy
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SONHOS DE TOTALIDADE Sherry Salman Tradução de Nancy
SONHOS DE TOTALIDADE Sherry Salman Tradução de Nancy Donnabella “Sonho de totalidade” é uma de minhas frases favoritas de Jung. Esta frase foi dita em 1957 e Jung já era idoso. Miguel Serrano havia lhe perguntado como se tornar uma personalidade inteira _ que Jung chamava de Self e que Serrano confundiu com um estado de completude. A resposta crítica de Jung foi: “Acredito que o que chamo de Self é um sonho de totalidade”. Imagino que o que ele queria dizer era que não há possibilidade de total inteireza nem do Self nem de qualquer outra coisa. Entretanto, há um processo de integração e construção se desenvolvendo _ que aqui eu refiro como sonho de totalidade. Nossa imaginação trabalha para completar as coisas que não estão inteiras sejam elas, por exemplo, uma idade de ouro fantasiosa da infância ou da cultura; a falta de outra pessoa que nos completará; a fantasia do verdadeiro Self ou um universo autoorganizado; uma aldeia global unindo a humanidade; ou mesmo “redes de terror” englobando todo o planeta. Nós temos sonhos e fantasias de utopias e distopias, de fim dos tempos apocalípticos, de salvadores universais e agentes do mal. As imagens de totalidade que nós percebemos como vivendo dentro do poder e que regulam os credos e práticas religiosas, programas sócio-políticos, movimentos artísticos e expressões, “ismos” como globalismo ou fundamentalismo e todas as formas de sistemas conceituais-incluindo teorias psicológicas e terapias de identidade, Self e saúde. Temos fé em nossas criações simbólicas e nos processos da revelação de nosso destino, em hiper-realidades, em deuses dos testamentos e em deuses das tecnologias. 1 A propensão que temos para imaginar a inteireza confere integridade e ilusão à nossa experiência. Nós rearranjamos fragmentos de memória e desejo, completamos espaços e inconsistências, criando simetria e construindo narrativas que combinam, resolvendo o que é irreconciliável, projetando inteireza no que é incompleto e em movimento, consertando o que estiver fora de ordem. Nossos sonhos de totalidade são “ficções curadoras” na opinião de James Hillman e eles provocam tormento e mudam com um senso contrastante de estabilidade emocional, psicológica e significado. Os símbolos de totalidade que criamos são capazes de mover sentimentos de um modo que o pensamento racional por si só é incapaz de fazer porque estes símbolos provêm da mente mitopoética, do cérebro límbico ligado ao corpo e emoções, assim como do cérebro cortical. Isso explica seu poder e atração, o compartilhamento das emoções e pensamentos que esses símbolos oferecem, do mesmo modo que sua propensão para fixação e comportamento compulsivo. De acordo com sua imagem universal--o círculo ou esfera--simboliza inteireza que pode ser inclusiva ou exclusiva, um beijo subversivo ou um abraço apertado, progressivo e defensivo, visões de possibilidade e elaborados esquifes para o espírito e a sociedade que proíbe a imaginação de novos mundos. Embora as ficções que criamos e que abrigamos tenham mantido as mesmas formas e design através da história e culturas e de muitos modos ainda o fazem, alguma coisa me parece diferente agora. Parece que nós não integramos tendências conflituosas na vida contemporânea tanto quanto as vivemos. Isso faz surgir sentimento de acaso, uma experiência de ser sacudido entre fantasias de fragmentação e essencialidade e um medo de que o significado tenha sido, sem esperança, relativizado. Embora a imaginação ainda trabalhe para fazer com que as coisas fiquem inteiras, parece-me que “o olho da 2 imaginação que tudo vê” não mais permanece em totalidades monomíticas, mas de preferência, piscando e atualizando, ela roça levemente sobre a superfície das coisas, como o mapa virtual do “Google Earth”. E sentimos que embora estejamos em dificuldade agora porque as coisas não se adaptam bem como de costume, estaríamos em dificuldade da mesma forma se elas se adaptassem. Tenho também achado cada vez mais difícil, embora ainda atrativo, concordar com a popular ideia junguiana de que os deuses que outrora presidiram nossos sonhos de inteireza e mais tarde migraram para o interior--tornando-se projetos psicológicos e projeções--estariam agora inteiramente embebidos na matéria, encobertos, embora completamente presentes em nosso “tecido” e em nossas mazelas pessoais e culturais, vivendo nesses lugares agora em vez de em seus templos ou dentro do santuário do Self. Muitas vezes eu pensava: “Qual o deus com respeito próprio consentiria ser despejado em um shopping center ou em um manual de diagnóstico?” Não faz mais sentido para mim simplesmente designar o espírito de Hermes para descrever o comércio da globalização, espaço virtual e todo ardil da vida pós-moderna – embora traços dessa imagem permaneçam. Enquanto Jung certamente nos mostrou como “os deuses se tornaram doenças” como ele muitas vezes nos disse, estou começando a concordar com o ensaísta americano Ralph Waldo Emerson quando ele