Ver Índice e Excerto da Obra
Transcrição
Ver Índice e Excerto da Obra
Etty Hillesum Um itinerário espiritual Colecção BIOGRAFIAS O Cardeal Newman – Precursor do Vaticano II Charles Stephan Dessain D. Manuel Vieira de Matos – Vida e Obra Carlos António Martins Castro Faustino Etty Hillesum – Um itinerário espiritual Paul Lebeau Paul Lebeau Etty Hillesum Um itinerário espiritual Amesterdão 1941 – Auschwitz 1943 Editorial A. O. A edição original deste livro foi publicada em francês com o título Etty Hillesum – Un itinéraire spirituel Amsterdam 1941 – Auschwitz 1943 pelas Edições Fidélité, Namur e Edições Racine, Bruxelas (Bélgica) 1998 – 3ª edição, revista ISBN 2-87386-144-4 / Racine 2-87356-155-6 / Fidélité Tradução Alberto Júlio Silva Na capa Etty no seu quarto, em 1937 Joods Historisch Museum, Amesterdão Capa (arranjo gráfico) Virgílio Cunha Fotos Joods Historisch Museum, Amesterdão Paginação Editorial A. O. Impressão e Acabamentos Sersilito – Empresa Gráfica, Lda. Depósito Legal nº 379970/14 ISBN 978-972-39-0786-5 Setembro de 2014 Com todas as licenças necessárias © SECRETARIADO NACIONAL DO APOSTOLADO DA ORAÇÃO Rua S. Barnabé, 32 – 4710-309 BRAGA Tel.: 253 689 440 * Fax: 253 689 441 www.apostoladodaoracao.pt/[email protected] Introdução Faz agora dezassete anos1 que o nome de Etty (Esther) Hillesum surgiu na plena luz da história, quando foram publicados em holandês, sua língua original, largos excertos do seu diário, com o título Het verstoorde leven, “Uma vida alvoroçada”2. Esta recolha foi posteriormente publicada em diversas línguas, em catorze países, incluindo uma tradução francesa de Philippe Noble, publicada em 19853. Este acontecimento literário produziu, nessa altura, uma espécie de ressurreição, que era inesperada por surgir após quarenta anos de sepultamento. No dia 5 de Junho de 1943, momento da sua partida definitiva para o campo de Westerbork, onde os ocupantes nazis reuniam os Judeus dos Países Baixos antes de os deportarem para Auschwitz, Etty entregou os onze cadernos em que, desde 8 de Março de 1941, tinha escrito o diário do seu itinerário pessoal, a uma amiga holandesa, Maria Tuinzing, pedindo-lhe que os enviasse a alguém que ela própria conhecia, o escritor Klaas Smelik, coisa que Maria Tuinzing fez assim que a guerra acabou. No início da década 1 Esta expressão temporal refere-se a 1998, data de publicação da presente obra. [N.T.] 2 Het verstoorde leven. Dagboek van Etty Hillesum 1941-1943. Ingeleid door J. G. Gaarlandt. Haarlem, De Haan, 1981. A partir da 18.ª tiragem, publicada nas Edições Balans, Amesterdão, 1986. 3 Nas Éditions du Seuil, com o título Une vie bouleversée. Outra compilação, também traduzida e apresentada por Ph. Noble, saiu em 1988, na mesma editora, com o título Lettres de Westerbork. Em 1995 foi publicada, em livro de bolso, pela mesma editora, uma edição destas duas traduções num único volume, na colecção «Points». 8 Etty Hillesum – Um itinerário espiritual de cinquenta, Smelik tentou, em vão, que vários editores se interessassem por aquele manuscrito redigido ao correr da pena, com uma grafia difícil de ler. Foi no final de 1979 que o filho de Smelik, Klaas A. D., encontrou um interessado, o editor Jan G. Gaarlandt, de Haarlem. Este editor mandou decifrar e dactilografar o manuscrito e preparou uma selecção de textos, que foi publicada em Setembro de 1981. Esse volume foi apresentado na sala do Concertgebouw de Amesterdão, perante um auditório formado por amigos e conhecidos de Etty, no dia 1 de Outubro. Comovidos por se encontrarem juntos após tantos anos, e profundamente impressionados pela leitura pública, feita pela escritora Marga Minco, de extensos excertos do Diário, eles descobriam sob uma nova luz a personalidade daquela jovem mulher livre e ardente, com quem se tinham cruzado e de quem tinham sido amigos antes de ela desaparecer no horror do anonimato de um genocídio sabiamente programado. Poucos deles podiam imaginar, nessa altura, o imenso feedback que esses textos arrancados ao esquecimento rapidamente provocariam. Efectivamente, desde esta apresentação, ensaístas, teólogos, psicólogos e filósofos debruçaram-se sobre os escritos dessa rapariga de vinte e sete anos, neles descobrindo paralelos com os escritos de autores tão diferentes como Kafka, Mestre Eckart, Ruysbroek, Kierkegaard, Bonhoeffer, sem falar daqueles a quem a própria Etty se refere: Santo Agostinho, Tomás de Kempis, Dostoievski, Rilke, Jung. O primeiro editor de Etty, Jan Gaarlandt, teve a feliz iniciativa de reunir num único volume, publicado