Jandaia em Tempo de Seca

Transcrição

Jandaia em Tempo de Seca
Petrônio Braz
Jandaia em tempo de seca
Obras Completas
Apresentação
Mara Narciso(*)
A cena final é um caldeirão borbulhante de
moqueca de surubim e seus melhores ingredientes. A
panelada está fervente e todas as finalizações serão
possíveis, cabendo a possibilidade maliciosamente
colocada de continuação.
O sangue do livro é a água do rio. Humanizada,
brinca nas corredeiras e nos saltos. “Jandaia em tempo
de seca” é vivo como o Rio São Francisco que muda as
margens de lugar conforme a hora: “água sem terra, terra
sem água, numa constante sístole e diástole”. O coração
da gente também é assim. Apenas quem conhece
qualquer canto do rio, cada maneira de dizer, e entende
aquela gente de lá, como é o caso do escritor Petrônio
Braz, convence na linguagem barranqueira. Faz isso
melhor quando revive a fala oral autêntica. São muitos
livros num só título, porque abarca realidades distantes
entre rapazes bem de vida, de linguajar acadêmico, que
estudam fora, como também de gente tosca da beira do
rio, morador de rancho fedorento e miserável.
A força da narrativa passa pela comunicação
cabocla típica, cheia de maneiras de falar e de calar,
como a mulher retirante que “preferia não puxar conversa,
e remoer sozinha os mistérios da sua vida”, ou então “o
sertanejo que não esclarece dúvidas, não relata fatos;
vive introspectivamente na penúria de sua existência”. O
autor integra classes sociais distintas numa ação comum,
(*) Médica, jornalista e escritora. Da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e
do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros (N. do E.).
seja na caçada ou na romaria. O dizer regional e a
temática ribeirinha não são reducionistas, porque há
conversas letradas e professorais, com discussões
filosófico-ideológicas
sobre
guerras,
comunismo,
socialismo, guerra nuclear, existência divina, Teoria da
Evolução, e Admirável Mundo Novo. Além de breve
passagem pelo sobrenatural. A cidade de São Francisco é
o centro nervoso da trama, para onde tudo se converge.
Os pescadores sem sonho, enganados nos
negócios “pela sagacidade dos praieiros”, entre outras
coisas, “com farrapos de conversa”, vivem por viver, com
suas expressões primitivas. Há também a figura do bon
vivant de linguajar diferenciado, que é filho de fazendeiro,
estuda em Belo Horizonte, namora sem interesse, usufrui
da moça fácil, se enamora da moça virginal, possui a
moça pobre, e sai incólume. Ecos de modernidade, dada
a consciência ecológica e visão contemporânea do autor,
dão respingos aqui e ali na fala de seus personagens, ao
mencionar que um dia as mulheres terão os mesmos
direitos dos homens e que queimadas intencionais são
crimes.
Não falta a zona boêmia onde estão “todos
chafurdados na promiscuidade pecaminosa, onde
imperava a imundície moral”. Lá tem cenas de ciúme,
brigas e morte. E do lado de fora “a mentira dos fatos, a
ilusão da vida, a falsidade medíocre das aparências”.
Acontece também a badalada romaria até Serra das
Araras. É o clímax da narrativa com seus grupos
heterogêneos, que querem muito de tudo, porém, rezar
pouco. Por outro lado, rezas de benzedeiras são
resgatadas como pesquisa histórica, assim como versos
das cantorias de reis, para registro e deleite. Palavras
antigas definem o tempo do acontecido, assim como
outras linguagens mudam a ação abrindo a cortina
através da descrição da paisagem: “esparsas touceiras
marchetadas irregularmente quebravam a continuidade da
vegetação rasteira”.
A grandeza das águas é tratada como se o rio
fosse mar, trazendo expressões como ondulações, águas
encrespadas, e barulhos à moda marítima: “A canoa
deslizava vagarosa quebrando o espelho das águas e
formando pequenas maretas que desciam marulhando ao
longo do casco”. Os vapores, vulgos gaiolas, com seus
nomes históricos e seus apitos como impressões digitais,
mostravam a “angústia e o sofrimento dos seus viajantes”
em enfadonhas viagens, de Pirapora a Juazeiro. Os
passageiros, com a abissal distância social entre eles,
estão presos, descendo ou subindo o rio, naquele eterno
migrar de nordestino. A segunda classe deitada nas
redes, com moças donzelas sendo trocadas por comida, e
a primeira classe, descansando nos camarotes ou mesmo
uma senhora loira indo dormir com o comandante.
Depois, numa conversa mais intelectual, é questionada a
dor de barriga causada por peixe gordo em “Seara
Vermelha”, de Jorge Amado. Pela boca da senhora loira,
Petrônio Braz desmente o autor baiano, e afirma que nos
vapores quase não se come peixe e nunca se joga os
mortos no rio, e que a abordagem de Amado foi
ideológica.
A vida só acontece devido ao rio, assim como a
disseminação da malária, que se dá em suas margens,
citando os avanços em seus tratamentos trazidos pela
guerra, com destaque ao povo que entende doença como
um mau-olhado ou transmitida pelo calor do tempo.
O sexo pudico faz aparição rápida e cheia de
névoas a lhe fechar as cortinas e os olhos do leitor.
Depois reaparece numa cena de banho de rio, nudez e
voyeurismo, ressurge adiante com a força da sua
natureza, numa correria de gente e frango, no resfolegar
de um sol a pino, com direito a gotas de suor, desejo
incontrolável e culpa.
Embora focada nos costumes da década de 1940,
no pós-guerra, a história procura antever o futuro, através
das visões de mundo dos seus personagens, sejam eles
simples ou complexos. Não há protagonista, mas um
narrador onisciente, que está na mente de todos eles. As
mulheres são figurações. Não há nenhuma mais decidida
ou mais corajosa. São apenas sombras ou
complementos. A que se sente marcada foge do seu
destino por castigo. A realidade da época precisa ser vista
com olhos antigos.
Assim como a vida, a morte por afogamento pode
espreitar no rio de armadilhas. Outro ponto aflito e forte. E
mais dois: a caçada à onça, com sua encenação e
fingimentos de coragem, e a menção a Antônio Dó, aqui
mostrado praticamente como bandido.
O tempo climático, depois do rio, é o personagem
mais constante, pois ambienta, personaliza, e muda os
rumos da história, sendo marcante em todo o enredo,
como se fechasse um tema e abrisse outro capítulo.
Truques de escritor experiente, que sabe manejar as
nuvens em prol de contar melhor a sua história. E é justo
isso que acontece, em boas ações simultâneas, que não
fazem força para se entrecruzar.
1
Nas proximidades do córrego dos Angicos, mas
afastado dele, como parte integrante do contexto rural de
São Francisco, município norte-mineiro, distante poucas
quilômetros do centro urbano, no interior agreste, em
meio a uma virente vegetação, localiza-se o sítio da Água
Nova.
O córrego dos Angicos é um pequeno riacho de
leito flexuoso, com acentuados meandros. Não recebe,
em seu diminuto curso, nenhum manancial que encorpe o
volume de suas águas, mas é um ribeiro perene que corre
manso, quase mesquinho, com suas águas salobras em
um leve borbulhar no fastígio do estio e, ao sobrevirem as
benfazejas chuvas que inundam o sertão com águas
transitórias, fluente, volumoso, às vezes rugindo,
transbordante em inundação subitânea com as revoltas e
selvagens enxurradas barrentas, que alimentam o seu
leito. Não se conhece a sua foz. Não é um tributário do rio
São Francisco, que rola majestoso e corta as terras do
município meio a meio. Suas águas alimentam,
despretensiosas, uma pequena lagoa da margem direita
do rio, e desta, vão alimentando outras e outras, até se
perderem absorvidas por elas, sem que se misturem às
do caudaloso rio.
***
Ao final de um dia abafadiço, do fim do mês de
fevereiro de 1968, o sol da tarde descendo rapidamente,
João, filho primogênito do proprietário do sítio da Água
Nova, arrastando as alpercatas de couro cru, com
passadas leves e medidas, a calça arregaçada até o
joelho, chapéu de palha e nu da cintura para cima,
aproximou-se cauteloso do pai.
Manoel de Firmina, mestiço de um moreno claro,
estatura mediana, o corpo e braços fortes, pernas
resistentes, pele morena e curtida, estava parado na
soleira da porteira do quintal a olhar o céu à procura de
um sinal de chuva. Sacodia levemente a cabeça com sinal
negativo. Nem uma nuvem. O dia ainda claro, de um sol
límpido, mas cinéreo para ele.
Seus olhos desolados, ligeiramente fechados,
esquadrinhavam o horizonte. A fronte levemente
enrugada. Em sua volta, tudo estava seco. As folhas das
árvores caíam, amadurecidas pela inclemência do tempo.
O verde das árvores não era mais viçoso. Nos ramos
retorcidos e murchos, as folhas iam ficando
avermelhadas. Na capoeira em frente, não se ouvia mais
o gorjear alegre da diversicolor passarinhada canora. O
murmúrio monótono e insistente de uma abelha enfadava
seus ouvidos. Ao longe a gargalhada triste de uma coruja.
Aquele ano não prometia fartura. Nenhum raio de
esperança vinha aliviar seu desequilíbrio nervoso, sua
agonia. O cigarro de palha, preso entre os dentes, estava
apagado. Ele cerrou momentaneamente os olhos como se
buscasse esquecer a fatalidade.
Com voz tímida e abafada, o filho anunciou:
– Pai, manhãzinha, vou procurar serviço na cidade.
Havia angústia em sua voz.
Manoel de Firmina, perturbado, voltou-se para o
filho com um olhar vago, balançando a cabeça
negativamente, incapaz de proferir palavra. Não podia
compreender as agruras de sua vida. As fibras de seu
coração vibraram fortes e dolorosas.
O filho olhou detidamente para o pai, aguardando
por algum tempo pela resposta e, compreendendo que ela
não vinha, abanou a cabeça erguendo levemente as
sobrancelhas, sungou as calças e afastou-se cabisbaixo.
Um doidante vento seco e quente, turbilhonando
enovelado, formou um redemoinho no fundo do quintal,
retorcendo os galhos das árvores frutíferas e elevando
para o céu uma nuvem de folhas secas, que balouçavam
inseguras.
Firmina, rechonchuda mulher de Manoel, que
regressava da lagoa com a lata na cabeça, sussurrou
assustada, com voz abafada, buscando afastar o demônio
que rodopiava dentro do torvelinho:
– Aqui tem Maria; aqui tem Maria; aqui tem Maria.
Era uma mulata de 54 anos, porém, aparentando
ter mais de 60, de pele grossa e tostada pelo sol, com
acumuladas rugas senis, mãos calejadas, pés rachados,
dentes amarelados e seios caídos e murchos.
Absorto, afogado na solidão de seus pensamentos,
o rosto lasso, os olhos encovados, com o espírito inflado
de dissabores, a cabeça latejando, Manoel de Firmina
olhou a espiral de poeira se elevando.
– Redemunho tem demo. Ele passou bem no fundo
da casa – pensou ele. – Rico tem parte com o demo...
Vende a alma e recebe dinheiro... A alma é do tinhoso...
Deus também ajuda os rico... Rico tem Famaliá, é só
mandar buscar dinheiro e ele vai.
Feição carregada, levemente empalidecida,
afastou-se para o interior da casa. Colocou o cigarro atrás
da orelha e cuspiu no chão. Sentiu um pesar imenso por
não poder dar cuidado às angústias do filho. Mergulhado
em suas reflexões, Estava alheio a tudo que se passava
ao seu redor e havia já dois dias que não se alimentava
bem. Há quase uma semana a insônia era sua
companheira noturna.
***
Manoel Pereira dos Santos, conhecido pela
alcunha de Manoel de Firmina, ou simplesmente Neco,
nasceu na zona rural do município de São Francisco, no
sertão mineiro. Frequentou, quando criança, o primeiro
ano de uma escola primária. Afeito às lides do campo,
não arredava pé de sua gleba, indo vez por outra à
cidade. Sua família, já criada, ainda representava motivo
de preocupações.
A falta de chuvas, a lavoura perdida, o desajuste
social, a previsão de miséria que se aproximava no fim de
vida e a impossibilidade de resolver sozinho os mistérios
da vida, levaram-no a meditar sobre o futuro em um dia
quente de verão, depois de minguada refeição de fava,
abóbora e farinha de mandioca. Poderia trocar os bois
carreiros – Moreno e Moreninho – pelos bois curraleiros
de seu compadre Joaquim e, com a volta, pagar o
dinheiro que estava devendo a Seu Euzébio, abastado
fazendeiro, seu vizinho. Vender os bois não podia, pois
ficaria de pés e mãos atados. Dois de seus filhos, Alberto
e Joana, estavam ausentes, dispersos pelo mundo. João,
o mais velho, construíra sua própria casa próximo à lagoa
e agora desejava abandoná-lo, e Maria...
Na uniformidade de sua vida, não tinha ambições.
Firmado na perspectiva de melhores dias, no ano anterior
havia solicitado e obtido do banco, com penhor de seus
dez alqueires de terras, adquiridos nos bons tempos,
empréstimo agrícola, que lhe dera novas forças. Saíra do
banco, depois da terceira visita e registro do contrato em
cartório, com um largo sorriso.
Naquele dia, na cidade, ele havia entrado alegre e
expansivo na loja de Seu Felisberto para comprar
ferramentas de trabalho e roupas novas para Firmina, sua
mulher. Os tempos haviam mudado. Ele era um homem
rejuvenescido. Tinha conta no banco. Comprara também
um arreio novo, feito a mão, com capricho, por artesãos
do Jacu, localidade próxima, com arreatas de sola branca.
Havia passado pela casa de seu compadre Joaquim, no
Boi Morto, para comprar o cavalo marchador que ele tanto
queria.
Em casa, meteu mão dentro iniciando logo o
preparo do terreno para o plantio: roçada e derrubada de
uma pequena área de mata virgem, próxima à lagoa. O
tempo passava rápido. Logo chegou o dia da queimada.
