Horacio Costa

Transcrição

Horacio Costa
Horácio Costa
Horácio Costa (São Paulo-SP, 14/12/54). Formado em Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP, 1978);
Mestre em Letras (New York University, 1983), PhD em Yale (1994). Professor na UNAM (México),
1987-2001. Desde então, é professor da FFLCH-USP.
A obra de Horácio Costa mostra, ao lado da poesia de Josely Vianna-Baptista e Claudio Daniel, a
aclimatação peculiar que o neobarroco latino-americano teve no Brasil. Esse conceito —
normalmente associado aos cubanos Lezama Lima, Severo Sarduy e Alejo Carpentier — foi
cunhado por Haroldo de Campos, que em ensaio de 1955 afirmou que o barroco moderno atendia
às "necessidades morfológico-culturais da expressão artística contemporânea".
Fora daqui, o termo também assumiu a conotação política de resistência aos determinismos da
colonização. O sincretismo americano de línguas, raças e civilizações foi elevado pelo neobarroco
à categoria de mito fundador, identidade trans-histórica à qual podiam ser anexadas outras culturas.
Assumir o caráter proteiforme da história latino-americana (e da história enquanto tal) seria o
primeiro passo para tomar suas rédeas, reescrever o livro do mundo, determinar o próprio destino.
Na literatura brasileira, porém, o neobarroco ficou mais circunscrito à dimensão de uma
subjetividade que sobrevive ao naufrágio dos discursos nacionais, recriando seu mundo através de
uma mitologia pessoal que se apropria de diferentes tradições literárias.
Horácio Costa é o exemplo máximo dessa retração brasileira do neobarroco. Sua poesia é
narrativa (dentro da tradição latino-americana do poema longo), abundante de imagens e citações,
indo na contramão da tendência modernista à concisão e à escrita antimetafórica. O Menino e o
Travesseiro (1994), por exemplo, é uma epopéia em surdina na qual se cruzam memória coletiva e
pessoal, "poema de formação" em que um menino contempla o batismo das coisas. E em
"Quadragésimo" — paráfrase do poema "A Máquina do Mundo", de Drummond — a tradição
literária brasileira entra não como paradigma poético, mas como plataforma para uma escrita
alucinada, autobiográfica e (pelo viés barroquizante) antimodernista.
Nessa poética marcada pelo homoerotismo, o corpo é a unidade mínima da história (segundo
expressão do próprio Horário Costa), já que todos os discursos e teorias se esfacelaram diante da
pluralidade do mundo. A metáfora primeira do poema, portanto, é a pele; a escrita é como uma
tatuagem que não representa o real, mas o ritualiza. Daí o caráter imagético e sensorial que se
encontra também na poesia de Josely Vianna-Baptista e Claudio Daniel.
No caso da poeta de Corpografia (1992), temos um cancelamento dos limites entre o dentro e o
fora do corpo, um vaivém entre o êxtase sensual e a pulsação física dos objetos, uma
"desgeografia" que dissolve o eu numa "fala hermafrodita". E, em A Sombra do Leopardo (2001),
Claudio Daniel constitui sua subjetividade polimorfa através de uma poesia que procura reproduzir
a simultaneidade simbólica dos ideogramas, numa espécie
de neobarroco em chave orientalista.
Principais Obras: Satori (Iluminuras, 1989), O Livro dos Fracta (Iluminuras, 1990), O
Menino e o Travesseiro (1994, reeditado pela Geração Editorial em 2003), Quadragésimo
(Ateliê, 1999).
AUTO-RETRATO NUM ESPELHO DE HOTEL
Horácio Costa
Nu, toalha nenhuma amarrada estrategicamente
Na cintura, a barba enrolada em cachinhos não
Mas desenhada como a de Prince, primeiro
Role-model,
Incide a luz como tem que ser: da direita inferior
E difunde-se para quem me vê como uma aparição
Poderosa, um Andrea Doria overweighted
Pintado por Bronzino não
Mas visto através da lente
De uma Diane Arbus
Compassiva.
“Ventripotent”, aprendi quando não tinha pança,
Na Aliança Francesa; logo depois os burgueses
De Hals me ensinaram que pode-se parecer bêbado
E próspero. Mas a minha cor
Raramente transparece a rosácea
Que floresce na derme holandesa:
Sou da tez, da consistência
Do Bacchino malato de Caravaggio,
Da dúbia cor dos romanos
Do Sodoma.
Um corpo que fora bem torneado
Pensa-se Tritão, ostras e mariscos
Pendurando-se pelo torso, por ti
Surpreendido face ao espelho.
Pensa-se Tritão, vê-se Netuno:
Nada melhor do que a tênue
Asa da mitologia
Para encobrir
A cor, o tempo, a pança.