em 19894, vinte e quatro desses estudos, quase todos (com duas excepções apenas) holandeses. Um dos autores publicados nesse volume, o escritor Abel Herzberg, chega a declarar: «Não tenho hesitações em dizer que, tanto quanto me parece, estamos na presença de um dos cumes da literatura 4 Men zu een pleister op vele wonden willen zijn. Reacties op de dagboeken en brieven van Etty Hillesum («Gostaríamos de ser um bálsamo lançado sobre tantas feridas. Comentários sobre o Diário e as Cartas de Etty Hillesum»), Uitgeverij Balans, Amesterdão, 1989, 235 páginas. Introdução 9 holandesa»5. O meu limitado conhecimento dessa literatura não me permite confirmar esta apreciação, com conhecimento de causa. O que, em contrapartida, posso testemunhar é que, depois de ter lido integralmente e frequentado longamente o conjunto dos escritos de Etty na sua língua original, admiravelmente editados sob os cuidados da Fundação Etty Hillesum6, num volume de oitocentas páginas, fico com o sentimento de ter encontrado não apenas um escritor de uma autêntica e muitas vezes cativante originalidade, mas também o testemunho de uma descoberta tanto mais irrecusável quanto nada, no seu passado, parecia tê-la preparado para isso: a descoberta da presença de Deus no mais íntimo da sua interioridade pessoal, numa altura em que ela sabia que estava destinada a partilhar a sorte das vítimas do que ela própria designa como uma perseguição sem precedentes, feita «de forma totalitária, organizada numa escala de massas e englobando toda a Europa». Esta descoberta viveu-a Etty a partir do dia 8 de Março de 1941, data do seu primeiro encontro com aquele que iria desempenhar um papel decisivo na sua evolução, um judeu alemão refugiado nos Países Baixos, o psico-quirólogo Julius Spier. Etty tornou-se, a partir daí, cada vez mais profunda, até ao dia em que, a 15 de Setembro de 1943, com toda a sua família e com centenas de outros judeus, foi designada para entrar num vagão do sinistro Transporte que levava a Auschwitz. Dois meses e meio depois, a 30 de Setembro de 1943, um comunicado da Cruz Vermelha anunciava o seu desaparecimento. Compreender-se-á que esta longa proximidade com um autor qualificado como «inclassificável» por um professor universitário holandês, de tal maneira a sua «originalidade e a intensidade da sua experiência e do seu pensamento se impõem»7, bem como os encora5 Idem, p. 11. Etty. De nagelaten geschriften van Etty Hillesum 1941-1943, onder redactie van Klaas A.D. Smelik, Uitgeverij Balans, Amesterdão, 1986. 7 Kees Fens, professor de literatura holandesa na Universidade Católica de Nimega, na recolha de estudos acima citada, p. 9. 6 10 Etty Hillesum – Um itinerário espiritual jamentos de amigos com quem frequentemente falei acerca de Etty, tudo isso me tenha incitado a dedicar-lhe um livro. Aquilo que, no fim de contas, me levou a decidir-me foram, em primeiro lugar, as minhas recordações pessoais desses anos trágicos, que as páginas do Diário evocam. Eu tinha menos dez anos do que Etty e, a partir de 1941, vi circular pelas ruas da minha cidade natal os meus concidadãos israelitas, fosse a sua idade qual fosse, com uma estrela amarela e a inicial gótica da palavra «Judeu» sobre o peito, até ao dia em que, durante o ano de 1943, eles desapareceram, apanhados pela sinistra mecânica da «solução final». Mesmo sabendo o que certas detenções e deportações nos sugeriam (entre as quais, a detenção de um padre do meu colégio) a propósito do carácter implacável do regime nazi, aconteceu-me, tal como a Etty, cruzar-me com um jovem soldado alemão, pouco mais velho do que eu, e dizer para comigo: «Por baixo da farda está o homem. E este homem poderia tornar-se um amigo». Depois, e finalmente, no exacto momento em que, no campo de Westerbork, Etty se encontrava pela primeira vez com religiosos e religiosas católicos, entrava eu no noviciado dos jesuítas, instalado na semi-clandestinidade de uma obscura aldeia lorena, onde tinha encontrado um refúgio precário, após ter sido expulso de Arlon, em benefício de uma guarnição da Wehrmacht. Comemorou-se também, mais recentemente, o 50.