brincou que ”a religião de uma época é o entretenimento literário da próxima” e simpatizando com a psicanalista Júlia Kristeva quando ela escreveu em This Incredible Need to Believe, “Infinitas são as metamorfoses do pai morto”. Estamos finalmente vivendo em um mundo dessacralizado, tanto lamentando como celebrando o que tem sido chamado “morte do simbólico”. Outra coisa que parece diferente é que muitas imagens contemporâneas de contenção (como a aldeia 3 cibernética, a psique “emergente” ou um universo em expansão) são abertas e difusas, sem centros ou bordas de orientação, tornando difícil identificar a diferença entre fronteiras de transgressões criativas, malignas e muitas outras que não mais importam. E muito significativo para mim, como analista junguiana, o que era conhecido como “significado” agora muitas vezes emerge não apenas no interior ou no relacionamento, mas em uma série infinita de “movimentos” em um estado de mente muitas vezes virtual e crescentemente público, sujeito a todos os compromissos instantâneos que nossa tecnologia encoraja--compartilhando, editando, apropriando e especialmente fazendo a constante eliminação de imagens, ideias e identidades. Creio que embora seja deveras estranho que possamos ir às compras em um “Shopping de Significados” onde vários significados estão à mostra, significados que podemos comprar ou não (incluindo a opção de comprar todo o cenário de significados), esta situação tão confusa, libertadora e decepcionante como parece ser, é onde estamos agora e eu refleti sobre o significado disso. Comecei a olhar mais profundamente para nossas projeções contemporâneas de totalidade, para a mídia virtual e social e para as novas formas de narrativas como memórias literárias. Não encontrei deuses ocultos, mas encontrei um novo jogo na forma de mascarar e desmascarar a imaginação. No meio de toda a relatividade, eliminação e artifício em que vivemos (e os vigorosos fundamentalismos que confrontam isso) há uma oportunidade para chegar a novos termos com o modo como a imaginação modela tanto a cultura individual quanto a coletiva. Isso é crucial quando tentamos nos tornar psicologicamente capazes de algo como democracia e cultivar uma ética de responsabilidade de um para com o outro em uma escala global. 4 Então, agora voltemos a observar a vida dos símbolos como inteireza, o que eles fazem e o que acontece quando eles se tornam literais. Há uma grande quantidade de evidência sugerindo que o que chamamos de imaginação não seja algo racional. É o que organiza e sintetiza a percepção e emoção em pacotes simbólicos que faz profundas traduções de experiência e também a estrutura. Nós então usamos esses pacotes simbólicos como uma base para outros tipos de pensamentos, como o pensamento racional. Então , por exemplo, a experiência de verticalidade baseada no corpo (levantar depois de engatinhar) leva ao significado de “para cima é melhor” ou a experiência de contenção se torna uma metáfora psicológica de “dentro ou fora”. As metáforas mais efetivas atingem o status do que Jung há tempos identificou como imagens arquetípicas. Essas imagens têm uma intensidade poética e mítica, até uma beleza estética alucinógena ou uma inatacável completude lógica. E elas concernem precisamente aos assuntos que mais nos interessam. Como Jung escreveu: “A imagem é uma expressão condensada da condição psíquica como um todo” (1923 745). É por isso que, em relação à inteireza, podemos dizer e realmente dizemos, coisas como: “Deus é um círculo cujo centro está em todo lugar e cuja circunferência está em lugar algum” ou, ao mesmo tempo que a “World Wide Web” parece prometer a realidade de um planeta iluminado, redes de terror, epidemias de massa e fusões globais podem ameaçar o fim de tudo. Essas imagens são expressões simbólicas de nossas condições psíquicas. Todas as grandes histórias mitopoéticas, grande arte e símbolos poderosos como inteireza são veículos para o que os psicólogos cognitivos chamam “transporte narrativo”, uma imersão em um estado de mente alterado que favorece o compartilhamento emocional e cognitivo essênciais, atuando como “teorias da mente”. Os símbolos mais 5 potentes como inteireza fazem a mediação do compartilhamento de emoções e pensamentos não apenas com nós mesmos mas também entre nós. Eles são públicos. Os neurocientistas estão começando a falar sobre “integração em redes”, a mais poderosa das quais “se situa em memória individual ou coletiva”, com a “memória da humanidade” fazendo a mediação do que é chamado “espaço intersubjetivo compartilhado”. Isso é o que Jung identificou há muito tempo como inconsciente coletivo. E o “compartilhamento de essenciais” que se situa na vida contemporânea via imagens disponíveis através de comunicações tecnológicas é sem precedente na cultura humana. Poderosos símbolos de inteireza são amadurecidos dentro de nós em resposta ao estresse e angústia e, sem dúvida, parecem durante tempos de conflito e mudança--com uma postura “fazer ou morrer”, linda, horrível ou até sentimento de sagrado. São construtores de momentos