Usura Real.

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Usura Real.
Usura Real
(*) João Antônio César da Motta
Acompanhei com curiosidade o editorial de importante jornal paulista sobre o que reputou como o
fim da pechincha. Na verdade, o editorial tratava da situação jurídica denominada estado de perigo, por ele havida
como uma novidade perigosa à segurança das relações negociais, inserida no novo Código Civil (art. 155).
Como se sabe, o tema não é novidade e nem é perigoso às relações negociais. É sim, verdadeiro
atentado às relações de negociatas.
Pois bem, o Decreto-Lei nº 869, de novembro de 1938, em seu art. 4º dispunha: A usura pecuniária
ou real, assim se considerando: ... b - obter ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade,
inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da
prestação feita ou prometida.
A partir deste decreto de cunho penal, os civilistas, bem entendendo que o art. 145, inc. II, do
Código Civil determina a nulidade de todo ato que possua objeto ilícito, detalharam o repúdio à usura real e
inscreveram a teoria da lesão (que no novo Código Civil está no artigo logo a seguir do estado de perigo - o art.
156), como causa de nulidade dos contratos dentro do direito pátrio.
A Lei nº 1521, de dezembro de 1951, repetiu a tese acima exposta, mantendo autorizada a vedação
à usura real e à lesão, sendo que, sobre esta Lei, o eminente RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR bem dispôs que
'... o princípio da lesão enorme, que outro mestre desta Casa, o insigne Prof. Ruy Cirne Lima, sempre considerou
incorporado ao Direito brasileiro, sobrevivia, no plano legislado apenas na hipótese da usura real, assim como
definida no art. 4º, b, da Lei nº 1.521/51: “Obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente
necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou
justo da prestação feita ou prometida”. Com a regra atual, a conceituação de lesão enorme retorna aos termos
amplos da nossa tradição, assim como já constava da Consolidação de Teixeira de Freitas, sendo identificável
sempre que “coloquem o consumidor em desvantagem exagerada” (art. 51, IV). A sanção é a mesma de antes: a
cláusula é nula de pleno direito, reconhecível pelo Juiz de ofício. Vale lembrar que doutrina e jurisprudência davam
as costas ao princípio da lesão enorme, presas do voluntarismo exagerado' (in AJURIS 52, pág. 179).
Pois bem, quanto à vedação ao aumento arbitrário do lucro, atualmente é a Constituição Federal
que assim o faz (CF, art. 173, §4º), sendo que a Lei Federal dá como '... infração da ordem econômica,
independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir
os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados .... aumentar arbitrariamente os lucros' (Lei 8.884/94, art.
20, inc. III).
Ora, não definindo na Lei o que é aumento arbitrário do lucro fica ao prudente arbítrio do Juízo
delimitá-lo. Sendo que, ex vi legis, deve basear-se na '... analogia, os costumes e os princípios gerais de direito'
(LICC, art. 4º; c/c CPC, art. 126) e, se assim é por cogente disposição legal, pode-o buscar em alguma outra lei
(analogia) o metro para aferir-se o que é lucro excessivo, sendo que na Lei 1.521/51, da qual apenas há de se
retirar o parâmetro, há clara disposição dizendo que é excessivo o '... lucro patrimonial que exceda o quinto do
valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida'.
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JUSTIÇA:
O que vai exatamente ao encontro do entendimento do emérito SUPERIOR TRIBUNAL DE
A questão consiste em saber se vigente está a Lei nº 1.521, de 26 de dezembro
de 1951, que altera dispositivos legais sobre crimes contra a economia popular e cujo art. 4º, letra
'b', dispõe:
"Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária ou real, assim se
considerando:
...
b) obter ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade,
inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto
de valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida".
A norma não é simplesmente penal, porque o § 3º do mesmo artigo prescreve:
"A estipulação de juros ou lucros usurários será nula devendo o juiz ajustá-los à
medida legal, ou, caso já tenha sido cumprida, ordenar a restituição da quantia
paga em excesso, com os juros legais a contar da data do pagamento indevido".
