Escola e produção cultural - Base Integradora da TV Escola
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Escola e produção cultural - Base Integradora da TV Escola
ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL Apresentação A série “Escola e produção cultural”, que será apresentada de 16 a 20 de abril no programa Salto para o Futuro, da TV Escola, é composta por cinco programas dedicados a refletir sobre as diferentes produções culturais e as formas como a escola se relaciona com elas. O que é produção cultural? Como podemos compreender as produções culturais nas mais diversas áreas? Como se dá a relação entre arte e cultura, entre ética e estética? É possível buscar uma postura criativa num contexto aparentemente tão massificado? Esta série tem por objetivo enfocar alguns temas e questões muito presentes no cotidiano da escola, entre eles a busca compartilhada de um olhar crítico acerca de nossa realidade atual e dos tipos de produção cultural a que temos acesso. O que produzimos no interior da escola? Como a escola pode criar intercâmbio com outras instituições culturais? Será que sabemos o que a comunidade escolar produz? Como criar critérios para selecionar e indicar livros, filmes, peças de teatro, sites na Internet, shows, mostras populares? FUNDAMENTAÇÃO A CASA DOS TEÓRICA E SPELHOS ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade – um espelho? (...) O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas, que espelho? Há-os “bons” e “maus”, os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade e fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível?” 1 (Guimarães Rosa: O espelho) ○ 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ROSA, João Guimarães. Primeiras histórias. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988. PROPOSTA PEDAGÓGICA 2 ○ ○ ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL Há algo de intrigante nos espelhos: não podemos olhá-los sem sermos por eles olhados também. E como é firme o olhar de um espelho! Ninguém passa indiferente à sua frente. Como entender essa paixão entre o espelho e o olhar humano? Quem sabe, aceitando que o espelho nasce de uma vontade humana de se ver... Mas há também que se desconfiar dos espelhos: alguns oferecem-nos imagens que garantem ser “exatamente” aquilo que somos; outros mostram-nos tão distorcidos que custamos a aceitar o seu reflexo; e há ainda aqueles que apresentam uma única e mesma imagem a todos os que se colocam à sua frente. Engana-se quem pensa que desconfiar dos espelhos seja coisa ruim. É vendo o que não somos, é mostrando o que o espelho não reflete que revigoramos nossa vontade de nos ver e nos transformar. Quanto mais diferenciados espelhos pudermos encarar, mais possibilidades teremos de construir uma imagem singular. Em contrapartida, certamente, um espelho muito procurado cria maneiras diferenciadas de mostrar. Por isso, há que se prestar atenção a quem se olha sempre num mesmo espelho... Às vezes, é o único espelho que temos – o que nos leva a crer que também só temos uma imagem, um único modo de ser e de pensar. Outras vezes, temos tanto medo do que podemos ver, que até esquecemos que o olhar pode ser uma atitude solidária. Talvez seja esse o segredo dos espelhos: a consciência da sua (e da nossa) incompletude. Por isso mesmo, vivem a capturar nosso olhar, a duplicar os espaços por onde passamos. Um espelho nunca reflete apenas a nossa suposta imagem, mas traz junto dela todo um contexto que com nossos próprios olhos nem sempre conseguimos ver. Num espelho nos vemos como se nós mesmos fôssemos outra pessoa e, nesse jogo de reflexos, vamos, de fato, nos repensando, nos refazendo, nos transformando. Se esta reflexão contribuiu para entender melhor o que é um espelho – fértil indagação trazida aqui por Guimarães Rosa – não nos garante, pelo menos ainda, que reconheceremos um espelho quando estivermos à frente de um deles. Isso porque alguns espelhos se recusam a pendurar-se nas paredes aprisionados em molduras; aprenderam a arte de se metamorfosear, embora essa liberdade nem sempre lhes permita que sejam reconhecidos por quem os olha. Quando um espelho desse tipo é reconhecido pelo sujeito que o olha, nasce desse encontro a mais rica das imagens. Experimentando linguagens, lapidando formas, construindo sentidos, criamos e recriamos quotidianamente a cultura. Buscamos dar visibilidade aos nossos modos de pensar e de sentir, bem como nos lançamos à aprendizagem de outros pensamentos e percepções. Nesse sentido, cabe ressaltar, as produções culturais não esgotam em si a cultura como um todo, mas são fragmentos, maneiras de apresentar as muitas faces da cultura. Cinema. Literatura. Video game. Escultura. Internet. Televisão. Música. Desenho infantil. Fotografia. Ciência. Teatro. As produções culturais – nascidas do desejo humano de se comunicar – são grandes espelhos por onde as sociedades se olham, se repensam, se recriam. Criando produções como essas, criamos também a nós mesmos. Através delas compartilhamos nossas indagações, nossas descobertas, nossas lutas, nossas relações de poder. Do mesmo modo que nos espelhos comuns, nos quais simultaneamente criamos e assimilamos uma imagem, também vivemos a experiência de sermos PROPOSTA PEDAGÓGICA 3 ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL criadores e consumidores no que se refere às produções culturais. Mas há que indagar: Como nos relacionamos com as produções culturais? Em que medida somos ou nos reconhecemos como sujeitos criadores? De que maneiras temos percebido e expressado nossa singularidade? Permeando essas questões, revela-se uma espantosa armadilha oculta em alguns espelhos: a de oferecer imagens prontas, feito produto, sem deixar que quem as olhe faça parte efetiva dessa construção. Pouco a pouco, acabamos nos esquecendo da nossa capacidade criativa e passamos a apenas assimilar aquilo que nos é dado externamente. É dessa maneira que a cultura, nas sociedades capitalistas, muitas vezes se transforma num produto no qual as pessoas não se reconhecem como criadoras. Ela passa a ser algo externo, fetichizado, alienada das relações humanas de que provém, um produto que, como tantos outros, nos resta unicamente consumir. Transformada em mercadoria, a cultura – e as produções culturais – estabelece (m) com as pessoas uma relação de posse e, conseqüentemente, de poder. Dizemos que alguns “têm” cultura, outros não, que uns têm mais cultura do que outros, que uma produção cultural é melhor do que outra. Em conseqüência disso, passamos a nos olhar a partir daquilo que consumimos e passamos a consumir aquilo que o mercado nos apresenta como correto: a música que ouvimos, a roupa que vestimos, os filmes que assistimos, o livro que lemos, as palavras que pronunciamos, o modo como devemos ser. Por vezes, ficamos prostrados em frente àquele espelho que apresenta sempre, sempre a mesma imagem. Eles são tão insistentes que acabamos por aceitar que aquele reflexo é mesmo o nosso. É também o caso das produções massificadas, oriundas da chamada indústria cultural. Esse termo – indústria cultural – foi criado pelos filósofos Adorno e Horkheimer para designar o surgimento de um novo tipo de produção e recepção da cultura no contexto capitalista, orientado pelas mesmas características dos parques industriais: produção em série, recepção em massa, reprodução, supervalorização do produto em detrimento do trabalho dos sujeitos que o produzem ou consomem – transformados numa anônima e padronizada multidão. Que músicas ouvimos? Como nos vestimos? O que nos leva a cantar e a dançar de um mesmo jeito? Como elaboramos nossa linguagem? Que papel a mídia assume nesse contexto? E nós, como nos colocamos frente a tudo isso? Pois existe nisso tudo um paradoxo: para que esse tipo de imagem sobreviva, para que a cultura se apresente apenas sob a forma de produto, é imprescindível que permaneçamos de olhos fechados. Por que até mesmo os espelhos sabem que o olhar é também uma forma de criação. Por superstição ou não, não se trata de quebrar esses espelhos. Até mesmo porque, do ponto de vista dos espelhos, pior do que ser quebrado é não ser olhado. Um espelho que não quer ser olhado condena-se à opacidade. Deixa de ser espelho. Do mesmo modo que as produções culturais: se reduzidas unicamente a produto, se arrancadas do movimento processual que caracteriza a história humana, acabam por se apagar, perder seu vigor, transformarem-se em caricatura do sistema que as produz. PROPOSTA PEDAGÓGICA 4 ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL Mas, se olharmos com cuidado, podemos perceber qualidades que nem mesmo os espelhos sabiam possuir. Cuidado semelhante deve ser tomado quando pensamos a respeito das produções culturais. Filmes “cult” e “enlatados”, música erudita, samba, bossa nova, funk, HipHop, a música dos DJs, histórias em quadrinhos, RPG, novelas, pop art, arte sacra, literatura, a ciência, o saber popular. Mais do que ter a pretensão de classificá-las como produções boas ou más, criativas ou massificadas, ricas ou empobrecidas, precisamos reconhecê-las como produções que falam da vida, das relações humanas e dos elementos e linguagens que cada grupo dispõe e inventa. Mesmo porque a qualidade dessas produções não se esgota nelas mesmas, mas é construída pelos sentidos que conferimos a elas, pelo lugar que elas ocupam nas nossas experiências quotidianas – em casa, no trabalho, na relação com os amigos, na escola. A escola é um espaço de produção cultural, embora venha sendo tratada como lugar de “aquisição” de cultura, num contexto em que a educação é vista como produto. Também na escola podemos viver a experiência paradoxal de sermos criativos produtores de bens culturais e/ou apenas consumidores apassivados de modelos já existentes. É nesse sentido que a escola precisa se repensar, se recriar, reafirmar-se parte integrante da vida cultural e política da sociedade, para que ela própria não se transforme num espaço isolado de outros campos da cultura, lidando com ela na condição de produto, reforçando as relações de poder aqui já descritas. A escola tem também os seus espelhos. Espelhos “honestos” que supomos nos mostram apenas aquilo que somos; espelhos côncavos, convexos, ondulados, quadrados, redondos, caleidoscópicos, que nos aumentam, nos diminuem, nos desafiam, nos enfeitam, nos inibem, nos espantam, nos aniquilam; espelhos de uma imagem só; espelhos à espera