quando a imaginação dá forma à imensidão da experiência, na teoria narrativa: construtores de momentos quando a “história” é contada. Intimamente responsáveis pelo ecossistema do tempo e espaço, eles alcançam a marca e penetram no âmago do que importa. Como a mitologia e a história têm nos mostrado há uma consistente “chamada e resposta dinâmica” na imaginação humana, um padrão de “perdido e achado”. O desparecimento do senso de inteireza é sempre seguido pela restauração ou uma por nova imagem de unidade _ seja ela o retorno de Perséfone e primavera depois da escuridão do sofrimento e inverno, a ascensão do Cristo transfigurado, o próximo Dalai Lama ou um novo paradigma social como a globalização. Enquanto é universalmente aceito que a inabilidade de sonhar com a totalidade--para integrar experiência e compartilhar “espaço intersubjetivo”--seja uma catástrofe como um buraco negro na mente e no coração, é Igualmente verdade que símbolos da inteireza 6 podem frear a imaginação quando nos identificamos com eles. Quando “não funciona”, quando sonhos de totalidade individuais ou coletivos se tornam totalitários ou “estragados pela perfeição” ou quando nos tornamos como deuses e nos identificamos com nossas criações, nos tornamos englobados e sepultados por eles, ou atirados em uma hiperrealidade que perde contato com as preocupações humanas que em primeiro lugar criaram esses símbolos. E pode-se argumentar em defesa do que parece nos manter juntos, que somos algumas vezes movidos para a destruição como as grandes pragas e epidemias na história humana. Jung descreveu esta imagem do alvo psicológico da inteireza em termos de identificação com o Self: “O que não sai de sua cabeça é, embora você possa não o saber, como uma joia rara... formando simbolicamente o centro de muitos círculos concêntricos, reminiscente, do centro de um mundo grande ou pequeno, como o olho de Deus nas pinturas medievais do universo... Qualquer pessoa que caia na teia de aranha é envolvida como um casulo e roubada de sua própria vida... Ela vive na solidão do criador... “(OC10, par. 672). Desse modo, nossos símbolos de inteireza podem ser tanto panaceia como veneno. Como é especialmente evidente com respeito às grandes religiões, por exemplo, o sonho de totalidade funciona como um “remédio” (isso se aplica também àqueles que têm a ciência como deus). Mas como muitas drogas, a arte está na dosagem e no tempo próprios. Muito pouco não dá resultado e demais é tóxico. Fantasias giratórias da inteireza se movem em direção a uma democracia radical na psique e na sociedade quando elas promovem equilíbrio, ou uma transgressão criativa dos limites da identidade, ou a inclusão de novos ou libertadores elementos da psique ou sociedade que estão pressionando por aceitação. Como uma atividade que critica as normas desconstruindo e 7 reconstruindo mitos pessoais e coletivos, em uma forma verdadeiramente subversiva, o sonho de totalidade nos permite forjar conexões surpreendentes e promove empatia com o que foi esquecido, censurado ou desfigurado. Mas também se endurece em totalitarismo, misticismo, narcisismo e até mesmo psicopatia – o veneno. Através da história, quando se estabiliza no terrorismo social ou sistemas políticos, ou fica-se abandonado em uma dimensão transcendente ou se torna literal na zona morta de fundamentalismos de toda espécie. Símbolos da totalidade percebidos como realidade, desta forma se tornaram ferramenta para a implementação coerciva do poder--frequentemente pela tradução para teoria e então para o programa. Nesse sentido, Freud estava certo quando escreveu em O Futuro de uma Ilusão, que a “ficção” de religião funcionava como um braço coercivo da civilização protegendo o status quo. E os pós-modernistas também estavam certos ao desconstruir e escarnecer o “sentido do sentido”, com seus significados frequentemente cerceadores de inteireza, Self, totalidade e verdade. Entretanto, eu argumentaria, por exemplo, que os Novos Ateístas muitas vezes jogam fora o bebê junto com a água da bacia, muito parecido com sua contraparte fundamentalista. Nenhum lado reconhece a imaginação simbólica--um lado a degrada a um vestígio da evolução e o outro a supervaloriza a uma entidade transcendental. Isso deixa o debate científico/religioso condenado a oscilar entre narrativas polarizadas de fé cega e o mais literal tipo de empirismo. Felizmente para nós, realidade e nova vida sempre fazem furos no tecido de nossas criações simbólicas, revelando o que é certo do outro lado das suas fronteiras. Então nossa imaginação separa os poderosos símbolos, desembrulha-os--constantemente desconstruindo-os e reconstruindo-os quando eles não mais nos servem bem. Mas quando a fantasia da inteireza está ativa ela se assemelha ao mais profundo receptáculo 8 para nossos desejos e valores individuais e coletivos. Quando ela perde seu encanto não mais se apresenta como uma verdade eterna e escorrega para um tempo relativo da história e cultura--o qual sempre tem bordas árduas, esfarrapadas e faltando pedaços. Desse modo não desistimos delas