Quanto a vigência da lei, não encontrei nenhum ordenamento que a
revogasse. É certo que a Constituição de 1988 privilegia a livre iniciativa e, por certo, a liberdade
de contratar, aquele como princípio basilar da ordem econômica. Não menos certo é o § 4º do art.
173 da Lei Fundamental que proclama:
"A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à
eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros".
Logo, o Estatuto Superior não afasta o diploma legal a reger sanções aos
lucros arbitrários, recepcionado, sem problemas, pela nova ordem constitucional.
STJ - 3ª TURMA, REsp. 33.883-2-MG, j. 30/05/94, Rel. Min. CLÁUDIO SANTOS.
Corroborando o até então expendido, veio a ser editado pelo Poder Executivo a MEDIDA PROVISÓRIA
N.º 1.965-19, de 22 de setembro de 2000, que dispõe:
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Art. 1º São nulas de pleno direito as estipulações usurárias, assim consideradas
as que estabeleçam:
...
II. nos negócios jurídicos não disciplinados pelas legislações comercial e de defesa
do consumidor, lucros ou vantagens patrimoniais excessivos, estipulados em situação de
vulnera-bilidade da parte, caso em que deverá o Juiz, se requerido, restabelecer o equilíbrio da
relação contratual, ajustando-os ao valor corrente, ou, na hipótese de cumprimento da obrigação,
ordenar a restituição, em dobro, da quantia recebida em excesso, com juros legais a contar da data
do pagamento indevido.
Como se verifica, contrariamente à legislação comercial (Lei 8.884/94, art. 20, inc. III) e à legislação
de proteção ao consumidor (Lei 8.078/90, art. 51, inciso IV, e § 1º), que apontam ser o excesso de lucro nulidade
independentemente da demonstração do dolo de aproveitamento (abusar de estado de necessidade da parte),
erigindo a boa-fé objetiva como norma de conduta à caracterizar a atitude lesiva, aos contratos civis, isto é, aqueles
celebrados entre particulares ou entre comerciantes fora de seus objetivos sociais, devem apresentar, para a
decretação da nulidade, o critério de ter sido celebrado por situação de vulnerabilidade da parte desfavorecida.
Mas em que consiste a vulnerabilidade ?
A melhor definição, sem dúvidas, está no texto do art. 282 do Código Civil Português:
É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de
necessidade, inexperiência, ligeireza, dependên-cia, estado mental ou fraqueza de carácter de
outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios
excessivos ou injustificados.
Aliás, mesmo no direito norte-americano, que pertence a outro tipo de tradição jurídica, existe
vedação ao aumento arbitrário do lucro.
Naquele sistema jurídico há no Uniform Commercial Code, § 2-302, o conceito de unconscionable
contract or clause: "The basic teste is whether, in the light of the general commercial backgroud and the commercial
needs of the particular trade or case, the clauses involved are so one-sided as to be unconscionable under the
circunstances existing at the time of the making of the contract".
Unconcionable Contract or Clause. If the court as a matter of law finds the contract
or any clause of contract to have been unconscionable at the time it was made the court may refuse
to enforce the contract, or it may enforce the remainder, of the contract without the unconscionable
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clause, or it may so limit the application of any unconscionable clause as to avoid any
unconscionable result.
do instituto:
Sendo que no Corpus Juris Secundum, #50, verbete "Equity", observam-se dois casos de aplicação
Marchant v. National Reserve Co. of America, Utah: Mere inadequacy of price is
not per se a ground to avoid a bargain in equity as unconscionable, but equity will interfere if the
inadequacy is such as to demonstrate some gross imposition or undue influence or to shock the
conscience.
Planters National Bank of Fredericksburg v. E. G. Heflin Co., Utah: Where
inadequacy of price is such as to shock conscience, equity court is alert to seize on slightest
circunstance indicative of fraude, either actual or constructive, for purpose of cancelling contract.