Sol a pino, tição inflamado na mão, ele acendeu a
primeira coivara e o fogo, auxiliado pelas lufadas do
vento, cumpriu logo sua tarefa, incinerando tudo à sua
passagem. A fumaça elevou-se até as nuvens,
empanando o brilho do sol. Os gaviões-de-queimada
avizinharam-se à procura das vítimas do fogo. Quase
nada restara; só os toros grandes, grossos e
carbonizados.
As primeiras chuvas chegaram firmes e constantes,
num prenúncio de fartura.
Na hora do plantio, ninguém conseguiu
acompanhá-lo. Ia sempre à frente do eito, abrindo as
covas com a enxada, sorrindo, quando não cantava. As
mulheres, com hábeis mãos, depositavam o milho nas
covas, que eram cobertas com os pés ligeiros, procurando
acompanhar os covadores.
O milho nascera parelho pela uberdade da terra e
desenvolvia-se auxiliado pelas chuvas, que permaneciam
firmes. No mês de dezembro as plantas ondulavam ao
sopro da brisa e já cobriam os tocos, que haviam ficado
da derrubada, partes remanescentes das frondosas
árvores que restaram ligadas à terra.
Vieram dias de sol, que foram recebidos com
agrado. Manoel de Firmina agradecia a Deus aquela
regularidade da estação chuvosa.
Tudo era esperança.
***
O tempo continuava estivo, os dias quentes e as
chuvas não voltavam. As folhas do milho, antes tão
viçosas, estavam mirradas.
O veranico começava a trazer preocupações. Há
trinta dias não chovia.
As vizinhas vieram chamar Firmina, para a prece
que iriam fazer. Pés descalços, cabeça ao tempo,
garrafas d’água nas mãos, ao sol do meio-dia saíram pela
estrada a rezar e pedir clemência, cantando em coro:
Meu divino São José,
Aqui estou ao vosso pé.
Mandai chuva com bonança,
Meu Jesus de Nazaré.
Quem tiver sua devoção
Se apega com São José,
Ele é Santo milagroso,
É Santo de nossa fé.
Meu divino São José,
Não mata seu filho, não.
Nem de fome, nem de sede...
Manda sua compaixão...
Mas as chuvas não vieram. Manoel, cheio de
angústia e sofrimento, somente ia ver a roça pela manhã,
bem cedo, quando o milho, auxiliado pelo sereno da noite,
apresentava-se mais esperançoso aos seus olhos.
Apareceram os primeiros pendões. Manoel, olhos
fitos no céu, não encontrava uma nuvem sequer que
renovasse suas esperanças. Milho que deita pendão sem
chuva, não dá espiga. Tudo estava perdido.
Passaram-se os dias, e a estiagem, de sol
ardentíssimo de efervescente calor, continuava a castigar
a terra ressequida.
Os fazendeiros, preocupados com o estio,
dispensavam seus empregados, que iam buscar, na
cidade, o abrigo indispensável à sobrevivência.
***
Sentado no tosco banco de cedro da sala de sua
casa, no sítio da Água Nova, as costas apoiadas na
parede, Manoel de Firmina, profundamente deprimido e
angustiado, de tristíssimo porvir, não encontrava solução
de sobrevida em presença de um futuro sem esperanças.
Ele viu, com os olhos do espírito, o passar dos anos.
E pensou:
– Bem qu’eu podia encontrar com o diabo, mas
com um que tivesse dinheiro... Não dinheirinho de ponta
de lenço, não... O chefe que tivesse dinheiro com fartura.
Ele sentia o corpo cansado.
A sala era simples e agradável; o chão de terra
batida. A mobília era escassa e pobre. No centro, uma
rústica mesa de madeira sem lustro e quatro tamboretes,
além de um banco. Em um canto da parede, encravado
em uma forquilha de três pontas, um pote de barro cozido.
Teias de aranha enegrecidas pela fuligem cobriam os
cantos das paredes, descendo das cimalhas. As telhas
cobertas de fuligem.
Firmina, com um pote sob o braço da mão direita e
a rodilha na esquerda, entrou na sala dizendo:
– A lagoa secou... Tem água mais, não. O jeito é
buscar água no córrego.
– Deus seja servido.
– Ocê quer café?
– Quero não – ele disse, sem muita convicção.
Ela, pensativa, deu um passo aproximando-se dele,
e com ternura perguntou:
– Neco! Que ocê tem? Parece que tá desandado.
Ele olhou contrafeito para ela, acomodando os
cabelos com os dedos da mão direita, e murmurou:
– Nada, nada!
– Tou me lembrando da seca de 58... Foi do
mesmo jeito, só que a gente não devia nada.
– Nos ano oito é sempre difícil... – murmurou ele 38, 58 e agora 68. Tudo a mesma coisa. Só 48 foi um ano
bom de chuva.
Ela saiu.
Silêncio.
Sozinho em casa ele retornou a seus pensamentos
na penumbra da sala. Uma madorna, um torpor pesado e
semi-lúcido, um sono leve.
Pela força do inconsciente, em busca de uma
realidade desejada, ele ouviu um chamado pelo seu
nome, que veio da porteira.
– Houlá! Neco.
– N’nhor, sim – ele respondeu.
– Faz favor.
Soprava uma brisa leve. O sol já descia para o
poente.
Ele levantando-se caminhou até a porta da frente
de sua casa e saiu para o pátio. Estacou
momentaneamente no meio do exsicado terreiro e,
sacudindo a cabeça negativamente, reiniciou sem firmeza
a caminhada, em deprimente estado mórbido.
Frente à porteira estava um senhor forte, claro,
revelando ser de alta posição, aparentando quarenta
anos, barba castanha. Vestia uma camisa modelo militar,
calças de brim cáqui, sem chapéu. Montava um burro
preto, alto e irrequieto. Os arreios brilhavam de novos.
Constrangido e receoso Manoel de Firmina pensou:
– Este senhor deve de tá procurando pela estrada
que vai pra casa de Seu Euzébio.
– Neco, como vai?
Ele encarou o visitante com expressão de espanto.
– Em paz – respondeu.
Demonstrando surpresa, perguntou:
– O senhor me conhece?
– Conheço, de muito tempo, e por isso é que estou
aqui. Como vai de situação?
– Assim, assim. Meia pedra, meio tijolo.
Manoel abriu os paus da porteira e convidou:
– O senhor desmonta.
O visitante, descansando na sela e relaxando o
corpo, respondeu com ênfase:
– Vou apear, não. Conversamos aqui mesmo.
Manoel olhou para ele e disse:
– O senhor sabe que a vida da gente fraca é
sempre vagarosa. Ando muito soturno.
– O que falta na sua vida para desenvolver seus
passos?
Ele respondeu secamente:
– Dinheiro!
Uma Jaó cantou no mato próximo. Canto que ele
sempre ouvia, integrado à rusticidade de sua vida.
– Oh!... Encosta com um homem.
Desembaraçado, ele afirmou:
– Eu tou bem servido com o coronel Brandão.
– Você precisa de um homem como eu. Quanto
precisa para resolver sua situação?
Meio atordoado ele pensou:
– Dez contos.
O astuto visitante, lendo seu pensamento, disse:
– Peça dinheiro!
Pensou vinte contos.
– Será muito?
A voz do cavaleiro foi ficando mais forte. Sacudindo
a cabeça, excitado, ele repetiu:
– Peça dinheiro.
Franzindo o cenho, perguntou:
– Quanto o senhor cobra de juro?
– Se aquece! Não se incomode com juros. Peça
dinheiro! – respondeu coçando a cabeça.
– Mas, senhor!
– Você assina o seu punho?
Meditativo ele respondeu:
– N’nhor, sim.
– Ainda melhor ficou... Sabe quanto vou lhe
arranjar pela sua assinatura?
– N’nhor, não.
– Vou lhe arranjar cem mil cruzeiros.
– É muito dinheiro!
– Você será um homem rico... E é só para
começar.
O forasteiro riu uma risada seca e completou:
– Fiquei simpatizado com você, com sua pessoa e
vou lhe arranjar uma quantia grande, e não está longe,
meu filho, está aqui. Olha!
Apresentou uma maleta, que estava no cabeçote
da sela. Retirou do bolso da camisa uma caneta, uma
caderneta e um pequeno aparelho.
Com voz autoritária ele continuou:
– Ponha o dedo aqui. Quero um pouquinho de seu
sangue para você assinar com ele.
Manoel concordou meio inconsciente:
– N’nhor, sim.
Um vento itinerante sacudia as folhas e os ramos
mais finos das árvores.
O visitante, de cima do burro, determinou:
– Levanta o dedo de sua mão direita.
Ele começou a levantar a mão, mas teve um ligeiro
temor e perguntou:
– Quem é o senhor?
– Eu! Então não me conhece? Você não me
chamou?
– N’nhor, não – respondeu ele, assustado.
– Nunca ouviu falar em Satanás, governador de
todos os demônios do inferno?
A afirmação causou-lhe um estremecimento. Ele,
perturbado, recuou a mão e implorou:
– Vixe, Maria!
O espírito das trevas, tomando desastrosas feições
humanas, em tom alto e colérico declarou:
– Você quer dinheiro nada! Você não tira o nome
da Maria do Cisco da boca... Você quer dinheiro nada!
Com uma mefistofélica gargalhada, pegou o
estorvo da brida do burro e rodou, desaparecendo.
Manoel, apalermado com a satânica visita,
levantou-se esfregando os olhos com a mão e dirigiu-se
para fora. Respirou o ar puro e fresco da tarde. Falando
para si mesmo, murmurava palavras ininteligíveis.
– Dá o pé louro.
Ele não viu nem ouviu o palreiro papagaio, que
caminhava desengonçado na cumeeira da casa.
Um bando de jandaias passou, grasnando em
revoada sobre sua cabeça. Manoel acompanhou, com
olhos, o voo dos pássaros.
– Inté ocês tá desesperada, sem encontrar roça pra
estragá – pensou.
Parou por um instante no meio do terreiro com os
olhos vagos.
Galinhas moviam-se pelo quintal já diligenciando os
galhos onde, empoleiradas, passariam a noite.
O sol, no ocaso, espargia sobre a terra seus
últimos raios amarelados.
Expropriado da sorte, vendo-se antecipadamente
reduzido à extrema pobreza, olhou de relance sua
pequena propriedade. Ali havia criado os filhos e ali
esperava terminar tranquilamente seus dias. Seus lábios
entreabertos pareciam querer dizer alguma coisa. Não
tinha raiva, nem amaldiçoava. Não culpava o filho pelo
desejo de separação. Os outros, muito mais cedo haviam
partido. Uma cruel agonia, uma tumultuária agitação
perturbava sua mente, levando-o à exasperação.
O ar morno e o calor sufocante faziam o suor
decorrer-lhe pelo corpo. Faltavam-lhe forças para
recomeçar a vida. Os cabelos, mesclados de branco,
espalhavam-se desordenadamente sobre sua cabeça. Os
pés descalços escaldavam-se na cálida areia do terreiro.
As árvores, em volta, não lhe pareciam amigas.
Indeciso como o Asno de Buridan, inerte como a
grama que viceja nas clareiras da mata e com o
desespero insinuado em seu coração, na tristeza da hora
crepuscular, buscando aliviar a tempestade do espírito,
ele abriu a porteira e embrenhou-se na capoeira.
***
João, o filho mais velho, à luz da manhã do outro
dia, olhos esbugalhados, respiração ofegante, entrou
apressado em casa, com lágrimas nos olhos.
– Mãe!... Encontrei pai... Tá pendurado pelo
pescoço, num galho do juazeiro da encruzilhada.
– Vixe, Maria!
Ela ficou petrificada.
Um silêncio lúgubre caiu sobre eles.
Na altura das dez horas, raios luminosos
distribuíam luz e calor. O dia estava abafado, o vento com
mormaço de chuva.
Antes do entardecer, nuvens negras, como grandes
castelos medievais, se elevaram no horizonte
denunciando a formação de chuva, da chuva tão
esperada. O calor abrasador dava lugar à brisa fresca e
úmida, trazendo aquele cheirinho gostoso de terra
molhada. Trovoadas fortes e relâmpagos sucessivos
sarjavam o céu pelos lados do poente. A chuva caiu forte,
torrencial,
derrubando
as
folhas
ressequidas,
transfigurando a natureza e formando poças d’água pela
estrada.
2
Anos antes, ou mais precisamente no primeiro
sábado do mês de dezembro de 1947. Era fim de um
lindo dia. O sol não era ainda posto, mas já baixava na
linha do horizonte.
A tarde envelhecia.
À meia luz do crepúsculo, após um dia de trabalho
sob o sol escaldante, de cócoras ao redor de seis grandes
gamelas de comida – feijão com farinha-de-mandioca,
arroz, abóbora, carne com ossos e pedaços de inhame –
vinte e cinco lavradores, na varanda coberta da casa sede
da fazenda do coronel Brandão, cortada pelo córrego dos
Angicos, a jusante do sitio da Água Nova, concluíam a
última refeição do dia, regada com distribuição da boa
cachaça do Brejo.
Haviam sido contratados para a segunda limpa da
grande roça de milho.
A sede da fazenda era uma habitação de razoáveis
proporções, rodeada de varandas, sita numa área plana,
um pouco acima da terceira margem do rio São
Francisco, em uma grande clareira aberta na mata
virgem. Em derredor, ao alcance das vistas, a mata ciliar
que perlonga o córrego dos Angicos ainda podia ser vista
em sua exuberância selvagem, fresca e luxuriante, com
variada biodiversidade arbórea. Pelos fundos da casa
abria-se um pomar de mangueiras e laranjeiras e pela
frente um grande pátio, cercado de achas de aroeira,
sombreado por primitivos cedros, juazeiros, aroeiras e
tamboris.
Um vento fraco fazia farfalhar levemente as folhas
das árvores. Algumas vacas, deitadas sob a copa de um
tamboril, ruminavam e as aves domésticas já procuravam
empoleirar-se para a noite que se avizinhava.
Sol posto, a noite principiava a pintar o céu de
lucilantes estrelas.
Manoel de Firmina, um dos enxadeiros, estava
apressado. Deveria voltar para casa e não podia tardar
muito. A travessia de uma légua de catanduva com suas
ramagens de espinhos, um estirão de solo arenoso, uma
espécie de caatinga com árvores baixas, ramificadas e
tortuosas, mato grosseiro, com vegetação áspera, que
separa sua sitioca da sede da fazenda do coronel
Brandão, era muito perigosa. Notícias davam conta de
que, na noite anterior, nas proximidades da lagoa do
Cercado Grande, uma onça havia matado um poldro.