do nosso olhar. O que diz um mural de escola repleto de desenhos todos iguais? O que reflete uma festa da escola onde todos cantam e dançam do mesmo jeito? O que nos contam as redações lidas como labirintos ortográficos? E a organização de projetos literários? Os concursos de poesias? Os grupos de teatro? Os clubes de ciência? As oficinas de vídeo? Como, no cotidiano escolar, lidamos com as diversificadas produções culturais? Que alternativas pode-se buscar a fim de conciliar uma efetiva relação da escola com outras instituições culturais – cinemas, bibliotecas, teatros, etc. – e a produção que é feita no seu interior? Dessa maneira, a escola pode ser vista também como um grande espelho à espera do olhar de seus alunos, seus professores, seus funcionários, das famílias, da comunidade. E, se é verdade que os espelhos nascem do desejo humano de poder se ver, há que lembrar que somos nós que inventamos os espelhos – e as escolas, os teatros, a mídia, todas as produções culturais – movidos que somos pelo desejo de buscar sentidos para nós mesmos e para o mundo que quotidianamente teimamos em “re”-inventar. PROPOSTA PEDAGÓGICA 5 ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL PROGRAMAS PGM 1 – O QUE SE CRIA/COPIA A cultura como elemento constituinte do ser humano. Os limites de perceber a cultura apenas como produto. A criança, o adolescente e o educador vistos como sujeitos produtores de cultura. A arte e a cultura de massas. Criação e repetição, massificação e construção da singularidade. A importância da história na criação do novo. A escola como espaço de produção cultural. PGM 2 – LER, ESCREVER E TECL AR (LITERATURA TECLAR INFANTIL, JUVENIL E INTERNET) Diferentes maneiras de lidar com a leitura e a escrita. A leitura e a escrita como aventura e criação. Inovações tecnológicas e as transformações das narrativas. O que lêem e escrevem alunos e professores, na escola e fora dela? Como se expressam? PGM 3 – O OLHO E A CÂMERA (CINEMA, FOTOGRAFIA E TELEVISÃO) O mundo contemporâneo e a proliferação de imagens. Imagem e palavra como linguagens complementares. As novas formas de olhar possibilitadas pelo cinema e pela televisão. O espectador e o produtor. Olhar, interagir e criar: as experiências de alunos e educadores. PGM 4 – AO PÉ DO OUVIDO (A LINGUAGEM MUSICAL) As narrativas orais e a linguagem musical. O que se assimila e o que se produz musicalmente na escola e fora dela. As produções eruditas, populares e massificadas. Os elementos fornecidos pelo cotidiano. O que ouvem crianças, adolescentes e educadores? PGM 5 – ENTR ANDO NTRANDO NO JOGO (BRINCADEIRAS INFANTIS, VIDEO GAME E RPG) O brincar como expressão cultural. As cidades e os espaços destinados às crianças. As brincadeiras tradicionais e os jogos eletrônicos. Como brincam e jogam, atualmente, crianças e adolescentes? A escola como espaço de interação. Bibliografia BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo, Summus, 1984. Coletânea de artigos na qual o autor reflete acerca do lugar social da criança na cultura. Aborda temas como a história cultural do brinquedo, a produção literária e traz ainda histórias contadas a partir da própria experiência da infância. BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e Cultura. São Paulo, Cortez, 1995. Apresenta o brincar não como uma característica natural da criança, mas como um processo cultural. Tece uma crítica sobre o significado da produção de brinquedos nas sociedades industrializadas e analisa as brincadeiras como um diálogo da criança com o contexto social. CASTRO, Lúcia Rabello de (org.). Infância e adolescência na sociedade de consumo. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1998. PROPOSTA PEDAGÓGICA 6 ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL Aborda as transformações nos modos de ser e compreender a infância e a adolescência na cultura do consumo. Levanta questões acerca do papel da psicologia do desenvolvimento em formular questões que ajudem a melhor entender essas transformações na virada do século. CITELLI, Adilson (coord.) Outras linguagens na escola - publicidade, cinema e TV, rádio, jogos e informática. São Paulo, Cortez, 2000. O livro faz parte de uma coleção dedicada a pensar alternativas práticas para a construção de linguagens diversificadas no contexto escolar, fazendo uso de produções culturais do cotidiano dos alunos e educadores. COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo, Brasiliense. 1985. O livro faz parte da Coleção Primeiros Passos e apresenta com clareza o conceito de indústria cultural, conceito construído pelos filósofos frankfurtianos para nomear as produções da esfera cultural que seguiram um processo de massificação. GARCIA, Claudia A. et alii. Infância, cinema e sociedade. Rio de Janeiro, 1997. O livro traz textos que serviram de base para um evento de mesmo nome. Teve como ponto de partida três filmes (O jardim secreto, O balão branco e O Menino Maluquinho), a partir dos quais debateram-se os temas: a criança e o consumo, a criança e a cidade e a criança e o adulto. KRAMER, Sonia & LEITE, M. Isabel (orgs.) Infância e produção cultural. Campinas, Papirus, 1998. Coletânea constituída por textos originados em grupos de pesquisa e em dissertações de mestrado. Entre os temas tratados: teatro, literatura, o brincar, a fotografia, o desenho. ZILBERMAN, Regina (org.) A produção cultural para a infância. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1990. Coletânea de textos de autores diversos, que abordam as produções culturais dirigidas à infância: teatro, cinema, TV, desenhos animados. Home-pages www.cce.ufsc.br/ñupill/literatura/literati/html – Site com vasta produção literária digitalizada, organizado por obras e por autores, abrangendo o período que se estende do século XVI ao XX. Várias obras disponíveis para download. www.mood.com.br/e-contos/e-contos – contos produzidos especificamente para a Internet. www.gips.psc.br – Site de grupo de pesquisa interdisciplinar – psicologia, educação, comunicação, artes – com enfoque na relação com as imagens no mundo contemporâneo. www.secrel.com.br/jpoesia – Jornal da poesia, com banco de dados de cordel, poesia, cantadores, etc. www.autoriaecia.com.br – Revista de ficção, dicas sobre diferentes tipos de produções literárias, entrevistas com autores. www.mundodeaventuras.cjb.net – Este site explica o que é e conta a história do RPG (RolePlaying Game). Fala da possibilidade de uso como uma ferramenta educacional. http://culturahh.cjb.net – Site que apresenta a cultura HipHop. www.djsound.com.br – revista com sons e canções para download. www.prossiga.br/artecultura/pacc – Site do CNPq, traz rica biblioteca virtual com textos bastante variados. www.casacinepoa.com.br – Site da Casa de Cinema de Porto Alegre, iniciativa dos cineastas Jorge Furtado, Carlos Guerbase, Giba Assis Brasil. Traz textos e sinopses de filmes. PROPOSTA PEDAGÓGICA 7 ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL O que se cria / copia “Nada se cria. Tudo se copia.” Quantas vezes já nos deparamos com essa sentença? Mas o que, exatamente, queremos expressar com ela? Uma insatisfação frente às novidades que já parecem conhecidas? Um desprezo pelo potencial inovador da cópia? Uma descrença no surgimento do novo? A espera de algo excepcionalmente original? No entanto, ao mesmo tempo em que olhamos desconfiados aquilo que se apresenta como cópia, nos deixamos seduzir pelo desejo de copiar – a moda da vitrine, a música de que gostamos, um texto que queremos distribuir para muitas pessoas, ou mesmo um modo de ser. Essa relação paradoxal de apego e desprezo ao que é copiado, de busca e descrédito a uma produção que seja, de fato, original, oferece questões bastante ricas para se pensar a respeito dos processos de criação nas mais diversas áreas da realidade humana. O que é, enfim, o novo? Como surge? Como nos relacionamos com ele? Quais os limites entre a criação e a cópia? O que é criar? Pode a cópia ser uma forma de criação? De onde vem essa relação ambivalente com o ato de copiar? Um primeiro ponto que aqui convém destacar é que, uma vez que o ser humano é um ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Rita Marisa Ribes Pereira1 ser eminentemente social e histórico, os modos de produção por ele criados também são, por natureza, históricos e sociais. Isso implica, por um lado, compreender que nem sempre produzimos do mesmo modo e que nem sempre nos relacionamos do mesmo modo com as obras que produzimos e, por outro lado, que nenhuma produção humana acontece de maneira isolada, mas deriva de uma base comum a todos os homens, que é a realidade social em que vivemos. Desse modo, ainda que cada esfera da atividade humana – a arte, a ciência, a política, a economia etc. – desenvolvam metodologias próprias e bem definidas em seu universo, todas elas se relacionam entre si, compartilhando elementos trazidos de um cotidiano vivo em permanente transformação. Por isso mesmo, o que lhes confere identidade é o modo singular com que cada área aborda essas questões que são comuns. Pensemos um pouco sobre isso. Como se produz o conhecimento científico? Como nasce uma obra de arte, um filme, uma música, um desenho, uma caricatura? Como são construídas as leis? O que são as teorias científicas, as artes ou as leis se não respostas 1 Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Curso de Especialização em Educação da PUC-Rio BOLETIM – PGM 1 8 ESCOLA E PRODUÇÃO provisórias a questões que cada sociedade, formula, reformula, reinventa, em diferentes épocas, desencadeando inúmeros processos de criação? Desse modo, as transformações acontecidas na esfera cultural relacionam-se também com as modificações acontecidas no âmbito da base econômica, dito de outro modo, com as transformações e consolidação dos modos de produção capitalista. É nesse contexto que buscaremos situar nossa reflexão sobre criação e reprodução, tomando como ponto de partida a contribuição do filósofo alemão Walter Benjamin (1987), que analisou as transformações dos modos de produção no contexto da arte, buscando não perder de vista a relação com as transformações na esfera econômica e social. Para o autor, o capitalismo representa não somente o surgimento de um novo modo de produção econômica, mas também o surgimento de uma nova ordem cultural. Pensemos um pouco sobre que transformações são essas: a substituição do trabalho manufaturado e artesanal pela produção