O princípio da razoabilidade traduz o standard da 'reasonable person', uma criação do direito norteamericano à Convenção. Desta forma, elaborou-se igualmente nas Cortes norte-americanas o conceito de
'irrazoabilidade'1 de disposições contratuais ou condutas na execução do contrato, no sentido de que se a Corte
deve reavaliar os fatos e cláusulas para impedir resultados intoleráveis (contra a boa-fé objetiva) em certos
contratos.
Por isso, há no sistema jurídico norte-americano o conceito de 'cláusula não razoável' o qual
permitiu que se pudesse considerar não escrita a disposição contratual que ferisse a "consciência", permitindo ainda
ao juiz "o direito de reduzir-lhe os efeitos a quase nada" (CLÓVIS VERÍSSIMO DO COUTO E SILVA, "O Princípio
da Boa-Fé e as Condições Gerais dos Negócios", p. 32).
Nesta ordem de idéias, não trata a vedação da usura real de novidade em nosso ou nenhum outro
sistema jurídico. Aliás, como não o era a tão propalada boa-fé objetiva como norma de conduta, agora (!!!???)
revigorada pelo Código de Proteção e Defesa do Consumidor, visto que tal princípio foi normatizado no país em
1
"Unconscionable so unreasonably detrimental to the interest of a contracting party as to render the contract unenforceable. The common
law rule rendering unconscionable contracts unenforceable was codified in the Uniform Comercial Code in §o2-302. 'The basic test is
whether, in the light of the general commercial backgroud an the commercial needs of the particular trade or case, the clauses involved
are so one-sided as to be unconscionable under the circumstances existing at the time of the making of contract' U.C.C. §2-302 Official
Comment. The term refers to a bargain so one-sided as to amount to an 'absence of meannigful choice on the part of one of the parties
tiogether whit contract termss which are unreasonably favorable to the other party ... Ordinarily, one who signs an agreement without full
knowledge of its termss might be held to assume the risk that he has entered into a one-sided bargain. But when a party of litttle
bargaining power and hence little real choice, sgns a commercially unreasonable contract with little or no knowledge of its terms, it is
hardly likely that his consent ... was ever given to all the terms. In such a case the usual rule that the terms of an agreement are not to be
questioned should be abandoned and the court should consider whether the terms of the contract are so unfair that enforcement should be
withheld." (Law Dictionary, Barron's, Third Edition).
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1850 pelo Código Comercial (art. 131) e '... que permaneceu letra morta por falta de inspiração na doutrina e
nenhuma aplicação pelos Tribunais' (RUY ROSADO in A Boa-Fé na Relação de Consumo, Rev. Direito do
Consumidor 14/20).
No caso, a situação jurídica denominada pelo novo Código Civil de estado de perigo, que
determina a possibilidade de nulidade aos negócios viciados com usura real, está prevista no ordenamento jurídico
nacional desde 1938, e serve para que uma parte não se sobreponha excessivamente sobre o estado de
necessidade de outra, como vender uma indústria de R$ 10 milhões por R$ 1 milhão, para tentar evitar um malicioso
pedido de falência, p. ex.; é um eficiente mecanismo para evitar-se o natural e pouco elogiável comportamento
humano de pretender levar vantagem (excessiva) em tudo !
"A vileza ínsita no comportamento do agente, que explora a
fraqueza da vítima é objeto de repressão legal. O contrato deixa de ser
realizado segundo as regras normais dos negócios, dando lugar à
especulação condenável, pois o sujeito passivo não está em
condições de exigir o preço justo, o negócio honesto."
Legislação Penal Especial, RT, 1972, p.51
Assim, nada há de novo ou perigoso.
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(*) João Antônio César da Motta é advogado em São Paulo-SP, autor do livro Os Bancos no
Banco dos Réus, da Editora América Jurídica (Rio de Janeiro - 2001). Professor convidado junto ao
Congresso de Direito Bancário na Comunidade Europeia (Lisboa-1997), ao 1º Simpósio
Internacional de Direito Bancário (São Paulo-1998) e ao Encontro Nacional de Responsabilidade
Civil (Recife-2000).
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