Celino, diligente capataz da fazenda, que já se
afastava do grupo com alguns passos, virou-se e
perguntou:
– Ocê vai pra casa hoje, Neco? Ocê não tem medo
da gata lhe esperar numa curva da estrada?
– Ora veja! Onça pega outra, não.
Celino, com um olhar de censura, recomendou:
– Ocê podia pousar por aqui mesmo. Seguro
morreu de velho.
Ele não temia o escurecer.
– Vou só terminar a boia.
– Quem não ouve conselho, ouve coitado. Ocê é
quem sabe.
Lázaro, vaqueiro da fazenda, indiferente, noticiou:
– As pitomba da pitombeira do curral da vazante já
tá madurando.
Joaquim da Malhadinha informou, cofiando a
barba:
– Crispim disse que viu o rasto d’uma onça na
beirada do rio. É mais maior que o rasto da pé-de-cabelo
lá do Brejo.
Celino comentou:
– Deve de ser onça passageira. S’ela matar outra
criação nós vai ter que pegar ela. O coronel Brandão só
vai esperar ela fazer carniça.
Joaquim da Malhadinha afirmou:
– A pé-de-cabelo voltava na carniça, não.
Com seu corpo esguio e andar acurvado, o
semblante austero, mas olhar sereno, o coronel Brandão
aproximou-se vagarosamente do grupo de peões.
Observou a conversa. Conhecia muito bem a história da
pé-de-cabelo e de outras onças mais. Era um caçador
experiente.
Celino, dirigindo-se ao coronel Brandão, informou:
– Nós tava falando da gata que pegou o poldro na
Lagoa do Cercado Grande.
O coronel Brandão disse, com segurança:
– Deve ser onça passageira. Há muito tempo não
aparece onça verdadeira por essas bandas. Também
pode ser alguma suçuarana lombo-preto mais afoita.
Manoel de Firmina não podia participar da
conversa. Estava escurecendo.
– A prosa tá boa, mas tenho que ir.
Levantando-se, apanhou o chapéu e a pequena
lata com café, emprestado por dona Paulina, mulher de
Celino, e despediu-se de forma genérica:
– Tou indo.
Como bom sertanejo, embora apreensivo, com
passadas leves, empreendeu a caminhada, confiado em
Deus e em seu facão jacaré.
Caminhava devagar, arrastando as alpercatas.
Na margem da corrente cristalina do córrego dos
Angicos, o revoo baixo de uma juriti assustou-o.
Atravessou-o pelas alpondras desnudas, pisando
cuidadosamente em cada pedra.
Logo a sombra da noite o surpreendeu.
Os vaga-lumes faziam-lhe companhia com seus
pequeninos fachos de luz fosforescente. Miríades de
grilos estridulavam uma música irritadiça.
A chuva que caíra na tarde daquele dia havia
formado alguns poços d’água pela estrada.
Era um homem só, contra a natureza hostil de uma
região semideserta e acabrunhadora. Um animal correu à
sua aproximação e entrou no mato.
– Tatu ou veado – ele pensou.
O sinuoso caminho era estreito, o mato cerrado. As
aves noturnas começaram a emitir sons e gritos soturnos.
Um corujão passou, voando com seu grito infausto e
tétrico e, batendo as asas com força, foi pousar numa
árvore próxima.
De quando em quando ele olhava para trás, sem
identificar bem o motivo. Sentiu a lata que carregava na
canhota cheia de café em grãos. Deu-lhe vontade de
beber uma caneca bem quente.
Um amplo manto escuro cobria a terra.
Ele olhava para frente, buscando romper a
traiçoeira escuridão, definindo o rumo da estrada quase
sumida na negritude da tépida noite. De vez em quando,
um ramúsculo, adernado pelo peso da chuva, roçava-lhe
o rosto. O mato fechara o sinuoso caminho por cima de
sua cabeça, abreviando-lhe o olhar e toldando ainda mais
as trevas noturnas.
A rústica trilha abriu-se um pouco mais. Pelas
falhas dos ramos, ele viu uma pequena parte do ástreo
firmamento. Uma estrela-cadente ornamentou o céu com
seu fanal luminoso, antes de se desintegrar na atmosfera.
Para ele era presságio de malévolos acontecimentos,
como se dos corpos celestes viessem os mistérios da
existência humana.
O astro da noite ainda não havia saído. No céu,
brilhavam as estrelas. A lassa claridade das fulgurantes
estrelas não penetrava na sombra das árvores. Noite
escura, noite sem claridade lunar é noite feia; noite sem
vida. Noite de lobisomem no tempo da Quaresma.
Quando já se aproximava de sua casa, o sexto
sentido, de que é dotado todo sertanejo, fez-lhe despertar
para a realidade de sua situação. Sentindo a fragilidade
de suas defesas ele aligeirou o passo.
Uma estranha sensação de perigo fez seus cabelos
se arrepiarem. Nada tinha visto nem ouvido, mas
pressentiu que algum animal o estava seguindo. Por
segurança, apressou mais o passo e aguçou os ouvidos.
Segurou com firmeza na sinistra a lata com café e pousou
instintivamente a destra no cabo do facão.
Poucos passos havia andado quando ouviu um
pequeno barulho, provocado pela passagem de um
animal, pela última poça d’água que havia atravessado.
Voltando-se de chofre, vislumbrou, à pouca luz noturna,
um vulto negro, já bastante próximo. Naquele instante de
aflição, pensou tratar-se do garrote preto do farmacêutico
doutor Torquato, criador naquela região. A dúvida logo
desapareceu. Suas narinas, afeitas aos adores do
ambiente, reconheceram tratar-se de uma onça, traída em
suas intenções pelo providencial poço d’água. Vencendo
o estupor provocado pela presença do animal, sacou o
facão e deitou a correr, batendo na lata e gritando.
Arquejando, ele chegou incólume e afadigado à
sua casa, o coração quase a saltar-lhe pela boca.
3
Naquele mesmo dia de 1947, o Wenceslau Braz,
um dos grandes vapores do rio São Francisco, afastavase, vagarosamente, do porto de Juazeiro, na Bahia. Batia
compassadamente as pás da roda na água, deixando
para trás, na esteira da embarcação, uma faixa simétrica
de maretas. Subia, cortando as águas do majestoso rio,
com destino a Pirapora, em Minas Gerais. Estava
abarrotado de passageiros, tanto na primeira, quanto na
segunda classe. A água estava a menos de um palmo
para atingir a parte superior do casco.
Uma barca, costeando o barranco, sulcava as
águas, acompanhando o vapor em sua subida. Seis
barqueiros, três de cada lado, com seus varejões de
quatro metros, como possantes alavancas, apoiados nas
medalhas dos peitos calejados, caminhavam pelo
carreiro, da proa à popa, empurrando a embarcação, que
ostentava orgulhosamente, na proa recurvada, a carranca
protetora, desgastada pelo tempo. Em pé, na popa
elevada do modesto bergantim, o piloto segurava o leme,
manobrando com segurança os movimentos da
embarcação. Sobre as pranchas de cedro, apoiadas nos
fortes cavernames de rosca, estavam empilhadas
algumas cargas de rapadura. Os seus doze metros de
comprimento por dois de largura estavam pintados de
vermelho vivo, em toda parte visível acima da linhad’água. Na proa, logo atrás da carranca, lia-se um nome:
Gaivota.
Do vapor podia-se ouvir o murmúrio das vozes dos
tripulantes, que cantavam suas canções de barqueiros.
No vapor, na primeira classe, o som de uma sineta
anunciava a hora do jantar. Os passageiros, saindo de
seus camarotes, dirigiam-se para o salão de refeições, no
tombadilho principal do vapor.
Após o jantar, os passageiros da primeira classe
procuraram relacionamentos entre si, formando grupos,
de acordo com o lazer preferido. Uns jogavam baralho,
outros liam velhas revistas. As crianças divertiam-se,
correndo pelos corredores, brincando de escondeesconde. Um grupo de jovens preferia tocar violão. O
Comandante e o Comissário davam assistência a um ou
outro grupo.
Os viajantes da primeira classe gozavam de
prerrogativas especiais. Podiam subir à cabine de
comando ou descer à sala de máquinas sem serem
molestados. Tinham livre trânsito pelas dependências do
barco. Todos os tripulantes lhes prestavam as
informações pedidas: tempo de viagem, cidade mais
próxima, largura e profundidade do rio...
Os passageiros da segunda classe, em sua maioria
flagelados do Nordeste, vagas humanas em constante
trasladação, não tinham regalias. Eram tratados como se
fossem carga. Os marinheiros eram, para eles, os donos
do vapor. Faziam exceções, distribuíam privilégios.
Zélia, uma linda mocinha de quinze anos, morena,
rosto perfeito onde se destacavam os olhos castanhos,
cabelos pretos e lisos, que havia conseguido manter suas
formas, apesar da longa viagem a pé pela caatinga, com
sua faceirice natural, o corpo voluptuoso, aproximou-se da
cozinha com seu prato esmaltado para receber a comida.
O cozinheiro olhou-a com um riso irônico, perverso,
estampado nos lábios.
Ela baixou os olhos. Recebeu a comida e foi juntarse aos outros.
O cozinheiro acompanhou-a com um demorado
olhar, esboçando no rosto um zombeteiro sorriso. Em
seguida, apanhou uma lata e jogou-a ao rio, amarrada a
uma corda de caroá, e recolheu água. Água barrenta,
água do São Francisco. Com ela havia preparado a
comida e com ela lavaria o vasilhame da cozinha. Com a
mesma água, os marinheiros limpariam o vapor e da
mesma água os flagelados bebiam, sem filtrar, sem coar,
sem decantar, ao menos. Filtro só para os passageiros da
primeira classe.
Os nordestinos bebiam a água barrenta, mas não
reclamavam. Nada tinham a reclamar. Pelo menos não
faltava água. Não passavam sede. Toda água era boa
para quem havia atravessado a pé as caatingas do
Nordeste.
Desde
Petrolina,
quando
avistaram
maravilhados as águas do rio e mesmo depois de
atravessá-lo para Juazeiro, ligaram-se a ele e admiravam,
entre agradecidos e submissos, sua imponente grandeza.
O rio São Francisco, "o grande caminho da
civilização brasileira", traço de união entre o Norte e o
Sul, representava para eles a verdadeira oportunidade de
alcançarem as terras agrícolas de São Paulo.
As águas, descendo em um marulho constante,
vindas da Serra da Canastra e de incontáveis outras
nascentes, deslizavam majestosas para o oceano. Antes
haveriam de brincar de salto em Paulo Afonso, como já
haviam se divertido em Casca d’Anta, Pirapora,
Sobradinho e em outras quedas e corredeiras.
Nas margens do rio, com tanta água, a mesma
miséria do sertão nordestino.
O rio transforma o vazanteiro em um indolente,
incapaz. Acomodado e eternamente doente, o ribeirinho é
tão triste quanto o flagelado do Nordeste, que sobe o rio
em busca de melhora nas terras agrícolas de São Paulo.
Inteiramente divorciado do restante do País, agrilhoado ao
rio por indefinido atrofiamento, e vencido pela verminose,
não tem forças para enfrentar as dificuldades e os
sofrimentos da viagem. O rio fornece-lhe o minguado
alimento, mas retira-lhe, em pagamento, a saúde e a
coragem. A malária e a verminose estão estampadas em
seu rosto pálido e em seu ventre intumescido.
O melancólico ribeirinho, na sua vida semiselvagem, aceita tudo passivamente, pela vontade de
Deus. Submisso à grandiosidade do rio, vive de suas
tradições, com seus costumes primitivos, isolado e
apático. Em cada casebre de taipa, à margem do rio,
proliferam os filhos, enquanto a mulher for fértil, e morrem
quando o meio não lhes fornecer condições de
sobrevivência.
O rio São Francisco dorme à espera do amanhã.
As Náiades não habitam suas águas e ele não tem, como
o Tejo, a sua Tágide.
O homem vazanteiro acomodou-se à indolência do
rio. Vive preso a uma preguiça atávica, com seu andar
catrumano desaprumado, a fala cansada, langorosa,
aparentemente inválido.
A fertilidade da terra que espere adormecida. As
florestas virgens das vazantes cumprem, sem ser
molestadas, sua função clorofiliana. Nenhum machado
perturba sua paz. Raramente cai um tamboril, para virar
canoa ou um pau-d’arco oco, para furar abelha.
Próximo aos portos de lenha abrem-se pequenas
clareiras na mata, de onde os proprietários retiravam
lenha, para vender aos metros.
Na beira do rio ninguém planta roça, embora a terra
seja boa, nem edifica construções perenes. Baixadas
aluviais fertilíssimas. Na seca não tem chuva; a semente
não germina. Nas águas, o rio enche e inunda tudo; não
fica terra. Água sem terra; terra sem água, numa
constante sístole e diástole.
Nas margens do rio, água e terra não se combinam
e o vazanteiro acomoda-se na “inércia cômoda de
mendigos fartos”. Aceita tudo. Enquanto espera, mata o
tempo em sua bamboleante rede, armada em sua choça
de pau-a-pique. Passa pela vida sem ambições,
acomodado, preguiçoso e indolente.
Vivendo em completa simbiose com a natureza, o
ribeirinho constitui uma sub-raça, que se apegou às
barrancas do rio. Delas não se afasta. De seus
antepassados, herdou o amor à terra barranqueira. O rio é
seu mundo, sua paixão e sua messe.
4
Os galos, como trombeteiros da manhã,
amiudaram o canto. Os pássaros canoros, na capoeira
em frente, deram os primeiros acordes da sinfonia
agreste, que se repetia todas as manhãs. A tépida noite
agonizava ferida pelos albores duvidosos da aurora, de
um vermelho sanguíneo, que surgiam no horizonte, pouco
a pouco, reverberando no céu, matando as estrelas,
espantando os espectros da noite e acordando o dia.