seriada da linha de montagem, a presença da máquina no processo de produção, a fragmentação do trabalho e o envolvimento de um maior número de pessoas na produção, a redução do tempo de trabalho empreendido em cada peça produzida, a produção e reprodução em série de peças iguais, a relativização do tempo de durabilidade das peças produzidas que podiam, então, ser mais facilmente substituídas. Em contrapartida, transformaram-se também os modos de recepção dessas peças produzidas: diminuiu o tempo de espera para que elas ficassem prontas, tornou-se possível um barateamento do seu preço, podiam ser adquiridas por muito mais pessoas e em quantidades maiores, criou-se uma padronização e massificação do consumo. Walter Benjamin observa essas transformações no campo da produção artística. Antes das modificações surgidas com o capiBOLETIM – PGM 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL talismo, principalmente pelo desenvolvimento das técnicas de reprodução, as obras de arte se caracterizavam pela sua exclusividade e existência única. Só existe, no mundo todo, uma única Monalisa, uma única Vitória de Samotracia, um único Sarcófago de Tutankâmon ou as pirâmides únicas de Queópes, Quéfren e Miquerinos. Essa existência única fazia com que as obras de arte só pudessem ser vistas por um número muito restrito de pessoas, por isso mesmo, precisavam ser muito duráveis, para que ao longo dos anos pudessem ser contempladas. Sua unicidade, aliada à dificuldade de acesso a essas obras, acabou por gerar um tipo de relação com a arte que era sagrada, que seguia os rituais de um culto. Algumas obras inclusive só podiam ser vistas por pessoas iniciadas. Em função disso, o que caracterizava todas as obras de arte até então era a sua existência única e a sua durabilidade. Mas como compreender essa “existência única” se a Monalisa, por exemplo, pode ser vista em tantos livros, em capas de cadernos, camisetas, até mesmo em copos de requeijão? É no interior dessa questão que encontraremos o nascedouro de nossas desconfianças com a prática de “copiar” e a fidelidade à originalidade. A cópia sempre esteve presente nos processos de criação artística, pondera Walter Benjamin. A imitação era uma prática comum utilizada como metodologia de ensino entre os artistas e seus discípulos, como forma de difusão da arte ou mesmo modos de obtenção de lucro. Nesse contexto, no entanto, toda cópia é uma imperfeição, o que coloca uma profunda distância entre a obra original e as reproduções que dela são feitas, pois mesmo a mais perfeita cópia não apreende algo que só se apresenta no original: a sua autenticidade – o aqui e agora da obra – elemento guardador da história e das transformações sofridas pela obra, seja ao longo do tempo, seja em suas relações de propriedade. É o que a obra tem de irrepetível que a torna única; 9 ESCOLA E PRODUÇÃO apreendê-la significa também conhecer sua história. É certo que ainda hoje obras desse tipo – únicas e irrepetíveis – continuam sendo produzidas, ou seja, esse modo de produção artística continua vivo e cumprindo um papel importantíssimo na história cultural da humanidade. Entretanto, Benjamin considera que as transformações engendradas pelo capitalismo operaram na esfera artística mudanças tão profundas que mudaram inclusive os modos de relação com a arte no seu todo. Que transformações foram essas? Assim como nos demais campos da produção, também a arte inaugurou sua produção em série, com o surgimento da fotografia, do cinema – e hoje acrescentaríamos muitos outros campos. A fotografia e o cinema já nasceram sob a condição de serem cópias. Não existe um “original” das fotografias – o que existe é o negativo, que é uma outra coisa (ele não é a fotografia). O filme que assistimos no cinema também não é a sua fita original, mas uma montagem de cenas selecionadas, cortadas, editadas. O que muda com isso? Se a produção nasce de maneira seriada, isto é, em grande quantidade, a exigência de que a obra de arte tivesse uma existência única é posta em questão e, com isso, seu critério de valoração deixa de ser a sua originalidade e passa a ser quantidade de cópias produzidas. A relação de culto que caracterizava a contemplação da arte foi substituída pela exposição ou mesmo super-exposição. Quanto maior o número de salas que exibirem um determinado filme, mais valorizado este será; mais bem sucedido será o músico que vender a maior quantidade de discos ou que mais fizer tocar a sua música em rádios ou TVs. Também essas produções vão deixando de ser feitas por um único artista e passam a ser produzidas de maneira mais coletiva. Basta lermos todos os créditos que aparecem ao final de um filme para termos uma BOLETIM – PGM 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL idéia da quantidade de pessoas envolvidas nessa construção. Há que prestar atenção às conseqüências éticas trazidas por essas transformações. Walter Benjamin pondera que, ao seu ver, essas transformações tem seu lado positivo e negativo: o lado positivo está na democratização da arte, uma vez que o acesso a ela se ampliou – atualmente um filme pode ser visto num único dia no mundo inteiro, por um número de pessoas infinitamente maior do que as que tiveram acesso à Monalisa ou às pirâmides egípcias ao longo da história dessas obras. Para além do dado quantitativo, está em jogo também a construção de uma outra relação com a arte, na medida em que ela se torna mais próxima e mais compartilhada. O lado negativo, na visão do autor, está ligado à massificação que passa a se fazer presente nesse contexto de produção. O que significa um número infinito de pessoas verem um mesmo filme, ouvirem uma mesma música, lerem um mesmo livro, falarem de um mesmo assunto? Estaremos, nós mesmos, fadados a sermos cópias também? Nesse sentido, cabe o questionamento sobre os modos como nos relacionamos não somente com a arte, mas com as diversas produções culturais que também assimilaram as transformações dos modos de produção capitalista. Em que medida essas transformações ajudam-nos a nos apropriarmos dessas linguagens como sujeitos criadores, produtores de cultura? Em que medida elas nos cerceiam, limitam nossas possibilidades criadoras? Quais os limites entre o criar e o copiar? Como buscar uma reflexão que permita um olhar dialético para essas questões? Em que ponto buscar um diálogo entre a originalidade e a repetição, entre o igual e o singular? Mikhail Baktin e Lev Vigotsky são dois autores que nos ajudam a qualificar nossa reflexão, recuperando nossas indagações iniciais acerca dos significados da criação. 10 ESCOLA E PRODUÇÃO Bakhtin afirma que toda produção científica e estética é, sobretudo, uma produção social, nascida da necessidade humana de se comunicar. Cada uma, ao seu modo, expressa de maneira singular provisórias respostas a indagações nascidas do movimento vivo da realidade social. A preocupação de Bakhtin em afirmar o caráter social de toda produção cultural está ligada ao fato de recuperar a dimensão humana presente nessas produções, isto é, de entender cada obra como um diálogo permanente entre quem a faz e quem a contempla. A criação, segundo o autor, não pode ser isolada somente na obra ou somente no seu autor. A criação é também completada por aquele que se relaciona com a obra, que não é e nem pode ser visto como um ser passivo, que apenas assimila uma realidade pronta. Toda obra é uma obra aberta, a ser completada por todos aqueles que se relacionam com ela, que lhe atribuem novos sentidos, ao longo da história. Com isso, Bakhtin também adverte que nenhuma obra é de todo original, pura, feita exclusivamente por um único sujeito, livre das interferências de outras produções. Na medida em que o ser humano é por natureza um ser social, nossos discursos e criações são todos mesclados pelas palavras que já ouvimos, pelos livros que já lemos, pelos filmes que assistimos, as músicas que ouvimos, enfim, todos os elementos constituidores da cultura humana. Exemplo disto, este texto que o leitor agora tem nas mãos: as idéias aqui presentes tomam forma também pelos sentidos que você está dando a ele. Assim, não caberia a reivindicação por uma originalidade suprema nem o desprezo àquilo que se oferece inicialmente como cópia. A busca de algo exclusivamente novo precisaria abdicar da própria história da humanidade, pois mesmo a história se renova fazendo uso daquilo que já tem. Um diálogo que se estabelece entre BakhBOLETIM – PGM 1 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL tin e Vigotsky diz respeito à necessidade de recuperar a dimensão política que envolve o processo de criação. Os autores afirmam que a criação é uma capacidade humana – por isso mesmo, comum a todos os seres humanos – e não apenas uma característica restrita a alguns sujeitos considerados geniais. Vigotsky associa a capacidade criadora à experiência de vida, afirmando que o processo criativo está ligado às possibilidade de combinar de maneira original as experiências vividas, podendo trazer à tona algo novo, inovador. Nesse processo, Vigotsky atribui papel fundamental à atitude de copiar, entendendo que ela representa uma primeira maneira de apreensão da realidade que nos cerca. Copiando formas já existentes aprendemos a falar, a andar, a desenhar, a escrever... Posteriormente fomos buscando novas formas, criando nossa singularidade. Vigotsky pondera, porém, que a atividade criadora necessita de uma diversidade de elementos para que ela possa se desenvolver, entre os quais salienta a importância da relação entre imaginação e realidade, entendendo que estas não são opostas, mas complementares – é a realidade que fornece os ingredientes para a imaginação, assim como é a imaginação que aponta os ingredientes de que a realidade carece. A cópia, cabe frisar, é uma parte do processo de criação, não o seu fim e representa a apreensão daquilo que já existe, do que já foi criado; não deve – jamais – ser encarada como uma expressão finalizada. Por fim, compartilhemos novamente a preocupação central dos três autores que – entre tantos outros – ajudaram-nos a construir esta reflexão: a de recuperar a dimensão política de toda produção humana. Os autores apontam a necessidade de construir uma reflexão consistente sobre essas questões para que possamos nos sentir, de fato, sujeitos criadores. Para isso, precisamos construir uma postura crítica frente ao que assimilamos e também àquilo que criamos. Bakhtin pon11 ESCOLA E PRODUÇÃO dera que um poeta deve recordar-se que sua poesia é culpada pela trivialidade da vida, e o homem na vida há de saber que sua falta de exigência e seriedade em seus problemas existenciais são culpados pela esterilidade da arte (Bakhtin, 1985).2 O que Bakhtin está chamando de culpa pode ser tratado como responsabilidade e pode estender-se também ao nosso cotidiano na escola e fora dela, orquestrando o desafio de inovar sem esquecer a história do que se produz. Sugestões de atividades – Organizar um evento específico ou reservar um espaço no planejamento cotidiano para 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL que a comunidade escolar possa apresentar/mostrar o que produz; – Organizar mostra de filmes, poesias etc. envolvendo a comunidade. Bibliografia BAKHTIN, Mikhail. Arte y responsabilidad. In: Estética de la criacion verbal. México, Siglo XX, 1985. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. São Paulo, Brasiliense, 1987. Vigotsky, Lev. Imaginacion y el arte en la infancia. México, Ediciones Hispanicas, 1987. Na tradução mexicana: “Un poeta debe recordar que su poesía es culpable de la trivialidad de la vida, y el hombre en la vida ha de saber que su falta de exigencia y seriedad en sus problemas existenciales son culpables de la esterilidad del arte. BOLETIM – PGM 1 12 ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL Ler, escrever e teclar Vocês se lembram de como aprenderam a ler e a escrever? Na mesa da sala? No chão da cozinha? No quintal, como Paulo Freire? Na rua, vendo placas de ruas e letreiros de ônibus? Ou fingindo ler os papéis que lhes apareciam na frente, em qualquer lugar? Quem sabe acompanhando os estudos do irmão ou da irmã mais velha? Ou foi mesmo na escola que começou essa aventura? São muitas as histórias e muitas as possibilidades... O fato é que a linguagem escrita nos circunda de modos diversos e muitas vezes insuspeitos: a conta de luz, o tíquete do metrô, o santinho preferido, os objetos que portamos, usamos e vestimos, a lista de compras, os livros que vemos e/ou manuseamos, a propaganda entregue na rua, o jornal e a revista, a sacola do supermercado, o papel da bala... Até o mundo de imagens e sons da televisão é impregnado de língua escrita! E quem duvida de que há um leitor por trás de grande parte dos textos falados na TV e no rádio? No computador, os ícones de comando são acompanhados de legendas por escrito. Nas máquinas, de um modo geral, a compreensão de suas ações é também formulada por escrito. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Cecília Maria Goulart* A dimensão que a escrita tem em nossas vidas é enorme, desde que nascemos, quando precisamos ser registrados para termos existência civil reconhecida. Assim, essa linguagem atravessa a vida de todos, em vários níveis – analfabetos ou letrados, urbanos ou rurais, crianças, jovens ou adultos – todos a usam, por curiosidade, por necessidade ou por prazer. E na escola, será que as muitas faces da leitura e da escrita são trabalhadas? Que textos utilizamos com nossos alunos para que se transformem em leitores de verdade? Que textos produzem os nossos alunos para que cada vez mais escrevam sobre esse mundo e sobre outros mundos possíveis e sonhados? Quais são as práticas sociais que exigirão da criança, hoje, o domínio da escrita? Em que medida, enquanto alfabetizamos, estamos preparando-a para tais práticas? O que lemos e o que escrevemos nós, professores no século XXI? Realizamos as mesmas leituras e escritas de nossos avós ou mesmo de nossos pais? Lemos e escrevemos daquela mesma forma? Ou mudaram os tempos, os * Universidade Federal Fluminense BOLETIM – PGM 2 13 ESCOLA E PRODUÇÃO espaços, as pessoas e com isso mudaram também os objetos dados a ler e a escrever e as práticas de leitura e escrita? Será que lemos hoje um romance, como Dom Casmurro, de Machado de Assis, da mesma forma como era lido há algumas décadas? Sabemos que o que traz sentido para um ou outro modo de ler e de escrever são os conhecimentos e os valores de que somos constituídos. Portanto, lemos e escrevemos “de dentro” de uma rede de significados culturais que construímos historicamente. Essas redes significativas que formamos, e de que somos formados, variam de grupo social para grupo social, de pessoa para pessoa e também de período histórico para período histórico. Os homens, criadores da escrita, vêm permanentemente constituindo novos usos e funções para esse saber, de acordo com novas necessidades que vão se instaurando no processo cultural. Nesse sentido, ser letrado envolve estar continuamente vivendo experiências novas, tanto do ponto de vista da criação de novos textos e de novas formas de dizer, quanto da própria aventura de conhecer, lendo novos mundos e novas possibilidades de viver/transformar esse mundo. A leitura de textos literários, por exemplo, muitas vezes nos leva a “viajar”, conhecer novos horizontes, refletir sobre outras possibilidades de ação, explorar caminhos desconhecidos; remete-nos para outros textos lidos, para os nossos próprios textos, pelo que contêm de semelhanças e diferenças em relação a idéias, relações diversas, problemas, soluções e também sonhos. A escrita, por sua vez, nos obriga a refletir sobre o que somos, o quê e como pensamos, acarretando dificuldades que, em geral, são atribuídas a questões lingüísticas relacionadas, por exemplo, à falta de vocabulário, mas que estão mais ligadas aos nossos próprios modos de concatenar as idéias, conceituar, inter-relacionar quesBOLETIM – PGM 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL tões. Viagem também para dentro de nós mesmos, buscando explicitar de forma organizada maneiras de ler as facetas do mundo. Viajar lendo, viajar escrevendo... Inovações tecnológicas, como a Internet, nos trouxeram a possibilidade de “navegar”, muitas vezes, por “mares nunca dantes navegados”! Navegar lendo, navegar escrevendo... Que desafios a superfície da tela de um computador traz para a leitura e a escrita? O conhecimento da linguagem escrita em si é o mesmo, entretanto novas condições de produção determinam novos modos de ler e de escrever, diferentes daqueles implicados nos tradicionais – vamos dizer assim – objetos portadores de textos. A leitura e a escrita na tela do computador requerem um sistema de convenções diferente daquele que regula aquelas atividades em folhas de papel. O modo como o texto se estrutura no computador (incluindo a apresentação e a formatação do texto) dimensiona a materialidade do texto de um modo diferente daquele lido ou escrito em papel. A própria maneira como o “manuseamos”, indo e voltando, fazendo destaques, inserções, entre outras ações, nos obriga a novos conhecimentos, novas estratégias de leitura e de escrita, bem como a novos modos de ler e de escrever. Navegar na Internet nos possibilita acessar muitos textos ao mesmo tempo, por meio de “links” (isto é, ligações, possibilidades de caminhos para outros textos que se abrem) que vamos acessando: um texto se abre, então, em muitos textos, operacionalmente, e não mais em nível metafórico, como falamos acima, em relação à leitura de textos escritos em livros. Essa possibilidade nos faz experimentar o conhecimento de um modo novo, diferente das fontes tradicionais de referência. Um texto pode nos levar a outros textos, subjugando a linearidade espacial do texto no papel a uma verdadeira rede de textos que nos permite criar trajetórias de leitura diferencia14 ESCOLA E PRODUÇÃO das, pelas opções que fazemos. A interação com o texto se dá, assim, com uma dinâmica diferente daquela que acontece com o texto em papel. Ler, escrever e teclar se constituem hoje, mais do que nunca, em atividades altamente desafiadoras e necessárias, pelo que representam de possibilidade de inserção maior do homem na sociedade, não como forma de submissão aos textos existentes e às tecnologias disponíveis, mas como forma de, conhecendoas, poder criticá-las, criar novas formas de ação com elas e para elas, novos modos de ler e de escrever caminhos sociais mais justos. A tradicional ênfase dada na escola às associações sonoro-visuais e gráfico-auditivas é apenas um dos aspectos da aprendizagem da linguagem escrita, e não é o mais relevante, embora necessário. O contato com textos de vários padrões, simulações de leituras pelos alunos e de leituras realizadas pelos professores, além de espaços em que as crianças possam discutir os textos lidos e escrever do modo como puderem, a partir de propostas da turma, tornam-se cada vez mais fundamentais. As experiências das crianças ao lerem, escreverem e ouvirem leituras são valiosas quando há um professor que os inquieta com perguntas, lança pontes entre os temas discutidos, coteja textos de diversas origens, trabalhando para expandir os seus universos de referências, estimulando a curiosidade natural e abrindo um mundo de exploração e descobertas. Ainda que as crianças não tenham disponíveis computadores para aprender a manejar, estarão sendo criadas condições para o desenvolvimento de ações interativas, de estabelecimento de relações e associações intertextuais e de convite a proposições. Um trabalho que faz circular textos escritos e textos orais, criando espaços de leitura e de escrita pelas crianças, gera também o desejo de aprender a língua escrita. O destaque e a imBOLETIM – PGM 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL portância desta linguagem vão tornando-a necessária à vida das crianças. No movimento em sua direção, vão realizando, com a intervenção e incentivo dos professores, a análise de seus segmentos e de suas relações, desbravando aos poucos suas normas e seus segredos, assim como a diferenciando da língua oral. Na direção acima trilhada, é interessante gerar condições e ambiente para que os alunos trabalhem favorecendo novos tipos de interação. Se considerarmos hoje que atividades envolvendo a interação entre grupos de alunos e entre professores e alunos têm-se mostrado como altamente férteis para a construção e troca de conhecimentos, devemos promover do mesmo modo condições para que haja interação entre textos, bem como entre diversos portadores de texto. Como um texto “conversa”, discute com outro(s) texto(s)? Em que se aproximam, se cruzam e de que modo se afastam? – são questões que devem estar presentes nas salas de aula. Trabalhar para a alfabetização de todos não como uma forma de alienação, de ensinar