sem um combate. Nossas lutas com as perdas e traições de nossas fantasias de inteireza, o vazio que fica quando elas são resolvidas chegam às próprias raízes da identidade, colocando-nos face a face com a raiva, medo e desespero--com tudo que parece hostil. E isso pode levar à vingança que conduz à “compulsão de repetição” de pagamentos de sangue onde “o que vai sempre volta”--os rituais tradicionais e aterrorizantes de bode expiatório, tabu e negação que são implementados para manter fantasias de identidade e poder intatos. O que acontece quando nossos sonhos de totalidade se despedaçam, se nós continuamos com o sacrifício, ou endurecemos e o suprimimos, é usualmente o fator decisivo. Parece-me que estamos em melhor posição agora do que sempre estivemos para permitir que nossos sonhos de inteireza se apresentem sem máscara em um modo construtivo. Desenvolvimentos na cultura e tecnologia nos encorajam a suportar a tensão de incompletude expondo a transparência e linhas falhas em nossas fantasias de inteireza. E as fortes emoções que isso evoca em nós podem abrir outro tipo de linhas falhas: uma ferida aberta de imaginação e empatia com o que antes parecia como o outro--o que era exterior ao círculo mágico da totalidade. E empatia com elementos não autorizados do Self ou outros é mais importante do que identificação ou simpatia, porque identificação rapidamente se transforma em raiva ou ressentimento quando o “outro” é revelado como realmente diferente e simpatia se torna paternal ou maternal. 9 Agora antes que entremos na cena contemporânea e o que é possível, ALGUMAS IMAGENS PARA ILUSTRAR DE OUTRA FORMA. Há uma grande quantidade delas, então, apenas deixe sua mente relaxar e receba estas informações visuais. Nut, Deusa Egípsia da Noite. Contém tudo nela: estrelas, deuses, faraós, animais. A Roda do Tempo, Mandala Tibetana Kalachakra, sec. XVII _ O casal apaixonado de divindades masculina e feminina trazem consigo a sensibilidade do “agora” com nosso anseio pelo o eterno. Essa situação está frequentemente por baixo da projeção do “outro amado” o qual nos fará completos para sempre. Alegoria Cristã do Mundo, sec. XVI – pintura de Jan Provost. O olho de deus no topo, o universo medieval no meio sustentado pela mão de deus, embaixo o espírito humano com olhos e mãos. O casal divino Cristo e Maria nos lados. A história toda é mantida em seu lugar por círculos e uma cruz, símbolos 10 de completude e estabilidade. Escultura africana Yorubá feita em Cabaça: O Cosmos _ A parte de cima é o mundo espiritual, a metade de baixo é o mundo vivo, a linha entre eles é onde os mundos se comunicam pela divindade. Prosseguindo, é “O Sonho” por Rousseau, 1910--a romântica fantasia da nossa unidade com a natureza personificada como mulher. A próxima imagem é do filme “Avatar”, 2009 _ cem anos depois outro romance de uma sociedade em perfeita harmonia com a natureza. Acho que o próximo Avatar deve ser filmado nos arredores de Manaus! 11 Mandala do Dragão por Jung _ uma pintura no Livro Vermelho de Jung de uma seção chamada “O Dom da Mágica”. Jung trabalhou no Livro Vermelho durante seu engajamento com o que ele chamou de “espírito das profundezas”. Esse é um grande exemplo de “chamado e resposta” dinâmica de sonho de totalidade. É a resposta de Jung para seu assim chamado “colapso”. Como Jung disse a respeito desse período de sua vida: “Minhas mandalas são criptogramas do meu estado enviados a mim todo dia” (1963: 221). Essa é uma inversão do motivo usual do ego heroico dominando a serpente da libido inconsciente. Em vez disso, o homem abaixo parece render-se voluntariamente ao que era chamado, no tempo de Jung, de “poder da serpente” _ que é a aparente propriedade mágica que a psique tem para renovação depois do colapso, um tipo de “big bang” criativo de vitalidade emocional e física. Jung encontrou contenção dentro dessa visão mais ampla da energia psíquica e a ideia de que a psique se tornou inteira de novo rendendo-se ao inconsciente se tornou central para seu modelo da prática psicológica. Agora algumas coisas que não são tão bonitas. Se a mandala é uma imagem da totalidade que simboliza inclusão e abertura, a círculo mágico é uma imagem de defesa e proteção e até exclusão. “Expulsão de Paraíso”, 1445 _ pintura por Giovanni di Paolo. O Senhor é pintado rolando o mundo na forma de uma roda zodíaca bem em frente do infeliz casal que está dominado (mas não por muito tempo) pelos quatro rios perfeitos e sete árvores do Jardim do Éden. 12 Uma forma de entender isso é que como a humanidade entrou em sua própria imaginação como um sujeito ativo, o círculo mágico da criação divina se torna quebrado. A próxima imagem por Rubens Saturno Devorando seu Filho, 1636. O mito é: o titã Cronos temendo que um de seus filhos o destronasse, comia-os assim que eles nasciam. Sua esposa, finalmente, escondeu seu sexto filho, Zeus, dando a Cronos para comer, em vez disso, uma pedra embrulhada como um bebê. Zeus retornou para destronar seu pai fazendo com que Cronos ficasse tão enjoado que ele vomitou os outros filhos: Hades, Poiseidon, Demeter e Hera. Assim, os grandes deuses olímpicos foram vomitados e voltaram à vida. Quando coisas demais são proibidas, o que foi suprimido finalmente retorna violentamente ou essas coisas são metidas para dentro do círculo mágico da perfeição de uma forma totalizante. A posição fundamentalista descrita por esses padrões devoradores nunca fica realmente livre dessa violência iminente, porque ela tem sempre que manter fora as coisas que são do outro, criando uma situação muito desconfortável. Isso vem a ser a história de fundo de muitas revoluções emocionais e sociais. Helix Nebula _ foto da morte de uma estrela chamada “O Olho de Deus”. O motivo medieval projetado para uma forma cósmica contemporânea. Tudo vendo, tudo sabendo o Olho está completamente contido em sua visão, de modo que ele é também letal 13 quando somos pegos pelo seu olhar abrasador. A imagem também expressa o sentimento de paranoia que surge quando a totalidade é projetada tão completamente fora de nós que ela é sentida como se estivesse “olhando para trás” para nós com um olhar esmagador e irresistível. Essa dinâmica persecutória é perturbadoramente evidente no relacionamento entre os crentes fundamentalistas e racionalistas extremos que mencionei antes. Ambos usando viseiras clamam pela verdade e visões totalitárias requerendo sempre o aniquilamento do outro inimigo “cego”. Mais sobre religião: o divertido cartum que apareceu on line durante o mandato de George Bush nos USA. (“Down at the Rapture with George”) Dia de julgamento. O fim total. 14 E em um cartaz daqui Uma foto aérea da cidade de Moscou à Noite. Tem a forma de uma mandala e dentro o velho círculo mágico: o Kremlim e a Praça Vermelha. Agora, circulando a Praça Vermelha há lojas de grifes muito caras! 15 “Homem Vitruviano” por Da Vinci, 1492 _ Homem como o perfeito microcosmo cujo corpo se adequa à forma do quadrado e do círculo, ambos imagens de estabilidade e inteireza. Garoto da Internet _ alcança todo lugar de um outro modo! Meditador _ Chakras do Corpo Sutil, 1820 todos os centros espirituais estão no corpo humano. 16 Consultório de Freud em Londres _ com psicologia profunda os deuses foram para dentro do inconsciente. Vocês os veem todos? Isso é a fantasia psicológica acerca da inteireza da “interioridade”. “Narciso” por Caravaggio, 1598 _ Círculo mágico da totalidade. Ele contém tudo em si mesmo, nada entra ou sai. Como este, o narcisismo é um equilíbrio total, porém delicado: se ele puser os dedos dentro d’água apenas por um momento o círculo se dissolveria e se ele os tirasse o mesmo aconteceria. Agora ficamos mais modernos quando a totalidade é experimentada como dividida em várias partes. Podemos pensar nisso como o motivo de Uno em Muitos e Muitos no Uno. “O Esquartejamento de Watakame”_ Um quadro bordado do México, o esquartejamento de Watakame", um mito da criação. Watakame era um antepassado macho primordial. Quando ele morreu, as partes de seu corpo foram espalhadas sobre a terra e delas brotaram várias frutas e legumes que sustentariam a vida humana. Neste mito, ao contrário de Cronos, o ancestral é esquartejado para dar à luz uma nova vida. 17 Podemos encontrar esse motivo do Uno e do Muitos espelhado em processos de célulastronco _ nos quais muitos literalmente surgem a partir de um. Esta é uma imagem de microscopia fluorescente de células-tronco embrionárias humanas em vários estágios de diferenciação em neurônios. O conflito sobre a pesquisa com células-tronco que se passa nos EUA _ de um lado promete a regeneração da própria vida e de outro usurpa a proveniência de um criador divino, revelando como as células-tronco facilmente absorvem a projeção de um remédio universal da totalidade, tanto panacéia como veneno. “Auto-retratos de Rembrandt” em diversas fases de sua vida. 18 E esta é uma “Imagem de Alta Resolução de Brócolis”, um vegetal que é muitos, embora seja o mesmo! Brócolis tem uma estrutura fractal, ou seja, pode ser dividida indefinidamente, cada parte sendo uma cópia exata em tamanho menor do todo. “Quarto dos Espelhos” Instalação por Lucas Samaras, 1966. Você entraria e veria muitos fragmentos e imagens espelhadas de si mesmo. "História do cérebro" pintura por moderno artista-aborígine _ este é o cosmos Aborigine dentro do cérebro: em cima estão mitos e 19 pensamentos de "história do cérebro”, em seguida embaixo as relações e emoções do "cérebro da família” (pessoas sentadas em torno de fogueiras), depois a geografia e ambiente do "cérebro do campo", por último é o domínio físico e molecular do "cérebro do corpo.” “Publicidade no site da Web Hindi Business Line” (2005) Isso faz lembrar a mão de Deus segurando todo o mundo medieval? Isto é diferente!! Então, agora vamos falar sobre nossa situação contemporânea. Parece haver cada vez menos conteúdo no centro da vida quer individual quer coletiva, e não há como voltar atrás. Existe pouca possibilidade de voltar para a estabilidade de "valores tradicionais", para as sociedades embebidas na natureza, para teocracias ou para sistemas totalitários. Em breve até