Scintilla vol. 4, n.2
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Scintilla vol. 4, n.2
PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... SCINTILLA Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 1 MARCO BARTOLI 2 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... SCINTILLA REVIST A DE FIL OSOFIA E MÍSTICA MEDIEV AL REVISTA FILOSOFIA MEDIEVAL ISSN 1806-6526 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-214, jul./dez. 2007 Instituto de Filosofia São Boaventura – FFSB Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval - SBFM Curitiba PR 2007 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 3 MARCO BARTOLI Copyright © 2004 by autores Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Centro Universitário Franciscano do Paraná IFSB – Instituto de Filosofia São Boaventura SBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval NPA – Núcleo de Pesquisa Acadêmica (Área de Filosofia medieval e pensamento franciscano) Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ) Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR E-mail: [email protected] ou [email protected] Reitor: Nelson José Hillesheim Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo Resende Diretor: Vicente Keller Editor: Enio Paulo Giachini a) Comissão editorial Dr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJ Dr. Orlando Bernardi, IFAN Dr. Luiz Alberto de Boni, PUCRS Dr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFG Dr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSC Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP) Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina) Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia) Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP) Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España) Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College Estocolmo (Suécia) Dr. Ulrich Steiner, FFSB Dr. Jaime Spengler, FFSB Dr. João Mannes, FFSB b) Conselho editorial Dr. Vagner Sassi, FFSB Dr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEG Dra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJR Dr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PR Dr. Joel Alves de Souza, UFPR Dr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ Dr. Hermógenes Harada Revisão e editoração: Enio Paulo Giachini Diagramação: Sheila Roque Capa: Luzia Sanches Catalogação na fonte Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário Franciscano, v.1, n.1, 2004Semestral ISSN 1806-6526 1. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos. 3. Mística – Periódicos. CDD (20. ed.) 105 189 189.5 4 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... SUMÁRIO EDITORIAL ......................................................................................7 ARTIGOS .........................................................................................9 Pietro di Giovanni Olivi e la sanctorum communio: Riflessione spirituale o modello di economia politica? .....11 Marco Bartoli Pietro di Giovanni Olivi e la libertà della volontà, tra metafisica e filosofia politica ............................................33 Luca Parisoli A trajetória e a obra de Pedro de João Olivi (c.1248-1298): fundamentos para a elaboração do pensamento franciscano ..................................................75 Profa. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães “Cristo nosso Sal” – a participatio em Tomás de Aquino .....................................................................109 Jean Lauand I filosofi nel tempo e le età della filosofia – L’apporto del medioevo alla periodizzazione storico-filosofica .............125 Gregorio Piaia Hermenêutica cristã da temporalidade e historicidade: polifonia interpretativa – do novo testamento a Pedro de João Olivi .....................................................................137 Marcos Aurélio Fernandes Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 5 MARCO BARTOLI COMENTÁRIOS ................................................................................175 Acerca do livre arbítrio ..................................................177 Fr. Hermógenes Harada Fazer a vontade de Deus e o Beato frei Egídio de Assis ..189 Fr. Hermógenes Harada TRADUÇÕES ...................................................................................197 Acerca da liberdade da vontade .....................................199 Pedro de João Olivi O Senhor Deus produziu todo tipo de árvores de bela aparência e boas para se comer ......................................207 Mestre Eckhart 6 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... EDITORIAL Enio Paulo Giachini Era nossa intenção dedicar um número completo de Scintilla ao franciscano dos primórios da Ordem, Pedro de João Olivi. Foi com dificuldade que conseguimos reunir alguns preciosos textos a seu respeito. Tomamos como tarefa deixar espaço aberto para novas contribuições em números subseqüentes. Olivi foi um pensador dos primórdios do movimento franciscano (1248-1298), do veio dos espirituais, que tomou o vulto de grande liderança espiritual em seu tempo. P. de J. Olivi, Ângelo Clareno (1247-1337) e Ubertino de Casale (1259-c.1328) “reuniram em torno de si, na Itália do Norte e Central e na França meridional não só religiosos mas uma infinidade de leigos, chamados na Itália de bizochi e na França de béguins”. Foi um homem que se empenhou de pleno coração na vida de sua época e comunidades. Sua leitura da realidade também passava pela ausculta dos tempos. Por isso, também foi grande seguidor do pensar de Joaquim de Fiore (1135-1202). No pai Francisco e na autêntica Ordem franciscana, via o início de uma nova era para a Igreja e para o mundo, a era da graça e do Espírito. A revista reuniu cinco contribuições sobre o Olivi. Marco Bartoli escreve sobre a Sanctorum communio; Luca Parisoli, sobre a liberdade da vontade; Ana P.T. Magalhães, sobre a trajetória de seu pensamento nas relações com o início do pensar franciscano; Marcos A. Fernandes, sobre a hermenêutica da temporalidade e Frei Harada sobre, o livre arbítrio. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 7 EM NIO PAULO GIACHINI ARCO BARTOLI A revista traz ainda duas contribuições não diretamente referidas ao tema mas provocativas: Jean Lauand apresenta a parábola de Cristo como Sal, e Gregório Piaia, a contribuição da alta Idade Média para a periodização da filosofia. 8 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... ARTIGOS Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 9 MARCO BARTOLI 10 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO: RIFLESSIONE SPIRITUALE O MODELLO DI ECONOMIA POLITICA?* Marco Bartoli (Libera Università “Maria SS. Assunta” di Roma bartoli@lumsa,it) “Il ‘tesoro dei meriti’ è l’amore di Dio che ha fondato la comunità in Cristo, e nient’altro. La dottrina cattolica del thesaurus è una razionalizzazione, moralizzazione e umanizzazione del dato di fatto irrazionale, cioè che l’uomo non può fare mai più di quello che deve, e che tuttavia nella comunità di Dio ciascuno fa ‘godere’ l’altro; ciò ha a sua volta il fondamento nel fatto che Cristo è morto per la comunità, affinché essa conducesse una sola vita basata sullo scambio e sulla dedizione reciproci.” 1 Con queste parole Dietrich Bonhoeffer, nella sua tesi di dottorato dedicata alla Sanctorum Communio del 1927, sintetizzava la sua acuta * Il presente articolo è la riproduzione di una relazione tenuta al Convegno su “Escatologia, aldilà, purgatorio, culto dei morti”, tenutosi a Tolentino, Italia, dal 26-28 ottobre 2005. 1. D. BONHOEFFER. Sanctorum Communio. Eine dogmatische Untersuchung zur Soziologie der Kirche, Berlin, 1930, 2 ed. München, 1969, trad. it. Roma-Brescia, 1972, pp. 132-133. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 11 MARCO BARTOLI rilettura di una dottrina, che pure non aveva cessato di suscitare polemiche tra le diverse confessioni cristiane2 . Per il pastore della chiesa confessante questo “scambio e dedizione reciproci” assumono valenze assolutamente centrali per ogni ecclesiologia. E’ infatti a partire dalla Sanctorum Communio che si comprende, ad esempio, il valore della preghiera di intercessione: « Nel mio rapporto isolato con Dio viene introdotto un terzo elemento –dice Bonhoeffer: nell’intercessione, io mi metto al posto dell’altro, ed in tal modo la mia preghiera rimane mia, ma è recitata partendo dal bisogno e dall’angoscia dell’altro; io entro veramente nell’altro, nella sua colpa e nella sua angoscia, e vengo colpito dai suoi peccati e dalle sue debolezze3 . » Il cosiddetto “Simbolo degli Apostoli”, ancora oggi proclamato nel corso delle celebrazioni liturgiche festive della Chiesa cattolica, recita: “Credo nello Spirito Santo La santa Chiesa cattolica, la comunione dei santi, la remissione dei peccati, la resurrezione della carne la vita eterna.” In realtà, come è noto, il Simbolo di Nicea (325) e di Costantinopoli (381), che il concilio di Efeso (431) vietava di modificare, recitava in modo diverso, dicendo: “Credo la Chiesa, una santa, cattolica e apostolica, confesso un solo battesimo per la remissione dei peccati e attendo la resurrezione dei morti e la vita del mondo che verrà.” 2. Lo stesso Bonhoeffer si era chiesto: “Solo perché la comunità conduce per così dire una sola vita in Cristo, il cristiano può dire che la castità di altri l’aiuta nelle tentazioni della concupiscenza, che la preghiera degli altri può essere offerta per lui e che egli può trarre vantaggio dal digiuno altrui. Ma a questo punto non ci avviciniamo forse pericolosamente alla dottrina cattolica del thesaurus, che sta al centro di tutte le recenti concezioni cattoliche attorno alla sanctorum communio?”: Idem, p. 132. 3. Ibid., p. 136. 12 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... Non vi era cioè nessun accenno alla “communio sanctorum”. Certo si può sostenere che i Padri abbiano conosciuto questa dottrina, anche senza utilizzare necessariamente l’espressione. Si può far riferimento ad esempio alla teologia di Agostino4 o di Girolamo5 , anche se in questi Padri ancora non compare l’espressione Communio sanctorum. Il primo documento che attesti la formula comunione dei santi è probabilmente una Spiegazione del Simbolo, il cui autore sarebbe Niceta, vescovo di Remesiana del V secolo (amico di Paolino di Nola), che dice: “Dopo aver professato la Beata Trinità, professa adesso la tua fede verso la santa Chiesa cattolica. Ora, la Chiesa è forse altra cosa che la Congregazione di tutti i santi? In effetti dall’origine del mondo, patriarchi… profeti, apostoli, martiri, tutti gli altri giusti… sono una chiesa sola; perché, santificati dalla fede comune e dalla vita comune, segnati da un solo Spirito, essi sono diventati un solo corpo, e di questo corpo il capo è Cristo, come attesta la Scrittura. E dico inoltre che anche gli angeli e anche le virtù dei cieli e le potenze sono confederate in questa unica chiesa… Dunque, in questa unica chiesa, credi che otterrai la comunione dei santi. Sappi così che 4. D. Bonhoeffer ha sottolineato come «è stata la grande concezione di Agostino quella di rappresentare la comunione dei santi, il nucleo della chiesa, come la comunione degli esseri pervasi dall’amore, che, toccati dallo Spirito di Dio, irradiano amore e grazia. Il perdono dei peccati non lo dà la chiesa organizzata, né il ministero ufficiale, ma la comunione dei santi. Chi ha ricevuto i sacramenti, deve solo essere inserito in questa corrente spirituale di vita; tutto ciò che è stato promesso alla chiesa è promesso alla comunione dei santi, la quale ha il potere spirituale di aprire e di chiudere, di legare e di sciogliere e può rimettere i peccati; è solo per opera sua che tutto ciò che intraprende la chiesa ufficiale ha in sé lo Spirito di Dio. Con questo si ha il modello di tutte le idee sulla sanctorum communio.» D. BONHOEFFER, Sanctorum communio, p. 125-126; che cita AGOSTINO, De baptismo contra Donatistas, V, 21, 29: «Sacramentum gratiae dat Deus etiam per malos, ipsam vero gratiam non nisi per se ipsum vel per sanctos suos. 5. D. BONHOEFFER, Sanctorum communio, p. 83, n.1. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 13 MARCO BARTOLI questa chiesa cattolica è unica, stabilita su tutta la terra, e di essa tu devi fermamente custodire la comunione”6 . Quasi contemporaneamente si registra la stessa espressione in un piccolo trattato De Spiritu Sancto di Fausto di Riez, morto nel 4957 ; ed anche in un altro trattato falsamente attribuito ad Agostino, Sulla fede del Simbolo e i buoni costumi8 si parla ancora della communio sanctorum. Per lungo tempo però il tema rimase per così dire sullo sfondo ed i teologi alto medievali vi dedicarono scarso interesse. I primi tentativi di una sistematizzazione della dottrina si ritrovano in Bernardo da Chiaravalle 9 , ma anche Anselmo ne parla in un’omelia10 , mentre Abelardo mostra di avere ancora una concezione fluttuante dell’espressione Communio sanctorum11 ed Ugo di San Vittore si rifà ancora essenzialmente alla lex orandi, che vede nella santa liturgia il momento più intimo di comunione tra chiesa visibile e chiesa invisibile.12 6. Cfr. PL 52, 871. 7. FAUSTO DI RIEZ, De Spiritu Sancto, l. I, c. II ; in PL 62, 9-40: “Gli articoli che seguono nel Simbolo il nome del Santo Spirito, appartengono alla sua conclusione: che noi crediamo alla santa Chiesa, la comunione dei santi, la remissione dei peccati, la resurrezione della carne, la vita eterna”. 8. PL 39, 2189, nn. 240-244. 9. “Spiritum Sanctum, sanctorum communionem, ut… sanctorum comunione, nostra insufficientia suppleatur. Si enim in sanctis dilexerimus Deum et ipsi pro suorum exigentia meritorum nobis communicabunt beatitudinem apud Deum” BERNARDUS CLARAVALLENSIS, Tractatus de charitate, al c. XXXIII, PL 184, col. 633. Cf. anche Serm. In Cant., serm. 53, PL 183, col. 1037. 10. ANSELMO D’AOSTA, Homiliae et exortationes, hom. I, in PL 108, col. 587-589. 11. P. BERNARD, Communion des saints, in Dictionnaire de théologie catholique, f. XIX, Paris, 1910,col. 444. 12. UGO DI SAN VITTORE, De sacramentis, l. II, part. XVI, c. X, PL 176, col. 594: In illo Jesu mysterio angelorum choros adesse, summis ima sociali, terrena coelestibus jungi, unum quoque ex visibilibus fieri. 14 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... In ogni caso è Pietro Lombardo a fissare per sempre (nella tradizione cattolica) la dottrina dei meriti dei santi; soprattutto è da notare la distinzione 45ma del quarto libro, nella quale il Magister affronta il tema dei suffragi dei defunti, arrivando a formulare l’espressione merita eorum nobis suffragantur 13 . Anche dopo la redazione del Libro delle Sentenze però la dottrina rimase per così dire fluttuante. Per Alberto Magno la Communio sanctorum è la comunicazione dei beni di tutti i santi, operata individualmente dallo Spirito che santifica.14 Alessandro di Hales da un lato interpreta la communio sanctorum come partecipazione ai sacramenti, che conferisce il perdono dei peccati, dall’altro come la forza dell’unità di tutti coloro che sono membra del corpo di Cristo.15 Tommaso d’Aquino invece preferisce interpretare l’espressione communio sanctorum come un sostantivo neutro, per cui, a suo avviso, si tratta della comunione dei beni nella chiesa.16 Affermando però il principio, secondo il quale, poiché tutti i fedeli costituiscono un solo corpo, il bene dell’uno si comunica all’altro.17 13. Sent., lib. IV, dist. 45, c. 6, n. 6, in PL 192, col. 950 [ed. Quaracchi, vol. II, p. 529]. 14. “non enim potest fieri communio sanctorum in bonis nisi per Spiritum Sanctum totum corpus mysticum unientem et vivificantem”. ALBERTUS MAGNUS, In IV Sent., l. III, dist. 24, q. 1, Paris, 1894, t. 15, p. 256. 15. “Vel credo quod unitas Ecclesiae tanta est, quod unusquisque qui membrum est, particeps est omnium quae sunt totius corporis… Tanta igitur virtus unitatis, quod quum sit particeps Christi, humiliter dicitur particeps famulorum Christi.” 16. “Unde et inter alia credenda quae tradiderunt apostoli, est quod communio bonorum sit in ecclesia; et hoc est quod dicitur sanctorum communionem”: Thom, Expositio in symbolum apostolorum, a. 10. 17. “Quia omnes fideles unum sunt corpus, bonum unius alteri communicatur”: idem. Vedi anche Summa Theologiae, II-III, 83, a. 11; e Supplementum, s. q. 13, a. 2; ed infine In IV Sent., dist. 20, q. unica, a. 2, quaestiunc. 3. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 15 MARCO BARTOLI In ogni caso è nel corso del XIII secolo che la dottrina sulla sanctorum communio si lega strettamente all’idea della speciale relazione che unisce la chiesa militante, purgante e trionfante. Contribuisce a tale evoluzione l’affermarsi della pratica delle indulgenze, che, a partire dalle crociate, conosce una sempre più larga affermazione in diversi contesti, fino ad arrivare alla grande celebrazione del giubileo nell’anno 1300; sono gli anni della piena affermazione della dottrina del Purgatorio come luogo intermedio dell’al di là18 . Il maestro che forse più di ogni altro ha contribuito all’affermazione della dottrina della sanctorum communio come reciproca intercessione tra i santi della terra, del cielo e del purgatorio è secondo il parere di alcuni, Bonaventura. Così il p. Bernard, in un articolo sul Dictionnaire de théologie catholique del 1910, identificava otto punti tratti dal Commento al IV libro delle Sentenze, in cui Bonaventura avrebbe trattato della communio sanctorum. Al di là del modo un po’ artificioso con cui il p. Bernard ha ricostruito la teologia della communio sanctorum in Bonaventura a partire da passi che in realtà sono disomogenei, non vi è dubbio che il dottore serafico abbia sottolineato con particolare vigore l’importanza della comunione spirituale nel corpo mistico della Chiesa. E’ questo il caso, ad esempio, della prima questione del suo commento alla ventesima distinzione del IV libro delle Sentenze, intitolata «Utrum unus pro alio possit satisfacere». Gli argomenti “quod sic” si aprono con un passo della lettera ai Galati, che dice: « Alter alterius onera portate» «portate gli uni i pesi degli altri»; il commento di Bonaventura è che “i pesi da portare sono innanzitutto quelli spirituali, perciò, se a qualcuno è stata imposta una penitenza grave, è evidente che un altro può portare una parte o anche tutto il peso di tale penitenza. Ed inoltre nella 18. Si fa riferimento, ovviamente, al saggio di J. Le Goff, La nascita del Purgatorio. 16 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... lettera si dice che « il peso della penitenza può essere sollevato con le preghiere degli amici o l’elargizione di elemosine» e qui si parla di colui che è gravemente malato.”19 Bonaventura ha una sensibilità acuta per questa mutua dilezione tra i membri del corpo ecclesiale, come si vede dall’argumentum successivo, che si basa sulla esperienza diretta: « Inoltre, che ciò sia vero appare dalla ragione, anzitutto attraverso la similitudine con le cose naturali. Vediamo infatti in qualsiasi corpo di animale che un membro si espone per un altro, per sopportare un colpo o una ferita al suo posto, e così un braccio si alza in difesa del capo; se dunque nel corpo mistico vi è una connessione paragonabile a quella del corpo naturale, è evidente che, in maniera simile, un membro può e deve sostenere il peso di un altro»20 . Ora tutti questi argomenti sono strettamente legati, in Bonaventura, alla riflessione sul Purgatorio e sul valore delle indulgenze. La comunione dei santi non conosce i limiti imposti dalla morte, ma si estende a coloro che attendono il giudizio, per i quali è possibile intercedere e lucrare indulgenze21 . Tutte queste riflessioni sono a loro 19. «Quaeritur igitur primo, utrum possit fieri satisfactionis commutatio, et hoc est quaestionis fundamentum, scilicet, utrum unus pro alio satisfaciat. Et quod sic, videtur. Ad Galatas sexto: Alter alterius onera portate; sed onera, quae maxime sunt portanda, sunt onera spiritualia, ergo si alicui imposita est ponitentia gravis, videtur quod aliquis partem vel totum possit pro eo portare. Item, in littera dicitur: “Amicorum orationibus et eleemosynarum largitionibus pondus poenitentiae sublevandum est”; loquitur de eo qui graviter infirmatur.» 20. «Item, hoc videtur per rationem, primo per simile in rebus naturalibus. Videmus enim in aliquo corpore animalis, quod unum membrum se exponit, ut sustineat laesionem et gravamen alterius, sicut patet, quod brachium se exponit pro capite; si ergo in corpore mystico est connexio per assimilationem ad corpus naturale, videtur similiter, quod unum membrum onus alterius possit et debeat supportare.» 21. BONAVENTURA DA BAGNOREGIO, In IV Senten., Dist. XX, vol. IV, Quaracchi, 1889, p. 538: “Dico igitur, quod quia bona et thesaurus Ecclesiae est in Summi Pontificis potestate, et illi qui sunt in Purgatorio, ratione caritatis idonei sunt spiritualia beneficia recipere, quod papa potest eis bona Ecclesiae communicare”. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 17 MARCO BARTOLI volta intrecciate con un’ecclesiologia centrata sulla figura del papa, perché la dottrina delle indulgenze appare strettamente connessa con quella sulla plenitudo potestatis. Alla domanda «Utrum indulgentiae tantum valeant, quantum predicatur» che risponde evidentemente a dubbi correnti circa la possibilità di stabilire il valore da attribuire alle indulgenze, Bonaventura argomenta dicendo che «come ogni vescovo può concedere qualche indulgenza, ad esempio di 20 o 40 giorni, il Sommo Pontefice, che può più di tutti i vescovi, perché ha la pienezza del potere (plenitudinem potestatis) su tutti, può dare più di tutti gli altri e perciò può condonare tutto, e se tutto, anche qualsiasi parte del tutto»22 . Alla fine del XIII secolo la dottrina della sanctorum communio entra così a far parte della riflessione teologica della Chiesa cattolica; dopo Bonaventura e Tommaso praticamente tutti i grandi maestri torneranno sull’argomento.23 Parallelamente, mentre i teologi sviluppavano il tema della communio sanctorum, i giuristi furono attratti soprattutto dal tema delle indulgenze.24 Tra tutti i maestri che hanno dedicato attenzione a questa dottrina merita però particolare attenzione un discepolo diretto di Bonaventura: Pietro di Giovanni Olivi. E’ merito di Ovidio Capitani l’aver messo in relazione l’elaborazione e la formalizzazione della dottrina 22. «Item, aliquis episcopus potest aliquantam indulgentiam facere, esto quod viginti dierum, vel quadraginta; sed Summus Pontifex plus potest quam omnes episcopi, eo quod plenitudinem habet potestatis super omnes: ergo plus potest dare quam omnes: ergo videtur quod totum possit condonare: ergo si totum, et per consequens quantamlibet partem.», lib. IV, dist. 20, p. 2, a. 1, q. 6. 23. PIETRO DI TARANTASIA, In IV Sent., lib. III, dist. 25, q. 2, a. 2; RICCARDO DI MIDDLETOWN, In IV Sent., lib. III, dist. 25, a. 1, q. 2; DUNS SCOTO, In IV Sent., lib. IV, dist. 45, q. 4, a. 2; EGIDIO ROMANO, In IV Sent., lib. III, dist. 23, p. 2, q.1. 24. Si può ricordare ad esempio il tema dell’indulgenza legata al pellegrinaggio presso una chiesa. 18 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... della communio sanctorum con il pensiero teologico del maestro provenzale. Diceva Capitani: “la crociata, per le indulgenze plenarie, le dediche di chiese e di altri edifici pubblici o di pubblica utilità, in altri casi, sono nel tempo degli uomini: di tutti gli uomini. Ma “circa finem temporis ecclesiastici”– come ricorda l’Olivi– l’indulgenza assume un valore del tutto particolare: è motivata da se stessa “nichilominus valde congrua apparet… L’indulgenza ha un senso non aritmetico, non procedurale, ma escatologico”. 25 E’ chiaro che Capitani faceva riferimento qui soprattutto alla quaestio de indulgentia Portiunculae che era stata edita dal p. Péano. Dopo il 1986 l’interesse verso le opere di Pietro di Giovanni Olivi ha prodotto tra l’altro una serie di edizioni critiche, che hanno permesso di valutare appieno l’importanza del maestro provenzale nella storia del pensiero del tardo medioevo. Lo stesso Capitani, insieme a diversi altri, ha successivamente messo in rilievo, ad esempio, il ruolo del tutto specifico di Olivi nell’elaborazione di una coerente dottrina teologica in materia economica. Il maestro francescano appare essere il più sistematico interprete della nuova sensibilità minoritica nei confronti del vissuto socio economico delle città italiane e provenzali del suo tempo. L’edizione relativamente recente delle questiones de quodlibet consente di farsi un’idea piuttosto precisa di come il pensatore provenzale entrasse nelle problematiche anche più concrete della vita associata del suo tempo. In altra occasione mi sono occupato di alcune di queste questioni relative al tema del giuramento, in questo caso mi sembrano interessanti due quaestiones del IV Quodlibet: la quarta, relativa ad 25. O. CAPITANI, L’indulgenza come espressione teologica della “communio sanctorum” e nella formazione della dottrina canonistica, in Indulgenza nel medioevo e perdonanza di papa Celestino. Atti del Convegno storico internazionale, l’Aquila 5-6 ottobre 1984, L’Aquila, 1987, p. 29. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 19 MARCO BARTOLI una compravendita di luoghi di sepoltura a cui ci si impegna con giuramento (il problema però trattato da Olivi in questa quaestio più che quello relativo alla comunione tra i santi ed i defunti è quello relativo al giuramento, che sarebbe inficiato nel caso si trattasse di simonia) e la 22, in cui ci si pone la domanda An missa, a malo sacerdote celebrata, tantum prosit animabus quantum celebrata a bono. Il tema era piuttosto comune presso i teologi del tempo e lo si ritrova, ad esempio, affrontato da Raymond de Peñafort nella sua Summa, lib. III, tit. XXXIV, in cui si cita l’opinione di alcuni eretici che citavano il passo evangelico peccatores non exaudit Deus [Gv 9,31], e si dà la solutio 26 . Il dibattito sul potere di assolvere e sul valore dei sacramenti risale, come è noto, alla riforma gregoriana, durante la quale diversi eretici avevano messo in dubbio l’efficacia del suffragio di una messa celebrata da un sacerdote indegno. La quaestio di gran lunga più interessante, per il nostro tema, si trova all’interno di un trattato De novissimis, che, come ha mostrato Pietro Maranesi, venne in seguito inserito nel codice Vaticano 4986, per formare l’ultima parte della Summa Quaestionum super IV Sententiarum.27 La quaestio va datata, secondo Silvain Piron, verso il 1293-94, quando Olivi ormai risiedeva a Narbonne ed aveva superato le lunge traversie della sua vita. Il titolo della quaestio, che è la n. 13 nell’edizione Maranesi, è il seguente: Queritur an sufragia vivorum vel indulgentie papales prosint spiritibus defunctorum. 26. RAYMOND DE PEÑAFORT nella sua Summa, lib. III, tit. XXXIV, ed. Vaticana, p. 456. 27. PETRI IOHANNIS OLIVI Quaestiones de novissimis. Ex Summa super IV Sententiarum, curavit et edidit Petrus Maranesi, Ad Claras Aquas, Grottaferrata (Roma), 2004. 20 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... E’ chiaro che il tema qui affrontato tocca solo metà del percorso della communio sanctorum, cioè la forza di intercessione dei vivi per i defunti, senza fare accenno alla forza dei meriti dei santi in favore dei viventi. Ciò nonostante si tratta di una delle più chiare esposizioni della dottrina sulla communio sanctorum alla fine del XIII secolo. La quaestio presenta anzitutto i 7 argomenti in contrario, secondo i quali le preghiere dei vivi e le indulgenze dei papi non possono essere di giovamento ai defunti. Questi argomenti sono i seguenti: “Primo perché, per la stessa ragione per la quale gli spiriti dei defunti non possono più acquisire meriti per loro stessi, anche altri non possono acquisire meriti per loro. O, al contrario, se altri possono acquisire meriti per loro, appare più ragionevole che essi stessi possano acquistar meriti per loro. Secondo, perché la potestà del prelato non si estende se non ai suoi sudditi, ovvero a quelli che sono sotto la sua gerarchia. Ma gli spiriti dei defunti sono al di fuori dello stato di ogni nostra gerarchia ecclesiastica e non sono soggetti alla potestà dei pontefici di questa vita, perciò nessuna autorità di questi si estende fino a quelli. Terzo, perché quegli spiriti non sono suscettibili ai nostri sacramenti, la potestà ecclesiastica d’altra parte opera attraverso i sacramenti e attraverso il merito di Cristo che si manifesta negli stessi sacramenti. Quarto, perché non si deve porre nulla nell’ordine divino che dissolva in tutto o in parte l’ordine della giustizia di Dio e degli stati solennemente ordinati da Dio; ma, se attraverso i suffragi dei vivi e le indulgenze dei papi possono essere rimesse in tutto o in parte le pene soddisfattorie o purgatorie, allora si toglierebbe del tutto o in parte la giustizia della dovuta soddisfazione e lo stato di soddisfazione. Quinto, poiché, se in tal modo si potrà rimettere tutta la pena a quelli, per la stessa ragione si potrà rimettere tutta la pena, con gli stessi modi, ai penitenti in questa vita; il ché sarebbe un evidente incentivo al peccato, e sarebbe gravemente nocivo per la fruttuosa disciplina e penitenza e l’acquisizione dei meriti. Sesto, perché i nostri meriti appena sono sufficienti a noi e tutte le nostre opere buone sono sufficienti e saranno ricompensate a noi Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 21 MARCO BARTOLI nella gloria, non sembra possibile che oltre a ciò possano aiutare altri ed essere date ad altri, e se fosse possibile che al di là delle cose, che sono totalmente mie e totalmente mi saranno ricompensate, esse possano essere comunicate ad un altro, allora per la stessa ragione potrebbero essere comunicate ad infinite persone, secondo quel principio per il quale diciamo che se il corpo potesse essere in due luoghi allora per questa ragione potrebbe essere in infiniti luoghi. Settimo, perché, o i nostri suffragi varranno di più per i migliori tra loro, oppure varranno per quelli per i quali noi lo desideriamo, anche se sono meno buoni: se varranno per i migliori allora sarà frustrata la nostra intenzione e invano noi la applichiamo ad alcuni di loro; se invece varranno per i meno buoni, per i quali più lo desideriamo, allora sarebbe confuso l’ordine della giustizia e della grazia di Dio, secondo il quale i benefici maggiori vanno spesi e procurati per quelli che sono più degni e migliori.”28 28. «Primo, quia qua ratione spiritus defunctorum non possunt sibi ipsis de novo mereri, videtur quod nec alii possunt eis mereri. Aut e contra, si alii possunt eis mereri, rationabilius videtur quod ipsi debeant posse sibi ipsis mereri. Secundo, quia potestas prelati non se extendit nisi ad suos subditos, nec nisi ad eos qui sunt in statu sue ierarchie. Sed spiritus defunctorum sunt extra statum totius nostre ecclesiastice ierarchie, nec sunt subditi potestati pontifìcum huius vite, ergo nulla potestas istorum se extendit ad illos. Tertio, quia spiritus illi non sunt susceptibiles sacramentorum nostrorum, potestas autem ecclesiastica operatur per intermedia sacramenta et per meritum Christi ut eisdem sacramentis assistit. Quarto, quia nichil est in ordine divino ponendum quod totaliter vel partialiter dissolvit ordinem iusticie Dei et statuum solempniter ordinatorum a Deo; sed si per vivorum suffragia et per papales indulgentias possunt pene purgatorie aut satisfactorie in toto vel in parte remitti, tunc iusticia debite satisfactionis et status satisfactorii tollerentur totaliter vel in parte. Quinto, quia qua ratione posset illis per hos modos tota pena remitti, eadem ratione et multo maiori posset per eosdem modos tota remitti penitentibus huius vite; quod utique esset incentivum peccandi, et fructuose discipline et penitentie et meritorum acquisitioni valde nocivum. Sexto, quia cum nostra merita vix nobis suffìciant et omnia nostra bona opera suffìcient et remunerentur nobis in gloria, non videtur quod ultra hoc possint alios adiuvare aut aliis dari; et qua ratione, preter hoc quod sunt totaliter mea in me totaliter remuneranda, possunt alteri communicari, eadem ratione possunt et infìnitis, iuxta quod et dicimus quod qua ratione corpus posset esse in duobus locis eadem ratione et in infìnitis. Septimo, quia aut suffragia nostra plus valebunt melioribus eorum, aut illis pro quibus magis 22 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... Nella risposta Olivi consente di spiegare il legame della dottrina della communio sanctorum con quella relativa al purgatorio. Dice infatti: [Rispondo] dicendo che la solenne professione [di fede] di tutta la chiesa cattolica ritiene con certezza che le cose predette possono giovare agli spiriti buoni dei defunti non ancora beati, ma non agli spiriti dei dannati o dei beati.29 E qui riprende la dottrina classica già esposta da Pietro Lombardo: Di certo non quelli dei dannati, sia perché sono separati da ogni vincolo e comunione dei santi e di carità e di grazia eternamente ed irrevocabilmente; sia perché per la stessa ragione per la quale i suffragi ecclesiastici otterrebbero loro la remissione di una certa pena, per la stessa ragione potrebbe essere rimessa una pena maggiore, dal che deriverebbe che tutta la loro pena potrebbe essere del tutto rimessa, il ché è contro la giustizia e l’immutabile sentenza del giudizio che Dio ha dato su di loro. Ma nemmeno quelli dei beati, perché essi non hanno bisogno del nostro aiuto, anzi siamo noi piuttosto ad aver bisogno del loro aiuto, e la loro gerarchia è nei confronti della nostra come una [gerarchia] superiore ad una inferiore e una madre verso la figlia e una beata verso una misera, e come un’avvocata e una mediatrice per i rei o per i miseri che hanno bisogno di intercessori. E tuttavia, in quanto tutti i meriti degli inferiori ritornano in gloria dei superiori e dei beati, si può dire bene che la loro gloria cresca per i meriti dei fedeli in questa vita. Agli spiriti dei defunti che si stanno purificando invece [tutte queste cose] giovano e possono giovare, sia perché c’è il vincolo e la comunione di grazia e di carità tra loro e i santi in questa vita; sia perché sono bisognosi d’aiuto e, attraverso la carità che attraverso intendimus quamvis minus bonis: si plus melioribus, ergo frustratur intentio nostra et frustra eam alicui eorum appropriamus; si vero minus bonis, pro quibus magis intendimus, tunc confunditur ordo iustitie et gratie Dei, secundum quem dignioribus et melioribus sunt malora beneficia impendenda et procurando.», PETRI IOHANNIS OLIVI, Quaestiones de novissimis ex Summa super IV Sententiarum, ed. P. Maranesi, Grottaferrata, 2004, p. 183-184. 29. «[II. Respondeo] Dicendum quod sollempnis professio totius ecclesie catholice certudinaliter tenet bonos spiritus defunctorum nondum beatos per predicta iuvari, non autem spiritus dampnatorum nec beatorum». Ibid. p. 184. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 23 MARCO BARTOLI i buoni meriti, che ebbero mentre vivevano qui, non solo possono ricevere aiuti superiori e caritatevoli, ma anche sono degni di essere aiutati sia dai santi di questa vita che dai beati.30 E’ proprio perché la dottrina della communio sanctorum si riferisce in particolare alla speciale relazione di grazia che lega i fedeli viventi ai fedeli defunti non ancora beati31 , che la formalizzazione di tale dottrina non appare prima del XIII secolo inoltrato quando ormai l’idea del purgatorio 30. «Dampnatorum quidem non: tum quia ab omni nexu et communione sanctorum et caritatis et gratie sunt etemaliter et irrevocabiliter separati; tum quia qua ratione posset per ecclesiastica suffragia eis tanta pena remitti, eadem ratione posset per ampliora amplior remitti aut saltem tantumdem; ex quo sequeretur quod tota eorum pena posset omnino remicti, quod est contra iustitiam et immobilem sententiam iudicii Dei super eos dati. Beatorum etiam non, quia nostro subsidio non egent, ymmo potius nos egemus subsidio eomm, eommque ierarchia omnino se habet ad nostram tamquam supprema ad infìmam et mater ad fìliam et beata ad miseram et tamquam advocatrix et mediatrix ad reos vel inopes intercessionibus indigentes. Attamen pro quanto merita omnia inferiorum redundant in gloriam superiorum et beatorum, bene potest dici eorum gloriam accrescere ex meritis fìdelium huius vite. Spiritibus autem defunctorum purgandis prosunt et prodesse possunt, tum quia nexus et communio gratie et caritatis est inter eos et sanctos huius vite; tum quia auxilio egent, et per caritatem et per bona merita, que dum hic viverent habuerunt, non solum sunt susceptibiles superni et caritativi subsidii sed etiam sunt digni et promeriti adiuvari tam a sanctis huius vite quam a beatis.» Ibid. 31. Olivi riprende qui la dottrina classica ed in particolare, quasi alla lettera, le parole di Bonaventura nel Breviloquium, VII, 3: «De suffragiis autem ecclesiasticis hoc tenendum est quod suffragia ecclesiae prosunt mortuis suffragia dico quae ecclesia pro mortuis facit sicut sunt sacrificia ieiunia eleemosynae et aliae orationes et poenae voluntarie assumtae pro eorum culpis celerius et facilius expiandis. Prosunt autem mortuis non quibuscumque sed mediocriter bonis utpote illis qui sunt in purgatorio non valde malis scilicet illis qui sunt in inferno nec valde bonis scilicet his qui sunt in caelo quin potius e converso eorum merita et orationes suffragantur ecclesiae militanti cuius membris multa beneficia impetrant beati. Prosunt autem secundum magis et minus vel pro diversitate meritorum in mortuis vel pro caritate vivorum quae magis sollicitatur pro aliquibus quam pro aliis et hoc vel ad poenarum mitigationem vel celeriorem liberationem secundum quod supernae providentiae dispensatio melius eis viderit expedire». 24 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... come luogo separato dell’al di là era ormai consolidata nell’immaginario collettivo e nella cultura teologica dei maestri32 . In particolare gli argomenti in contrario proposti nella quaestio sembrano centrarsi attorno a due ordini di problemi: il primo riguarda la giustizia divina perché la pratica delle indulgenze potrebbe indurre ad un rilassamento della penitenza, nella speranza di poter acquisire la grazia a poco prezzo, il secondo problema riguarda la giustizia umana perché l’applicazione delle indulgenze per la salvezza di altri potrebbe ledere il principio fondamentale della responsabilità personale in base al quale ognuno deve rispondere davanti a Dio delle azioni e delle omissioni da lui compiute. Le risposte di Olivi sono quanto mai pertinenti. Egli infatti non si nasconde il rischio di un rilassamento e dice: Al quinto [argomento in contrario, rispondo] dicendo che per ottenere le indulgenze papali bisogna osservare soprattutto due cose. La prima è che colui che riceverà o che godrà dell’indulgenza l’accolga con reverenza ed in modo degno, infatti se si accosta ad esse [le indulgenze] con un proposito di una vita più rilassata e con disprezzo o rifiuto della penitenza e della disciplina forte e medicinale, allora non solo per ciò stesso è privato dal dono e dal frutto di esse, ma pecca gravemente e forse in maniera mortale. E quindi accade, se si pensa di averle ad un modico prezzo o con poca fatica, considerandole quasi cose vili e venali, e si da o ci si sforza per esse poco, così che si sia mossi più dal basso prezzo che dalla grazia di Dio e dalla stima piena di venerazione e devozione per esse e per essi. [Accade qualcosa di ] simile nel ricevere il corpo di Cristo o gli ordini sacri, per prendere i quali ognuno è tenuto ad avere, oltre le prime purificazioni da ogni peccato mortale a sé noto o che si può conoscere in modo conveniente, anche una reverenza nella pratica e una devozione fino ad una certa misura congrua e degna, proporzionata allo stato che si va a ricevere. 32. Il Riferimento obbligato è al classico J. Le Goff, La naissance du pourgoitoire, Paris, 1981. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 25 MARCO BARTOLI La seconda cosa [da osservare] è che nel dono di esse verosimilmente ci sia e si manifesti un certo onore di Dio e del suo culto; mentre il contrario di ciò è quando verosimilmente dal loro dono sembra derivare nella Chiesa un rilassamento della disciplina comune e una diminuzione della devozione verso Dio; in cui infatti è da temere grandemente che non solo non si ottenga nessun frutto di indulgenza, ma che anzi tanto chi dà quanto chi prende [tali indulgenze] non incorra(no) in un peccato mortale.33 La conclusione in ogni caso è che la giustizia divina non è messa in causa dalle indulgenze, perché Dove tuttavia la devozione della fede e del culto divino e del merito di Cristo e l’onore verso le sue misericordie ricompensa potentemente e sufficientemente la giustizia ed il rigore della nostra penitenza soddisfattoria, allora non si lede l’ordine della giustizia, né con tale forma di dono si incentiva il peccato (se non forse casualmente in qualche caso particolare) quando piuttosto si dà motivo per credere e sperare di più in Dio e per amarlo, adorarlo e lodarlo più intimamente e soavemente e per stimare e venerare di 33. «Ad quintum dicendum quod indulgentiis papalibus obtinendis duo sunt precipue attendenda. Primum est, ut susceptor seu obtentor indulgentie reverenter et digne suscipiat eas, nam si ex proposito laxationis seu vite laxioris et cum contemptu seu neglectu virtualis et medicinalis penitentie et discipline accedat ad eas, non solum eo ipso privatur dono et fructu earum, ymmo peccat graviter et forte mortaliter. Et inde contingit, si quasi viles et venales eas pro modico precio vel labore se habere estimans, dat pro eis modicum vel laborat, ita quod potius movetur ab hac vilitate precii quam ex gratia Dei et reverenda estimatione et devotione earum et eorum. Simile est in suscipientibus corpus Christi aut ordines sacros in quorum susceptione preter primas emundationes ab omni peccato mortali sibi noto aut competenter cognoscibili, tenetur quis habere actualem reverentiam et devotionem usque ad aliquam mensuram congruam et condignam statui suscipientis proportionatam. Secundum est, ut in earum donatione probabiliter adsit et pateat aliqua honorifìcentia Dei et sui cultus; cuius contrarium est quando ex eius donatione probabiliter apparet sequi in ecclesia communis laxatio discipline et remissio devotionis in Deum; in quo enim est valde pertimiscendum, ne non solum nullus fructus indulgentie impetretur, ymmo etiam tam dans quam suscipiens reatum mortis eteme incurrant.» Ibid. p. 186. 26 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... più il merito di Cristo e dei suoi santi e per sentire con molta più umiltà i propri meriti ed avere una percezione molto meno elevata di essi.34 D’altra parte anche l’applicazione dei suffragi alla salvezza di altri non lede il principio della responsabilità personale, perché … le nostre opere buone possono essere considerate in un duplice modo: uno, rispetto alla loro bontà formale e alla radice interna di carità dalla quale sgorgano; due, rispetto al debito di talune pene che esse sciolgono e per il quale esse sono fatte e sono offerte. Secondo il primo modo esse non giovano a nessuno, se non a colui che le compie, e perciò nessuno può formalmente divenire buono o più santo o più degno della vita eterna per i meriti di qualcun altro, se non in ragione di un’abitudine formale o di un formale modo di avere, e si intende un modo giurisdizionale di avere il merito di Cristo, che si ha per una speciale comunicazione dai suoi membri. Ma è proprio in questo modo che [le opere buone] possono giovare ad altri oggettivamente o per via di intercessione, come infatti la luce del sole virtualmente si diffonde negli altri, benché formalmente non sia in nessun altro se non nel sole; così la bontà formale dei santi si effonde efficacemente negli altri, benché formalmente giovi a loro soli. Secondo il secondo modo, non si può sciogliere il debito superando il suo prezzo, né sciogliere alcun altro debito, ma solo quello per il quale [le buone opere] sono fatte. E in questo modo, se un vivente adempie per un defunto un’opera che doveva adempiere quello, con ciò egli non è per nulla assolto da quella pena che da vivo meritava per se stesso, se non soltanto in quanto (secondo il primo modo di vedere [le opere buone]) diviene grazie a tale opera formalmente migliore e a Dio più accetto. 34. «Ubi tamen devotio fìdei et divini cultus ac meriti Christi et misericordiarum eius honorifìcentia prevalenter ac suffìcienter recompensat nostre satisfactorie penitentie iustitiam et rigorem, tunc non leditur ordo iustitie, nec ex tali forma dandi datur incentivum peccati, nisi forte per accidens et in particulari, quando potius datur ratio amplius credendi et sperandi in Deum et in ipsum viscerosius ac suavius diligendi ac colendi et collaudandi et Christi ac sanctorum suorum meritum amplius estimandi et venerandi et de propriis meritis humilius sentiendi ac de eis longe minus presumendi». Ibid. p. 187. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 27 MARCO BARTOLI L’argomentazione di Pietro di Giovanni Olivi è tutta centrata sul primato della carità sulla giustizia e quindi del perdono sulla punizione. La sanctorum communio si presenta quindi come modello della comunità cristiana ed anzi, in qualche modo, ne rappresenta per così dire l’essenza: i rapporti vicendevoli che legano tra loro i diversi membri della chiesa sono tali da superare anche la divisione rappresentata dalla morte. Cosa può aver spinto il maestro provenzale ad accentuare così l’importanza dei suffragi e delle indulgenze? Certamente, come aveva osservato Capitani, la consapevolezza di trovarsi al momento finale della storia, un momento segnato dalla lotta decisiva tra il bene e il male e quindi particolarmente bisognoso di speciali effusioni di grazia quali, appunto, le indulgenze. Ma forse anche un altro ordine di riflessioni può aver portato Olivi ad accentuare questi aspetti. Mi riferisco qui alla sua riflessione sulla realtà economica del suo tempo. Tutto il vocabolario delle indulgenze è infatti un vocabolario tratto dal linguaggio economico: mereor significa meritare, ma anche guadagnare e dunque il meritum è il guadagno; e, d’altra parte satisfacere vuol dire soddisfare, pagare un debito, per cui l’espressione chiave meritum satisfactorium può essere interpretata come “un guadagno che salda un debito”. La teologia delle indulgenze è teologia economica35 . Lo stesso Bonaventura aveva ampiamente utilizzato il lessico economico per spiegare la sua teoria della communio sanctorum, non esitando a presentare Dio più avido di un usuraio che rivuole indietro il suo denaro ed il papa come un investitore che, avendo preso in prestito una somma, è tenuto a restituirla non appena è in grado di farlo.36 35. Vedi anche “Misericorditer relaxamus”. Le indulgenze tra teoria e prassi del Duecento, a cura di L. Pellegrini e R. Paciocco, in “Studi medievali e moderni”, III/ 1 (1999). 36. «Item, hoc videtur per simile in humanis actibus. Videmus enim, quod sic est in actibus, quos si aliquis est alicui debitor, non refert apud creditorem, utrum ipse, vel alius solvat, immo pro eodem utrumque acceptat: si ergo multo benignior 28 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... I lavori di Chiffoleau e di Todeschini, tra gli altri, hanno mostrato bene come nel XIII secolo non si avvertisse una netta distinzione di piani tra economia di mercato ed economia spirituale37 . Beni materiali e beni celesti si potevano interscambiare in un mercato di cui i conventi dei frati mendicanti erano uno degli snodi più importanti. Tutta la riflessione portata avanti in particolare dai teologi francescani (ed Olivi ha qui un ruolo molto rilevante) è segnata dalla riflessione sulla liceità del guadagno. La distinzione che viene proposta è quella tra il mercante, che utilmente mette la sua arte al servizio della collettività, per fornire beni altrimenti irreperibili e per accrescere il bene comune, e l’usuraio che invece interpreta la propria ricchezza soltanto come accumulazione improduttiva di beni. In tal senso è lecito solo quel guadagno (meritum) che, una volta soddisfatti i bisogni legati al necessarium si ridistribuisce a tutti i poveri cui nel piano divino era equamente attribuito. Olivi arriva fino al punto di presentare il mercato come il modello della società cristiana, perché esso, nella sua lettura, diviene il luogo dello scambio virtuoso dei beni per il benessere di tutti. Come ha affermato Todeschini: « Il mercato, lo scambio, il commercio sono est Deus et avidior ad percipiendam solutionem quam homo terrenus; videtur quod ipse sit contentus et sibi sufficiat, si alius satisfaciat pro eo.» S. BONAVENTURAE Opera theologica selecta, t. III: Liber IV Sententiarum, dist. 20, p. 2, a. 1, q.1; « Item, qui promittit aliquantam summam pecuniae alicui tenetur ei, si est in solvendo; sed Summus Pontifex et alii, qui dant indulgentias, promittunt aliquam partem poenitentiae relaxare: ergo si potest, solvere tenetur. Quod autem possit, videtur per illud quod dicitur secundae ad Conrinthos secundo: Si quid donavi in persona Christi; Glossa: “Ac si Christus donasset”; sed Christus potuit totum condonare, ergo, ecc.» lib. IV, dist. 20, p. 2, a. 1, q. 6. 37. JACQUES CHIFFOLEAU, La comptabilité de l’au-delà, les hommes, la mort et la religion dans la ragion d’Avignon à la fin du Moyen Age, Rome, 1980; Id., Conclusione, in L’economia dei conventi dei frati minori e predicatori fino alla metà del Trecento, SISF 31, Spoleto, 2004, pp. 405-448. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 29 MARCO BARTOLI descritti da Olivi come realtà totalmente sociali o, meglio, come il modo che i laici hanno a disposizione per contribuire secondo le loro possibilità alla costruzione di una società cristiana”.38 Nel suo trattato Sulle compere e sulle vendite, rispondendo alla domanda Se chi compra una cosa qualunque per rivenderla a un prezzo maggiorato, senza averla trasformata né migliorata, come di solito fanno i mercanti, pecchi ciò facendo mortalmente o almeno venialmente, sostiene al contrario gli indiscutibili vantaggi e cose necessarie che provengono alla comunità dalle azioni e dal mestiere del mercante e, insieme a ciò, dal peso delle fatiche, dai rischi, spese, industrie e dalle attenzioni sollecite e insonni che tale ufficio esige. Si sa infatti che molte cose mancano in una città o territorio, le quali invece abbondano in un altro. Coloro però che sono occupati nell’agricoltura e negli altri lavori manuali, oppure nel pubblico governo del paese o nell’esercito, non possono comodamente e agevolmente recarsi in regioni lontane per comprare e riportare in patria le cose di cui hanno bisogno. Pochi possiedono infatti industria e perizia adatte a ciò. Quindi è conveniente alla comunità che a questo compito vengano deputati alcuni individui a ciò adatti, e ai quali certamente spetta una qualche ricompensa poiché, secondo l’Apostolo ‘nessuno mai milita a sue spese’ (I Cor IX,7) e difficilmente si troverebbe chi senza guadagno volesse impegnarsi in questa opera”.39 Il legame tra tutto questo e la dottrina della communio sanctorum appare evidente. L’ipotesi è che i due modelli economici, quello celeste (la comunione dei santi) e quello terreno (il mercato della città cristiana) siano tra loro speculari. Difficile dire quale dei due modelli sia all’origine dell’altro, e cioè se, nel pensiero di Olivi e degli altri 38. G. TODESCHINI, ricchezza francescana, p. 117. 39. Cfr. PIETRO DI GIOVANNI OLIVI, Usure, Compere e Vendite. La scienza economica del XIII secolo, a cura di A. Spicciani, P. Vian e G. Andenna, Milano, 1990, p. 90-91. 