º aniversário da libertação dos campos de extermínio, lembrado durante o Verão de 1995 por toda a Europa, e que oportunamente reavivou e inscreveu definitivamente na memória da humanidade, assim o esperamos, o horror absoluto da Shoah. Esta era também uma das preocupações de Etty quando redigia as páginas do seu diário, na esteira daquele que a sua jovem compatriota de Amesterdão, Anne Frank, escreveu. Mas, no meio de todos os testemunhos evocados por ocasião deste aniversário, o diário de Etty distingue-se, segundo me parece, por uma actualidade de natureza completamente diferente. Sem que nem ela nem os seus contemporâneos pudessem, eviden temente, disso ter consciência, Etty é uma testemunha precursora e, Introdução 11 sob esta perspectiva, espantosamente próxima de nós, daquilo que nós hoje chamamos «modernidade». O itinerário de Etty foi o de uma mulher livre: livre de todos os preconceitos hereditários, doutrinários ou ideológicos. Se, perante o implacável accionamento da «solução final», ela assume – heroicamente – a sua condição judaica, fá-lo livremente e sem sentir a menor reticência em relação ao universo espiritual cristão que, ao mesmo tempo, ela estava em vias de descobrir e reconhecer como o lugar da sua inteira realização pessoal. O seu itinerário espiritual nada deve, também, a um contacto di recto ou explícito com uma Igreja. Representantes de uma instituição eclesial, ela não os iria encontrar senão alguns meses antes de ser deportada, quando viu chegar ao campo de Westerbork monges e religiosas católicos de origem judia8, entre os quais estava a carmelita Edith Stein, filósofa e antiga discípula de Husserl, há poucos anos canonizada por João Paulo II9. Moderna, ou, melhor, pós-moderna (se por esta expressão entendermos um livre distanciamento relativamente a determinadas posições ideológicas da modernidade), Etty é-o também pela sua preocupação com a verdade, pela sua disponibilidade perante aquilo que as pessoas e os acontecimentos lhe oferecem como descoberta. Ela é capaz de se pôr a si mesma em questão, por vezes radicalmente, quer se trate das suas ideias, quer se trate de alguns dos seus comportamentos. Etty é também moderna e singularmente actual pela maneira como concebe a sua relação com Deus, esse Deus cuja presença na sua vida descobre pouco a pouco. Um Deus simultaneamente 8 Ver Lettres de Westerbork, p. 35. Cerca de trezentos católicos de origem judia foram presos no dia 2 de Agosto de 1942 e deportados pelos Nazis, como represália, em resposta ao protesto público do arcebispo de Utreque, D. Johannes de Jong, contra as atitudes anti-judaicas tomadas pelo ocupante. Os cerca de setecentos judeus holandeses que tinham aderido à fé católica foram, na sua maioria, deportados para Auschwitz e exterminados. 9 Ver nota 13, p. 237. [N.T.] 12 Etty Hillesum – Um itinerário espiritual discreto, senão mesmo vulnerável, mas também de uma prodigiosa densidade existencial – bem diferente da imagem que d’Ele pro jectam uma religiosidade sentimental ou certas nostalgias infantis. Foi somente após ter lido e anotado o conjunto dos escritos de Etty que eu tive consciência de uma razão mais para tentar extrair deles o seu perfil espiritual. De facto, tomei consciência cada vez com maior clareza de que o itinerário que neles é testemunhado corresponde, de uma maneira impressionante, àquele que Inácio de Loiola propõe nos seus Exercícios Espirituais, Exercícios em que eu próprio fui iniciado e que, com muita frequência, tenho proposto a grupos e pessoas singulares, desde há mais de trinta anos. A partir de uma situação confusa, em que um determinado impulso espiritual e o desejo de «organizar a sua vida» se misturam com a carga de um passado sobrecarregado de ambiguidades e de cumplicidades alienantes, um lento discernimento se inicia, a partir do diálogo com um acompanhante e da aprendizagem da oração pessoal, discursiva e contemplativa, alimentada pela Escritura e por determinados temas maiores da espiritualidade cristã. O aprofundamento progressivo desta experiência, marcada, alternadamente, por combates interiores e por períodos felizes e pacificados (as «desolações» e as «consolações» evocadas pelos Exercícios), liberta pouco a pouco da pressão exercida pelos hábitos e pelas ilusões do passado, quando não pelo próprio acompanhante (apesar da discrição que lhe é imposta por Inácio), e faz amadurecer a autonomia da decisão (a «eleição», segundo o termo inaciano): compromisso chamado a concretizar-se num projecto de vida marcado pelo dom de si mesmo a Deus e às pessoas a quem Ele envia. No caso de Etty, este compromisso tomou a forma de uma confiança heróica num destino a que ela se sentiu interiormente chamada, em solidariedade com o povo judeu votado ao extermínio, mas não ao nada. Ao redigir estas páginas, pensei muitas vezes nesses jovens adultos que me foi dado encontrar, sobretudo no meio europeu de Bruxelas, e que são, simultaneamente, ciosos da sua