(escrito no Sanborn’s Del Ángel, MexCy 19/IX/00)
O BARCO BRANCO
Horácio Costa
Em memória de João Guimarães Rosa
à distância discreta da terra
um barco viaja pelas costas do Brasil
todas as noites, só pelas noites
nele não brilham luzes nem vem dissimulado
lá está sempre que alguém se lembra de procurá-lo
do alto da amurada de uma avenida tropical
das varandas panorâmicas dos arranha céus
ou das encostas dos morros, das favelas
está ele a boiar sem vida a bordo
e contra a escuridão do mar que se perde no horizonte
parece ancorar-se num só lugar
parece que o lugar onde aparece é seu lugar
mas não dura muito esta visão
para os que se recordam acalentá-la
porque tem o barco branco moto próprio
e seu destino é contar sempre os mesmos sítios
verificar se cada baía, cada pedra ou praia
seguem lá onde ele as havia deixado
se do Forte dos Reis Magos à boca do Amazonas
o movimento das dunas não se descontrolou
se a Ilha do Mel no Paraná ainda brinca
entre a Serra e a fria correnteza antártica
se o Monte Pascoal não foi de todo desmatado
se de Torres ao Uruguai nos mangues
os patos fazem imemorialmente os ninhos
sua missão é voltar a medir a altura
das torres da Igreja da Conceição da Praia em Salvador
observar a estabilidade ou a ressaca nos estuários dos rios
que revelam se houve chuvas no interior
se os casais de turistas de São Paulo
continuam a fazer o amor repetidamente,
aos bandos, aos gritos,
nas areias nem sempre limpas de Monguaguá
não tem descanso, o barco não tem sossego
vela pelo litoral do país que mergulha
nas tintas foscas de um mar soturno
não há ninguém a bordo que possa ser surpreendido dormindo
por um evento inesperado
ninguém que se responsabilize por sua rota
pelo quê naquela noite ele há-de reencontrar
ninguém que se encapriche por um rincão
nenhum provinciano que queira guardar melhor
as costas do seu estado
ele segue, mais nada, todas as noites
e branco, e este brilho que tu vês nele
vem das estrelas além no céu
e do plâncton que o circunda
à flor d'água, à distância discreta da terra
entre o Brasil e o nada
(New Haven, Connecticut, 1985)
ONZE TEMPOS DE PASSEIO PELA PAULISTA
Horácio Costa
Um
Joaquim Eugênio de Lima
Não queria ver
o que vejo na tela
de teus cinemas enormes
teus templos
consentidos.
Dois
Campinas
Que merda
andar na chuva suja
da Paulista
não queria
não queria oh cidade
teu sortilégio
que me fascina.
Três
Pamplona
Viajo
prismas de vidro tua constante
cidade que é viaduto para alguma coisa.
Quatro
Museu de Arte de São Paulo
Penso repenso muito tempo
teu sortilégio que é meu
viaduto onde renasço
frágil
com raiva
teu observador tornado prisma
carne branca como a cal
das tuas construções
ah eu renasço sempre nos teus viadutos
de onde me carregas para algum lugar cidade.
Cinco
Peixoto Gomide
Banho na cal.
Banho-me cotidiano de cal cidade
Tu me banhas de ti com tua cal
Ah cidade meus glóbulos brancos
São feitos de tua cal.
Seis
Rocha Azevedo
Ah teu fígado!
somos teu fígado.
Ah tua cirrose!
queremos tua cirrose,
mesquinha fruta da cal
sua pedra branca
cidade
suja.
Sete
Frei Caneca
Onanismos
em todos
organismos.
Cidade merda taí
devolvemos teu sortilégio
de cidade suja onde começa a minha raiva
onde me descubro também
filho da tua cal
espécie do meu sangue
incapaz de te afogar no jorro que quisera.
Oito
Augusta
Nos afogas na cal.
Nove
Haddock Lobo
Não me finques teu orgulho de Metrópole!
eu fico por teu orgulho de metrópole
cega.
Dez
Bela Cintra
Fico para cegar,
Os que nascemos
Com a boca cheia de cal
(tua sina tua sarna teu cheque em branco)
que se confunde aos dentes teus
nossos dentes cariados de cidade.
Onze
Consolação
Observamos
len-ta-men-te
empapados
empapando-nos de tua chuva hostil,
cidade suja,
calcinada.
(São Paulo, 1976)
DEZESSEIS GRAUS NA PAULISTA
Horácio Costa
I
dezesseis graus na Paulista
tinha o verso tão estruturado esta manhã
e dirijo no fluxo
nunca houve lugar mais belo
nem cidadão mais fiel
II
chamam-te floresta de concreto
urbe d'aço
exageros
tomo emprestado
olhares migrantes
aves d'arribação
fixei a ventania que juntou montes
d'outonais folhas na sarjeta
o céu brilhava
diadema d'Imperatriz
mulher que nunca tive
III
pude voltar com o meu olhar estranho
que sabe desnudar as tuas topografias
luxo supremo
agridoce:
ninguém dirá que és
"um ninho de pelicanos"
por aqui
nenhuma falésia
ainda que
gratuitas
adornem bromélias as tuas
árvores
IV
Clima de serra
disse a Vera
o momento exalou inspiração
quase ninguém conecta com ele
teus
uma vez pristinos rios
transformados em
esgotos
— quem o negaria?
exiges um olhar educado
em
constante educação
que restitua a matéria
para lá do coriáceo do teu corpo
V
pude voltar
luxo supremo
Koh-I-Noor da coroa inexistente
só intuída
para sofrer as epifanias
necessárias
cidade vestibular
vestíbulo para alguma coisa não lírica
também lírica
présemiparametapósantetrás-
VI
já o sabia
há trinta anos o sabia
não passou o tempo
o deambular permanece
quando não me encontro perto
ou dentro de ti
exilo-me e dói
— quem compreenderia?
os capazes de extrair beleza
do pó acumulado
sobre um arame farpado?