Manoel de Firmina, que mal havia cochilado um
pouco pela madrugada, abriu os olhos. No silêncio da
antemanhã, ele rememorou os fatos da noite anterior.
Estava ainda escuro e a onça poderia estar rondando a
casa.
– Essa porcaria de cachorro não presta pra nada.
Vai ver, ele tá tremendo no fundo do forno – pensou.
Um barulho na cozinha indicava que Maria, jovem
morena, na primavera da vida, havia levantado e estava
acendendo o fogo, como de costume.
Firmina acordou, espreguiçou-se e levantou.
Caminhou pelo quarto às apalpadelas. Com dificuldade
ela abriu a porta.
Um rato atravessou a cumeeira e desapareceu
entre as telhas.
Ele, taciturno pensou:
– Que diabo de noite comprida essa... Será que era
onça mesmo? E se não era?... Só podia ser.
Tranquilizou-se.
– Mas onça não tinha pisado n’água pra fazer
barulho... Será que não era o garrote do doutor Torquato?
Não se conteve. Onça ou boi? Era preciso
esclarecer. Ergueu-se de chofre e assentou-se na cama.
Segurou com as duas mãos a beira da cama, pensativo.
Levantou-se e, procurando não fazer barulho, saiu do
quarto. Atravessou a sala, abriu a porta da frente da casa
e ficou olhando para fora, indeciso.
Uma tênue luminosidade e a brisa fresca da manhã
entraram livres invadindo a sala. O terreiro em frente
estava fracamente iluminado pela débil luz da madrugada.
Tudo em volta estava calmo, tranquilo.
Ele assentou-se no batente da porta. No interior da
casa as mulheres principiavam os bulícios costumeiros.
Vênus brilhava a Leste um pouco acima da linha do
horizonte.
Não tardou muito e as galinhas começaram a
descer dos galhos, onde haviam passado a noite.
Umas poucas estrelas teimavam em permanecer
no céu. Nuvens escuras levantavam-se a Oeste, num
prenúncio de chuva. Aos poucos, o rubro clarão da
madrugada não era mais vermelho. À medida que o sol
nascia o irradiar do levante emergiu clareando o dia.
Ele deu alguns passos fora da casa. Uma juriti
passou voando sobre sua cabeça. Vagarosamente,
caminhou até a porteira do quintal e debruçou-se sobre o
pau superior. Olhou a estrada, sem coragem de abrir a
porteira.
Retransindo-lhe o medo, num gesto rápido de
repulsa, ele afastou-se, de costas. Uma palidez mortuária
cobriu seu rosto. Quedou-se por um breve espaço de
tempo, estupefato. Avizinhou-se novamente da porteira e
seus olhos passearam pelo chão nas proximidades. Os
rastos da onça estavam visíveis, bem perto da porteira.
– Ocês vem ver – gritou ele, com o rosto pálido, as
mãos trêmulas.
Uma casaca-de-couro, ave passeriforme de
coloração parda, que estava pousada em uma árvore
próxima, voou assustada.
Ele fixou as vistas nos rastos, assombrado.
Gritou, novamente:
– Firminaaaaa, ocê vem ver.
Um galo cantou.
Firmina, João, Alberto, Joana e Maria, mulher e
filhos, surpresos e sobressaltados, aproximaram-se quase
correndo.
Firmina
debruçou-se
sobre
a
porteira.
Estupidificada, pálida de espanto, com os olhos piscos, o
semblante sombreado pela consciência do perigo, ela
exclamou:
– Cruz-credo!
Maria, com os olhos desmesuradamente abertos,
olhou os rastos; a respiração cortada e uma expressão de
susto. Fitou o pai com admiração e disse:
– É rasto de onça, mesmo.
Manoel de Firmina confirmou com a cabeça.
Acalmando-se, Firmina voltou-se para Maria e
ordenou:
– Vá coar o café.
– Tem café, não. Pai derramou tudo ontem de noite
lutando com a gata.
Firmina remendou:
– Então faz chá de capim-santo e beiju de tapioca.
Manoel estava tenso, o rosto afogueado, os olhos
fitos nos rastos.
Pelo lado do poente grandes nuvens negras
começavam a cobrir o céu. Uma trovoada distante
anunciava a chuva, que não deveria tardar.
Firmina ficou algum tempo pensativa. De repente,
ela murmurou:
– Tou cansada de viver com medo de bicho nesse
ermo.
Voltando-se para o marido, disse:
– Nós podia mudar pra beirada do rio, que é mais
melhor... Lá não tem onça e na seca não falta água. Tou
ficando velha e não aguento mais buscar água no tempo
da seca.
A observação deixou Manoel de Firmina confuso,
mas ele logo protestou, em tom grave:
– Queta! Ocê tá ficando tantã! Deixar tudo que nós
fez só pro mode um gatinho à-toa? Aqui tem onça, mais
ninguém nunca morreu de susto e lá todo dia morre um
de sezão... Vou, não.
Abaixando a voz, ele completou:
– Onça tem pra todo lado.
Ela observou, com o rosto desanuviado:
– Já tá pingando. A chuva não tarda cair e vai ser
das grossa.
Relâmpagos riscavam o céu e o ribombar dos trovões
cada vez mais perto. O vento mais forte sacudia e retorcia
os ramos verdes das árvores da catanduva.
Entraram.
Na sala, ele bebeu um copo d’água. Sentou-se, em
seguida, no banco da sala balançando as pernas e olhou
para a mulher, que estava em pé na porta da frente.
Não tardou muito e Maria trouxe-lhe uma caneca
de chá com beiju. Ele bebeu um pouco, com um sorvo
lento.
Com os rastos visíveis do lado de fora da porteira,
a história que havia contado durante a noite havia se
tornado verdadeira. Firmina, interessada em ouvir mais
uma vez o desfecho da engendrada aventura, declarou,
com voz firme:
– Neco, ocê bem que podia ter matado ela. Era só
ocê ter esperado ela chegar mais perto.
Ouvira já por duas vezes, durante a noite, a
narrativa do marido. Como se tratava de um
acontecimento raro e singular, teria que ser contado
muitas vezes. Queria todos os pormenores, para repetir
nas conversas com suas amigas e para os netos, no
futuro.
Manoel começou a recontar minuciosamente a
história.
– Uai!... Já não disse qu’eu errei a distância? Tava
muito escuro. Já vinha pensando encontrar ela. Na hora
qu’ela pisou na água, tirei o facão da bainha, virei de
frente e fiquei esperando a intenção dela. Onça é bicho
danado. Ataca de frente, não. Só s’ela tiver com muita
fome. Eu parei, ela parou. Depois ela veio andando
devagarzinho pro meu lado, negaceando.
Firmina, excitada, cortou com as unhas um naco de
fumo e levou-o à boca para mascar.
A chuva batia com rajadas fortes sobre o telhado.
Dominado pelo entusiasmo, Manoel de Firmina fez
uma pausa. Olhou para a mulher e para os filhos
enquanto bebia o chá, avaliando os efeitos de seu
embuste.
Firmina estava aturdida. Extasiada com a narrativa
do marido, nem piscava os olhos.
Ele continuou:
– Pensei cortar uma zagaia, mas não deu jeito.
S’eu mexesse, ela corria e eu queria pegar ela... Esperei
a intenção dela... Devagarzinho, ela foi chegando mais
perto. Dava pr’eu ver direito, não, mas ela tava quase com
a barriga no chão, de tão baixa que tava...
Firmina estava extasiada, os olhos assustados.
– Calculei a distância e esperei o pulo.
De repente, Manoel de Firmina ficou de pé com a
mão no facão.
– Segurei o facão firme na mão... Tava tão perto
qu’eu vi o rabo dela mexendo dum lado pro outro.
Ele retirou o facão da bainha.
– Levantei o facão e saltei pra riba dela.
Firmina sentiu um líquido quente escorrer-lhe entre
as pernas, mas não ousou atrapalhar a narração, nem
mesmo sair do lugar onde estava. A urina escorreu livre e
quente. Desceu pelas coxas, pelas pernas e molhou o
chão. Ela esfregou a saia entre as coxas e cuspiu, no
canto da parede, um cuspe grosso e amarelado de fumo
mascado.
– Marquei o meio da testa dela, mas a bicha foi
ligeira. Ela pulou pra dentro do mato e sumiu... Inda fiquei
parado, esperando. Como não sou besta pra ser pegado
de tocaia, peguei o facão e comecei a bater na lata pra
fazer barulho.
Firmina retirou-se para a cozinha. Uma goteira fez
Manoel levantar-se do lugar em que estava sentado.
Lá fora a chuva, correndo em enxurradas pela
estrada, apagava os rastos e levava consigo a prova
material da grande aventura.
Manoel acocorou-se a um canto da sala, onde não
havia goteira. Verificou a existência da palha no bolso da
calça de algodão e começou a picar o fumo.
Maria, mais nova que Joana, era a responsável por
todos os serviços da casa. Lidava, ainda, na roça, no
plantio, na capina e na colheita. Suas mãos calejadas,
suas vestes de algodão e seus cabelos despenteados
escondiam a beleza de seu corpo. Era a bondade em
pessoa, mas não tinha afeição a ninguém. Os rapazes da
fazenda do coronel Brandão a cortejavam, mas não lhe
sobrava tempo para futilidades. O pai se encarregaria de
arranjar-lhe casamento, quando fosse tempo. Já estava
ficando madura, mas confiava a vida à vontade do pai.
Nunca ia a festas. Não tivera infância e, desde pequena,
ajudava nos serviços da casa. No isolamento de sua
morada, no centro da catanduva, tinha pouco contato com
pessoas estranhas.
Na cozinha, Firmina preparava o almoço: fava,
mandioca, arroz e carne de veado catingueiro, que João
havia abatido no dia anterior. Joana tinha ido à lagoa
apanhar água e estava de volta.
– Ocê não devia ter ido só, pode ser que a gata
não tenha ido embora... Por que ocê não encheu o pote
na bica na hora que tava chovendo?
– Esqueci.
Joana arriou o pote e, ajuntando a saia entre as
pernas, sentou–se no chão da cozinha, encostada à
parede.
Firmina enfiou a colher-de-pau na panela de arroz,
retirou um pouquinho e chupou.
– Tá insosso, mas fica assim mesmo. A carne tá
muito salgada.
Manoel pediu:
– Maria, traz fogo.
Ela apanhou, no fogão, um tição inflamado e o
levou para o pai acender o cigarro.
Manoel deu uma longa tragada e soltou uma
fumarada espessa.
A chuva havia passado já há algum tempo e o sol,
rompendo as nuvens, havia aparecido, mas Manoel,
absorto em suas reflexões, não tinha observado.
Maria perguntou:
– Pai, ocê não teve nem um tiquinho de medo da
gata?
– Medo como? Deu nem tempo de ter medo, não.
Manoel sentiu uma comichão no dedão do pé
esquerdo. Suspendeu a perna e olhou.
– Bicho-de-pé.
Com a ponta da faca esgravatou o dedo,
descobrindo a tunga, que foi puxada inteira. Uma
pequena bola branca e um olhinho preto.
Firmina apareceu na sala e informou:
– O almoço tá pronto.
Dirigiram-se todos à cozinha e cada um serviu-se
nas panelas.
Amassando com a mão um capitão de fava, farinha
e arroz, Maria comentou:
– Essa carne de veado tá gostosa.
O cachorro latiu insistente no quintal.
Manoel de Firmina levantou-se, deixou o prato em
cima do fogão e foi até a porta dos fundos. Ele sacudiu a
cabeça em sinal de contrariedade. Voltando-se para
Firmina, que estava sentada no chão da cozinha, ele
informou:
– A Mimosa saltou a cerca do terreiro. Vou tocar
ela pra fora. Essa vaca é sem jeito. Tá roceira demais.
***
Manoel de Firmina não voltou naquele dia à
fazenda do coronel Brandão. Era domingo. Iria no dia
seguinte.
Sua casa, coberta por rústicas telhas de formato
colonial, feitas por suas próprias mãos, era uma sentinela
avançada catanduva adentro.
Descobrira, em 1938, uma lagoa no centro do
agreste, em terrenos de propriedade do coronel Brandão
e propusera a compra de dez alqueires. Dera à lagoa o
nome de Água Nova. Ali, corajosamente, instalou sua
família.
Próximo à lagoa, na pequena mata, como um oásis
no meio da catanduva, fincou as raízes de sua vida. No
começo foi difícil. À noite as onças rondavam o rancho,
inicialmente construído para servir de abrigo, pondo seus
familiares em constante perigo.
A mulher e os filhos deram grande ajuda na
construção de seu mundo. O desbravamento, o arroteio
inicial daquela parte do sertão, foi uma tarefa familiar.
Derrubaram a primeira roça e, com a madeira que sobrou
da queimada, construíram as primeiras cercas.
Não tinham pressa. Contavam o tempo apenas por
duas etapas: a das águas e a da seca. As estações do
ano não se definem claramente nas terras tropicais do
sertão.
Manoel de Firmina pagou a propriedade lavrando
aroeira para os currais da herdade do coronel Brandão.
Em sua modesta vida de sertanejo, ele era um homem
feliz. Na aparente indigência de sua condição social não
existiam problemas, nem preocupações maiores. Nascido
de família humilde, sem os bens necessários à vida, era
um homem acomodado com os infortúnios e, por isso
mesmo, era alegre. Mourejava de sol a sol, alimentandose com o produto de sua lavoura. À noite, dormia
tranquilamente em sua cama de varas. Não tinha
ambições e nada devia.
Quando era chamado, prestava serviços ao coronel
Brandão, sem se descuidar de sua lavoura. Não tinha
vícios outros além do cigarro. Suas mãos, empedernidas,
encardidas e grossas, eram cheias de calos. Não
poupava o corpo no serviço. As Folias de Reis, no mês de
janeiro, eram seu único divertimento, que não chegavam
a ser uma diversão; era uma devoção mística, um dever
religioso.
5
A rotina da viagem automatizava todos os
movimentos a bordo do vapor.
As águas do rio, douradas pelo resplendor do
astro-rei, desciam mansamente, alisadas pelas mãos de
invisíveis nereidas.