30 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA SANCTORUM COMMUNIO... maestri che lo seguiranno, l’economia celeste preceda o segua quella terrena. In questo senso la critica alle indulgenze di Martin Lutero, che, all’inizio del XVI secolo, stigmatizza tra l’altro il legame tra concessione della indulgenza e offerta pecuniaria da parte del fedele40 , coglierà un aspetto sostanziale della dottrina della communio sanctorum così come si era andata elaborando da alcuni secoli. La riflessione e la pratica economica dei francescani a partire dalla fine del XIII secolo si è sviluppata infatti dai presupposti che si è cercato di enucleare. In particolare sarà l’Osservanza, con la riflessione economica di Bernardino da Siena, come è noto, a riprendere in profondità le tesi di Pietro di Giovanni Olivi. Si può infine solo accennare al fatto che, proprio dalla prassi pastorale dei frati dell’Osservanza nasceranno i primi Monti di Pietà, che non sono altro che la messa in pratica delle dottrine economiche da tempo messe a punto dai teologi mendicanti. Il “monte” infatti” non è altro che il luogo fisico in cui vengono raccolti i guadagni (i meriti) acquisiti in sovrappiù per essere poi equamente ridistribuiti secondo il bisogno di ciascuno41 . Il parallelo con l’idea del tesoro dei meriti da cui la chiesa provvidenzialmente trae le grazie da distribuire a ciascuno attraverso le indulgenze, appare suggestivo. Si tratta di un filone di ricerca che potrebbe dare risultati inaspettati. 40. Cfr. MARTINI LUTHERI Disputatio pro Declaratione Virtutis Indulgentiarum (95 Theses): «XXVII. Hominem predicant, qui statim ut iactus nummus in cistam tinnierit evolare dicunt animam. XXVIII. Certum est, nummo in cistam tinniente augeri questum et avariciam posse: suffragium autem ecclesie est in arbitrio Dei solius.» cfr. PAOLO RICCA – Giorgio Tourn, Le 95 tesi di Lutero, Torino, 1998. 41. Cfr. MARIA GIUSEPPINA MUZZARELLI, Il denaro e la salvezza. L’invenzione del Monte di Pietà, Bologna, 2001. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 31 MARCO BARTOLI 32 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ, TRA METAFISICA E FILOSOFIA POLITICA Luca Parisoli (Università della Calabria, Italia; e-mail [email protected]) La natura empirica non determina la volontà e la nostra persona con una preferenza per questo o quello, e neppure questa cosa empirica ci determina di più di quell’altra Unde per naturam non determinatur voluntas nostra nec persona nostra plus ad hoc quam ad illud nec ipsa re de vi naturae plus ad hunc quam ad illum Olivi, Quaestiones de perfectione evangelica 8, An statu altissime paupertatis sit simpliciter melior omni statu divitiarum, ed. Schlageter 1989, R. II., 125 Introduzione Vorrei cercare di mostrare il ruolo assunto da Olivi nel percorso che porta a fare emergere un concetto cruciale per la storia della cultura dell’Occidente latino1 , quel concetto di diritto soggettivo2 che si dipana grazie ad una difesa strenua della libertà della volontà come proprietà essenzialissima della persona (e Olivi gioca un ruolo determinante su questo punto) sino alle libertà costituzionali, ed a una 1. Il materiale di questo articolo è una rielaborazione di mie ricerche precedenti che ho rivisto e aggiornato per l’occasione. Mentre invio questo testo, mia moglie Antonella attende di partorire la nostra secondogenita, che vogliamo battezzare come Rita: a loro due, e al piccolo Francesco-Flavio, dedico queste pagine, perché senza la loro comprensione non avrei potuto mai elaborarlo. 2. Cf. A.S. BRETT. Liberty, Right and Nature. Cambridge, 1997. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 33 LUCA PARISOLI nuova maniera di pensare la presenza di un Ordine religioso, quello francescano, all’interno delle regole del mondo, tanto che l’identità francescana modella una nuova concezione del diritto (e su questo punto Olivi rappresenta una corrente minoritaria nell’Ordine per il suo nominalismo giuridico, che si esplicita senza esitazioni sulla natura stessa del diritto naturale3 ). Come ho già sostenuto in passato, l’idea di diritto soggettivo è stata sviluppata all’interno di una filosofia volontarista e delle dispute sull’identità del frate minore nel mondo sociale che lo circonda e in cui si muove4 . Olivi non ha la posizione normativista di Scoto oppure di Ockham, a loro volta divisi da teorie ontologiche assolutamente alternative: mentre questi ultimi due condividono la tesi di un uso delle cose prive di ogni diritto (purché l’utilizzatore, il frate minore, non voglia avere alcun diritto), Olivi vede un che di ipocrita in questo atteggiamento e preferisce elaborare una teoria dell’usus pauper che si 3. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, edite a cura di Bernard Jansen, Quaracchi 1922-26, I-III, q. 82, III, pp. 174-178: la legge naturale non è concreata né all’intelletto, né alla volontà, quindi dipende da essi: Olivi distingue i significati della legge naturale, e in ogni variante indipendente dalla nostra mente ne deduce che la norma non aggiunge nulla a ciò che esiste, “nihil reale addunt super actus et habitus mentis”. Al contrario, in quanto passione naturale, per esempio, la legge naturale è reale, ma non è una norma. Nel senso invece per cui la legge naturale è la volontà di Dio, e la norma recita che siamo tenuti a conformarci ad essa, allora la norma è reale, tesi ribadita nel Quid ponat ius, vel dominium, che peraltro riafferma la natura nominale del diritto umano. Insomma, rispetto al diritto Olivi non è un nominalista ingenuo, bensì analitico e ben preciso nelle sue posizioni. 4. Cf. P. A. FOLGADO. «La controversia sobre la pobreza franciscana bajo el pontificado de Juan XXII y el concepto del derecho subjetivo», La Ciudad de Dios, 172 (1959) pp. 73-133; G. TARELLO. Profili giuridici della questione della povertà nel francescanesimo prima di Ockham. Milano, 1964; P. GROSSI. “Usus facti” (1972), in: P. Grossi. Il dominio e le cose. Milano, 1992; L. PARISOLI. Volontarismo e diritto soggettivo. Roma, 1999, con una lunga prefazione di Andrea Padovani estremamente articolata e puntuale. 34 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ focalizza sulla fenomenologia dell’uso da parte del frate minore piuttosto che sulla struttura normativa di tale uso5 . E’ chiaro che da un punto di vista spirituale, o meramente psicologico, l’atteggiamento di Olivi sembra andare all’essenziale, tuttavia la sua posizione mina la certezza del diritto per un osservatore giuridico della Regola, dato che la violazione della Regola produce un peccato mortale e se la teoria dell’usus pauper è valida, allora non si è certi a priori quando la Regola sarà violata. L’usus pauper, infatti, si accerta completamente solo a posteriori, trattandosi di una importante variabile psicologica. Ma Olivi non era imbarazzato da questa conseguenza, poiché si muoveva a un livello mistico ben più che giuridico (e del resto, in quanto nominalista giuridico, il diritto e le norme non erano una realtà indipendente dalle decisioni umane, quindi meramente convenzionale): i suoi critici erano invece realisti per quanto riguarda le norme (lo stesso Ockham, nominalista logico, è invece realista sulle norme, dato che l’onnipotenza divina è per lui certissima, e quindi sono certissime le norme reali che la volontà di Dio pone), e si muovono su un altro livello di discorso. La divergenza, quindi, parte dall’atteggiamento stesso sulla realtà o convenzionalità delle norme: per Scoto o Ockham le norme sono una guida per il Cielo, per Olivi non possono esserlo perché non sono reali e invece convenzionali, mentre reali sono gli esiti della volizioni della persona umana, e su di esse sarà giudicata. La seconda metà del XIV secolo ha conosciuto un autore come Jean Gerson, e dopo di lui Conrad Summenhart, che hanno difeso il diritto soggettivo, ma non hanno sviluppato una teoria delle libertà politiche6 . Questo richiede l’applicazione del diritto soggettivo al 5. D. BURR. Olivi and Franciscan poverty: the origins of the usus pauper controversy. Philadelphia, 1989. 6. A.S. BRETT. Liberty, Right and Nature. pp. 86-87. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 35 LUCA PARISOLI dominio pubblico, un claim che il cittadino rivendica contro il governo: occorre disporre, affinché questa idea non sia meramente rivelata da una lotta politica di fatto (come è il caso della Magna Charta del 1215, che è un fatto politico, non già una teoria), di una teoria che lega la libertà di ciascuno con la fonte della legittimità del potere. Né Marsilio da Padova7 , né Enrico di Gand8 producono un tale manufatto filosofico che resta una primizia della scuola francescana9 . L’indagine non può prescindere dalla teoria oliviana del libero arbitrio proprio perché lo scopo è una teoria generale del diritto e delle norme dei diritti: i francescani hanno influenzato l’evoluzione della cultura anche per altre vie più ‘fattuali’, come ho cercato di mostrare nel mio articolo sul trust in Inghilterra10 . Il caso di Olivi è particolare, dato che è un nominalista giuridico: la ricchezza di analisi economiche che egli sviluppa, situazioni concrete e reali di persone nella loro dimensione sociale, non rinvia alla stessa ricchezza nel dominio giuridico, che è in senso ontologico irreale. La nascente teoria economica, che deve moltissimo a Olivi, come ha mostrato 7. Ibidem, pp. 63-64, nota 43. 8. Lo sforzo prodotto da R. MACKEN. «Henry of Ghent as Defender of the Personal Rights of Man», Franz. Studien, 73 (1991) pp. 170-181, è una dimostrazione della debolezza della ricerca di una teoria dei diritti individuali in Enrico di Gand. Resta il fatto che i suoi scritti sviluppano una attenzione per le fattispecie della vita sociale e politica, che mi pare però più ancorata alla teoria orizzontale del potere che non alla nuova realtà urbana che pure descrive e alla teoria gerarchica del volontarismo francescano (cf. la voce di F. LAJARD. Henri de Gand, in: Histoire littéraire de la France. Paris, 1895, vol. XX, pp. 197-199). 9. Sul primato della scuola francescana intorno all’idea di libertà, cf. O. LOTTIN. «Le concept de liberté chez les Maîtres franciscains du XIIIe siècle», Lumières d’Assise, 3 (1948) pp. 52-65. 10. L. PARISOLI. «Théorie et pratique de la pauvreté: les frères mineurs au Royaume Uni», in Antonianum, 78 (2003) pp. 627-650. 36 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ Todeschini, diventa una vera e propria economia politica quando si associa alla sua metafisica, in particolare lo strumento fenomenologico del l’usus pauper legato alla perfezione evangelica e alle possibilità di un’antropologia umana incontaminata. Non voglio sostenere che vi sia un legame necessario tra metafisica volontarista e teoria dei diritti politici individuali11 , tanto più che quest’ultima teoria si è sviluppata in età Moderna indipendentemente da una metafisica volontarista nel senso francescano (anzi, con la Modernità la stessa nozione di volontà è radicalmente mutata, da Cartesio in poi). Mi pare che Olivi produca una teoria della libertà che fonda la persona stessa e la sua libertà, attraverso una volontà che è causa a sé stessa12 , e con questo la sua metafisica produce una nuova teoria politica di tipo costituzionale. I. Precisazioni concettuali, dal diritto soggettivo alle libertà costituzionali Posso dire che quando avanzo la tesi che la scuola francescana ha introdotto l’idea di diritto soggettivo voglio affermare che nella scuola francescana troviamo: 1) l’idea che esiste un diritto che non fonda il suo titolo legittimo grazie all’appello ad un ordine naturale delle cose e che non è quindi invocabile dalla parte giudice a prescindere da una ben determinata domanda delle parti (ossia l’idea di un diritto non-oggettivo accanto 11. C. ZUCKERMAN. «The Relationship of Theories of Universals to Theories of Church Goverment in the Middle Ages: A Critique of Previous Views», Journal of the History of Ideas, 36 (1975) pp. 579-592. 12. Cf. F.X. PUTALLAZ. Figures franciscaines à la fin du XIIIe siècle. Paris, 1997; R.R. EFFLER. John Duns Scotus and the Principle “Omne quod movetur ab alio movetur”. Nova York, 1962. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 37 LUCA PARISOLI a quello oggettivo che fonda tutto il sistema giurdico secondo San Tommaso)13 ; 2) l’idea che questo diritto è costituito (e non più semplicemente dichiarato) da una volontà, che può essere sia quella di Dio, sia quella del legislatore, sia quella di coloro che partecipano al contratto; 3) l’idea che questo diritto, essendo legittimato solo dalla volontà competente, è tale per cui di volta in volta l’autorità competente può rinunciare a far valere il suo diritto: Dio può rinunciare ad applicare una legge che lui stesso aveva stabilito (una specie di misericordia normativa); il legislatore può porre la deroga ad una legge; la parte lesa può rinunciare ad agire in giustizia contro la parte che gli ha procurato un danno. In questo senso l’elemento teorico che caratterizza gli autori della scuola francescana è il primato della volontà. E’ questo primato che diventa un vero e proprio postulato metafisico presso Scoto14 e che, associato alla diffidenza verso le nuove posizioni aristoteliche15 , riesce 13. A volte si è cercato di dimostrare che San Tommaso utilizza la nozione di diritto soggettivo (cf. J.M. AUBERT. Le droit romain dans l’oeuvre de Saint Thomas. Paris, 1955, p. 91, con il rinvio a H. HERING. De iure subjective sumpto apud S. Thomas, in: Angelicum 12 (1935) pp. 295-297), ma il fatto che vi siano delle espressioni in San Tommaso che fanno l’equivalenza tra ius e potere (e la cosa non è per nulla evidente, cf. A. FOLGADO, La controversia sobre la pobreza franciscana) non significa per nulla che esista una teoria del diritto soggettivo tommasiana, come del resto Aubert confessa candidamente: “lorsque S. Thomas parle de ‘ius’, sans aucune spécification, ou de façon officielle, il l’entend alors au sens objectif ” (loc.cit., nota 2, in fine). 14. Cf. John DUNS SCOTUS. Contingency and Freedom. Lectura I 39. Dordrecht 1994 (testo latino, traduzione inglese, commentario interlineare a cura del Research Group John Duns Scotus). 15. F. D’AGOSTINO. La tradizione dell’epieikeia nel medioevo latino, Milano 1976; D. BURR, Petrus Ioannis Olivi and the Philosophers, in Franciscan Studies 9 (1971) pp. 41-71. 38 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ a fondare una filosofia volontarista che può così riassumersi: la norma (ovvero il significato d’un enunciato normativo) è un atto di volontà, e null’altro. Il primo grande protagonista di questo percorso di sviluppo della nozione di diritto soggettivo, era stato Olivi, anche se sin dalla Summa fratris Alexandri troviamo elementi utili per ricostruire questo percorso: Michel Villey non si era sbagliato nella sua intuizione fondamentale16 , anche se la forma del suo paradigma è a ragione criticata17 . L’idea (in cui quasi tutti i frati minori si riconoscono) è che il diritto discende da un atto della volontà individuale (e non formale). Tanto più che è proprio questa volontà ad assumere un ruolo chiave nella costruzione della libertà18 come Frate Simoncioli ha illustrato molto bene. In particolare, egli sostiene, attribuendolo ad Olivi come maestro di Gonsalvo, a sua volta maestro di Scoto, che nella tradizione francescana “la volontà è libera” è “una proposizione analitica” 19 . Ma se l’affermazione della libertà della volontà è una proposizione analitica, 16. Cf. M. BASTIT, La naissance de la loi. Paris, 1990 (per la contrapposizione tra la scuola tomista e quella francescana, Idem, Les principes des choses en ontologie médiévale (Thomas d’Aquin, Scot, Occam), Bordeaux, 1997). 17. Cf. S.G. SWANSON. The Medieval Foundation of John Locke’s Theory of Natural Rights: Rights of Subsistence and the Principle of Extreme Necessity, in History of Political Thought, 18 (1997) pp. 399-459. 18. F. SIMONCIOLI. Il problema della libertà umana in Pietro di Giovanni Olivi e Pietro di Trabibus, Milano, 1956. 19. F. SIMONCIOLI. Il problema della libertà umana, p. 53. La questione rinvia allo statuto ontologico del principio di contraddizione, che in ultima analisi non può essere ridotto all’idea semplificatrice che “Dio non può agire contradittoriamente”, poiché è necessario specificare di quale livello ontologico stiamo predicando questo enunciato. Ho proposto una interpretazione paraconsistente del pensiero di Scoto in L. PARISOLI, La contraddizione vera, Roma 2005, che mi pare abbia mostrato che anche la filosofia può rinunciare al principio di contraddizione, cercando di offrire un quadro logico razionale alle intuizioni della mistica cristiana, tra cui Olivi. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 39 LUCA PARISOLI allora la libertà non è una qualità contingente della volontà: dire che la volontà è libera significa definire la volontà, quindi la volontà è il definiendum e la libertà è il definiens. Una cosa che si chiama “volontà” e che non è libera, ebbene questa cosa non è veramente la volontà: a partire da questa idea, la nozione di potere del legislatore segue naturalmente. Il legislatore (i.e., il Papa) deve stabilire delle norme e deve quindi avere la competenza e la legittimità per poterlo fare (la iurisdictio): Olivi ha sempre proclamato la propria fedeltà al Papa e non solo in nome del voto di obbedienza che San Francesco, nei suoi scritti, aveva sempre sottolineato come fondamentale. Il Papa, infatti, era per Olivi il titolare del potere legislativo e, in quanto titolare, aveva l’autorità per istituire delle norme20 . Tuttavia, data la sua diffidenza nei confronti di Aristotele, Olivi non poteva credere che la legge fosse un atto dell’intelletto, perché la libertà è altrove, ossia nella volontà. Il Papa dunque, per Olivi, istituiva le norme per mezzo della sua volontà (necessariamente libera) e nessuno poteva contestare le sue decisioni quando si trattava di decisioni prese all’interno della giurisdizione necessaria (la iurisdictio): d’altronde un potere legislativo è libero (la volontà) o non esiste affatto. Tuttavia il discorso cambia radicalmente se il Papa non può stabilire una norma perché gli manca la competenza. In 20. Si veda la Quaestiones de perfectione evangelica 11, An vovere alteri homini oboedientiam in omnibus quae non sunt contraria animae et evangelicae regulae seu perfectioni, sit perfectionis evangelicae, in: D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. St. Bonaventure, NY, 1997. Olivi non ha la minima intenzione di sminuire il valore supremo dell’obbedienza, tanto più che è un volontarista convinto: tuttavia, esprime qui come altrove il suo spirito per cui un vero superiore non si distingue se non per la qualità della sua azione, discostandosi dall’atteggiamento dominante nella Chiesa cattolica sin dall’XI secolo, quando si ammise che il sacerdote indegno celebra validamente. Olivi non ammette un criterio procedurale di determinazione del vicario di Cristo, quindi la più forte obbedienza è del tutto compatibile con la ribellione al Papa-Anticristo (non già suo Vicario). 40 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ questo caso infatti il problema non è nelle conseguenze delle norme, è piuttosto nel fatto che il Papa non è autorizzato ad assumersi una decisione di questo tipo. I nessi tra obbligatorietà della Regola e natura del voto di povertà rappresentano un punto cruciale della letteratura francescana dell’epoca, siano in esame i Commentari alla Regola oppure i testi agiografici in un complesso di tematiche che uniscono l’aspirazione alla perfezione spirituale alla concezione dei rapporti tra diritti degli individui. E quando un giurista come Bartolo da Sassoferrato cerca di comporre nel suo Tractatus minoricarum 21 le aspirazioni dei francescani a “restare fuori” dall’ordinamento con la realtà quotidiana delle donazioni della pietà popolare, gli interpreti si dividono tra i fautori delle “pie frodi”22 e i partigiani del diritto come disciplina di qualunque fenomeno sociale23 . E’ in questo senso che si può leggere la contrapposizione di autori come Olivi, come Scoto e, soprattutto, come Ockham al potere papale che metteva in dubbio la possibilità stessa di uniformarsi all’ideale di povertà francescana. D’altronde, se l’interpretazione papale ha il potere di convalidare un’interpretazione della Regola (questo è il vincolo), allora questa pronuncia papale deve essere necessariamente Vera, ossia aderente alla Rivelazione, perché altrimenti non è stata pronunciata da un Papa (reazione al vincolo). Tutti gli sviluppi da Olivi in poi che cerco di analizzare ruotano intorno a questo semplice nucleo originario: di fronte alla 21. L’opera si fa risalire al 1354: la si ritrova in varie edizioni dei Consilia, Quaestiones et Tractatus (p. es., Venezia, 1590, 106), oltre che in diverse raccolte di interpretazioni della Regola francescana (p. es., quella di Giacomo da Grumello, ed. Brixiae, 1502). 22. Così A.C. JEMOLO. Il “Liber Minoritarum” di Bartolo e la povertà minoritica nei giuristi del XIII e XIV secolo, pubblicato nel 1922 e poi raccolto in Scritti vari di storia religiosa e civile. Milano, 1965. 23. D. SEGOLONI. Aspetti del pensiero giuridico e politico di Bartolo da Sassoferrato, in Il diritto comune e la tradizione giuridica europea. Perugia, 1980, pp. 382-394. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 41 LUCA PARISOLI costrizione ad attenersi solo ad una interpretazione della Regola che ha ricevuto una conferma formale, allora, poiché qualsiasi criterio formale non è di per sé peruasivo, l’autore di tale conferma formale (il Papa) è veramente il soggetto legittimato a produrre questa conferma se, e solo se, ripete le Verità della Rivelazione e della Tradizione. Insomma, solo se è infallibile, dato che la Rivelazione e la Tradizione sono certamente Vere. Ma parlare dell’incostanza della realtà e della costanza dell’ordine dei valori significa scoprire le carte sul dilemma della filosofia volontarista. Da un lato, il sovrano deve gestire la società mediante un potere assoluto, dato che se la sua volontà fosse limitata, il suo potere non sarebbe realmente sovrano. Dall’altro, la libertà del legislatore umano, che assicura la nomopoiesi, coesiste insieme alla libertà dei sottoposti e alla libertà divina (anche se quest’ultima si colloca al livello normativo superiore). Nella scuola francescana, la soluzione che avrà meno successo nella successiva storia dell’Europa occidentale è quella di Scoto, che si limita a contenere il legislatore assoluto facendogli carico della massima fedeltà ai doveri verso Dio24 . In questo modo, infatti, egli disegna una teocrazia che non implica un’identità tra il potere temporale e quello spirituale, ma che fa del rispetto della morale verso Dio una caratteristica imprenscindibile del governo temporale. Certo, l’idea che il legislatore debba rispettare i principi della morale è un’idea che percorre tutta la storia politica, ma alla quale si contrappone nel Rinascimento la lettura machiavelliana della politica, tutta finalizzata alla comprensione dei modi della conquista del potere. Tuttavia, affermare che il legislatore deve difendere i valori morali, in quella linea detta tacitismo che si contrappone nel XVI secolo al 24. A. SOTO OFM. «The Structure of Society according to Duns Scotus», Franc. Studies, 11 (1951) pp. 194-212, e 12 (1952), pp. 71-90. 42 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ machiavellismo, è una tesi molto più debole di quella scotista, che fa riferimento ai ben più determinati doveri verso il Dio della religione rivelata di Santa Romana Chiesa. L’altra soluzione, che dobbiamo ad Ockham, sviluppa una sfera giuridica che limita il potere del sovrano dall’esterno: al sovrano viene lasciato uno spazio in cui il suo potere è assoluto ma, al di fuori di questo spazio il suo potere è inesistente. Nel caso di Ockham, tuttavia, questo schema nasce soprattutto dall’orrore di trovarsi di fronte ad un Papa ritenuto eretico25 , tanto che alcuni interpreti hanno potuto rintracciare nella speculazione politica di Ockham un carattere costituzionale26 (attitudine costituzionalista che Olivi già può aver anticipato, perché l’infallibilità può essere interpretata in tal senso ossia come un vincolo sostanziale alla produzione normativa del Capo della Cristianità27 ). Il posto di Olivi nella tradizione del pensiero giuridico e politico francescano è quello di un precursore di Ockham, piuttosto che non di Scoto: benché siano tutti e tre volontaristi, Olivi è lontano dal realismo normativista di Scoto che si associa a posizioni quasi- 25. A.S. MCGRADE. The political thought of William of Ockham. Cambridge, 1974. 26. E.F. JACOB. Essays in the Conciliar Epoch. Manchester, 19632 (19431), pp. 85105, ch. 5 “Ockham as a Political Thinker”; et P. BOENHER OFM. «Ockham’s Political Ideas», Review of Politics, 3 (1943) pp. 462-487, anche nella raccolta E.M. BUYTAERT/P. BOENHER. Collected articles on Ockham, New York, 1958. Per il costituzionalismo nel Medioevo, cf. B. TIERNEY. Medieval Canon Law and Western Constitutionalism (1965), poi nella raccolta Church Law and Constitutional Thought in the Middle Ages, London, 1979, saggio XV. 27. Si veda l’edizione critica di Marco Bartoli del De dispensatione votis, in Pietro di Giovanni Olivi, Quaestiones de Romano Pontefice, Grottaferrata, 2002 (il volume fa parte del progetto di pubblicazione di tutte le opere di Olivi). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 43 LUCA PARISOLI teocratiche, mentre è assai più vicino al costituzionalismo di Ockham28 . Può apparire strano che da questa assolutizzazione del potere civile siano nati principi a carattere costituzionale, come può apparire strano che siano stati autori che hanno messo in gioco la loro vita per una pretesa verità religiosa a prefigurare la tesi della separazione tra ordinamento giuridico e sistema morale, creando le premesse dell’autonomia della produzione normativa umana rispetto alle verità morali. In realtà, tutto prende le mosse da una vera e propria metafisica della libertà, che si traduce nel dominio della teoria politica, per poi concretizzarsi nell’azione politica stessa. Se si tiene presente che il Regno del Cielo è infinitamente più importante dei regni umani, allora si può comprendere la logica di questa costruzione. II. Tripartizione della nozione di libertà Il punto di partenza per comprendere il ruolo giocato da Olivi per l’evoluzione del costituzionalismo sino a Ockham29 è a mio avviso una tripartizione della nozione di libertà utilizzata, sebbene non esplicitata, degli autori francescani, e che qui avanzo come ipotesi storiografica al fine di comprendere pienamente la loro teoria politica 28. Rinvio ai miei: L. PARISOLI. «Guglielmo di Ockham e la fonte dei diritti naturali: una teoria politica tra libertà evangelica e diritti fondamentali ed universali», Collectanea Franciscana, 68 (1998) pp. 5-62; e «Percorsi della libertà nella Scolastica francescana: dal primato della volontà alla “naturalizzazione” attraverso la teoria politica dei diritti», Materiali per una storia della cultura giuridica, 28 (1998) pp. 3-48. 29. Cf. G. de LAGARDE. Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Âge, Paris, 1946, vol. VI (Ockham: la morale et le droit), pp. 71-73 e passim; poi la nuova edizione Naissance de l’esprit laïque au déclin du Moyen Âge. Louvain/Paris, vol. IV – 1962 (Guillaume d’Ockham: défense de l’Empire) et vol. V – 1963 (Guillaume d’Ockham. Critique des structures ecclésiales). 44 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ e giuridica. Siamo infatti di fronte ad una ontologia e ad una antropologia della libertà che la suddivide in tre categorie: 1) la libertà metafisica; 2) il libero arbitrio; 3) la libertà morale. L-a(-e) libertà politic-a(-he), invece, rappresenta una quarta categoria, in quanto “approdo” rispetto alla tripartizione. Si tratta infatti di una nozione eminentemente priva di significazioni metafisiche ed antropologiche e, in quanto tale, derivata rispetto alle prime tre, sebbene sia poi il nocciolo del pensiero costituzionale di Ockham. Ho utilizzato largamente l’idea di questa tripartizione nei miei lavori su Scoto30 , e essa si ritrova in forma diversa già nelle analisi di Wolter che fa riferimento, con l’epressione native liberty31 , a quella che io chiamo “libertà metafisica”. Già in Sant’Agostino la stessa parola libertas esprime sia l’adesione al bene sia la possibilità di scelta del libero arbitrio. In questo senso, la libertà morale di cui parlo è la conformità al bene (in quanto rifiuto costante della schiavitù del peccato32 ), mentre il libero arbitrio è la facoltà di scegliere tra il bene ed il male. E’ per questo che il libero arbitrio confirmato (ovvero in patria) determina la libertà morale, mentre il libero arbitrio non confirmato (ossia in via) è la possibilità della lode e del rimprovero33 . La natura dei beati e dei viatores, d’altronde, è così differente che il 30. In particolare, L. PARISOLI. La philosophie normative de Jean Duns Scot. Roma, 2001. 31. A.B. WOLTER, Native Freedom of the Will as a Key to the Ethics of Scotus, in Deus et Homo ad mentem I. Duns Scoti. Roma, 1972, poi in Idem, The Philosophical Theology of John Duns Scotus. Ithaca, 1990. 32. Guglielmo di OCKHAM. Ordinatio, I, d. 1, q. 6 (Opera theologica, I): “opponitur servituti creaturae rationalis et hoc vel servituti culpae, vel servituti poenae. Et hoc modo beati sunt liberiores quam viatores, quia magis liberi a servitute culpae et poenae”. 33. J. Duns SCOTO. Reportata parisiensia, II, d. 7, q. 1-3, n. 25 (ed. Vivès XXII); Lectura, II, d. 7, q. unica (ed. Vaticana XIX). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 45 LUCA PARISOLI loro libero arbitrio non si predica nello stesso modo. Tuttavia, sia i beati che i viatores sono liberi nel senso più generale del termine (nel senso che entrambi partecipano alla libertà metafisica), in quanto entrambi sono “persone”. E’ infatti la nozione più generale di libertà – nella sua collocazione metafisica ed ontologica – che costituisce l’essenza stessa della persona umana: «nihil sub Deo est nobis ita dilectum et carum sicut libertas et dominium voluntatis nostrae»34 . Senza tale libertà noi ci priviamo della nostra natura personale e ci riduciamo ad essere bestie con un intelletto35 : questa libertà è la nostra dignità. Essa è quel baluardo invalicabile che, rispetto agli altri uomini con i quali viviamo in società, disegna la libertà politica. In questo senso noi possiamo anche perdere la libertà morale per debolezza o per vanagloria o il libero arbitrio per cause esterne oppure per alterazioni interne; ma la libertà metafisica ci accompagna sempre, sia in via (come spiegherà magistralmente Olivi nella sua quaestio 57 In Secundum Sententiarum), sia in patria (tanto che i beati rimangono liberi di rifiutare la visione di Dio, poiché questa visione non può che essere un atto d’amore gratuito36 ). Ma una delle conseguenze più importanti di questa superiorità concettuale della libertà metafisica (libertas) la si ha soprattutto a livello di diritti politici. Infatti, se fondiamo i diritti di una società sul modello della libertà morale, la nostra concezione della politica è legata 34. A. EMMEN OFM, «La dottrina dell’Olivi sul valore religioso dei voti», Studi francescani, 62 (1966) pp. 88-108, edizione della quaestio an sit melius aliquid facere ex voto quam sine voto, la quinta delle questioni sulla perfezione evangelica. 35. F. SIMONCIOLI. Il problema della libertà umana, pp. 106-107: “Olivi ripone la dignità dell’uomo nella libertà, costitutivo essenziale della personalità” (nota 4, p. 107). 36. J. Duns SCOTO. Opus oxoniense, IV, d. 49, q. 6 (ed. Vivès XXI); Guglielmo di OCKHAM. In IV Sententiarum, q. 16 (Opera theologica VII): “voluntas pro statu isto potest nolle finem ultimum sive ostendatur in generali sive in speciali”. 46 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ strettamente alla verità di un sistema morale, anzi la validità dei diritti di quella società è condizionata dalla loro conformità alla morale. Al contrario, se fondiamo i diritti di una società sul modello della libertà metafisica (che è la dignità della persona), la validità dei diritti di una società di non credenti e di infedeli non può essere messa in questione. Essi possono essere rifiutati e respinti, ma non possono essere dichiarati inesistenti. Questa rete di diritti universali opera tra società differenti, ma pure all’interno di una medesima società. Si tratta allora di quelle libertates et iura che non possono essere violate da nessun legislatore umano, per quanto grande sia il fondamento della sua autorità: la dignità umana resta inviolabile (Scoto afferma che la persona è l’«ultima solitudo»)37 , e contro di essa si ferma qualsiasi legislatore terreno. Possiamo perdre la nostra libertà morale, e divenire schiavi degli altri: possiamo perdere il libero arbitrio, e divenire incapaci di rispondere dei nostri atti; ma non perderemo mai la libertà metafisica, perché qualunque sia la nostra condizione morale e materiale noi siamo la nostra libertà metafisica. Questa non dipende dalla bontà dei nostri valori, di quei valori che abbiamo scelto: l’infedele non ha libertà morale, ma la sua libertà metafisica è semplicemente quella della sua persona. Senza questa idea, l’evangelizzazione sarebbe solo un’operazione politica, non già personale. Un sistema giuridico può ammettere leggi pessime da un punto di vista morale cristiano, tuttavia quelle leggi sono fondate su una legittimità che può essere solo quella della libertà essenziale di ogni singolo individuo: il legislatore ha operato male, ma i diritti dei singoli sono sempre gli stessi, e i singoli sono vincolati da quelle leggi. La dignità della persona va al di là delle scelte morali contingenti: senza un riconoscimento, ogni sistema giuridico è illegittimo, anche 37. Citata classicamente da Lagarde, ripresa da J. Duns SCOTO, Opus oxoniense, III, d. 1, q. 1, n. 17 (ed. Vivès, vol. VIII). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 47 LUCA PARISOLI se una volta riconosciuto si possono fare scelte legislative ulteriori comunque difformi dalla morale oggettiva. Olivi prefigura rispetto a Scoto e Ockham38 la nozione di potere ordinato: «eo ipso quo Deus vult et pro tempore quo hoc vult, habet in se ordinem predicte voluntatis Dei»39 , suggerendo che il legislatore è costituzionalmente vincolato dalle sue proprie leggi. Propone la differenza tra azione de iure e azione de facto, anticipando Scoto, per giustificare la forma del potere umano sulla base di quello divino40 . Infine, usa la differenza tra il diritto che precede la Caduta e quello che segue la Caduta: l’ordine immutabile delle leggi, «quod Deus non potest nec debet oppositum eius velle», è detto «ordo naturalis», e si oppone al «dominativo imperio», l’altra sfera normativa che vede le sue norme cambiare «seu absolute seu conditionaliter pro libitu»41 , ossia convenzionalmente. Il fondamento di queste nuove libertà politiche non è quindi la facoltà del libero arbitrio, bensì l’idea di libertas, ossia la libertà metafisica capace di fondare innanzitutto la nozione di persona42 . Il libero arbitrio, infatti, può fondare solo la nozione molto meno generale di agente morale. Mentre la nozione di agente morale, infatti, si presenta, almeno in prima battuta, come uno strumento tecnico 38. Cf. O. BOULNOIS (a cura di). La puissance et son ombre. De Pierre Lombard à Luther. Paris, 1994. 39. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, q. 57, II, p. 323. 40. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones de perfectione evangelica 13, An Papa possit renuntiare papatui, ed. Oliger come De renuntiatione papae Coelestini V. Quaestio et epistola, in Archivum Franciscanum Historicum 11 (1918) p. 363. 41. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 324. 42. Si vedano le osservazioni di G. de Lagarde. La naissance de l’esprit laïque II, “Secteur social de la Scolastique”, Paris, 1958, pp. 227-229, pp. 234-238. 48 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ della riflessione etica teorica (ossia come un concetto che permette di spiegare i fatti morali), la nozione di persona si presenta come immediatamente capace di mostrare la complessità valoriale dell’esperienza morale. Per questo la nozione di persona può esprimere, a differenza di quella di agente morale, il valore principe della dignità umana che si fonda sull’associazione tra libertà e unicità di ciascuno. Ma se la nozione di libertà metafisica fonda quella di persona e la nozione di libero arbitrio fonda quella di agente morale, allora sia la libertas, sia il libero arbitrio sono caratteristiche necessarie della persona umana. Tuttavia, il libero arbitrio è principalmente teso ad evitare il cupo necessitarismo di un universo meccanico alla Averroé in cui si prefigura un Dio orologiaio (visione questa che tradirebbe la stessa tradizione giudaico-cristiana). La libertas, invece, è per lo più tesa a fondare il Creato ontologicamente e metafisicamente. Quindi, il libero arbitrio appartiene all’insieme di verità di fede del “catechismo” della Chiesa cattolica e, in questo senso, è comune tanto alla scuola teologica naturalistica quanto a quella volontaristica. La libertas, invece, si spinge al di sopra della verità di fede ed è piuttosto coessenziale alla nozione stessa di persona umana. In questo senso, dire che la speculazione francescana valorizza il concetto di libertà metafisica significa dire che essa valorizza il concetto di persona. E’ lo stesso statuto ontologico della persona ad essere inconcepibile senza fare riferimento alla sua innata libertà. Di fronte a Dio, la persona è concepibile solo perché è libera. E, in questo senso, è la persona ad essere la libertà. Per contro, se è vero che la persona sarebbe inconcepibile senza libertas, senza libero arbitrio, invece, sarebbe inconcepibile tutt’al più la nozione di agente morale (in questo caso, infatti, si potrebbe solo parlare di “paziente” morale, come direbbe Hobbes). Ma nel momento in cui si parla di agente morale, ci si muove necessariamente all’interno della disputa plurisecolare tra deterministi ed indeterministi morali, tra libertarians e necessitarians, Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 49 LUCA PARISOLI tra cristiani cattolici e cristiani riformati (e qualunque sia la soluzione scelta, tutto ha l’aria di una disputa di scuola). Fatta salva la verità fondamentale che l’uomo può scegliere tra il bene ed il male, infatti, ciò che conta veramente è solo la fondazione dell’ordine morale in cui si muove l’uomo. E nella scuola francescana è proprio la libertà ad assolvere questo compito. L’idea di libero arbitrio rimanda alla possibilità della scelta ed alla consapevolezza di distinguere la natura dei poli delle scelte divergenti: la libertà richiede solo la libera adesione al proprio oggetto e culmina nella scelta d’amore del beato che contempla Dio, senza alcuna necessità e con la libertà di rifiutare tale visione43 . In questo senso, tre sono le cifre della scuola francescana: la libertà che pervade la creatura ed il Creatore, l’assolutezza dell’amore che è tanto gratuito da non sopportare finalità di sorta, il primato della volontà che in fondo è il dato “meno” importante, in quanto ha la funzione dell’esplicazione metafisica, ma non quella di indirizzarci alla beatitudine. Mentre il libero arbitrio è una costruzione razionalistica, la libertà primigenia, che è la persona stessa, è il dato ontologico che ci caratterizza in quanto persone. La libertà si sente, insomma, non si coglie tramite la ragione. III. La libertà, personale e pubblica, per Olivi La liberta umana è secondo Olivi “manifestissima veritatis lumina et experimenta” e la sua negazione “exterminat omnia naturae rationalis bona”44 . Tra le prove in favore della libertà della volontà, la quinta è l’”affectus subiectionis et reverentiae et affectus dominationis et 43. Orlando TODISCO. Lo stupore della ragione. Padova, 2003; Il dono dell’essere. Padova, 2006. 44. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, edite a cura di Bernard Jansen, Quaracchi 1922-26, I-III, q. 57, II, p. 316. 50 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ libertatis”45 , che stabilisce un reale principio politico. La sola ratio del potere, la sola legittimità del potere, è la libertà46 : se non c’è libertà, l’uomo non può legittimamente divenire un sovrano e disciplinare gli altri, né può impartire ordini ad altri uomini, né può esercitare il suo dominium rispetto ad altre persone. Evidentemente può farlo de facto, attraverso l’esercizio della forza, ma questo non comporta nessuna giustificazione de iure. Olivi affermava che un uomo senza libero arbitrio era privo di ogni lode e di ogni biasimo come una pietra e un animale47 , il suo rapporto con Dio si sarebbe ridotto a quello delle bestie con Lui48 (nessuna differenza tra l’uomo e gli animali), dato che solo la deliberazione volontaria distacca l’uomo dalla necessità delle passioni naturali sensuali49 . Ma queste semplici osservazioni di Olivi sono sufficienti a collocare il volontarismo politico francescano mille miglia lontano dal volontarismo hobbesiano. E’ infatti completamente estranea a questo discorso la terribile immagine della corsa contenuta negli Elements of Natural and Political Law (1640), che sancisce la supremazia del più forte come un diritto 45. Ibidem, p. 321. 46. La fonte ultima e diretta di ogni potere è Dio, che può privare della sua legittimità, in ogni momento, qualunque sovrano (cf. Pietro di Giovanni OLIVI, De renuntiatione papae Coelestini V, p. 359). 47. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 336: “nullum erit demeritum plus quam in una bestia vel lapide”. 48. OLIVI, loc. cit., p. 338: “non plus potuerit Deus a nobis offendi aut inhonorari quam a bestiis”. 49. OLIVI, loc. cit., pp. 326-327: Olivi considera la situazione in cui un uomo deve scegliere tra beni equivalenti (situazione che diverrà famosa come dilemma dell’asino di Buridano) e dice che non c’è altra causa di scelta che la libertà stessa, e nulla deve essere aggiunto per spiegare la scelta, qualunque essa sia. Al contrario, per gli animali vale che “bestia super aequalitate eligibilitas illorum non deliberat nec eam plena affirmatione diiudicat, sicut homa facit”. Non la ragione, bensì la volontà domina le passioni osensuali. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 51 LUCA PARISOLI naturale: il fondamento naturale del diritto sta invece nella libertà (nonempirica) e nel dominium dell’uomo che esercita verso se stesso. La sola legittimazione dell’autorità politica si fonda sul fatto che i cives reputano di essere sottoposti alle leggi, ossia che le accettano. Siano essi cittadini oppure schiavi, la loro condotta deve esprimere la consapevolezza d’un potere “dominativum et imperativum” che li sovrasta. Insomma, un individuo può esercitare potere sugli altri se e solo se questi esprimono una “ratio voluntarie subiciendi”. Bisogna rimarcare che l’approccio esperenziale di Olivi al problema del libero arbitrio può essere ingannevole: certo, egli fa spesso appello alla nostra esperienza per avvalorare la sua tesi della libertà come essenza della dignità umana, ma non si deve dedurne che egli si appoggi alla nostra esperienza come uno scienzato empirico effettua esperimenti sulla materia inerte al fine di trarne previsioni sugli eventi futuri. Al contrario, egli cerca di mostrare che la sua costruzione metafisica non ha alcuna difficoltà a giustificare il complesso degli eventi umani politici e sociali. La potestas imperativa e quella dominativa, che sono in fondo la stessa identica cosa, non si ricavano solo dall’osservazione dell’agire umano, bensì sono stabilite attraverso l’”intentione et efficacia obligandi”50 che costituisce la forza vincolante della norma. Una norma è per Olivi vincolante solo se è accettata dagli individui cui è diretta attraverso l’espressione della volontà di una persona dotata della legittima competenza a legiferare su quell’insieme di individui. Ci troviamo di fronte ad una proposizione di filosofia del diritto, e non dinanzi ad un’analisi della psicologia umana: la legge è definita “mandatum vel statutum cum intentione obligandi datum et publice promulgatum ab eo qui auctoritatem habuit super istis”51 . Altrove, Olivi ci dice che la ratio legis è l’intenzione del legislatore, e che la forza cogente delle leggi non è la stessa per ogni tipo di atto normativo, come la Tradizione ci insegna 50. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 336. 51. Loc. cit. 52 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ relativamente al Decalogo52 , e come le innumerevoli riflessioni sulla Regola avevano sospinto i vari commentatori a classificare e repertoriare. Tutti gli uomini desiderano “naturalissime libertatem” e “vehementissime horret totalem suae libertatis ablationem”53 : la libertà è quindi l’essenza stessa della natura umana, sino al desiderio di beatitudine che può compiersi grazie al nostro dominium. Questo sacro orrore della privazione completa della libertà è il dato preliminare delle libertà politiche. Infatti, queste stesse libertà sono proprio i diritti soggettivi pubblici degli individui contrapposti, se essi lo desiderano, al potere legiferante che si è reso colpevole della negazione dei diritti fondamentali. Ma, soprattutto, sono queste le libertà che saranno poi tematizzate e sviluppate da Ockham soprattutto nel suo Breviloquium e nelle Octo quaestiones. L’uomo non può rinunciare completamente alla sua libertà, poiché la sua dignità scomparirebbe con la scomparsa della sua libertà. Tanto più che esiste un sentimento della forza vincolante della legge: l’idea di “habere aliquid iuris” sarebbe vuota se non possedessimo la libertà, che è “quid nobilissimum”, perché gli iura, questi “voluntaria signa voluntatis interne”54 , richiedono la facultas dominandi e, senza libertà, non si può avere facultas dominandi. Inoltre, in forza della tesi della questione Quid ponat ius, i diritti non sono una qualità della natura, essi sono una manifestazione della volontà che “nichil reale addant”. Quindi, è possibile affermare che la libertà e il dominium sono il fondamento della nozione di diritto e dell’autorità politica: noi siamo 52. Pietro di Giovanni OLIVI, Quaestiones de perfectione evangelica 17, De voto regulam aliquam profitentis, ed. Delorme, in Antonianum 16 (1941) p. 153. 53. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 322. 54. Pietro di Giovanni OLIVI, Quid ponat ius vel dominium, ed. Delorme, in Antonianum 20 (1945) p. 318. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 53 LUCA PARISOLI liberi in quanto possediamo il dominium sulle cose e su noi stessi. Pertanto, possiamo tradurre il dominium in relazioni di potere reale solo perché siamo liberi. Un individuo esercita il suo potere fattualmente perché dispone di una facultas dominandi, ma questo esercizio è legittimo solo se gli individui che patiscono i suoi comandi hanno accettato (e quindi legittimato) la sua azione. L’autorità politica e i diritti sono allora giustificati ontologicamente dalla libertà, ma questa autorità può essere esercitata solo in seguito ad un consenso iniziale dato che la creatura in naturalibus non dispone affatto di una simile capacità di interferire nella sfera degli altri individui55 . Sebbene si respiri qui una certa aria di teoria del contratto sociale, a me pare che fare riferimento al contrattualismo politico sia radicalmente fuorviante: ci sono antiche dispute sul contrattualismo di Scoto56 , e non è il caso di ripeterle a proposito di Olivi. Mi basta osservare che il contratto politico di Olivi, concesso che vi sia un vero contratto, è 55. Ibidem, p. 319. 56. Le si vedano felicemente rievocate in tempi recenti da Francesco BOTTIN (Giovanni Duns Scoto sull’origine della proprietà, in Rivista di storia della filosofia, 52 (1997) pp. 47-59) che con prudenza soppesa le parole e indica un modello scotista “consensuale”. Mi pare sia utile evitare di rintracciare improbabili tesi politiche contrattualistiche in autori che invece non si pongono affatto questo problema: se impegnati in simili esercizi anacronistici, non è difficile immaginare come si possano vedere persino in Olivi esercizi di teoria del contratto politico (rende conto di una posizione simile, in cui si esaspera l’elemento relazionale nella quaestio Quid ponat ius vel dominium, G.L. POTESTÀ, Maestri e dottrine nel XIII secolo, in Francesco d’Assisi e il primo secolo di storia francescana, Torino, 1997, p. 330). Mi pare una strada azzardata ancora a più forte ragione, poi, se basta l’adozione di una più semplice (anche se banale) spiegazione in termini nominalistici per rendere conto del testo senza il ricorso ad equivoci mélanges di teorie giuridiche, sacramentali e politiche: la supremazia della volontà nella realizzazione di un fenomeno giuridico (ordine che non può identificato a quello sacramentale della confessione o della eucarestia, anche se il rispettivo discorso teorico può subire reciproche influenze) non implica che esso si realizzi solo tramite un accordo necessario (contrattualismo politico in senso proprio). Il volontarismo politico è compatibile con la teoria del potere assoluto di un singolo individuo, senza accordo 54 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ un contratto con una cornice e senza tela, privo di contenuto, poiché non parla mai, almeno per quanto ne so, delle deliberazioni relative alle regole che le parti hanno stabilito per la società. Per quanto Olivi faccia allusione a un contratto bilaterale, il potere politico che ne discende è privo di ogni vincolo: io rinuncio ad una porzione della mia libertà, e te la dò affinché tu possa esercitare il potere (la libera facultas imperativa), considerato che tu accetti questo ruolo nomopoietico57 . Si tratta di una trasmissione di potere che non ammette condizioni: il contratto oliviano non può far sorgere una repubblica o una monarchia, ma solo il diritto di un individuo a decidere sugli altri, con la stessa libertà che un individuo naturalmente esercita su se stesso. L’esito del contratto è sempre una forma di potere assoluto, i cui vincoli non sono mai determinati dalla volontà delle parti. Per Olivi, la rinuncia alla propria libertà non è un atto che richieda una relazione gerarchica, ma solo il possesso della libertà stessa, dato che ognuno può abdicare ai suoi diritti, anche in vista del bene comune: infatti, il solo caso che annulla questa libertà è quello del superiore che impone l’esercizio di un diritto a un sottoposto in vista del bene comune58 . altrui: per Olivi si veda il Quodlibet, I, q. 18 (sul potere del Papa); per Scoto si veda E. LONGPRÉ, Le B. Jean Duns Scot pour le Saint Siège et contre le gallicanisme, in La France franciscaine 11 (1928) pp. 137-162, a pp. 156-157, affiancato però alle osservazioni relative di B. TIERNEY. Origins of Papal Infallibility, Leiden, 1988 (2a. edizione), pp. 144-146. Neanche rispetto ad Ockham, che pure non è certo un esaltatore del potere assoluto del Papa, mi pare si possa parlare senza anacronismi di una teoria contrattualistica. 57. Pietro di Giovanni OLIVI, Quid ponat ius vel dominium, p. 319. 58. Pietro di Giovanni OLIVI, De renuntiatione papae Coelestini V, p. 358. A me pare che questa nozione di “bene comune” non è la stessa di San Tommaso, ma l’importanza della dignità della persona è la stessa (cf. J.M. Trigeaud. L’ordination du bien commun au respect de la personne dans la philosophie politique thomiste, in Actes du IXème Congrès Thomiste International, Roma, 1991, IV, poi in J.M. Trigeaud, Éléments d’une philosophie politique, Bordeaux, 1993). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 55 LUCA PARISOLI Il consenso è soltanto necessario, non già sufficiente, ma mi pare già molto per legittimare l’autorità politica. Questo consenso è definito come un atto unilaterale della volontà che viene necessariamente “a nobis, ita quod voluntas tanquam ex se operetur” e questa modalità dell’operazione della volontà avviene quando “nullius alterius agentis impulsu, sed solum ex proprio motu agens in actum se accomodat”59 . Si tratta di una tesi connotata nel senso del volontarismo politico, ma non di un contrattualismo politico in senso moderno che ci evoca una riflessione filosofica alla maniera di Rousseau. L’esito della riflessione oliviana, mediante un processo di diritto positivo (ex pactione), è il potere assoluto del monarca che “potest precipere vel dissolvere leges et precepta diversissima et innumera et precepta spectantia ad bella et alia spectantia ad intrinsecum et pacificum statum civium” e “omnia etiam hec facit solo imperio, non per modum naturalis agentis”60 . Si noti per completare la riflessione, che con Olivi, che condivide questa posizione con Scoto e in genere con i pensatori cattolici medievali, abbiamo un rifiuto netto dello gnosticismo politico, ossia quella concezione della politica che si era affacciata in Europa con i Merovingi – re che lasciavano governare i marescialli di palazzo, pur essendo loro i sovrani formali –, che venne combattuta da Pipino con l’aiuto della Sede apostolica con l’esito della nascita della dinastia carolingia la notte di Natale dell’anno 800, e che incominciò a imporsi lentamente dal XVII secolo in poi con l’affermazione della Modernità. Giorgio Agambem ha descritto molto bene questo percorso storico61 , in cui il pensiero politico cattolico, prima con l’azione di Carlo Magno, poi con i teorici della Scolastica, ha rifiutato l’idea del re fannullone 59. Pietro di Giovanni OLIVI, In II Sententiarum, q. 57, II, p. 329. 60. Pietro di Giovanni OLIVI, Quid ponat ius vel dominium, p. 322. 61. Giorgio AGAMBEN. Il Regno e la Gloria. Per una genealogia teologica dell’economia e del governo, Vicenza, 2007. 56 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ che, inoperoso, regna senza governare, dato che il governo è assicurato solo e soltanto da una corte amministrativa. La teoria politica di Olivi, con la sua esaltazione non solo della legittimità del sovrano, ma soprattutto della sua azione concreta che non deriva dalle situazioni di fatto ma dal suo imperium, è nettamente in contrasto con lo gnosticismo politico, e lo inserisce nella tradizione dei filosofi politici che lo hanno combattuto. Il sovrano non è frutto di un contratto, il sovrano governa e basta. Una volta attribuito questo potere assoluto, gli individui non hanno un controllo diretto su questo potere: vi hanno rinunciato, non possono più esercitarlo. Però, se gli individui non possono interferire nell’esercizio corrente del potere politico, dei limiti all’azione dell’autorità legiferante esistono, e sono fondamentali. Il potere assoluto può essere drasticamente limitato grazie a quelle libertà politiche che si fondano sulla stessa libertà che legittima il potere assoluto tramite l’atto di consenso. Le accuse che a volte si muovono contro il volontarismo politico, foriero di assolutismo ed arbitrarietà sono in un certo senso vere: un volontarismo che ignora la sfera divina è legittimazione della volontà umana come nomopoiesi incontrollabile. Questa è la teoria politica di Hobbes. Tuttavia, pensare che Hobbes sia la conseguenza del volontarismo della teologia Scolastica è ingiusto ed erroneo. Il potere assoluto del sovrano hobbesiano gli è conferito da un patto contratto in uno stato di natura in cui gli uomini hanno il diritto di appropriarsi delle cose. Al contrario, il potere assoluto del sovrano del volontarismo medievale gli è conferito dal consenso di uomini in uno stato di natura decaduta, in cui Dio permette che come rimedio agli egoismi umani si instaurino regimi normativi che sono eccezioni al vero stato di natura. Ma allora la differenza è abissale. Per Hobbes, lo stato di natura è uno solo, e non c’è altro da dire; per la Scolastica francescana, ne esistono almeno due, e le norme del primo sono sempre valide, anche se congelate. Il Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 57 LUCA PARISOLI risultato è un sovrano assoluto nella sfera della natura corrotta, ma vincolato nella sfera della natura incorrotta, un’idea semplicemente inconcepibile per Hobbes. Per lui, la libertà naturale del condannato a morte di sfuggire all’esecuzione è parte dell’eterna lotta di sopraffazione fra gli individui. Ma la libertà politica francescana non è una modalità dell’esercizio del potere, essa è un limite invalicabile: non è difficile comprendere questo concetto se ci rifacciamo al fatto che nella scuola francescana, a partire dalla Summa fratris Alexandri62 , si è introdotta la tesi che il Peccato Originale abbia determinato una rottura nell’ordinamento. Questa rottura ha la conseguenza di produrre due sfere normative ontologicamente distinte, con insiemi di diritti validi, ma non omogenei: il dominium naturale sulle cose del Paradiso era l’unico diritto ricollegabile all’idea di uso. Al contrario, dopo la Caduta, è stato necessario rimediare alle cattive inclinazioni degli uomini, ed altri diritti si sono ricollegati all’uso, tra cui per eccellenza la proprietà che si costituisce intorno al diritto positivo umano. Così, il diritto naturale non è la forma ispiratrice del diritto mondano. La tesi principe del sistema tommasiano è respinta da subito perché non esiste una scala delle norme (non dissimile dalla scala dell’essere) che porta dalla legge eterna alla legge umana, ma solo gradoni separati l’uno dall’altro. Il diritto umano non è influenzato dal diritto naturale, poiché è un rimedio alla natura peccatrice che le norme del diritto naturale ignoravano, tanto che la loro applicazione diretta è “congelata”. Ma ciò non toglie che queste ultime sono sempre valide, anzi sono l’aspirazione soprannaturale di ogni uomo, lo status normativo della natura senza macchia. La sfera normativa del diritto umano positivo gode di una libertà assoluta, ma non può negare il fine soprannaturale dell’uomo. La sua ragion d’essere cessa allora, 62. Alessandro di HALES (e collaboratori, tra cui Giovanni della ROCHELLE). Summa fratris Alexandri, l. III, pars 2, inq. 2, q. 4, mem. 3, cc. 2-3 (Ad Claras Aquas 1948, IV, 362-364). 58 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ perché non sarebbe più rimedio, bensì causa di dannazione. In tale caso di violazione flagrante, le norme del diritto naturale ritornano immediatamente applicabili, contro ogni potere nomopoietico umano. Dopo Olivi, la scuola francescana spingerà sempre più in fondo la radicalità dell’interpretazione del canone Dilectissimis63 sino a proporre la più dicotomica differenziazione tra il diritto naturale e quello positivo. Ma già in Olivi possiamo trovare l’idea che i frati minori rinunciano al diritto positivo, secondo la prescrizione di San Francesco, e si rifanno al solo diritto naturale per usare delle cose senza avere un diritto a farlo (poiché ogni diritto simile è di diritto positivo). La libertà di un frate minore è per Olivi quella di preferire la perfezione evangelica già in questa vita terrena; grazie a questa scelta, il diritto positivo perde ogni funzione, perché non è più un rimedio. L’usus pauper delle cose era per lui la realizzazione di quella grazia paradisiaca che rimandava ad una sfera normativa non più umana. Olivi si era già posto la questione del potere pontificio e aveva già cercato di limitare la pienezza del suo potere. L’apologia della libertà che si concretizza nella sfera politica ha precisamente questa funzione. Se la libertà politica è la risposta del cittadino contro il governo oppressore, è vero che Olivi non ci fornisce una teoria politica della società civile: fonda la possibilità metafisica di una simile teoria, ma è convinto che la società più importante sia quella spirituale. Come ogni frate minore, è molto sensibile all’analisi della vita concreta degli uomini, e i suoi lavori economici ne sono la migliore illustrazione64 . Ma bisogna attendere almeno Scoto, se non Ockham, per vedere ben delineata una teoria politica della società. Inoltre, Olivi non ci fornisce 63. Corpus iuris canonici, C. XII, q. 1, c. 2. 64. Cf. l’introduzione di G. TODESCHINI. Un trattato di economia politica francescana. Roma, 1980; Idem, Il prezzo della salvezza, Firenze, 1994. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 59 LUCA PARISOLI neppure una vera e propria teoria generale del diritto: anticipa il volontarismo normativo del De perfectione statuum (opera la cui attribuzione eventuale a Scoto è controversa), di Scoto e di Ockham, ma non è realmente interessato ad una teoria generale di un sistema che ai suoi occhi ha una importanza sussidiaria nello stesso contesto della gerarchia normativa. Tuttavia, se l’attenzione si sposta sul potere spirituale, il problema della limitazione del potere assoluto del Papa diventa ben più vivido per lui, forse anche sotto la pressione dei pericoli incombenti dell’Anticristo. La risposta di Olivi è prima facie sorprendente: per limitare quel potere pontificale che rappresenta “summa potestas diffiniendi questiones et dubia fidei et omnes maiores ecclesie causas”65 e può “novam legem condere de quocunque ... et in omni tali et etiam in omni sententiali et autentica expositione dubiorum cristiane legis et fidei est sibi credendum et obediendum, nisi aperte esset contraria fidei Christi et legi”66 , escogita il meccanismo dell’infallibilità del Papa, come abbiamo già visto, sviluppando lo spazio semantico di questa clausola “nisi aperte”. IV. L’infallibilità del sovrano come garanzia costituzionale In un articolo di molti anni fa aveva già cercato di mostrare la posizione di Olivi sull’infallibilità pontificale67 . Vi difendevo la tesi 65. Pietro di Giovanni OLIVI. De renuntiatione papae Coelestini V, p. 347. 66. Ibidem, p. 351. Cf. Pietro di Giovanni OLIVI. Quaestio de indulgentia, ed. Péano, in Archivum Franciscanum Historicum, 74 (1981), pp. 72-73. 67. L. PARISOLI. «La formazione del concetto di infallibilità pontificia, da Pietro di Giovanni Olivi a Guglielmo di Ockham», Collectanea Franciscana, 67 (1997) pp. 431-458. Devo alle osservazioni di Fr. Johannes Schlageter la consapevolezza di chiarire semanticamente la mia posizione, corroborate dai dubbi di Marco Bartoli. Dopo le precisazioni semantiche che qui riporto, dopo tanti anni resto convinto della bontà della mia tesi, che devono essere però inserite in un quadro di storia del pensiero politico di lunga durata, pena disperdersi in sottigliezze archeologiche. 60 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ per cui Olivi sostiene l’infallibilità poiché il Papa è la inerrabili della Chiesa68 : preciso ancora una volta qui che cosa intendo per infallibilità, a scanso di equivoci. In un primo significato, equivalente al dogma attuale che venne anticipato da Guido Terreni quale consigliere di Giovanni XXII, vi è un individuo che è certamente Papa (in base a regole procedurali): le sue decisioni prese in qualità di decisore infallibile (assistito dallo Spirito Santo) sono necessariamente infallibili. In questo schema, l’infallibilità assicura il potere di determinare la Verità ad una persona che ha ricevuto per altre vie la qualifica di Papa. Il Papa è così il giudice ultimo in materia di fede, e il suo giudizio insindacabile e supremo (si prenda il caso della Humanae Vitae, apparentemente promulgata da Paolo VI in opposizione al giudizio di molti teologi contemporanei)69 . In un secondo senso, ci troviamo di fronte ad un individuo che è prima facie il Papa, ma non ci bastano le regole procedurali per asserire certamente che è il Papa, poiché l’Anticristo potrebbe celarsi nei suoi panni: per essere Papa, deve mostrare di non essere l’Anticristo, quindi di non sbagliarsi. Se per caso le sue decisioni sconfessano la Rivelazione e la Tradizione cattolica, allora non è più un vero Papa: infatti, le decisioni del vero Papa sono infallibili, e non contraddicono mai la verità. Ma questo Papa, in realtà non è che un individuo che con 68. L’uso lessicale di Olivi (cf. Quaestiones de perfectione evangelica 12, An Romano Pontifici in fide et moribus sit ab omnibus catholici tamquam regulae inerrabili obediendum, ed. M. MACCARRONE. in Rivista di storia della Chiesa 3 (1949) p. 325) permette il calco dal latino ‘inerrabile’ rispetto alla parola ‘infallibile’: non riesco a capire quale sia la differenza tra la parola ‘inerrabile’ (che non esiste nei dizionari della lingua italiana) e la parola ‘infallibile’, da non confondere con diverse e alternative teorie dell’infallibilità (i.e., inerrabilità). 69. E. LIO. Humanae vitae e infallibilità. Il concilio Paolo VI e Giovanni Paolo II, Vaticano, 1986. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 61 LUCA PARISOLI l’errore ha cessato di esserlo. In questo schema, l’infallibiltà limita il potere del Papa, dato che le sue decisioni sono confrontate da un potere Terzo alla Tradizione della Chiesa: se il Papa in carica, a giudizio dei teologi, sbaglia, allora si priva della sua qualità di Papa70 . Olivi ha creduto a questo senso di infallibilità, che si basa sulla divisone dei poteri, non già sulla confusione dei poteri teorizzata da Scoto e da tutti i partigiani del potere assoluto del Papa. L’infallibilità del Papa è la prima libertà politica che Olivi affida ai membri della Chiesa per proteggere le verità della tradizione: contro una deviazione del Papa, l’infallibilità agisce come un richiamo alla Tradizione, barriera costituzionale che il Papa non può violare. Prima che questo Papa ipotetico si presentasse sul serio, Olivi in sua quaestio71 teorizzò che un Papa non può cadere nell’eresia e permanere nel suo stato pontificale. Il Papa che pronunciava un’eresia era ipso facto decaduto dalla sua funzione: diventato l’ultimo dei cattolici, il giudizio nei suoi 70. Il rinvio a Quaestiones de perfectione evangelica 13, ed. L. OLIGER, De renuntiatione papae Coelestini V, p. 353, mostra che i cardinali hanno un potere eccezionale di procedere contro il Papa, ma non divengono per questo suoi giudici. 71. Pubblicata da M. MACCARRONE. Una questione inedita dell’Olivi sull’infallibilità del papa, in Rivista di storia della Chiesa in Italia, 3 (1949) p. 309, poi ripubblicato nella raccolta di scritti dello stesso autore Romana ecclesia cathedra Petri, Roma, 1991. Per una prospettiva diversa da quella che adotto si veda R. MANSELLI, Il caso del papa eretico nelle correnti spirituali del XIV secolo, in L’infallibilità. L’aspetto filosofico e teologico, a cura di E. CASTELLI, in cui Manselli giudica la posizione di Olivi come “una delle più precise e limpide difese dell’infallibilità del papa” (p. 115); in genere, per un approccio storico in senso tradizionale, si veda la rassegna bibliografica di M. BARTOLI, Pietro di Giovanni Olivi nella recente storiografia sul tema dell’infallibilità pontificia, in Bullettino dell’Istituto storico italiano per il medioevo e archivio muratoriano, 99 (1994) p. 149 (con il limite, a mio parere, di diluire l’originalità delle tesi di Olivi sull’infallibilità papale per una incomprensione della canonistica dell’epoca – cf. p. 151, in cui il fatto che il papa eretico cessi di essere papa è presentato come una banalità per i canonisti, mentre la questione, che pure esiste, è terribilmente complessa). 62 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ confronti non era più un problema di giurisdizione e competenza, un problema da canonisti. Il Papa non poteva così mai sbagliarsi in tema di fede e di morale; se lo avesse fatto, non sarebbe più stato un Papa, quindi la sua pronuncia del tutto indifferente. Quindi, il Papa era vincolato dalle pronunce dei suoi predecessori, purché questi fossero veri papi e la materia fosse quella della morale e della fede. Per la prima volta, la Verità era opposta all’autorità: il riconoscimento infallibile della verità limitava la pienezza del potere papale. Già, poiché la Verità era ricevuta dalla Rivelazione e dalla Tradizione, ed era infine garantita da una sfera del diritto divino che rappresentava un limite al potere papale, che doveva ripetere questa sfera, ma non poteva in nessun modo derogarvi. Il dogma attuale dell’infallibilità, invece, esalta il potere del Papa, e la vicenda dell’Humanae Vitae ci può mostrare l’importanza del dogma attuale nella vita della Chiesa, come ultimo bastione della continuità della Tradizione, esattamente come Maria fu l’unica a conservare la fede ai piedi della Croce nel momento più buio (per occhi umani) della Passione. Altra cosa dalla riflessione francescana di Olivi: la nozione di infallibilità papale si sviluppò all’interno delle discussioni sulla povertà francescana come reazione al vincolo argomentativo rappresentato dall’autorità papale. Si badi, non intendo dire che si tratti di una reazione dettata solo dalle contingenze, da un calcolo egoistico o altro, è vero invece il contrario: come ha brillantemente sostenuto Capitani72 , almeno la posizione di Olivi (ma lo stesso si potrebbe dire di Ockham73 ) sull’infallibilità si inserisce 72. O. CAPITANI. Il francescanesimo ed il papato da Bonaventura a Pietro di Giovanni Olivi: una riconsiderazione, in Ricerche storiche, 13 (1983) p. 595. 73. Occorre sempre dire che non tutti concordano sul fatto che Ockham abbia sostenuto una teoria dell’infallibilità: così, p. es., J. KILCULLEN. Ockham and Infallibility, in Journal of Religious History, 16 (1991) p. 387. Lo stato della questione mi pare chiaramente riassunto sulle pagine di Franciscan Studies – 24 (1986) – nell’opposizione tra John J. RYAN (Evasion and Ambiguity: Ockham and Tierney’s Ockham, p. 285) e B. TIERNEY (Ockham’s Infallibility and Ryan’s Infallibility, p. 295). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 63 LUCA PARISOLI con salda coerenza all’interno della sua filosofia globale, in cui spiccano una nozione nominalistica del concetto di diritto, una ecclesiologia profondamente escatologica, il ruolo centrale ed irrinunciabile della libertà umana74 . L’infallibilità è un contro-argomento da opporre all’affermazione della plenitudo potestatis, un picchetto posto non tanto contro la possibilità del Papa in carica di derogare ad una decisione del suo predecessore, quanto al fine di costringerlo a riconoscere lui stesso che esiste una specifica categoria di decisioni che non sono mai derogabili. Infatti, l’idea nuova dell’infallibilità è che certe pronunce papali, che riguardano la materia della Rivelazione, devono essere l’opinione della Chiesa universale, non perché il Papa abbia deciso così e così, ma perché il Papa deve necessariamente adeguarsi alla Rivelazione, altrimenti non sarebbe il Papa. Insomma, non una opportunistica furbizia per esaltare un Papa amico, bensì una vera e propria classificazione delle decisioni papali: alcune costitutive, altre, quelle che concernono la Rivelazione e la Tradizione, meramente dichiarative. Vediamo l’affermazione dell’infallibilità pontificia75 , o della inerranza del Papa come preferiscono dire altri per evitare ogni anacronismo con il dogma proclamato nel 1870 dal Concilio Vaticano I76 . Quello che è certo è che, sebbene l’apologetica cattolica abbia 74. La letteratura è concorde su queste considerazioni: mi limito a rinviare ad un lavoro recente in cui la centralità della libertà in Olivi, in opposizione ad ogni razionalismo filosofico, è resa brillantemente, F.X. PUTALLAZ. Insolente liberté. Fribourg, 1995, pp. 127-162. 75. Il testo di riferimento è B. TIERNEY. Origins of Papal Infallibility. 1150-1350. Leiden, 1988 (19721). 76. Questa proclamazione ha sollevato uno spirito di fronda verso la gerarchia cattolica che non ha nulla a che fare con la teologia. Ne è una dimostrazione un volume di A.B. HASLER, disponibile in tr. it. Come il Papa divenne infallibile, Torino, 1982: sebbene l’autore noti, sulla scorta di Tierney, che l’argomento dell’infallibilità del Papa fosse stato avanzato da Olivi contro la Sede apostolica, non si interroga minimamente su quali fossero gli argomenti di Olivi (per una critica pacata si veda la recensione di D. MENOZZI in Rivista storica italiana, 92 (1985) p. 381). 64 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ cercato di reperire testimonianze della tesi dell’infallibilità nei maggiori Dottori della Chiesa77 , l’idea che un Papa potesse errare era diffusa tra i canonisti del XIII secolo78 . Tutt’altra cosa era l’idea che la Chiesa fosse indefettibile, ossia che non potesse perseverare nell’errore, idea di cui la Rivelazione fornisce un’esplicita garanzia (Luca, 22, 32; si veda pure C. XXIV, q. 1). Mi interessa qui richiamare alcuni luoghi del Corpus iuris canonici, che formano i riferimenti positivi della questione: la dist. XIX, c. 9, su Papa Anastasio che cade nell’errore ed è “nutu divino percussus”; la dist. XL, c. 6, “dampnatur Apostolicus, qui suae et fraternae salutis est negligens” con la regola di non giudicabilità del Pontefice e l’eccezione della clausola “nisi a fide”79 ; la dist. XXI, c. 6 e 8, “maiores a minoribus iudicari non possunt”; la dist. XV, c. 2, sull’autorità dei primi quattro concili, “sicut sancti evangelii quatuor libros, sic quatuor concilia suscipere et venerari me fateor” (da integrare con dist. XVI, c. 8, e con C. XXV, q. 1., post c. 16); la C. XXV, q. 1, c. 6, sull’impossibilità per il Papa di derogare alle definizioni solenni di Cristo, degli Apostoli e dei Padri; la dist. 77. Uno dei casi più eclatanti per sincronismo è quello del peraltro benemerito frate Fedele da FANNA (poi curatore dell’Opera Omnia di San Bonaventura), Seraphici Doctoris D. Bonaventurae doctrina de Romani pontificis primatu et infallibilitate, Torino, 1870, oppure Renato BIANCHI, De constitutione monarchica ecclesiae et de infallibilitate Romani pontificis iuxta S. Thomas, Roma, 1870. Si veda pure U. BETTI, L’assenza dell’autorità di San Tommaso nel decreto vaticano sull’infallibilità pontificia, in Divinitas, 6 (1962) p. 407. 78. Si veda B. TIERNEY. Origins. cap. 1. Anche la letteratura di parte cattolica riconosce questa situazione: così il Dictionnaire de Théologie Catholique (Paris, 190950) al termine della lunga voce “Infaillibité du Pape” (VII), oppure la voce “Papauté: Infaillibilité pontificale” del Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique III, Paris, 1916. 79. Per alcune osservazioni sull’origine di questo canone, ma pure in genere sul papa eretico, segnalo J.M. MOYNIHAN. Papal Immunity and Liability in the Writings of the Medieval Canonists. Roma, 1961, pp. 27 e segg. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 65 LUCA PARISOLI XIX, c. 6, che riproduce un passo di Sant’Agostino, “inter canonicas scripturas decretales epistolae connumerantur”; la dist. XXI, c. 3, sul primato di Roma che “non aliqua sinodus, sed Christus instituit”. Senza entrare nel grande mare delle glosse al Decretum di Graziano80 , alcuni dati emergono chiaramente: il Papa può sbagliare nell’esercizio delle sue prerogative; non può essere giudicato da qualcuno a lui inferiore, a meno che non devi dalla retta fede (e la morale è materia equivalente); il suo ruolo è determinato dalla Rivelazione, non dagli uomini; la Tradizione della Santa Chiesa cattolica ha lo stesso valore della Rivelazione; il Papa è parte integrante della Tradizione81 . L’insieme di questi dati pone un problema: chi giudicherà il Papa che devia dalla fede, e per quali capi di accusa questo processo è legittimo? Le risposte dei canonisti sono varie, ma certamente un punto è incontestabile: si tratta di un problema di procedura contro un Papa che ha sbagliato. Si noti che a questo punto si possono applicare al Papa stesso i canoni che riguardano gli eretici: p. es., C. XXIV, q. 3, c. 31, che individua il crimine di eresia solo in chi persevera nell’errore dopo essere stato corretto (e al Papa si riconoscerà il privilegio di avere diritto a più richiami successivi al rispetto della retta fede); C. XXIV, q. 1, ante c. 1, 2-3, in cui l’eretico 80. Non posso che rimandare a B. TIERNEY. Foundations of the Conciliar Theory. Cambridge, 1955, oppure alla raccolta di suoi testi Church Law and Constitutional Thought in the Middle Ages. London, 1979. 81. Non va dimenticato che lo stesso Ockham, pur sviluppando una nuova ecclesiologia, riconosce ancora al papa (non certo quegli “eretici” contro cui riverserà la sua libellistica) un potere determinante nella costruzione della Tradizione, come ricorda Léon BAUDRY in epigrafe alla sua opera (Guillaume d’Occam: sa vie, ses oeuvres, ses idées sociales et politiques, Paris, 1949): “patet igitur quod cum controversis est inter theologos de aliquo articulo an sit consonus vel dissonus fidei christianae, ad Summum Pontificem est recurrendum” (Tractatus de corpore Christi, c. 37, in Opera Theologica X, New York, 1986, linee 69-71). 66 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ può incorrere nella scomunica latae sententiae; C. VI, q. 1, post c. 21, in cui i prelati possono essere accusati di eresia solo se il loro crimine è notorio, ossia se la fattispecie è già stata giudicata come credenza eretica; C. II, q. 7, post c. 22 e post c. 26, in cui l’eretico è l’ultimo dei Cattolici, quindi può essere giudicato anche da chi precedentemente gli era inferiore. Mi sembra che questa situazione possa rendere conto delle tesi di Olivi sulla inerranza del Papa. Da un lato, abbiamo una storia tormentata intorno all’interpretazione del voto di povertà contenuto nella Regola francescana, in cui l’intervento di Niccolò III è innanzitutto diretto a placare le divisioni interne ad un Ordine con neppure settant’anni di vita; dall’altro, abbiamo una dottrina canonistica che affronta il problema del Papa eretico e ne discute estesamente le implicazioni. Insomma, quando Olivi affronta il problema dell’autorità del Papa in fatto di Verità, egli si chiede se il Pontefice debba essere obbedito “tamquam regule inerrabili” da ogni cattolico: in altri termini, si chiede se le interpretazioni pontificali delle regole di un Ordine religioso siano sempre valide e inderogabili, oppure no. In quest’ottica, non è poi decisivo stabilire se la sua quaestio sia precedente alla Exiit qui seminat oppure posteriore82 : l’analisi di Olivi è comunque diretta a stabilire i rapporti tra l’autorità della Sede apostolica e le Verità rivelate (la fede e la morale). La sua escatologia che, gioachimita o meno, fissa degli stadi nell’evoluzione della cristianità ed utilizza largamente la figura dell’Anticristo (Lectura Super Apocalipsim)83 , non gli ostacolava certo di raffigurarsi l’ipotesi di un Papa eretico: gli stessi canonisti, che gioachimiti certo non erano, non avevano nessuna difficoltà a raffigurarselo. 82. B. TIERNEY. Origins, pp. 122-125. 83. R. MANSELLI. La “Lectura super Apocalipsim” di Pietro di Giovanni Olivi. Ricerche sull’escatologismo medievale. Roma, 1955. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 67 LUCA PARISOLI Olivi, a differenza di San Bonaventura84 , trasforma il problema iniziale dell’obbedienza al Pontefice nel problema della reale identità del Pontefice: in questo passaggio sta la frattura che porta dalla credenza nella indefettibilità della Santa Chiesa all’infallibilità del Papa85 . L’indefettibilità della Santa Chiesa è una tesi che si accorda perfettamente con le tesi degli stadi dell’evoluzione della cristianità, in cui fasi di smarrimento della vera dottrina convergono verso il trionfo finale della cristianità (la letteratura Spirituale sul modello della Historia septem tribulationum di Angelo Clareno dimostra la fortuna di questo schema all’interno del movimento francescano)86 : la garanzia ultima che assicura il trionfo finale è il corpus della Rivelazione e della Tradizione. Nel XIII secolo era correntemente ammesso che il Papa non potesse mai derogare alla dottrina di Cristo e degli Apostoli: tuttavia, era pure correntemente ammesso che un Papa potesse sbagliarsi. E se si fosse sbagliato a proposito della dottrina di Cristo e degli Apostoli? 84. San BONAVENTURA. Quaestiones disputatae de perfectione evangelica, IV, 3 “De obedentia summo Pontifice debita”, in Opera omnia V, ed. Quaracchi, p. 189. Si veda pure In IV, dist. XX, p. II, q. 3, in Opera omnia IV, p. 535, a proposito della “potestas clavium”. 85. Si vedano però le osservazioni, che limitano la portata delle tesi di Olivi alla “regula inerrabilis”, di Johannes Schlageter, Zur Genese der Unfehlbarkeitsdoktrin. Stellungnahamen zur Päpstlichen Lehrautorität von Bonaventura bis Ockham, in Bonaventura. Studien zu seiner Wirkungsgeschichte, Werl, 1976, pp. 121-222. 86. Si veda il forse troppo simpatetico testo di L. von AUW, Angelo Clareno et les Spirituels italiens. Roma, 1979; inoltre, con riferimento ad un momento importantissimo nella storia degli Ordini mendicanti, A. FRANCHI, Il Concilio di Lione II (1274) e la contestazione dei francescani delle Marche, in Picenum Seraphicum, 11 (1974) p. 53. Si noti che il Commento alla regola di Angelo Clareno, rimasto inedito e sconosciuto negli anni in cui divampava la lotta tra le varie anime dell’Ordine prima delle decisioni di Giovanni XXII, è quello in cui sono praticamente assenti considerazioni di tipo giuridico e politico, e sono invece presenti degli influssi della Cristianità orientale ortodossa: il testo è edito da L. OLIGER come Expositio Regulae fratrum minorum, Quaracchi, 1921. 68 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ Olivi riteneva che la Regola e il Vangelo coincidessero sostanzialmente, quindi una relazione ben più forte di quella di mera conformità: la visione di San Francesco come alter Christus era per lui più che un’iperbole, era una nuova Rivelazione87 . L’idea che una Chiesa legittimata da processi formali di formazione dell’autorità potesse anche solo avere la possibilità di modificare, pur sbagliandosi, la Rivelazione appariva ai suoi occhi come intollerabile ed assurdo. La Chiesa universale non poteva che essere l’organo di trasmissione delle Verità eterne, come del resto suggerisce lo stesso Corpus iuris canonici quando equipara il Vangelo e i pronunciamenti dei Concili ecumenici. Ad Olivi non interessa discutere il rapporto tra il Papa ed il collegio dei cardinali: riceve dalla tradizione francescana il massimo rispetto per il primato di Roma, e non lo discute88 . Del resto, il suo nominalismo che lo porta ad indicare come meramente verbali le nozioni di ius e di dominium89 , lo rende poco sensibile ad un approfondimento di una scienza giuridica, relegata in secondo piano rispetto allo spessore della realtà teologica: in questo senso l’usus pauper 87. In questo senso soprattutto la Declaratio super Regulam fratrum minorum, in Firmamentum trium ordinum, Venezia, 1513, p. III, f. 106 recto, a, e segg. (specie f. 107 recto, b), a cui si deve però affiancare la già citata Quaestio de voto regulam aliquam profitentis, pubblicata da F. Delorme in Antonianum, 16 (1941) p. 143. Inoltre David FLOOD ha curato l’edizione della Expositio super Regulam Fratum Minorum (Peter Olivi’s Rule Commentary, Wiesbaden, 1972). Sul tema dei rapporti normativi tra Regola e Vangelo rinvio a F. ELIZONDO. De evangelii et regulae franciscanae obligatione usque ad bullam “Exivi de Paradiso” Clementis V (6 mai 1312), in Laurentianum, 2 (1961) p. 226. 88. Si veda per esempio il passaggio in cui la concessione dell’indulgenza della Porziuncola non è concepita come una deroga a delle regole, bensì una piena espressione dell’autorità pontificia (P. PÉANO, La «Quaestio fr. Petri Iohannis Olivi» sur l’indulgence de la Portioncule, in Archivum Franciscanum Historicum, 74 (1981) p. 33 – si tratta del punto ottavo delle risposte alle obiezioni, a pp. 72-73). 89. F. DELORME. Question de P.J. Olivi “Quid ponat ius vel dominium” ou encore “De signis voluntariis”, in Antonianum, 20 (1945) p. 309. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 69 LUCA PARISOLI è per lui la vera cifra della povertà francescana rispetto all’espressione meramente nominale del simplex usus facti, ma questo implica una svalutazione della realtà giuridica che è incompatibile con altre metafisiche cristiane, come il contemporaneo tomismo (ma non solo). Il tema del peccato originale come elemento essenziale nella nascita non solo della proprietà privata, ma pure della rottura radicale tra diritto divino e diritto mondano, è stato ampiamente tematizzato da Tarello90 rispetto al Tractatus de Christi et Apostolorum paupertate di Bonagrazia da Bergamo91 , il futuro procuratore generale dell’Ordine che sarà la testa di ponte nella lotta contro Giovanni XXII. Ma sebbene il tema della proprietà privata come frutto “per iniquitatem” (C. XII, q. 1, c. 2) sia una costante nei pensatori dell’Ordine minoritico, non voglio qui generalizzare delle considerazioni relative ad Olivi alla scuola francescana in genere: la Summa fratris Alexandri92 dedica nel lib. III ampi spazi a problemi non solo di teoria giuridica93 , bensì pure di procedura. Tuttavia, Olivi sceglie un’altra via: per lui il problema del Papa eretico si risolve brillantemente, ossia dissolvendo il concetto stesso, con uno stile che precorre i virtuosismi di Scoto e di Ockham. La nozione di “papa eretico” è così inconsistente: dopo avere distinto tra il Papa come individuo privato e come individuo con una specifica 90. G. TARELLO. Profili giuridici della povertà nel francescanesimo prima di Occam. Milano, 1964. 91. Per uno studio recente di questo personaggio, E. L. WITTNEBEN. Bonagratia von Bergamo. Franziskanerjurist und Wortführer seines Ordens im Streit mit Papst Johannes XXII. Leiden, 2003. 92. Alessandro di HALES. Summa fratris Alexandri. Quaracchi, 1924-48 (il lib. III corrisponde al vol. IV dell’edizione). 93. Cf. O. LOTTIN. Psychologie et morale aux XII et XIII siècles II/1. Gembloux, 1948. 70 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ funzione94 , Olivi dichiara che un Papa non (può) sbaglia(re) mai, e se apparentemente sbaglia, in realtà non è più Papa. Il Papa infallibile diventa la guida della Chiesa indefettibile, in cui la Rivelazione si prolunga nella storia attraverso la serie di pronunciamenti papali infallibili in materia di fede e di morale. Quindi, la qualifica di infallibilità che Olivi attribuisce al Pontefice ha il risultato pratico di vincolare il Pontefice in carica alle pronunce in materia di fede e di morale dei suoi predecessori, che a loro volta nelle loro pronunce non avevano mai creato nessuna nuova Verità, ma avevano ripetuto e dichiarato il corpus della Rivelazione e della Tradizione. Rispetto alla bolla Exiit qui seminat, questa teoria sortisce l’effetto di consacrare la Regola francescana tra le Verità della Tradizione, a condizione di credere che la Regola e il Vangelo coincidano almeno per quanto riguarda l’eguaglianza {altissima paupertas = povertà di Cristo e degli Apostoli} – in caso contrario, senza questo nesso con il Vangelo, la decisione di Niccolò III sarebbe svincolata dalla materia della fede e della morale, quindi derogabile. Ma questa è “solo” una contingenza, per quanto rappresenti un vero e proprio vincolo alle ragioni delle parti: in realtà, Olivi ha costruito una genuina teoria dello stare decisis, del precedente vincolante, nei pronunciamenti fondamentali della Chiesa cattolica. E’ sorprendente constatare la coerenza di questa costruzione: essa si appoggia sui dati principali del Corpus iuris canonici, che abbiamo già visto sopra, la certezza della Verità dei pronunciamenti dei Concili ecumenici, la Rivelazione come limite alla plenitudo potestatis del Pontefice, che può anche cambiare nella pienezza del suo potere l’insegnamento degli 94. Si veda in particolare L. Oliger. Petri Iohannes Olivi de renuntiatione papae Coelestini V quaestio et epistola, in Archivum Franciscanum Historicum, 11 (1918) p. 309. Questa distinzione, essenziale nello schema oliviano, era del tutto inusuale nella discussione canonistica. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 71 LUCA PARISOLI Apostoli95 , ma non può che ripetere le Verità di fede e morale. Insomma, la indefettibilità della Chiesa unita all’insegnamento bonaventuriano del primato del Pontefice romano sortiscono in Olivi la tesi dell’infallibilità papale: chi, se non il capo della Chiesa, deve essere infallibile? Deve, si noti: semplicemente perché se non lo fosse, allora sarebbe eretico, il che è già intollerabile per qualunque cristiano, e lo è a fortiori per la guida della Chiesa cattolica. E se si riscontra che fallisce, alla luce della Rivelazione e della Tradizione, allora non è più vero Papa. Condizione necessaria, seppure non sufficiente, per essere Papa, è ripetere tutta la dottrina in materia di fede e morale della Santa Chiesa. Non è neppure necessario supporre che il Papa sia assistito in modo particolare dallo Spirito Santo: la Rivelazione stessa assicura l’indefettibilità della Chiesa, e il Papa non ne è che lo strumento della proclamazione solenne. Se come semplice viator sbaglia, questo non ha nessuna conseguenza: ciò che proclama in materia di fede e di morale non è vero perché lui lo proclama, piuttosto lui lo proclama perché lo assicurano la Rivelazione e la Tradizione. Infine, potere e Verità collassano nella figura papale, che diviene l’ultima istanza nelle divergenze teologiche, ma che è infine posto fuori dal tempo nello stesso (limitato) senso in cui la Rivelazione esprime verità fuori dal tempo. Olivi appartiene così ad una corrente minoritaria della cultura cattolica, almeno a partire dal trionfo della rivoluzione gregoriana che impose non solo nella Chiesa, ma nella stessa cultura occidentale latina il concetto di gerarchia politica. Tuttavia, le coordinate culturali di Olivi rappresentano una parte importante del patrimonio della cultura cattolica, e sono per molti versi assai vicine alla cultura cristiana 95. S. KUTTNER. Pope Lucius III and the Bigamous Archbishop of Palermo, in Medieval Studies presented to Aubrey Gwynn S.J., a cura di J.A. WATT, J.B. MORRAL, F.X. MARTIN, Dublin, 1961. 72 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 PIETRO DI GIOVANNI OLIVI E LA LIBERTÀ DELLA VOLONTÀ orientale, pur restando schiettamente latine: non solo la cifra del suo pensiero mistico, ma le stesse coordinate della sua struttura di pensiero possono permetterci di comprendere, in un’epoca in cui il Concilio Vaticano II ha posto nell’agenda geopolitica della Chiesa l’ecumenismo, la precisa posta in gioco nell’affermazione dell’unità della Chiesa, che lo stesso Olivi, in assenza di dubbi sulla non-identità tra Papa e Anticristo, concepiva come strettamente ordinata dal principio di obbedienza, quindi in ultima analisi gerarchica. Quali sono infatti i limiti dell’obbedienza, che è comunque considerata da Olivi la madre di tutte le virtù, in continuità con la tradizione del volontarismo di sant’Anselmo magistralmente espresso nel De casu diaboli96 ? Nel De oboedentia evangelica97 Olivi, dopo avere esaltato l’obbedienza sia in sé stessa – per esempio come principio del potere monocratico, sia nelle sue conseguenze benefiche – per esempio, l’unificazione di tante volontà in una sola ponendo fine a liti e dissensi, ne indica i limiti: il peccato manifesto, il manifesto pericolo di peccato mortale, l’imperfezione e l’impurità evidenti tali da intaccare la perfezione evangelica (e questa terza e ultima condizione si indirizza a chi ha fatto voto di perfezione evangelica)98 . Non c’è peccato veniale nell’obbedire agli ordini di un superiore autorizzato a ciò: “falsum est igitur quidam simplices aliquando dixerunt, quod scilicet omne peccatum veniale erat a subditis, quando eis imperabatur, propter bonum oboedientiae agendum”, ed è falso perché obbedire è un bene, 96. Ricordo che in quest’opera il peccato di Lucifero non è un’azione essenzialmente malvagia, ma è il fatto che Lucifero ha voluto in un momento dato quello che Dio non voleva che Lucifero volesse in quel momento dato. Questo è puro volontarismo normativo (De casu diaboli, cap. 4). 97. La Quaestiones de perfectione evangelica 11, come già visto, è edita in D. FLOOD, G. GÁL (a cura di), Peter of John Olivi on the Bible, pp. 373-406. 98. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. pp. 380-388. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 73 LUCA PARISOLI e se tale tesi fosse vera obbedire sarebbe un male, da cui la contraddizione99 . Tuttavia, è più grave disprezzare la legge divina che non quella di un prelato superiore, e sostenere il contrario è idolatria delle norma umana rispetto a quella divina, insomma quasi un’eresia. L’obbedienza è un bene supremo, ma l’uomo non è un legislatore supremo, e solo a Dio si deve obbedienza cieca: e Olivi lega la sua analisi alle parole stesse di san Francesco, volendo proporle non come interpretazione personale, bensì come spirito autentico dell’identità francescana 100 . Tanto grande è la virtù dell’obbedienza, tanto intangibili sono i suoi limiti come appello diretto al Cielo: “tres limites praedictos nullus limes alius potest dari quin aliquid diminuat de perfectione huius consilii seu voti”101 . Olivi resta insomma pienamente cattolico senza esprimere tuttavia una cultura della pienezza dei poteri della Sede apostolica come manifestazione della successione di Cristo: il dialogo ecumenico potrebbe trarre grande vantaggio dall’analisi di queste differenze tra pensatori medievali (Olivi e Scoto, per esempio) che pure si riconoscono senza esitazioni nell’identità della Chiesa Romana Cattolica, più semplicemente la Sede apostolica. 99. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. p. 382. 100. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. p. 385. 101. D. FLOOD, G. GÁL (a cura di). Peter of John Olivi on the Bible. p. 387. 74 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 33-74, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO DE JOÃO OLIVI (C.1248-1298): FUNDAMENTOS PARA A ELABORAÇÃO DO PENSAMENTO FRANCISCANO Profa. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães (DH – FFLCH – USP) De acordo com a tradição historiográfica da Ordem Franciscana , o ministro-geral Elias de Cortona (1221-1239), ao introduzir uma série de inovações no interior daquela instituição, passou a ser acusado de contrariar os ideais de seu fundador, desviando-a de seu primitivo projeto. Em conseqüência disso, por volta de 1236, um grupo de frades liderados por Cesário de Spira manifestou-se rebelde, opondo-se àquilo a que chamavam de extravagâncias no interior da Ordem. Os rebeldes foram denominados Cesarenos. Acusando-os perante o papa Gregório IX de desertores da disciplina da Ordem e de provocadores de discussões internas, Elias conseguiu deste uma autorização apostólica para castigá-los. Apesar da morte de Cesário, no cárcere, no ano de 1239, seus discípulos dispersaram-se pelas pro1 1. Destacamos, a título de referência historiográfica, os seguintes autores e obras: FALBEL, N. Os espirituais franciscanos. São Paulo: EDUSP/FAPESP/Perspectiva, 1995 (col. Estudos, 146); LEFF, Gordon. Heresy in the Later Middle Ages: The Relation of Heterodoxy to Dissent c.1250 – c.1450. Machester/Nova York: Manchester University Press/Barnes & Nobles, 1967 (2 vols.); MANSELLI, Raoul. “L’Anticristo mistico: Pietro di Giovanni Olivi, Ubertino da Casale e i papi del loro tempo”, in: Collectanea Franciscana, vol. 47, fasc. 1-2; Idem. “L’idéal du Spirituel selon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324. Privat Editeur, 1975; Idem. “Pietro di Giovanni Olivi ed Ubertino da Casale”, in: Studi Medievali, n° 6, 1965, pp. 95-122; Idem. Spirituali e beghini in Provenza. Roma: Istituto Palazzo Borromini, 1959. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 75 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES víncias, alguns desterrados, outros aprisionados. Outros ainda refugiaram-se e passaram a viver em lugares ermos, associados a uma tradição mais que secular no cristianismo, ansiando em sua solidão pela reforma da Ordem. Juntamente com eles, viriam a difundir-se também seus ideais de pobreza absoluta e sua indignação contra aquilo que consideravam atentados ao rigor disciplinar imposto por São Francisco de Assis. Falbel nos assinala que os primeiros representantes desse movimento – que haveria de precipitar-se no interior da Ordem originando o grupo rebelde dos Espirituais Franciscanos – encontram-se entre aqueles que formaram com o próprio São Francisco um círculo íntimo2 . Esse autor faz menção nominal a eles como: Bernardo de Quintavalle, o primeiro discípulo; Giles, que após a morte de Francisco passou a dedicar-se à contemplação mística; Leão, cognominado pecorella di Dio, confidente do mestre fundador e seu herdeiro no fervor e nos ideais; Ângelo e Rufino, que compuseram, juntamente com Leão, a Legenda Trium Sociorum3 . Desprovidos de qualquer ambição secular ou eclesiástica, esses primeiros companheiros de São Francisco de Assis tenderam a criticar as modificações que se começavam a delinear no seio da Ordem, e que tendiam a privilegiar os “relaxados” – os quais desejavam privilégios e segurança – e os litterati – defensores da posse de livros e de contatos íntimos com a inteligentsia da época. A chamada fuga mundi, atitude de refugiar-se em montanhas, cavernas e lugares ermos de uma forma geral – favorecendo uma postura eminentemente contemplativa, mas, ao mesmo tempo, marcando uma identificação com as ordens monásticas tardo-antigas 2. A esse respeito, destacamos a expressão de intimidade, utilizada nas narrativas a respeito dos primeiros tempos da Ordem, para designar as relações de seus primitivos membros com o santo fundador: “Nos qui cum eo fuimus” (Nós que estivemos com ele). Cf. FALBEL, Nachman. Os Espirituais...., p. 106. 3. Cf. IDEM, Ibidem. 76 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI e com o eremitismo romano-cristão – marcou o comportamento desses fratres de Francisco4 . Esse modo de vida, entretanto, passados alguns anos, não mais se encontrava em conformidade, quer com a normatização e a sistematização pretendidas pela Sé Romana – de acordo com uma disciplina organizada em moldes administrativos e desempenhando funções diversas em vista dos interesses e necessidades da Igreja Católica –, quer com o crescimento da Ordem – a partir da afluência de novos membros, o que a impossibilitava de permanecer como uma fraternitas de tipo eremítico. Nesse contexto, assumiu lugar de destaque a questão da pobreza, sobre a qual se alicerçava a Ordem Franciscana e sobre cuja observância teve lugar a querela entre a Comunidade (partidários da observância ampla, e no mais das vezes com respaldo do clero secular e da Cúria Romana) e o grupo Espiritual (defensor da observância estrita e tido por faccioso pelo radicalismo de suas posturas). Contudo, o grupo que assim se foi delimitando como opositor das mudanças e como defensor da observância estrita àquilo que supunham e afirmavam ser os ditames de Francisco, e que se iria designar pelo nome de Espirituais Franciscanos (mais tarde, identificado como herético), teria como berço enquanto grupo faccioso e perse- 4. A respeito do tema da fuga mundi, do desligamento dos ofícios administrativos e das questões de poder envolvendo os clérigos numa vida semi-laica, Falbel já assinalava um escrito franciscano, expoente do seu ideal de santidade humilde e reclusa. O opúsculo intitula-se Aos que querem habitar nos eremitérios. Aqui encontramos citadas as palavras do próprio Frei Leão, confessor e companheiro de Francisco: “Depois disse São Francisco: ‘Como eles se alimentarão e de que maneira viverão meus filhos, que necessitarem viver nos bosques?’ A isto respondeu Cristo: ‘Eu cuidarei de alimentá-los do mesmo modo que se fez com os filhos de Israel: dando-lhes o maná do deserto; porque tais religiosos serão bons e volverão ao primitivo estado quando foi fundada e começou a Ordem.’ Mas o eremita não deixará de ser suspeito, tanto pelo seu modo de vida, isto é, fora da disciplina religiosa, como pelas suas possíveis convicções.” IDEM, Ibidem, nota 8, p. 106. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 77 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES guido a marca de Ancona, na Itália central. É possível identificar tal ocorrência a partir do ano de 1274, quando, às vésperas do Concílio de Lyon – ocasião em que havia rumores de que o papa Gregório X pretendia transformar as ordens mendicantes de modo a seguirem o estilo de vida das ordens tradicionais, obrigando-as a que fossem possuidoras de bens e de propriedades –, surgiu naquela região uma oposição organizada. Essa área da Península Itálica, com sua paisagem de vales e montanhas, acabou por revelar-se uma profícua favorecedora do desenvolvimento do movimento, pois houvera favorecido, desde a era pré-cristã, a afluência de toda sorte de eremitas e de místicos5 . De acordo com o espiritualismo franciscano, o elemento fundador de toda a doutrina cristã era o Evangelho (entendido este nas suas quatro variantes canônicas), com o qual os expoentes da facção em questão passaram a identificar a própria Regra de São Francisco de Assis. O frade espiritual entendia o cristianismo à luz dos Evangelhos e da atmosfera de religiosidade que deles emanava, sem a demanda da aferição de outras razões para além da própria fé. Paralelamente a esse traço de concepção da fé cristã comum aos membros do grupo, desenvolvia-se – sobretudo entre as comunidades situadas no perímetro compreendido entre a França meridional e a Itália central – um fenômeno marcado pela sobreposição de idéias estranhas ao franciscanismo das origens e às idéias e práticas encetadas pela facção rebelde. Trata-se do chamado “Franciscanismo Joaquimita” que, segundo Gordon Leff, foi apenas uma das várias formas que tomaram as doutrinas do abade calabrês Joaquim de Fiore nas mãos de seus discípulos6 . Assim, um mentor proeminente de alguns dos chamados Espi- 5. A esse respeito, v. PACAUT, M. Les ordres monastiques et religieux au Moyen Âge. Paris: Nathan, 1993. 6. Cf. LEFF, Gordon. Op. cit., p. 176. 78 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI rituais Franciscanos nesse terreno foi, sem dúvida, o abade calabrês Joaquim de Fiore (1135-1202), com sua concepção trinitária da história da Igreja. Ocorreu aqui, portanto, uma simbiose entre elementos franciscanos e não franciscanos. Os resultados foram, dentre outros, a preconização de mudanças próximas, prenúncio do fim dos tempos; a difusão de idéias que tendiam a identificar Jesus Cristo e São Francisco de Assis; o anúncio de uma futura renovação eclesiástica operada por poucos (no caso o próprio grupo dos Espirituais Franciscanos, auto-intitulados viri spirituales, seguidores de São Francisco, porta-vozes da verdade de Cristo7 ). Muito embora a aparência apontasse na direção do questionamento à Igreja Romana e de sua hierarquia, o movimento refletia antes – e acima de tudo – o desejo de reforma, tomando, por vezes, o aspecto de uma reelaboração do cristianismo primitivo. Não deveria perecer, portanto, a instituição eclesiástica, mas antes regenerar-se para dar lugar a uma nova Igreja, isenta do fausto, da glória e do poder. Buscava-se não uma destruição da Igreja, mas sim uma alternativa para a vida de seus pastores. A base desse projeto era, portanto, não a desobediência, mas sim a obediência rigorosa ao ensinamento evangélico, fundamento de toda doutrina. Para tanto, faziam apelo ao modelo de vida dos apóstolos de Jesus Cristo – a chamada vita apostolica, marcada pela pobreza, pela humildade e pela mendicância, características de que se preencheu o cristianismo em sua fase mais primitiva, e que agora eles forcejavam por resgatar –, aos quais os próprios Espirituais Franciscanos acabavam por comparar-se. A inserção do movimento espiritual fazia-se, portanto, como luta no interior da Igreja e sob fidelidade à fé ortodo- 7. Conforme referências recorrentes presentes na Arbor vitae crucifixae Iesu, de Ubertino de Casale, e na Historia septem tribulationum ordinis minorum, de Ângelo Clareno. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 79 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES xa, e jamais sob pena de exclusão de tal fé – caso da criação de nova religião – ou de cisão em relação a tal Igreja – caso da evolução para uma seita. Nos dizeres de Manselli, “a sua preocupação fundamental (...) não era uma expectativa escatológica aflita ou uma vontade de tomar partido de si, distinguindo-se através de alguma coisa do corpo da Igreja, mas apenas o desejo de uma vida espiritual mais fervorosa e mais sincera no âmbito da Igreja e sem qualquer veleidade de cisma”8 . A partir de fins do século XIII, com a intensificação das querelas em torno dos ideais de pobreza professados pelos membros da Ordem, três personalidades muito importantes para a evolução das questões relativas ao tema viriam reforçar, muito embora de formas diversas, o partido dos Espirituais. São elas: Pedro de João Olivi (12481298); Ângelo Clareno (1247-1337); e Ubertino de Casale (1259c.1328). A par disso, alguns de seus confrades lograram influência ímpar, como Arnaldo de Vilanova. Alavancando as discussões acerca da pobreza por meio de escritos e de atitudes, esses homens reuniram em torno de si, sobretudo na Itália do norte e central e na França meridional, não somente religiosos – entre pertencentes e não pertencentes à Ordem – mas também laicos, sendo que estes últimos foram chamados de Bizochi na Itália, e de Béguins na França. Com relação a esses últimos, a considerar suas formas de organização e suas relações com o movimento franciscano, pode-se dizer que Pedro de João Olivi desempenharia um papel fundamental para a elaboração do movimento e para a consolidação de suas práticas. A série de processos inquisitoriais contra os Beguinos – que teriam lugar nos primeiros decênios século XIV, com ênfase para o período compreendido entre 1321 e 1325 – foi sistematizada por Limborch; 8 Cf. MANSELLI, Raoul. Op. cit., p. 75. 80 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI dispomos de uma edição de fins do século XIX9 . Os processos foram conduzidos, em sua maior parte, pelo dominicano Bernardo Gui10 . Além disso, o mesmo Olivi com seus escritos rigoristas e suas principais obras exegéticas – com destaque para o Comentário sobre o Apocalipse – figuraram como eixos para aquilo que se consolidou, na nomenclatura curial, como Espiritualismo Franciscano, acepção derivada da terminologia – viri spirituales –, recorrente nas obras e opúsculos produzidos pelos mesmos no contexto da contenda que os opôs, ao longo das três primeiras décadas do século XIV, aos Conventuais, por um lado, e à Cúria Romana-Avinhonense, por outro. Pedro de João Olivi teria nascido entre 1248 e 1249, em Sérignan, no distrito de Hérault, no Languedoc. É provável que tenha ingressado na Ordem Franciscana entre 1260 e 1261, no convento de Béziers, com a idade de doze anos. Mais tarde, enviado a Paris, teria recebido seu bacharelado em Teologia. Os últimos anos de sua vida, ele teria 9. LIMBORCH (ed.). Liber Sententiarum Inquisitionis Tholosanae, ab anno Christi MCCCVII ad annum MCCCXXIII. 10. Uma aguda admiração pelo mestre pode ser depreendida do depoimento de Petrus Moresii, que teria declarado a Bernardo Gui10: “Item quod non fuit aliquos doctor, excepto sancto Paulo et predicto fratre Petro Iohannis, cuius aliqua dicta non fuerint per ecclesiam refutata, set scriptura et doctrina sancti Pauli et predicti fratris Petri Iohannis est tenenda totaliter per ecclesiam, nec est una littera dimittenda.” Col Doat, vol. XXVIII, fl. 229v.-230r., apud MANSELLI, Raoul. Spirituali..., nota 1, p. 182. No depoimento de Petrus Gaufridi, encontramos juízos contundentes a esse respeito: “& ipsum [Olivi] apellant sanctum patrem & magnum doctorem, & ipse ita credebat quod non fuisset major doctor eo ab apostolis citra, & audivit dicti seu legi inter beguinos ipsum fuisse & esse spiritualiter illum angelum de quo scribitur in apocalipsi quos facies ejus erat sicut sol, & habebat librum apertum in manu sua, quia singulariter inter omnes alios doctores fuerat ei aperta verita Christi & intelligencia libri apocalipsis, de quo libro in postilla ejusdem fratris P. Iohannis plura legerat scripta & posita in vulgari” (LIMBORCH, Ph. Op. cit.– “Depoimento de Petrus Gaufridi”, fl. 163v. p. 325). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 81 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES vivido no convento de Narbona, mantendo boas relações com o clero e com os notáveis. Veio a falecer aos 14 de março de 1298, tendo legado uma profissão de fé na qual afirmava as doutrinas que sustentara em vida. Sua presença, por vezes tida por heterodoxa – o que se revela, sob um outro ponto de vista, um equívoco –, acabou muitas vezes por causar reservas, chegando mesmo a ser censurado e removido de sua cátedra. Em 1287, após ter sido reabilitado, tornou-se lector em Florença, estada ao longo da qual cimentou relações entre italianos e franceses do sul: era o início de um frutífero relacionamento com a ala italiana dos reformadores da Ordem, dentre os quais logrou destaque Ubertino de Casale e, possivelmente – mas não provavelmente –, Ângelo Clareno. De volta à sua terra natal, em 1289, tornou-se lector nas casas franciscanas em Montpellier e Narbona. Ao morrer, seu culto espalhou-se, dando origem a peregrinações. Passou a ser considerado um santo não-canonizado. Ele seria identificado aos doutores da Igreja, em especial a São Paulo, ao qual a Revelação da Santa Escritura também houvera sido prodigada11 . A devoção em torno da figura de Olivi remetia a referências milagrosas, como se pode depreender dos depoimentos mais correntes12 . 11. “cuius aliqua dicta non fuerint per ecclesia refutata, set scriptura & doctrina sancti Pauli & praedicti P. Iohannis est tenenda totaliter per ecclesia, nec est una littera dimittenda” (LIMBORCH, Ph. (ed.). Op. cit., “Processo de Petrus Moresii”, fl. 154b, p. 306). 12. “Item scripturam fratris Petri Ioannis credidit esse bonam et catholicam et dictum fratrem Petrum Ioannis [m. Ioannem] esse sanctum et quandam filiam suam, quae patiebatur infirmitatem in gutture, scilicet scroellas ad sepulcrum suum duxit et curata fuit et credidit quod per orationem dicti fratris Petri curata fuerit, quem fratrem Petrum adhuc credit esse in Paradiso, licet dicat se audivisse quod in scriptura sua continentur errores, sed audivit insuper quod in fine supponit eam correctioni sancte Ecclesie...” (Col. Doat, XXVII, fl. 18r – Depoimento de Sibilla Cazelle di Gignac, nov. 1325, apud MANSELLI. Spirituali..., nota 2, p. 37). 82 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI Dentre seus escritos, destacam-se, além dos dois tratados De Paupere usu e De Perfectione evangelica – escritos de base rigorista, defensores da prática estrita do usus pauper no interior da Regra, editados por David Burr13 e uma das razões para que sua memória fosse levada além por uma série de movimentos identificados à Ordem, fossem de base laica ou não –, comentários sobre o Gênese, os Salmos, os Provérbios, o Cântico dos Cânticos, os Evangelhos e o Apocalipse, um tratado sobre a autoridade do papa – o De renuntiatione papae14 – e do concílio e uma exposição sobre a Regra de São Francisco – trata-se da Declaratio in regulam, na qual ele elabora uma teoria da vida cristã em pleno acordo com os evangelhos. Ele compreende a Regra de Francisco como o documento formalmente adequado a um projeto de vida plenamente evangélico15 . Ao tratar, ainda, da Regra Franciscana, Olivi considera a questão do poder papal de dispensar de um voto e, em particular, de votos evangélicos. O frade faz referência ao fato de o papa poder comutar a matéria de um voto em uma ação melhor. Entretanto, tal possibilidade encontra-se excluída no caso dos votos evangélicos. Dessa forma, o papa não pode dispensá-los. Essa postura de Olivi coaduna-se perfeitamente com sua concepção do desenvolvimento da história. A vida evangélica pertence ao último tempo da viagem do homem em direção à ordem eterna. A Regra de São Francisco manifesta o engaja- 13. BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestio and the Tractatus. Firenze/ Perth, 1992, pp. 92-93. 14. Escrito que alimentaria, em princípios do século XIV, no ambiente franciscano, a célebre controvérsia a respeito da renúncia de Celestino V e da ascensão de Bonifácio VIII ao trono pontifício. 15. Apud FLOOD, David. “Pierre Jean-Olivi et la Règle Franciscaine”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10 – Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324, Privat Editeur, p. 143. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 83 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES mento dos homens à vida segundo o Evangelho. Por essa razão, é impossível dispensá-los16 . Ao fim de sua resposta à questão sobre o poder papal de dispensar dos votos, Olivi explica que Francisco compreendera bem isto, e, por essa razão, decretou que ninguém poderia retirar-se da Ordem uma vez introduzido nela. O frade prossegue nesse aspecto por intermédio de uma interpretação do Testamento de São Francisco de Assis. Ele explica que Francisco deixara sua última mensagem a seus irmãos a fim de impedir que alguém se dirigisse a Roma no desejo de fazer relevar os rigores da Regra. Assim, seu Testamento não impusera nenhuma nova lei aos frades. Antes, explica ele, Francisco não possuía autoridade para fazê-lo17 . Ainda em seu comentário sobre a Regra, Olivi discorre a respeito de três pontos, que definem, a saber, a teoria, a localização social e o sentido histórico desse documento. Quanto ao primeiro aspecto, afirma a identidade entre a Regra Franciscana e o Evangelho. O modo de vida seguido por Francisco e por seus irmãos é a vida vivida por Cristo e imposta por ele a seus apóstolos18 . Quanto ao segundo aspecto, em contrapartida, ao mesmo tempo em que confere à prática da Regra uma validade evangélica, Olivi assegura que este corpus de homens que vivem de acordo com o Evangelho o faz dentro da Igreja, submisso ao papa. Quanto mais um grupo procura realizar o Evangelho em sua vida, mais ele é obrigado a enraizar-se profundamente na Igreja, unificada sob a autoridade do papa19 . Quanto ao terceiro aspecto, o frade considera a vida proposta pela Regra como a continuação da história de São Francisco de Assis. 16. Apud IDEM, Ibidem, p. 147. 17. Apud IDEM, Ibidem. 18. Apud FLOOD, David. “Art. cit.”, p. 140. 19. Apud IDEM, Ibidem, p. 141. 84 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI Assim, a Regra fazia mais do que prescrever o gênero de vida conduzido por São Francisco de Assis. Ela, com efeito, unia os frades menores àquele homem como forma de continuação do projeto misterioso que o Santo Espírito havia iniciado com ele. Ele precisa, nesse caso, que qualquer outra instituição consagrada ao mesmo programa evangélico não desempenharia o mesmo papel histórico decretado pelo status e pela ordo da sucessão franciscana. Olivi não considera, pois, a Ordem, que existe pela Regra e vive segundo a Regra, como distinta da história vivida por Francisco20 . É de se supor a grande repercussão atingida por sua obra, dado que seu comentário sobre o Apocalipse – a Lectura super Apocalypsim –, seu escrito de maior destaque, foi lido tanto em latim quanto em vulgar. Afirmava-se-lhe um poder de captação de verdades reveladas e, portanto, a autenticidade de sua doutrina, enquanto inspirada pela luz divina e, naturalmente, católica21 . Seus pontos de vista foram sintetizados por Ângelo Clareno em seu Historia Septem Tribulationum Ordinis Minorum. Pregava-se a frugalidade, condensada em preceitos de retorno ao Cristianismo primitivo e de 20. Apud IDEM, Ibidem, p. 142. 21. “Item, dicunt et asseverant quod tota doctrina et scriptura fratris Petri Iohannis Olivi de ordine fratrum Minorum est vera et catholica et eamdem credunt et dicunt fuisse ei a Domino revelatam et dicunt dictum fratrem Petrum Iohannis hoc ipsum, dum vivebat, suis familiaribus revelasse. Item, eumdem fratrem Petrum Iohannis communiter vocant sanctum patrem non canonizatum.” GUI, Bernard. Manuel de l’Inquisiteur. Ed. e trad. por G. Mollat, colab. De G. Drioux, sob o título Manuel de l’Inquisiteur. Paris: Les Belles Lettres, 1964, p. 138. Assim, o depoimento de Raymundus Stephani de Cruce: “Item dixit & asseruit se credere & tenere de doctrina fratris Petri Johannis Olivi, tam in postilla super apocalipsim quam in tractatu de paupertate, de quibus audivit aliquociens sibi legi, quam in aliis libris suis, quod sit bone & catolica. Item quod sit dominus papa per se ipsum auctoritate propria absque concilio prelatorum universaliter congregatorum condempnaret dictam doctrinam in parte vel in toto ipse non reputaret eam condempnatam etiam si hoc faceret de concilio cardinalem.” LIMBORCH, Ph. (ed.). Op. cit. – “Processo de Raymundus Stephani de Cruce”, fl. 162b., pp. 322-3. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 85 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES apologia a São Francisco de Assis, o que acabou por se tornar um topos dos movimentos espiritual e beguino: “não concedia a seus irmãos mais que o consumo de alimentos necessários para a vida de cada dia e o uso de objetos, breviários ou vestimentas sagradas que servem para o ofício divino. Proibia-os de receber donativos pelas sepulturas outorgadas em igrejas de frades menores ou qualquer outra doação”22 . A condenação dos escritos de Olivi estaria relacionada com as disputas intraclericais verificadas nessa época de fermentos no meio eclesiástico. Trata-se das contendas inerentes à gênese e à atuação da Inquisição. Elas demonstram a tendência, por parte dos seculares, à tentativa de restringir o campo de atuação dos regulares, em especial no interior das Universidades. O conhecimento monástico – em especial no interior da Universidade – projetava sombras sobre o clero episcopal e das paróquias e sobre a hierarquia. Assim, na Universidade de Paris, uma disputa, derivada do ressentimento do clero secular – pela virtual perda de prestígio para o clero regular graças ao ingresso de seus magistri naquela instituição – grassava e arrastava consigo os escritos que sobressaíam por conter afirmações que pudessem suscitar o debate23 . 22. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 83. 23. Com efeito, em meados do século XIII, a Universidade de Paris encontrava-se envolvida em agitada luta contra as Ordens Mendicantes – Franciscanos e Dominicanos. O início da contenda situa-se na figura de Guilherme de Saint Amour, cônego de Beauvais e, desde 1247, professor de filosofia e teologia na Universidade de Paris. Este voltou-se contra as Ordens Mendicantes num momento em que elas conheciam um período de significativa ascensão no interior da Universidade, uma vez que passaram, pouco a pouco, a apoderar-se das cátedras universitárias, que antes constituíam patrimônio exclusivo do clero secular. Por escrito, no púlpito e na cátedra, começou Guilherme de Saint Amour a atacar os Mendicantes, começando pelos Dominicanos, e passando, em seguida, aos Franciscanos. Manifestouse contra seus direitos e privilégios de predicar e de confessar, bem como de enterrar em suas igrejas; o ideal da pobreza em comum, assim como sua existência propriamente dita como instituições religiosas, ridicularizando-os. Em sua contenda, Guilherme logrou angariar a seu favor grande parte do clero secular, destacando-se aqueles membros que, em função da presença das Ordens Mendicantes, 86 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI De acordo com alguns autores24 , Pedro de João Olivi, franciscano da Provença, teria recebido estímulos dos escritos apocalípticos do criam ameaçados os seus privilégios econômicos diante das atividades conventuais. Em seu empenho em detratar as Ordens Mendicantes, Guilherme acabou por publicar o livro De Antichristo (1254) e o tratado De periculis novissimorum temporum (1256). Com isso, a hostilidade, que se havia iniciado no terreno jurídico, passou ao terreno dogmático, uma vez que o catedrático, em seus dois escritos, conflitava com a doutrina evangélica referente à pobreza. Os Franciscanos e Dominicanos não deixaram, contudo, de reagir. Assim, São Tomás, Santo Alberto Magno e o Franciscano Tomás de York assumiram a defesa de suas ordens. São Tomás redigiu a obra Contra impugnantes Dei cultum; Santo Alberto Magno, sua Philosophia pauperum, e Tomás de York, o livro intitulado Manus quae contra Omnipotentem tenditur. Boaventura, por seu turno, também não deixaria de tomar a si a defesa da pobreza evangélica, identificada com a perfeição. Ele encontrava-se, por essa época, na Universidade de Paris, na função de mestre. Interveio, portanto, no debate, compondo as chamadas Quaestiones disputatae de perfectione evangelica. Nelas, trata-se das virtudes evangélicas, a saber, humildade, pobreza, castidade e obediência, as quais formariam o núcleo do estado religioso. Uma ocasião semelhante motivou outra magnífica obra de São Boaventura, a Apologia pauperum contra calumniatorem. A luta, num primeiro momento, havia-se dissipado. Com efeito, o papa Alexandre IV condenou, em Agnani, após o exame de uma comissão de cardeais, em 5 de outubro de 1256, o Tractatus brevis de periculis novissimorum temporum, publicado por Guilherme naquele mesmo ano23. Pela sua sentença, foi privado, juntamente com seus colegas, de suas dignidades e benefícios eclesiásticos e da cátedra, saindo desterrado de Paris e da França por ordem do rei Luís IX. Em seu desterro, entretanto, não se assinalou um fim à campanha contra o estado religioso. Nova luta, com efeito, iniciou-se, da qual veio a ser pivô Geraldo de Abbéville, cônego de Amiens, amigo de Guilherme e, como ele, mestre na Universidade de Paris. Este novo adversário do Mendicantes escreveu o livro Contra adversarium perfectionis christianae, obra na qual combatia furiosamente o franciscano Tomás de York. A luta desenvolvia-se nos terrenos doutrinal e prático a um tempo: “O inimigo dos Mendicantes intentava primeiramente abater o cume da perfeição evangélica, em seguida derrubar seus muros, depois destruir seus fundamentos e, por último, difamada já caluniosamente a profissão dos Pobres de Cristo, torná-la abominável aos olhos do mundo.” (Apud SÃO BOAVENTURA. Quaestiones disputatae de perfectione evangelica, in: Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay, O.F.M.; Fr. Miguel Oromi, O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: BAC, 1949, p. 7). O momento era, portanto, de desvio ascético, e São Boaventura redigiu, então, sua Apologia pauperum contra calumniatorem. Trata-se de uma obra que sempre fora considerada, pelos eruditos, como autêntica de Boaventura. Ele teria Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 87 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES abade calabrês Joaquim de Fiore (1136-1202). Assim, de acordo com toda uma literatura que tende a perdurar até os dias de hoje e a coexistir, com alguns escritos revisionistas recentes25 , um componente importante das correntes místico-espirituais franciscanas pode ser encontrado na obra do abade calabrês Joaquim de Fiore (1136-1202). Nascido em Celico, na Calábria, Joaquim de Fiore é considerado uma fonte inesgotável de inspiração para movimentos de tal porte, tendo em vista sua proposta e seu método, consignados em sua chamada escrito esse opúsculo sendo já ministro geral e, provavelmente, antes de 1269. A ocasião era, portanto, aquela da defesa das ordens Mendicantes contra as acusações lançadas pelos mestres de Paris. Concretamente, na verdade, contra Geraldo de Abbéville e seus seguidores. Consiste em obra realizada com extrema diligência, abundante doutrina e grande sensibilidade, na qual abundam os textos da Sagrada Escritura e dos santos padres da igreja. O santo desfaz os sofismas e falsos princípios de seu adversário, expõe de forma sólida a doutrina evangélica e declara o sentido exato da regra dos Frades Menores. Mostra-se, nessa ocasião, mais duro do que havia estado com relação a Guilherme de Saint Amour, a quem Alexandre IV condenara no ano de 1256. Em sua crítica a Geraldo de Abbéville, fixa o conceito da perfeição, celebra a sublimidade da vida religiosa e exalta a pobreza de Cristo, modelo da pobreza dos Mendicantes. Trata-se da obra culminante escrita por Boaventura acerca da perfeição evangélica. Boaventura afirma que Geraldo, “ao colocar a abundância dos bens temporais no cume da perfeição evangélica, e caluniando como imperfeita e supersticiosa a voluntária carência dos mesmos, confessa-se discípulo daquele [Guilherme de Saint Amour] que compôs um opúsculo contra as Ordens dos evangelizadores e pobres Mendicantes, condenada pela Sé Apostólica.” (SÃO BOAVENTURA. Apologia pauperum contra calumniatorem, in: Obras de San Buenaventura. Eds. Fr. Bernardo Aperribay, O.F.M.; Fr. Miguel Oromi, O.F.M.; Fr. Miguel Oltra, O.F.M. Madrid: BAC, 1949, p. 542.) Tais homens, arrogantes no entender de São Boaventura, alimentavam-se com a vaidade deste mundo, crendo conquistar grande glória ao chamar de simulação dolosa a verdadeira santidade dos santos e ao reprovar sua prudência de espírito como insensatez (Ibidem, p. 636). 24. Destacam-se LEFF, G. Op. cit. e FALBEL, N. Os Espirituais.... 25. A esse respeito, v. POTESTÀ, G.L. Storia ed escatologia in Ubertino da Casale. Milano: Università Cattolica del Sacro Cuore, 1980 (Vita e Pensiero); “Un secolo di studi sull’ ‘Arbor vitae’: Chiesa ed escatologia in Ubertino da Casale”, in: Collectanea Franciscana, vol. 47, 1977, pp. 217-267. 88 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI doutrina trinitária. Trata-se da trindade manifesta na história da humanidade, determinando uma série de etapas no curso de sua existência. Nos dizeres de Falbel, “Mais do que isso, a Trindade serve de esquema para reconhecer uma escala de valores éticos no comportamento da humanidade, no roteiro de sua salvação”26 . Sua Lectura super Apocalypsim teria, dessa forma, reproduzido e desenvolvido uma série de preocupações e matrizes teóricas postuladas por Joaquim em suas obras. No entanto, conforme dito acima, o próprio alcance de tal influxo sobre a obra de Olivi é controverso. É comum encontrar, no pensamento de Pedro de João Olivi, uma tentativa de identificação entre os stigmata de Cristo e a degradação moral da Igreja, bem como as atribulações que dela resultavam. Assim, a primeira atribulação – a opressão clerical – representava as chagas nos pés de Cristo. A rapinagem e a fraudulência clericais, as chagas de suas mãos. Por fim, a luxúria clerical identificava-se às feridas abertas em seu lado e em seu coração27 . Olivi procedeu à identificação de cada era da história eclesiástica a uma figura do bestiário. A preeminência pertencia à quinta Era, ou seja, a então atual. A figura representativa, nesse caso, era o dragão de sete cabeças, que evocava a extrema virulência em função das evidências observadas com respeito ao comportamento dos membros do clero. O mundo seria então governado pelo instinto, e não pela razão. No entender dos Beguinos, emergiria a besta com sete cabeças, às quais se acrescentariam dez chifres, e a figura seria reportada à exis26. FALBEL, Nachman. “São Bento e a ordo monachorum de Joaquim de Fiore (1136-1202)”, in: Revista USP, São Paulo, Jun-Jul-Ago, 1996, p. 273. 27. “In prima autem tribulatione clericales conculcant plebeios quasi pedes per fastum arrogantie et per contemptum contumelie seu parvificentie per rapine molestiam et per calumnie fraudulentiam sunt eorum manus aliorum. Per lateralem autem sive visceralem aperturam luxurie cruciant eorum corda et viscera” (Apud LEFF, Gordon. Op. cit., p. 128). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 89 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES tência da Igreja atual enquanto grande prostituta da Babilônia, corrompida pelos vícios mundanos28 . A besta ascenderia à superfície da Terra por meio da multidão de pessoas bestiais caídas em erro ou infidelidade. Os principais demônios, conduzindo os fiéis à tentação, eram as sete cabeças do dragão. As duas últimas eram o Anticristo místico – ou o primeiro –, que apareceria no final da quinta idade, e o Anticristo aberto, cuja vinda pressagiaria o fim do mundo. Todas as perseguições seriam do Anticristo. Tudo aquilo que concerneria ao Anticristo real incluiria o Anticristo místico, como seu precursor. A besta ascendendo do mar representaria a Cristandade carnal e secular, e suas muitas cabeças os príncipes e prelados carnais; um deles fora morto pela vinda de São Francisco, pelo forte impacto da pobreza e perfeição evangélicas. Mas isso só levara a lassidão a reviver mais fortemente. É sintomático, portanto, no entanto, que Olivi escrevesse no interior de uma ortodoxia e, malgrado seu rigorismo, em obediência e fidelidade a ela. Para ele, os inimigos de Cristo eram os discípulos de Aristóteles e de Alexandre Magno, bem como os sarracenos, judeus e heréticos. Aquilo, portanto, que pudesse solapar as bases do Cristianismo, seja pela via intelectual, política ou doutrinária, era combatido. Nas menções que faz à Regra Franciscana no conjunto de seus escritos, ele buscou sensibilizar a consciência franciscana quanto a seu papel histórico e às implicações de tal destino. Assim, pode-se afirmar que Olivi lançou argumentos combativos especialmente em três frentes, no sentido de caracterizar as atribulações 28. “legitime constat judicio recognouit quod ipse audivit legi in postilla fratris Petri Johannis Olivi super apocalipsim de muliere vestita auro habente poculum aureum in manu sua sedente super bestiam habente capita VII. & cornua X. & habebat super se scriptum misterium, Babilon meretrix magna fornicacionum” (LIMBORCH, Ph. Op. Cit., “Processo de Raymundus de Buxo”, fl. 151, p. 298). 90 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI pelas quais passava a Igreja às vésperas do fim dos tempos. Em primeiro lugar, pode-se dizer que o declínio da Igreja seria oriundo das enormes cupidez e ambição de seus prelados e abades. Em segundo lugar, invocava os heréticos em grande número de situações, tal qual já o fizera Joaquim de Fiore; as heresias que consistiam no eixo das preocupações eclesiásticas da época eram em especial o Valdeísmo e o Catarismo. Por fim, censurava os teólogos e escolásticos, em especial de Paris, que abraçaram o aristotelismo e o averroísmo29 . Deve-se assinalar que o exame das idades conforme Olivi não permitia ainda a identificação da Igreja Carnal à Igreja existente. Sua base teórica estava, na verdade, presente em São Paulo, na II Epístola aos Tessalonicenses, na qual se faz revelar o homem do pecado como aquele que repudiou o evangelho da pobreza. A Igreja, então, passara a tornar-se obstáculo à sua massa de seguidores. É comparada ao rio Eufrates, que impede a continuidade da jornada; assim, também a Igreja estaria obliterando o caminho daqueles que desejavam seguir o voto de pobreza evangélica30 . Ressalte-se ainda que não temos aqui uma identificação direta entre um dado pseudo-papa e o Anticristo; no entanto, a ligação podia estar implícita, já que seria este a condenar o franciscanismo. 29. “Ad cujus evidentiam nota quod communia malia omnibus temporibus ecclesie et humano genere communia... erant tria gravissima circa finem quinte temporis ventura quorum a prima fuit effrenata laxatio clericorum, monachorum et laicorum seu vulgarium plebium fraudibus; secunda sumens a predicta occasionem hereticorum Manicheorum et Valdensium eis in multis consimilium et multa et pestifera inundatio. Tertium aliorum ypocritalium religiosorum cum primis multiplicatio et spiritus Christi, et vite ejus ab omnibus impugnatio, quamvis diversis modis et prandibus, ut fiat perplexior temptatio fere inducens in errorem electos” (Apud IDEM, Ibidem, p. 132). 30. “Potestas enim papae et multitudo plebium sibi obediens et favor ejus est quasi magnus fluvius Euphrates impediens transitum et insultum emulorum evangelici status in ipsum” (Apud IDEM, Ibidem, p. 134). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 91 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES Não se trata de um movimento de contestação à hierarquia eclesiástica. Com efeito, Olivi, no conjunto de seu pensamento, jamais procurou negar a validade da hierarquia eclesiástica. Neste ponto, a experiência cultural e humana de Olivi revela uma densidade e um valor intensos e fecundos. Assim, Olivi, muito embora aceitando plenamente a realidade da hierarquia eclesiástica, não desconhece, por sua vez, até que ponto esta realidade encontra-se representada por indivíduos muito distanciados do ideal de santidade e de perfeição oferecido por Cristo. Com efeito, em seu tratado sobre a obediência, Olivi menciona a Regra Franciscana como condição, também, de obediência. Ele destaca a importância da obediência como parte substancial da perfectio evangelica. Ele assegura que a obediência vivida pela Regra persegue a realização da verdade evangélica. A posição de Olivi a respeito da Regra de sua Ordem obriga-nos, portanto, a situá-lo claramente no interior das estruturas institucionais de seu tempo, a descartar, portanto, não somente a suspeita de heresia, mas também todo desprezo formal em relação à autoridade. Com efeito, encontram-se em Pedro de João Olivi enunciados aparentemente opostos. Por um lado, de acordo com alguns autores, ele seria até mesmo o mentor da tese da infalibilidade do magistério pontifical. De outro, em contrapartida, ele teria visto na Igreja Romana a Babilônia do Apocalipse, perseguidora dos santos, e, no papa, o Anticristo. Esse aparente paradoxo é, contudo, resolvido após um exame das linhas gerais do pensamento do frade. Raoul Manselli demonstra que a Igreja carnal é, para ele, uma realidade concreta, mas que não pode ser identificada com uma realidade determinada do tempo e do espaço. Tal qual a Cidade do mal de Santo Agostinho, Roma poderia ser a Babilônia, um papa poderia ser o instrumento do Anticristo do qual São Francisco teria tido a revelação. Mas este seria, então, um pseudo-papa. Olivi certamente previu o advento de tem92 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI pos mais difíceis e até mesmo de um papa que contradiria a regra evangélica. No entanto, embora tendo denunciado a existência de um reino crescente da Besta no quinto estado da Igreja, ele não designou ninguém como sendo já o Anticristo ou esse falso papa. Ao contrário, ele acabou por justificar a legitimidade de Bonifácio VIII após a renúncia de Celestino V, o qual, entretanto, perfazia, a seus olhos, uma simpática figura de homem espiritual e de asceta31 . Olivi participa da corrente de idéias de inspiração dionisiana que apoiava, nos teólogos franciscanos do século XIII, a concepção de uma eclesiologia romana e papalista, conforme consta da Declaratio in Regulam32 . O frade atribui uma imensa autoridade e muito grandes poderes ao papa. Não deixa, entretanto, de fazer uma reserva: o poder pontifical não se deve voltar contra a lei do Cristo. Ao fazer tal afirmação, ele tem em vista um caso preciso: a forma de vida evangélica revelada por São Francisco, caracterizada pala ausência de propriedade e pelo usus pauper. O papa que recusasse esse ponto de fé e de lei seria um pseudopapa. Não seria, portanto, um papa, devendo, supostamente, ser o 31. Apud CONGAR, Yves. “Les positions de Pierre Jean-Olivi d’après les publicatios récentes”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10..., pp. 155-156. 32. “Quia constat quod colligantia totius corporis ad suum universalissimum caput est eius universale stabilimentum. Ex hac enim accipit suam unitatem et totalitatem. Rursus si summus pontifex est sic caput totius ecclesiae quod ei non subesse est extra ecclesiam esse ac per consequens et extra fidei catholicae unitatem, quid mirum si regula evangelica, in supererogativo zelo fidei Christi plantata, debuit sic in principali sede Christi suum statum infigere ut nullus stipes vel surculus sive ramus rectius aut profundius vel firmius staret in illa? Et hinc est quod Francisco institutori seu renovatori huius regulae datus fuit singularis et superfervidus zelus ad obedientiam et reverentiam vicarii Christi et ecclesiae romanae..”(...) “Sicut igitur papa est omnium christianorum ordinarius et immediatus propter quod tota ecclesia est plene et intime una, sic generalis est omnium minorum ordinarius et immediatus. Et ideo totus hic ordo est sic unus sicut unus singularis conventus” (Apud IDEM, Ibidem, pp. 156-157). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 93 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES Anticristo. Nesse caso, poder-se-ia e até mesmo dever-se-ia desobedecêlo. É aqui que se situam os textos suposta e aparentemente antipapais de Olivi, em particular sua Lectura super Apocalypsim, na qual Olivi menciona um tal instrumento da Besta como se já estivesse iminente. Olivi certamente contestou a qualidade da vida daqueles que se encontravam engajados nos votos da vida evangélica e daqueles que davam continuidade à vida apostólica. Ele acreditava na eficácia da ação humana. De acordo com Olivi, se os homens no interior da Ordem e na liderança da Igreja permanecessem fiéis às idéias que professavam, dariam início a uma nova idade histórica. Ele enfatizava antes o homem que a instituição. Era necessário que os homens fossem fiéis, e não que as instituições fossem aperfeiçoadas. Em conseqüência desse pensamento, as idéias de Olivi tomaram forma nos conflitos no interior da Ordem e da Igreja. Por essa razão, alguns estudiosos vêm afirmando que não seria necessário e nem tampouco adequado atribuir a Olivi a qualificação de Espiritual. No entender de alguns, tal palavra encontra um sentido preciso na história do século XIV, mas não teria aplicação precisa aos personagens do século XIII33 . De qualquer forma, resta que as idéias em voga nos chamados meios espirituais do século XIV têm seu germe nas formas de pensamento dos frades rigoristas do século anterior. Apesar das influências posteriores, pode-se afirmar que Olivi apresentou uma visão extremamente equilibrada acerca da Regra da Ordem, e, em conseqüência, acerca das instituições. David Flood afirma que, por essa razão, encontraram-se, em sua obra, poucos elementos que se prestassem à crítica por ocasião do Concílio de Viena (1312), a despeito, naturalmente, de uma busca intensa por falhas doutrinais34 . 33. Cf., por exemplo, FLOOD, David. “Art. cit.”, p. 150. 34. Cf. IDEM, Ibidem, p. 151. 94 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI Em sua Lectura super Apocalypsim, ao tratar da abertura do sexto sigilo35 , Olivi afirma que tal evento encontrava-se prestes a acontecer. Ele lembra que o sexto e o sétimo estados da Igreja conheceriam uma manifestação particularmente clara da vida do Cristo. Tal far-seia presente por intermédio da Regra dos frades menores, que consiste na própria vida evangélica do Cristo. Olivi passa em revista quatro opiniões acerca do momento da abertura do sexto sigilo: uma colocaa ao início da Ordem; uma outra no momento da revelação feita a Joaquim de Fiore sobre o sexto e o sétimo estados; uma terceira quando da destruição da Babilônia, ou seja, a Igreja carnal; uma quarta opinião afirma que o sigilo seria aberto quando homens surgiriam no espírito de Cristo e de Francisco no momento em que a vida evangélica seria atacada. Olivi propõe a fusão de tais diversas opiniões. Assim, tal como os quatro evangelhos começam em momentos diferentes, o mesmo aconteceria à abertura do sexto sigilo36 . Ao compreender a Regra como programa evangélico, Olivi faz com que ela consista em elemento importante no momento da abertura do sexto sigilo. Ela encontra-se, dessa forma, intimamente ligada aos dramas profundos da história. Devido ao fato de interpretar a história como a luta do Cristo para transformar o mundo, para trazer a justiça e a paz, Olivi encontra-se convencido de que aqueles que vivem segundo a verdade do Cristo, proposta pela Regra, encontramse no centro das grandes batalhas históricas. Francisco de Assis havia aportado uma revelação nova no que concerne à forma da vida evangélica como consistindo na pobreza, na ausência de propriedade e no usus pauper. Da mesma forma, ao cabo do quinto estado do Antigo Testamento, Cristo e os Apóstolos haviam substituído o judaísmo pelo Evangelho. Ele apoiava-se, tam35. Cf. Ap. 4,12ss. 36. Apud FLOOD, David. “Art. cit.”, p. 144. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 95 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES bém na bula Exiit qui seminat, publicada por Nicolau III em agosto de 1279, que consagrava a interpretação rigorosa da pobreza e que apresentava São Francisco como um momento novo e solene na história da salvação37 . Para Pedro de João Olivi, assim como para Boaventura de Bagnoregio, a canonização de São Francisco e a aprovação da Regra pelo papa possuíam uma importância decisiva. Ele apoiava-se na bula Exiit para estabelecer que nenhum outro papa poderia tornar sobre aquela determinação a fim de modificá-la, conferindo dessa forma razão aos Conventuais e contradizendo o ensinamento do documento papal, conforme consta de suas questões De perfectione evangélica38 . Esta posição teológica de Olivi vem confirmar suas concepções eclesiológicas a respeito da infalibilidade pontifical. Assim, a luta pela pobreza absoluta apoiava-se numa bula papal da qual Olivi afirmava o caráter intangível. É por isso que, aos olhos de Olivi, um papa que pregasse outra coisa que não a verdade revelada a Francisco e em Francisco, e canonizada pela bula Exiit, seria um pseudo-papa. Assim, se Olivi recusava ao papa o poder de dispensar de um voto evangélico contido na Regra Franciscana, não era devido à autoridade de São Francisco sobre sua Regra inspirada, mas sobretudo porque a Igreja era obrigada a reconhecer a Ordem Franciscana como modelo de perfeição cristã. Uma leitura mística de Olivi, nos moldes da oposição entre a Igreja carnal e a Igreja espiritual – bem como do ideal da espera de 37. “Haec est apud Deum et Patrem munda et immaculata religio, quae, descendens a Patre luminum, per eius Filium exemplariter et verbaliter Apostolis tradita, et deinde per Spiritum Sanctum beato Francisco et eo sequentibus inspirata, totius in se quasi continet testimonium Trinitatis.” Apud CONGAR, Yves. “Art. cit.”, p. 159. 38. “An Romano Pontifici in fide et moribus sit ab omnibus catholicis tamquam regule inerrabili obediendum?” (Apud IDEM, Ibidem, p. 159). 96 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI uma Igreja futura, redimida de suas mazelas pela ação dos chamados viri spirituales – acabava por conduzir a determinadas conclusões, condizentes e identificadas com o pensamento espiritual. Assim, a pobreza franciscana tornava-se, por sua vez, o ideal e a característica da futura Igreja. Dessa forma, pobreza e final dos tempos identificavam-se e aproximavam-se. Os frades eram pobres porque já pertenciam à nova idade. Esta, por sua vez, significaria o triunfo da pobreza, uma vez que seria a idade da plenitude de Cristo39 . Não se encontra em Olivi um pleno desenvolvimento da relação entre pobreza e final dos tempos. Contudo, não deixa de ser significativo que o frade iniciasse seu Tractatus de usu paupere afirmando que nos últimos tempos a antiga serpente voltava-se contra a pobreza evangélica40 , e o concluísse mediante a afirmação de que a negação do usus pauper representa a preparação do caminho para a seita do Anticristo, pois nada prepara melhor o caminho para sua seita do que a blasfêmia à altíssima pobreza41 . Desenvolveu-se na Provença e na Itália do norte e central toda uma tradição de culto a Olivi, ligada especialmente à presença histórica da luta dos Espirituais Franciscanos. Com efeito, o postulado de princípios relacionados à observância estrita da Regra, as discussões em torno do ideal da pobreza absoluta, acabaram por criar na região uma ambiência receptiva à crítica de clérigos e de fiéis não só à Or- 39. Cf. DE Boni, Luís Alberto. “O debate sobre a pobreza como problema político nos séculos XIII e XIV”, in: Patristica et Medievalia, XIX, 1998, pp. 23-50, p. 35. 40. “Quoniam contra paupertatem evangelicam per seraphicum Christi confessorem Franciscum in novissimis temporibus plenius et clarius renovatam et revelatam antiqui hostis serpentina astucia quibusdam tortuosis anfractibus varios suscitavit et suscitare non cessat.” BURR, David (ed.). De usu..., p. 89. 41. “Septimum est preparatio vie ad infernalem sectam antichristi. Sicut enim alibi plenius est probatum et adhuc suo loco clarius ostendetur, nihil ita viam preparat sue secte sicut blasphemia altissime paupertatis” (IDEM, Ibidem, p. 148). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 97 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES dem Franciscana – e aos rumos que esta passara a tomar na medida em que declinava da observância recomendada por seu fundador – como também à própria instituição eclesiástica – em cuja estrutura, acreditava-se, extremamente burocratizada e com injunções de caráter político, já não mais havia lugar para o usus pauper em sua acepção mais primitiva. É assim que assistimos ao desenvolvimento da crítica, que cedo foi incorporada à Igreja como heresia e, dentro desta categoria, condenada como “erro”, “equívoco”. Os estímulos fizeram-se sentir mais fortemente ali, onde a discussão já fora colocada na ordem do dia. Observou-se então a emergência do grupo beguino, formado em sua maioria por laicos, segmentos ligados à Ordem Terceira de São Francisco de Assis, que assenhorearam-se dos elementos mais substanciais do debate e imprimiram nova dinâmica à crítica dos Espirituais. Os Beguinos surgiram, portanto, em estreita articulação com uma crítica pré-existente, constituída por opiniões rigoristas a combater a lassidão que imperava no seio da Igreja e da Ordem. Detectamos a presença das idéias de Olivi já entre aqueles Espirituais que pretendiam fundamentar sua inflexão com relação à pobreza em alguns ensinamentos do frade, os quais primavam pela presença de uma disciplina extremamente normativa (muito embora não chegasse a figurar como pretensão de solapar as bases hierárquicas existentes). Entretanto, configura-se controversa a classificação de Olivi entre os chamados Espirituais Franciscanos. Com efeito, Raoul Manselli, em artigo que trata dos ideais do frade – sobretudo aqueles expressos em uma carta endereçada por ele aos filhos de Carlos d’Anjou – defende a tese da limitação do espiritualismo franciscano ao início do século XIV, ao mesmo tempo em que questiona a figura de Pedro de João Olivi como integrante do grupo dos Espirituais Franciscanos. Assim, o estudioso italiano pergunta-se se e em que medida Olivi poderia ser não propriamente o chefe dos chamados Espirituais – como se acreditou durante muito tempo –, mas, sobretudo se confi- 98 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI guraria ele um membro de tal movimento. Em favor dessa tese, coloca-se em evidência o fato de Pedro de João Olivi ter permanecido, ao longo de toda sua vida, estreitamente ligado, tanto por sua doutrina filosófica e teológica quanto no que concerne à sua disciplina religiosa, a São Boaventura, ao qual jamais deixara de lembrar e render respeitosa homenagem em cada uma de suas obras42 . Assim, no conjunto do movimento franciscano, aflorou uma tendência que pode ser chamada de Espiritual. Tal tendência não significava uma teoria aceita por um homem ou por um grupo, mas que persistia como um fermento no interior da Ordem. Tal fermento pode ser considerado como fermento de vida, mas também configura um fermento de divergências, que se manifestaram, inclusive, no interior daquilo que se pretende chamar de grupo dos Espirituais. Dessa forma, o próprio movimento espiritual – assim classificado como forma de reunir todas essas divergências em um único grupo – apresenta-se como uma pluralidade, e não como uma unidade no interior do franciscanismo. Quanto a Olivi, é possível dizer que, pela extensão de sua cultura, pela profundidade de seu pensamento e pelo nível de sua inteligência foi, não o líder dos Espirituais – não se pode, inclusive, afirmar consensualmente tal qualificativo para ele –, mas antes aquele que melhor soube captar o valor e o sentido religioso, histórico e humano do espiritualismo; tais valores e sentidos precederiam a própria contenda, tal como ela viria a configurar-se ao longo das três primeiras décadas do século XIV. Muitos dos preceitos de Pedro de João Olivi fundamentaram-se, portanto, nas idéias enunciadas por São Boaventura, em sua Apologia pauperum contra calumniatorem. Eles demonstram acentuadas afini- 42. MANSELLI, Raul. “L’idéal du Spirituel selon Pierre Jean-Olivi”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10..., p. 99. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 99 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES dades de perspectiva. Para ambos, a pobreza não se diferencia ou destaca; ela configura, antes, apenas um entre vários outros problemas. Na realidade, a ênfase é ora colocada sobre a pobreza, ora sobre a obediência. As repercussões imediatas e posteriores de seus trabalhos, bem como o peso enfático conferido a determinadas idéias, contudo, fizeram com que trilhassem caminhos opostos em suas carreiras e na posteridade. São Boaventura atingiu seu topo em Paris, possuindo uma cátedra franciscana na Universidade, e depois, tendo ocupado o generalato daquela Ordem por dezesseis anos; Olivi tornou-se objeto de suspeição e condenação como escolástico e frade. São Boaventura passou para a posteridade como o segundo fundador da Ordem e seus escritos foram exaltados; Olivi, por sua vez, seria tido como o santo não-canonizado dos Beguinos do sul da França, identificado como responsável pela emergência de uma nova heresia, e suas palavras acabaram por ser condenadas. As asserções de Olivi em relação à pobreza já haviam, com efeito, sido esboçadas por São Boaventura e Pecham43 . Olivi seria responsável por tornar formal aquilo que os 43. Em seu Tractatus de usu paupere, Olivi, procede, com efeito, a uma enumeração de autores que deveriam sustentar suas teses a respeito da pobreza evangélica e sobretudo do usus pauper. Os dois primeiros dessa série são Pecham e São Boaventura. Dentre as afirmações do primeiro encontram-se a interdição à propriedade, quer em particular, quer em comum, e a restrição ao uso dos bens mundanos, de forma que não ultrapasse os limites da pobreza. Assim, “‘nec in speciali nec in communi debent proprietatem habere sed illarum rerum quas licet habere ordo usum habeat’, exponit illud quod ibi premissum est, scilicet, ‘quas licet habere’, subdens, ‘idest, que modum paupertatis non excedunt’. Ex quo patet quod ibi vult illum usum esse ordini illicitum quod modum paupertatis excedit.” Quanto ao segundo, Olivi cita uma passagem de sua Apologia pauperum contra calumniatorem, na qual se estabelece também a condenação da propriedade, bem como o uso apenas como condição para a satisfação das mais estritas necessidades: “‘Cum autem circa temporalium bonorum possessionem duo considerare contingat, dominum videlicet et usum, sitque usus necessario annexus vite presenti, evangelice paupertatis est, possessiones terrenas quantum ad dominium et proprietatem relinquere, usum vero non omnino reiicere, sed artare, iuxta quod dicit apostolus, Habentes alimenta et quibus tegamus hiis contenti sumus’” (BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestio and the Tractatus. Firenze/Perth, 1992, pp. 92-93). 100 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI dois apenas haviam sugerido. Ele tentaria estabelecer o usus pauper enquanto conceito em si, e inseparável do voto de pobreza. Trata-se de uma perspectiva que buscava coadunar ideal e prática, e para tanto, fazia-se necessária uma delimitação precisa desse ideal. De exortação geral, tornou-se uma série de requerimentos específicos. Daí o advir das oposições. A diferença de ênfase entre São Boaventura e Olivi em relação à questão da pobreza consiste em que São Boaventura considerou a pobreza como um aspecto virtual e externo, não comparável em grandeza com as virtudes teologais. Olivi, por sua vez, considerou a pobreza como fator inerente à perfeição interior, munido de valor equivalente e paralelo ao das virtudes teologais. Resgataria a vita apostolica, numa forma de apelo à vida do Cristo como confirmação final da santidade44 . Muito embora se possa estabelecer um radicalismo efetivo a partir dos elementos místicos presentes na Lectura de Olivi (referência à concepção de ecclesia carnalis versus ecclesia spiritualis), não se pode afirmar que se tratava de um extremista quando se observa o conjunto de seu pensamento. Com efeito, o frade sabia que o usus pauper admitia muitas variantes. Sua peculiaridade consistia em defender a atinência indeterminada do usus pauper sobre a Regra, não estando sujeito a ações pontuais, como queriam seus opositores: “O problema de o uso pobre não delimitar juridicamente quando se pode comer um capão acompanhado com vinho branco, ou quando se pode andar a cavalo, só existe para quem reduz a pobreza a um fato meramente jurídico – mas para Olivi a questão situava-se em outro registro: na disponibilidade interna da pessoa, manifestada por aquela forma de prática que não se pergunta pelo minimalismo legal”45 . 44. Cf. LEFF, Gordon. Op. Cit., pp. 101-15. 45. DE BONI, Luís Alberto. “Art. Cit.”, p. 34. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 101 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES Assim, de acordo com Raoul Manselli, a defesa do chamado usus pauper, com o seu rigorismo em relação à pobreza, não configurava um elemento diferenciador do pensamento daquele frade. Deve-se procurar essa diferenciação, antes, em qualquer coisa de mais profundo, nos valores mais essenciais, ou seja, numa mentalidade e numa maneira de viver que a maioria dos frades, aqueles que se chamariam de Comunidade, deveria reprovar como diferentes das suas e até mesmo como potencialmente hostis e estranhas46 . Assim, a observância da Regra não consistia simplesmente na obediência a uma mera norma jurídica, mas sim o ponto de partida de um laço de amor com o Cristo crucificado, bem como o sacrifício de si mesmo no amor da pobreza e dos confrades. A concepção específica do usus pauper como inerente à Regra – e não enquanto mera característica supererogatória presente em alguns indivíduos dotados de vontade sublime – representa a própria bandeira de luta espiritual, seu diferencial por excelência no interior do grupo. Característica mais marcante da obra de Olivi – para além de sua mística apocalíptica, e sendo que esta mesma decorre dela –, a defesa do usus pauper seria retomada por Ubertino de Casale em sua obra maior, a Arbor vitae crucifixae Iesu (1305), o qual, para melhor fundamentá-la, deveria recorrer até mesmo às fontes mais ortodoxas da tradição franciscana, haja vista o uso que faz da Apologia pauperum do ministro-geral São Boaventura. Após a morte de Olivi, assistiu-se à afirmação e à perpetuação de seus ideais de vida por parte de seus seguidores de Narbona e das zonas circunvizinhas. No seio da Ordem Franciscana, continuavam os esforços daqueles que se haviam oposto em vida a Olivi e que agora desejavam condenar, para além de sua obra e memória, tam- 46. MANSELLI, Raoul. “L’idéal...”, p. 101. 