VII
Boa noute
professor de esquina
Sweet ladies
oh flowers of England boa noute
um uruguaio havia há pouco na sauna
ou paraguaio
um cearense
um italiano
de membro parrudo como o de Michelangelo
um coreano
trabalhadores
teus
cidade viril
ou amante virago
suculenta virago
transformas em espetáculo
os teus corpos densos
que ao olhar educam
e satisfazem
VIII
vi o paraguaio extraviar-se na noite
perder-se em tua
magnífica maquete
e me confessei a palavra agridoce
— que impressões ficarão de seus tênis
sobre a rugosidade do meio-fio?
partículas de desamparo
aquele frotar oitocentos metros
rumo ao metrô
breve subirá o dia
prevê-se uma manhã nublada
como uma estocada
IX
dezesseis graus na Avenida Paulista
sucedem-se esquinas
Peixoto Gomide
Rocha Azevedo
Joaquim Eugênio de Lima
Frei Caneca
Augusta
conselheiros do Império
o urbanista uruguaio
o religioso autonomista
a rua que remete a Lisboa
e tudo atravessa o teu nome de cidade apostólica:
sob o signo de Saulo
anuncias o nosso caminho a Damasco
e levarás o seu nome a todos os rincões
esta a tua vertigem
clima de serra
esta a tua
missão
até as bromélias e as epífitas
concordam
e entoam teu
hino
X
incessantemente
aqui não importa ser noite
ou dia claro
no chiaroscuro pinta algum
Caravaggio anônimo
a Paulista
é teu caminho a Damasco
na América
you will prevail
— as folhas mortas
estarão recolhidas amanhã
antes que as hélices dos teus helicópteros
as desfaçam
irei com elas para o nunca jamais
te abandonarei
como faço agora
XI
onze tempos de passeio redivivos
te percorro em três minutos
cubos
cubos
cubos
folhas que se dispersam
sim vou com elas
rumo ao meu santuário
interior
no chiaroscuro me ilumino
deslindo o que há
o agora
o agora é o que há
o onde é o agora
sob os teus
cascos
(São Paulo, 17-19/VII/05)
TRANSFORMAÇÃO DO OBJETO
Horácio Costa
Objeto transformado:
Eis-me aqui procurando em tua re-forma
Teu trabalho anterior, tua sombra
Que se alongou em minha memória tua,
Em minha sempre nossa memória de contatos cotidianos,
Que afastaram tua presença de meus olhos,
Tornando-te privilégio
De meus dedos compressores.
Retomo agora nosso contato,
Re-amigo arrependido,
Consciente de teu poder maior que o meu
— Teu poder silencioso,
Tua alma que é tabela de claros e escuros,
Onde me insiro
Com docilidade. Manso animal
Na esteira dos teus dias e noites,
Recupero as dobras
De meu Nome.
Que me levas ao sonho
De te transformar/mos
Ainda mais:
Quero te ver/mos
Mutantes
Burlando a fronteira do tempo
E do espaço.
(São Paulo, 1976)
OBJETO A
Horácio Costa
I
Cada vez mais fugidio
O Objeto A. Neste plano, ainda
Visível contra o horizonte.
Os contornos já não fotográficos,
Sujeitos a um olhar desfocado
Ou tremulante. Ainda.
Objeto A fui eu naquela tarde
Chuvosa no roseiral, com a
Maria Nadyr. Quisemos transformar-nos
Em nuvem ou vento. As rosas
Estavam à mão: espinhosas,
Não nos inspiraram. O dia
Conjugava-se inconsciente de que
Seria rememorado quarenta anos depois.
E logo, o silêncio.
II
Ou o barulho. O número do contribuinte
Não esquiva a ficção ruidosa
Da qual descende. Passei pelo revendedor
De rações e lá consumi a minha.
Sob um sol escarninho. A pele
Rizomatizando-se em samambaias.
Os dentes alinhando-se num mudo
Relincho. O Objeto A parece irisar-se
Antes do ponto de sua fissura
Ao final da tarde. Sou parte
Dessa condução, penetro um agora
Que mantém a aura. Ainda.
O teto de madeira, a 5,40 metros,
As vigas musicais, o crepitar
Infinitamente reconfortante
Enquanto durou. Ou durava.
Já não sei qual a conjugação
Adequada.
III
Objeto A: eis-te aqui ainda
Sujeito a uma cifra crepuscular.
Nenhum sinal de que não sobrevives
A não ser em mim e pouco. O tangível
Nada envia em sinais.
Não sou o mesmo e já
Não identifico as, sim,
Correspondências.
Afasta-se
Rumo ao nada o Objeto A?
Perdê-lo para lá do horizonte
Será também perder-me?
Apenas a memória satisfará,
Despida de sentimento e míope?
E sua sobrevivência simples,
À morte já não equivalerá?
Afasta-se o Objeto A.
(São Paulo, 1º-4/VI/2006)
INVENTÁRIO
Horácio Costa
Inventario.
Eu não sou filho do Dr. Delamare
— o dos bebês rosados e sadios—
mas poderia sê-lo. Sucrilhos.
Nasci em '54, quarto centenário
Da metrópole sul-brasileira.
Entre a III e a IV Bienais.
Meses apos o suicídio de Vargas.