Os lugares nas mesas estavam definidos e as
refeições. sempre as mesmas: arroz, feijão aguado,
macarrão, carne, batatinha e, às vezes, peixe. Como
sobremesa, uma fatia transparente de goiabada. Os
passageiros da segunda classe, que se confundia com a
sala das máquinas, flagelados do Nordeste, comiam por
último, sem direito a sobremesa. Eles subiam o rio com
destino a São Paulo ou Paraná, uma nova fronteira
agrícola. Contrastes que promovem o equilíbrio da vida.
Zélia, na porta da cozinha, meio acanhada,
estendeu a mão frágil, com o prato vazio.
O cozinheiro, como se não notasse sua presença,
foi atendendo aos outros até que ela ficou sozinha. Olhoua com firmeza. Ela estendeu a mão entregando-lhe o
prato.
– Ocê precisa ter pressa, não. Pode vir sempre por
último. Vou servir pr'ocê comida da primeira classe... Não,
comida do Comandante – explicou ele. – Venha receber
aqui dentro.
O cozinheiro afastou-se para um lado, indicandolhe, com a mão, a porta livre para sua passagem.
Ela baixou os olhos sentindo-se empalidecer.
Estava com fome, mas não tinha a quem recorrer. Seu
rosto cobriu-se com um véu de tristeza. Voltou de mãos
vazias para sua rede, em frêmitos de emoções
desconhecidas.
Uma moça loira, passageira da primeira classe, na
venturosidade dos trinta anos, olhos fúlgidos azuis claros,
em seu camarote, frente a um espelho de mão, passou
ruge na lateral das faces e completou a maquilagem do
rosto com pó de arroz. Passou batom nos lábios e saiu
em passos oscilados. Desceu os degraus da escada que
levava à segunda classe, para passar o tempo.
O foguista abastecia a caldeira com lenha recolhida
no último porto de lenha. Como formigas abastecendo o
formigueiro, os marinheiros haviam transportado a lenha
do porto para o vapor – meio metro cúbico de cada vez –
descendo o barranco alto, com o corpo vergado sob o
peso da madeira. A lenha arrumada na proa, em frente à
boca da caldeira, seria queimada até o próximo porto,
onde a cena se repetiria.
As cidades e os portos-de-lenha eram as únicas
novidades a quebrar a fastidiosa uniformidade da viagem.
Ouvindo o resfolegar da máquina a vapor e
passando por baixo dos punhos das redes multicoloridas
dos passageiros da segunda classe, amontoadas na sala
de máquinas, a moça loira, monopolizando a atenção dos
flagelados, parou junto a uma senhora que lavava roupa.
– Boa tarde, Dona... De onde é que a senhora tá
vindo?
A senhora levantou os olhos meio desconfiada,
cenho carregado.
Houve um silêncio que constrange.
Ela olhou a moça loira sem saber se devia ou não
responder. Preferia não puxar conversa; remoer sozinha
os mistérios de sua vida. Além do mais, em que poderia a
moça ajudar? Ninguém ajuda ninguém.
A moça loira passeou o olhar pelas inúmeras
redes.
– Nós veio da Paraíba – informou a senhora.
– A senhora e quem mais? Sua família está a
bordo?
– Adonde?
– Aqui no vapor?
– N’nha, sim. Eu e o João.
– Seu marido?
– N’nha, não.
– Seu filho?
– Ela fez que sim com a cabeça.
– E seu marido?
– Morreu no caminho. Nós era cinco. Nós saiu de
casa faz pra mais de dois mês.
– E os outros? Também morreram no caminho?
A senhora com a mão enxugou o suor do rosto.
– N’nha, sim. Eles morreu na caatinga. A Eva foi
bicho-ruim que matou.
– Vocês vão pra onde?
– Nós tá querendo ir pra São Paulo.
Sem saber o que mais perguntar, a moça loira
questionou:
– O dinheiro dá para viagem?
O rosto dela corou levemente. Com expressão fria,
ela respondeu:
– Tem dinheiro, não! O dinheiro tá acabado. Seja
como Deus for servido!
Por mais que a jovem loira procurasse puxar
conversa, não conseguia um relato completo, uma história
seguida. Eram sempre respostas secas às suas
perguntas, com poucas palavras, como é do feitio do
sertanejo. Ele não esclarece dúvidas, não relata fatos.
Vive introspectivamente na penúria de sua existência.
Antigamente extravasava sua revolta no cangaço, como
jagunço ou mulher de cangaceiro. Hoje, nem isso lhe é
permitido. A civilização eliminou o cangaço, porém, não
as suas causas.
– Quantos anos a senhora tem?
– Como? – perguntou assustada.
– Qual é sua idade?
– As era, sei certo, não. Nasci na seca de nove.
A moça loira fez as contas: trinta e nove anos. Só
trinta e nove anos e tão acabada!
– A senhora tem certeza?
– N’nha, sim.
Próximo à lavadeira, deitado em sua rede, um
vetusto emigrante, aparentando sessenta anos, magro,
com sua atávica cabeça cearense, olhou para a moça e
procurou entabular conversa:
– Mais oito dia de viagem e nós chega em
Pirapora.
– O senhor também vai pra São Paulo?
– Nós tudo vai... O pior é a espera em Pirapora,
mas já tou acostumado.
– O senhor conhece São Paulo?
– N’nha, sim. Com essa já fiz nove viagem. A gente
vai e volta.
O nordestino não esquece a terra mãe. Ele emigra
e remigra numa sequência interminável.
– O senhor tem parente? – questionou a moça
loira.
O ancião levantou-se e se aproximou da moça
loira.
– N’nha, sim. Ontem mesmo morreu um netinho de
sezão. Filho daquela ali – falou contristado, apontando
para uma mulher não muito distante. – Nós enterrou ele
no porto de lenha. Tava longe da cidade e não dava pra
esperar.
A moça loira disse:
– No mar, jogam os mortos na água, mas eu li, não
me recordo bem se foi em Graciliano Ramos ou Jorge
Amado, que nos vapores do São Francisco jogavam os
mortos no rio.
– Joga, não senhora – informou um marinheiro, que
estava ouvindo a conversa. – Se o corpo pode esperar, é
enterrado na primeira cidade. Se não pode, o
Comandante autoriza o sepultamento no primeiro porto de
lenha.
– Oxente! Como é que pode deixar um cristão sem
sepultura? – reclamou uma senhora da rede ao lado.
A moça loira pensou, batendo a cabeça
afirmativamente:
– Foi em Jorge Amado, Seara Vermelha. Parece
que foi.
Em complemento, ela explicou:
– No mar não tem outro recurso. Não tem terra por
perto.
Voltando-se para o velho, perguntou:
– Por que a demora em Pirapora?
O velho encolheu os ombros e, falando devagar
quase contra a vontade, afirmou:
– A passagem nos trem de imigração demora sair.
Quem não tem dinheiro pra esperar passa muito mal...
Não tem serviço... Os novato, sem dinheiro, tem que pedir
esmola. As moça se perde pra ganhar dinheiro.
O ancião completou suas palavras com ar triste,
como se recordasse algum parente, uma filha vítima da
viagem.
A jovem loira sentiu um aperto no coração.
Voltando-se para a velha, retirou da bolsa uma cédula de
dez cruzeiros e inclinando-se, disse:
– Toma... É para ajudar em Pirapora.
Afastando-se de volta à primeira classe ela disse,
distraidamente:
– Bonne chance.
A velha não entendeu e, por isso, nada respondeu.
No fundo da rede, Zélia soluçava baixinho. Com a
unha grande e suja, coçou a pereba da perna, retirandolhe a casca.
– Que ocê tem menina? – perguntou uma senhora
alta e magra, que passava.
Ela suspirou.
– Nada... Tou com dor de dente.
A noite chegou com uma brisa leve e fria. O vapor
navegava pelo canal, próximo ao barranco da margem
direita.
Zélia foi apanhar a comida. Encontrou o cozinheiro
com o mesmo olhar de desejo, a mesma autoridade. Ele
era o dono da comida.
– Depois das dez, aqui na cozinha. Tá combinado?
Embora insultada com o atrevimento do cozinheiro,
com um gesto de afirmação ela, sem olhar para ele,
concordou e recebeu a comida.
Quando todos dormiam, ela entrou na cozinha. Ele
agarrou-a, puxando-a para seu colo.
– Amanhã ocê vai comer da comida do
Comandante.
6
Sucederam-se os dias.
Era uma tarde quente e ensolarada, o vento fresco
de inverno balançava as copas das árvores da densa
vegetação arbórea, que debrua a modesta casa, isolada
no meio do agreste.
Alberto, o segundo filho de Manoel de Firmina,
chegou em casa sentindo-se cansado, após um dia de
produtivo trabalho, vindo do roçado, da lavoura de
subsistência da família.
O dia estava ainda claro, o sol brando.
Ele sentiu no rosto o roçar das asas leves do vento.
Passeou os olhos pelo terreiro da casa, antes de entrar.
Na sala, recostou a enxada em um canto de parede e
bebeu uma caneca de água, que retirou do pote de barro
cozido, instalado em um canto de parede sobre uma
forquilha de angico. Saiu e sentou-se no tosco banco de
madeira, que sempre esteve instalado fora da casa,
próximo à parede, ao lado da porta de entrada.
A casa era de construção simples, de esteios de
aroeira, paredes de adobe, uma espécie de tijolo cru,
seco ao sol; era coberta de telhas, e oferecia segurança,
sem conforto. Nela vivia com seus pais, um irmão e duas
irmãs, mas ele não dava cuidado a nenhum deles. Eles
não faziam parte de seu sonho.
O uso da enxada, da foice ou do machado, os
serviços diários na lavoura eram por ele executados a
contragosto. Assentado no banco, ele observava a
capoeira em frente, mas não via o verde das árvores, nem
ouvia o canto dos pássaros, que saltitavam de galho em
galho, nem sentia o sopro ameno do vento. Na solidão de
sua individualidade, não tinha a alegria de um lavrador e
não se satisfazia em conversar com os pais ou com os
irmãos sobre as atividades diárias de sua vida monótona.
Os dias eram sempre iguais e ele nem sempre se
incomodava em saber que dia era da semana, exceto os
domingos, quando aproveitava a folga obrigatória para
andar à toa. Nessas folgas semanais, ele sempre arriava
o cavalo e descia para a beira do rio São Francisco, uns
poucos quilômetros distante de sua casa, para dar apreço
à beleza de suas águas, ao branco de suas praias, ao
colorido das aves ribeirinhas. Ele observava em silêncio a
vida do rio. Não pertencia a ela, mas ele escutava o rio.
Em silêncio conversava com ele porque o rio integrava o
seu sonho. No silêncio de suas águas, o rio o escutava.
Sentado no banco, todos os dias, ele sonhava
acordado. Tinha um sonho que talvez não se realizasse
nunca, mas ele sonhava e era para ele um grande sonho,
que alimentava sua vida.
Em casa tinha água, comida e roupa lavada, que
embora fossem simples, lhe satisfaziam as necessidades
do corpo. Mas o seu coração lhe dizia que este não era o
seu mundo e ele sempre procurava ouvir a voz de seu
coração, quando estava sonhando. A esperança de
realizar o sonho era a razão de ser de sua existência. Ela,
a esperança, era sua companheira de todos os momentos
de sonho e esses momentos eram cada vez mais
presentes.
Seus olhos se fixaram na capoeira, de forma
indefinida, mas ele não via a capoeira. Ele, em devaneio,
via o frondoso tamboril da lagoa e se identificava com ele.
Ele – o tamboril – era parte de sua vida porque integrava
o seu sonho; sonho que se adensava cada dia mais forte
em seu espírito, como um ideal dominante. Muitas vezes,
quando regressava da roça, no fim do dia, parava sob sua
copa e, encostado em seu tronco, sonhavam juntos. Ele
conversava com a árvore e ela entendia a sua fala porque
também ela tem vida e tudo que tem vida é capaz de
compreender o sentido da existência.
Pelos lados do poente, o céu tingiu-se de vermelho;
o sol havia descido, concluindo sua viagem diária e ele
não tinha visto o tempo passar. Sonhava com seu sonho.
O vento soprava em forma de uma leve brisa e acariciava
seu rosto. O vento levava seu sonho para os lados do rio.
Escureceu sem que ele tivesse presenciado o
crepúsculo. O calor da tarde começou a abrandar. A brisa
norma tornou-se ligeiramente mais forte. Não tardou e a
lua cheia surgiu no horizonte, iluminando a capoeira. Uma
lua grande de um vermelho desbotado. A fraca luz da lua
iluminou seu rosto e ele pensou como seria a lua quando
realizasse seu sonho.
Suspirou.
7
O vapor aproximava-se da corredeira do
Sobradinho, a mais perigosa passagem do rio.
O Comandante, com seu porte hierárquico, rosto
diariamente escanhoado, subiu para a cabine de
comando, como sempre fazia em todas as viagens, onde
o prático de serviço dirigia os movimentos da
embarcação.
A convite do Comandante, a moça loira,
extremamente alegre, o acompanhou, interessada que
estava em todos os pormenores da viagem. Ela sorria
satisfeita.
As margens do rio se estreitaram, e suas águas,
com a superfície enrugada e irisada pela luz forte que
ondulava sobre elas, desciam em correnteza.
Os passageiros saíram de seus camarotes e
observavam, apreensivos, os preparativos para a subida
da corredeira.
O maquinista, obedecendo às ordens de comando,
dera força total às máquinas, enquanto o foguista
carregava a caldeira, aumentando a pressão.
O vapor subia vagarosamente como se estivesse
fatigado, apesar do acréscimo de força. A correnteza
aumentava com a aproximação da corredeira.
O prático agitado, pelo telégrafo, acionando o
tímpano, pediu marcha. Com os olhos fitos no primeiro
portão, movimentou a malagueta com força para a direita,
para logo em seguida desmanchar o leme, fazendo a
malagueta voltar ao ponto inicial. Com a mesma rapidez,
iniciou nova manobra, quando o barco já se aproximava
da Criminosa.
O sorriso havia se desvanecido do rosto da moça
loira.
A correnteza forçava a embarcação para trás em
luta aberta e franca com a força das máquinas. O prático
moveu nervosamente o tímpano, pedindo marcha,
embora soubesse que as máquinas já estavam com força
total.
