CARA-FEIA - Contos e Historias

Transcrição

CARA-FEIA - Contos e Historias
 O «CARA-FEIA»
Ainda ninguém compreendeu o tesouro de simpatia, bondade e generosidade escondido na alma de uma
criança. O esforço da verdadeira educação devia ser o de desvendar esse tesouro.
EMMA GOLDMAN
A mãe estava sentada na cadeira de imitação de cabedal, no consultório médico, a
mexer nas unhas com nervosismo. Rugas de preocupação sulcavam-lhe a testa, enquanto
olhava para Kenny, de cinco anos, sentado no tapete à frente dela.
«Ele é pequeno para a idade e muito magro», pensou. O cabelo louro do menino caíalhe macio e liso sobre as orelhas. Ligaduras de gaze branca envolviam-lhe a cabeça,
tapando-lhe os olhos e prendendo-lhe as orelhas.
No regaço fazia saltar um ursinho de peluche estragado. Era o orgulho da sua vida,
embora lhe faltassem um braço e um olho. A mãe tentara por duas vezes deitar fora o urso
para o substituir por um novo, mas ele ficara tão nervoso que ela desistira. Inclinou a cabeça
um pouco para o lado e sorriu-lhe. «De facto, é tudo o que tem», disse para si mesma,
suspirando.
Uma enfermeira apareceu à porta.
— Kenny Ellis — anunciou ela, e a jovem mãe pegou no filho e seguiu a enfermeira até
à sala de observação. O corredor cheirava a anti-sépticos e a ligaduras. Desenhos a lápis,
feitos por crianças, revestiam as paredes.
— O médico virá daqui a pouco — disse a enfermeira, com um sorriso eficiente. —
Sente-se, por favor.
A mãe colocou Kenny sobre a mesa de observação.
— Tem cuidado, querido, para não caíres.
— Estou muito alto, mãe?
— Não, querido, mas tem cuidado.
Kenny apertou o ursinho com mais força.
— Também não quero que o Cara-Feia caia.
A mãe sorriu. O sorriso curvou-lhe os cantos da boca, transformando-se num esgar de
preocupação. Afastou o cabelo do rosto do filho e acariciou-lhe a face, macia como a
lanugem do cardo, com as costas da mão. Quando a música do consultório mudou para uma
versão actual de Noite Feliz, recordou o acidente pela milésima vez.
Há anos que cozinhava nos bicos de trás. Mas lá estava, mesmo à frente, a água a
ferver para a papa de aveia.
O telefone tocou na sala de estar. Era mais uma daquelas chamadas com «ofertas»
caríssimas. No momento em que pousava o telefone na mesa, Kenny, na cozinha, soltou um
grito, um grito horrível de dor, capaz de gelar as veias de uma mãe.
Estremeceu de novo com a recordação e limpou uma lágrima que lhe corria pela face.
Tinham esperado seis semanas por aquele dia. «Poderemos tirar as ligaduras na semana
antes do Natal», dissera o médico.
A porta da sala abriu-se repentinamente e o Dr. Harris entrou.
— Bom dia, Sr.ª Ellis — disse ele, prazenteiramente. — Como se sente hoje?
— Bem, obrigada — disse ela. Mas estava demasiado apreensiva para conversas
banais.
O Dr. Harris debruçou-se na banca e lavou cuidadosamente as mãos. Era cauteloso
com os doentes, mas descuidado consigo próprio. Raramente arranjava tempo para cortar o
cabelo, e o cabelo preto e liso chegava-lhe ao colarinho. A gravata desapertada permitia que
o colarinho ficasse aberto no pescoço.
— Então — disse ele, sentando-se num banco — vamos lá dar uma vista de olhos.
Suavemente, cortou a ligadura com uma tesoura e desprendeu-a da cabeça de Kenny.
A ligadura caiu, deixando dois quadrados lisos de gaze, presos com adesivo, sobre os olhos
de Kenny. Devagar, o Dr. Harris levantou as pontas do adesivo, esforçando-se por não ferir a
pele fina do menino.
Kenny abriu lentamente os olhos, pestanejou várias vezes como se a claridade súbita o
ferisse. Em seguida, olhou para a mãe e sorriu.
— Olá, mamã! — disse.
Sufocando e incapaz de falar, a mãe lançou os braços à volta do pescoço de Kenny.
Durante vários minutos, não pôde dizer nada, enquanto abraçava o filho e chorava de
gratidão. Por fim, olhou para o médico com os olhos rasos de água.
— Não sei como lhe poderei pagar — disse ela.
— Já falámos disso — interrompeu o médico, acenando com a mão. — Sei qual é a sua
situação, e a do Kenny. Ainda bem que pude ajudar.
A mãe passou um lenço puído nos olhos, levantou-se e pegou na mão de Kenny. Mas,
quando se virou para a porta, Kenny soltou-se e ficou parado um longo momento, a olhar
indeciso para o médico. Em seguida pegou no braço do urso e estendeu-o ao médico.
— Aqui tem — disse. — Fique com o meu Cara-Feia. Deve valer muito dinheiro.
O Dr. Harris pegou no urso estragado com ambas as mãos.
— Obrigado, Kenny. Vale muito mais do que os meus serviços.
Os últimos dias, antes do Natal, foram particularmente bons para Kenny e para a mãe.
Sentavam-se nas longas noites, a olhar para as luzes da árvore de Natal, que acendiam e
apagavam. As ligaduras tinham tapado os olhos de Kenny durante seis semanas, por isso o
menino parecia ainda relutante em os fechar para dormir. O fogo que dançava na lareira, os
flocos de neve que se colavam às janelas do quarto, os dois pequenos embrulhos por
debaixo da árvore – todas as luzes e cores da festa o fascinavam!
Na véspera de Natal tocaram e a mãe de Kenny foi abrir a porta da rua. Não estava lá
ninguém, mas havia uma caixa grande, embrulhada em papel dourado com uma fita
vermelha, larga e com um laço. Uma etiqueta presa ao laço identificava a caixa como
destinada a Kenny Ellis.
Com um sorriso, Kenny tirou a fita, levantou a tampa e retirou um ursinho – o seu
querido Cara-Feia. Só que agora tinha um braço novo de bombazina castanha, e dois olhos,
feitos de botões, que brilhavam na luz suave do Natal. Kenny não pareceu importar-se por o
braço novo não condizer com o outro. Abraçou o ursinho e riu.
No meio do papel de seda dentro da caixa, a mãe encontrou um cartão. «Querido
Kenny», dizia, «às vezes consigo curar os meninos e as meninas, mas a Sr.ª Harris ajudou a
consertar o Cara-Feia. É melhor médica do que eu. Feliz Natal! Dr. Harris.»
— Olha, mãe — Kenny sorriu, apontando para os olhos de botões. — O Cara-Feia vê
outra vez, tal como eu!
Garry Swanson
Jack Canfield; Mark Victor Hansen
Canja de galinha para a alma – O tesouro do Natal
Mem Martins, Lyon Edições, 2002
(adaptação)