Com o "Anna Nery" ia-se à terra do Salvador
Ouvir Caymmi. O styling sugeria amebas,
Dominando o plástico e as harmonias
Cromáticas ligeiramente desarmônicas.
Quase todo mundo era real e socialista,
Com náusea só de vez em quando, numas
De ser sartriano e V.I.P. Para ficar
Chegara a Volkswagen. Do Brasil. S.A.
Boeing-boeing. O Marechal Lott seria preso,
Domiciliarmente, logo adiante. Na esquina
Do meu segundo aniversário. No momento
Embrional de Brasília. A.B.C.
O amor nas classes médias: piegas,
Com sonoridades jazzísticas no Club Pinheiros.
Nos Jardins — metáfora! — edificavam-se mansões
E mansões neocoloniais. Vários rios quiseram
Imitar o Reno. Desconhecia-se,
Totalmente, o Pico da Neblina,
Em Roraima. Alguns já choravam
Os escombros do Barroco
Mineiro. Esta terra acontece em ciclos.
Quer um exemplo? Bem, a Escola Militar
Do Realengo mudara-se pras Agulhas
Negras, onde a paisagem é sublime.
Mirus-Rove. Manhã cedo, e mamãe
Me compraria o primeiro par
De sapatos. No Externato Santa Rita
Aprenderia que, depois do café,
Estávamos vivendo o ciclo da Policultura
& Industralização. Meu pai adorava
o que havia de tralha americana.
Cortadeira de gramado, torradeira elétrica.
Na U.S.P. franceses pontificavam.
Não me lembro mais se Murilo Mendes
Já morava em Roma. Quanto a Hemingway,
Sei perfeitamente que estava em Cuba.
Aparelho ultra-violeta. Filmadora. Nunca
Dancei cha-cha-chá. Entrei direto
No roque. Jackson Pollock orgasmava
Colorido, dançando sobre telas enormes.
Satchmo. O Banco do Brasil e a Boîte
Oásis. O negócio era estudar no I.T.A.
E virar bom partido. Pelos domingos
Íamos ao Planetário, novinho, em folhas
De alumínio. Sólidas formações humanísticas
Seguiam discordando de Einstein, na Egrégia
Academia Brasileira de Letras. A TV Tupi
Canal 3 foi minha madrinha. Peter Pan, Sininho.
Não fazia a menor idéia do que me esperava.
Teve kits pra tudo: navios, cidades,
Posições do Kama-Sutra. Ignorava-se a China,
Bem como o Piauí. Tudo devia ser funcional
Pratico lavável. Sorria-se com os dentes
À mostra. Folclorizar as favelas — uma forma
De absorvê-las. No Brasil sempre faltaram
Pescadores de águas turvas. Ban-lon.
(No Monte Athos
há mil anos
os monges rezam
missa.
Estou decidido
a queimar todo
o meu karma.
Ontem/hoje/amanhã.
Mantiqueira, Mantiqueira.
Com Jece Valadão, Cacilda Becker
Filmou "Floradas na Serra".
Acho que vou morar
Em Nova Iorque, mesmo,
Que se está transformando
Em ruína
Maia).
Os bandidos, os místicos e os líderes carismáticos
Tinham nome. Lampião, Dom Bosco e Kubitschek.
Todos os demais nessas categorias estavam além
De nossas fronteiras. Aragarças.
Não faltava quem vigilasse. Salazares
Embaixo da mesa, dentro do armário. O número
De baleias que subia das Falklands até Natal
Era maior, bem maior que hoje em dia.
Vol d'oiseau, darling, você usa, deix'eu verc
— óculos gatinho. De slacks guia Buicks. O Bikini
Atoll foi apenas uma forma de maillot. Na cidade
Vestibular quero só ver você transcender. Bar-dot.
Eu abria a boca, feliz. Mamãe
Tacava sucrilho, papinha. Em caso
De dúvida telefonava pras primas,
Consultava o livro do Dr. Delamare
Ou o "Médico do Lar". Deu certo, creio.
Tenho 1,85 metro, peso 80 kg e posso compor
Um inventário parcial poético. Poesia feita
De bits. No consultório do Professor Carlos
Prado tinha um enorme aquário, por si
Produto anos '50. Nasci com a chegada
Esperada dos primeiros baianos. Nossa
Baiana chamava-se: Maria. Maria Gorda.
São Paulo inchava feito óleo
Nos campos de Piratininga. Óleo
Pensado pra lubrificar. Para ferver?
Jamais! Capitalismo a berrar nos desertos
D'América. Isto continua, no meio
Da minha vida toda. Só gravames
E agravantes, convenientemente gravados
Nos corredores da memória. Zé
Horacinho. Outsider- — sim, senhor — on the left.
Trabalho cotidiano o esquecer de pouca coisa.
Hypochryte lecteur, mon semblable, mon frère,
Encontre também o teu Kellogg's/vomitório.
Não deixe que algum aventureiro
Lance mão do teu Nome.
Ou seja, desta inteira
Estranheza.
(São Paulo, 1980)
INVENTÁRIO
(25 anos depois)
Horácio Costa
Ponho novamente a tocar
Os monges de Simonopetra.
De profundis. Nunca, entretanto,
Visitei como quisera o Monte Athos:
Em Tessalônica disseram-me
Que o visto demoraria meses.