mesmo os mercados livres desenfreados não serão mais uma opção. Há algum tempo, essas fantasias de contenção eram aceitáveis e expressavam o espírito de sua época, como vimos nas imagens. É por isso que elas não podem ser recriadas. Seu tempo passou e elas não têm mais a objetividade da experiência de vida. Como o que nos continha antes já não mais o faz, muitas coisas parecem estar acontecendo ao mesmo tempo. Imagens mais flexíveis de inteireza como globalização e aldeia cibernética estão avançando em nosso imaginário coletivo. Como os limites 20 tornam-se mais fluidos, "centros" rígidos e fixos da psique formam dogma como reação. Fundamentalismos de todos os tipos (religioso, político, social) lutam vigorosamente para restaurar a ordem, defendendo textos sagrados dentro de seus círculos mágicos, com o objetivo de purificá-los de influências contaminantes. Felizmente, a natureza regressiva desses projetos nostálgicos é eventualmente exposta por seu primitivismo cognitivo e emocional. Ou assim esperamos. Enquanto ainda projetamos nosso desejo de inteireza, agora em imagens de interpretação mais aberta, também estamos cientes de que essas projeções não mais nos mantêm juntos muito bem. Muito do que nos contém agora _ informações contínuas e que mudam de identidade jorram no espaço virtual – faz-nos sentir como sendo desconfortáveis e perigosas. Por exemplo, com o colapso das fronteiras e a ausência de centros autorizados da vida individual e social, a noção de "estrangeiro" recua, e com isso vem a paranoia assustadora de que o "inimigo" (e nossa própria sombra) antes mantido fora do círculo mágico da totalidade pelo bode expiatório e tabu pode estar, e está, em qualquer lugar e em todos os lugares. Este é realmente um "fato psicológico" que no entanto, parece auto-evidente e literal para nós, em nossas fantasias sobre o vizinho terrorista. Relacionado a isso, como as identidades pessoais e culturais tornam-se radicalmente desestabilizadas--mudança de sexo, múltiplos papéis sociais, cidadanias cosmopolitas--medo de "imigração e contaminação" proliferam em reação. É como se toda a cultura estivesse tendo um clássico sonho 'intruso' interminável: o estranho vem bater à porta, ou o intruso tenta arrombar a porta e nós ou resistimos ou abrimos. Ao mesmo tempo, a imaginação está sendo manipulada por um fluxo incessante de imagens manufaturadas. Quando os símbolos genuínos fragmentam-se em imagens 21 maníacas e dissolvem-se em infinitos ‘rodopios’, nós muitas vezes caímos em colapso, exaustos dizendo como nos Estados Unidos: "seja lá o que for" e “está tudo bem." Mas não está. Imagens irreais, particularmente quando elas são imitações inteligentes da coisa real podem ser profundamente manipuladoras, perturbando a imaginação e a profunda ecologia da psique. Nós muitas vezes não sabemos mais quando nossos limites foram violados. Enquanto o jogo de imagem digital promove a conscientização do poder da imaginação, é também o ilusionista final, até mesmo um embalsamador, como muitas pessoas encontradas na vida virtual podem atestar. Antigamente, o antídoto para a imagem fascinante era a ciência da medida. Como costumávamos dizer: “os números não mentem". A resposta ponderada e medida ficou contra o momentum intoxicante com o qual uma simulação poderia se tornar viva. Mas, com a digitalização, até medição e "fatos" podem facilmente ser listados a serviço da ilusão. A ameaça de fixação se esconde no background de todo jogo da imagem, em forma de arquivo digital. Tudo é salvo, então a arte da memória, esse criativo engajamento com a experiência, poderia ser comprometida. O arquivamento pode suportar ‘o esquecimento’, precisamente porque tudo parece ser lembrado por nós. Mesmerizados e saturados por todo tipo de imagens nós muitas vezes desistimos e damos lugar a um relacionamento casual com a verdade, ou "fingimos de mortos", acalmados para a passividade pelos espetáculos de desastre celebrados pela indústria da mídia. Muitas pessoas simplesmente se deleitam com a destruição de velhas formas, numa espécie de alegre zombaria pós-moderna e não ajuda o fato de que nos Estados Unidos, por exemplo, o grupo de trabalho para criação de um novo Manual Diagnóstico Psiquiátrico queria classificar introversão, mas não extroversão, como um indicador preocupante de uma "desordem de separação". 