Vagarosamente, o vapor foi vencendo o vigor das
águas, subindo cansado. Pela chaminé soltava um
turbilhão de fumaça, nascida da combustão da lenha. A
roda batia forte na água, espadanando um lençol de
espumas e formando, na esteira da embarcação, uma fila
simétrica de maretas, que iam diminuindo de intensidade
à medida que o vapor se afastava delas.
O foguista abriu a caldeira. O fogo veio a seu
encontro, em labaredas grandes e vermelhas. Apanhou
uma tora de lenha e, movimentando os braços com
maestria, fê-la passar pela estreita boca e cair no centro
da caldeira. Outra tora, mais outra, até completar a carga.
O Comandante refletiu por instantes e explicou:
– Estamos vencendo o primeiro portão. Logo ali,
bem perto do casco, está a pedra Criminosa, que dá
nome a esta passagem.
A moça loira franziu a testa.
Na sala de máquinas, todas as válvulas estavam
abertas. A caldeira cheia de lenha, com pressão total.
O Comandante deu um suspiro de alívio logo que o
perigoso escolho foi deixado para trás.
Segurou o braço da jovem loira e apontou para o
segundo portão, como a indicar novo perigo a ser
vencido.
As águas voltaram à carga, agora com mais força,
fazendo o vapor dançar de um lado para outro,
desobedecendo ao leme. Outro prático segurou firme a
malagueta, auxiliando o primeiro. Um instante pavoroso.
O Comandante nervoso, o coração batendo rápido,
as faces ligeiramente contraídas, olhos fixos na
Criminosa, procurando disfarçar sua ansiedade explicou,
com tom solene:
– Esta é a passagem mais perigosa do rio... A
única realmente perigosa, mas nunca houve caso de
naufrágio. Se o rio tivesse com mais água, a passagem
seria mais tranquila.
Com segurança e perícia, os práticos comandaram
o barco por entre as pedras, vencendo a correnteza e
deixando para trás os três portões da Corredeira do
Sobradinho: o da Criminosa, o Dois de Julho e o Sessenta
e Três.
A correnteza havia serenado. Navegavam agora
em águas calmas.
A moça loira perguntou:
– Por que não navegamos sempre pelo meio do
rio? Ora estamos em uma margem, ora na outra, fazendo
um percurso mais longo que o necessário.
– Temos que procurar o canal para navegar, isto é,
o local mais profundo do rio... Todos os anos, após as
cheias, o canal muda. Hoje estamos navegando pela
margem direita; neste ponto, no próximo ano, poderá
nascer uma coroa e o canal passará para a outra
margem... Os práticos conhecem as águas rasas e as
profundas, mesmo navegando durante a noite.
O Comandante segurou carinhosamente no braço
da moça loira e convidou:
– Podemos descer, se lhe agradar.
Ela sorriu, em resposta.
Enquanto desciam as escadas, ela perguntou:
– Já houve casos de naufrágio de vapores, no rio?
Ele, homem de média idade, cabelos já grisalhos,
corpo quase atlético, olhos castanhos penetrantes,
sacudiu a cabeça afirmativamente e respondeu:
– Na passagem do Sobradinho, não. Mas, já houve
vários, naufrágios. Alguns com vítimas. O Antônio Olinto
naufragou em 1926, perto de Cabrobó. Morreram nove
pessoas, entre elas, dois soldados da polícia baiana que
haviam lutado contra os revoltosos da Coluna Prestes...
Estavam feridos.
Sentaram-se a uma mesa, no tombadilho. O
Comandante chamou o Taifeiro e pediu dois cafezinhos.
A conversa continuou pelo mesmo teor.
– O Rodrigo Silva naufragou em 1898. Foi o
primeiro naufrágio no rio, depois da navegação a vapor. O
barco chocou-se contra uma pedra e naufragou. Não
houve vítimas.
O Comandante fazia esforços mentais para se
lembrar. Tinha quarenta anos e era mediano de altura.
Não era gordo, nem magro.
A moça loira, atenta e curiosa, bebeu o café,
olhando para ele com ar interrogativo, como a pedir mais
informações.
Ele desviou o olhar, procurando manter-se calmo e
indiferente.
Ouve-se um apito. Logo depois, outro.
O Comandante virou-se para a margem oposta do
rio, por onde passava, naquele momento, outro vapor.
Identificando-o, declarou:
– É o Djalma Dutra, que vai descendo para
Juazeiro.
Os dois barcos navegavam em sentidos opostos.
Os passageiros aproximaram-se da grade. O
Comandante e a moça loira seguiram o exemplo.
O rio São Francisco apresentava-se, neste ponto,
bastante largo e profundo. A moça loira ficou maravilhada
com o fascinante espetáculo, quase medieval, do
cruzamento de dois barcos, em pleno canal do rio.
Fabricados, ambos no último século, navegavam ainda
com gala e segurança naquele ano de 1947, prestando os
mesmos serviços.
Os passageiros cumprimentaram-se com alegres
acenos de mão.
O Djalma Dutra, ostentando na chaminé o
emblema da Viação Baiana, subia para o Norte, descendo
as águas morenas do Velho Chico, enquanto o
Wenceslau Braz descia para o Sul, subindo o rio e
levando estampado o símbolo da Empresa de Navegação
Mineira.
– Aquele ali – disse o Comandante, apontando
para o Djalma Dutra, teve, em 1936, um malsinado
incêndio perto da cidade de Xique-Xique. Alguns
elementos da tripulação foram acusados de sabotagem...
Acusação injusta, como ficou provado mais tarde.
Problema de ordem política e ideológica. Em todo
acidente, naquela época, tinha que haver um bode
expiatório para ser acusado de comunista.
– Como assim?
– Você não entende. Não é do seu tempo... Coisas
da política.
A moça loira encolheu os ombros.
– Não entendo nada de política e nem quero
entender.
– O incêndio havia sido provocado por fagulhas da
chaminé, lançadas no barco, pelo vento... O governo não
podia perder a oportunidade... Alguém tinha que ser
responsabilizado como comunista. Coisas da época.
O Djalma Dutra desapareceu, finalmente, em uma
curva do rio.
A sineta anunciou a hora do jantar. O Comandante
e a moça loira encaminharam-se para a mesa de
costume. Durante as refeições estavam sempre juntos,
conversando sobre as coisas do rio.
Os olhos da moça loira caminhavam pelas margens
do rio, enquanto o Taifeiro servia o jantar.
Todos os passageiros da primeira classe estavam
no salão.
– Você é supersticiosa? – perguntou o
Comandante.
– Depende! Nem sim, nem não. Por quê?
– Muita coisa acontece por coincidência, mas o
povo sempre põe a culpa nos dias que são considerados
de azar... O Costa Pereira, por exemplo, naufragou no dia
13 de agosto, em 1934... Faleceram quatro pessoas.
– É mesmo? É muita coincidência... Dia e mês.
Agosto sempre foi um mês aziago.
– Superstição. Não existem dias ou meses
nefastos. Foi pura coincidência.
– Passe a carne, por favor – pediu a moça loira a
um rapaz gordo e moreno, que estava sentado à sua
direita. – Obrigada.
O Comandante continuou:
– Um dos naufrágios mais desastrosos foi o do
Newton Prado, ocorrido em águas do Rio Grande,
atualmente o único afluente navegável. Ele ia de Barreiras
para Juazeiro... Muitas pessoas perderam a vida.
Felizmente, nos últimos anos, não tem havido naufrágio...
Na Mineira nunca houve casos de naufrágio... Dos nove
vapores que naufragaram, oito eram da Baiana e um da
Companhia Indústria de Pirapora.
– Isto tranquiliza a gente... O Wenceslau é da
Mineira, não?
– Claro.
– Já era tempo de melhorarem a navegação, com
barcos novos, mais velozes!
– Na época da guerra foram construídas, em New
Orleans, nos Estados Unidos, barcas especiais,
destinadas ao transporte de soldados e de materiais
estratégicos, mas naufragaram no mar antes de
chegarem ao Brasil.
A moça loira observou:
– Mas a guerra já acabou há muito tempo.
O
Comandante
balançou
a
cabeça,
afirmativamente.
– E com ela também desapareceu o interesse pelo
rio São Francisco, mas temos esperanças nos projetos do
presidente Dutra.
A moça loira fixou os olhos no Comandante, com
simpatia, deixando transparecer um pouquinho de
interesse. Seria capaz de amar aquele homem sério e
responsável, de trato lhano, que sabia tudo sobre o rio.
Seus olhos se encontraram. Ele fixou nela seu olhar
penetrante, quase magnético.
O jantar havia terminado.
– Houve, no passado, algumas tentativas de
melhoria da navegação. Em 1927, o doutor Geraldo
Rocha construiu um deslizador, que fez a viagem de
Pirapora a Juazeiro em apenas vinte e quatro horas... Foi
um recorde até hoje não batido... Não se sabe por que
não houve continuidade ou mesmo aperfeiçoamento do
barco do doutor Geraldo.
– Quantos dias gastam os vapores nesta viagem
que estamos fazendo?
– Nossa viagem é bem mais demorada... Se não
houver uma providência do governo, dentro de poucos
anos não haverá mais navegação no rio. As enchentes
anuais provocam o solapamento dos barrancos e a areia,
acumulada pela erosão, está provocando o assoreamento
do leito do rio.
Ela escutava-o, atentamente. Observava sua
maneira de falar, o movimento dos lábios grossos e
sensuais. Sentiu o desejo crescendo dentro de seu corpo.
Queria continuar a ouvi-lo.
– Qual a origem do nome do rio? – perguntou por
perguntar.
– O rio foi descoberto pelo português João da
Nova, que chegou à sua foz no dia quatro de outubro, dia
de São Francisco; daí, o seu nome. O rio São Francisco
era conhecido, pelos índios, pelo nome de Pará ou Opará.
Alguns historiadores afirmam que ele foi descoberto pelo
navegador Américo Vespúcio. Outros dizem que por
Gonçalo Coelho. É um fato controvertido.
O salão já estava deserto.
O vapor batia compassadamente a roda.
Depois de um silêncio, ela lembrou-se da conversa
com os flagelados, na segunda classe, e questionou:
– Eu não ouvi uma única vez alguém falar em
navio. Todo mundo fala em vapor, quando se refere ao
barco, mas lendo o livro de Jorge Amado, Seara
Vermelha, ele fala sempre em navio, e somente uma vez
em vapor, referindo-se a uma viagem feita por flagelados
pelo rio São Francisco.
– Ele não deve ter navegado pelo rio, antes de
escrever o livro. Navio é no mar; aqui no rio, é vapor. Uns
poucos falam gaiola, mas não é muito usado.
– Também achei estranho quando ele afirma que
os corpos dos flagelados mortos, por diarreias e outras
doenças, eram jogados no rio para as piranhas comerem.
– Não – disse o comandante com firmeza. – Isto
nunca acontece, nem aconteceu. Nós, quase todos os
dias, passamos por uma cidade e, pelo menos uma vez
por dia ancoramos em um porto de lenha. Não justifica
jogar os corpos no rio.
O Comandante informou:
– Eu li em Seara Vermelha. Creio que ele fez esta
afirmação para reforçar a sua posição doutrinária ou como
mecanismo de conveniência e de estratégia de sucesso,
ou mesmo como planejamento político. Vale a
intencionalidade. O propósito dele foi reforçar a mostra
das desigualdades sociais.
A meia voz continuou:
– Seara Vermelha, como outras obras dele,
representa uma visão explicitamente ideológica. Integra a
sua fase de militância política comunista.
A moça loira pensou:
– Tenho certeza que sim. Sherazade inventava
histórias para sobreviver.
Ela disse, com um leve sorriso:
– Já li que, na Índia, eles jogam os corpos dos
defuntos no Rio Ganges e as pessoas tomam banho em
suas águas para "se purificarem".
– Aqui nós não fazemos isso.
Ela, mudando de assunto, questionou:
– Não entendo por que não servem peixe com mais
frequência, a bordo. O cardápio é sempre o mesmo. Só
comemos peixe duas vezes.
– Nós não pescamos – informou o Comandante. –
Nas cidades, compramos carne, que é mais fácil de
conservar.
– É! Mas, no mesmo livro, eu li que a bordo
serviam peixe com abundância e muito gorduroso.
– Por estarmos sobre as águas do rio, pode ser
esta a ideia de quem não viajou pelo rio. Não houve
intenção de enganar. Santo Agostinho declarou que
“quem enuncia um fato que lhe parece digno de crença ou
acerca do qual forma opinião de que é verdadeiro, não
mente, mesmo que o fato seja falso”.
Ela olhava para ele, com os olhos fixos, sem se
moverem, brilhantes.
– Já é tarde; não há mais ninguém no salão – disse
ele.
Ela mirou-o firme nos olhos à espera de uma ação,
de um gesto.
Levantaram-se.
Ela espreguiçou-se.
Ele estendeu-lhe a mão.
– Boa noite. Durma bem – disse, ao apertar
ligeiramente a mão que ela lhe ofereceu.
Ela ruborizou-se e permaneceu parada a olhá-lo.
Não demonstrava qualquer interesse. Não se traía,
embora fervilhasse de desejo de ter aquele homem, de
ser possuída por ele.
Ele, aproximando-se dela, disse com brandura:
– Você está trêmula... A noite está um pouco fria.
Ela entreabriu ligeiramente os lábios escarlates e
os seus olhos lhe transmitiram o desejo que crescia, que
se avolumava. Mordeu o lábio inferior e abaixou os olhos,
sem retirar a mão, que continuava presa à mão pesada e
firme do Comandante.
Ele, após um olhar cuidadoso pelo salão, puxou-a
para junto de si, apertando-a em seus braços. Seus lábios
se juntaram, num prenúncio de posse. Ela fechou os
olhos, enquanto seus lábios eram sugados entre os dele.
O Comandante afastou-se dela e, segurando-a
pela mão, arrastou-a para seu camarote. Ela sentiu no
rosto o sopro frio da brisa da noite e seus ouvidos ouviram
o bater cadenciado da roda do vapor nas águas do rio.
Enquanto subiam as escadas, ele enlaçou-a pela
cintura, com seu braço forte.
Ela suspirou.