Tivesse 26 novamente
Arriscaria um emprego
E esperaria servindo café.
Things a celebrated poet won't dare
Exposing himself to. No lungomare
Desfiei memórias como quando só
Como agora. Já próximo está
O momento de calar-me: percebo
O abraço do silêncio temido
Tanto como sedutor contumaz.
Já não se me ocorrem palavras
Quando espelho o meu corpo
Quando saltam nexos fortuitos
Quando sobe o soluço tão-só mental.
Ainda, surge o poema que não inventaria
A cidade a idade a trama e os joanetes,
Os ligamentos rotos, a artrose herdada
Com o grisalhismo e os olhos castanhos.
A recusa à depressão, ao ódio
E à promiscuidade. Sendo-me congenial
A alegria, exploro-a terminadamente
Como o asfalto à terra batida
E o colunista à notícia de ontem.
Nenhuma afora esta: 25 anos
Depois de publicado o meu livro
Primeiro
28/6
preparo-me ao silêncio à espreita
para que se cumpra o destino do poeta
que dia a dia me habita, corpo duplo
aparte. Sedutor de horas e instantes
e abandonante de mim. Com suas
milhentas formas de calar-me
e a dedicação de um devoto ortodoxo.
Enquanto não desce a cortina
Inventario as palavras que escrevo
Em profunda estranheza, e calo.
E ouço ainda uma vez as vozes
De Simonopetra.
(São Paulo, 4/V/06)
EU
SOU AGORA
KEM EU KERO
Q VC SEJA
SEMPRE
Marcio Giannetti/Horácio Costa
(São Paulo, 6/VIII/05)
A TERCEIRA FACE DE JANO
Horácio Costa
não olha ao futuro
nem mede o passado
a terceira face de Jano
mora em São Paulo
olha para o lado
tenta
virar o rosto
não pode:
aí estão as siamesmas
faces irmãs
a do futuro
cega como Borges
a do passado
rouca como Proust
e nenhuma que veja
a Marginal do Pinheiros
sobrou para ti
terceira imobilizada
face perplexa
estar face
a face
com o
presente
(São Paulo, 16/V/06)
A FRONTEIRA DO DIZER
Horácio Costa
A Haroldo de Campos, in memoriam
— Conecta com isso.
E é uma pedra.
— Conecta com isso.
É terra.
— Conecta com isso.
É nuvem. Tem a forma do dragão.
— Conecta com isso.
É onda. Tem a forma da onda.
— Conecta com isso.
É chip. Parece Shangri-lah.
Não é sílica. Nem silêncio. Nem palavra.
Conecta com isso.
(Struga, Macedônia, 27/III)
CAIXA DE ÁGUA AZUL
Horácio Costa
Entre a ramagem da árvore desconhecida,
Caducifólia, nem de Jessé ou genealógica,
Um volume azul sobre uma laje, caixa de água
De polietileno ou poliuretano.
Notação distante na paisagem urbana,
Obsedante recordação no agora-agora,
Calle Río Poo 108, Colonia Cuauhtémoc,
Suites Parioli, México, Capital.
O mar, não. O mar, não. O mar, não. O mar, não.
Um exagero de zéfiros, então: o expresso
Descia a serra em Simcas-Chambord tangerina,
Rumo à baía divisada entre montanhas:
Ao longe, o porto e as torres, guindastes e praias;
Ao pé a pantanosa terra, como espaguete, úmida.
O talento da oitava real quereríamos,
O seu sempre imarcessível horizonte.
Nele seguia a senhora duas vezes por ano,
Qual a ordem das vogais, dos ritos identitários,
às vilegiaturas; se lhe encolhera
o mundo à mínima possível transumância.
Para lá da paisagem, a sós uiva o engenho,
Aquilo que em linguagem transforma a língua.
A árvore que se agita em eterno lenho
Enraíza no presente o espectro que mingua.
Ia a senhora, olhos de pomba, um único anel
De coral; cruzou-se a morte entre ela e o poema.
O mar, não. Caixa de água azul entre prédios alheios.
Este o horizonte, marchetado em fragmentos,
Reduzido a um puzzle no qual o montador
A si se vê como uma das peças faltantes.
O agora não sabe o que diz: memoria vincitrix.
Desce uma vez mais o expresso a estrada de Santos.
(Cidade do México, 9-X/00)
CANÇÕES DO MURO
Horácio Costa
1
Quem botou o reboco neste muro
não tinha bom domínio de espátula,
ignorava a mescla correta da argamassa,
não era bom pedreiro.
Ou será o tempo apenas o culpado
pela destruição do seu trabalho?
Não faz assim tantos anos
que levantaram este muro.
Pintaram-no de branco
e várias vezes repintaram-no,
de branco primeiro, depois só de tons ocres.
2
O sol batia a pino sobre o muro
que parecia estar ali
desde que é o mundo mundo:
os passantes não o percebiam mais.
Usaram-no como suporte
de campanhas políticas & publicitárias,
Kolynos & logos
& siglas & partidos
impressos com tinta barata.
3
Usaram-no também para grafites:
escreveram sobre rostos & restos
de affiches & argamassa
como se sobre uma folha em branco.
Virou a carne do muro
uma espécie de pasta: um Tàpies
esquecido num canto de cidade, obra in progress
de significado igual & forma instável
(do lado de lá, escondia-se /
esconde-se
o velho jardim de rosas).