102 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI bém seus seguidores e discípulos. De um lado, tinham seqüência as polêmicas teológicas – de resto, situadas no interior das controvérsias normais para a época; de outro, ajuntavam-se-lhes os problemas relativos à interpretação da Santa Escritura – e, nesse sentido, uma predisposição nomeadamente hostil fazia emanarem animosidades antes contra o indivíduo que contra as teses que sustentava. As nesgas mais violentas incidiam sobre a questão da pobreza, no interior da qual Olivi sempre afirmava sua posição de preciso, claro e inequívoco rigorismo, em seus comentários acerca da Regra Franciscana ou acerca das questões da vida espiritual. A tradição manuscrita da obra maior de Pedro de João Olivi, qual seja, a chamada Lectura super Apocalypsim, atesta a difusão desse texto nos ambientes Espirituais e da Comunidade, bem como entre os primeiros Observantes, a partir da segunda metade do século XIV. No momento em que Ubertino de Casale escreve a Arbor vitae (1305), é necessário notar que a Lectura ou Postilla de Olivi representava uma obra suspeita. Dessa forma, no primeiro prólogo de sua obra, Ubertino faz menção a Olivi, definindo-o como: “doutor especulativo e precípuo de defensor da vida de Cristo. Iluminado por Deus”47 . Ubertino, com efeito, reconhece, na Arbor vitae, sua medida de dependência em relação a Pedro de João Olivi, ao afirmar seus contatos com o mestre na província da Toscana, ao mesmo tempo em que seu ensinamento teria sido o ponto de partida para sua renovação espiritual48 . 47. UBERTINO DE CASALE. Arbor vitae crucifixae Jesu, a cura di C. T. Davis, Torino, 1961, Pról. I, fl.4b. 48. “ad provinciam Tuscie veniens sub titulo studii”, tendo encontrado “in multis viris virtutis spiritum Iesu fortiter ebulire”. A seguir “cum predictis magistris frater [Petrus] Iohannis Olivi (...) me modico tempore, (...) ex tunc in novum hominem mente transiverim” (Ibidem). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 103 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES Em contrapartida, e provavelmente em função do peso da suspeita que pesava sobre a obra daquele frade, busca, armando-se de prudência, distinguir sua posição daquela de Olivi, atenuando sua admiração em relação ao mestre, ao afirmar que tão perfeito doutor não possuíra, contudo, a razão em tudo aquilo que dissera49 . Ubertino exprimir-se-ia ainda com semelhante cautela em colóquio com Clemente V, no ano de 1310, no curso do debate preparatório para o Concílio de Viena, a chamada magna disceptatio (13091312), opondo Espirituais e Comunidade. Naquela ocasião, manifestou-se ainda com análoga prudência, ao precisar que não lera toda a obra de Olivi, o que o impossibilitava de tornar suas todas as teses do mestre. Assim, após haver feito sua defesa à pessoa e à doutrina do frade francês contra aqueles que pretendiam condenar sua Lectura e, para além dela, sua memória, declarou que “não o seguia em todas as suas opiniões, embora acreditasse que naquilo (teses que foram objeto de sua defesa) não acreditava que o mesmo tivesse errado”50 . Ubertino de Casale conhecera Pedro de João Olivi em Florença, onde este ensinara durante o biênio de 1287-1289, no convento de 49. “Non tamen hunc perfectum doctorem quem rationabiliter tantum commendo in aliquibus dictis suis sequor, quia aliquando bonus dormitat Homerus, nec omnia omnibus data sunt” (Ibidem). 50. “Non tamen in omnibus eius opinionem sequor, licet ipsum propter hoc non credam errare.” Sanctitas vestra, p. 88, apud POTESTÀ, Gian Luca. Op. cit., p.59. Na defesa que Ubertino procedeu em relação a Olivi, encontra-se a afirmação do convívio entre os dois em convento, sendo que o mestre seria, dentre aqueles frades mais observantes da Ordem, aquele de maior santidade de vida, de profunda ciência e de grande zelo pela fé e pelos costumes. Em seguida, indica ao papa os motivos da desconfiança da Comunidade em relação à pessoa e às doutrinas de Olivi, afirmando que seus escritos exprimiam a transgressão na observância da pobreza. Aqueles, portanto, que se esforçavam por condenar as obras de Olivi temiam a opinião pública, de vez que aparentemente não possuíam ânimo para corrigir-se. (Cf. EHRLE, F. Zur Vorgeschichte des Concils von Vienne. 4. Vorarbeiten zur Constitution Exivi de paradiso in ALKG III (1887), p. 88, apud MANSELLI, Raoul. Spirituali..., pp. 102-103). 104 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI Santa Cruz. Tornaram-se amigos, e sua relação próxima evidencia-se também pelo fato de que, muitos anos após a morte de Olivi, que se dera no ano de 1298, Ubertino passasse a defender sua memória e suas doutrinas por ocasião do debate precedente ao Concílio de Viena, a referida magna disceptatio. A defesa mais intensa deu-se no opúsculo de Ubertino intitulado Sanctitate apostolice, de junho de 1311, também conhecido como Apologia Olivi. As primeiras condenações de obras de Olivi ter-se-iam verificado por volta de 127851 . No que tange à Lectura super Apocalypsim, composta entre 1296 e 1297, a mesma, após a morte de seu autor, deveria tornar-se motivo de polêmica e de ataques, os quais acabaram por culminar em condenação definitiva no ano de 1326, sob o papa João XXII. A pessoa e a doutrina de Olivi tenderam a permanecer e foram perpetuadas mormente na medida em que se desencadeavam os processos de busca inquisitorial que visavam a reprimir a religiosidade beguina e a perseguir seus praticantes como heréticos. O compêndio traduzido para o vulgar acerca do Apocalipse apareceu, com efeito, em 1318, ano-chave para o movimento. João XXII contrariava os chamados Espirituais Franciscanos – elementos radicais no interior da ordem que pretendiam restaurar aquilo que consideravam a intentio de São Francisco de Assis, apregoando o extremo rigor no cumprimento da regra –, bem como parte dos moderados, ao condenar, por meio de três constituições52 , a doutrina segundo a qual as Escrituras 51. Trata-se das questões De Domina, queimadas por ordem do ministro-geral Jerônimo de Ascoli (1274-1279). 52. Trata-se das seguintes bulas: Ad conditorem canonum (8 de dezembro de 1322), em que afirmava que Nicolau III, ao estabelecer a Igreja Romana como proprietária dos bens usados pelos franciscanos, embora movido por ideais piedosos, incorrera numa impossibilidade racional e jurídica, tendo em vista o uso daquelas coisas que se consomem pelo próprio uso, tais como roupas e alimentos; Cum inter nonnullos (12 de novembro de 1323), em que declarava consistir em heresia a afirmação de que Cristo e os Apóstolos nada haviam possuído; Quia quorundam mentes (10 de novembro de 1324), em que afirmava que suas duas bulas anteriores eram condizentes com a Exiit qui seminat, de Nicolau III, ao mesmo tempo em que sua autoridade bastava para definir a questão. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 105 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES provavam que Cristo e os apóstolos nada haviam possuído, quer em caráter comum, quer em particular. Repudiou, ainda, o acordo segundo o qual os papas eram os proprietários nominais dos bens da Ordem Franciscana53 , dispondo esta somente do seu usufruto. E no ano de 1318, na cidade de Marselha, determinara a queima de quatro Espirituais Franciscanos, com base na referida afirmação – os mesmos foram condenados pelo inquisidor Miguel Lemoine –, ocorrência que consistiria num dos suportes essenciais do fenômeno beguino: a partir de então, as referências alegóricas apocalípticas passariam a assumir colorações cada vez mais realísticas, o que tornava a fonte em questão – a Postilla super Apocalypsim de Pedro de João Olivi – um documento cujo significado intrínseco podia ser associado a uma profecia. Data da mesma data uma série de interrogatórios conduzidos em Lodève, o que denota a força que o movimento já vinha adquirindo antes mesmo que se lhe abrissem margens para uma rica martirologia. A obra em vulgar é anônima; mas fornece a medida exata do estado de ânimos ocasionado pela onda de perseguições e pelas ocasionais condenações. Particularmente característico desse novo estado de ânimo é o acuro com que vêm enunciados e precisados momentos, personagens e conceitos, os quais, sob a pena de Olivi, haviam sido deixados, com deliberado propósito, desprovidos de determinações ulteriores. Referências 1. Fontes ANGELO CLARENO. Expositio super Regulam Fratrum Minorum. Ed. Giovanni Boccali, O.F.M.; intr. Felice Accroca; trad. Marino Bigaroni, O.F.M. Santa Maria degli Angeli: Edizioni Porziuncola, 1994 (Pubblicazioni della Biblioteca Francescana Chiesa Nuova, 7). 53. Conforme a bula Exiit qui seminat, de Nicolau III, emanada em 1279. 106 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 A TRAJETÓRIA E A OBRA DE PEDRO dE JOÃO OLIVI BURR, David (ed.). De usu paupere – The Quaestiones and the Tractatus. Firenze/Perth, 1992. Col. Doat, in: MANSELLI, Raoul. 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Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1949. UBERTINO DE CASALE. Arbor vitae crucifixae Jesu, a cura di C. T. Davis, Torino, 1961. 2. Bibliografia secundária CONGAR, Yves. “Les positions de Pierre Jean-Olivi d’après les publicatios récentes”, in: Cahiers de Fanjeaux, 10, Franciscains d’Oc – Les Spirituels – ca. 1280-1324, Privat Editeur. DE Boni, Luís Alberto. “O debate sobre a pobreza como problema político nos séculos XIII e XIV”, in: Patristica et Medievalia, XIX, 1998, pp. 23-50. EHRLE, F. Zur Vorgeschichte des Concils von Vienne. 4. Vorarbeiten zur Constitution Exivi de paradiso, in: ALKG III (1887), p. 88, apud MANSELLI, Raoul – Spirituali. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 75-108, jul./dez. 2007 107 ANA PAULA TAVARES MAGALHÃES FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 83. FALBEL, N. Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: EDUSP: FAPESP: Perspectiva, 1995 (col. Estudos, 146). 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Muito mais familiares, para ficarmos só no Evangelho de João, são “o pão” (6,35); “a luz” (8,12); “a porta” (10,9); “a ressurreição” (11,25); “a vide” (14,6); “o caminho”, “a verdade”, “a vida” (14,6) etc. Algumas dessas formas remetem a um conceito-chave para a compreensão da relação entre Cristo e os cristãos: o de participatio; participação, evidente, por exemplo, na metáfora “Cristo Vide”. A participação é importante porque é o conceito diferencial do cristianismo: ser cristão, mais do que aderir a uma doutrina, é participar da filiação divina de Cristo: um conceito impensável, digamos, Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 109 JEAN LAUAND para o islamismo ou para o judaísmo. Para os cristãos, nós temos a filiação no Filho; a luz na Luz; a verdade na Verdade etc. Se o fato essencial do cristianismo é a ligação com Cristo, é natural que o Evangelho apresente comparações que permitam falar da dinâmica de estar ligados/desligados nEle. É nessa clave que se inserirá também a distinção que o cristianismo – como todas as religiões – faz entre bons e maus, justos e injustos, inclusive no seio da própria Igreja. Nas Jornadas Mundiais da Juventude de 2005, o Papa declarou: “Pode-se criticar muito a Igreja. Sabemos, e o Senhor mesmo nos disse: é uma rede com peixes bons e maus, um campo com trigo e joio” (Bento XVI – Vigília das Jornadas Mundiais da Juventude; Marienfeld, 20-08-05). Para além das comparações de bem / mal: bom pastor / mau pastor (Jo 10,11ss); joio e trigo (Mt 13,25ss); peixes bons e peixes maus (Mt 13,46ss) etc., as metáforas da participação permitem acentuar o elemento de desvirtuamento, de corrupção das pessoas ou instituições (“Vós sois o sal...”) da Igreja: “Se a luz que há em ti são trevas...” (Mt 6,23); “se o sal se desvirtua...” (Mt 5,13; Mc 9,50; Lc 14,34). Pois, como no caso da seita dos fariseus, muitas vezes, os mais “religiosos”, os mais praticantes é que são o sal desvirtuado. E é interessante notar que o próprio Tomás (que vai falar de sais que não são sal), lembra o provérbio que diz que para se conhecer uma pessoa (ou instituição) verdadeiramente é necessário antes comer um saco de sal com ela: “Non contingit quod aliqui seinvicem cognoscant antequam simul comedunt mensuram salis” (Sent. Libri Ethic. lb 8, lc 3, 21). 110 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 “CRISTO NOSSO SAL” Os cristãos, hoje, certamente continuam a considerar a passagem do Evangelho em que Cristo fala do sal, mas é muito raro dizer que Cristo é o Sal1 . Embora o Evangelho não diga expressamente que Cristo é o Sal, alguns autores antigos recolheram essa idéia, também na clave da participatio. Mas, antes, vejamos, brevemente, esse conceito em Tomás. A participatio no pensamento de Tomás Ao contemplar a grande e grandiosa obra de Tomás de Aquino, James Weisheipl faz sugestiva observação: “Tomás, como todo mundo, teve uma evolução intelectual e espiritual. O fato assombroso, porém, é que, desde muito jovem, Tomás apreendeu certos princípios filosóficos fundamentais que nunca abandonou” (WEISHEIPL, 1994, p. 16). 1. E quando se diz que Cristo é sal, é no plano figurado, como na sugestiva observação do poeta Bruno Tolentino. Numa entrevista, referindo-se à conversão, ele diz: “Mas voltando à sua pergunta inicial sobre a conversão, é como a parábola do sal. Cristo é o sal. O sal realça o gosto da comida, não muda o gosto da comida, torna o peixe mais peixe, a carne mais carne. Assim como o encontro com Cristo não muda o que você é, mas agora você se torna você na dosagem perfeita: aquilo para que você era destinado ser. Eu estou neste processo em que sou cada vez mais eu mesmo. Eu parei de ser uma caricatura de mim mesmo. Como dizia Píndaro: ‘Torna-te o que tu és’. Você se torna o que você é. Há um nível supra-real da pessoa. É isso o que só Deus sabe. Nesta perspectiva o ato poético é um ante-gosto, um antepasto desta plenitude”. http://www.catolicanet.com.br/sitepassos/ paginarv.asp?cod=71&tipo=0 “Passos”, n. 40, junho 2003. Uma exceção, bem no sentido clássico da participatio, é a homilia do Cardeal Francisco Javier Errázuriz (n. III), nas Jornadas Mundiais da Juventude (Toronto, 2002): “Porque Cristo es la verdadera sal, comprendemos que el llamado de Jesús a ser sal de la tierra expresa nuestra vocación más plena y verdadera, la de ser como él, es decir, otros “cristos” en medio del mundo... Etc.” Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 111 JEAN LAUAND Um desses princípios é o da participação2 , que é a base tanto de sua concepção do ser como – no plano já estritamente teológico – da graça. Para podermos analisar a metáfora do sal na clave da participatio, recolho algumas considerações de base, nos parágrafos seguintes, tomadas de um estudo que publiquei alhures (LAUAND, 1999, indrod.) sobre a doutrina tomasiana da participação. Freqüentemente as grandes teses de Tomás se elucidam a partir do uso comum da linguagem. Comecemos reparando no fato de que na linguagem comum, “participar” significa – deriva de – “tomar parte” (partem capere). Ora, há diversos sentidos e modos desse “tomar parte” (OCÁRIZ, 1972, p 42s). Um primeiro é o de “participar” de modo quantitativo, caso em que o todo “participado” é materialmente subdividido e deixa de existir: se quatro pessoas participam de uma pizza, ela se desfaz no momento em que cada um toma a sua parte. Num segundo sentido, “participar” indica “ter em comum” algo imaterial, uma realidade que não se desfaz nem se altera quando participada; é assim que se “participa” a mudança de endereço “a amigos e clientes”, ou ainda que se “dá parte à polícia”. O terceiro sentido, mais profundo e decisivo, é o que vem expresso pela palavra grega metékhein, que indica um “ter com”, um “coter”, ou simplesmente um “ter” em oposição a “ser”; um “ter” pela dependência (participação) com outro que “é”. Como veremos em mais detalhe, Ao tratar da criação, Tomás utiliza esse conceito: a criatura tem o ser, por participar do ser de Deus, que é ser. E a graça nada mais é do que ter – por participação na filiação divina que é em Cristo – a vida divina que é na Santíssima Trindade. 2. Doutrina essencialíssima e que não é aristotélica: daí a problematicidade de reduzir Tomás a um aristotélico... 112 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 “CRISTO NOSSO SAL” Há – como indica Weisheipl (1994, p. 240-1) – três argumentos subjacentes à doutrina da participação: 1) Sempre que há algo comum a duas ou mais coisas, deve haver uma causa comum. 2) Sempre que algum atributo é compartilhado por muitas coisas segundo diferentes graus de participação, ele pertence propriamente àquela que o tem de modo mais perfeito. 3) Tudo que é compartilhado “procedente de outro” reduz-se causalmente àquele que é “per se”. Nesse sentido, adiantemos desde já as principais metáforas de que Tomás se vale para exemplificar: ele compara o ato de ser – conferido em participação às criaturas – à luz e ao fogo: um ferro em brasa tem calor porque participa do fogo, que “é calor”3 ; um objeto iluminado “tem luz” por participar da luz que é na fonte luminosa. Tendo em conta essa doutrina, já entendemos melhor a sentença de Guimarães Rosa: “O sol não é os raios dele, é o fogo da bola” (1979, p. 71). No plano natural, todas as criaturas, quer materiais, quer racionais, participam do ser e, portanto, da natureza divina; toda a criação, e o homem especialmente, por sua perfeição própria, reflete no seu ser a bondade, a verdade, a beleza de Deus. No plano sobrenatural, porém, ocorre uma participação da natureza divina como divindade, uma participação de Deus enquanto Deus, um tornar-nos Deus; passamos a ser divinae naturae consortes, como diz São Pedro (2Pe 1,4), participantes da própria vida íntima de Deus. E isto, diz Tomás, é a graça. A participação sobrenatural atinge por inteiro o ser humano, de tal forma que se pode falar de uma “nova geração” ou “re-criação” (S. Teol. I-II,110,4); torna o cristão “filho de Deus” de uma maneira totalmente nova: o cristão participa da Filiação do Verbo – Cristo é Filho de Deus, e o cristão, que participa de Cristo, tem a filiação 3. Evidentemente, não no sentido da Física atual, mas o exemplo é compreensível. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 113 JEAN LAUAND divina. Esta filiação divina distingue-se absolutamente daquela pela qual todos os homens são filhos de Deus, porque participam, ao existirem, do ser de Deus. Tomás insiste nesse participar de Deus: “A graça é uma certa semelhança com Deus de que o homem participa” (S. Teol. III,2,10 ad 1); “O primeiro efeito da graça é conferir um ser de alguma forma divino” (In sent. III,2,d.26,155); “Pela graça santificante, toda a Trindade passa a habitar na alma” (S. Teol. I,43,5). Participação envolve, pois, graus e procedência. Tomás parte do fenômeno evidente de que há realidades que admitem graus (como diz a antiga canção de Chico Buarque: “tem mais samba no encontro que na espera...; tem mais samba o perdão que na despedida”). E pode acontecer que a partir de um (in)certo ponto, a palavra já não suporte o esticamento semântico: se chamamos vinho a um excelente Bordeaux, hesitamos em aplicar este nome ao equívoco “Chateau de Carapicuíba” ou “Baron de Quitaúna”. As coisas se complicam – e é o caso contemplado por Tomás – quando uma das realidades designadas pela palavra é fonte e raiz da outra: em sua concepção de participação, a rigor, não poderíamos predicar “quente” do sol, se a cada momento aplicamos a palavra “quente” para coisas esquentadas pelo sol, dizendo que a casa ou o dia estão quentes (se o dia ou a casa têm calor é porque o sol é quente). Assim, deixa de ser incompreensível para o leitor contemporâneo que, no artigo 6 da Questão disputada sobre o verbo, Tomás afirme que não se possa dizer que o sol é quente (sol non potest dici calidus)! Ele mesmo o explica, anos depois, na Summa Contra Gentiles (I, 29, 2), que, a rigor, não poderíamos dizer que o sol é quente, mas também há razões para acabarmos dizendo quente (calidus) tanto para o sol como para as coisas que recebem seu calor: “Como os efeitos não têm a plenitude de suas causas, não lhes compete (quando se trata da ‘verdade da coisa’) o mesmo nome e 114 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 “CRISTO NOSSO SAL” definição delas. No entanto (quando se trata da ‘verdade da predicação’), é necessário encontrar entre uns e outros alguma semelhança, pois é da própria natureza da ação, que o agente produza algo semelhante a si (Aristóteles), já que todo agente age segundo o ato que é. Daí que a forma (deficiente) do efeito encontra-se a outro título e segundo outro modo (plenamente) na causa. Daí que não seja unívoca a aplicação do mesmo nome para designar a mesma ratio na causa e no efeito. Assim, o sol causa o calor nos corpos inferiores agindo segundo o calor que ele é em ato: então é necessário que se afirme alguma semelhança entre o calor gerado pelo sol nas coisas e a virtude ativa do próprio sol, pela qual o calor é causado nelas: daí que se acabe dizendo que o sol é quente, se bem que não segundo o mesmo título pelo qual se afirma que as coisas são quentes. Desse modo, dizse que o sol – de algum modo – é semelhante a todas as coisas sobre as quais exerce eficazmente seu influxo; mas, por outro lado, é-lhes dessemelhante porque o modo como as coisas possuem o calor é diferente do modo como ele se encontra no sol. Assim também, Deus, que distribui todas suas perfeições entre as coisas é-lhes semelhante e, ao mesmo tempo, dessemelhante”. Todas essas considerações parecem extremamente naturais quando nos damos conta de que ocorrem em instâncias familiares e quotidianas de nossa própria língua: um grupo de amigos vai fazer um piquenique em lugar ermo e compra alguns pacotes de gelo (desses que se vendem em postos de gasolina nas estradas) para a cerveja e refrigerantes. As bebidas foram dispostas em diversos graus de contato com o gelo: algumas garrafas são circundadas por muito gelo; outras, por menos. De tal modo que cada um pode escolher: desde a cerveja “estupidamente gelada” até o refrigerante só “um pouquinho gelado”... Ora, é evidente que o grau de “gelado” é uma qualidade tida, que depende do contato, da participação da fonte: o gelo, que, ele mesmo, não pode ser qualificado de “gelado”... Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 115 JEAN LAUAND Estes fatos de participação são-nos, no fundo, evidentes, pois com toda a naturalidade dizemos que “gelado”, gramaticalmente, é um particípio... Participar é receber de outrem algo; mas o que é recebido é recebido não totalmente. Assim, participar implica um receber parcial de algo (aliquid) de outro (ab alio). Um axioma de que Tomás se vale diz: “Tudo que é recebido é recebido segundo a capacidade do recepiente” (per modum recipientis recipitur). E assim “Omne quod est participatum in aliquo, est in eo per modum participantis: quia nihil potest recipere ultra mensuram suam” (I Sent. d. 8, q.1 a.2 sc2), algo que é participado é recebido segundo a capacidade do participante, pois não se pode receber algo que ultrapasse a sua medida (mensura). A participatio como sal Além das comparações com o fogo e a luz, há a comparação com o sal, que apresenta aspectos peculiares, a partir de seu significado na Bíblia. Quando tomado simbolicamente, o sal – como todos os símbolos – poderá ser interpretado de muitas maneiras: mais ou menos diretamente ligadas à própria realidade em si do sal. É a partir da base bíblica e do conhecimento “científico” que se darão as interpretações do sal. Tenha-se em conta que a leitura antiga e medieval da Bíblia é complexa: Tomás explica que há, na Sagrada Escritura quatro sentidos distintos: histórico, alegórico, místico e anagógico. No significado histórico (ou literal) as palavras têm sua significação, digamos, normal (estritamente literal ou metafórica: “o homem ri” ou “o campo ri”); no místico (ou espiritual), as palavras têm um outro significado, superior. O sentido místico, por sua vez, subdivide-se em três: o alegórico, pelo qual a velha lei é figura da 116 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 “CRISTO NOSSO SAL” nova; o anagógico, pelo qual a nova lei é figura da glória futura; e o moral, pelo qual tomamos exemplo para nossa conduta. O “faça-se a luz” de Gn 1,3 – o exemplo é de Tomás –, na leitura literal, é entendido como a luz mesmo, a luz física, criada por Deus. Já se a luz do “fiat lux” for entendida como Cristo para a Igreja, então a leitura é no sentido alegórico; a leitura será anagógica se entendermos “fiat lux” como sendo nosso ingresso na Glória por Cristo; e, finalmente, se essa luz é iluminação para nosso intelecto e calor para nossa vontade, então estamos na leitura moral4 . 4. Mysterium autem exponit, cum dicit quae sunt per allegoriam dicta. Et primo ponit modum mysterii; secundo exemplificat, ibi haec enim duo sunt testamenta, et cetera. Dicit ergo: haec quae sunt scripta de duobus filiis, etc., sunt per allegoriam dicta, id est per alium intellectum. Allegoria enim est tropus seu modus loquendi, quo aliquid dicitur et aliud intelligitur. Unde allegoria dicitur ab allos, quod est alienum, et goge, ductio, quasi in alienum intellectum ducens. Sed attendendum est, quod allegoria sumitur aliquando pro quolibet mystico intellectu, aliquando pro uno tantum ex quatuor qui sunt historicus, allegoricus, mysticus et anagogicus, qui sunt quatuor sensus sacrae Scripturae, et tamen differunt quantum ad significationem. Est enim duplex significatio. Una est per voces; alia est per res quas voces significant. Et hoc specialiter est in sacra Scriptura et non in aliis; cum enim eius auctor sit Deus, in cuius potestate est, quod non solum voces ad designandum accommodet (quod etiam homo facere potest), sed etiam res ipsas. Et ideo in aliis scientiis ab hominibus traditis, quae non possunt accommodari ad significandum nisi tantum verba, voces solum significant. Sed hoc est proprium in ista scientia, ut voces et ipsae res significatae per eas aliquid significent, et ideo haec scientia potest habere plures sensus. Nam illa significatio qua voces significant aliquid, pertinet ad sensum litteralem seu historicum; illa vero significatio qua res significatae per voces iterum res alias significant, pertinet ad sensum mysticum. Per litteralem autem sensum potest aliquid significari dupliciter, scilicet secundum proprietatem locutionis, sicut cum dico homo ridet; vel secundum similitudinem seu metaphoram, sicut cum dico pratum ridet. Et utroque modo utimur in sacra Scriptura, sicut cum dicimus, quantum ad primum, quod Iesus ascendit, et cum dicimus quod sedet a dextris Dei, quantum ad secundum. Et ideo sub sensu litterali includitur parabolicus seu metaphoricus. Mysticus autem sensus seu spiritualis dividitur in tres. Primo namque, sicut dicit apostolus, lex vetus est figura novae legis. Et ideo secundum quod ea quae sunt veteris legis, significant ea quae sunt novae, est sensus allegoricus. Item, secundum Dionysium in libro de caelesti hierarchia, nova lex est figura futurae gloriae. Et ideo secundum quod ea quae sunt Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 117 JEAN LAUAND Se descartarmos os nomes geográficos, a Bíblia refere-se apenas 25 vezes ao sal: 21 vezes no Antigo Testamento; 3 no Evangelho e 1 em Colossenses. Há, na Bíblia, uma dimensão religiosa para o sal. Javé ordena a Moisés que prepare um incenso santo, temperado com sal (Ex 30,35); todos os sacrifícios oferecidos a Javé devem estar temperados com sal, nunca pode faltar o sal da aliança com Deus (Lv 2,13); aliança de sal é aliança para sempre (Nm 18,19). Essa associação do sal ao sacrifício terá sua importância, como veremos, nas considerações de Tomás. Já em outro contexto, o sal causa esterilidade na terra (Dt 29,22), e espalha-se sal no solo quando se quer destruir para sempre uma cidade devastada (Jz 9,45). Por outro lado, quando Eliseu quer eliminar “a morte e a esterilidade” das águas, joga sal na nascente (2Re 2,21). E quando uma criança nasce deve ser esfregada com sal (Ez 16,4). O sal é uma realidade valiosa: o Eclesiástico (39,26) enumera o sal entre os bens de primeira necessidade. Não só como o tempero por excelência, mas como conservador de alimentos (o nosso tempo, que tem tantas facilidades – como a comum geladeira – mal pode avaliar essa qualidade). O sal é um bem precioso, a ponto de o dinheiro do salário receber este nome precisamente pela estreita relação entre dinheiro e sal. in nova lege et in Christo, significant ea quae sunt in patria, est sensus anagogicus. Item, in nova lege ea quae in capite sunt gesta, sunt exempla eorum quae nos facere debemus, quia quaecumque scripta sunt, ad nostram doctrinam scripta sunt; et ideo secundum quod ea quae in nova lege facta sunt in Christo et in his quae Christum significant, sunt signa eorum quae nos facere debemus: est sensus moralis. Et omnium horum patet exemplum. Per hoc enim quod dico fiat lux, ad litteram, de luce corporali, pertinet ad sensum litteralem. Si intelligatur fiat lux id est nascatur Christus in Ecclesia, pertinet ad sensum allegoricum. Si vero dicatur fiat lux id est ut per Christum introducamur ad gloriam, pertinet ad sensum anagogicum. Si autem dicatur fiat lux id est per Christum illuminemur in intellectu et inflammemur in affectu, pertinet ad sensum moralem (Super Gal., cap. 4 l. 7) . 118 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 “CRISTO NOSSO SAL” No Evangelho a palavra sal aparece em uma única fala de Cristo. Em Mateus, Cristo acaba de proclamar as bem-aventuranças e, ato contínuo, diz: “Vós sois o sal da terra. Mas, se o sal se desvirtua, como ele vai se salgar? Já não serve para mais nada a não ser para ser jogado fora e ser pisado pelos homens” (Mt 5,13). Em Marcos (9,50), uma sugestiva variante: “Bom é o sal, mas se o sal se torna insípido, com que o salgareis? Tende sal em vós e tende paz uns com os outros”. Em Lucas (14,34), a mesma passagem tem a forma: “Bom é o sal, mas se o sal se desvirtua, com que o salgareis? Não é útil para a terra nem como esterco e é jogado fora. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça”. É interessante notar essa relação com o transcendental bonum: ao afirmar que o sal é bom, Cristo está afirmando que o sal é sal: sal bom, sal de verdade, é sal “salgado”. O sal que se torna insosso – diz o Aquinate – aquele que está em si mesmo privado daquela qualidade própria pela qual ele se diz bom. Mas lemos em Tomás (Catena Aurea in Marcum cp 9 lc 6) que há sais que têm sal e sais que não têm sal (o que permite continuar com o paralelo ser/graça), embora no caso do sal que não tem sal, a rigor, poderíamos perguntar se cabe ainda falar em sal? Ou se não poderíamos aqui invocar um paralelismo com o exemplo do gelo, no qual não cabe falar em “gelo gelado”? Curiosamente, dentre os mais de 20.000 provérbios recolhidos no Dictionnaire des Proverbes et Dictons da Robert, encontra-se um da tribo Abé (Costa do Marfim), que diz precisamente isto: “O próprio sal não se diz salgado” (Paris, 1989, p. 659). Seja como for, o texto da Catena Aurea in Marcum vai trabalhar com o sal como se o sal recebesse sua salinidade de um Sal, que o é Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 119 JEAN LAUAND por excelência. O Sal é Cristo e, pela graça, nós podemos ser sal, por participação em Cristo Sal. Aproxima-se, portanto, da análise que já um Agostinho faz da luz. Cristo Luz em Agostinho A partir de Cristo Luz, Agostinho estabelece uma importante distinção: a luz que é Cristo; a luz dos cristãos por participação. Alguém acende uma tocha e, no caso dessa tocha – no que diz respeito à chama que está nela a luzir –, o fogo tem a luz em si mesmo. Já teus olhos, que sem a luz da tocha eram inúteis pois não podiam ver, agora eles têm luz, mas não em si mesmos. E mais, se da tocha se afastam, caem nas trevas; se a ela se voltam, são iluminados. Mas, certamente, este fogo está a luzir enquanto existe; se quiseres suprimir a luz, extinguirás no mesmo ato o fogo, pois não se pode dar o fogo sem luz. Ora, Cristo, luz inextinguível e coeterno ao Pai, sempre brilha, sempre está a luzir, sempre queima. Pois se Ele não estivesse sempre queimando, acaso diria o salmo [18 (19),7)]: “Nem há quem possa se esconder de seu calor”? Tu, porém, eras frio em teu pecado; converte-te para que te aqueças: se te afastas, te tornas frio. Em teu pecado eras trevas; converte-te para que te ilumines; se te afastas, serás escuridão. Portanto, como em ti mesmo eras trevas, ao ser iluminado não és luz, embora estejas na luz. Pois diz o Apóstolo (Ef 5,8): “Fostes, em outro tempo, trevas, mas, agora, luz no Senhor”. Ao dizer “agora luz”, ajunta: “no Senhor”. Em ti, pois, trevas; no Senhor, luz. Por que luz? Porque a participação da Sua luz é luz. Mas se te afastas da luz pela qual tens luz, voltas para as trevas. Mas não se dá o mesmo com Cristo, não com o Verbo de Deus. Como não? “Assim como o Pai tem a vida em Si mesmo, assim também deu ao Filho ter a vida em Si mesmo”: para que Ele viva não em participação, mas de modo imutável, e para que Ele seja em tudo a vida. “Assim, deu ao Filho ter vida”. Assim como Ele tem, assim Ele deu. Qual é a diferença? Porque o que Aquele deu, Este recebeu. Acaso Ele não existia quando recebeu? Podemos conceber um Cristo, em algum tempo, sem luz, sendo Ele a Sabedoria do Pai, da qual se disse: “É 120 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 “CRISTO NOSSO SAL” o fulgor da luz eterna” (Sb 7,8)? Assim, dizer “deu ao Filho” é como se dissesse: “gerou o Filho e gerando-o deu-lhe que fosse e que fosse vida e assim deu-lhe ser vida em si mesmo” Que é ser vida em si mesmo? Não precisar de vida de outro, mas ser Ele mesmo a plenitude da vida, da qual outros, crendo, têm vida enquanto vivem. Deu, pois, a Ele ter vida em si mesmo. Deu-lhe enquanto o quê? Deu-lhe, enquanto seu Verbo, àquele que “no princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus” (In Evangelium Ioannis Tractatus Centum Viginti Quatuor, XXII, 10) . Nesta clave é claríssima a sentença de Cristo: “Vós sois a luz do mundo”: pela graça, participamos da Luz que Ele é. Nós, que sem Ele seríamos trevas, estamos na luz em Cristo. Mas e o sal? Acaso Cristo seria o Sal e os cristãos teriam sal, por participação no Sal Cristo? Parece que sim, pois Cristo dirige-se aos apóstolos: “Vós sois o sal...”, dizendo que são sal por serem seus apóstolos. O sal na tradição patrística Como se sabe, os Padres da Igreja têm facilidade para elásticas interpretações da Bíblia: não nos deteremos nelas. Indiquemos, brevemente, a título de exemplo, algumas interpretações do sal, de que fala o Evangelho, que apontam para a participatio. Para Cipriano, Cristo já não diz que o homem é lodo da Terra, como Adão, mas sal, isto é, deve ser semelhante ao Pai do Céu (De dominica oratione CCL 43, cp 17). Paulino de Nola, sentindo-se insosso, pede a S. Nicetas que o tempere com um pouco de seu sal (CCL 203, Carmen 27); para Cromácio de Aquiléia, o sal é a Sabedoria de Deus, recebida pelo corpo humano (CCL 218, Tractatus in Mathaeum, 18); o tempero da graça do espírito (ibidem); por Jerônimo nos vem a fórmula “sal celeste” (e não só terreno) (Commentarii in Ezechielem, 4). Para Cesário de Arles, o sal é a sabedoria (Col 4, 6), mas a Sabedoria é Cristo (CCL 1008, Sermo 126, cap. 2); como em Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 121 JEAN LAUAND Beda o sal designa a sabedoria do Verbo (CCL 1355 In Marci Ev. Expositio, l 3, cp 9). O texto mais claro, porém, é mesmo o da Catena, que Tomás remete a Crisóstomo. Diga-se de passagem, que não é por acaso que o Aquinate se refere a Crisóstomo naquele conhecido episódio de sua vida. Um dia, mestre Tomás, acompanhado de alguns alunos, foi visitar as relíquias de São Dionísio e, ao voltar, comovidos ante a beleza e a imponência de Paris – os muros, as torres de Notre-Dame –, um dos estudantes perguntou: “Mestre, que bela é Paris! Não gostaria de ser o senhor desta cidade?” Tomás respondeu: “Mas, que faria eu com ela?” Querendo dar uma resposta religiosamente correta, o estudante respondeu: “O senhor poderia vendê-la ao rei da França e com o dinheiro construir todas as casas dos frades dominicanos”. E Tomás responde: “Eu prefiriria as homilias de Crisóstomo sobre Mateus”. O texto da Catena é sobre a fala de Cristo de que todos – Mc 9,49 – hão de ser salgados com fogo. Tenha-se em conta que Tomás – em In II Sent. d14 q1 a5 ra 5 – aceita a interpretação de que o sal da água do mar se forma pela mistura de vapor da terra com a combustão causada pelos raios solares etc. E Cristo ajunta imediatamente: “Bom é o sal, mas se o sal se torna insípido, com que o salgareis? Tende sal em vós e tende paz uns com os outros”. Somos salgados pelo fogo divino, do qual Cristo disse: “Eu vim trazer fogo à terra”. E em seguida fala do sal bom, isto é, o fogo do amor. Se o sal for insosso, isto é, privado de si mesmo, sem a própria qualidade pela qual se diz bom, como temperareis? Há sais que têm sal, isto é, têm a plenitude da graça e há sais sem sal... (Catena Aurea in Marcum cp 9 lc 6). E pouco adiante, a partir do (inesperado) versículo de Colossenses, identifica, com clareza total, o sal, os sais, com a participação em Cristo Sal: cada um tem de sal tanto quanto é capaz de receber graças 122 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 “CRISTO NOSSO SAL” de Deus. Daí que o Apóstolo junte a graça ao sal, dizendo: “Que vossa conversa seja na graça, temperada com sal” (Col 4,6). O sal é também o Senhor Jesus Cristo, que foi suficiente para conservar toda a terra e fez de muitos na terra sais. Unusquisque nostrum habeat tantum salis quantum capax est dei gratiarum; unde et apostolus coniungit gratiam sali, dicens: “sermo vester sit in gratia sale conditus”. Sal etiam est dominus Iesus Christus, qui fuit sufficiens totam terram conservare, et multos in terra fecit sales. O sal como discretio Se a consideração de Cristo Sal é para nós, hoje, surpreendente, não menos inesperada é a interpretação que Tomás privilegia para essa salinidade: ele a remete ao âmbito da tomada de decisão, do discernimento, do conselho, da prudência, da sabedoria. Certamente a moderna supressão prática da virtude cardeal da prudência, como virtude pessoal da maturidade cristã (supressão que dá lugar a um cristianismo de regras e proibições, de “manual de escoteiro moral”), guarda relação com nossa estranheza ao vermos, em outras passagens, que Tomás insiste em que esse sal (a que se refere São Paulo) é o discernimento da sabedoria: Sal autem discretionem sapientiae significat (Super Ep. ad Rom. c. 12 l. 1). Per salem intelligitur discretio: quia per ipsum omnis cibus conditus est sapidus; ita omnis actio indiscreta est insipida et inordinata (Super ad Coloss. c. 4 l. 1). In sale significatur discretio sapientiae (I-II, 102, 3 ad 14). Entre outras possíveis interpretações5 , Tomás privilegia a do discernimento da sabedoria: que o cristão guie suas ações pela união 5. As associações desfilam nas Catenae: a sabedoria divina, pregada pelos apóstolos, como o sal, seca os humores das obras carnais etc. e conserva para a eternidade. O sal, que provém do fogo da caridade; do vento do Espírito e da água do Batismo etc. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 123 JEAN LAUAND com Cristo – Sabedoria e Sal – e, assim, seja capaz de sacrifícios (até mesmo, se for o caso, o sacrifício supremo do martírio) e da realização de toda obra de justiça (Super Ep. ad Rom. c 12, l 1). A prudência – prudentia nihil sit aliud quam quaedam rectitudo discretionis (I-II, 61, 4, c) – iluminada pela união com Cristo é hoje virtude tão esquecida como a própria imagem de Cristo Sal. Referências GUIMARÃES ROSA, J. Noites do sertão. Rio de Janeiro: José Olympio, 6a. ed., 1979. LAUAND, J. Tomás de Aquino: Verdade e Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999. OCÁRIZ, F. Hijos de Dios en Cristo. Pamplona: Eunsa, 1972. WEISHEIPL, J.A. Tomás de Aquino – Vida, obras y doctrina. Pamplona: Eunsa, 1994. 124 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 109-124, jul./dez. 2007 I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA – L’APPORTO DEL MEDIOEVO ALLA PERIODIZZAZIONE STORICO-FILOSOFICA Gregorio Piaia (Professore ordinario di Storia della filosofia, Università di Padova – Italia – [email protected]) «Quid est enim tempus? Quis hoc facile breviterque explicaverit?»: così si chiede s. Agostino nelle Confessiones (11, 14, 17) di fronte a un “qualcosa” che ci sembra di conoscere bene ma che in realtà, se ci chiedono cosa sia, ci è assai difficile spiegare («Si nemo ex me quaerat, scio; si quaerenti explicare velim, nescio»). Il filosofo, dunque, come soggetto attivo che, pur vivendo nel tempo ed essendo anzi sottoposto alla sua legge implacabile (anche i filosofi invecchiano, e così avviene per i loro libri) tenta tuttavia di formulare una definizione di ciò che è “il tempo”: una definizione che, in quanto universale, vuol essere valida “in ogni tempo”, come se fosse fuori o al di là del tempo, nel regno etereo della verità senza tempo… Verità e tempo, verità e storia, verità che si fa nella storia, nel senso che, a seconda dell’orizzonte filosofico entro cui ci si muove, essa si manifesta oppure si crea oppure si coglie nella storia. Questo percorso temporale della verità costituisce la storia (intesa come res gestae) della filosofia. La ricostruzione di tale percorso è la storiografia filosofica, ovvero la storia della filosofia intesa come historia rerum gestarum. In quest’azione ricostruttiva assume un ruolo di primo piano la divisione in età o periodi o fasi, entro cui i diversi filosofi e le loro teorie trovano un’adeguata collocazione. Non si tratta solo di Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 125 GREGORIO PIAIA grandi contenitori cronologici, giacché l’àmbito temporale può caricarsi di aspetti che riguardano il senso e la direzione (o le direzioni) che i pensieri dei filosofi assumono in ogni fase del loro procedere nel tempo. È questo un tratto specifico della storiografia filosofica moderna, che si contraddistingue per il suo carattere generale, ossia per il suo intento di abbracciare (e spiegare) l’intero cammino dell’umano pensiero; basti pensare, ad es., alla celebre opera di Johann Jacob Brucker, Historia critica philosophiae a mundi incunabulis ad nostram usque aetatem deducta (Lipsia 1742-1744), la cui ampia Dissertatio praeliminaris si chiude con una sezione dedicata espressamente all’Ordo et divisio historiae philosophicae. Riprendendo in forma sistematica una distinzione che era ormai comune da circa un secolo, il Brucker distingue tre grandi «epoche» della filosofia: la prima comprende la cosiddetta «filosofia antidiluviana» (da cui però egli prende le distanze) e quella «postdiluviana», divisa a sua volta in «barbarica» e «greca»; la seconda va dagli inizi dell’impero di Roma sino alla fine del medioevo, ossia alla Scolastica, che viene anch’essa ripartita in tre periodi; la terza va dalla «restaurazione delle lettere» (il Rinascimento) fino all’età contemporanea («ad nostram usque aetatem»).1 È noto che questa attenzione per la periodizzazione del corso storico della filosofia non trova riscontro nel mondo antico, benché l’interesse per le filosofie del passato sia assai remoto. Tale interesse trovò una prima, organica ed esemplare espressione in Aristotele, in particolare nel libro I della Metafisica, in cui le posizioni dei predecessori in ordine alla definizione delle cause ultime e dei principi primi vengono passate in rassegna e classificate – nonché criticamente valutate – alla luce della dottrina aristotelica delle quattro cause: una “classificazione”, per l’appunto, di ordine logico-teorico e dialettico 1. Cfr. M. Longo, Historia philosophiae philosophica. Teorie e metodi della storia della filosofia tra Seicento e Settecento, Milano, IPL, 1986, pp. 195-203. 126 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA (nel senso aristotelico, naturalmente)2 ; una “dossografia” più che una “periodizzazione”, anche se l’accenno alla tesi, secondo cui «gli antichissimi che, assai prima della generazione attuale, per primi hanno trattato degli dèi» avrebbero avuto una concezione del mondo analoga a quella di Talete, rivela una chiara coscienza del distacco fra l’età della Grecia arcaica e l’età in cui viveva lo Stagirita e che per noi è l’età “classica”.3 D’altronde, se guardiamo all’altro grande modello della storiografia filosofica antica, le Vite dei filosofi di Diogene Laerzio, si nota come dopo l’iniziale distinzione etnico-geografica tra «barbari» e «greci» l’autore proceda secondo lo schema della divisione in due grandi scuole, la Jonica e l’Italica, a loro volta suddivise in sètte, all’interno delle quali è applicato il criterio della diadochè, ovvero della «successione» cronologica degli scolarchi o capiscuola, con un continuo “va e vieni” che abbraccia circa quattro secoli. Rispetto a queste ripartizioni l’affermarsi di una forte dimensione storica e di una conseguente periodizzazione richiedeva alcune premesse: per un verso il riconoscimento della piena legittimità filosofica (affermata a suo tempo da Sozione di Alessandria, negata invece da Diogene Laerzio) alla sapienza dei cosiddetti «barbari», che si presentava più antica di quella greca, con la conseguente retrocessione degli inizi storici del filosofare; per un altro verso il prolungamento a pieno titolo del “far filosofia” ai secoli successivi all’età greca ed ellenistico-romana, «usque ad nostram aetatem», superando così la concezione della filosofia come prodotto esclusivamente greco, e ciò sino al punto da progettare un altro modo di “far filosofia”, alternativo ai modelli greci, come avvenne nel corso del Seicento. Tali pre- 2. Cfr. E. Berti, Sul carattere “dialettico” della storiografia filosofica di Aristotele, in Storiografia e dossografia nella filosofia antica, a cura di G. Cambiano, Torino, Tirrenia, 1986, pp. 101-125. 3. Aristot. Metaph., A, 3, 983b 28-30. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 127 GREGORIO PIAIA messe, secondo l’opinione più corrente, si verificarono solo all’inizio dell’età moderna, ove il termine “moderna”, non a caso, assume un significato pregnante, in quanto rivendica una netta distinzione – nei contenuti dottrinali e nei metodi d’indagine – riguardo all’età medievale (l’aborrita Scolastica) e alla stessa antichità greco-romana. Di qui l’idea, pure diffusa, che la periodizzazione sia un elemento caratterizzante della moderna historia philosophica, a partire dal sec. XVII, quando anche in questo campo l’imitazione dei modelli antichi (dossografico, biografico, diadochistico) cedette il campo a impostazioni più nuove o quanto meno più estese e comprensive. L’intento della mia relazione è invece di mostrare come già in età medievale le due premesse sopra ricordate abbiano trovato piena attuazione, dando così luogo a periodizzazioni che denotano un senso rilevante della storicità dell’umano filosofare e che fungono da “ponte” tra la storiografia filosofica antica e quella moderna. Mi limiterò in questa sede a tre esempi particolarmente significativi, che si riferiscono al sec. XIII, il “secolo d’oro” della Scolastica. Il primo esempio riguarda il più grande enciclopedista medievale, il domenicano Vincenzo di Beauvais (morto intorno al 1264), precettore alla corte di Luigi IX di Francia e autore del monumentale Speculum maius, diviso in Speculum historiale, doctrinale e naturale.4 Ai fini della nostra indagine lo Speculum historiale è, per così dire, borderline: si tratta infatti di una grande storia universale distribuita in più libri, ove ad ogni libro corrisponde un periodo di ampiezza assai variabile. All’interno di questa trattazione sono però 4. Cfr. A.L. Gabriel, Vinzenz von Beauvais, ein mittelalterlicher Erzieher, Frankfurt a.M., Josef Knecht, 1967. Lo Speculum historiale è stato consultato nell’incunabolo strasburghese (Argentinae, Johannes, Mentelin, 1473, to. I). Per un approfondimento dell’opera storiografica di Vincenzo e degli altri autori qui esaminati rinvio al mio volume A “Historia dos Filósofos” no Universo Cultural do Medievo, a cura di L.A. De Boni e M.R. Nunes Costa, in corso di stampa presso l’EDIPUCRS (Porto Alegre). 128 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA individuabili singoli capitoli o blocchi interi di capitoli che riguardano la storia dei filosofi, costruita attraverso un collage di notizie biografiche e di flores dottrinali; espunte dal contesto della cronaca universale e raggruppate all’interno dei rispettivi periodi, queste sezioni danno luogo alla seguente periodizzazione storico-filosofica: I. Da Mosè al profeta Daniele (libro III): vi rientrano i sette sapienti, a partire da Talete. II. Da Ciro il Grande ad Alessandro Magno: questo periodo corrisponde al libro IV, ove ben 33 capitoli su un totale di 103 sono dedicati ai «gesta et dicta philosophorum» (Pitagora, Archita, Democrito, Eraclito, Empedocle, Ippocrate, Anassagora, Parmenide, Protagora, Gorgia, Socrate, Alcibiade, Senofonte, Diogene il Cinico, Platone, Speusippo, Aristotele). III. Il periodo di Alessandro Magno (libro V: 15 su 71 capitoli riguardano i filosofi); è un periodo molto breve (28 anni), in cui però sono inseriti – accanto a Senocrate, Epicuro, Callistene, Lisimaco – anche Mercurio Trismegisto e i tardi platonici Apuleio e Plotino (in quanto ricollegabili a Platone) nonché i «Bragmani», ossia i sapienti indiani, sulla base delle «mutuae epistolae» di Alessandro e del re Didimo. IV. Dalla morte di Alessandro a Giulio Cesare (libro VI: 22 capitoli su un totale di 117); troviamo qui Teofrasto, Polemone, Arcesilao, Cratete, Stilpone, Zenone di Cizio, Crisippo, Diodoro, Carneade, Archimede, Diogene di Babilonia, Ecatone di Rodi, Panezio, i due Scipioni, Catone di Utica… V. Da Cesare alla morte di Augusto (libro VII: 37 capitoli su 129, dedicati in gran parte a Cicerone e alle sue opere; ma sono presenti anche Varrone, Sesto Pitagorico e Valerio Massimo). VI. Il regno di Tiberio e Caligola (libro VIII: un capitolo è riservato a Filone di Alessandria). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 129 GREGORIO PIAIA VII. Il regno di Claudio (libro IX: vi è fatto grande spazio alle opere di Seneca, che è di gran lunga il filosofo più trattato nello Speculum historiale). VIII. Da Nerone a Vitellio (libro X: comprende un ulteriore capitolo su Seneca). IX. Da Vespasiano a Settimio Severo (libro XI): accanto a Plutarco, Secondo, Panteno, Tauro di Berìto, Galeno, sono presenti anche due autori cristiani, Giustino e Clemente Alessandrino, entrambi definiti con l’epiteto «philosophus», che in seguito non viene più usato; se ne deduce che per Vincenzo di Beauvais l’età dei “filosofi” (che inizia con Talete e i sette sapienti) si chiude con questi due autori, alla cui giovanile educazione filosofica in ambiente pagano seguì la conversione al cristianesimo (dopo di che si ha la “successione” dei Padri e dottori della Chiesa). Non v’è dubbio che questa periodizzazione della storia dei filosofi risulti piuttosto artificiosa, in quanto frutto della estrapolazione da una cronaca universale. Essa costituisce comunque un efficace termine di raffronto con il secondo testo su cui intendo qui richiamare l’attenzione, ossia il breve trattato introduttivo alla Summa philosophiae dello pseudo Grossatesta.5 Qui il contesto letterario è mutato: non si tratta più di una storia universale, bensì di una esposizione sistematica della philosophia, dalla metafisica fino alla mineralogia (una summa, per l’appunto), che viene però preceduta e introdotta da un sintetico excursus storico-filosofico, come sarebbe poi avvenuto in molti manuali di filosofia dei secoli XVII-XVIII. Un excursus, a dire il vero, assai scheletrico, dato che si riduce a poco più di semplici elenchi di nomi, 5. Summa philosophiae Roberto Grosseteste ascripta, in L. Baur, Die philosophischen Werke des Robert Grosseteste, Bischofs von Lincoln. Münster, Aschendorff, 1912 (BGPhM. 9), pp. 275-280. 