sentidos dados, escritas congeladas, mas como uma forma de ler “mais longe”, de criar condições de escrita de outras histórias: aprender a ler e a escrever para entrar no jogo e jogar, e até mesmo para descobrir que não somos tão livres quanto pensamos. O espaço coletivo e a vida coletiva nos levam a restrições, a convenções – as que devemos aprender para ler, escrever e teclar socialmente são apenas algumas delas e, contraditoriamente, podem nos libertar. Sugestão de atividade prática Criação de um horário diário para a rodinha de conversa. As atividades realizadas nesta rodinha podem variar: desde conversas espontâneas sobre experiências vividas por uma criança ou vividas por grupos em um determinado local da comunidade, do bairro, da cidade, do estado ou do país, até atividades 15 ESCOLA E PRODUÇÃO programadas de apresentação de livros por algumas crianças, de apresentação da(s) notícia(s) mais importante(s) (ou mais triste etc.) do jornal da TV do dia anterior, cotejando com a mesma notícia no jornal impresso levado pelos alunos e/ou pela professora. O fundamental nessas rodinhas é que as crianças tenham espaço para falar, para apresentar suas idéias, seus pontos de vista sobre o tema em discussão, e também para ouvir opiniões diferentes das suas. A professora, além de mediar a conversa, apresenta seu ponto de vista, procura organizar sínteses de como o assunto está sendo tratado. A professora deve também ir solicitando às crianças que, aos poucos, assumam esse papel mediador, garantindo espaço para todos que queiram falar, bem como levar as crianças a realizarem pequenos resumos dos temas e do modo como foram discutidos. Podem ser elaborados registros escritos datados dessas atividades diárias em um blocão, ou num caderno de desenho grande, que fique disponível para quando as crianças quiserem revêlos. Dependendo do período em que as crianças estiverem, a professora pode escrever primeiro no quadro de giz com a ajuda das crianças e, em seguida, uma criança a cada dia BOLETIM – PGM 2 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL fica responsável pela transcrição e ilustração no caderno da turma. Ao final de cada mês, ou de cada dois meses, podem ser realizados levantamentos pelas crianças e professora, em forma de gráficos ou tabelas, das atividades ou temas que mais se destacaram. Desses encontros também podem surgir temas para projetos de estudos que envolvam toda a turma. Caso a escola possua computadores, pode ser estudado um modo de ter essas informações digitadas, inclusive os gráficos ou tabelas. Indicações Bibliográficas BATISTA, A. A. & GALVÃO, A. M. de O. (orgs.). Leitura, Práticas, Impressos e Letramentos. Belo Horizonte. Autêntica, 1999. MASSINI-CAGLIARI, G. & CAGLIARI, L. C. Diante das Letras – A escrita na alfabetização. Campinas, Mercado das Letras/ Associação de Leitura do Brasil/ALB; São Paulo, FAPESP, 1999. (Coleção Leituras no Brasil) CHARTIER, R. e outros. Práticas de Leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996. PÉREZ, F. C. e GARCIA, J. R. (orgs.). Ensinar ou Aprender a Ler e a Escrever? Porto Alegre, Artmed, 2001. 16 ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL O olho e a câmera Este tema provoca mais perguntas do que respostas conclusivas e é por este motivo que reunimos algumas indagações iniciais que irão orientar nossas reflexões, apontando um caminho para discutirmos as transformações do olhar, da subjetividade e do conhecimento engendradas pela tecnologia. O que é olhar o mundo através das lentes? Que mudanças são desencadeadas no olhar através da mediação proporcionada pelos instrumentos técnicos? O que somos capazes de ver e o que nos escapa ao olhar? A imagem técnica é uma representação fiel e objetiva do real ou uma nova forma simbólica de captar o mundo mediado pela técnica? Os objetos, captados pelas lentes, são signos que definem a realidade através de conceitos? Conhecer o mundo através das lentes é criar um outro mundo possível? Quais as conse- ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Solange Jobim e Souza1 qüências deste acontecimento contemporâneo nos modos de ser, agir e conhecer? De que modo podemos tirar partido do uso da tecnologia para construirmos relações interpessoais solidárias e humanitárias? Quais são as possibilidades de criação e de liberdade em uma sociedade cada vez mais programada pela tecnologia? Estas questões hoje se colocam por que a cada dia sentimos com maior evidência o modo como a tecnologia da imagem se transformou numa prótese do olhar, sendo praticamente impossível falar da nossa existência no mundo atual sem os aparatos técnicos que acabaram por modificar a própria natureza humana. A distinção entre natureza e cultura é cada vez mais tênue e os limites de uma ou outra não podem ser mais facilmente definidos2 . Os produtos culturais de nossa época 1 Professora do programa de pós-graduação do Departamento de Psicologia da PUC-Rio. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da UERJ. Coordenadora do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa da Subjetividade (GIPS) 2 No campo das ciências humanas, especialmente nos estudos da Psicologia, vimos durante as últimas décadas o desenvolvimento de pesquisas que buscavam definir uma espécie de matriz da natureza humana, através da elaboração de conceitos universais que distinguiriam com objetividade a base biológica das influências culturais na constituição do sujeito. Entretanto, o vertiginoso desenvolvimento da técnica, interferindo na vida cotidiana, e a ênfase dos estudos da linguagem sobre os efeitos do discurso na constituição subjetiva dos indivíduos tornaram frágeis os argumentos científicos que pretendiam traçar fronteiras rígidas para se compreender o indivíduo separado da cultura. Este fato exige a construção de novos paradigmas para se discutir as relações entre natureza e cultura na constituição do sujeito. A década de 90 aprofundou ainda mais este debate a partir do desenvolvimento das pesquisas e das práticas médicas de intervenção na reprodução humana e na manipulação genética. Este é um vasto campo de debate, implicando questões éticas e políticas no campo dos estudos e pesquisas nas ciências humanas neste novo milênio. Sobre este tema ver “Futurenatural”, George Robertson et al. 1996, New York, Routledge. BOLETIM – PGM 3 17 ESCOLA E PRODUÇÃO estão entranhados em nossa experiência, forjando uma nova subjetividade que só é possível de ser compreendida quando levamos em conta o modo como assimilamos o tato e o contato com os diferentes aparatos que estão mediando nossas relações com o mundo físico e social. Como fazer deste novo acontecimento cultural algo que seja vinculado essencialmente ao homem, melhor dizendo, como garantir que cada um de nós saiba se reconhecer como produto e como autor das criações culturais de uma dada época? Como vincular a experiência passada da humanidade à história dos modos atuais de criar o mundo através da tecnologia? Digo isto porque quando há uma ruptura no processo de compreensão dos modos de criação, o homem acaba por não se reconhecer como parte ativa das transformações mais amplas de nossa época, depositando sempre no outro o controle sobre suas ações. Este outro se configura hoje para nós como um ser maquínico. Isto porque as interações que estabelecemos com as máquinas coloca o objeto-máquina em destaque, criando modos de diálogo inteiramente novos, muitas vezes suplantando as relações entre as pessoas. Estranha condição esta que a cultura nos impõe, posto que aquilo que foi criado pelo homem pode, por um erro de percurso, se tornar um instrumento de dominação de nossas ações e do nosso desejo, deixando o que denominamos vontade abandonar a nossa morada. Enfrentar o desafio do uso da tecnologia sem perder nossa capacidade de criar, com ela e através dela, novas estratégias de mediação crítica com o mundo, depende, num certo sentido, do acesso das crianças, dos jovens e dos adultos a uma formação educacional que contemple as diferentes linguagens presentes no cotidiano de uma dada época. Mesmo que sejamos receptivos às mudanças desencadeadas pelas imagens técniBOLETIM – PGM 3 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL cas, devemos destacar alguns pontos críticos nesta relação. Arlindo Machado (1998), comentando a obra de Vilém Flusser, diz que a proliferação imensa de imagens técnicas acarreta uma predisposição da sociedade para um comportamento mágico programado. Os homens já não decifram as imagens como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como um conjunto de imagens. Não sabendo mais servir-se das imagens em função do mundo, eles passam a viver em função de imagens, de modo que estas últimas, tradicionalmente encaradas como mapas, se transformam gradativamente aos seus olhos em biombos, cuja função já não é mais representar, mas mascarar o mundo. (p. 16) Levando em consideração esta crítica, nossa proposta é intervir para que o olhar não seja empobrecido e aprenda a usar a tecnologia para construir estratégias de interação com o mundo físico e social, que sejam promotoras de um certo modo de ver as coisas, interpretando e recriando o mundo de muitas e diferentes maneiras. Isto significa assumir o compromisso de desencadear um conhecimento que desmascare a superficialidade e a padronização do olhar, permitindo um mais profundo contato com a leitura e a interpretação das imagens que circulam velozmente entre nós. A produção do conhecimento hoje não dispensa a nossa capacidade de dialogar com os aparatos tecnológicos, incentivando as pessoas a construírem, com eles, novas possibilidades de usos, submetendo as máquinas ao nosso poder e desejo de inventar outros jogos ainda não revelados na prática. Tratase, portanto, de criarmos, através da educação, modos de confronto com a experiência tecnológica, colocando tanto educadores como educandos na posição de se sentirem responsáveis por inventar outras estratégias de interação na produção de conhecimento. Isto significa dizer que a educação mediada 18 ESCOLA E PRODUÇÃO pela tecnologia é um jogo, pois cada vez mais as máquinas se transformam em aparatos para recuperarmos a dimensão lúdica na produção do conhecimento, que é de fato também trabalho. A relação jogo e trabalho no contexto da tecnologia se transforma de modo radical. Como diz Flusser (1998), os instrumentos técnicos emancipam o homem do trabalho, libertando-o para o jogo. E