4
Quem reparou na progressão das gretas
sobre a sua superfície & mediu
a deslavagem & a erosão milimétricos?
Quem leu as pautas que se formavam?
Quem viu o reboco cair como icebergs
no oceano da calçada?
A sós se desfazia /
se desfaz o muro,
sua música para ninguém cantada,
surdina para surdos, cantochão para o chão,
nu descendo a escada numa casa vazia,
natividade num museu antártico.
5
Por isso cantaria eu o muro?
Por isso eximiria eu
o pedreiro do mau reboco
de seu mau trabalho
de há quarenta & mais anos?
Sua obra resultou em obra d'arte
-que vive na retina, que não no espaço-,
mas não é esta a razão,
nem este poema a sua defesa
nem a épica do descobrimento súbito
do muro.
6
Canto o muro porque sim,
porque sua pele & a minha se assemelham
posto que também já tomei sol & tomei chuva,
posto que sobre o meu corpo discursos
& campanhas se imprimiram /
imprimi:
já tive tantas caras & sorri
como foram da minha vida os meses
& as idéias políticas ou não
que se sobrepuseram
umas sobre as outras.
7
Canto-o & dou-lhe olhos & ouvidos
para cantar-me a mim;
ao emprestar-lhe minha voz /
tomá-lo emprestado para a minha voz
canto-me a mim:
edificado por acaso numa esquina do tempo
(do outro lado, o velho jardim de rosas)
ruminando, cantarolando o que me apraz
(sim que há rosas, me disseram)
& os Tàpies, os topázios
sobre a minha pele
(& as pétalas)
8
& as fraturas
& os desmoronamentos
& as cantigas da gravidade
& o caminho ao pó
o meu caminho
& o muro.
(Cidade do México, 25/VIII/96)
CONVERSAÇÃO COM TÀPIES
Horácio Costa
I
há uma montanha de lixo
ao lado do mercado
há peixes que bóiam
na lagoa, o rio
transformou-se em espuma
— que me dizes?
como conciliar tais detritos
com o pai-olhar
e a ur-palavra?
II
Tàpies ensina:
com o gesto.
Ouço
o barulho do graveto
que incide sobre a superfície rugosa
da caixa de papelão desdobrada
em intenção de anatomia
e observo
a incisão de mais um alfabeto
que nasce com cara infante
sobre o balcão do invisível
III
Tàpies, há desmesura
nessa tua empresa:
o caixote resgatado
canta agora o seu epos:
foste tu ao seu encontro
ou veio ele ao teu?
quando termina a matéria,
quando começa a história?
e o xingamento, quando se faz
oração?
IV
posso dizer-te que era de manhã:
pela última vez nomeou o meu olhar
a radical estátua disforme
— o Tamanduateí se escondeu
no pêndulo do instante
detrás da montanha de alface pisada
detrás da montanha de frutas passadas
e as varejeiras bordavam o ar
como filosofemas
e então eu vi:
eu vi o meu olhar
nomear a descoberta
(noite iluninada, manhã da alma)
e transferir o montante
para a certeza de uma
das tuas telas
V
quantas vezes me debruço contigo
sobre São Paulo?
sobre as superfícies
sempre um borrão,
sobre as idéias
sempre uma ranhura,
mesmo sobre a música de fundo
sempre uma cruz
que alimenta-se
do agora
e sobre a fainéante canção dos muros
a epifania dos graffiti
que desvelas?
meu olhar é tanto teu
quanto pode um olhar pertencer
a um outro preciso
— porisso, porisso contigo converso
e vejo contigo e através de ti
VI
(um rio que é tinta)
um ranho que é alma
um lenço que é lírio
um anjo que é tudo
(e as varejeiras)
e joga um jogo imemorial
o acaso com o ser
e o ser com o sentido
VII
monta-se aí for a a nuvem
da chuva:
era o que faltava
para a minha/nossa
estátua (efêmera) / tela (mental)
— um rabisco de água, asa
sobre a cidade, instantâneo
petrificado
anunciação
profana
VIII
e a unha que cresce?
e o cobertor do mendigo?
e o fato isolado?
o editorial sistemático?
a aldeia global, o pêlo
na cama, os pêlos nas pernas,
a espuma no rio?
e o biografema, o caixote de livros,
a juba estrelada, o cordeiro Luís XV,
e o fundamental?
IX
e Tàpies responde
com um gesto que enquadra o monturo
e inclui a sua aura:
que tudo o que há se anuncia
livre
belo
nobre
ágil
— anjos esverdeados
no momento da transformação.