22 Mas, assim como não há possibilidade de voltar à vida de antes do fluxo de informação não podemos voltar atrás em uma nostalgia maligna, mesmo para os nossos romances junguianos com a sabedoria do inconsciente, ou ressuscitar inteireza no velho sentido mítico-ritualístico, tudo que passou. Há o rumor de realidade nisso, sentimentos assustadores de ansiedade, arbitrariedade e fantasias de desintegração e também a oportunidade para algo novo que um relacionamento com o frescor da realidade sempre oferece. O sacrifício de autoridade que estamos experimentando na vida coletiva promove o caos e também convida a uma reorganização que conscientemente reconhece a complexidade. Como Heráclito poderia ter dito sobre o ciberespaço, você nunca vai pisar no mesmo rio duas vezes. Em parte, esta é a mensagem da mídia _ sua transparência desencoraja a identificação com imagens particulares. Como tudo se mistura e muda rapidamente, a virtualidade pode esclarecer as coisas para além dos círculos mágicos de identidades fixas do Self e de normas sociais _ ajudando-nos a desapegar das imagens e identidades particulares. Essa forma de sacrifício não exigiria a crença em agentes sobrenaturais ou a morte sangrenta de bodes expiatórios. E embora a complexidade tenha estado conosco sempre, não temos mais a opção de esperar pelos deuses para falar com eles a uma só voz novamente. Charlatões e falsos artistas, criadores e destruidores, inspiração e lixo, o grandioso, o genérico e o artigo genuíno, todos vivem lado a lado abertamente oferecendo oportunidades ou promovendo o oportunismo. Temos a liberdade de transgredir de forma criativa e uma grande dificuldade em reconhecer limites de transgressões prejudiciais. Ou, curiosamente, às vezes até mesmo transgredindo. No livro “Trickster Makes This World”, Lewis Hyde argumentou convincentemente que a cultura é criada por atos transgressivos de todos os tipos: roubo, comportamento vergonhoso, alianças proibidas e simples estranhezas. O nosso dilema atual é que 23 podemos avançar para além das fronteiras, apagando-as e misturando-as muito facilmente, entregando e controlando as expressões mais íntimas do Self e do relacionamento. Mas para transgredir criativamente você precisa sentir a pressão de limites. Para mover o marcador de fronteira você precisa saber onde ele está. Sem isso, é difícil diferenciar os vivos dos mortos. YouPorn.com, por exemplo (um site amador que parece com o YouTube), é o site de pornografia mais popular da web. Mas, aqui está o mais importante, não é exatamente transgressivo também porque não é mais realmente "sujo". Por outro lado, do ponto de vista fundamentalista, um desenvolvimento mais assustador de apagar limites é a designação legal das pessoas que veem pornografia infantil on-line como criminosos sexuais, até prendendo-as, criando de fato uma nova categoria de ‘infratores virtuais'. A boa notícia é que, como imagens e emoções entram plenamente no fluxo de informações, a arte e a realidade se misturam em uma forma híbrida que compreende a promessa de vida pós-moderna -- sem texto padrão. Não é por acaso que blogs e memórias são hoje formas narrativas tão populares. Elas não representam os fatos da experiência (que são entendiantes), mas de preferência, eles nos dizem sobre o envolvimento ativo do autor com suas memórias. Isso é o que os torna atraentes. Como sabemos do trabalho analítico, a memória é apenas um enredo no jogo de consciência que cria o nosso sentido de totalidade--e a memória é cheia de furos, seletiva e temperamental. Lembranças funcionam melhor quando criam nova narrativa emocional: por exemplo, quando liberados do destino de complexos parentais temos a sensação de que estamos seguindo em frente, sensação esssa frequentemente seguida de um sentimento de ser a própria pessoa, 'nascida' inteira (continuando a metáfora) da própria 24 história. Os gregos clássicos imaginavam que a deusa da memória era a mãe de todas as musas, uma grande família de memória, imaginação e expressão criativa. Hoje nós diríamos que a “atração e a nebulosidade do real' têm lugar na fronteira entre ficção e não ficção. Tal como acontece com os sonhos reais, quando essas narrativas expressam metáforas significativas nós as aceitamos. Quando não o fazem, nós pensamos que podemos reconhecer a ilusão. Mas, como em um sonho real: é assim tão fácil fazer a diferença? E mais importante, deveríamos? Atualmente, somos muitas vezes como Selves fugitivos, fugindo de noções monomíticas de saúde e identidade. E isso é uma coisa boa. Nossa experiência psicológica muitas vezes se assemelha à transparência e também à qualidade mascarada de uma série de "como se fossem" instalações e espaços teatrais de improvisação, nos quais somos as instalações e os improvisadores, ambos cada vez mais revelados e escondidos. Como em todo teatro, usar uma máscara pode ser muito catártico, proporcionando espaço livre de consequência no qual podemos experimentar identidades e ideias. Isso é fundamental para qualquer processo criativo e pode fomentar um "Self colaborativo" e fluido. Um Self e sociedade continuamente informados por outros. Ou pode transformar experimentos com identidade em mera produção de um perfil no Facebook. O mascaramento e desmascaramento da imaginação disponível para nós hoje oferece uma arena sem precedentes para a evocação, mas não para a ética do relacionamento. Podemos estar conectados sem sermos envolvidos; fazer imagens sem estarmos comprometidos. Enquanto nossos Selves mascarados e digitalizados são uma imagem tão legítima, e tão parcial, de quem somos nós como 'filhos de Deus', não há moral para essa história; não há mandatos éticos reconhecíveis no ciberespaço e as violações aos nossos ecossistemas emocionais e psicológicos são difíceis de reconhecer. Os furos em