130 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA inquadrati però – è questo l’aspetto interessante – entro uno schema di periodizzazione che è certamente mutuato dalla storia universale, ma che comincia anche ad avere dei tratti autonomi, che preludono alle periodizzazioni adottate in età moderna. L’anonimo autore della Summa philosophiae distingue infatti nettamente quattro periodi, entro i quali sono distribuiti tutti i philosophi e che corrispondono ad altrettanti brevi capitoli: I. Dai tempi di Noè fino a Ciro il Grande. Questo periodo comprende i «primi philosophantes», ossia i Caldei, che trassero origine dai tre figli di Noè ed ebbero come massimo esponente Abramo, esperto nell’astrologia e nell’aritmetica oltre che conoscitore del vero Dio. Dopo Abramo fiorirono, in successione temporale, l’astrologo Atlante, il primo e il secondo Mercurio Trismegisto, il biblico Giobbe, Iside inventrice della scrittura, Cecrope fondatore di Atene, il fenicio Cadmo, il greco Omero, il re Salomone e infine Talete e l’astrologo Ipparco. II. Da Ciro ad Alessandro Magno. È questa l’età dei «Graeci philosophantes», divisi nei «duo famosissima genera», ossia la scuola Jonica e l’Italica (è evidente l’analogia con la periodizzazione in uso nelle cronache universali e legata allo schema della translatio imperii). III. I filosofi romani, sia di lingua greca sia di lingua latina, fino ai filosofi arabi («De philosophis Romanis sive Graeco stilo, sive Latino philosophiam suam digesserint – et hoc usque ad tempora Arabum philosophantium»).6 Sono qui menzionati Varrone, Cicerone, Seneca, Plinio il Vecchio, Aulo Gellio, Apuleio, Plotino, Tolomeo, Galeno, Dioscoride, Macrobio, Alessandro di Afrodisia, Temistio, Marziano Capella. Boezio, Solino, il grammatico Prisciano e Mario Vittorino, insieme con i maggiori poeti latini. 6. Ibi, p. 279. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 131 GREGORIO PIAIA IV. La delimitazione di questo periodo è la più innovativa, perché esso va dal tempo dell’imperatore Eraclio († 641), ossia dall’inizio della grande espansione dell’Islam, fino al tempo dell’autore della Summa philosophiae («De philosophis magis famosis Arabicis vel Hispanis et aliis eis vel contemporaneis vel succedentibus etiam Latinis»).7 In questo capitoletto i philosophi sono ripartiti in base alla loro religione: dapprima i musulmani (al-Kindi, al-Farabi, Avicenna, Avempace [ibn Bajja], Averroè…, ma anche matematici e medici), poi i cristiani e infine gli ebrei (i due «Rabbi Moyses», ossia il grande Mosè Maimonide e un altro Mosè, pure spagnolo, che nel 1106 si era convertito ed aveva assunto il nome di Pietro Alfonso; ma a costoro andrebbe aggiunto Avicebron, ovvero Salomon ibn Gebirol, che figura qui nella lista dei filosofi arabi). L’elenco più interessante è senz’altro quello dei «philosophi» cristiani: è un elenco a prima vista sorprendente, perché non vi troviamo i pensatori solitamente trattati nelle nostre storie della filosofia medievale, bensì una serie di traduttori dall’arabo in latino oppure di autori di opere scientifiche: Costa ben Luca (l’arabo Qusta ibn Luqa, vissuto nel IX sec., che si era convertito al cristianesimo, autore del De differentia animae et spiritus, volto dall’arabo in latino nel sec. XII); Costantino Africano († 1087), che aveva promosso all’abbazia di Montecassino la traduzione di opere scientifiche arabe; Domenico Gundissalvi, il celebre traduttore della scuola di Toledo; Platone da Tivoli, pure lui traduttore, attivo a Barcellona nella prima metà del sec. XII; e poi il medico bizantino Teofilo Protospatario (vissuto nel sec. VII e autore del De pulsibus e del De urinis, ben conosciuti nell’Occidente latino) e Macer Floridus, pseudonimo dell’autore del poema De viribus seu de virtutibus herbarum. Quanto ai più noti pensatori del medioevo latino, da Alcuino ad Anselmo d’Aosta, Ugo 7. Ibi, pp. 279-280. 132 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA e Riccardo di San Vittore, Gilberto Porretano, Pietro Lombardo, Guglielmo d’Auxerre, essi sono menzionati fra i «theologi» nel successivo capitolo XI (spicca nell’elenco l’assenza di Giovanni Scoto Eriugena).8 Agli occhi dello pseudo Grossatesta parrebbe dunque che la qualifica di philosophus – riferita ai secoli più recenti – fosse da attribuire soltanto ai traduttori dall’arabo e agli autori di opere medicoscientifiche. Sennonché questa immagine decisamente riduttiva del philosophus risulta corretta ed ampliata dalle considerazioni poste a conclusione del IV periodo, con le quali l’anonimo autore della Summa philosophiae si spinge fino all’età a lui contemporanea, evidentemente sotto l’influsso della giovane e vivace cultura universitaria, segnata ormai dal “ritorno” di Aristotele nell’Occidente latino. Egli dichiara infatti che vi sono anche altri filosofi di buon livello, dei quali ha studiato le dottrine, ma non conosce i loro nomi oppure ritiene opportuno non menzionarli, probabilmente per gli esiti eterodossi del loro pensiero (l’allusione è forse ad autori come Amalrico di Bène o Davide di Dinant). Alcuni nomi escono comunque dalla sua penna; si tratta di Giovanni il Peripatetico, di Alfredo di Sareshel e soprattutto di due «moderniores», ossia contemporanei: il francescano Alessandro di Hales († 1245) e il domenicano Alberto Magno († 1280). Nel contempo egli fa però presente che tali philosophi non si possono porre sullo stesso piano delle auctoritates riconosciute.9 Qual è il significato complessivo di questo schema periodizzante? Anzitutto per lo pseudo Grossatesta l’esercizio della «filosofia» non è 8. Ibi, pp. 284-285. 9. Ibi, p. 280: «Sunt et alii quam plures eximiae philosophiae viri, quorum etsi philosophiam inspexerimus, nomina tamen vel ignoramus vel non sine causa reticemus, quamquam et Iohannem peripateticum et Alfredum modernioresque Alexandrum minorem atque Albertum Coloniensem praedicatorem philosophos eximios censendos reputemus, nec tamen pro auctoritatibus habendos». Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 133 GREGORIO PIAIA esclusivo del mondo greco-romano con le sue propaggini cristiane (Giustino e Clemente di Alessandria), ma risale ai tempi più remoti, successivi al diluvio universale, e comprende quindi i «barbari». Questa prospettiva, che possiamo definire platonico-cristiana e che avrebbe goduto di larga fortuna nel Rinascimento e nel Seicento, si riallaccia alla tradizione “alessandrina” di Sozione, Filone l’Ebreo, Clemente, Agostino, in contrasto con l’ellenocentrismo di Diogene Laerzio e dello stesso Aristotele. Inoltre, ed è questo l’aspetto più nuovo, la philosophia è vista prolungarsi sino all’età contemporanea, abbracciando insieme musulmani, ebrei e cristiani: per quanto meno autorevoli rispetto agli autori del passato (il pensiero va al celebre detto di Bernardo di Chartres, «Nani gigantum humeris insidentes»), Alessandro di Hales e Alberto Magno sono tuttavia definiti «philosophi eximii», e va riconosciuto che la scelta di questi due personaggi, rappresentativi dei due ordini mendicanti che si disputavano il primato nell’Università di Parigi, non appare affatto fuori luogo. In definitiva, la sintetica periodizzazione della Summa philosophiae risulta assai più moderna e innovativa di molte ed ampie trattazioni storico-filosofiche che sarebbero apparse nel Cinquecento e nel primo Seicento, limitate però – in ossequio allo schema laerziano – al periodo greco o al massimo greco-romano. E veniamo al terzo testo qui proposto, il Compendiloquium (o Florilegium) de vita et dictis illustrium philosophorum del francescano Giovanni di Galles (Johannes Guallensis).10 Si tratta in questo caso di una vera e propria storia dei filosofi, intesa come un genere indipendente sia dalle cronache universali sia dalle trattazioni filosofico-teoriche. L’opera, divisa in dieci partes, comprende fra l’altro un’ampia serie di biografie dei 10. Cfr. W.A. Pantin, John of Wales and Medieval Humanism, in Medieval Studies Presented to Aubrey Gwynn, ed. by J. Watt et al., Dublin, Lochlainn, 1961, pp. 297-319. 134 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 I FILOSOFI NEL TEMPO E LE ETÀ DELLA FILOSOFIA filosofi greci, divisi nelle due tradizionali «scuole», la Jonica e l’Italica, ma dà spazio anche ad alcuni pensatori latini (Cicerone, Seneca, Boezio). Dal punto di vista della periodizzazione la pars più interessante è la decima («De locis, in quibus floruerunt studia philosophorum»), dove il Guallense abbandona gli schemi ereditati dal mondo antico e sviluppa con tono convinto la categoria della translatio studii, la cui prima elaborazione risale all’età carolingia.11 Modellata sull’analoga e ben più antica categoria storica della translatio imperii, la translatio studii si fondava sull’idea che il sapere si fosse trasferito da un popolo all’altro secondo una direzione che va da Oriente ad Occidente, seguendo il cammino naturale del sole. Attingendo in più riprese al De naturis rerum di Alessandro Neckam, il Guallense inizia il suo percorso geografico-culturale da Abramo, che avrebbe introdotto le arti del quadrivio in Egitto, dove poi le appresero Pitagora, Platone ed altri filosofi greci. Grande rilievo è quindi dato ad Atene, città in cui la filosofia e le arti liberali ebbero il massimo sviluppo. Da lì esse si trasferirono a Roma e in altri luoghi d’Italia. Con la prima «fondazione» dello Studio parigino ad opera di Carlo Magno avvenne il passaggio della cultura da Roma a Parigi. Ma non è finita: da buon britannico, il Guallense si rifà alla profezia del mitico mago Merlino sul trasferimento degli studi al di là della Manica, ad Oxford e più in là ancora, in Irlanda.12 Qui il cammino della sapienza sembra giunto a compimento, dato che il Guallense non poteva certo prevedere il sorgere, sull’altra sponda dell’Atlantico, 11. Cfr. U. Krämer, Translatio imperii et studii: zum Geschichts– und Kulturverständnis in der französischen Literatur des Mittelalters und der frühen Neuzeit, Bonn, Romanistischer Verlag, 1996. 12. Florilegium de vita et dictis illustrium philosophorum et Breviloquium de sapientia sanctorum, authore Ioanne Guallensi Ordinis Minorum. Recensuit, et nunc primum edidit Fr. Lucas Wadding ejusdem Instituti, Romae, apud Nicolaum Angelum Tinassium, 1655, 10, 1-9, pp. 409-424. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 135 GREGORIO PIAIA delle Università di Harvard, Yale, Princeton e, ancora più ad ovest, sulle rive di un altro oceano, di Los Angeles e di Berkeley… Né il cammino della scienza appare oggi concluso, se si tiene presente lo sviluppo assunto dalla ricerca scientifica in Estremo Oriente, nel Giappone e nella stessa Cina: il che, se crediamo alla teoria dei corsi e ricorsi storici, potrebbe in futuro dar luogo ad un ulteriore “passaggio” da est ad ovest; un passaggio ai nostri occhi non privo di timori, dato che per il Guallense lo sviluppo degli studi filosofici procedeva – per lo meno nella felice età antica – di pari passo con le grandi vittorie militari di un Alessandro o di un Cesare. In Giovanni di Galles la rottura e il superamento dello schema ellenocentrico avvengono dunque su un duplice piano, geografico e insieme storico: la “filosofia”, intesa nella sua accezione più ampia, esce dai confini del mondo greco e, più in generale, del Mediterraneo, e trova i suoi centri di sviluppo anche nell’Europa nordica ed atlantica, sicché il tradizionale rapporto dialettico Gerusalemme-Atene e AteneRoma si arricchisce con la più recente “coppia” Parigi-Oxford. Il “far filosofia” è ormai riconosciuto come attività pienamente inserita nel mondo contemporaneo: il Guallense aveva studiato ad Oxford ed aveva lì conseguito i gradi di magister artium e di baccelliere in teologia; questa sua esperienza di studio lo porta a valorizzare e ad esaltare il ruolo di quella cultura oxoniense che avrebbe in seguito contribuito notevolmente – basi pensare ai calculatores – agli sviluppi moderni del pensiero filosofico-scientifico. D’altra parte il tema apparentemente ingenuo della translatio studii, lungi dal tramontare insieme con l’età medievale, sarebbe a lungo sopravvissuto, assumendo vesti più raffinate: anni luce sembrano distanziare il grande Hegel dal modesto compilatore Giovanni di Galles, ma quando Hegel vede nella filosofia tedesca la vera erede della filosofia greca e pone il proprio pensiero al culmine di un percorso bimillenario, in fondo egli non fa che razionalizzare un’intuizione che aveva animato numerosi (anche se oggi oscuri) autori medievali. 136 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 125-136, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE: POLIFONIA INTERPRETATIVA – DO NOVO TESTAMENTO A PEDRO DE JOÃO OLIVI Marcos Aurélio Fernandes (Instituto franciscano de teologia de Goiás – IFITEG, [email protected]) O que se propõe neste artigo é fazer uma investigação a respeito do modo como o cristianismo antigo e medieval perfaz a sua hermenêutica da temporalidade e da historicidade. Percorrendo diversas fases da tradição cristã, que vai do Novo Testamento até o movimento franciscano dos séculos XIII e XIV, procuramos evidenciar diversas tonalidades e vozes interpretativas da experiência cristã do tempo e da história. O que emerge é, por assim dizer, uma polifonia interpretativa, onde cada voz ressoa no seu caráter todo próprio e no seu direito inalienável. Polifonia que é, por assim dizer, diferentes entoações do mesmo: o mistério de Cristo, que se revelou na história como sendo a plenitude dos tempos. Através de incursões teológicas, vamos ressaltando, no entanto, as diferentes concepções ontológicas da temporalidade e da historicidade humana, elaboradas no horizonte dos diversos cristianismos antigos e medievais. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 137 MARCOS AURÉLIO FERNANDES 1. A hermenêutica da temporalidade-historicidade na experiência proto-cristã da vida Nós partimos do factum cristão e de sua facticidade 1 . A cristianidade2 do cristianismo é determinada por este factum, que, na verdade, é um evento3 . O advir e sobrevir deste evento acontece no 1. A palavra latina “factum” é o particípio passado de facio – eu faço (o infinitivo é facere), e significa “feito”. Todo o fato é um feito, ou seja, todo o fato é a forma terminal de uma gênese temporal/histórica. A palavra “facticidade” (na hermenêutica existencial de “Ser e Tempo”: Faktizität) diz a dinâmica de ser que inaugura, institui, funda, constitui e perfaz a gênese temporal/histórica de todo o “factum” que pertence à existência humana, ou melhor, antes de tudo, a gênese do “factum” que somos nós mesmos, a cada vez, em nosso ter que ser o que somos. A facticidade é o princípio de toda a hermenêutica da existência humana. Ou seja, toda hermenêutica precisa partir da experiência fáctica da vida. “A vida só se deixa esclarecer (“erklären”), se for vivida de ponta a ponta (durchgelebt), do mesmo modo como Cristo só começou a esclarecer e a mostrar as Escrituras, como elas ensinavam a partir dele (von ihm) – quando ele havia ressuscitado” (KIERKEGAARD, Tagebuch (Diário), 15 de abril de 1838 – apud HEIDEGGER, GA Band 63, Ontologie (Hermeneutik der Faktizität), Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1995, p. 16s. 2. “Cristianidade” (Christlichkeit) é uma palavra de essência: diz o vigor essencial, originário e mais próprio do cristianismo (Christentum): o sentido de ser da vida cristã, enquanto existência renascida, vivida e consumada na fé, existência referida a Cristo, à participação na gratuidade e graciosidade do mistério de sua cruz, ao discipulado todo próprio do Crucificado, que é seguimento, ou seja, existência crística e cristiforme. A cunhagem desta palavra deve-se, ao que parece, a Kierkegaard, e fora usada pelo teólogo, amigo de Nietzsche, Franz Overbeck; por fim, foi retomada por Heidegger em Phänomenologie und Theologie, Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1970, p. 8. Evitamos a palavra “cristandade” por esta, no uso corrente, designar o modo de ser do cristianismo enquanto fenômeno cultural, social e político, especialmente, o regime de união entre Igreja e Estado. 3. “Evento” vem do latim eventus, que, por sua vez, remete ao verbo evenio (evenire): vir de, sair de; pro-vir de; chegar-se, ir ter; acabar; acontecer. “Evento” traduz, aqui, o alemão Ereignis e se deixa compreender a partir do verbo ereignen: deixar e fazer provir, advir, sobrevir. Ereignen diz, pois, pro-vocar alguma coisa a vir a ser ela mesma, no seu mais próprio (eigen), deixá-la e fazê-la advir a si mesma, chegar ao seu mais próprio; permitir e determinar o seu sobre-vir e o seu acontecer. 138 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... modo da revelação de um mistério4 : o mistério do reino de Deus (basileia tou Theou – cf. Mc 4,11), que se revela como o mistério de Cristo, à medida que irrompe em sua vida – através de suas obras e palavras – e em sua morte de cruz – mediante a sua paixão e ressurreição. Isso se dá de tal maneira que se evidencia uma identidade entre quem proclama a mensagem e a mensagem proclamada mesma. Cristo não somente aparece como alguém que traz uma mensagem, mas que é a mensagem mesma. Com outras palavras, Cristo não somente é o hermeneus5 , ou seja, aquele que anuncia a mensagem, proclama o anúncio e revela o mistério (do reino de Deus), mas ele é o próprio mysterion (do reino de Deus) tornado presente e manifesto, como mysterion, porém. Isso quer dizer que a revelação é re-velação, ou seja, é o aparecimento do velado como velado, o desvelamento do velamento como velamento. O aparecimento do mistério de Cristo, sua parousia6 e epiphaneia7 , inaugura o fim dos tempos ou os tempos do fim. Raia o Dia. Acontece o Hoje. Vem a Hora. Plenitude dos tempos. 4. “Mistério” não é uma falha, falta ou deficiência do conhecimento. Mas é, antes, dinâmica e modo da auto-apresentação da própria realidade do real. Na raiz de seu advir, tudo é mistério. “Mistério” vem do grego Mysterion, que, por sua vez, remete ao verbo Myo, “fechar (a boca ou os olhos)”. Fala, pois, do invisível de todo o visível, do indizível de todo o dizível, do que se retrai em todo o aparecimento, do que se retira em todo o advento. No sentido bíblico, a palavra se reveste de caráter histórico-escatológico. Mysterion é evento escatológico: re-velação de uma decisão divina, seu propósito e seu cumprimento definitivo. 5. Hermeneus é aquele que exerce o hermeneuein, ou seja, aquele que exerce o encargo de trazer a mensagem do destino, de dar notícia dela. O Cristo, como hermeneus, é o enviado, que traz os anúncios do Pai e revela suas decisões. É o anunciador do inesperado e do imperscrutável. (Neste sentido, há um parentesco ou analogia entre a figura de Cristo no cristianismo e a figura de Hermes na grecidade). 6. O nome parousia significa presença, aparecimento, vinda (latim: adventus) e remete ao verbo pareimi, estar presente, ter vindo. No mundo grego e helenístico, Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 139 MARCOS AURÉLIO FERNANDES Isso constitui o lance de abertura de toda uma hermenêutica da temporalidade e da historicidade no(s) protocristianismo(s) e no(s) cristianismo(s) de todos os tempos. Isso determina o modo como o cristão, em todo e qualquer tempo, vive a temporalidade. Dizemos: “vive a temporalidade” e não “vive na temporalidade”, porque, para o cristão, a temporalidade não é nenhuma abstração, algo assim como uma moldura indiferente e neutra, em que se desenrolam os acontecimentos do mundo, antes, a temporalidade é a dinâmica do tempo mesmo, enquanto tempo vivido, e vivido na iminência do fim. Esta iminência, no entanto, não se deixa constatar ou comprovar a partir de um cálculo, realizado no âmbito e no horizonte de uma concepção matemática e neutra do tempo, antes, ela é de cunho existencial. parousia nomeava também a vinda ou visita de um rei ou imperador. Paulo emprega o verbo pareimi e o nome parousia no sentido usual e no sentido escatológico (1Ts 4,15: eis ten parousia tou kyriou – ...“até a vinda do Senhor; 1Cr 15,23: en te parousia autou – ... “na sua vinda”; 2Ts 2,8: kai katargesei te epiphaneia tes parousias autou – ... “e aniquilará com o esplendor de sua vinda”). A parousia de Cristo ora se refere ao seu já ter vindo, ora ao seu estar vindo, ora ao seu por-vir. Trata-se, sempre, de um ad-vento, de um e-vento, de um sobre-vento. A parousia oscila, portanto, entre aparecimento (já acontecido) e reaparecimento (ainda porvindouro) do Cristo. 7. Epiphaneia significa aparecimento, revelação. O nome remete ao verbo “epiphaino”: mostrar, aparecer, fazer brilhar. Epiphaneia designava o aparecimento de um deus na história, por meio de eventos ou acontecimentos extraordinários. A Septuaginta escolhe aquele nome e aquele verbo para se referir às intervenções gloriosas e terríveis de Ihwh/Adonai. Daí, no horizonte da apocalíptica judaica, epiphaneia passa a designar o aparecimento de Deus como evento escatológico. No quadro do culto grego, a epifania de um deus é celebrada no ritual como a festa do seu nascimento, da sua ascensão ao trono, de um milagre específico operado por ele, daí, a liturgia cristã compõe a festa da epifania com a memória do nascimento de Cristo, de seu batismo e da sua primeira manifestação no sinal das bodas de Caná. No Novo Testamento, entretanto, epiphaneia é um nome escatológico, isto é, remete para o aparecimento definitivo de Cristo, ou seja, não mais o seu aparecimento humilde e frágil “na carne”, mas o seu aparecimento glorioso no Dia último (Cf. 2Ts 2,8). 140 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... O cristão vive o tempo, diante da iminência da impossibilidade do próprio tempo (chronos), que, por sua vez, é a possibilidade de todas as possibilidades, a dimensão de todas as dimensões de possibilidades, pois tudo o que vem a ser, tudo o que advém, precisa do tempo (chronos) para tal8 . O Fim é a possibilidade da impossibilidade do tempo. Enquanto possibilidade da impossibilidade, é a iminência do incontornável, insuperável e irremissível, que, por sua vez, agrava o tempo presente, tornando-o tempo de crise, isto é, de risco e de chance, de perdição e salvação, de julgamento e de graça. O fim iminente, porém, não é só fim do tempo, mas também fim dos tempos – isto é, dos séculos, das eras do mundo9 . O advento do Cristo inaugura o fim 8. Chronos é o tempo tomado como o tempo com o qual se conta. Remete, por isso, ao lapso de tempo (de quando a quando, de então a então). Implica, pois, duração e sucessão. O homem mensura, isto é, mede e conta o tempo por precisar contar com o tempo. E precisa contar com o tempo porque o seu tempo é sempre um tempo contado e medido: um tempo finito e definido. O homem tende a captar o tempo como infinito e interminável, e se sente autorizado a isso quando considera o tempo “do mundo”, da “natureza”, dos céus e dos astros. No entanto, este tempo interminável só aparece quando o homem abstrai do tempo de sua vida, que é sempre, um tempo finito e definido. O cristianismo reverte esta relação. O tempo da vida do homem, em sua transiência e finitude, se projeta também sobre o tempo da vida do mundo. Os poderes cósmicos já não aparecem mais como definitivos e inabaláveis, mas como transientes e abaláveis. Por isso, a linguagem apocalíptica esta falando sempre de catástrofes cósmicas, que antecedem e acompanham a irrupção do Dia último. 9. Aion é a palavra grega para dizer uma “era do mundo”. Em Homero, aion corresponde a psyche (vida). A vida humana (bíos), tal como ela é vivida e experimentada desde ela mesma, em sua facticidade, é tempo. A vida, por sua vez, cada vida em sua singularidade, está sempre se estruturando em mundo, que é também sempre um mundo compartilhado com outras vidas. Neste sentido, numa visão que parte de dentro da própria vida, o mundo está começando e acabando, sempre de novo, a cada novo nascimento e a cada nova morte. Hesíodo empregou a palavra aion como duração de uma vida. “La vida es tiempo – como ya nos hizo ver Dilthey y hoy nos reitera Heidegger, y no tiempo cósmico imaginario y porque imaginario infinito, sino tiempo limitado, tiempo que se acaba, que es el verdadero tiempo, el tiempo irreparable. Por eso el hombre tiene edad. La edad es estar el hombre siempre en um Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 141 MARCOS AURÉLIO FERNANDES das eras – das eras da espera. Começa o tempo do cumprimento, da realização, da consumação, soa a plenitude do tempo (to pleroma tou chronou – Cf Gl 4,4-5). Com o inaugurar do fim dos tempos, começam, então, os tempos (as eras) do fim. Da morte de Cristo na cruz até sua definitiva parousia, as eras do mundo serão sempre, de alguma maneira, eras do fim do mundo, as épocas da história serão, por conseguinte, épocas do fim. A proclamação do Evangelho se dá em meio a esta experiência da temporalidade. A plenitude do tempo (chronos) é o soar do tempo oportuno, o dia “D”, a hora “H”, o kairos10 : “cumpriu-se o tempo (peplerotai ho kairos), e o Reinado de Deus aproximou-se” (Mc 1,15). É tempo de retorno e transformação da mente (metanoia). É hora da fé (pistis). Com Jesus e a partir de Jesus, o protocristianismo pode proclamar: “Eis agora o momento inteiramente favorável (idou nyn cierto trozo de su escaso tiempo...” ORTEGA Y GASSET. En torno a Galileo – esquema de las crisis. Madrid: Revista de occidente, 1956, p. 38s. Já Ésquilo fala de aion no sentido de geração. A história acontece “de geração em geração”, num movimento cheio de rupturas e continuidades, mais precisamente, num movimento de passagem, que constitui uma tradição (paradosis). De novo, podemos remeter, aqui, a uma palavra de Ortega y Gasset: “El hecho más elemental de la vida humana es que unos hombres mueren y otros nacen – que las vidas se suceden. Toda vida humana, por su essencia misma, está encajada entre otras vidas anteriores y otras posteriores – viene de una vida y va a outra subsecuente. Pues bien, en eso hecho, el más elemental, fundo la necesidad ineludibile de los câmbios em la estrutura del mundo” (Idem, p. 38). A mudança das gerações e de suas estruturas de mundo, suas rupturas e continuidades, constituem as eras, os séculos (mundos), as épocas. 10. O nome kairos aparece pela primeira vez em Hesíodo, denotando “medida certa”, “o que é conveniente, apropriado e decisivo”. Kairos é tempo-espaço favorável, propício, apropriado, que está, a cada vez, em jogo. É a situação de uma decisão, que implica, ao mesmo tempo, oportunidade e perigo. A experiência da história, para Israel, estava marcada pela irrupção da ação salvífica de Ihwh/Adonai em tais situações. O protocristianismo proclama que, com Jesus, raiou um kairos novo: “por isso, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura (kaine ktisis). O mundo antigo passou (ta archaia parelthen), eis que aí está uma realidade nova (idou gegonen kaina)” (2Cor 5,17). 142 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... kairos euprosdektos). Eis agora o dia da salvação (idou nyn hemera soterias)” (2Cor 6,2). O tempo inaugurado por Cristo não é apenas qualitativamente diverso dos outros tempos. Ele é o tempo radicalmente novo: o tempo do surgimento de uma nova criação, de um novo céu e uma nova terra, de uma nova existência. Trata-se, portanto, de um radicalmente novo nascimento do mundo, no seu sentido ôntico-ontológico, como o Kyrios proclama no livro do Apocalipse (21,5): “Eis que eu faço novas todas as coisas (idou kaina poio panta)”. Este novo aion, esta nova criação, esta nova realidade já começou no Cristo Crucificado e Ressuscitado. Pela fé (pistis), o cristão renasce para dentro dela e nela se incorpora. Ele é alguém que “está em Cristo” (2Cor 5,17). Sua existência é uma existência renascida em Cristo, na fé. Em Cristo ele vive. Como Paulo, ele pode dizer: “Vivo (zo), mas não sou mais eu (ouketi ego), é Cristo que vive em mim (ze de en emoi Christos)” (Gl 2,20). É na fé (en pistei) que o cristão vive a nova realidade, que lhe foi doada gratuitamente, como num novo nascimento. Fé é existir a partir de Cristo. É ter nele o fundamento da própria existência, o centro e o sentido da própria vida. Cristo se torna, para o cristão, vida de sua vida. Esta vida, que lhe é comunicada na graça da fé, e que é o próprio Cristo em sua autodoação, é algo de último (eschaton), quer dizer, de definitivo. Entretanto, este definitivo ainda não se manifestou inteiramente. O cristão vive na espera do inesperado de tal revelação plena. Com efeito, o cristão vive ainda a vida presente na carne, isto é, na caducidade e transiência da velha criação, do velho aion. O cristão é, pois, um cidadão de dois reinos: o reino deste mundo e o reino do mundo vindouro, que, em Cristo, já está presente. Ele vive na ambivalência: entre o último e o penúltimo. Nem é preciso dizer que o último não é aquilo que vem depois do penúltimo. O último é o que já aconteceu de maneira definitiva e que, assim, já determinou tudo o mais como o penúltimo. O último é o cerne do penúltimo: é Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 143 MARCOS AURÉLIO FERNANDES o porvir que já se fez presente e se tornou o passado definitivo do penúltimo. O último não destrói o penúltimo. Subsumindo-o, dálhe um novo sentido: o sentido do penúltimo é “preparar as vias” para o último, como João Batista preparou as vias para o Cristo (cf. Is 40,3; Mc 1,1-8). Todo o penúltimo é conservado e, ao mesmo tempo, superado. Conservado, como chance e oportunidade de “preparar as vias” para a vinda do Kyrios, de ser ocasião da metanoia e da pistis. Superado, à medida que o penúltimo perde o seu caráter de absolutidade, tornando-se totalmente relativo. A absolutidade, ou seja, o caráter de ser ab-soluto, vale dizer, solto em si mesmo, na plena liberdade e positividade de ser, isto se atribui somente ao último, ao definitivo. Daí, a proclamação e exortação de Paulo aos coríntios: Eis o que digo, irmãos: o tempo se abreviou (ho kairos synestalmenos estin). Doravante, aqueles que têm mulher sejam como se não a tivessem, os que choram como se não chorassem, os que se alegram como se não se alegrassem, os que compram como se não possuíssem, os que tiram proveito deste mundo, como se não aproveitassem realmente. Pois a figura deste mundo passa (paragei gar to schema tou kosmou toutou) (1Cor 7,29-31). Uma vez que o tempo se encurta e se abrevia e que se evidencia a transiência do “esquema”, isto é, da configuração e estruturação “deste mundo” (da realidade penúltima), o cristão não pode se conformar ao “mundo presente”, mas deve se transformar em sua mente (Cf. Rom 12,2). De fato, o cristão não pode se conformar com este mundo e com sua sabedoria (sophia), porque, para ela, a palavra da cruz (logos tou staurou) é loucura (Cf. 1Cor 1,26-31): “aquilo que não é (ta me onta), Deus o escolheu para conduzir a nada o que é (ta onta)” (1Cor 1,28). Com o evento da cruz, pois, subverte-se a ordem deste mundo e evertem-se radicalmente os seus valores: o não-ser aniquila o ser. Tudo isto, porém, para se deixar criar um novo ser, que é ser em Cristo Jesus, o Crucificado. Este ser em Cristo, no entanto, aparece pública e abertamente revestido de fraqueza e idiotice. Por isso, o Apóstolo do Crucificado não se apresenta “com o prestígio da palavra 144 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... e da sabedoria” para anunciar o “mistério de Deus” (cf. 1Cor 2,1). Antes, ele se apresenta em fraqueza (en astheneia), em temor e tremor (en phobo kai en tromo), a fim de que se torne manifesto que a fé não se fundamenta na sabedoria dos homens (sophia anthropon). De fato, pois a fé é um renascer e, enquanto tal, é gratuidade de Deus e não conquista do homem. Por tudo, isso, a única sabedoria do cristão é o Cristo Crucificado: “Pois resolvi nada saber (eidenai) entre vós a não ser Jesus Cristo e Jesus Cristo crucificado” (1Cor 2,2): “escândalo para os judeus, loucura para os pagãos, mas para os que são chamados (tois kletois), tanto judeus como gregos, ele é o Cristo, poder de Deus (Theou dynamin) e sabedoria de Deus (Theou sophian). (1Cor 1,23s). Por ser em Cristo, loucura e fraqueza de Deus, o cristão não se orgulha de suas conquistas éticas, nem de suas pretensas experiências místicas (visões e revelações) e do conhecimento (gnosis) que esta experiência traria consigo, antes, ele se orgulha de suas fraquezas: “quando sou fraco, então é que sou forte (hotan gar astheno, tote dynatos eimi)” (2Cor 12,10). A única glória que lhe interessa é a da cruz. Pois, tudo quanto se dá no mundo é, em si mesmo, insignificante: o que unicamente importa é a “nova criação” (kaine ktisis). O cristão vive a temporalidade, por conseguinte, na fraqueza do Crucificado, uma fraqueza que, no entanto, é “ternura” (1Ts 2,7). Sua existência “na carne” é revestida de indigência, necessidade, pobreza: é cheia de “penas e fadigas” (1Ts 2,9), “angústias e provações” (1Ts 3,7). Aqui aparece uma palavra primordial para se entender este modo de viver a temporalidade, típico do protocristianismo: “thlipsis” – opressão, aflição, tribulação, provação, perseguição, por causa do seguimento de Cristo. Trata-se da participação do cristão nos sofrimentos de Cristo, que são também as dores de parto da nova criação. Tudo isso exige do cristão uma virtude sobremodo importante: a hypomone: paciência, constância, perseverança. “É na vossa paciência que ganhareis as vossas vidas” (en te hypomone hymon ktesesthe tas Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 145 MARCOS AURÉLIO FERNANDES psychas hymon) (Lc 21,19). Assim, o cristão carrega o tesouro do conhecimento do rosto de Cristo “em vaso de argila” (2Cor 4,7a) e pode dizer: Premidos de todos os lados, nós não somos esmagados; em impasses, mas conseguimos passar; perseguidos, mas não alcançados; prostrados por terra, mas não liquidados; sem cessar trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus também seja manifestada em nosso corpo (2Cor 4,9s). A agonia de Jesus, da qual participam os cristãos, seu corpo místico, é também a agonia da velha criação, que espera pela revelação da glória da nova criação, que já está sendo gestada desde a morte e ressurreição do Crucificado. “Entregue ao poder do nada... ela guarda a esperança’ (cf. Rm 8,20), a esperança de participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus. Seus gemidos e dores, são os gemidos e as dores de parto do novo céu e da nova terra. Por ter que esperar, isto é, guardar a esperança (elpis), que não é nenhuma expectativa calculada disso ou daquilo, mas é a abertura na plena disponibilidade para o advento do inesperado da parousia definitiva, o cristão necessita se manter sempre de novo na vigilância. Na atitude de vigilância, com efeito, o cristão vive uma “fé ativa”, um “amor sacrificado”, uma “esperança perseverante” (cf. 1Ts 1,3), “acolhendo a palavra em meio a muitas tribulações, com a alegria do Espírito Santo” (1Ts 1,6). Ele “abandona os ídolos” e se volta para “o Deus vivo e verdadeiro” colocando-se ao seu serviço, a fim de “esperar dos céus o seu Filho a quem ele ressuscitou dos mortos, Jesus que nos livra da ira que está vindo” (1Ts 1,9s). Os que servem os ídolos são aqueles “que não têm esperança” (1Ts 4,13). Os que servem o Deus vivo, são os que têm um porvir e, por isso, permanecem na esperança (elpis). A esperança, porém, consiste na vigilância, pois “o Dia do Senhor vem como um ladrão, de noite” (cf. 1Ts 5,2-4). O perigo que ameaça o cristão é de se contentar com o tempo presente e com o seu mundo. A paz e a segurança do tempo presente lhe são, 146 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... portanto, mais perigosas que as tribulações e apertos, sofridos no seguimento de Cristo. A paz e a segurança podem mergulhar o cristão na noite do esquecimento de Cristo. Quem adormece nesta noite, acaba sendo surpreendido pela parousia. E ela se lhe acontece, repentinamente, como “Dia de ira”, isto é, kairos do julgamento e da condenação definitivos. Caso, porém, o cristão se mantiver em vigilância, na fé, esperança e na caridade, então ele se torna “filho do dia” (Cf. 1Ts 5,5). E a paurosia lhe advém como o inesperado já sempre esperado, acontecendo-lhe, porém, como kairos de perdão e salvação definitivos (Cf. 1Ts 5,9s). A dinâmica da temporalidade, por conseguinte, se mostra ambivalente: para quem se mantém desperto na paciência e esperança, ela culmina no kairos da salvação definitiva, para quem se mantém adormecido na “paz e segurança” do mundo, ela culmina no kairos da condenação definitiva. Algo da tensão desta ambivalência escatológica, em que a temporalidade aparece no(s) e para o(s) protocristianismo(s), se faz ver no livro do Apocalipse de João. O nome apokalypsis – revelação – remete ao verbo apokalypto: revelar, descobrir, desvendar. Trata-se, em verdade, da revelação de Jesus Cristo, que Deus concede aos seus servos, para mostrar (deicsai) aquelas coisas que devem acontecer no tempo que foi abreviado (ha dei genesthai em tachei) (cf. Ap 1,1). É que o fim já se realizou, mas de maneira ainda encoberta, na morte e ressurreição de Cristo (que se manifestou apenas a alguns: os discípulos que deveriam se tornar suas testemunhas qualificadas). Este mesmo fim necessita se manifestar abertamente a todos os homens. Ele vai se manifestando paulatinamente, até se revelar definitiva e totalmente: consuma-se, assim, o mistério de Deus, antes anunciado aos profetas (cf. Ap 10,7). Nessa perspectiva, há uma coincidência parcial entre o tempo presente e a era novíssima, definitiva. Tudo caminha para a coincidência total dessas duas dimensões do tempo, que aparecem justapostas na experiência protocristã da historicidade. Como se pode ver, o tempo aparece, na perspectiva do Apocalipse, a partir da urgência da parousia, e da iminência dos sinais, que a precedem ou a Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 147 MARCOS AURÉLIO FERNANDES acompanham. O momento presente é vivido como tempo do fim. Cada instante se investe da gravidade e se reveste da seriedade de uma decisão que passa a valer para a eternidade. O hoje torna-se tempo de krisis: tempo de uma de-cisão, que determina, já agora, a cisão (separação, julgamento) definitiva entre os dois reinos espirituais, simbolizados nas duas cidades: Babilônia (confusão) e Jerusalém (visão de paz). O Apocalipse é a afirmação da esperança da vitória de Jerusalém sobre Babilônia; é a afirmação da convicção de que o “reino do mundo” é provisório e destinado à ruína, enquanto o reino de Cristo é definitivo e eterno (cf. Ap 11,15). Neste sentido, o Apocalipse de João não é somente um livro apocalíptico, mas é também e talvez, antes de tudo, um livro profético. Profeta é aquele a quem o Espírito sobre-vem. Ele é alguém tomado, raptado, arrebatado pelo Espírito. Posto por este mesmo Espírito na roda viva da história, ele se contorce. Hesita, mas não pode fugir ao seu destino: anunciar julgamento e salvação. Seu anúncio não provém de si mesmo, mas do Espírito que o domina. Ele fala, não ele, mas o Espírito fala nele e por meio dele. E fala com pathos, isto é, fala inflamada e apaixonadamente. Suas palavras são agudas e contundentes. Convocam rupturas com a velha era e anunciam irrupções de uma nova era. Subvertem, evertem, transvertem. Elas dão voz ao clamor do porvir11 . O profeta é a “sentinela da iminência” (Ricoeur)12 . Ele anuncia julgamento e salvação. A anunciação é o coração vivo da profecia. Esta não é, propriamente, uma previsão do futuro. É, antes, uma fala antecipada do que será. Tal fala, por sua vez, embora se refira a um futuro apodítico, diz o que ela tem a dizer, contudo, de maneira her- 11. Cf. ROMBACH, Heinrich. Leben des Geistes – Ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit. Freiburg/Basel/Wien: Herder, 1977, p. 25s. 12. LACOCQUE, André; RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente. Bauru: Edusc, 2001, p. 187-205. 148 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... mética, ficando a meio caminho entre o indicativo e o imperativo. Como oráculos, os enunciados desta fala, não afirmam nem negam qualquer coisa, apenas acenam e assinalam o retraimento do mistério (semainein) porvindouro (Cf. Heráclito de Éfeso – Frag. 93)13 . Daí, a forma obscura destes enunciados, os quais, na apocalíptica, se revestem de imagens e figuras parabólicas e enigmáticas. Para a profecia, porém, aquele futuro anunciado não será bem um factum do homem, mas muito mais de Deus. Daí a apoditicidade do anúncio e a convicção de quem anuncia. O profeta conta a história do futuro. E a sua narração do futuro não é tranqüila, é, antes, angustiosa e desestabilizadora. Ela se põe diante da terrificante alternativa que se lhe instala: entre ruína completa e salvação plena, entre a catástrofe e a recapitulação consumadora de todas as coisas. Sua narração é, por isso, traumática. A “loucura” visionária, extática e entusiástica, do profeta, porém, traz consigo a lucidez de uma vigilância: a história do futuro, que ele conta, o faz situar-se de modo todo próprio no aqui e agora, em que ele e seus ouvintes se encontram. O discurso profético, com efeito, assim como o apocalíptico, seu herdeiro, visam o hoje, o agora, querendo suscitar um despertar para a gravidade e a seriedade do hoje, do aqui e agora. Há, porém, uma diferença entre o discurso simplesmente profético e o profético-apocalíptico, como o do Apocalipse de João: aquele narra um futuro intra-histórico, este, um futuro trans-histórico, escatológico, definitivo. Na apocalíptica, o profeta se torna não só a sentinela de uma iminência intra-histórica, intramundana, mas também de uma iminência trans-histórica, escatológica: o futuro definitivo, irrevogável de Deus, “aquele que é, que era e que virá”, “o alpha e o omega” de todo o tempo e de toda a história. 13. ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 82s. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 149 MARCOS AURÉLIO FERNANDES 2. A hermenêutica da temporalidade-historicidade na experiência cristã-medieval da vida A hermenêutica cristã da temporalidade e da historicidade, ao longo dos séculos, se viu marcada pela perspectiva escatológica do(s) proto-cristianismo(s), em especial pelo livro do Apocalipse de João. A começar de Agostinho. Agostinho viveu um tempo de de-cadência: para todos, pagãos e cristãos, patenteava-se o fim de uma era, a saber, a era do império romano. Mas, na agonia do império romano, se pressentia a agonia do mundo como tal. Assim, da parte dos cristãos, entoam-se, desde o fim da Antigüidade, vozes que vão ressoar por toda a alta idade média, pelo medievo românico e pelo medievo gótico afora, cantando o envelhecimento e mesmo o fim do mundo14 : São Cipriano15 , São Jerônimo16 , Santo Oriêncio de Aquitânia17 , São Gregório Magno18 , Marculfo19 , Pascásio 14. As referências seguintes, com as citações em latim, são dadas apud: DE LUBAC, Henri. Opera Omnia (Secção V, Vol. 19) – Esegesi Medievale – Volume Terzo. Milano: Jaca Book, 1996, p. 711-713. 15. “Mundus ecce nutat et labitur, et ruinam sui non jam senectute rerum sed fine testatur – Eis que todo o mundo vacila e cai e atesta a sua ruína não já com a velhice das coisas, mas com o fim” (Cipriano (c. 210-258). 16. “Cadit mundus – o mundo cai” (Jerônimo, c. 347-419/420). 17. “Lassa senescentem despectant omnia finem / Et jam postremo volvitur hora die / Respice quam raptim totum mors presserit orbem – todas as coisas desfalecidas, olham com despeito para o fim que está se extinguindo, e já agora a hora se volta para o dia último. Olha quanto rapidamente a morte oprime todo o mundo” (Oriêncio de Aquitânia: bispo poeta do século V). Palavras que poderiam servir de mote ao filme “O sétimo selo”, do recém-falecido Ingmar Bergmann, filme este que trata, justamente, do “outono da idade média” (expressão do historiador Huizinga). 18. “In interitum rerum omnium, pensare debemus, nihil fuisse quod amavimus – diante da destruição de todas as coisas, devemos considerar que era um nada aquilo que amávamos” (Gregório Magno, c. 540-604). 150 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... Radberto20 , Santo Euquério21 . A palavra de São Gregório Magno, por exemplo, declara: “ecce enim quia divini judicii dies imminet – de fato, eis porque é iminente o dia do divino juízo”22 . E Santo Ambrósio Autperto (?-784), comenta: Mas o Filho de Deus diz que verá velozmente, porque todo o tempo da vida presente, por mais que seja prolongado por longos períodos de intervalos, todavia, porque não está parado, mas passa (quia non stat, sed transit), com o seu próprio transcorrer demonstra que há de terminar velozmente. Por causa deste curso velocíssimo, João define a sua quantidade com a duração de uma só hora, quando ele diz: “Filho, chegou a última hora”23 . Agostinho (354-430) pressente e ressente a queda do Império Romano na invasão de Roma por Alarico, rei dos visigodos, em 410. Os pagãos acusam o Deus dos cristãos, pela ruína do império. Desde que o Crucificado fora se tornando preponderante no panteão romano, ou melhor, desde que ele fora se tornando exclusivo, o império só foi decaindo. A cruz foi implodindo a cidade. E seus muros foram se tornando vulneráveis. Esta situação constituiu a ocasião para Agostinho – africano de origem, romano de cultura e cristão de fé – pensar as relações entre fé cristã e temporalidade-historicidade e expor o sentido destas relações numa hermenêutica cristã da história em sua obra De Civitate Dei – Da cidade 19. “Mundus senescit!... Mundus terminus appropinquat – o mundo envelhece!... O fim do mundo se aproxima” (Marculfo, Séc. VII). 20. “In proximo est ut veniat hoc pejus ultimum malum... sem nondum statim – está muito iminente o último mal, pior do que este... mas não (se dará) logo” (Pascásio Radberto, fim do século VIII a 860/865). 21. “Omnis fucatus splendor intercidit. Vix jam hoc habet mundus, ut fallat... Dirigenda est omnis animi intentio in spem futuri – cai todo artificioso esplendor. Já agora o mundo a duras penas o tem para enganar... todo o esforço da alma deve estar direcionado à esperança do futuro”. 22. Apud: DE LUBAC, Henri. Idem, p. 713. 23. Apud: DE LUBAC, Henri. Idem, ibidem. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 151 MARCOS AURÉLIO FERNANDES de Deus (413-426). A exposição de Agostinho pode ser dividida em uma “pars destruens”, em que faz uma crítica da crítica pagã e uma apologia da fé cristã, e em uma “pars construens”, em que recapitula a inteira história – que, na perspectiva da fé, é sempre história de salvação – à luz da revelação bíblica. Nesta segunda parte, ele expõe a origem, o desenvolvimento e o fim das duas cidades, cujas vicissitudes e peripécias constituem toda a história do ser humano. Em outras obras também aparece essa idéia das duas cidades: Dois amores fizeram duas cidades: o amor de Deus faz Jerusalém, o amor do século Babilônia. Estes dois amores, dos quais um é santo, o outro imundo; um é social, o outro privado; um se preocupa com a vantagem de todos, o outro mesmo as coisas comuns reduz ao próprio poder, por arrogância de poder; um é súdito, o outro rival de Deus; um tranqüilo, o outro turbulento; um pacífico, o outro sedicioso; um prefere a verdade aos louvores dos errantes, o outro vai à caça de louvores, em todos os sentidos; um move à amizade, o outro gera inveja; um deseja ao próximo aquilo que deseja para si mesmo, o outro quer sujeitar o próximo a si mesmo; um governa o próximo para vantagem do próximo, o outro para a própria vantagem. Estes dois amores tiveram seu precedente nos anjos, um nos anjos bons, o outro naqueles maus, e distinguiram duas cidades no gênero humano sob a admirável e inefável providência de Deus, que governa e ordena tudo aquilo que foi criado: uma é a cidade dos justos, a outra a dos perversos. Estas duas cidades correm unidas no tempo, mesclando as próprias vicissitudes, até que sejam separadas no juízo final, e uma, unida aos anjos bons, obtenha a vida eterna, a outra, unida aos anjos maus, seja mandada com o seu rei para o fogo eterno. Destas duas cidades falaremos, se Deus quiser, em outra ocasião. Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terrena: o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus... Naquela, seus príncipes e nações avassaladas vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua caridade, os governantes, aconselhando, e os súditos, obedecendo... 152 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... As duas cidades, portanto, são dois tipos de constituição do mundo da convivência humana, duas formas de organização da vida social, cada uma fundada por uma espécie de amor e seu ethos. Estas duas cidades têm origem eviterna24 : na cisão entre anjos bons e anjos maus. No curso temporal da história, porém, estas duas cidades estão misturadas e ambas participam das mesmas vicissitudes: compartilham os mesmos bens e os mesmos males temporais. A separação destas duas cidades, na verdade, só acontece no juízo final. Uma será destinada ao bem definitivo, que é a vida eterna, a outra à ruína definitiva, que é a morte eterna. As duas cidades, portanto, são arquétipos das possibilidades de constituição do convívio humano, arquétipos do ser-uns-com-os-outros no mundo comum e compartilhado da convivência, arquétipos extremos da vida social. O homem é o que é, a partir do modo de ser do seu amor. E é de acordo com este modo de ser do seu amor que ele pertence a uma outra sociedade: ou à cidade de Deus, cidade celeste, ou à cidade dos homens, cidade terrena. De acordo com o seu modo de viver é que o homem migra ou não de uma cidade para a outra, enquanto houver tempo. Contudo, quando não há mais tempo, no último dia e na última hora, é que 24. Eviterno não é o mesmo que eterno. O medieval distinguia entre “aeternitas”, que pertence a Deus, e que não inclui nem sucessão nem duração, e “aevum”, que seria como que a temporalidade própria dos puros espíritos e que inclui uma duração indefinida e uma sucessão, mas uma sucessão de caráter todo próprio. Tal sucessão se mostra no fato de que o espírito puro é um ente criado, que passa da potência (poder-ser) ao ato (ser-efetivamente), do nada à existência. O espírito puro é, neste sentido, marcado pela contingência e pelo devir, contudo, não está submetido nem à inovação nem à decrepitude. Vive num modo de ser estável, permanente. Enquanto espíritos, os anjos são seres de liberdade. No entanto, a decisão pelo bem ou pelo mal, entre eles, comporta algo de definitivo: é uma decisão tomada de uma vez para sempre. Somente um ser temporal pode retomar suas decisões, reafirmá-las e até mesmo negá-las, tomando posicionamentos contrários aos que já foram tomados anteriormente. Somente enquanto há tempo, há possibilidade de arrependimento e de conversão, por exemplo. Tempo e liberdade, neste sentido, estão intimamente conexos. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 153 MARCOS AURÉLIO FERNANDES se revelam os segredos dos corações e que se separam definitivamente os justos dos injustos. As duas cidades, por conseguinte, não coincidem com a Igreja e o mundo. A Cidade de Deus tem habitantes mesmo entre os que estão fora dos limites da Igreja visível, como a cidade terrena também tem habitantes mesmo entre aqueles que estão contados como cristãos. A Igreja militante é ainda uma realidade mista, híbrida: traz em si justos e injustos, habitantes da Cidade de Deus e da cidade terrena. Somente a Igreja triunfante, na eternidade, é que será uma realidade pura e sem mancha de pecado, em que habitarão somente os justos25 . A história é um processo teleológico. A consumação deste processo consiste na revelação e constituição definitiva do Reino de Deus: o triunfo da Jerusalém Celeste. No Apocalipse de João, depois da queda de Babilônia – cidade da prostituição, isto é, da idolatria (Cf. Ap 18), desce do céu a cidade de Deus, a Jerusalém Celeste. Desce do céu, de junto de Deus, “preparada como uma esposa que se enfeitou para seu esposo” (Ap 21,2), inaugurando o novo céu e a nova terra. São as núpcias do cordeiro. Núpcias, pois o aparecimento da Jerusalém Celeste é evento de união no amor: Na Cidade de Deus acontece a unificação viva de Deus com a humanidade e com toda a criação. A cidade de Deus, porém, não se deu desde o início, mas deve ser esculpida e edificada a partir do material bruto da natureza rebelde. Isto acontece no curso da história da humanidade, que se engaja sete vezes para o bem, mas que fracassa seis vezes. Somente a última gênese (a sétima época, o sétimo dia da criação) deixa que tudo se torne bom e que tudo desabroche na absoluta unidade da sinfonia. No fim da história do mundo Deus se unirá com a humanidade de modo imediato assim como a Cabeça de um homem com seu corpo. Segundo uma palavra da Bíblia, Cristo haverá de pôr, para a perfeição da huma- 25. Cf. AGOSTINHO. A cidade de Deus (contra os pagãos) – parte I. Petrópolis: Vozes, 1990, Livro I, cap. XXXV, p. 64. 