(São Paulo, 9/X/05)
ANIVERSÁRIOS
Horácio Costa
Vinte Anos Depois é um romance de Alexandre Dumas
duas décadas não são nada
é a média de vida do homem primitivo do escravo romano
é a idade de um cão muito muito velho
é a média de glória de um artista maior
o tempo sem celulite de uma cortesã
o lapso de procriação depois do casamento
quatro ou cinco mandatos políticos o auge de um Império
vinte anos levou a Constantino reformar Bizâncio
vinte anos fizeram a fortuna de Frick Morgan e Du Pont
vinte anos entre a apresentação no Templo e a crucificação
vinte anos é a matéria dos memorialistas
vinte anos e o povo se cansa da Revolução
vinte anos depois Odette está casada e Mareei morto
a roda o computador pessoal a moda das perucas brancas se
popularizam em não mais de vinte anos
Quéfren e Miquerinos construíram suas pirâmides em vinte
curtos anos
vinte anos depois o cadáver está frio olvidadíssimo
vinte anos de exercício e o êxtase desce ao asceta
nada nada são duas décadas vinte vezes nada
a ponte nova entre aqui e ali está congestionada hoje
a então chamada ponte do futuro já não serve mais
agora quando estás nela também estás aqui
tinhas o cabelo solto tinhas a rédea solta
soltas tinhas as palavras
há vinte anos
entre aqui e ali
(Poema introdutório de QUADRAGÉSIMO. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. A primeira edição do livro saiu no México,
em 1996, pela Editorial Aldus).
CAIXA DE ÁGUA AZUL
Horácio Costa
Entre a ramagem da árvore desconhecida,
Caducifólia, nem de Jessé ou genealógica,
Um volume azul sobre uma laje, caixa de água
De polietileno ou poliuretano.
Notação distante na paisagem urbana,
Obsedante recordação no agora-agora,
Calle Río Poo 108, Colonia Cuauhtémoc,
Suites Parioli, México, Capital.
O mar, não. O mar, não. O mar, não. O mar, não.
Um exagero de zéfiros, então: o expresso
Descia a serra em Simcas-Chambord tangerina,
Rumo à baía divisada entre montanhas:
Ao longe, o porto e as torres, guindastes e praias;
Ao pé a pantanosa terra, como espaguete, úmida.
O talento da oitava real quereríamos,
O seu sempre imarcessível horizonte.
Nele seguia a senhora duas vezes por ano,
Qual a ordem das vogais, dos ritos identitários,
às vilegiaturas; se lhe encolhera
o mundo à mínima possível transumância.
Para lá da paisagem, a sós uiva o engenho,
Aquilo que em linguagem transforma a língua.
A árvore que se agita em eterno lenho
Enraíza no presente o espectro que mingua.
Ia a senhora, olhos de pomba, um único anel
De coral; cruzou-se a morte entre ela e o poema.
O mar, não. Caixa de água azul entre prédios alheios.
Este o horizonte, marchetado em fragmentos,
Reduzido a um puzzle no qual o montador
A si se vê como uma das peças faltantes.
O agora não sabe o que diz: memoria vincitrix.
Desce uma vez mais o expresso a estrada de Santos.
MexCy9/10IX00
NA MESA DE CABECEIRA
Horácio Costa
Para Maria Aparecida Santilli
Na mesa de cabeceira,
Um exemplar da edição d’Os Lusíadas
Daquele velho professor secundário do Porto,
Remember, abundantemente comentada,
E um guia do Estado de Chiapas
Elaborado depois do EZLN, portanto
Tão preocupado em descrever as fachadas barrocas
De San Cristóbal de Las Casas como
Em falar das tribos coloridas &
Perseguidas.
Que mundos se juntam em quarenta centímetros quadrados,
O velho Camões sofrendo talvez pela vizinhança
Insuspeitada –mais distante hoje Chiapas de Calecute
Que há quinhentos anos.
Mas quem junta os objetos sou eu,
Quem lê estes livros simultaneamente
É este nômade dado
À teatralização do mínimo.
Talvez deste encontro fora do acaso
Não possa originar-se boa poesia.
Nas estantes convivem em ordem alfabética
O Mein Kampf e o Manifesto,
Um tratado sobre botânica com um sobre os amigos,
A loucura de Aliosha e as práticas de Santa Teresinha de Lisieux:
A contigüidade bibliográfica
Prevê terremotos para quem pára e reflete
Ao ler a lombada dos livros.
Mas neste hotel não há estantes:
Há uma espécie de mesa de cabeceira
Que testemunha como se babelizam e se lambuzam –
Haverá bacanal mais surpreendente a esta hora da noite?-
Os protegidos de Las Casas e o bardo lusitano
2x1 (“n˜ua mão a pena e noutra a lança”).
No caracol do ouvido distingo
O ritmo que executam
Em sua vital promiscuidade –
Dançando não sobre a cabeça de um alfinete de prata
Mas sobre um criado mudo.
MexCy 17IX00
A RÃO
Horácio Costa
Sim, naquele volet gauche
Da visão terrível do El Bosco
Lá nas Janelas Verdes,
Bem sobre o Mar da Palha
Sim, em Lisboa,
Ulissipona, Lixbona,
Lá vive extirpada do Paraíso
(No volet droit)
E num delírio de deslugar
Sem topografia nem imaginário
Mas com epistemé epistemé,
Lá, enfim, vestida de batráquio,
De meio ostra também
Ou pró-dinossáuria
Só que com as asas arrancadas
E inda por cima com pelezinha
Cor-de-rosa e clorofila,
As penas rasuradas
Por um profissional da imagem,
Com a boca que vc conhece,
Baconiana sim,
Bem baconiana,
Sem cérebro,
Estricnina,
A-que-volta-sempre,
A-mais-presente-que-aspirina,
A-pós-impoluta,
A-da-abadia,
A-do-puteiro,
A-que-diz-que-disse,
A linguaruda,
Densa de glossolalia,
Deusa da glossolalia,
A Rão.