8
Em uma tarde, nos últimos dias de dezembro,
Manoel de Firmina, regressando da cidade, aproximou-se
da mulher e disse:
– O coronel Sizenando tá carecendo de uma
pessoa pra ajudar nos serviços da casa dele lá no
comércio.
Parou um pouco e prosseguiu:
– Prometi mandar uma das menina pra lá. Pensei
na Joana. Ela pode inté estudar. Só não sei se o coronel
Brandão vai concordar.
– Vosmecê é quem sabe – disse Firmina.
***
Na manhã seguinte, como de costume, Alberto
levantou-se com as galinhas. Antes do café e de o sol
nascer, apanhou a foice e levou-a para os fundos da casa
para passá-la na pedra de amolar, momentaneamente
esquecido de seu sonho.
No ar, ainda presente um cheiro do sereno da
noite. O céu já claro, de um azul brilhante.
Seria mais um dia de trabalho. Olhou para a lâmina
da foice e ficou a contemplá-la, sem fixar nela o
pensamento.
Um galo cantou, no fundo do terreiro.
Com a participação do pai e do irmão mais velho,
estava concluindo os serviços de roçada no pequeno
pasto à beira da lagoa da Água Nova.
Além de seu sonho, estava enamorado de Isabel,
uma bela mulata, filha de um casal vizinho, a quem havia
já pedido em casamento. Apenas não tinha ainda se
disposto a definir a data. Não estava certo se deveria
realizar seu sonho e casar depois, ou casar e realizá-lo
em companhia da moça. Casado, ficaria preso às
obrigações maiores e poderia desistir de seu sonho. Teria
que construir casa e permanecer na pequena propriedade
de seu pai. Solteiro, seria mais fácil, mas Isabel estava já
integrada como parte de seu sonho. Mas nada tinha dito a
ela. O sonho ainda era só seu. Tinha vontade de
compartilhar com ela, mas não sabia se podia contar com
sua solidariedade. Ela não era como o tamboril ou como o
rio, que sabiam respeitar seus sentimentos. Seu sonho
estava além da fronteira da sensibilidade.
Antes de alcançar o pasto, passou pela margem da
lagoa. Aproximou-se do vetusto tamboril. Passou a mão
carinhosamente pelo tronco e olhou para a copa, medindo
a sua altura.
Roçar pasto, derrubar árvores, plantar roça, não era o seu
sonho. Ele apenas cumpria um ritual, com a técnica
aprendida por ver fazer.
De volta para casa, quando o sol declinava, pensou
em conversar logo com seu pai para informá-lo de seu
sonho. Mas, com uma ruga de contrariedade, não
conversou. Não era hora, apesar de sentir um vazio em
sua vida.
***
Final de tarde, penumbra de indecisão.
As primeiras horas da noite trazem o mistério da
existência, na incerteza da presença da luz.
O silêncio aparente do fim da hora crepuscular caiu
sobre a capoeira.
Alberto desceu para a lagoa, para tomar banho.
Na cozinha, Maria acendeu a candeia de azeite de
mamona.
Pouco depois, Alberto ganhou a sinuosa estrada
que demanda à casa de Isabel. Uma extensão de pouco
mais de dois quilômetros de mato, em terreno plano. Não
tinha pressa. Não era um escravo do tempo.
No céu brilhavam, com suas mágicas presenças,
miríades de estrelas.
Na calma da noite ele caminhava com o
pensamento fixo da imagem de Isabel, que deveria estar
em casa, esperando por ele. Essa aparente alegria não
afastou a dor da incerteza, que lhe corroía o espírito, em
busca de seu sonho. O mato, em volta, estava verde; de
um verde escuro, mas ele não enxergava as árvores. De
repente, começou a imaginar como seria sua vida quando
realizasse o seu sonho.
***
Isabel, após concluir as tarefas caseiras, assentouse em um tamborete, na cozinha, pensando se ele viria ou
não naquela noite. A imagem dele veio-lhe à mente com
aquele sorriso alegre, o corpo forte, os olhos brilhantes.
Rumores atenuados de vozes, vindos da frente da
casa, chegaram aos seus ouvidos. Ela lançou
furtivamente um olhar para a porta, que dava para a sala,
e escutou.
– Deve ser ele – pensou.
Na expectativa da esperança, subiu os olhos pela
tosca parede de pau-a-pique, sem reboco.
Assustou-se quando o pai, assomando à porta,
disse:
– Seu Alberto tá te esperando na sala.
O pai fazia gosto com o casamento, que esperava
fosse para breve.
Isabel sorriu.
– Já tou indo – informou, enquanto se levantava do
tamborete.
Na porta intermediária entre a cozinha e a sala ela
parou, perfilada e sorridente. Sentiu uma sensação de
calor e seu coração bateu forte. Os seios rijos balançaram
no compasso da respiração. Abriu uma expressão amável
e, com naturalidade, atravessou a sala, indo ao encontro
dele.
9
A moça loira, deitada no camarote, abriu o livro O
Ateneu, de Raul de Pompeia, conceituado jornalista
carioca, que se suicidou na força da idade viril, aos 32
anos, e entrou a ler:
“Com o progresso humano, o sentimento artístico
da simetria e da harmonia destacou-se
analiticamente da arte de amar. É, depois da arte
primordial, descendente imediata do instinto erótico
da qual se depreendera, sob a forma selvagem das
interjeições primitivas, a arte da eloquência; e em
seguida, sob a forma de expressões homométricas,
a poesia popular e a primeira música; nasceram as
artes intencionais, de imitação, da escultura, da
arquitetura, do desenho. Depois da poesia popular,
amorosa ou heroica, veio a rapsódia”.
“Ainda mais, segundo um traçado naturalíssimo de
filiação, o sentimento de simetria, trasladado para a
esfera das relações sociais, serviu de plano à
organização das religiões, filhas do pavor, e das
moralidades, invenção das maiorias de fracos. Com
o predomínio insensato das religiões, o amor
deixou de ser um fenômeno, passou a ser um
ridículo ou uma coisa obscena.”
Ela fechou o livro, saiu do camarote, desceu para a
sala de máquinas, e começou a conversar com o primeiro
marinheiro que encontrou.
Logo o vapor deu um apito longo, seguido de
outros curtos e consecutivos.
– Nós tá chegando na cidade da arrelia – disse o
marinheiro.
– O senhor disse “da arrelia” ou eu ouvi mal?
– Sim, senhora, da arrelia. São Francisco é a
cidade da arrelia. Cada cidade do rio tem sua qualidade
nos coplas do barranqueiro... São Francisco é da arrelia,
Januária da cachaça, São Romão da feitiçaria e Pirapora
da putaria. Remanso é da valentia, Pilão Arcado da
desgraça.
– Que coisa mais engraçada! O senhor sabe de
todas?
– Sim, senhora. Todo marinheiro sabe, mas tem
cidade que não gosta. Se a gente canta, dá briga... Em
São Francisco, eles fala que a cidade é da alegria... A
senhora é baiana?
– Não. Sou carioca. Então estamos chegando na
cidade da arrelia!
– É!... São Francisco é a terra da arrelia.
– Tinha outra impressão de Pirapora. Dizem que é
uma cidade evoluída.
– Sim, senhora. Muito evoluída. Lá tem de tudo. As
moça chega de vapor sem dinheiro. Não acha serviço,
nem passagem nos trem de imigração... A senhora sabe!
– Vendem o corpo – falou a moça loira – num país
livre e sem guerras, para matarem a fome, como as
moças francesas, na última guerra, vendiam suas
virgindades aos oficiais alemães da SS por um cartão de
racionamento.
– Que foi que a senhora disse?
– Nada, esqueça... Que dia chegaremos a
Pirapora?
– Na terça-feira, se tudo correr bem.
– Ainda vamos demorar dois dias? Santo Deus,
não vou aguentar!
O vapor deu o segundo apito. Dentro de poucos
minutos estaria ancorando em mais uma cidade. A moça
loira subiu as escadas.
Uma grande movimentação a bordo. Os
passageiros da primeira classe se acomodaram na grade
lateral, para ver a nova cidade.
A igreja, postada na parte superior do cais natural
de xisto calcário, chamava a atenção, pela sua ostensiva
grandeza, símbolo de uma época em que a religião
dominava as demais atividades humanas.
Uma senhora gorda, que estava próximo, disse:
– A cidade é linda!
– A igreja é muito bonita. A torre é maravilhosa!
Nenhuma outra cidade do rio tem igual, a não ser a
catedral de Petrolina.
Com uma leve hesitação, a moça loira falou:
– É!... Mas olha ali aquele amontoado de casebres!
Parece uma favela.
O vapor passava em frente ao bairro do Quebra, o
aglomerado humano pobre da cidade, de habitações
populares toscamente construídas, dos oleiros e
pescadores. No largo do Regalito, um bando de moleques
jogava futebol com bola feita de bexiga de boi.
Ela completou, evasiva:
– Sempre a miséria. Em toda parte, sempre a
miséria.
Na parte baixa do cais, nas pedras banhadas pelas
águas, dezenas de lavadeiras batiam ou ensaboavam
roupas, com suas roliças pernas à mostra.
– Ali estão as legítimas lavadeiras do São
Francisco, imortalizadas em um poema que decorei no
meu tempo de estudante, intitulado Lavadeira do São
Francisco.
Ela declamou, para seu próprio regalo:
A lavadeira lava
o sujo que é sujo
dos homens que sujam
a roupa, a cidade, a lavadeira...
Bate o sujo em cima da pedra
e bate que bate
e bate e rebate
o sujo tão sujo
na pedra tão dura
o rio tão longo
as mãos tão magras
a barriga vazia
os filhos são muitos
o marido doente
o remédio tão caro
e torce que torce
torcendo, torcendo
a roupa encardida
e a sua própria vida
em cima das trouxas
o dinheiro suado
caindo em gotinhas
no bolso furado
da lavadeira
que torce e retorce
a honra na pedra
a miséria na pedra
a fome na pedra
a pedra tão dura
a vida tão besta
e lágrimas não compram
o pão para a prole
e a vida é retada
que lhe dá vontade
de bater a cabeça
na pedra tão dura
e levar os miolos
pr’os filhos comerem.
Com o segundo apito, já se observava
movimentação na cidade. A beira do rio, praticamente
deserta, começava a se encher de gente. Por interesse,
curiosidade ou simples hábito, grande parte da população
descia para a beira do rio, para presenciar a chegada dos
vapores. Era uma das poucas novidades a quebrar a
monotonia da vida urbana.
O rio era o mais seguro meio de transporte
disponível, além do cavalo, dos teco-tecos do Aeroclube
de Pirapora ou, ainda, de quando em quando, sem data
ou hora certa, o caminhão de Chico Cheir’aqui, um
desbravador, que vinha de Montes Claros. A chegada dos
vapores era uma festa para a cidade.
O prático deu o terceiro e último apito.
Aproximando-se do ancoradouro, o vapor diminuiu a
marcha. As máquinas pararam de funcionar. A roda
imóvel descansava do grande esforço que fizera, pouco
antes, para vencer a correnteza, na passagem pelo cais
natural.
Um marinheiro saltou e outro lhe jogou uma corda
grossa, seguida de um cabo de aço, que foi amarrado a
um poste.
Na segunda classe, quase nenhum movimento.
Uma dormência inconsciente prendia os flagelados às
suas redes. Uma cidade a mais ou a menos não lhes fazia
diferença. Lentas e passivas, as horas iam passando. Os
dias de espera não eram dias. Podiam ser anos; não
faziam alteração. Ali, tinham água e comida.
Colocada a prancha, vários passageiros da
primeira classe desceram para dar uma volta pela cidade.
Tinham uma hora de prazo e estavam saturados da vida
prisioneira a bordo do barco.
No porto, moleques vendiam doces, requeijão e
frutas. Produtos da terra.
– Deus lhe pague – agradeceu um velho cego, no
inverno da vida, ao ouvir o tilintar de uma moeda no fundo
da pequena lata.
A moça loira seguiu em frente, sem olhar para trás
para receber o agradecimento que, pelo seu automatismo,
nada representava.
A maioria dos passageiros dirigiu-se diretamente à
igreja, por devoção ou interesse turístico.
A senhora gorda e a moça loira pararam no adro
em frente à igreja matriz, admirando sua beleza
arquitetônica,
especialmente
a
pomposa
torre,
campanário central de estilo quadrangular, com
coroamento em cone com um cruzeiro, ladeada por duas
menores, com o verticalismo de estilo gótico a competir,
em altura, com outras torres das igrejas das cidades
localizadas às margens do rio.
Satisfeitas, entraram no templo pelo pórtico
principal.
– Eu sempre vou à igreja quando passo por uma
cidade. A gente recebe graças quando visita uma pela
primeira vez – falou a senhora gorda.
– Como assim?
– Você pode pedir três graças, que alcança!
Ajoelharam-se perto do primeiro banco. Outros
passageiros entraram. Admiravam o altar-mor, uma
singular obra de arte em madeira trabalhada, com as
imagens de São José, padroeiro da cidade, Cristo e
Nossa Senhora, em tamanho natural.
– É o altar mais bonito de toda a margem do rio.
Não vi nenhum igual – disse a senhora gorda, em voz
baixa.
Alguns passageiros ficavam um pouco e rezavam
qualquer oração. Outros olhavam e saíam. A senhora
gorda olhou de soslaio para a moça loira e viu que ela não
estava rezando. Apenas esperava a companheira.
– Você pode fazer os pedidos.
– Como?
– Reza comigo.
Juntas rezaram: Nos salve casa santa, / onde Deus
fez a morada, / onde mora o cálice bento / e a hóstia
consagrada.
– Agora faça os pedidos.
A senhora gorda levantou-se, fez genuflexão,
atravessou a nave principal da igreja pelo deambulatório
central, e foi até o altar depositar seu óbolo. Benzeu-se na
pia de água benta, invocando a proteção do céu.
Da igreja, saíram pela cidade, passando pelas ruas
de terra batida e pela praça central.
– A praça é muito bonita, mas falta calçamento...
Igual às cidades da Bahia.
– São quase todas iguais, os mesmos padrões de
vida. O mesmo estilo de construções.
O sol de janeiro oprimia a cidade com seu calor
abafado, sem ventilação. No céu, nenhum sinal de chuva.