para reforçar nosso argumento nesta direção é interessante observarmos como as crianças lidam com os aparelhos. Se comparamos os adultos e as crianças nestas atividades, constatamos, com freqüência, um modo muito mais descontraído e familiar das crianças com as máquinas do que muitos adultos alcançam em situações similares. A criança não teme a tecnologia porque para ela, desde o princípio, os aparelhos são máquinas de jogar, são brinquedos. No brincar a criança inventa o jogo, cria sempre novos lances e desafia a máquina, experimentando com ousadia e curiosidade os resultados que desencadeia. Já o adulto não consegue a mesma descontração porque a máquina, tomada como mediadora do trabalho sério, perde todo o encantamento e a magia que a criança é capaz de alcançar. A criança está livre do sentido sério e sisudo que as coisas posteriormente adquirem no curso da vida e, por isto, pode nos mostrar novas alternativas de convívio com as máquinas. Cabe ao educador aprender esta postura com a criança e construir junto com ela, sem deixar de lado a sua experiência como adulto que vê o mundo de uma determinada maneira, modos mais criativos para enfrentarmos os desafios que a tecnologia nos impõe. O confronto entre gerações amplia o campo das experiências criadoras e a dimensão alteritária do saber da criança, em contato com o conhecimento do adulto, é extremamente positiva para a produção do conhecimento e da subjetividade, configurando um clima de autêntica liberdade nos modos de ser, agir e conhecer. Voltemos agora nossa reflexão para enfoBOLETIM – PGM 3 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL car especialmente as máquinas de visão. Como se dá nossa relação com os aparelhos que produzem imagens, como, por exemplo, a máquina fotográfica, o cinema e a televisão? Como consumimos e / ou produzimos imagens? Com a fotografia iniciamos um longo caminho na construção de novos modos de escrita do mundo. Pasolini (1983) vaticinou: “... O cinema trará as mesmas mudanças revolucionárias em relação à realidade que a língua escrita em relação à língua falada”(p.145). Do mesmo modo que a escrita ortográfica nos revelou uma maneira mais sistemática e conceitual de tomarmos consciência da nossa cultura, a “foto-grafia” se constitui como uma escrita atual do homem, mediada por uma tecnologia criadora de uma narrativa figurada. Podemos considerar que, depois da invenção do ato de fotografar, a experiência humana nunca mais foi a mesma, pois conquistamos, a partir desta prótese da visão, um olhar sobre a materialidade do mundo físico e social que antes não era possível, criando em nós uma nova consciência cultural e subjetiva do mundo. Além disto, podemos afirmar que as imagens constituem hoje as narrativas do mundo contemporâneo, trazendo novos elementos para buscarmos uma compreensão mais abrangente do próprio conceito de narrativa. Com isto a compreensão do que constitui hoje o domínio da leitura e da escrita mudou radicalmente, desafiando a escola a penetrar no universo dos signos que permeiam a experiência do homem atual, a partir da criação de novos códigos de interpretação e construção de sentidos. A experiência atual com as imagens, quer sejam fotográficas, cinematográficas ou televisivas, acontece na maioria das vezes de forma espontânea, intermitente, fragmentada, enfim, de modo superficial. Com a proliferação das imagens, a cada dia elas perdem mais a sua capacidade de dizer algo a alguém, pois 19 ESCOLA E PRODUÇÃO também as pessoas que vivem esta dispersão perceptiva de modo permanente acabam por perder a sensibilidade para ver as coisas, enxergando-as como signos, extraindo sentidos diferenciados da materialidade do mundo e dos significados incorporados às imagens que nos rodeiam. A leitura de imagens como uma atividade subjetiva compromissada com a experiência racional e sensível de tomada de consciência do mundo deve ser uma conquista e, portanto, exige uma educação estética do olhar. A educação estética do olhar é aquela que incentiva o educando a intervir no ritmo dispersivo e intermitente que, em geral, estamos acostumados a exercitar quando interagimos com as imagens no cotidiano (TV, vídeo, cinema, fotografia, outdoors, computador etc.). É preciso aprender a olhar o mundo indo aos detalhes, melhor dizendo, é preciso decompor o mosaico para melhor enxergar a figura que reina majestosa no todo de uma revelação figurativa. Neste exercício que propomos com as imagens, a palavra é companheira, posto que com ela a imagem se enriquece, ganha contornos, torna-se icástica. Por mais que o mundo esteja se revelando aos nossos olhos através de narrativas figuradas, há que se decompor estas imagem em palavras e devolver ao outro as possíveis interpretações daquilo que é visto, tornando as imagens técnicas mediadoras de um diálogo entre pessoas que buscam novos modos de narrar sua experiência, recriando o mundo na imagem e BOLETIM – PGM 3 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL no discurso. Deixar de ser dominado pela imagem é saber criar sentidos novos, composições que alteram e libertam nossa percepção do mundo em variadas direções. Aprender a ver o mundo com outros olhares, resgatando sua condição de diversidade, é formar leitores de imagens que sabem dar um sentido estético e ético ao modo como produzimos conhecimento na contemporaneidade. Este é um dos maiores desafios para a educação nos dias atuais. Bibliografia: FLUSSER, V. Ensaio sobre a fotografia. Para uma filosofia da técnica. Lisboa, Relógio D’água, 1998. JOBIM E SOUZA, S. (ORG.). Mosaico: Imagens do Conhecimento. Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos, 2000. __________ & FARAH NETO, M. A tirania da imagem na educação. Presença Pedagógica, v. 4, n.22, jul./ ago., 1998. LOPES, A. E.; SANDER, L.; JOBIM E SOUZA, S. A criação de narrativas na escola: uma abordagem através da fotografia. In: Paiva A. et alli. No fim do século: a diversidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2000. MACHADO, A. Apresentação. In: Flusser, V. Ensaio sobre a fotografia. Para uma filosofia da técnica. Lisboa, Relógio D’água, 1998. PASOLINI, P. P. As últimas palavras do herege. Entrevistas com Jean Duflot. São Paulo, Brasiliense,1983. 20 ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL Ao pé do ouvido Criação e Cultura de Massa: uma relação possível? A experiência humana é hoje caracterizada por uma diversidade de relações. As crianças e os adolescentes que povoam as salas de aula têm seu processo de construção subjetiva marcado não somente pela relação com a família e a escola, como nos acostumamos a pensar, mas também com máquinas que, há bem pouco tempo, só habitavam a imaginação de escritores de ficção científica. A bem dizer, sua formação não se distingue apenas pelo convívio com a tecnologia, que pode se dar em intensidades variadas, mas, acima de tudo, pelo modo como os avanços tecnológicos e a utilização de cada um desses novos objetos interfere em nossa forma de percepção, interação e intervenção no mundo. Os instrumentos técnicos que nos são apresentados a todo o momento atingem, com sua presença, aspectos de nossa subjetividade. O advento do computador pessoal, por exemplo, não propicia unicamente uma mudança objetiva, uma nova maneira de realizar tarefas, mas, ultrapassando a dimensão de utilidade, terminou por gerar uma nova forma de comunicação, de relação com a escrita, de organização do pensamento e, mais ampla- ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Maria Cecília Morais* mente, uma nova percepção do tempo e do espaço. Tais transformações afetam tanto as crianças que têm um computador em seu quarto, quanto aquelas que nunca chegaram a utilizá-lo. Trata-se de experiências diferenciadas que, no entanto, inscrevem-se num contexto compartilhado, na medida em que a existência do computador se impõe e marca a realidade de ambos. Destes inventos, muita coisa se originou. As artes, de um modo geral, sofreram grandes transformações. A criação artística é hoje radicalmente atravessada pelo desenvolvimento tecnológico e, também, pela forma massificada e agressiva que o ato de consumir assumiu nos últimos tempos. Na música, campo em que concentraremos nossas atenções no presente texto, este atravessamento é determinante e se manifesta de muitas formas. Ao lado do cinema e da televisão, a música talvez seja uma das formas de expressão com maior poder de disseminação e penetração entre os jovens. Tal fato nos leva a supor que, através das manifestações musicais, seja possível aproximarmo-nos um pouco mais da * Psicóloga Clínica, mestre em Psicologia. BOLETIM – PGM 4 21 ESCOLA E PRODUÇÃO experiência contemporânea das crianças e adolescentes de nosso tempo. Não há dificuldade em observar o interesse dos jovens pela música. Eles estão sempre escutando a rádio ou o CD preferidos, insistindo para ir a este ou aquele show, colando os pôsteres e as fotos de seus cantores e cantoras prediletos nas paredes do quarto, querendo montar sua própria banda para apresentarse na escola, enfim, demonstrando de todas as formas o espaço que a música ocupa em seu dia-a-dia. Mas, qual é a música que essas crianças e adolescentes reverenciam? Apesar de haver variações significativas que, em nosso olhar distanciado, acabamos não percebendo, podemos certamente afirmar que, em sua grande maioria, eles se voltam para chamada música pop. Artistas como Madonna, Michael Jackson e, mais recentemente, Britney Spears e Sandy fazem a alegria de meninos e meninas. Há poucos meses, o funk carioca entrou para a lista, ultrapassou as fronteiras sociais e geográficas e passou a se repetir exaustivamente por todo o país, para revolta de muitos pais e educadores, devido à temática explicitamente sexual expressa tanto nas letras como nas danças que as acompanham. Esse gosto pelo que consideramos vulgar e pouco instrutivo nos assusta. É comum que se façam previsões sinistras quanto ao futuro de uma geração exposta a esse tipo de produção cultural. Entretanto, se questionamos o interesse das crianças por esse tipo de música, é preciso que nos perguntemos também sobre o medo que acomete os adultos. É importante indagar, para início de conversa, que conseqüências tem este sentimento no trato diário com as crianças. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL Para além da preocupação legítima e necessária com a formação de seus filhos e alunos, o medo de pais e educadores reafirma, intencionalmente ou não, uma opinião largamente disseminada no senso comum e corroborada pela academia: aquilo que se produz na cultura de massa é de valor artístico e cultural discutível e, acima de tudo, sempre inferior à cultura erudita ou clássica. Assim, um filme como “Guerra nas Estrelas” será sempre considerado inferior a um livro de Alexandre Dumas, a música que se repete nas rádios nunca terá tanto valor quanto a audição de um clássico da música erudita ou da MPB**. Por analogia, acabamos por julgar que brincar de bola ou peão é também mais saudável do que jogar video game ou “cuidar” de um tamagoschi. A pobreza cultural derivada de nossa organização social centrada no capital é um fantasma que nos assombra e a que atribuímos muitos males presentes e futuros. Não nos interessa aqui determinar a superioridade de uma obra ou estilo em relação a outros, isto é, discutir, por exemplo, a importância da obra de Machado de Assis em comparação à de George Lucas*** ou Steven Spielberg. Mais importante que isso talvez seja atentar para as diferenças que existem entre a cultura de massa e a chamada “cultura elevada” para, assim, nos aproximarmos um pouco mais daquilo que povoa o imaginário de nossas crianças e adolescentes. De fato, como bem observa Edgar Morin, “tudo parece opor a cultura dos cultos à cultura de massa: qualidade à quantidade, criação à produção, espiritualidade ao materialismo, estética à mercadoria, elegância à grosseria, saber à ignorância” (Morin, 1967). Mas **A MPB é aqui incluída como estilo musical relacionado à cultura clássica, apesar de seu cunho popular, porque sua valorização no contexto cultural brasileiro, e mesmo mundial, deve-se em muito à sua enorme riqueza melódica, harmônica e poética, ou seja, à sua adequação a critérios advindos da cultura clássica. *** Produtor da série cinematográfica “Guerra nas Estrelas”. BOLETIM – PGM 4 22 ESCOLA E PRODUÇÃO será que esta oposição, que coloca as duas formas de criação cultural como dois extremos, não esconde as nuances e a diversidade que compõem cada uma delas? Será que tudo o que se produz de acordo com os parâmetros da cultura clássica é necessariamente mais interessante que qualquer coisa que se origine no ambiente da cultura de massa? Ao nos indagarmos sobre a possibilidade de encontrar vida inteligente nessa forma de cultura, tão conhecida por seus efeitos padronizadores e homogeneizantes, o tipo de criação musical que os DJs realizam pode nos ser de grande interesse. Por DJ designa-se um tipo de “músico”**** que trabalha com a montagem de sons reproduzidos, em geral de autoria de outros músicos, utilizando predominantemente discos de vinil (os antigos LPs) que manipula em seus toca-discos. Como características fundamentais da profissão de DJ estão a extrema proximidade com a tecnologia – que eles utilizam em todas as etapas de sua produção, aprendendo a mexer com os equipamentos pelo próprio uso – e uma formação musical basicamente popular. Os DJs são, em sua esmagadora maioria, ouvintes daquilo que Theodor Adorno chama de música “ligeira”, isto é, música feita nos moldes da cultura de massa e não da cultura erudita. Podemos dizer que a tecnologia e a música popular são sua matéria-prima. Seu som provém da manipulação direta daquilo que ouvem. Além disso, o DJ tem como função primeira o entretenimento. Sua mais importante tarefa é a de fazer as pessoas dançarem sob seu comando. Assim, sua música destina-se, prioritariamente, à fruição momentânea e desconcentrada que se dá na pista de dança. Os DJs reúnem, portanto, uma série de elementos extremamente criticados quando se ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL trata de preservar uma certa qualidade na produção cultural. A efemeridade de suas “composições” – quase sempre improvisos que serão utilizados em algumas festas e depois esquecidos – não permite uma apreciação mais concentrada, que se detenha neste ou naquele detalhe. No caso dos DJs, o que conta é a reação imediata, e não a assimilação reflexiva que caracteriza a postura diante das obras provenientes da cultura clássica. Além disso, os DJs, para criarem suas montagens, se utilizam de composições, arranjos e gravações feitos por terceiros. Isto os coloca no centro de uma polêmica sobre os direitos autorais e em confronto com a distinção clássica entre cópia e original. Ao lado de tudo isso, o que os DJs nos apresentam é uma forma particular de confecção da música que advém de um modo de utilização de aparatos técnicos criados por eles. Subvertendo o uso comum dos toca-discos, os DJs deram a este aparelho uma nova dimensão. Ao invés de somente reproduzir músicas já finalizadas, o toca-discos, em suas mãos, passa a ser tratado como um instrumento para a produção de efeitos sonoros totalmente novos. Através da prática de discotecagem, também os discos deixam de ser apenas ouvidos para serem, literalmente, tocados. Opera-se uma espécie de desconstrução da música gravada, que, a partir de sua reutilização, é transformada e recriada. Assim, por trás da aparente superficialidade da prática de colocar discos para fazer as pessoas dançarem, está um processo criativo que expressa uma singular relação com a música e com a tecnologia. Para percebêla, entretanto, é imprescindível um olhar, ou uma escuta, interessados. O repúdio e o medo não nos permitem tal aproximação e, portanto, não auxiliam no estabelecimento de um diá- **** Não é unânime a opinião de que os DJs possam ser considerados de fato músicos. Daí a utilização das aspas. BOLETIM – PGM 4 23 ESCOLA E PRODUÇÃO logo com esta ou qualquer outra forma de produção cultural desconhecida ou distante de nosso mundo. Antes de exaltar ou combater, consideramos importante que estas produções – por sua relação com o consumo e pelo aspecto homogeneizante da cultura de massa – não sejam, de saída, tratadas como ilegítimas, isto é, esvaziadas de significado. Esta desqualificação tem como conseqüência um impedimento na interlocução não somente com tais formas de expressão, mas também com os sujeitos que delas participam. Com um olhar alheio e generalizante, torna-se impossível estabelecer qualquer intervenção, crítica legítima, ou qualquer tipo de interlocução. Este desafio se impõe e precisa ser enfrentado, sobretudo, por aqueles que atuam junto a crianças e adolescentes. A todo o momento, os mais jovens podem nos surpreender com formas inéditas de interação e percepção de seu cotidiano, do qual fazem parte objetos e práticas tão novos para nós quanto familiares para eles. Ignorar o que eles tenham a dizer só pode resultar no aumento da distância que nos separa, e, portanto, no empobrecimento da experiência de ambos os lados. Referências Bibliográficas ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1985. ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão na audição. In: Textos Escolhidos (Coleção Os Pensadores). São Paulo, Nova Cultural, 1999. _______________. Moda intemporal – Sobre o jazz. In: Prismas – crítica cultural e sociedade. São Paulo, Ática, 1998. BOLETIM – PGM 4 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL Benjamin, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994. ____________. Experiência e Pobreza. In: Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994. ____________.O Narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In: Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1994. COELHO, Luiz Antônio L. A repetição na cultura, In: Jobim e Souza, S. (org.) Mosaico: Imagens do Conhecimento. Rio de Janeiro, FAPERJ/Rios Ambiciosos, 2000. JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e Linguagem Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas, Papirus, 1994. _____________________. A Estética e a Psicologia. In: Psicologia Clínica. Pós-graduação e pesquisa. v.11, n.11. Rio de Janeiro, PUC-RJ/Departamento de Psicologia, 1999. KONDER, Leandro. Adorno e Benjamin. In: Jobim e Souza, S. (org.) Mosaico: Imagens do Conhecimento. Rio de Janeiro, FAPERJ/Rios Ambiciosos, 2000. LUZ, Rogério. O que é arte, hoje? In: Jobim e Souza, S. (org.). Mosaico: Imagens do Conhecimento. Rio de Janeiro, FAPERJ/Rios Ambiciosos, 2000. MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: o espírito do tempo II: neurose. vol. I. São Paulo, Forense, 1967. ___________.Cultura de Massas no Século XX: o espírito do tempo: necrose. vol. II: Necrose. São Paulo, Forense, 1986. 24 ESCOLA E PRODUÇÃO CULTURAL Entrando no jogo O ato de brincar, tão necessário à formação da criança, tem se alterado nas últimas décadas. O avanço tecnológico provocou modificações nos hábitos da sociedade, incluindo as formas de lazer; as crianças deixaram as brincadeiras de rua, passando a viver em espaços confinados, quer seja em apartamentos, quer seja em shopping centers. Elza Dias Pacheco, professora doutora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (1985, p.24), destaca muito bem o impacto causado pela televisão no mundo infantil: ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Apesar de ser ela (a televisão) um dos mais recentes meios de comunicação, através de seu fascínio magnético, invadiu, indiscriminadamente, todos os lares, transformando-se num elemento que, pela onipresença, ocupa as horas livres das crianças, impedindoas de se dedicarem a atividades participativas tais como os folguedos de outrora, onde a criança exercitava naturalmente todo o seu corpo e a sua imaginação. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Kazuko Kojima Higuchi 1 As brincadeiras desenvolvidas em espaços públicos: calçadas, ruas, praças e jardins proporcionavam às crianças viverem, segundo Edmir Perrotti (1991), “experiências de autonomia indispensáveis à realização de suas potencialidades criativas” e “abertura para as diferenças de todo tipo que estão na base de nossa constituição enquanto sociedade”. Com o desaparecimento desse espaço, “há um estímulo de fantasias consumistas compensatórias para consolar nossas crianças do vazio de relações socioculturais plenas. (...) A ilusão, porém, de que qualquer gadget2, qualquer objetozinho encantador, qualquer estrelinha de TV é capaz de distrair a atenção da infância, desviando-a de seu desejo maior – brincar, inventar livremente, participar da vida e dos riscos do mundo, compartilhar jogos e brincadeiras – poderá levar-nos num curto espaço de tempo aos impasses que o logro sempre impõe. Oferecer o consumo como prêmio de consolação à falta de participação ativa e criadora na vida cotidiana é com certeza tiro pela culatra, já que seu destino não é outro senão o do vácuo significativo, do não-senti- 1 Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada – USP. Professora da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo. 2 Termo em inglês que significa aparelho, invenção e, no sentido figurado, insignificância. Jean Baudrillard utiliza esse termo para designar objetos cujo valor simbólico está expresso em pessoas ou produtos que ganham status especial, ou seja, podem ser vendidos ou consumidos em larga escala, representando objeto de desejo dos consumidores. BOLETIM – PGM 5 25 ESCOLA E PRODUÇÃO do, do vazio de referências, da negação da cultura” (Perrotti, 1991, pp. 23-28). Com o desaparecimento do espaço público de lazer, as brincadeiras infantis tradicionais também foram desaparecendo. Parece que não sentimos muita falta delas; até esquecemos a riqueza de uma atividade em grupo, a importância da brincadeira pela brincadeira, não visando a nada imediato além do prazer compartilhado. Alguns pais colocam os filhos em escolinhas de futebol ou estimulam, precocemente, o lado fashion da filha visando à futura profissionalização, todavia não é bem este o caso, pois traz uma carga de obrigatoriedade: de acertos e de sucesso. As brincadeiras foram, paulatinamente, sendo substituídas por outras como os jogos eletrônicos, cards (cartões como os da Liga Pokémon) e os RPGs (Roleplaying Games), gerando mais críticas negativas do que aprovação por parte dos adultos. Será que essas atividades só apresentam aspectos negativos? Não seria o caso de nós, educadores, conhecermos um pouco mais o que está em jogo? Esses produtos culturais, embora apresentem características inovadoras, trazem estreita relação com a tradição oral, aproximando-se dos contos maravilhosos. Tanto no videogame como no RPG há uma aventura para ser vivida, motivada por uma busca (salvar uma princesa, matar um monstro, conquistar tesouros, enfim, vencer um desafio), tendo, como recurso, poderes extras (várias vidas, força descomunal) ou objetos mágicos, elementos da fantasia, extrapolando a vida real e limitada (e por isso tão interessante?). Elza Dias Pacheco (1998,pp.33-34) ressalta os jogos simbólicos como “fases transitórias de pensamento mágico e onipotente que levam a criança, por meio de repetições dos próprios atos ou jogos, a um pleno domínio de situações de medo, vivendo e convivendo simultaneamente com o real e o fantástico, ajudando a elaborar conflitos e angústiBOLETIM – PGM 5 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL as pelo uso dialético de perda e reparação. (...)É por meio dessa magia, desse fantástico, que a criança elabora suas perdas, materializa seus desejos, compartilha da vida animal, muda de tamanho, liberta-se da gravidade, fica invisível e, assim, comanda o universo por meio de sua onipotência. Dessa forma, ela realiza todos os seus desejos e as suas necessidades.” Essas considerações valem também para o adolescente e o adulto. A necessidade de ficção para alimentar o imaginário, aliviar tensões, encontrar respostas às dúvidas, viver experiências impossíveis de serem vividas no mundo real, rompendo com os limites do tempo e do espaço, são aspectos relevantes nas atividades lúdicas. Nos jogos citados, o participante interage intensamente com o mundo imaginário e virtual. E vai além, sua vivência não se esgota no indivíduo, há uma rede de troca de experiências que realimenta o prazer de jogar. Criase, assim, um círculo de iniciados que comentam os lances, trocam “dicas”, lêem revistas especializadas para se atualizarem e melhorarem seu desempenho. Os adolescentes passam, então, a fazer parte de “uma tribo” (conforme expressão utilizada por eles), afastando-se do isolamento e do individualismo tão comum na sociedade moderna. O que mais está em jogo? Além desse aspecto social, os novos produtos culturais favorecem o contato com novas tecnologias, o desenvolvimento da observação, a rapidez de raciocínio, a tomada de decisões, o conhecimento de outras realidades, referenciais ou virtuais. Nestes, como no caso dos jogos tradicionais, a questão do erro é vista sem a carga negativa; pode-se errar muitas e muitas vezes, mas não tem importância, porque o jogador dispõe de muitas vidas e sempre é possível reiniciar o jogo. Os insucessos são estímulos para continuar jogando, até ultrapassar as marcas alcançadas por ele ou por outro jogador. 26 ESCOLA E PRODUÇÃO No caso do RPG, como em todo jogo simbólico, a linguagem tem papel fundamental. Como bem destaca Edda Bomtempo (1999, p.64), baseada em Vygotsky, a linguagem e jogo simbólico “são expressões de um sistema mediado, no qual eventos internos, imagens ou palavras, servem para orientar e dirigir o comportamento” e, continua ela, “o jogo simbólico é um mecanismo comportamental que possibilita a transição de coisas como objetos de ação para coisas como objetos do pensamento”. À medida que o mestre vai narrando a história, os jogadores vão tomando decisões dando um encaminhamento ímpar, embora haja um esquema básico a ser seguido. Outros fatores como entonação de voz, expressão facial e corporal, adaptação de vestuário, canto, música, enriquecem o jogo de encenação. Muitas vezes, a sorte é decidida nos dados; são feitos cálculos de probabilidade, lançando dados de 4, 6, 8, 10 ou 12 lados. Em outros momentos, faz-se necessário utilizar o senso de direção e escolher o caminho certo, para o Norte ou para Leste; sendo fundamental a iniciação na leitura de mapas. Os jogos e brincadeiras, em geral, fazem visbumbrar uma rica gama de atividades envolvendo os diferentes códigos e linguagens: a expressão corporal (brincando de estátua), a linguagem verbal e musical (cantigas de roda), a instrucional (obediência a regras), vídeo, áudio ou multimídia (tecnologias da informação), para citar algumas. Há um consenso de que novos desafios se apresentam à escola tradicional, uma vez que a sociedade alterou-se: globalização e tecnologia são termos presentes. Os Parâmetros Curriculares Nacionais propõem o rompimento dos limites estanques das disciplinas, porque o conhecimento não é passível desse enquadramento, como deixava supor em outros momentos. Temas transversais, pluralidade cultural, interdisplinaridade, diferentes códigos e linguagens são aspectos que vêm BOLETIM – PGM 5 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL atualizar uma prática já em transformação, apontando para um ensino mais global. E nesse sentido, os jogos poderiam ser uma fonte a ser apropriada pela escola. Para sair do individualismo, tão comum nos dias atuais, precisamos conviver com outras pessoas, compartilhar experiências. É no contato com outras pessoas que as personalidades se desenvolvem, na ação e na reação que provocam. As brincadeiras tradicionais poderiam ser resgatadas e os novos jogos incorporados, constituindo-se a escola num espaço de interação cultural, onde o moderno e o velho integrassem um novo diálogo. Sugestão de atividades Fazer um levantamento com os alunos sobre as brincadeiras que conhecem. Posteriormente, intercambiar essa pesquisa pela Internet. Selecionar algumas para serem brincadas. Em grupo, escrever as regras de um jogo, apresentando-o à classe. Pode-se solicitar que um grupo descubra o jogo, através da leitura de algumas regras básicas. Criar novas regras aos jogos já existentes. Promover um campeonato. Por exemplo: Concurso de pipas. Muitas são as atividades possíveis: elaboração da ficha de inscrição, regulamento (quem se inscreve, quais são as modalidades: a maior, a menor, a que voa mais alto, a mais criativa), execução da pipa, dia do evento, premiação, relatório posterior, desenhos, pesquisa, elaboração de um jornal mural etc. Jogos de “faz-de-conta” e RPG: criação de personagens (nome, idade, atributos físicos e mentais, caracterização da família, da moradia, do bairro), representação plástica (desenho ou boneco), invenção da aventura, desafios a serem vencidos, criação de um espaço (mapa ou maquete). 27 ESCOLA E PRODUÇÃO Jogos eletrônicos: os objetivos do jogo, quais são os obstáculos a serem vencidos, como vencer. No caso do Mário Bros, por exemplo, elencar suas ações, relatar uma passagem, pedir para alguém imitá-lo, desenhá-lo, criar uma aventura envolvendo a personagem, criar uma história em quadrinhos. Questão a ser discutida: É possível desenvolver um projeto multidisciplinar a partir desses jogos? De que forma? Quais áreas/ disciplinas estariam envolvidas? Bibliografia BOMTEMPO, Edda. A brincadeira de faz-de-conta: lugar do simbolismo, da representação, do imaginário. In KISHIMOTO, Tizuko Morchida (org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo, Cortez, 1999. HIGUCHI, Kazuko Kojima. RPG: o resgate da história e do narrador. In: CITELLI, Adilson (org.). Outras linguagens na escola: Publicidade, Cinema e TV, Rádio, Jogos, Informática. São Paulo, Cortez, 2000. MARCATTO, Alfeu. Saindo do quadro. Editora independente, 1997. BOLETIM – PGM 5 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CULTURAL MIRANDA, José Luiz. Jogos interativos e cotidiano escolar. In: CITELLI, Adilson (org.). Aprender e ensinar com textos não escolares. São Paulo, Cortez, 1997. PACHECO, Elza Dias. Infância, cotidiano e imaginário no terceiro milênio: dos folguedos infantis à diversão digitalizada. 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Professora da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo. 28 Presidente da República Fernando Henrique Cardoso Ministro da Educação Paulo Renato Souza Secretário de Educação a Distância Pedro Paulo Poppovic MEC Secretaria de Educação a Distância Programa TV Escola – Salto para o Futuro Diretora de Planejamento e Desenvolvimento de Projetos Carmen Moreira de Castro Neves Coordenadora-Geral de Planejamento e Desenvolvimento de Educação a Distância Tânia Maria Magalhães Castro Diretor de Produção e Divulgação de Programas Educativos Antonio Augusto Silva Coordenadora-Geral de Material Didático-Pedagógico Vera Maria Arantes Associação de Comunicação Educativa Roquette-Pinto - ACERP Supervisora Pedagógica Rosa Helena Mendonça Consultoria Pedagógica Rita Marisa Ribes Pereira Coordenadoras de Utilização e Avaliação Mônica Mufarrej e Leila Atta Abrahão Copidesque e Revisão Magda Frediani Martins Programadora Visual Norma Massa e.mail: [email protected] Abril de 2001 29