Também vive na equação comum,
Fractal.
Às vezes me visita.
De tamancos. Sempre de tamancos.
Depois de comer muito alho,
Muito alho sempre.
E bafeja:
Às vezes retenho caligrama,
Se não os esqueço
Ou sublimo.
A Rão não me quer
E nem a ti
Nem a si
Nem ninguém.
Quando visita
Esqueço o linóleo abacate,
Os pés da menininha,
O formulário.
E desisto
Da água.
Creio que
Isto lhe faz gosto:
Mantém-me com a boca seca
E sem beber
E quando lhe lambo
Os flancos orvalhados
A Rão retorce-se de gozo.
(no Hospital Universitário; SP 6 VIII 02)
MANJAR BRANCO
Horácio Costa
Escrevo um poema depois
De ter escrito um poema sobre
Uma paisagem. Isto é mais manjado
Do que manjar branco, ou que o era
Nos idos não de março, nenhum
Júlio César que não o toxicômano
Semi-suicida filho do marceneiro,
Nenhum cônsul procônsul princeps
De Roma nenhuma, nos idos não de março
Mas de março de 1964, ano da morte de meu pai
E da Redentora.
Auto-ungida, veio redimir-nos de nós mesmos,
Os ingovernáveis de memória curta
Ou de longa memória, os ingovernáveis
Que sempre nos paralisamos diante
De uma sobremesa tremulantemente
Branca, com ameixas em conservas
Como calda, ou diante de conclaves
Que tais, que pizza imitam
Fi-gu-ra-ti-va-men-te.
Conto as sílabas, os anos que se passaram
Daquele revolucionário manjar, e eis-me
En-ve-lhe-cen-do diante de tais culinárias
Grandezas.
Oferecem-me “dobrada à moda”,
À moda tripeira, como ao Álvaro de Campos:
Numa civilização na qual tem tal predominância
O trato intestinal, que há-de
Esperar-se?
Ouvi o teu fado, José Dirceu,
Bem ouvi-o.
E houve na oitiva a memória de um
Jovem explorado (eu)
De boa índole (eu)
Quase “desaparecido” (eu)
Devido às tuas veleidades e de Ana Corbisier,
De terroristas que com identidades falsas
Abusaram da nossa hospitalidade,
Minha e da Sônia, lá por 1975:
De salva-pátrias glutão
E grande consumidor:
Indicam-no as tuas gordas bochechas
Cevadas por manjares brancos
E muitas, muitas caldas de ameixas.
Não havia os que te saciassem, certo?
Nenhum açúcar mais potente
Do que o poder que experimentaste.
E que, previsivelmente para mim, feriste de morte.
Deixa-nos com gosto amargo na boca
E azia no trato.
E lambo os meus beiços no poema.
Rio de Janeiro, 24 VI 05
DA LEITURA
Horácio Costa
O luxo do esquecimento e a necessidade da memória lutam,
se anulam, amam-se gerações afora. Vem o teu corpo,
penetra-me, logo me abandona. Vejo tornar-me
alternadamente eu e outro, apenas eu, apenas outro, o outro e
eu. Neste trânsito nos igualamos os dois, sempre famintos e
súbito satisfeitos a cada minuto, ou cada movimento. Não há
memória que não preveja esquecimento. Nele, sólidos,
carregam-se os fatos que medram no Tempo. Teus olhos
percorrem-me e me interrompem. Parte, inconcluso,
permeado deste meu moto, significando moinhos de vento.
Pois que a leitura não se completa nunca, deixo agora de
estar aqui. Assobia-me meu começo, que já reside em ti.
Nova Iorque, 1981
De SATORI (Poemas)
São Paulo: Iluminuras, 1989
ESCRITO ÀS SEIS DA MANHÃ
Horácio Costa
entre vegetação e céu
às seis da manhã em ponto
dão voltas sobre si mesmos
os quatro vasos de avenca
suspensos sobre um abismo
planetas desconhecidos
flutuam no além-momento
herdeiros de Assurbanipal
herdeiros do Führer louco
um fio os ata à árvore
amantes da gravidade
são como a História inteira
são vida em estado puro
dão voltas, cai um império
dão voltas, o mundo é pouco
às seis da manhã em ponto
suspensos sobre um abismo
(um fio os ata à árvore)
dão voltas sobre si mesmos
os quatro vasos de avenca
De SATORI (Poemas)
São Paulo: Iluminuras, 1989
EXCRITO NA AULA DE JACQUES DERRIDA
Horácio Costa
Vamos.
Conversemos com a eternidade
deste espaço em branco.
Nenhum Mallarmé rompe a linha
da língua da página
que flui como uma norma.
Deixemos pro futuro um ambiente
no papel fechado:
janelas neogóticas, alunos novoingleses,
um “mot” neolatino que habita
novas traduções em expansão.
O filósofo disserta infindavelmente
proliferando intenções. O som da voz
bate e reverbera nos cristais
e encontra seu limite nos bordes deste
plano. Coscruza o branco.
Lá fora uma cidade quase dorme depois
da chuva. A alteridade é percebê-la
em stillness, enquanto avança a noite
e se corrompem as palavras.
De SATORI (Poemas)
São Paulo: Iluminuras, 1989
Protegido pela Lei do Direito Autoral
LEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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informações sejam mantidas.

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