154 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... nidade amadurecida, a sua cabeça (“… até que todos nós cheguemos à unidade da fé e ao estado do homem perfeito… no qual nós, consumando a verdade no amor, cresçamos em tudo na direção daquele que é a Cabeça, Cristo” – Ef. 4, 10-16). O fim é, portanto, um estado, no qual a até então subsistente super-ordem e infra-ordem cedam lugar a uma unidade e igualdade vivas26 . Jerusalém e Babilônia são arquétipos da ordem e da paz, de um lado, e da confusão, desordem e tempestuosidade, de outro lado. A temporalidade histórica é caracterizada pela tempestuosidade dos combates entre os humanos que se agitam na diversidade e mesmo no conflito de seus interesses. A paz permanece sendo, sempre ainda, uma aspiração e uma meta jamais encontrada definitiva e totalmente. O fim da temporalidade histórica, no entanto, é a tranqüilidade, a serenidade e a paz perpétua, que se condensam na Jerusalém celeste. Aliás, a paz da cidade terrena e a paz da cidade celeste são diversas: Assim, a cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a paz terrena; porém, firma a concórdia entre os cidadãos que mandam e os que obedecem, para haver, quanto aos interesses da vida mortal, certo concerto das vontades humanas. Mas a cidade celeste, ou melhor, a parte que peregrina neste vale e vive da fé usa dessa paz por necessidade, até passar a mortalidade, que precisa de tal paz... Em sua viagem a cidade celeste usa também da paz terrena e das coisas necessariamente relacionadas com a condição atual dos homens. Protege e deseja o acordo de vontades entre os homens, quanto possível, deixando a salvo a piedade e a religião, e ministra a paz terrena à paz celeste, verdadeira paz, única digna de ser e de dizer-se paz da criatura racional, a saber, a ordenatíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. Em chegando a esta meta, a vida já não será mortal, mas plenamente vital. E o corpo já não será animal, que, enquanto se corrompe, oprime a alma, mas espiritual, sem necessidade alguma, plenamente submetido à alma. Possui essa paz aqui pela fé, de que vive justamente, quando refere à consecução da verdadeira 26. ROMBACH, H. op. cit., p. 155. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 155 MARCOS AURÉLIO FERNANDES paz todas as boas obras que faz para com Deus e com o próximo, porque a vida da cidade é vida social27 . A paz perpétua é a meta da história. Mas, o que é a paz? A paz é a tranqüilidade da ordem: Assim, a paz do corpo é a ordenada complexão de suas partes; a da alma irracional, a ordenada calma de suas apetências. A paz da alma racional é a ordenada harmonia entre o conhecimento e a ação, a paz do corpo e da alma, a vida bem ordenada e a saúde do animal. A paz entre o homem mortal e Deus é a obediência ordenada pela fé sob a lei eterna. A paz dos homens entre si, sua ordenada concórdia. A paz da casa é a ordenada concórdia entre os que mandam e os que obedecem nela; a paz da cidade, a ordenada concórdia entre governantes e governados. A paz da cidade celeste é a ordenatíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. A paz de todas as coisas, a tranqüilidade da ordem. A ordem é a disposição que às coisas diferentes e às iguais determina o lugar que lhes corresponde28 . O triunfo de Jerusalém sobre Babilônia é, portanto, a vitória da paz – que é a tranqüilidade da ordem, que, por sua vez, é a disposição justa de todas as coisas na sua diversidade e igualdade –, sobre o caos, a confusão, a desordem, a injustiça. O triunfo não se dá, no entanto, sem o combate decisivo. A idade média vislumbrou a gravidade de tal combate escatológico na figura do Anticristo. O cristão deve poder reconhecer o Anticristo como tal. Esta é uma convocação a estar alerta, vigilante, desperto, em meio às vicissitudes da história. Estas vicissitudes não são aleatórias, mas seguem a oikonomia tou mysteriou: obedecem às disposições e aos desígnios, com os quais Deus governa a história (cf. Ef 3,9). Trata-se, em última instância, do desígnio benevolente, predeterminado por Deus, de le- 27. AGOSTINHO, A cidade de Deus (contra os pagãos) – parte II. Petrópolis: Vozes, 1990– Livro XIX, cap. XVII, p. 408s. 28. AGOSTINHO, Idem, Livro XIX, cap. XIII, p. 402s. 156 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... var os tempos à plenitude (cf. Ef 1,10a – eis oikonomian tou pleromatos ton kairon). A plenitude dos tempos, porém, consiste nisso: “recapitular todas as coisas no Cristo” (Ef 1,10b – anakephalaiosasthai ta panta en to Christo). Cristo é o mistério escondido às eras e às gerações (to mysterion to apokekrymenon apo ton aionon kai apo ton geneon cf. Cl 1,26). Ele é o mistério de Deus (mysterion tou Theou), pois nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria (sophia) e do conhecimento (gnosis) (cf. Cl 2,2). Assim o Cristo é a revelação escatológica do mistério da piedade (to tes eusebeias mysterion): Ele foi manifestado na carne (ephanerote en sarki), justificado pelo Espírito (edikaiote en pneumati), contemplado pelos anjos (ofte aggelois), proclamado pelos pagãos (ekerychte en ethnesin), acreditado no mundo (episteuthe en kosmo), exaltado na glória (anelemphthe en docse) (1Tm 3,16). Em contraposição ao mistério da piedade está o mistério da iniqüidade (mysterion tes anomias), que “já está em ação”, embora ainda retido (cf. 2Ts 2,7s). Tal mistério se adensa numa pessoa e passa a receber o título de “o homem da iniqüidade” (ho anthropos tes anomias), “o filho da perdição” (ho hyios tes apoleias) (cf. 2Ts 2,3), “o ímpio” (ho anomos) (cf. 2Ts 2,8) . Ele se arroga a ser deus e se põe contra Deus e contra o seu Cristo (anti-cristo): “ele se ergue e se insurge contra tudo o que se chama deus ou se adora, a ponto de se assentar em pessoa no templo de Deus e proclamar-se Deus” (2Ts 2,4). A ele também é atribuída uma parousia, que acontece “segundo a atuação de Satanás” (2Ts 2,9), o adversário, o inimigo, o “deus deste mundo” (ho theos tou aionos) (cf. 2Cor 4,4)29 . Ele virá de maneira enganosa e sedutora. Criará a ilusão de ser Deus e de ser Cristo. Seduzirá, no entanto, somente aqueles que se perdem (tois apollymenois), ou seja, aqueles que não acolhem o amor à verdade (ten agapen tes aletheias). Ele cum- 29. No Apocalipse de João esta mesma imagem aparece numa outra figura: a do dragão e seu comparsa, a besta (cf. Ap 13,1s). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 157 MARCOS AURÉLIO FERNANDES pre, assim, uma função discriminadora na história: ele está a serviço da história da salvação, à medida que ele favorece a decisão do julgamento, evidenciando os que amam a verdade e os que se deixam enganar pela aparência da verdade30 . Uma vez cumprido o seu encargo, no entanto, sua parousia está destinada a ser destruída pela parousia do Cristo, com sua epiphaneia, ou seja, com seu esplendor (2Ts 2,8)31 . 30. Para a teologia cristã, o mal está sempre a serviço do reino de Deus, mesmo se lhe opondo. Afirmar isso, porém, não elimina o seu mistério, antes, o agrava. Deus mesmo permite o mal, dentro do quadro da oikonomia da salvação. O mal que, ontologicamente, é uma privação do bem, deve, no entanto, poder atuar como força nulificante na criação e na história. Tal força nulificante atinge em cheio o Cristo e o faz aparecer como o Crucificado. É verdade que, enquanto o Ressuscitado, ele se declara vitorioso sobre este poder nulificante. Desde a vitória da Cruz, o Inimigo se tornou servidor. No entanto, mesmo no discurso ou na narração escatológica, persiste a presença do mal como o opus alienum de Deus, como a sua “mão esquerda” (Barth), da qual Ele é também Senhor. Permanece enigmática a cólera de Deus, a ira divina, que atua, como expressão de sua justiça, na condenação eterna “dos que se perdem”, mesmo que recordemos, como insistia Agostinho, que o justo juízo de Deus não pode nunca não ser misericordioso, mesmo quando condena “os que se perdem” à morte eterna. Cf. BARTH, Karl. Dio e il Niente. Brescia: Morcelliana, 2000, passim. Cf também: RICOEUR, Paul. Il male – uma sfida alla filosofia e alla teologia. Brescia: Morcelliana, 1993, p. 41-46. 31. Da perspectiva filosófica, toda esta “grande narração” escatológica, que soa aos ouvidos hodiernos como uma “mitologia” do futuro, apresenta uma decisiva relevância: toca na questão da presença e atuação do mal na história. Tal narração escatológica parece pré-dizer o que o poeta Hölderlin, nas vicissitudes de nossa época vespertina, cantou: “Onde mora o perigo / é lá que também cresce / o que salva” (Apud HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 31). Salvar não é apenas retirar, a tempo, da destruição. Salvar é fazer e deixar chegar algo à sua essência, permitindo-o aparecer em seu próprio brilho e esplendor. O que ameaça e o que salva andam juntos. Somente uma atenção vigorosa e desperta pode colher, no que ameaça, a generosidade do que salva. O mal não é posto pelo homem. O homem já sempre encontrou-se com o mistério do mal na sua experiência fáctica da vida. E encontra-o como uma certa fúria de desrealização, atuando contrariamente a tudo quanto se empenha por realizar-se. Esta fúria põe o mal, enquanto vigor nulificante, que vai atuando em toda a história, de ponta a ponta, do começo ao fim. Este vigor nulificante não é nenhum algo, não é nada de positivamente real, mas atua em toda a realidade, como princípio de des- 158 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... A obscuridade desta figura, o Anticristo, permanece um desafio ao cristão, no sentido, de que ele deve permanecer alerta e atento, para não se deixar seduzir pelo divino e pelo crístico apenas aparente. A primeira epístola de João, em outras palavras, faz o mesmo apelo: É chegada a última hora (eschate hora estin), ouvistes anunciar que vem um anticristo; pois, agora, muitos anticristos estão aí (1Jo 2,18)... Eis o anticristo: o que nega o Pai e o Filho” (1Jo 2,22b)... “Todo o espírito que confessa Jesus Cristo vindo na carne é de Deus; e todo espírito que divide Jesus não é de Deus; é o espírito do anticristo, do qual ouvistes dizer que virá, e agora já está no mundo (1Jo 4,2b-3)... Porque muitos sedutores espalharam-se no mundo: eles não professam a fé na vinda de Jesus Cristo na carne. Eis o sedutor, o anticristo (2Jo 7). Aqui, o anticristo se identifica com as heresias gnósticas, presentes no interior da própria Igreja, que negavam o mistério da encarnação, separando o celeste e o terrestre, o divino e o humano. realização (cf. Heidegger, Martin. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 91-95). Entificar o mal e hipostatizá-lo é sempre uma tentativa e uma tentação da religião. Ela ressalta o poder anônimo do mal como algo de pessoal, sim, como até mesmo sendo um ser, uma pessoa, só que anônima, despersonalizada e despersonalizante. O homem experimenta o mal como algo que lhe advém e sobre-vém. Não, simplesmente, como algo que nasce de si mesmo, embora reconheça que também em si mesmo o mal pode se instalar. Por isso, a religião não atribui o mal somente ao homem, mas o põe numa dimensão anterior e mesmo superior: na dimensão do espírito. É que só o espiritual pode ser mal. Onde não há espírito, isto é, liberdade e pessoalidade, não há também, propriamente, o mal. No entanto, “hipostatizar sem mais o ‘mal’ ou mesmo considerar como já demonstrado o diabo seria uma simplificação barata. Mas seria igualmente um achatamento desprezar a peculiar autonomia e realidade revelada pelo anônimo na experiência do crime, como se fosse uma impressão meramente subjetiva ou uma auto-ilusão. É verdade que na dimensão da pura experiência “o mal” não é “objetivo”, mas nem por isso é menos real. Para esta realidade não temos nenhum conceito, sim, nem mesmo um nome. Caso nós, de modo hesitante, o chamemos de real inefável, então o compreendemos como o reflexo negativo da dimensão de Deus, na medida em que esta é a dimensão da salvação (Heilsdimension) que remete para a experiência da des-graça (Unheil)” (ROMBACH, Heinrich. A fé em Deus e o pensar científico. In: Scintilla – Revista de Filosofia e Mística Medieval, n. 2, 2004, p. 156. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 159 MARCOS AURÉLIO FERNANDES Agostinho, na Cidade de Deus32 , após passar em revista diversas interpretações acerca da figura do Anticristo, confessa, com franqueza, não compreender o que quer dizer tudo isso. Ressalta que todas as interpretações permanecem apenas “conjecturas humanas”. Uma coisa, no entanto, diz ele, “é indubitável e certa: São Paulo diz que Cristo não virá julgar os vivos e os mortos, se antes o anticristo, seu inimigo, não vier seduzir os mortos na alma, apesar de essa sedução pertencer ao oculto juízo de Deus”. Assim, a figura do Anticristo permanece um princípio heurístico, que será retomado diversas vezes, em circunstâncias diferentes, cada vez que será exercida uma hermenêutica da história no cristianismo. A partir do ano mil, na era românica, sobretudo entre os séculos XI e XIII, a figura do anticristo acompanhará continuamente, como um sinal de advertência, a vida dos cristãos33 . Ela aparecerá na poesia de Bernardo de Cluny34 , na pregação de São Bernardo de Claraval35 , na música sacra e nos escritos místicos de Santa Hildegarda de Bingen36 etc. 32. AGOSTINHO, Idem– Livro XX, cap. XIX, p. 454-457. 33. As citações seguintes são dadas, novamente, apud: DE LUBAC, Henri. Opera Omnia (Secção V, Vol. 19) – Esegesi Medievale – Volume Terzo. Milano: Jaca Book, 1996, p. 710-713. 34. BERNARDO DE CLUNY (Século XI): “hora novíssima, tempora pessima sunt, vigilemus... / Quid modo detinet? En ferus imminet Antichristus... / Hoc prope praedicat esse vel indicat Antichristum – É a última hora, péssimos são os tempos, vigiemos... / O que agora a retém? Eis, é iminente o cruel Anticristo... / Isto prega ou indica que o Anticristo está próximo”. 35. BERNARDO DE CLARAVAL (1090-1153): “Angelus Satanae jam mysteria iniquitatis operatur – O mensageiro de Satanás já opera os mistérios da iniqüidade” (Parabola 2)... “Superest jam ut reveletur homo peccati, filius perditionis – Agora só falta que seja revelado o homem do pecado, o filho da perdição” (no comentário ao salmo Qui habitat)... “En tempora ista plane faeda... Intestina et insanabilis est plaga Ecclesiae... Superest ut jam de medio fiat daemonium meridianum... Ipse enim est Antichristus – Eis estes tempos propriamente vergonhosos... Interna e insanável é a chaga da Igreja... Só falta agora que surja o demônio do meio-dia... Ele é, de fato, o Anticristo). 160 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... A partir de sua própria autocompreensão, a Europa cristã se torna, assim, o lugar do ocaso, do ocidente, como atesta Hugo de São Vítor (c. 1096-1141) : Parece que assim tenha sido disposto pela providência divina, que as coisas que aconteciam no princípio do mundo, e depois no fim, com o passar do tempo, o conjunto destas coisas descesse até no Ocidente, a fim de que a partir deste fato reconheçamos que se aproxima o fim do tempo, porque o curso das coisas já toca o fim do mundo... O primeiro homo estava no Oriente... Assim, depois do dilúvio, o princípio dos reinos e a capital do mundo esteve na Assíria e entre os Caldeus e os Medos, nas partes do Oriente. Depois passou aos Gregos. Enfim, perto do fim do tempo, para o Ocidente, aos Romanos, os quais habitam quase à extremidade do mundo. Depois, o conjunto declina37 . Tal experiência vespertina, ocidental, da temporalidade-historicidade, ecoa nas vozes medievais através dos comentários ao Apocalipse de João38 . É Agostinho quem, mais uma vez, abre a possibilidade 36. HILDEGARDA DE BINGEN (1098-1179): “Filius perditionis in brevissimo tempore veniet, cum jam dies abscedit, sole in occasum latente, vid. cum novissimum tempus jam cadit et mundus tenorem suum deserit – o filho da perdição virá em brevíssimo tempo, quando o dia já desaparece e o sol se esconde no ocaso, ou seja, quando acaba o último tempo e o mundo abandona o seu modo constante de ser” (Scivias, livro 3, visão 11). 37. De arca Noe morali, l. 4, c. 9. 38. O livro do Apocalipse de João encontra-se no cânon bíblico muratoriano (Século II) e foi legitimado pelo papa Inocêncio I (que morre cerca de 417), pelos concílios africanos de Cartago, pelos decretos damasianos/gelasianos, pela tradição patrística latina (sobretudo Agostinho e Jerônimo) e pelo IV concílio de Toledo, presidido por Isidoro de Sevilha (século VI). Já os padres gregos, em grande parte, haviam rejeitado o texto como sagrado e tinham também duvidado de sua atribuição ao Apóstolo João. O mais tenaz contestador da canonicidade e autenticidade foi Eusébio de Cesaréia (263-339). Inocêncio I aceitou somente este Apocalipse (o de João), rejeitando, no entanto, como apócrifos, os Apocalipses de Paulo, de Esdras e de Tomé. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 161 MARCOS AURÉLIO FERNANDES de uma hermenêutica, que ressalta o sensus spiritualis do texto39 . No De Doctrina Christiana ele expõe os princípios de uma tal hermenêutica, os quais, ao menos em parte, recorrem às sete regras que o donatista Ticônio elaborara para a interpretação das Escrituras40 . Afirma-se, cada vez mais, uma exegese alegórica do Apocalipse de João. As imagens e os números apocalípticos são figuras que se há de inter- 39. A canonicidade do Apocalipse de João só se tornou viável, à medida que se impôs uma interpretação espiritual do texto. De fato, uma interpretação literal, que sugere, por exemplo, o milenarismo (cf. Ap, 20), já foi rejeitada pela Igreja, desde a condenação dos montanistas, no século III. A interpretação espiritual da Escritura começa já no judaísmo com o judeu helenista Filo, aparece nas interpretações escriturísticas de Paulo, se afirma nos Padres alexandrinos, e se corrobora em Irineu e Orígenes. 40. Agostinho se apropria com cautela das regras de Ticônio: é preciso recusar aquelas passagens em que ele fala como herético donatista; há que se rejeitar também a pretensão de que estas regras possam explicar todos os mistérios das Escrituras; carece de não pretender delas mais do que elas possam dar. Dito isso, há que se reconhecer, no entanto, que elas são muito úteis. São como que sete chaves que podem abrir o sentido dos textos escriturísticos. Passamos em revista, brevemente, estas regras: 1) Do Senhor e do seu corpo – a Escritura fala sempre do Senhor, quer como Cabeça (Cristo), quer como seu Corpo místico (a Igreja); 2) “Do duplo Corpo do Senhor”, que Agostinho prefere chamar de “Do Corpo do Senhor verdadeiro e misto, ou verdadeiro e simulado” – a Escritura fala da Igreja militante como de um corpo misto: de justos e injustos, enquanto que a separação dos mesmos só se dará no juízo final; 3) “Das promessas e da Lei”, que Agostinho prefere chamar de “Do espírito e da letra” ou “Da graça e do preceito” – é a questão da justificação pela graça ou pelas obras, que Agostinho considerava uma grande questão e que não teria sido resolvida nem pelos donatistas, nem pelos pelagianos; 4) “Da espécie e do gênero” – A Escritura costuma falar do gênero contraído na espécie, ou, se quisermos, falar do todo, referindo-se à parte: assim, quando se fala de Salomão, se intenciona falar de Cristo e da Igreja etc.; 5) “Dos tempos” – a Escritura recorre à sinedoque e a números simbólicos, que precisam ser lidos como tais; 6) “A recapitulação” – às vezes, a narração segue como se os eventos se desenrolassem sucessiva e linearmente, enquanto, a uma observação mais atenta, ela segue retomando ou recapitulando narrações anteriores, como que numa espiral; 7) “Do diabo e do seu corpo” – A Escritura ora fala do diabo, enquanto cabeça (Lúcifer), ora do diabo enquanto corpo, isto é, os anjos maus e os homens ímpios. 162 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... pretar tipologicamente, como referências a situações típicas da experiência cristã da vida. Na linha de Vittorino de Petau (morto mártir em 304), que foi o primeiro comentador do Apocalipse de João, e de São Jerônimo, a exegese medieval também ressaltou a contínua “recapitulação” presente naquele livro. Segundo esta exegese, as sucessivas revelações do Apocalipse – expressas nos septenários (sete cartas, sete selos, sete trombetas, sete sinais, sete taças, sete visões do céu...) – deviam se entender como sucessivas recapitulações, em diversas formas, da mesma revelação do mistério do Cristo. Na perspectiva aberta pela leitura do Apocalipse, toda a história do gênero humano se torna, fundamentalmente, história da salvação, que se contrai na história da Igreja. E o tempo da Igreja, que começa com o Pentecostes, não é outra coisa que uma longa espera, em que a Igreja, qual esposa abandonada, e o Espírito, clamam: “vem, Senhor Jesus!” (cf. Ap 22,17.20). A essa luz, a história da salvação se torna, primordialmente, uma história de amor entre Cristo e a Igreja. Daí ficou fácil para os medievais acostar a leitura espiritual do Apocalipse à leitura espiritual do Cântico dos Cânticos. A leitura monástica e litúrgica do Apocalipse de João se dará nesta tonalidade fundamental, sobretudo no século XII41 . Assim, Hildegarda de Bingen (10981179), na sua obra prima, Scivias, une o tema do Apocalipse ao do Cântico dos Cânticos: a história se torna, então, não mais somente a sucessão dos tempos que caminha para um fim glorioso, mas muito mais os percalços, as peripécias e as vicissitudes do encontro, do desencontro e do reencontro apaixonados entre o Deus da aliança, que é o Deus de amor, e o Homem da aliança, a humanidade, sua 41. Comentadores como Ruperto de Deutz (morto em 1131) e Ricardo de São Vítor (morto em 1173) são exemplos de tal exegese monástica do Apocalipse de João. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 163 MARCOS AURÉLIO FERNANDES namorada, noiva e esposa. O mysterium tremendum da história esconde, no seu bojo, o mysterium fascinans de um Deus que busca a humanidade como a sua amada e que aspira unir-se a ela, em amor, ternura e fidelidade. O mistério da história só se deixa vislumbrar, portanto, no segredo do Amor, que sela a aliança eterna com o humano e com toda a criação, no evento da encarnação. Este amor é a realidade última, que lança um raio de luz tênue e jovial sobre e através das escuras nuvens dos tempos da história humana. Em meio a um longo outono e inverno da história, no século XII, o medieval pressente o sabor da primavera. A aterrorizante imagem do Juiz que está às portas e que vem para fazer a separação dos justos e injustos deixa entrever, no seu íntimo, a revigoradora imagem do Esposo que diz: Levanta-te, minha companheira, / bela minha, vem embora. / Pois eis que o inverno passa, / a chuva cessa e se vai. / Já se vêem flores na terra; / vem o tempo da canção; / já se ouve em nossa terra / o canto da pomba-rola (Ct 2,11s). Atingido por este chamado, o medievo dos séculos XII e XIII é tomado de uma ebriedade, que o faz sonhar com novos tempos de paz. As cidades renascem e, com o seu renascimento, fluem novas relações econômicas e políticas, o feudalismo cede lugar à atmosfera das comunas e das cidades-repúblicas; os cristãos, até então ameaçados pelas pressões dos sarracenos, retomam a esperança da conquista da Jerusalém terrena, por meio das cruzadas. As escolas monásticas e episcopais se transformam em universidades, que vêem florescer as artes liberais, a filosofia aristotélica e a teologia escolástica. A arte românica, sóbria, grave e terrena, se transforma na arte gótica, ébria de luz, aguda e elevada aos céus. Um novo pentecostes parece soprar na Igreja. É nesta atmosfera que se dá a reforma monástica do século XII, em que sobressaem os cistercienses, e é neste clima que emergem os evangelismos do século XIII, os quais provocam uma renovação do laicato e o surgimento das ordens mendicantes. Neste mesmo ímpeto, movimentos pauperistas se insurgem e postulam reformas eclesiais e sociais, que anteciparão as revoluções modernas. Aliás, um 164 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... ar de modernidade já se faz presente por toda parte, em meio ao velho mundo da tradição. No século XII, tudo isso converge para uma figura peculiar e decisiva na hermenêutica cristã da temporalidade-historicidade: Joaquim de Fiore (c. 1132-1202). No profetismo e na mística apocalíptica deste monge calabrês há algo de tosco, de áspero, de solitário, de quase selvagem. Ele mesmo qualificava o seu falar de “rusticus et impolitus”42 . No entanto, tinha se tornado um visionário: ele que peregrinara à Jerusalém terrestre, acreditava ver, ao menos em parte, a Jerusalém do alto, que está iminente. Mais do que o medo, ele queria suscitar a esperança. Mais do que a uma reforma moral da Igreja, ele aspirava a uma regeneração no Espírito, a um novo Pentescostes, uma verdadeira e própria renovação carismática de toda a Igreja, em que todo o peso e opacidade maciça da instituição desse lugar à leveza e transparência do carisma43 . A sua mensagem profética, no entanto, ele queria anunciar corroborado por uma exegese científica! Assim, Joaquim abandona o terreno tradicional dos quatro sentidos da Escritura (literal, alegórico, moral e anagógico) e descobre o paisagem de um novo terreno: o da concordia44 . O método da 42. No prólogo do Comentário ao Apocalipse. 43. Em vida, Joaquim de Fiore contou com o apoio dos papas. Tendo abandonado a Ordem Cisterciense, ele fundou uma congregação, que contou com a aprovação pontifícia: Celestino III a aprovou. Clemente III aprovou os seus escritos e recomendou que continuasse a trabalhar em sua obra exegética. Somente Inocêncio III o tornou questionável perante a cúria romana. Joaquim, no entanto, reafirmou sua fidelidade e submissão ao pontífice e à Igreja romana. É no tempo de Inocêncio III, cujo pontificado começa em 1198, que começam as contestações curiais a algumas opiniões de sua teologia trinitária. Tais opiniões foram condenadas no Concílio Lateranense IV, quando Joaquim já estava morto (morreu em 1202). 44. Joaquim escreveu, nos anos de 1182 e 1183, o Liber concordiae Novi et Veteris Testamenti (Livro da concordância entre o Novo e o Velho Testamento), bem como, calcado no mesmo método, a Expositio in Apocalipsim – Comentário ao Apocalipse. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 165 MARCOS AURÉLIO FERNANDES concordia pretende-se calcar sobre o sentido literal do texto da Escritura. Quer ser uma interpretação “científica”, isto é, exata, sistemática, quase que se poderia dizer “matemática”, feita “more geometrico” dos textos bíblicos45 . Tal método exegético, no entanto, parte de uma posição e concepção prévia: assim como o Novo Testamento está latente no Antigo e o Antigo está patente no Novo, tal como acontece na hermenêutica de Paulo e de Agostinho, assim também os eventos da história da Igreja estão latentes nos eventos da história de Cristo. A história da Cabeça deve se repetir no seu Corpo. Assim, o livro do Apocalipse se torna a exposição em linguagem cifrada da história da Igreja. Joaquim procura, assim, desentranhar o nexo de uma concordância entre os três tempos: o tempo do Antigo Testamento, o tempo do Novo Testamento e o tempo da Igreja. Um novo princípio se torna fecundo nesta hermenêutica da história: Joaquim vê nos três tempos mencionados, um reflexo, uma imagem e uma semelhança da dinâmica da Trindade. A visão cristocêntrica da história, presente em toda a tradição, se desloca para a visão trinitária. A história humana não é mais que a teofania da Trindade. E a culminância desta revelação trinitária se dá na era do Espírito. É na era do Espírito que todo o movimento da história se consuma. Só no tempo do Espírito é que Deus pode ser tudo em todas as coisas46 . Esta era do Espírito, Joaquim pensa entrever já como imi- 45. DE LUBAC (op. cit. p. 585-751) procura mostrar que a exegese de Joaquim é um abandono do “sensus spiritualis” e o surgimento da pretensão de uma exegese literal, exata, “científica”. Para Joaquim, a exegese tinha se tornado uma questão de conjecturas. O que tal método induziu de fantástico e visionário não vinha, pois, do recurso ao “sensus spiritualis’, vale dizer, ao simbolismo alegórico e à interpretação moral e mística. A fantasia das interpretações de Joaquim vinham, paradoxalmente, do racionalismo de seu método, que se pretendia científico. 46. Cornélio Fabro ressalta, neste sentido, o vínculo entre esta concepção da história de Joaquim de Fiore e a concepção da história no idealismo transcendental de 166 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... nente ao tempo da Igreja. Neste sentido, a Igreja deverá passar por uma transformação que a levará à perfeita espiritualização: deverá surgir uma Igreja de todo evangélica, pobre, carismática. Joaquim, no entanto, não deixa claro, até que ponto haverá lugar, nesta Igreja do Espírito, para a instituição em geral e o papado em particular. É fato, porém, que ele prevê esta era do Espírito como realidade intrahistórica, a se concretizar ainda no tempo que antecede a parousía. Assim, a profecia de Joaquim roça o milenarismo, que, outrora, con- Schelling e Hegel. Hegel, como transparece dos seus escritos da juventude, haure o método dialético das leituras teológicas e místico-teosóficas, sobretudo a leitura de Jakob Böhme, cujas raízes medievais são notórias. Já naqueles escritos da juventude, Hegel mostra um preferência pelos escritos de João: enquanto Pedro representava o Antigo Testamento (o reino do Pai) e Paulo, em antítese, o Novo Testamento (o reino do Filho), João Evangelista representava a síntese: o reino do Espírito. A concepção cristã segundo a qual a história não é outra coisa do que o desenvolvimento do reino de Deus, transforma-se na concepção idealista segundo a qual a história não é que o desenvolvimento do reino do Espírito. A história é, na verdade, fenomenologia do Espírito: o processo pelo qual, deixando e fazendo aparecer diferentes configurações provisórias e parciais de si mesmo, o Espírito vai, de grau em grau, chegando ao conhecimento (conceito) de si mesmo. Assim, o Reino do Pai é a Idéia ainda indeterminada, o Reino do Filho é a Idéia estranhada na finitude da criação; o Reino do Espírito é a Idéia que retorna a si mesma. Hegel não cita expressamente Joaquim de Fiore. Schelling, no entanto, sim. Na Philosophie der Offenbarung (Filosofia da Revelação), Schelling toma o tríptico Pedro-Paulo-João como imagem da Trindade na história. O Pai corresponde ao reino do passado; o Filho ao reino do presente; o Espírito ao reino do futuro. Assim como o Antigo Testamento foi dominado pelas figuras de Moisés-Elias-João Batista, assim também o Novo Testamento é dominado pelas figuras de Pedro-Paulo-João Evangelista. Moisés e Pedro são figuras da Lei e da estabilidade da tradição, Elias e Paulo, figuras da liberdade e do dinamismo do presente, João Batista e João Evangelista são figuras da consumação. Schelling remete a Angelus Silesius: “Der Vater war zuvor, der Sohn ist noch zur Zeit. Der Geist wird endlich seyn am Tag der Herrlichkeit – O Pai era antes de tudo, o Filho é ainda voltado para o tempo. O Espírito será, finalmente, no Dia da Glória” (Cf. FABRO, Cornélio. La Storiografia nel Pensiero Cristiano, in: PADOVANI, Umberto Antonio; MOSCHETTI, Andrea Mario (org.). Grande Antologia Filosofica, Vol. V: Il Pensiero Cristiano. Milano: Marzorati, 1954, p. 359-360). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 167 MARCOS AURÉLIO FERNANDES tara com insignes representantes, como Irineu, Justino e Lactâncio. Dentro desta atmosfera emerge, no século XIII, a figura de Francisco de Assis. Para os franciscanos das primeiras gerações, o emergir desta figura histórica caracterizou-se como um verdadeiro evento, de repercussões universais. Francisco fora identificado, por muitos, com a figura de João Batista47 (João era o seu nome de Batismo) e com a figura de Elias, o profeta ardente. Assim, no Prólogo da sua Legenda Maior, São Boaventura saúda o aparecimento de Francisco com tons escatológicos48 : Nestes últimos dias, a graça de Deus nosso Salvador apareceu em seu servo, Francisco, para todos os verdadeiros humildes e amigos da santa Pobreza... Qual estrela d’alva a brilhar entre as nuvens, guiou para a luz, com o clarão de sua vida e doutrina, os que jaziam nas trevas e à sombra da morte. Como o arco-íris refulge por entre as nuvens da glória, apresentando em si o sinal da aliança do Senhor, anunciou aos homens a paz e a salvação. Sendo igualmente ele anjo de verdadeira paz, foi destinado por Deus, segundo também à imagem e semelhança do Precursor, a preparar no deserto o caminho da mais alta Pobreza e a pregar a penitência, tanto pelo exemplo como pela palavra...49 Boaventura vê Francisco dotado pelo Céu de um “ministério angélico”. Repleto do espírito da profecia, ele foi, como Elias, um homem arrebatado pelo “carro de fogo” seráfico. Francisco apareceu na história, vindo “no espírito e no poder de Elias”. Nele, pode-se entrever, assim, aquele “anjo que sobe do nascente, carregando o selo do Deus vivo”, aquele anjo que João vê, no Apocalipse, abrir o “sexto 47. Cf. CELANO, T. de. Segunda Vida (de São Francisco), Primeiro Livro, capítulo I – cf. FASSINI, Dorvalino F. (org.). Fontes Franciscanas. Santo André-SP: Ed. “O Mensageiro de Santo Antônio”, 2004, p. 289-290. 48. Dante Alighieri coloca, lado a lado, no Paraíso da Divina Comédia, Joaquim de Fiore e São Boaventura. 49. FASSINI, Dorvalino F. (org.). Fontes Franciscanas. p. 439-440. 168 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... selo” (Cf. Ap 6,12; 7,2). Boaventura faz uma síntese entre a hermenêutica de Agostinho e a de Joaquim de Fiore, nas suas conferências parisienses a respeito dos seis dias da criação (Collationes in Hexaemeron). Uma teoria dos tempos ou eras do mundo e da Igreja aparece sobretudo nas Conferências XV e XVI. O tempo da Igreja também segue seis idades. A sexta idade é a época do anjo que abre o sexto selo. Este mesmo anjo que ele identificara, na Legenda Maior, com Francisco de Assis. Uma outra interpretação da história peculiar do espírito franciscano aparece no opúsculo intitulado Sacrum Commercium Sancti Francisci cum Domina Paupertate (Sagrado Comércio de São Francisco com a Senhora Pobreza). Ali, a Pobreza se mostra como uma revelação que o homem perdera no paraíso, e que ele esquecera ao longo de toda a história do Antigo Testamento. Tal revelação só se mostrou novamente em Cristo Jesus. Os Apóstolos e os Mártires ainda conservaram viva a memória desta revelação. Mas, depois de algum tempo, fez-se uma paz, uma paz que era mais grave do que a guerra. Trata-se daquela paz em que os cristãos mesmos esquecem-se da Pobreza. Francisco aparece, então, na história, como aquele que re-desperta os cristãos para a singularidade deste mistério, que se mostra cheio de ternura na Encarnação e na Cruz de Jesus Cristo. Pedro de João Olivi, por sua vez, na esteira da hermenêutica de Joaquim de Fiori, da tradição agostiniano-boaventuriana, e da espiritualidade dos frades zelantes das primeiras gerações franciscanas, comenta o Apocalipse de modo a interpretar os sinais dos tempos em que ele vivia. Assim, no seu Comentário ao Apocalipse, o Anjo do sexto selo é, também para ele, como era para Boaventura, Francisco de Assis: Vi depois um outro anjo...: Este anjo é Francisco, renovador e máximo seguidor (depois de Cristo e sua Mãe) da vida e da regra evangélica que no sexto e no sétimo estado deve ser propagada e engrandecida. Que subia do oriente: isto é, daquela vida que Cristo Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 169 MARCOS AURÉLIO FERNANDES nos trouxe, ele, sol do mundo, no seu nascimento, isto é, no seu primeiro advento... Sobe do oriente, isto é, ao início do dia solar da sexta e da sétima abertura e do terceiro estado geral do mundo... Ouvi de um homem espiritual, fidedigno, muito próximo a frei Leão, confessor e companheiro do bem-aventurado Francisco, algo de consoante a esta escritura que, no entanto, não afirmo, nem sei, nem creio que deva ser afirmado; a saber, que ele, seja através de palavras de frei Leão, seja através de uma revelação que lhe foi feita, tinha sabido que Francisco, naquela pressão da tentação babilônica, na qual o seu estado e a sua Regra, como Cristo, serão crucificados, ressuscitará glorioso, de tal modo que, como na vida e nos estigmas da cruz ele foi singularmente assemelhado a Cristo, assim o seja também na ressurreição... E tinha o selo do Deus vivo: seja nos estigmas impressos a ele por Cristo, seja em toda a vida interior e exterior, no estado da profissão, na concórdia do tempo e do ofício singularmente assemelhado a Cristo...50 Francisco é o mensageiro de Cristo, que foi assinalado pelas marcas da Cruz, trazendo no seu corpo o selo do Deus vivo. Ele é alter Christus, isto é, discípulo que, no seguimento e na imitação de Cristo, assemelhou-se ao máximo ao Mestre Crucificado. Sua semelhança também aparece no fato de ter tido doze seguidores ao princípio. Ao analisar o número dos eleitos, que foram assinalados entre as tribos de Israel (cento e quarenta e quatro mil), Olivi segue comentando: Assim, o número é indicado com um número que deriva da multiplicação de doze mil por doze. Primeiro: para sugerir que a eleição daqueles que devem ser assinalados é proporcionada aos doze apóstolos e às suas igrejas, aos doze patriarcas e às suas tribos. Segundo Joaquim, como a Sinagoga foi propagada pelos doze patriarcas e a Igreja dos gentios pelos doze apóstolos, assim a Igreja final dos remanescentes judeus e pagãos deve ser propagada por doze homens evangélicos. Também Francisco teve doze filhos e companheiros, com os quais e nos quais fundou e iniciou a ordem evangélica. Assim também São Bento, ao início, instituiu doze abades dos doze mosteiros da sua ordem. Segundo: como os doze 50. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 123s. 170 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... pais daqueles que foram assinalados são como os doze ramos do único tronco de Cristo, assim, proporcionalmente, cada um destes doze ramos tem doze raminhos, que deles partem; isso significa que, como o número dos pais é de maneira côngrua proporcional ao seu tronco, assim também o número dos assinalados é proporcional a cada um destes. Terceiro: para indicar a redondeza da perfeição apostólica presente no colégio dos assinalados. A dúzia, de fato, é o número apostólico e, segundo a aritmética, é número redondo... A multiplicação da dúzia por uma dúzia indica a redondeza mais copiosa e a quadratura mais sólida. Ademais, o número que deriva tem em si a perfeição do quaternário e do milenário. No quaternário está indicada a perfeita quadratura das virtudes cardeais na unidade da fé... No milenário está indicada a singular conjunção e a final consumação dos três preditos. O milenário é, de fato, para nós, o extremo limite numérico para além do qual não contamos nada se não com uma sua repetição51 . Também ao comentar o capítulo X do Apocalipse, Pedro de João Olivi identifica no anjo que tem na mão um pequeno livro aberto a Francisco de Assis: Alguns dizem que este anjo deve ser Cristo, porque só a ele compete abrir o livro... Não negamos que seja ele o principal revelador do livro, em particular enquanto é Deus e ilumina interiormente as mentes; mas, todavia, dispôs sob si alguns espíritos e homens angélicos, para iluminar, como seus ministros, os seres inferiores; por isso, os sete homens que soam a trombeta devem ser interpretados como os homens angélicos e os doutores e também como os espíritos angélicos que os regem, ainda que seja Cristo principalmente quem ensina com o som da sua trombeta; do mesmo modo devemos entender a propósito do anjo com a face solar... É preciso saber que o nosso santíssimo pai Francisco é, depois de Cristo e sob Cristo, o primeiro, principal fundador, iniciador, modelo exemplar do sexto estado e da sua regra evangélica; assim, justamente ele, depois de Cristo, é designado por primeiro com este anjo... O seu rosto era como o sol porque na singular contemplação de Cristo 51. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 117s. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 171 MARCOS AURÉLIO FERNANDES e da sua vida evangélica não foi como a lua que desfalece, ou como uma pequena estrela ou como a luz noturna, mas como o sol, inflamado, iluminado pela luz do dia, e, portanto, iluminante e inflamante... Teve nas mãos, isto é, em plena obra, possesso, poder, o livro do Evangelho de Cristo aberto, como mostra a regra que observou e escreveu e o estado evangélico que instituiu...52 Olivi interpretou a Regra da Ordem dos Frades Menores à luz da hermenêutica escatológica possibilitada por Agostinho e Boaventura, por um lado, e por Joaquim de Fiore, por outro. Assim, no seu Comentário à Regra, ele escreve: Os doze capítulos (da Regra) estão de acordo também com as seis idades deste mundo e aos seis tempos da Igreja. Como no primeiro tempo a luz evangélica começou a ser difundida para sê-lo, depois, até o fim, assim também no primeiro capítulo da Regra. Como no segundo tempo os mártires rejeitam a vida da carne pela vida eterna, assim, no segundo capítulo a vida secular é rejeitada por aquela regular. Como no terceiro tempo, sob Constantino, floresceu o culto eclesiástico, assim também no terceiro capítulo. Como no quarto tempo os anacoretas abandonam todos, assim no quarto capítulo é totalmente abandonado o dinheiro, maldito pelo apóstolo Pedro por causa de Simão Mago. Como no quinto tempo surgem monges dedicados ao trabalho manual, assim no quinto capítulo. No sexto tempo com Francisco entra a mendicância de Cristo53 . O livro da Regra franciscana assim, nos seis primeiros capítulos recapitula e resume em si mesmo toda a história da Igreja. A vida evangélica, descoberta por Francisco, subsume todos os aspectos principais das eras da história da Igreja e acrescenta algo de novo: a mendicância. Nos seis capítulos restantes, Olivi vê as disposições a respeito do governo da Igreja: Nos últimos seis capítulos podes observar misticamente o governo da Igreja de Deus. Como no início a Igreja foi purificada dos seus 52. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 135s. 53. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 86. 172 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 HERMENÊUTICA CRISTÃ DA TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE... pecados pela paixão de Cristo e pela sua sacramental aplicação a nós, acrescentada, porém, a satisfação penitencial dos mártires até o tempo do papa Silvestre; e desde então na Igreja de Cristo foram celebrados solenemente concílios gerais e depois provinciais, com progressivo esclarecimento do sumo primado do pontífice romano e da sua sé apostólica; e depois começou a brilhar sempre mais a casta clausura dos enclausurados; e, por fim, à plena abertura do sexto selo, esperamos a conversão das nações infiéis e também dos judeus, com o repetir-se de solenes martírios; e então as doze tribos de Israel serão assinaladas com o tau do anjo do sexto selo e uma turba inumerável de nações será conduzida junto ao trono do Cordeiro, que é, pois, a sua eclesiástica e apostólica sé: assim, ordenadamente, se sucederão os últimos capítulos da Regra, como podes facilmente entender54 . Pedro de João Olivi, no entanto, no seu Comentário ao Apocalipse, prevê tribulações e aflições para aqueles que seguem a regra evangélica de Francisco: ... É preciso saber que no momento da solene contestação e condenação da vida evangélica e da Regra, que será feita no tempo do Anticristo místico e será mais amplamente consumada no tempo do Anticristo próprio, descerão espiritualmente Cristo, o seu servo Francisco, o angélico grupo dos seus discípulos, contra todos os erros e as malícias do mundo, contra todo o exército dos demônios e dos homens malvados, constante, forte, impávido como o leão, seja para atacar seja para defender-se...55 Acontecerá, então, o tempo da inteligência plena das Escrituras: Ele será envolvido como por uma nuvem pela ciência das Escrituras... Ele terá a inteligência do livro das Escrituras não só para si, mas também com o pleno poder de transmiti-la aos outros e de ensiná-la. De fato, nos primeiros cinco estados da Igreja não foi concedido aos santos, por mais iluminados que fossem, de abrir aqueles segredos deste livro que só no sexto e no sétimo estado hão de ser revelados mais abertamente, como nem mesmo nas 54. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 87. 55. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 137. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 173 MARCOS AURÉLIO FERNANDES cinco primeiras idades do Antigo Testamento foi concedido aos profetas de abrir claramente os segredos de Cristo e do Novo Testamento revelados e por revelar na sexta idade do mundo56 . Assim, as idades do mundo se tornam idades da revelação do mistério de Cristo e dos segredos do Reino de Deus. O franciscanismo dos séculos XIII e XIV leu o evento Francisco aos olhos desta perspectiva escatológica-apocalíptica. Nesta leitura e hermenêutica da história, Olivi e os espirituais (Ubertino de Casale, Ângelo Clareno) sonharam com a renovação da Igreja e com a evangelização de todo o mundo, com o reino do Espírito e a era da paz, com o retorno ao Evangelho eterno, com a vitória sobre as tribulações e as aflições da história, mais precisamente, da história eclesiástica e da Ordem franciscana, e, enfim, com o triunfo sobre o Anticristo. Eles desejaram “ter o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar” e, assim, na paciência e na perseverança, ganhar as suas vidas para o reino eterno de Deus. 56. OLIVI, Pietro di Giovanni. Scritti Scelti. Roma: Città Nuova, 1989, p. 137s. 174 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 137-174, jul./dez. 2007 COMENTÁRIOS 175 176 ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO Fr. Hermógenes Harada ([email protected]) A seguir, tentemos tecer algumas considerações acerca do livre arbítrio. Para isso usemos os textos de João Pedro Olivi, acima traduzidos. Os textos de Olivi só servem como pretexto, para amontoar arrazoados fantasiosos que no fundo têm uma pequena expectativa, de algum modo, por mais provisória e imperfeita que a tentativa seja, de “cercar” a questão da compreensão medieval da liberdade. O termo acerca de do título, diz junto de, na proximidade, na cercania de. Quem quer se aproximar assim, acerca de, não está dentro, nem por dentro, nem vem a partir de dentro, mas está ou vem de fora. De fora, se trazem muitas coisas que se não afinam com a coisa ela mesma acerca da qual a gente gostaria de se aproximar. O livre arbítrio, aqui no texto de Olivi, é tratado teologicamente. Tem, portanto, como o tom fundamental, a Fé cristã. No “positivismo” da facticidade, cujo vigor é o sopro vital da Fé, aproximar-se já pode ser uma abordagem errônea e errante. Talvez na coisa da Fé, ou se está dentro, de uma vez, de todo, para sempre, ou toda e qualquer aproximação, sempre guarda a distância fatal que nenhuma aproximação assíntota infinitesimal consegue percorrer. Aqui o termo infinitesimal camufla um abismo. O que significa então a tentativa e tentação de aproximação de um texto que nasceu e cresceu e se consumou da e na Fé e que usualmente recebe a etiqueta de cristão, dentro e a partir de arrazoados, aqui pretensamente provenientes da Filosofia? Talvez o único sentido que os seguintes arrazoados filosóficos podem ter é o de os arrazoados Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 177 FR. HERMÓGENES HARADA se espatifarem de encontro ao paredão irredutível da coisa ela mesma da Fé, e se esvairem na possível impossibilidade de um não saber, cujo conteúdo, se é que há ali um conteúdo, é apenas carência necessitada, quem sabe, de outro hálito. Consideração I Em resumo simplificado, o que diz Olivi no seu texto mencionado seria mais ou menos o seguinte: O livre arbítrio pertence à parte superior da nossa alma, e é do homem hábito essencial. Como hábito essencial não é acidental e por isso não é separável da alma; alma e o livre arbítrio não são duas coisas, mas é um ente só, é co-participação, copertença essencial, e como tal domina como faculdade livre sobre toda a alma. Assim, o livre arbítrio, dito numa “palavra” é vontade racional. Enquanto racional implica substancialmente inteligência, memória e vontade: é a liberdade do ânimo racional, a plena soltura do animal racional. Para nós, hodiernos, essa explicação de Olivi está enquadrada numa cerca fixada mais ou menos na seguinte padronização: O homem é um dos entes criados por um ente supremo, chamado Deus, o Criador; o homem é um ente criado, todo típico entre outros entes criados, de diferentes tipos. O ente homem se caracteriza, na sua tipicidade, como animal racional. Além do homem, há o animal (o bruto) que se caracteriza como ente, cuja entidade é do tipo vivente sensível. Outro tipo de criatura é o vegetal, cuja entidade é do tipo substância viva. E por fim, no degrau o mais baixo dessa escala descendente da entidade do ente temos a coisa física, o corpo, cuja entidade é matéria. Na escala ascendente, se admitirmos “acima” do homem entes criados, cuja entidade é do tipo invisível, digamos, espiritual, temos os espíritos ou anjos e o próprio Criador, Deus, o Espírito por excelência, o mais perfeito de todos os entes, o Ente Supremo. 178 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO Temos assim a tabela dos entes na classificação: corpo material; vegetal; animal; homem; anjo ou espírito; Deus. O homem é um dos entes criados, todo típico entre todos os outros entes criados, de diferentes tipos. Por quê? Porque na acima mencionada tabela de escalação dos entes, ele está no meio, participando, para cima da entidade dos entes invisíveis espirituais (anjos, Deus) e para baixo dos entes visíveis materiais (animal, vegetal, corpo-material). Assim, na sua parte superior a entidade do homem é espírito; na sua parte inferior a entidade do homem é matéria. O homem na sua entidade é um ente que participa do espírito e do corpo, é “com-posto” de corpo e alma e espírito. Ou, dito de outro modo, o homem, i.