liberdade e ávidos de um Introdução 13 sentido – quer se trate da sua vida profissional ou da história co lectiva da qual são parte activa. É a eles, em primeiro lugar, que estas páginas se dirigem. Gostaria de lhes dizer: «Este livro é-vos oferecido como um convite a encontrardes Etty. Mesmo que tenha escrito o seu diário há mais de cinquenta anos, ela é vossa irmã. Ouvi-a, ela fala-vos na sua linguagem tão intensamente pessoal. Creio bem que muitos de entre vós havereis de vos reconhecer nela: nas suas hesitações, na ambiguidade de algumas das suas experiências sexuais e afectivas, na sua sinceridade, na obstinação que ela tinha em ver claro em si mesma, nas pessoas que ela encontra e nos acontecimentos que ela vive, tanto nos mais comuns como nos mais trágicos». Mais do que uma biografia – até porque no caso de Etty a escrita brota sempre de uma experiência de vida, simultaneamente pessoal e colectiva – o que neste livro se apresenta são notas de leitura, em que, reagrupando determinados textos, me esforcei por pôr a claro os momentos decisivos que marcaram o itinerário de Etty e que manifestam a sua coerência espiritual. Em tudo isso, eu não quis senão fazer justiça a uma intuição que a própria Etty confiava ao seu diário, no dia 8 de Abril de 194210: «Tenho uma espécie de impressão, que é a de fiar um único fio através destas páginas. Alguns elementos de continuidade na minha vida, que são a minha própria realidade, e que, como um caminho não interrompido… (mas não sei como exprimir isto de uma forma mais precisa!). Há com certeza o Evangelho de Mateus, de que leio alguns versículos de manhã e à noite, e de onde cito por vezes algumas palavras neste caderno. Ou antes: não são sequer as minhas pobres palavras rabiscadas nas linhas azuis deste caderno, mas o sentimento de regressar sempre ao mesmo ponto, a partir de onde eu continuo a tecer o mesmo fio contínuo. E esta continuidade é a continuidade da minha vida». Assim, recolhido na sua trepidante coerência, este testemunho de uma mulher jovem, apaixonadamente ávida da verdade, não pode 10 De negaleten geschriften, p. 343. 14 Etty Hillesum – Um itinerário espiritual senão incitar-nos a que, a seu exemplo, nos tornemos testemunhas fiéis e lúcidas daquilo que nos é dado viver e descobrir, hoje, nesta Europa da qual Etty se sentia cidadã, e cujo destino solidariamente pressentia. Tal como ela escrevia, dois meses antes de desaparecer no anonimato de Auschwitz: «Tenho a sensação de ser um dos inúmeros herdeiros de uma grande herança espiritual. Daqui em diante serei a sua fiel guardiã. Partilhá-la-ei com uma multidão, por tanto tempo quanto as forças mo permitirem»11. 11 De negaleten geschriften, p. 551. Índice Introdução................................................................................................. 7 Capítulo I «Há em mim algo de aventureiro e fantasista...»........................................15 Capítulo II «A partir do momento em que um homem pesado, sem elegância, entrou na minha vida...».......................................................................................27 Capítulo III «Também eles entraram na minha vida, eles enchem a minha vida...»........71 Capítulo IV «As longas noites que vou passar a escrever serão as minhas noites mais belas».....................................................................................................99 Capítulo V «A rapariga que não sabia ajoelhar-se acabou por aprender a fazê-lo».........119 Capítulo VI «Eu vou ajudar-te, meu Deus, a não te extinguires em mim».....................141 Capítulo VII «Os sinais precursores do nosso aniquilamento surgem de todos os lados».157 Capítulo VIII «A eventualidade da morte está integrada na minha vida»..........................193 Capítulo IX «Oferecer ao mundo este novo sentido que brota dos abismos da nossa desgraça»...............................................................................................221 284 Etty Hillesum – Um itinerário espiritual Textos anexos..............................................................................................267 Posfácio......................................................................................................275 Indicações bibliográficas..............................................................................279 Índice dos nomes de pessoas..........................................................................281 Índice........................................................................................................283