nossos 25 sonhos de inteireza, todo o sacrifício e desmantelamento da identidade que ficam expostos pelas realidades da vida contemporânea, são também onde respostas sem empatia, sem imaginação, até mesmo respostas psicopatas encontram uma porta aberta-a mesma porta onde transgressão criativa floresce. Então, a pergunta que vem é: como preservar o aspecto criativo de nossa propensão em direção à inteireza, ao mesmo tempo que enfraquecemos seu domínio muitas vezes mortal? Há um velho ritual de adivinhação chamado oráculo venenoso, Benge, que o povo Azande da África subsaariana usa para descobrir a presença de bruxaria em seus assuntos. O requerente faz uma pergunta cuidadosamente considerada. Veneno é dado a um frango. As respostas do Benge, ocorrem através da ação do veneno. Se a galinha viver nada há a temer, se a galinha morrer há algo a temer. Às vezes, o veneno é dado à outra galinha para verificar a precisão do primeiro oráculo. Algumas galinhas vivem, algumas morrem. Isto pode continuar por algum tempo, até que a questão seja respondida a contento de todos. Como em todos os assuntos realmente difíceis, a presença de dúvida confirma a autenticidade das respostas que recebemos às nossas perguntas. Simbolizar a inteireza é uma das maneiras que nós tratamos e dosamos nossos movimentos dentro e fora da dissolução, fazendo como os antigos alquimistas disseram sobre sua ‘Arte’: o que é ‘firme’ é não firme, e o que é 'não firme' é firme. Mas somos todos apenas galinhas quando se trata de tratamento ao imaginar inteireza. Depende muito de como reagimos. A fonte de nossa autenticidade contemporânea é se manter ético. Então, primeiro temos de enterrar os mortos e chorar nossas perdas. Há muita dor atualmente, pois os sonhos de totalidade estão sendo rapidamente perdidos--sentimos 26 isso na cacofonia de raiva política, na loucura e na fúria que vêm com rupturas contínuas e nas justas tentativas de recuperar idades de ouro--uma defesa contra a perda. Ou, tentamos transpor isso e rapidamente voltar a nos identificar com deuses criadores-saltando leve e cegamente sobre a confusão e sofrimento em nossa volta--e imaginar que uma nova utopia está no horizonte na forma de globalização, um mundo digital espiritualizado ou um amigável planeta verde. Mas no cemitério de sonhos desfeitos e lágrimas derramadas há um terreno fértil, onde novas conexões podem ser feitas entre nós. Outra maneira de se manter ético é através de exercitar e desmascarar nossas projeções imaginárias, "amar e perder" nossas fantasias de inteireza, permitindo a transparência e o fluxo em que vivemos para dissolver nossos sonhos de totalidade no solvente maior da imaginação. A adoção de uma ética psicológica é o que mantém fantasias de inteireza honestas e vitais. Ajuda-nos a assumir a responsabilidade por nossas criações imaginárias, levá-las em seus próprios termos e não torná-las literais ou "meramente simbólicas". Como Jung deixou claro, o sacrifício serve de prevenção contra a desesperança, travamento e prisão em um limbo transcendente (podemos acrescentar encalhados na hiper-realidade). Nos sacrificamos para colher o simbólico como resultado do que foi feito concreto demais, e colher o concreto daquilo que tem sido considerado meramente simbólico. Isso nos ajuda a reconhecer a diferença entre a letra morta psicopata e a palavra viva criativa no que diz respeito a todos os símbolos, não apenas às fantasias de inteireza. Em relação a essas fantasias de inteireza, esse sacrifício (desmascarando nossas projeções) pode ser uma questão premente de integridade individual e ética social que a vida contemporânea requer. Nós não podemos suportar mais essas identificações e isso é particularmente pertinente durante nossos estados 27 mais vulneráveis de confusão, quando podemos participar mais plenamente na abertura de novas possibilidades, ou sermos mais efetivamente manipulados. Nossos sonhos contemporâneos de totalidade ainda expressam algo sobre a evolução do relacionamento da psique com ela mesma e com o mundo. Do mesmo modo que não há realmente qualquer lugar para jogar "fora" nosso lixo, há cada vez menos uma câmara sagrada interna em que se possa se esconder com um sonho escolhido de inteireza. E isso importa bastante se nós fazemos os sacrifícios necessários, tiramos algo da farmácia de transgressão criativa ou se nós empurramos o que é indesejável para fora de nossos "círculos mágicos” com tabu ou violência; ou se aceitamos um conserto rápido corporativo com o que tenha sido promovido para o aumento do assim chamado "bemestar". Mas, sorte de novo, tal como fazer um mosaico, a nossa imaginação ainda vai diretamente para as bordas onde as coisas não se alinham. E como a vida psicológica se move tão livremente nessas bordas agora, o que antes eram limites e proibições poderiam se tornar mais como marcadores de estrada, marcadores dos momentos quando fizemos uma escolha sobre algo, diretamente nas bordas entre a ordem e a desordem. Nós podemos não mais querer chamar este solo de sagrado, mas o que poderia ser mais psicológico? 28