é, a alma na sua parte superior é espírito, na sua parte inferior é corpo, mas é unidade acorde. Diante desse esquema, ficamos hodiernos des-confiados. Que haja homem, animal, vegetal, corpo-físico-material pode ser admitido. Mas donde vêm os dados Criador, criação, criaturas, anjos, espíritos, Ente Supremo, Deus? E a “com-posição” do homem corpo-alma-espírito? Todos esses dados não empíricos, não visíveis, meta-físicos, são realmente dados, ocorrências? Ou não se trata aqui de uma crença, de conjunto de “dados” subjetivos da mundividência cristã, e quiçá, medieval? E de imediato, como que em funcionando, nos “conscientizamos” que ao lermos os textos medievais, identificandoos como produtos de uma crença ou mundividência do passado, operamos, na hodierna pré-compreensão da compreensão do que seja ser e compreender dentro do esquema da Teoria do Conhecimento. Teoria do conhecimento pode ser entendida como matéria disciplinar do ensino escolar da Filosofia. Como tal é uma matéria ordenada didaticamente ao lado de outras matérias como ontologia, metafísica I, Metafísica II, História da Filosofia etc. Mas pode também ser compreendida como “metafísica geral”, ou melhor, “ontologia” Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 179 FR. HERMÓGENES HARADA da “metafísica moderna da subjetividade. Aqui o homem se nomeia Sujeito contraposto ao mundo, que então se chama Objeto. Mas o decisivo na compreensão da Teoria do Conhecimento como “ontologia da metafísica moderna da subjetividade” é não confundir o termo sujeito com substância homem e o termo objeto com substância coisa, mantendo na compreensão do que seja a subjetividade (sujeito, objeto) um resto da “substancialidade-coisa”. E isso, na acepção do termo substância próprio da ontologia medieval já num nível de compreensão bastante defasada e decadente, que não faz jus à limpidez e ao rigor da especulação medieval p. ex. dos textos teológicos e místicos dos medievais. Se, porém, limparmos da compreensão do Sujeito, Objeto, Subjetividade e Objetividade o resquício dessa pré-compreensão coisal da ontologia da substância, nos livramos da perspectiva ôntico-empírica na impostação da questão e percebemos que aqui, nos termos Sujeito, subjetivo, Objeto, objetivo, não se trata de termos ônticos ou empíricos, mas sim de termos ontológicos, ou melhor, transcendentais. Não se trata do problema do realismo e/ou idealismo, mas sim da ontologia da subjetividade ou da objetividade e se refere não aos entes intra-mundanos do tipo substância-coisa homem nem aos entes intramundanos do tipo substância-coisa, sem o característico da “humanidade” (vivente sensível, corpo vivente, corpo físico-material), mas à colocação do novo “fundamento” da totalidade do ente no seu todo, atingindo o que a antiga metafísica denominou de regiões tripartidas do ente, Deus, Homem e Universo, e o sentido universal do ser que está na raiz de todas essas regiões. Se assim nos “postamos” na situação própria da mudança epocal do lugar ontológico da impostação da questão, possamos talvez desconfiar que a nossa colocação moderna nos faz ver a possibilidade de considerar a assim chamada “ontologia” da substância (a metafísica medieval) como uma das modalidades concretas de impostação transcendental, i.é, “entendendo” todos os entes na sua totalidade, no ponto de enraizamento e de salto do sentido da entidade de seus entes. 180 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO Consideração II Examinemos na perspectiva transcendental como que destacando alguns pontos das afirmações e dos argumentos de Olivi acerca do livre arbítrio. 1. O livre arbítrio se chama faculdade livre e também hábito essencial. É também chamado de potência e também de ato. Todos esses termos, faculdade, hábito, potência, ato devem ser entendidos essencialmente, i.é, como ser do homem, como sua natureza, i.é, como seu estado nascivo, como caracterizando o próprio do homem. Dito com outras palavras, aqui devemos nos livrar da representação do homem como se ele fosse um algo, uma coisa em si, como este ou aquele “sujeito” “individual” que tem um algo chamado faculdade, hábito, potência ou ato. É, pois, necessário suspender o efeito objetivante da “substancialização” do ser do homem como coisa, como algo, e o deixar ser na sua dinâmica. Por isso faculdade não é aqui uma propriedade, uma qualidade, um acessório do homem, mas essência. O hábito1 nesse sentido essencial não é uma qualidade adquirida ou inata acrescentada ao homem, mas sim o próprio homem. Próprio, entendido não como “substância-coisa”, mas como a dinâmica do ser, como presença, vigência, como potência, ato, como a força, o poder do perfazer-se de si mesmo em sendo e se firmando em si. Essa dinâmica é o sentido mais próprio do termo substância que não conota primeiramente um algo, um quê fixo em si, uma coisa, mas antes o movimento e a dinâmica bem assentada a partir de si e em si, como uma vigência, vigor pleno da estância de si. 1. Por isso, para indicar essa compreensão des-substancializada dos termos como hábito, faculdade, potência, ato, poder-se-ia traduzir hábito (habere) como atinência (de tenere). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 181 FR. HERMÓGENES HARADA 2. O livre arbítrio, no que toca ao que diz respeito a ele ser faculdade livre e ter domínio sobre toda a alma, é essencialmente vontade racional. Encurtando essa “definição” podemos definir a essência do homem como animal2 racional. Em si aqui não significa insistência na estática e fixação no algo-quê, mas sim a densidade da plenitude da dinâmica, da potência da auto-identidade (a se). Livre significa que ela é movida a partir de e por si,3 e somente ela não pode ser compelida, e somente ela tem domínio sobre outras forças, e daí quando quero entendo, quando quero, ando, embora não tão perfeitamente como o seria no estado da inocência; e somente na vontade racional há o poder para os opostos seguindo a si, a saber, para o não querer e para o querer no e para o mesmo instante; nas outras potencias, porém, a não ser somente através dela, i.é, as outras potencias podem ser movidas para os opostos somente por ela. Mas como se atem, como se tem a vontade a si mesma em referência ao racional, à razão? 3. Diz Olivi: Mas, a ordem natural da vontade para com o intelecto é assim que pressupõe sempre em todo o seu ato o ato do intelecto, e isso de tal modo que ela não pode querer a não ser o conhecido; por isso, o livre arbítrio, em sendo ele essencialmente vontade, inclui nas suas operações a ordenação para o intelecto, para o intelecto enquanto torna o ente presente, mas também de quando em vez até mesmo enquanto confere e discerne e julga, cujos 2. Animal aqui não significa bruto, bicho, o vivente sensível, mas ânimo, vigência de ser, coragem de ser ou melhor vontade, “ganas” de ser. 3. Poder-se-ia talvez recordar que os medievais caracterizavam o modo de ser de Deus como ens a se. E o modo de ser das criaturas como ens ab alio. Aqui na vontade racional surge um modo de ser (movido a partir de si e por si), designado de liberdade do livre arbítrio que é “a imagem e semelhança de Deus” (Nenhuma criatura pode fazê-la declinar. Nem Deus a pode coagir enquanto ela permanece vontade. Disso tudo se torna manifesto que ela transcende todo o criado.) 182 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO atos, também os particulares, a vontade domina, já que esses atos são feitos livremente e porque depois da coleta e do juízo, a liberdade de consentir ou não consentir permanece na vontade. E assim, a liberdade do arbítrio é, quanto à sua raiz e consistência, de todo, a própria vontade. A sua operação atual, porém, como foi dito, tem ordenação para o intelecto e de quando em vez o inclui a modo concomitante e isto enquanto o ato é livre com deliberação, animadversão e juízo da razão. a) Razão aqui pouco tem a ver com razão do racionalismo, nada a ver com razão na acepção padronizada usual das assim chamadas três faculdades da alma: vontade, razão e sentimento. Mas tem muito a ver com a definição grega do homem como tò zwon lógon échon: o vivente, ou melhor, o ânimo atinente ao logos. Na concepção medieval da essência do homem como animal rationale, temos os termos ratio, intellectus, spiritus, mens.4 Esses termos indicam o mesmo em diferentes nuances, indicam a intensidade de ser. Como no caso dos termos acima mencionados faculdade, hábito, potência, ato dizem a essência, o ser do homem, o seu estado nascivo essencial. O homem no seu ser é razão, intelecto, espírito, mente. Não é que o homem tem razão, intelecto, espírito, mente. Ele é razão, intelecto, espírito, mente. A densidade de ser que constitui o homem, o nível em que o ente-homem está na escalação da densidade de ser se chama razão, intelecto, espírito, mente que dizem o mesmo em diferentes nuances. Assim, como já foi dito, razão, racional, intelecto, intelectual, mente, mental indicam grau de intensidade e excelência do ser enquanto homem, enquanto o homem, imagem e semelhança de Deus, 4. Cf. Mestre ECKHART, Sermões alemães. vol. I, 2006, Glossário 11, 12, pp. 339-343. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 183 FR. HERMÓGENES HARADA participa da sua “aseidade”, participação essa que aparece na vontade livre, no livre arbítrio, vontade essa, racional. b) Mas por que então Olivi diz: a ordem natural da vontade para com o intelecto é assim que pressupõe sempre em todo o seu ato o ato do intelecto, e isso de tal modo que ela não pode querer a não ser o conhecido? Não há aqui uma diferença? Sim uma dependência da vontade do intelecto? Usualmente distinguimos no homem corpo, alma e espírito. No corpo distinguimos a parte físico-material e parte anímico-sensitiva. Muitos chamam essa parte anímico-sensitiva, de alma. No espírito distinguimos intelecto, vontade e memória (ou em modo variante intelecto, vontade e sentimento etc.). Distinguimos diversos modos de distinguir: real (res), formal (forma) e mental (mens = ens rationis). Distinção real é entre coisa e coisa. Formal é entre forma e forma (entre conceito e conceito, imagem e imagem, entre idéia e idéia, representação e representação, sempre de alguma forma com fundamento na coisa). E mental é puramente distinção fabricada pela mente, sem fundamento na coisa. Em vez de falar da composição do homem em corpo, alma e espírito, Olivi fala da parte superior da nossa alma, constituída de inteligência, memória e vontade. É a parte que no nosso dizer usual denominamos espírito. A outra parte é a parte inferior da nossa alma e se refere ao que no nosso dizer usual denominamos de corpo (parte físico-material e anímico-sensitiva). Olivi não fala propriamente de composição de três coisas, nem de encaixe de uma coisa dentro da outra, mas do todo ou da totalidade com suas partes. E em vez de todo ou de totalidade diz alma. Assim a totalidade homem é denominada aqui de alma (anima e animus), cujo modo de ser é vitalidade cordial, o ânimo. Em vez de parte superior e parte inferior diz também razão superior e razão inferior. E diz então: Devese dizer que a razão inferior e a razão superior não se distinguem realmente e formalmente, já que num homem não há senão uma razão. São 184 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO apenas diversas atinências5 ou ofícios6 da mesma razão. A nossa mente, pois, se chama razão superior, na medida em que, se volta às coisas eternas e superiores, chama-se, porém, inferior enquanto se volta às coisas inferiores e temporais. Ou por termo razão superior se designa a parte suprema de toda a nossa mente que possui o domínio pleno e perfeito sobre outras forças; por termo razão inferior se designa o ínfimo da razão, pelo qual olho de vez em quando sem pleno consenso as coisas inferiores e o que é tocado a partir da sensualidade imediata. Aqui, entre as partes ou razões superior e inferior da alma (leia-se: do todo do ser próprio do homem), não há distinção nem real, nem formal. Não se trata, pois, de composição de coisa e coisa, nem de referência de conceito e conceito, de imagem e imagem, de representação e representação, mas sim de que distinção? Mental? De ens rationis (do ente da razão), distinção subjetiva sem nenhum apoio e fundamento na realidade objetiva? Aqui, de imediato, percebemos que nos desviamos do “assunto”, escorregamos para dentro da pressuposição do que seja real, formal e mental de um sistema de explicação que não é afim à maneira de ver e ser do pensamento medieval. Pois a afirmação de Olivi que aqui não há nem distinção real nem formal nos leva, não ao vazio de não diferenciação, de puro achatamento abstrato-lógico mas pelo contrário justamente à estruturação de uma precisa e rica diferenciação numa bem ordenada paisagem de uma totalidade sui generis. Nessa paisagem, em diferentes estruturações sempre de novo e sempre de modo novo se dá a percussão e repercussão do mesmo a modo de uma toada syn-fônica solta, livre e gratuita. c) Como é, pois, a dinâmica dessa estruturação? A percussão do toque principal é a liberdade da vontade. Aqui reina o apriori da absoluta 5. Habitudines. Cf. Nota 3. 6. Officium, officina, opifex se referem ao opus facere, a saber, um modo de trabalhar todo próprio que é fazer uma obra. É o modo de ser da existência artesanal e artífice. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 185 FR. HERMÓGENES HARADA soltura da gratuidade, da liberdade, de tal modo que tudo aqui é a partir de si, por e para si: participação na jovialidade e cordialidade da aseidade de Deus (somente ela é movida a partir de e por si, e somente ela não pode ser compelida, e somente ela tem domínio sobre outras forças). Esse “ser movida a partir de e por si” da vontade não necessita de nada a não ser de si mesmo, não necessita de nenhuma outra causa fora de si, não é outra coisa do que fonte, princípio de si. Assim, a vontade é simultaneamente toda ela absoluta ação e absoluta recepção da doação de si. Nessa liberdade de doação ela segue continuamente, sempre de novo a si mesma. Mas então o que significa essa ordenação da vontade ao intelecto enquanto este torna o ente presente, enquanto lhe apresenta o objeto, pois segundo Olivi a vontade não pode querer a não ser o conhecido? Significa a recepção da vontade da sua própria ação doadora, o concomitante se acolher na ab-soluta ação de se dar; significa a realização da possibilidade de ser, cada vez nova e de novo como grata, i. é, gratuita e humilde acolhida de si. O que se denomina intelecto não é outra coisa do que o momento acolhedor da liberdade da vontade da doação livre de si: é o ente, o em sendo da possibilidade de ser que denominamos de bem. Nesse sentido a vontade não pode querer a não ser co-nascendo a si, conhecendo a si, se co-nascendo. O ser do homem segundo o pensamento medieval é essa recepção ab-soluta da gratuidade, i.é, da liberdade da vontade que é designada pelos termos ratio, intellectus, spiritus e mens, no alemão se diz Vernunft (de vernhemen), portanto o concomitante da vontade, a vontade racional. Esse momento receptivo, o intelecto enquanto apresenta o ente, é o que os medievais denominavam de simples apreensão. E é na simples apreensão que se recebe a espécie. Espécie se “compõe” de gênero e diferença específica e determina a definição de um ente. O que é definido pela definição de um ente se chama essência.7 Aqui gênero (genus) se 7 Aqui espécie e gênero não se referem à classificação dos entes usual nas ciências e no nosso saber cotidiano, mas ao que constitui a estruturação essencial do ente, explicitada no que denominamos de árvore porfiriana. 186 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 ACERCA DO LIVRE ARBÍTRIO refere à geração, ao nascimento, ao gênesis; espécie (species), à beleza, ao encanto do brilho do rosto, ao esplendor. Gênero é a luz como gênesis, como o primeiro ato, espécie é iluminação como esplendor, como segundo ato8 . O racional da vontade racional, i.é, o ânimo próprio do ser do homem dito em suas variações do mesmo com os termos razão, intelecto, espírito e mente, é a aberta, a clareira de acolhida. É a recepção grata precisa e fiel do encanto, da beleza da face que se desvela como ente na doação de si a partir e no médium do abismo insondável e abissal da possibilidade de ser, como a gênese da luz que ilumina. Assim o que é na sua essência intelecto (Vernunft), a saber, homem e anjos, é pura recepção da espécie. Mas assim como iluminação é concomitante à luz, o intelecto é concomitante à vontade na dinâmica da vontade racional. De tudo isso que até agora dissemos, podemos talvez concluir que o próprio do intelecto é recepção (vernehmen, Vernunft), ou melhor, o intelecto como o ser do homem, como sua essência age como recepção, que talvez possa ser circunscrita como: deixar ser o ser do ente, o ser no ente e o ente no ser. Assim o próprio do intelecto (razão, intelecto, espírito, mente), a simples apreensão, o “perceber ou intuir simples e imediato” não é outra coisa do que deixar ser o ser do ente, o ser no ente e o ente no ser. Como tal o intelecto é afim ao mesmo modo de ser da vontade, e por isso é vontade racional. 8. Quanto ao segundo item <a saber, a eficácia da quiddidade> o que ela pode, sabendo-se que toda forma é ato puro e primeiro, que é faculdade para agir, como p. ex., dizemos que a luz é o primeiro ato, a iluminação, segundo? Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 177-187, jul./dez. 2007 187 188 FAZER A VONTADE DE DEUS E O BEATO FREI EGÍDIO DE ASSIS Fr. Hermógenes Harada ([email protected]) Frei Egídio de Assis é um irmão menor muito agraciado. Por isso tudo que ele é, faz e diz é engraçado. A sua graça está no tom em que faz soar o real do que seja espiritual numa toada toda própria a recordar o cheiro e o sabor da terra dos homens. E tem gente dizendo que o realismo aristotélico na Filosofia é engraçado como a graça dos Ditos de frei Egídio1 ...Especulemos à mão de alguns ditos de Frei Egídio como soa engraçado o slogan do cristianismo que atormenta a muitos fieis, seguidores de Cristo, a saber, os cristãos: Fazer em tudo a vontade de Deus. Fazer: Uma vez, numa praça de Perúgia, ensinou um pregador a dizer: “Blá, blá, blá, muito falo, pouco faço!”(...) 1.Dicta beati Aegidii Assisiensis, sec. Códices mss. emendata et denuo edita a PP. Collegii S. Bonaventrurae, editio secunda, Ad Claras Aquas, Quaracchi-Firenze, ex typographia Collegii S.Bonaventurae, 1939. Os pensamentos de frei Egídio de Assis foram nos transmitidos através de anotações dos seus discípulos sob o título Os Ditos do Beato Egídio de Assis. Os ditos utilizados nesse “comentário” foram tirados da edição latina de Quaracchi-Firenze e traduzidos de modo literariamente pouco “adequado”, apenas para o nosso uso. Os Ditos em tradução portuguesa melhor se encontram em: São Francisco de Assis, Escritos e bioografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testamentos do primeiro século franciscano. nona edição, Petrópolis: Editora Vozes e FFB, 2000; em: Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Editora Vozes e FFB, 2004; e em: Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007 189 FR. HERMÓGENES HARADA Egídio, ao ouvir de um patrão, dono de uma vinha, junto da qual morava, o grito contra os operários da vinha: “Façam <o trabalho>!” saiu clamando da cela no fervor do espírito:”Irmãos, ouçam a palavra, a palavra que deve ser: façam, façam, não falem!” 2 Fazer aqui significa operar, i.é, fazer obra. O fruto do trabalho desse modo típico de fazer é obra (opus, -eris); quem assim trabalha é operário (opifex, -icis); o lugar e o modo de assim trabalhar se chamam oficina (officina, -ae); e o encargo, o dever: ofício (officium, -i). O horizonte, a partir e dentro do qual se zela (studere, studium) o fazer, o trabalho, os afazeres, as preocupações, as responsabilidades, êxito e fracasso, alegria e dor, realizações e frustrações, em suma o empenho e desempenho da vida, devotada à perfazer-se no sentido do ser no seguimento de Cristo em suas inúmeras manifestações é o modo de ser do fazer e se perfazer da existência caracterizada como a existência artesanal. A existência artesanal do homem medieval estava por sua vez inserida no ser e modo de ser do Ente Supremo por excelência, a cujo oficio se nomeava com o termo Criador, a cuja ação com o termo criar do nada, e cuja obra com o termo Criação. A essência desse Ente Supremo por excelência que era tout court a plenitude do ser se chamava Deus, Pai, Criador, Senhor do Céu e Terra. Senhoria desse Senhor (dominus, -i) nada tinha a ver com dominação e domínio do “patrão”, do “caudilho”, 2. Cf. pp. 91-92; podemos cair na tentação de entender nesse Dito o não falar como proibição de falar ou negação do falar. Se assim entendermos o Dito, entendemos o fazer como uma possibilidade de ser ao lado de outra possibilidade de ser chamada falar. O engraçado do Dito é de nos mostrar que o fazer nessa acepção medieval deve ser entendido de modo “transcendental”, de tal modo que atinge tanto o falar como não falar. Tanto o falar como o não falar devem ser feitos. Nesse sentido o emudecer é diferente totalmente do silenciar. Assim, diz frei Egídio: Eu não considero o saber silenciar bem menor virtude do que saber falar bem; e vejo que o homem deveria ter o pescoço da cegonha, para que a palavra atravesse muitos nós, antes de sair da boca (Cf. 59). 190 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007 FAZER A VONTADE DE DEUS... mas tudo a ver com vigência e presença de quem cuida da casa (domus, -us = domicílio, habitação, casa, lar): o ser do pai (e da mãe) de família. Criação, criatura, criar não era produzir, produto de uma causação, mas sim gerar a obra elaborada com ternura e vigor, com cuidado e desvelo de progenitor (a), portanto cria, fruto, filho (a): Criação era, pois, Filiação, ser criatura, ser filho (a). Fazer nesse sentido era participar do modo de ser e trabalhar do Deus, e colaborar na grande obra da Criação (leiase Filiação). Desse horizonte, provinham varias dicas de como se deve fazer o trabalho artesanal da existência cristã, i.é, ser filho (a) de Deus no ser e no agir, em mim e nos outros, ser operário (a) de um novo céu e uma nova terra, a partir de e no médium da vontade de Deus. Embora haja inúmeras dicas de como fazer esse fazer a obra a modo da existência artesanal criativa em quase todos os capítulos dos Ditos de frei Egídio, o capítulo VII, intitulado De santa solicitude e vigilância do coração nos mostra e tematiza em variegadas dicas a estruturação desse modo de ser do fazer, chamado operar. Um dos momentos mais interessantes desse fazer é o fato de esse fazer ser um perfazer a obra, e ao mesmo tempo isso de perfazer a obra equivale a se perfazer de quem faz. Com outras palavras, aqui todo o fazer não se perde e se esvai no objeto ou no objetivo, mas redunda, retorna a quem faz enriquecendo-o, vitalizando-o, realizando-o no seu ser. Esse modo de agir reduplicativo que retorna ao autor, fazendo-o crescer, aumentar-se, se consumar se chama hábito (do verbo habere, ter) que talvez se possa traduzir como atinência. Essa atinência, esse se ter, se perfazer, esse tornar-se responsável, ou melhor, ter que ser, se chamava virtude (virtus de vir, -i = varão, o modo de ser do varonil, da coragem de ser, em se assumir, de se ter). Por isso, Os Ditos é tratado de virtudes. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007 191 FR. HERMÓGENES HARADA Esse modo de ser do ter-que-ser, da responsabilidade de ser aparece no seguinte dito: Se todo o mundo fosse cheio de homens até às nuvens e somente um devesse ser salvo, cada qual, no enquanto, deveria seguir a sua graça, para que possa ser aquele um.3 Esse modo de ser e agir chamado fazer se denominava em grego scholé que foi reproduzido em latim por schola, donde vem a palavra portuguesa escola. Scholé se dizia em latim otium, -i que aqui originariamente não significava o ócio no sentido de dolce far niente mas um modo de trabalho de quem era cidadão livre, não escravo, contrário de negotium, -i, o negócio, o nec– ou non-otium, o não-ócio que era trabalho escravo, mais tarde trabalho assalariado, trabalho não gratuito. Esse modo de ser do trabalho livre, assumido por ele mesmo, sem pagamento, mas cordial e criativamente feito livremente com grande zelo e aplicação é a dinâmica da criatividade do que mais tarde se chamou de profissão livre dos profissionais livres. Com outras palavras fazer no sentido do pensamento de Frei Egídio é ação de um labutar cheio de diligência e solicitude feita, per-feita no inciar, crescer e consumar-se de um perfazer-se do homem na sua obra. Frei Egídio chama tal fazer de bem fazer, de bem gerir. Assim, disse frei Egídio: Não é realizado (beatus)4 o homem, embora tenha vontade boa, se ele não se empenha em segui-la com obras boas (em exercitando-se a modo de obras bem feitas). Pois, Deus dá a sua graça ao homem, para que ele a siga. (...). Uma vez alguém que parecia vagabundo disse a frei Egídio:”Frei Egídio faz me consolação”. Respondeu frei Egídio: “Empenha-te em bem fazer (gerir) e terás a consolação”5 (...) Então disse-lhe um certo frade: “Talvez 3. Cf. p. 117. 4. Beatus, bem-aventurado se traduz como feliz. Trata-se de alguém que se aventurou na vida, atravessou as vicissitudes da viagem, e chegou, mesmo que seja estropiado, à sua meta final, e recebeu o selo de qualidade, foi sancionado (santo) como realizado. 5. Cf. p. 27. 192 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007 FAZER A VONTADE DE DEUS... morramos antes de conhecer o nosso bem e experimentar algum bem”. Respondeu frei Egídio: “Os curtidores de couro conhecem o couro; os sapateiros o calçado; os ferreiros o ferro e é assim com outros artesões; como pode, porém, um homem saber de uma profissão, na qual jamais se empenhou? Crês tu que os grandes senhores dão grandes dons aos homens tolos e insanos? Não dão” 6. Vontade: A essência da vontade no pensamento medieval se chama livre arbítrio ou liberdade da vontade. Vontade se refere ao homem enquanto espírito; é o que se chama parte superior da alma. Essa colocação está expressa na expressão: vontade racional. Alma em latim é anima e está na palavra animal que não significa bicho, bruto irracional, mas ânimo, sopro, i.é, respiração, espírito. Aqui vontade não é uma veleidade, um desejo, um ímpeto irracional, cobiça, “ganas” no sentido de ganância, eflúvio, vivência, explosão de sentimento, nem acribia cega de um intenso “zelo” a modo de fanatismo fundamentalista, não é a violência opaca de uma idéia fixa, a tenacidade voluntarista do “bitolamento”. Pois, vontade é pura liberdade, soltura total do ser livre e clarividente, onde tudo nela é a partir de si, por e para si, plena coincidência de identidade do ser consigo mesma, é a aberta pré-sente. A linguagem medieval designava a liberdade, assim ab-soluta na sua dinâmica, com a expressão a se (a partir de si, por e para si) e a contrapunha às criaturas com a expressão ab alio, que significava do outro, dependente e vindo do outro. Propriamente o a se só se atribuía a Deus, mas a vontade humana enquanto imagem e semelhança do Deus Criador, portanto enquanto livre participava dessa “aseidade”. Por 6. Cf. p. 28. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007 193 FR. HERMÓGENES HARADA isso quando lemos nos Ditos em latim a dica: Non est homo beatus, si bonam habeat voluntatem, nisi bonis operibus studeat eam sequi (Não é realizado (beatus) o homem, embora tenha vontade boa, se ele não se empenha em segui-la com obras boas), se nos descuidamos, entendemos o dito erroneamente, como se ele estivesse dizendo: boa vontade não basta, é necessário ação, a vontade deve seguir a ação ou deve dela seguir uma ação. Frei Egídio, no entanto, não diz que a boa vontade não basta. Pelo contrário, a boa vontade como imagem e semelhança de Deus é tudo, de modo que o homem deve segui-la. Segui-la de que modo? Pelas obras boas, i.é, a modo do bem fazer, no exercício de boas obras. Bom, boa aqui significa perfeito (a), o que se perfez, se consumou e chegou ao ponto de plenitude. Trata-se, pois, de fazer a vontade, fazer da vontade obra perfeita, trabalhar a liberdade do ser, elaborar bem de modo acabado a vontade, a ponto de ela ser do mesmo modo da vontade de Deus. Isto é: em tudo fazer a vontade de Deus. Por conseguinte: fazer a vontade de Deus não quer dizer em primeiro lugar propriamente executar a ordem que expressa a determinação da vontade de Deus. Antes significa: ter ou ser o mesmo modo de ser da liberdade de Deus. E pertence a essa liberdade: compreender, querer e fazer. E esses momentos de uma única realidade da plenitude de ser na sua suprema excelência se chama amar. Por isso em tudo fazer a vontade de Deus não é outra coisa do que exercitar-se intensa, contínua e a cada momento no chamado, no apelo do Deus-humanado, cujo mandato diz: “Amaivos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,15). A boa vontade de fazer a boa vontade A vontade do Filho é per-feita, plena, i.é, boa, se faz, trabalha como o Pai trabalha, continuamente, sem cessar, sem descansar, cordial, livre e sempre de novo no frescor nascivo do início criativo. Para Egídio, esse 194 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007 FAZER A VONTADE DE DEUS... cintilar, esse eclodir da vontade boa é ser-como-Deus. Por isso para ele, tudo está no vigor, na vigência da aseidade de Deus. Para ele os superlativos dos atributos de Deus “meta-físicos” como oni-potência, oni-ciência, oni-presença, imortalidade, eternidade não possuem em absoluto nenhuma conotação do superlativo da excelência de poder e força de um superman, mas são todos eles ternura e vigor da singeleza, da transparência e limpidez, da cordialidade e perfeita alegria de uma “Rosa sem o por quê” (Ângelus Silesius), na ab-soluta solutura, na liberdade finita do simples in-stante do hic et nunc, concreto, cotidiano: a boa-vontade, a vontade boa de um operário, na labuta do fazer sempre de novo a sua vida, livre do espírito de vingança, de ressentimento, proveniente da carência de um infinito ruim. Terminemos essas especulações fantasiosas de um texto medieval da espiritualidade franciscana simplesmente citando mais um Dito engraçado do Beato Egídio de Assis: A gloriosa Virgem Maria, Mãe de Deus, nasceu de pecadores e pecadoras, nem esteve numa ordem religiosa e, no entanto, ela é o que é.7 7. Cf. p. 63. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 189-195, jul./dez. 2007 195 196 TRADUÇÕES 197 198 ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE1 Pedro de João Olivi A – Texto em latim I Quaeritur utrum liberum arbitrium sit uma potentia vel plures, etc. Omissis argumentis etc.....(...) B – Tradução I Coloca-se a pergunta: o livre arbítrio é uma ou muitas potências etc.? (Cód. 637, Fol. 156c-d, Bibl. Univ., Padova)2 Conforme o que dizem os santos, na parte superior da nossa alma não há, a não ser somente, inteligência, memória e vontade. Assim, 1. Os textos aqui apresentados foram tirados da monografia de P. Felicianho Simoncioli, ofm, Il problema della libertà umana in Pietro di Giovanni Olivi e Pietro de Trabibus, Società editrice VITA E PENSIERO, 1956, onde no apêndice traz dois códigos do texto de Olivi: (Cód. 637, fol. 156c-d, Bibl. Univ., Padova) Commentarius Ordinarius in II librum Sententiarum. Distinctio XXIV, articulus II, Quaeritur utrum liberum arbitrium sit uma potentia vel plures; articulus III, quaestio I et II, Utrum ratio inferior et superior sint realiter diversae et idem quaeritur de voluntate naturali et deliberativa; e (Cód. 106, fol. 16r, Bibl. Vat., Fondo Borgh.) Quaestiones in II Sententiarum. Quaeritur utrum potentia voluntatis sit per suam essentiam activa na indigeat habitu aliquo accidentali, quo mediante exceat in actum. 2. Cf. Nota 1. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007 199 PEDRO DE JOÃO OLIVI omitindo argumentos, respondo dizendo ser oportuno que o livre arbítrio, delas seja ou uma, ou duas ou todas elas. O livre arbítrio, pois, não pode ser um hábito3 acidental. Todo o hábito acidental pode ser removido da alma, não, porém, o livre arbítrio segundo a sua essência. Se o for, então o homem enquanto homem não seria livre por sua essência nem racional etc., como é dito mais abaixo. Portanto, deve-se dizer que o livre arbítrio, no que toca ao que diz respeito a ele ser faculdade livre e ter domínio sobre toda a alma, é essencialmente vontade racional. É o que se pode ver: pois, somente ela, a vontade racional é movida a partir de e por si, e somente ela não pode ser compelida, e somente ela tem domínio sobre outras forças, e daí quando quero entendo, quando quero, ando, embora não tão perfeitamente como o seria no estado da inocência; e somente na vontade racional há o poder para os opostos seguindo a si, a saber, para o não querer e para o querer no e para o mesmo instante; nas outras potencias, porém, a não ser somente através dela, i.é, as outras potencias podem ser movidas para os opostos somente por ela. Mas, a ordem natural da vontade para com o intelecto é assim que pressupõe sempre em todo o seu ato o ato do intelecto, e isso de tal modo que ela não pode querer a não ser o conhecido; por isso, o livre arbítrio, em sendo ele essencialmente vontade, inclui nas suas operações a ordenação para o intelecto, para o intelecto enquanto torna o ente presente, mas também de quando em vez até mesmo enquanto confere e discerne e julga, cujos atos, também os particulares, a vontade domina, já que esses atos são feitos livremente e porque depois da coleta e do juízo, a liberdade de consentir ou não consentir permanece na vontade. E assim, a liberdade do arbítrio é, quanto à 3. Habitus se refere ao habere. Talvez pudéssemos traduzi-lo como habilidade, faculdade ou atinência (tenere), entendido não como qualidade ou propriedade do homem, mas sim como dinâmica, essência, vigência. 200 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007 ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE sua raiz e consistência, de todo, a própria vontade. A sua operação atual, porém, como foi dito, tem ordenação para o intelecto e de quando em vez o inclui a modo concomitante e isto enquanto o ato é livre com deliberação, animadversão e juízo da razão. Respondo ao segundo artigo. Omitindo outros argumentos, deve-se dizer que, no ato livre, enquanto é com deliberação e discurso e juízo, estes vêm da parte do intelecto. E por tanto o ato livre exige algo do intelecto. Contudo, porém, a liberdade é essencialmente vontade, e consentir livremente é o seu ato, imediato e total, ao que nada faz o intelecto a não ser por acidente, a saber, apresentar o objeto; e não é necessário que para o ato livre concorra sempre a deliberação e o juízo e o discurso, embora isso ocorra de vez em quando. Poder-se-ia dizer que o ato livre é propriamente aquilo que é somente da vontade; o que, porém, é no intelecto, não. A liberdade da vontade, no entanto, às vezes quer inquirir e deliberar e então faz preceder a investigação do intelecto antes que consinta livremente. II Coloca-se a pergunta: a razão inferior e superior são diversas realmente?E pergunta-se a mesma coisa a respeito da vontade natural e deliberativa. <A primeira pergunta>. Deve-se dizer que a razão inferior e a razão superior não se distinguem realmente e formalmente, já que num homem não há senão uma razão. São apenas diversas atinências4 ou ofícios da mesma razão. A nossa mente, pois, se chama razão superior, na medida em que, se volta às coisas eternas e superiores, chama4. Habitudines. Cf. Nota 3. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007 201 PEDRO DE JOÃO OLIVI se, porém, inferior enquanto se volta às coisas inferiores e temporais. Ou então pelo termo razão superior se designa a parte suprema de toda a nossa mente que possui o domínio pleno e perfeito sobre outras forças; pelo termo razão inferior se designa o ínfimo da razão, pelo qual olho de vez em quando sem pleno consenso as coisas inferiores e o que é tocado a partir da sensualidade imediata. E isso foi tirado de Agostinho XII, De Trinitate5 . A segunda pergunta. A vontade natural e deliberativa, porém, é a mesma simplesmente segundo a essência. Chama-se, ora desta, ora daquela maneira, a respeito de diversos objetos. Diz-se, pois, natural, a respeito de objetos que por si e imediatamente têm referência ao bem e dos quais a bondade se manifesta de per si, ou para os quais, através do contrário, a vontade é conduzida naturalmente, como bem-aventurança ou similares. A deliberativa, porém, diz respeito aos objetos, cuja bondade ou utilidade não se manifesta logo com firmeza, a não ser depois de inquisição e deliberação; e então a vontade é levada assim como quer para dentro dos próprios objetos depois da deliberação. III Coloca-se a pergunta: a potência da vontade é pela sua essência ativa? Ou necessita de algum hábito acidental, mediante o qual parte para o ato? (Cód. 106, fol. 16r, Bibl. Vat., Fondo Borgh.)6 E parece que dele carece necessariamente, pois, o que se atém a muitos a modo indiferenciado, ao se aplicar a um deles, parece precisar neces5. Cf. Cap. 3, . 3 c. 12. nn. 17-18; c; 14, n. 22; c. 15, 25 (PL 42, 999, 1007-1008, 1009-1010, 1012). 6. Cf. Nota 1. 202 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007 ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE sariamente de um algo determinante. Mas a vontade não é diferenciada a querer isso ou aquilo, ou a querer ou a não querer: por conseguinte, ela necessita etc.; e isso parece não ser outra coisa do que a espécie recebida. A maior se torna manifesta em Anselmo, que no livro Da queda <do diabo>7 prova que o anjo não pode por si ter a primeira vontade. – Solucionava-se <o nó da questão>, dizendo-se que a potência da vontade não necessita de outro determinante, porque ela mesma por sua própria força se determina. – E aquela colocação de Anselmo, que Anselmo ele mesmo dela dê conta de si a si mesmo! Ou numa outra colocação: a vontade quer somente se for disposta. Disposição é qualidade. Deve-se dizer que a menor é falsa, pois, aqui a disposição não difere da essência. – Ademais, a vontade quer, em querendo. Logo, através de outro ato ou hábito. Mas não é através de outro ato, pois, se assim o for, vai-se ao infinito. Solução: aqui, portanto, deve-se dizer que o em querendo ao querer não é querer através de outro ato, mas sim ser vontade ela mesma. De outro modo, se daria aqui um processo ao infinito. A vontade nada ama a não ser que lhe preceda complacência habitual. – Solução: se se entende por complacência a complacência habitual, a afirmação é falsa. Se, porém, se entende a complacência atual, a complacência é sempre concomitante ao ato do querer. A afeição da comodidade é a raiz do ato da vontade. O ser afetado é algo acidental. Solução: logo é falsa a afirmação. A vontade poderia querer que todo o objeto fosse p. ex. Deus. – A resposta se manifesta na solução principal. Nas crianças está toda a essência da vontade; portanto, parece que nelas o defeito é apenas pela carência de disposição. Solução: 7. Cf. Cap. 12, n. 67-68 (PL 158, 341-344). Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007 203 PEDRO DE JOÃO OLIVI veja-se o que foi dito acima da disposição. O livro IX da Metafísica8 diz: a potência que se comporta a modo da não diferenciação deve ser necessariamente determinada aos opostos pelo desejo ou pela escolha. – Dissolvia-se o nó da questão, dizendo-se que a vontade aqui é enganada. Dissolvia-se, respondendo que se devem considerar quatro itens para se ter evidência em tal questão, a saber, a quiddidade da vontade, a sua eficácia, o seu modo de agir e no quarto item o que se manifesta como o oposto. Quanto ao primeiro item deve-se saber que a vontade é essencial à criatura racional. O que é manifesto. Pois, de outro modo, o livre arbítrio seria separável da criatura; nem a alma, enquanto ela mesma, não seria criada à imagem de Deus; e o livre arbítrio tem na criatura a primazia. O que é manifesto. Pois, nela ele é a raiz da liberdade e domina e impera sobre outras forças e é a aparição mais excelente do que alguma outra forma criada, porque a outra forma age pela necessidade o seu ato, a vontade, porém, age com autonomia: domina pois o seu ato a modo disjuntivo. Nenhuma criatura pode fazê-la declinar. Nem Deus a pode coagir enquanto ela permanece vontade. Disso tudo se torna manifesto que ela transcende todo o criado. Quanto ao segundo item <a saber, a eficácia da quiddidade> o que ela pode, sabendo-se que toda forma é ato puro e primeiro, que é faculdade para agir, como p. ex., dizemos que a luz é o primeiro ato, a iluminação, segundo? Por isso mesmo pelo que é o ato primeiro, tem de si eficácia para o ato e pode partir para alguma operação sua. Tem também domínio sobre seus atos, o que se evidencia, porque de outro modo não seria livre; a qual liberdade, no entanto, não lhe é dada pela disposição; e isso se manifesta pelo fato de, se assim não 8. Aristóteles, Methaph., lib. VIII (IX), c. 5 (Bekker II, 1047b 35ss.; Didot, II, 567, 17-30). 204 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007 ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE fora, não seria livre, e isso por sua vez se manifesta pelo fato de a disposição só se dispor para um <dos contrários>. Quanto ao terceiro item deve-se dizer: é necessário saber que o modo em que a vontade pode agir é querer livremente, o que não convém a nenhuma outra potência. Aliás, para os atos que simplesmente transcendem a ordem de sua natureza, a vontade necessita de hábito que a eleve, atos esses que são atos da graça e da virtude, porque a ordem da graça transcende a ordem da natureza. Embora, aqui, a vontade necessite também do hábito que a eleve para exercer alguns atos, é ela movida por si, por ela mesma, podendo os efeitos pelo hábito. Quanto aos atos naturais, porém, a vontade é suficientemente potente por si como querer ler, querer andar, passear, amar pessoa ou odiá-la. Se bem que a vontade, porém, possa esses atos, porque, no entanto, está anexa a partes inferiores pelo modo da coligação, entra nela impedimento da parte sensitiva. Mas, que ela seja ativa pela sua essência, é evidente, porque pelo próprio fato de ser forma, é ativa, como também pelo fato de ser matéria, convém à matéria ser passiva. Também se atribuiria a ação mais à disposição do que à vontade. Posto que também a ignição deve-se mais ao fogo do que ao ferro em ignição. Não é menos atual do que a luz. A força de agir livremente não seria essencial ao homem e poderia ser separada do homem. Adão não poderia querer o mal, a não ser que não tivesse antes um mal habitual. Essa afirmação é herética. Note-se que a vontade age, atua só terminativamente o objeto. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007 205 PEDRO DE JOÃO OLIVI Daí, quando se argumenta que a quadrangulação no raio parece ser causada pelo quadrado, deve-se dizer que a quadrangulação é do raio efetivamente e somente é do quadrado terminativamente. – Quando se argumenta que a quantidade difere da luz: a solução: não é verdadeira a afirmação. 206 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 199-206, jul./dez. 2007 O SENHOR DEUS PRODUZIU TODO TIPO DE ÁRVORES DE BELA APARÊNCIA E BOAS PARA SE COMER* Mestre Eckhart Note-se primeiramente... e boas para se comer. Saiba-se porém que a explicação dessa autoridade e da que precede imediatamente a esta é tomada, sem modificações, da primeira edição, No meio do paraíso havia também a árvore da vida e a árvore da ciência do bem e do mal. Note-se que na região racional ou intelectual há duas potências, a saber, o intelecto e a vontade, mas o intelecto é mais excelente. Sobre isso, veja na interpretação da quarta autoridade, perto do fim; por ora fica demonstrado por cinco razões. 1. Porque recebe, por sua própria natureza, a idéia (ratione) das coisas, o que é ou a quididade nua; mas a vontade recebe a coisa já fora na matéria, obscurecida pelo e misturada com o alheio, sem ser plena nem perfeita. 2. Porque, de acordo com seu próprio nome, o intelecto recebe a coisa ela mesma, interiormente, nos princípios essenciais e causais. 3. Porque a vontade formal recebe seu objeto, pelo qual é aquilo que é, do intelecto. * Extraído de Prologi in opus tripartitum et expositio libri genesis. Stuttgart: W. Kohlhammer Verlag, 1964. Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007 207 MESTRE ECKHART 4. Porque a vontade é apetite ou inclinação que se segue do “bem conhecido”, “que aparece” ao intelecto e segue a ele, como a inclinação para baixo é o apetite natural que segue à forma do que é grave, e assim dos outros apetites naturais. O argumento para tudo isso é o que disse o filósofo, que a vontade pertence à razão. Pois o apetite racional não é racional se não a partir da razão e pela razão. Mas a razão pertence ao conhecimento, o qual compreende a ratio e a causa das coisas. Do que se disse acima, fica evidente primeiramente por que se diz que a árvore da vida e a árvore da ciência do bem e do mal foi produzida no meio do paraíso; ou seja, [na] região intelectual há duas coisas, intelecto e vontade. Fica evidente, em segundo lugar, porque coloca-se antes árvore da vida, que representa o intelecto, o qual é [a raiz] da vida da alma racional, conforme a palavra: “o que foi feito, estava nele”, a saber, no verbo, que no intelecto paterno “era vida” (Jo 1,3). Mas acrescenta depois: árvore do bem e do mal, que na verdade pertence à vontade e à coisa extra, conforme se disse acima no capítulo 1: “Deus viu tudo que fizera e era muito bom”. 5. Disso fica clara também a quinta razão por que o intelecto precede em excelência a vontade. Todo ser vivo é mais excelente que todo não vivo. O intelecto porém, segundo sua essência, é vivo, mas a vontade não. Portanto etc. (o intelecto é mais excelente que a vontade). A premissa maior é evidente, e vem testemunhada por Agostinho. A menor demonstra-se assim: o vivo – que se distingue do não vivo – é aquilo que tem movimento a partir de si mesmo, em si mesmo e de dentro, e não a partir de outro e de fora. De acordo com [seu] nome, o intelecto lê a coisa por dentro, em si mesmo. Inteligir, pois, é isso, ler por dentro (intus legere). E de novo lê a coisa ela mesma por dentro, em seus princípios. Mas da vontade não vale nem 208 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007 ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE uma coisa nem outra. Pois sua inclinação e tendência volta-se para fora de si para a própria coisa fora da alma, e novamente para fora de seus princípios internos, os quais fundamenta seu ser a partir de dentro, consistindo num (modo de ser) externo e estranho. Daqui fica claro também que a bem-aventurança, visto ser a vida eterna, consiste propriamente no intelecto ou no conhecimento de Deus em sua essência, conforme à palavra: “Esta é a vida eterna, que te conheçam somente a ti, Deus verdadeiro”. [...] Por último, note-se que nas palavras não comei da árvore da ciência do bem e do mal, devem-se notar ainda dois outros pontos explicitados parabolicamente. O primeiro diz respeito às coisas naturais. Sabe-se que geralmente as coisas inferiores são tornadas mais perfeitas e mais nobres pela adesão, inerência e coesão com as superiores; e ao contrário as coisas são prejudicadas, degeneram e sofrem deficiências de sua coesão e adesão às inferiores, segundo a palavra: “Todo dom ótimo e todo dom perfeito vem de cima” (Tg 1,17); “pois no alto está o Senhor”, como se disse no Salmo (92,4). Agostinho disse que todo metal que adere a um metal inferior degenera em cor e vigor. Por isso que a prata, quando batida em um vaso menor é de pouco valor por causa de seu contato freqüente com as marteladas do ferro. Mas, em relação ao verdadeiro, o bem é inferior, está abaixo dele, como aparecerá logo abaixo. E é isso que aqui se diz e se ordena: não comei da árvore da ciência do bem e do mal. O segundo diz respeito ao aspecto espiritual. Somos ensinados a querer e buscar saber “as coisas que estão no alto e não as que estão na terra” (Cl 3,2). “Ninguém que mete mão ao arado e olha para trás é apto para o reino de Deus” (Lc 9,62). Porquanto, a esposa de Lot, tendo olhado para trás, “foi transformada numa estátua de sal”, como Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007 209 MESTRE ECKHART se escreve abaixo no capítulo 19. Pois, no geral, a perfeição de uma coisa consiste em estender sua expectativa para o que está à frente, inclinar-se e tender para o alto e esquecer as “coisas que ficaram para trás” (Fl 3,13). Mas, entre os transcendentais, conversíveis com o ente, o bem é o que fica para trás, está abaixo e é o último. É o que vem ordenado aqui: não comei da árvore do bem e do mal, isto é, não deves misturar-te com o que é inferior e com aquilo “que ficou para trás”; pois o bem é algo que ficou para trás, como se disse. Ademais, em segundo, o bem fica para trás porque é objeto da vontade; mas a vontade está mais abaixo com relação ao intelecto, como se demonstrou acima, e também em terceiro lugar, porque não ama nem sequer amar o que não é conhecido. E depois, em quarto lugar, o “bem só move a vontade”, porque já foi “compreendido” de antemão. E de novo, em quinto lugar, o bem e a vontade dizem respeito ao todo, pois o bem, a totalidade e o fim são idênticos. Mas o intelecto não se encontra nem repousa fora na totalidade, mas, por sua natureza e segundo seu nome, o intelecto permanece dentro no princípio das próprias coisas. Os princípios sempre são anteriores, mas os principiados são posteriores. Por isso que no Livro do Êxodo se disse a Moisés: “Eu te mosto todo bem” e a seguir: “Não poderás ver minha face”, e abaixo: “Tu me verás pelas costas, mas minha face não poderás ver” (Ex 33,19s.23). Veja que o que se chama por primeiro de “todo bem”, diz depois ser “as costas” de Deus. O bem, portanto, é posterior, está atrás e abaixo. E, ademais, o objeto do intelecto é o ente, mas o objeto da vontade é o bem. A partir daqui, em sexto, assim: o bem e o fim são idênticos, mas de acordo com seu nome o fim é o último, mais afastado, e assim fica para trás e é o posterior. 210 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007 ACERCA DA LIBERDADE DA VONTADE Depois em sétimo lugar, assim: nos entes, o bem não só é o fim e o último, como já se disse na premissa sexta, mas pertence ao que determina as coisas por último, como os acidentes, e não por primeiro, como as formas substanciais. Por exemplo: o homem bom ou o homem probo não é todo o que tem a forma de homem, mas o que tem a sabedoria, a virtude e outros acidentes, acrescentados posteriormente ao ser do homem. Portanto, como já se disse, o bem fica de fora, externamente à substância e ao ser. Depois, em oitavo, como diz a Metafísica VI, a vontade e o amor dizem respeito ao exterior, às coisas em si mesmas, ao contrário do verdadeiro e do intelecto. A vontade portanto está fora, atrás e abaixo com relação ao intelecto. Mas não resta qualquer duvida de que o mal é posterior e inferior, visto ter decaído e ser uma privação do próprio bem. Pode-se também dizer que aqui não se proíbe ao homem de comer da árvore da ciência do bem, por si, mas da árvore da ciência do bem e do mal, isto é, do bem que aparece conjugado com o mal, refiro-me ao bem particular e imperfeito. Pois o mal é privação do bem. “Mas a privação e o hábito referem-se ao mesmo” (objeto). É por isso que ao bem em absoluto, ou seja, a Deus, nada é contrário. Nessas palavras proíbe portanto ao homem de comer, refazer-se, deleitar-se e descansar no bem criado abaixo de Deus. E novamente o bem e o mal são propriamente objeto do apetite sensorial; pois no intelecto não existe, propriamente falando, o mal nem o contrário. “Nele, as razões dos contrários não são contraditórias”, mas ao contrário a razão de ser do mal é boa e a própria razão de ser do bem é a mesma que a do mal. Por isso que, como disse Boécio, a ciência dos males é boa, ou melhor, é una. Nas palavras precedentes, vem proibido em forma parabólica ao homem de se deixar afeiçoar pelo deleite das coisas sensíveis, mas antes alimentar o apetite pelas Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007 211 MESTRE ECKHART coisas boas intelectuais, nem viver segundo os sentidos e irracionalmente, mas segundo a razão e o intelecto. E isso é o que disse Dionísio que o bem para o homem é viver segundo a razão, e o mal viver aquém ou além da razão. Ele quer dizer, portanto, que em si mesmo o homem não deve aquiescer em nada de sensual e em geral em nada de criado, a não ser quando ordenados a Deus. Por causa disso que, acima, no primeiro capítulo, em todas as obras dos seis dias descrevem-se “a tarde” e a “manhã” mas não a noite; pois a noite é a quietude da alma nas próprias coisas, por causa dela mesma. No capítulo 55 do De vera religione, Agostinho diz: “Não busquemos o supremo no ínfimo, nem façamos adesão ao próprio ínfimo”, “a fim de que, se buscarmos o que é primeiro nos últimos, não sejamos enumerados como os primeiros entre os últimos”. 212 Scintilla, Curitiba, vol. 4, n. 2, p. 207-212, jul./dez. 2007 Normas para publicação • Os artigos devem ser formulados obedecendo às normas técnicas de publicação da ABNT, e encaminhados à nossa editoria em modelo eletrônico e com cópia impressa. • A editoria da Revista se reserva o direito de, após criteriosa análise consultiva, publicá-los ou não. 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