As pessoas da rua se detinham para observar os
estranhos visitantes.
Da praça retornaram ao porto, onde a moça loira
comprou um requeijão – para variar a comida – e uma
dúzia de bananas.
Com os três apitos de praxe são iniciados os
preparativos para a partida. Um marinheiro desamarrou o
cabo de aço. O maquinista, em sinais codificados,
recebeu ordens para acionar as máquinas.
Vagarosamente o vapor foi se afastando,
reiniciando a lenta subida.
A cidade foi ficando mais longe, até sumir de vez
quando o vapor dobrou a primeira curva do rio, no pontal
de cima.
10
Na ampulheta do tempo, dois anos se passaram.
Numa tarde quente de outubro, não muito distante
da cidade de São Francisco, um canoeiro descia o rio
rumo à sua choupana de pescador.
O remo, no seu contato com a água, fazia um
tedioso chape-chape. A canoa executou uma curva
suave, aproveitando o remanso, e tocou na praia,
deslizando até parar de vez, encalhada na pequena
enseada de areias brancas.
De todos os recantos, ouvia-se o rechinar agudo
das cigarras, em ensaios de acasalamento.
Ventos brandos sopravam balançando os galhos
das árvores das margens rejuvenescidas com a
Primavera, mas o tempo estava saturno. No ar, um cheiro
forte de maresia, provocado pela vazante da pequena
enchente das chuvas de broto, que haviam caído no fim
do mês de setembro.
O contínuo rechinar das cigarras era uniforme.
A
praia
desnuda
de
areia
fina,
com
aproximadamente um quilômetro de extensão, orlada pela
ribanceira da densa vegetação ciliar, alongava-se rio
abaixo, como um estreito e comprido lençol, com
pequenas enseadas de águas calmas de remanso.
Uma matrinchã saltou nas águas do rio, fugindo da
perseguição de um dourado. Empoleirado em um galho
pendente de um alagadiço, um martim-pescador
pesquisava o interior das águas à espera de seu jantar.
Alberto, o pescador, calças arregaçadas até o
joelho, amarrou a canoa a uma grande pedra colocada
por ele na praia, para servir de ancoradouro.
Na margem oposta, havia algumas canoas
ancoradas, e lavadeiras retardatárias batiam roupas,
limpando as impurezas.
Junto ao rancho, Isabel, sua mulher, recolhia as
roupas do varal. No estendal viam-se também dois
cambos de curimatãs salgados.
Cravado na praia e tendo como fundo a verdejante
mata da vazante, que emoldura as margens do rio, o
rancho do pescador se apresentava belo e pitoresco. No
quadro aparecia Alberto, o rio e a canoa, em primeiro
plano; o rancho, os varais e Isabel, em segundo e, por
último, além da margem, o céu azul coberto de nuvens
avermelhadas do crepúsculo, onde se destacavam, na
formação de cúmulos, figuras fantasmagóricas de
gigantescos animais, que se diluíam à mercê do vento.
Farripas esbranquiçadas de cirros sobre o fundo azul
completavam a parte superior do quadro. No barranco do
rio, o vento fazia redemoinhos de folhas secas.
No primeiro nível, as águas em reluzentes
ondulações, sopradas pela viração da tarde, refletiam os
últimos raios da luz solar. Uma gaivota, figurante
inesperada, passou em voo rasteiro e fugaz sobre as
águas. Na linha do horizonte, duas garças, como duas
níveas manchas, moviam-se em contraste com as cores
purpurinas do entardecer. Numa antecipação de noite,
uma nuvem negra, debruada pelos últimos clarões do dia,
cobriu a face avermelhada do sol.
No casebre, paredes e teto de palhas de buritizeiro
que lhe davam uma coloração sépia, com sala-cozinha e
quarto, viviam, além de Alberto, sua mulher e seu primeiro
filho. A construção era frágil, sem a fixidez das coisas
perenes. Era provisória. Quando o rio tomar água, terão
que abandoná-lo e construir outro no barranco alto.
Alberto, com seu corpo alquebrado, rosto pálido e
precocemente envelhecido pela malária e pelas
verminoses, apanhou o saco de mercadorias compradas
na cidade. Olhou ligeiramente o rio como a analisar a
celeridade da vazante. Lavou os pés, friccionando um
contra o outro, e calçou as alpercatas de couro cru. Sentiu
o corpo dolorido e um ligeiro arrepio. Bocejou livremente
e, com os olhos, conferiu a amarra da canoa.
Jogados ao acaso, sobre a areia da praia, viam-se
dezenas de carcaças de acaris, que haviam entulhado as
redes em pescarias passadas, peixe considerado reimoso
pelos pescadores.
Enquanto caminhava, os pés rangendo na areia, ia
matutando. Andava devagar. Para ele, nada dava certo.
Não progredia nunca, nunca passava daquela vida
melancólica de pegador de peixe. O pior era ficar sozinho,
na frialdade da noite, sentado na popa da canoa com o
anzol na água à espera do peixe que não vinha. Entrava
dia, saía dia, sempre a mesma coisa. Ergueu os olhos e
viu a cachorra vira-lata, que se avizinhava, abanando o
rabo.
O corpo pesava-lhe e as pernas quase não
obedeciam ao comando do cérebro. Os pés afundavamse na areia. Uma lassidão ia, aos poucos, tomando conta
de seu corpo. Com épico esforço, atingiu o rancho.
Curvou-se para transpor a diminuta entrada.
O interior do rancho era abafado e recendia um
cheiro forte de peixe.
Arriou o saco de mercadorias ao chão e olhou para
a mulher, dizendo:
– Comprei sal, café e rapadura. Meia quarta de
fava e quatro prato de arroz. Um tiquinho de toucinho,
também. Não deu pra mais nada.
Ele assentou-se na cama de varas e declarou:
– Acho que a sezão voltou.
Isabel aproximou-se do catre. Com o dorso da mão
direita palpou-lhe o pescoço. Com voz baixa, ela disse:
– É!... Parece que voltou.
Em seguida, perguntou-lhe, quase por hábito, como
estava a cidade, se tinha encontrado algum conhecido.
Ele respondeu, apenas, que estava com a cabeça
doendo.
– Vou fazer um chá – disse ela.
Próximo ao rancho, o jovem filho traquinava
espojado na areia da praia, coberta de escamas de peixe.
Estava escurecendo.
Isabel encheu o fifó com azeite de mamona. Com
as unhas, espevitou a torcida e levou-o ao fogo para
acender.
Na panela de barro, sobre uma trempe de pedras,
à guisa de fogão, umas fatias de peixe boiavam sobre o
caldo branco de água com sal.
Isabel murmurou, com voz suave:
– Essa maresia vai adoecer todo mundo. Tá muito
brava.
Alberto estava prostrado; a febre dominava-lhe o
corpo. Olhou para a mulher e culpou a maresia por sua
doença. Uma atonia mórbida prendia-o à cama. A febre
caminhava pelo corpo. Subia, agora, dos pés para a
cabeça, trazendo uma ligeira sensação de frio. A friagem
aumentava e corria pelas veias, pelos ossos. Enfiando as
mãos entre as pernas, ele começou a tremer
descontroladamente.
Isabel apanhou todas as velhas, encardidas e
malcheirosas cobertas e cobriu-lhe o corpo.
Alberto tremia debaixo das cobertas, que eram
insuficientes para aquecê-lo. O frio vinha de dentro do
corpo; estava nos ossos, na carne. Os protozoários
maléficos multiplicavam-se em suas veias, destruindo os
glóbulos vermelhos.
Dentro do rancho, os anófeles voavam livremente
ou permaneciam pousados como pequenos alfinetes
fincados nas palhas.
A febre aumentava e chegava agora à cabeça, que
ia crescendo, crescendo e doendo. Sentiu a cabeça
estralando e a garganta seca.
– Me dá uma caneca d’água – pediu Alberto.
Isabel enfiou uma caneca no pote e apanhou a
água. Ele bebeu em grandes goles e recostou-se,
sentindo a cabeça pesada.
Uma mosca varejeira passou voando. Ele
acompanhou, com os olhos em brasa, as exibições
acrobáticas do voo. O teto de palha começou a rodar
vagarosamente. O calor substituía o frio. O zumbido da
mosca crescia. As palhas principiaram a se desvanecer. A
mosca não era mais mosca... Ele acompanhou o voo da
coruja agourenta até ela pousar no ombro do caboclod’água, que lhe estendia a mão, pedindo fumo, com seu
disforme corpo, a cabeça lisa e lustrosa. Um surubim, dos
grandes, bateu a cauda fora d’água e nadando como um
torpedo, aproximava-se de sua canoa.
– Tira água da canoa... Olha lá, na praia... É a
mãe-d’água acenando com a mão... Rema pra lá.
Alberto, batendo a cabeça de um lado para outro,
contorcia-se sobre a cama. Isabel, sobressaltada, sentouse à cabeceira. Suspendeu-lhe a cabeça com uma das
mãos e deu-lhe um pouco de chá quente.
– Pega, joga na canoa... Tem peixe inté nos pau...
Olha lá, inté parece laranja no pé... Apanha laranja pro
menino. Traz o pé pra cá.
Isabel com o coração alanceado, com um retalho
de chita enxugou o suor que brotava na testa, no rosto, no
corpo de Alberto, empapando a roupa. Ele suava por
todos os poros. O suor aumentava a agonia da febre.
Ele quis retirar as cobertas, mas Isabel não deixou.
O suor ajudaria a sobrepujar a febre. Ele tinha que suar.
Aos poucos, a febre foi cedendo, abrandando.
Com o sopro gelado da noite já presente, ele pediu:
– Me dá um pouco d’água.
Isabel deu-lhe a água pedida.
Bebeu com os lábios ressequidos. Deitado de
costas, olhou o teto de palhas iluminado pela luz fosca da
lamparina de azeite de mamona. A crise havia passado,
mas ele sentia na boca um gosto esquisito. A febre
voltaria no dia seguinte, no mesmo horário. Iria, aos
poucos, definhando as resistências do organismo.
Isabel respirou aliviada e deu graças a Deus por têlo salvo mais uma vez daquele infortúnio. Que seria dela
sem o marido? O filho não seria problema. Ela o daria a
quem quisesse criá-lo.
Alberto estava preso à cama por um
entorpecimento avassalante. Seus olhos fixaram-se na
chama amarela da lamparina, que balançava de um lado
para outro, aumentando e diminuindo. Acompanhou a
linha escura de fumaça, que subia fina e evolava-se no
meio do quarto. Começou a cismar, macambúzio. Na
catanduva, na casa de seus pais, não tinha febre. O
trabalho na lavoura era penoso e pouco lucrativo, mas
vivia-se com a graça de Deus. Nos anos de seca faltava
água e até comida, mas era melhor que morrer de sezão
na beira do rio.
Ele tinha nascido lavrador, mas preferiu ser
pescador. Acalentou por anos esse desejo, como um
sonho. Com os olhos melancólicos, ele reencontrava sua
identidade e, voltando-se para dentro de si mesmo,
relembrava imagens do passado e nelas descobria as
origens de seus padecimentos.
Todas as tardes, na casa de seus pais, quando
regressava da roça, passava pela Água Nova para
observar o vetusto tamboril da mata que circundava a
lagoa. Passava a mão carinhosamente pelo tronco
secular da árvore. Olhava para a copa, medindo a altura,
pensando: Inda vou fazer uma canoa...
Era grandioso o tamboril.
11
Um mata-mosquitos, na manhã do dia seguinte,
parou no alto do barranco da margem do rio. Viu um
modesto e esconso rancho lá embaixo, na praia.
O calor do meio-dia sufocava. O suor escorria-lhe
por todos os poros. Meio estropiado, o corpo dolorido, os
pés e tornozelos inchados, a pele tisnada, empreendeu a
descida. Ali estava um rancho e ele tinha que visitá-lo.
Não podia saltar nenhum, fosse rancho, casa ou casebre.
Era sua obrigação, sua responsabilidade funcional.
Às costas trazia um pulverizador e a tiracolo levava
uma mochila com alguns quilos de DDT em pó e
comprimidos de aralém. De seu trabalho, de seu senso de
responsabilidade, dependia o resultado do Programa. Ele
era o executor final, o responsável direto pela parte
prática, pelo contato com o homem do Vale. Viajando de
casa em casa, de fazenda em fazenda, de ilha em ilha,
levava o preventivo e o curativo, cobrindo todo o Vale em
sua grandiosa extensão.
Em sua missão, um misto de educação, sacerdócio
e policiamento, nem sempre era bem recebido nas
residências dos opulentos fazendeiros ou dos ricos
comerciantes, cujas patroas não desejavam sujar as
paredes de suas confortáveis residências. O humilde
ribeirinho, que sempre aceita tudo passivamente, nada
reclamava, embora não entendesse as razões daquele
trabalho. Via o mata-mosquitos como um agente do
governo. Na memória dos mais velhos, ainda estava viva
a figura do mesmo agente, na campanha contra a febre
amarela. Chegava, invadia as casas, quebrava os potes
com água estagnada.
Isabel, que recolhia pedaços de madeira deixados
pelo rio sobre a areia da praia, avistou a estranha figura
no alto do barranco. Juntou a lenha já recolhida e voltou
para o rancho. Usava uma saia preta de algodão, presa à
cintura, pelo cós, por um barbante grosso. Uma blusa
branca, do mesmo tecido, lhe caía sobre os ombros e
descia até a cintura. Na cabeça, uma trunfa branca cobria
os cabelos pretos e lisos e os pequenos pés descalços
afundavam-se na areia quente.
O funcionário da Campanha de Erradicação da
Malária, órgão recentemente criado, aproximou-se do
rancho para borrifá-lo e distribuir medicamentos.
– Bom dia!
O servidor público estendeu a mão para
cumprimentar a dona da casa.
Isabel limpou as mãos na saia antes de oferecê-la
ao visitante.
Ela, com olhar sorridente, o recebeu com simpatia
e boa-vontade. Com tranquilidade disse:
– O senhor entra.
– Não se incomode; tenho que preparar o DDT...
Aceito um copo d’água.
Isabel entrou e logo voltou com uma caneca cheia
de água, que ele bebeu com avidez.
– A senhora tira as coisas de comida, que vou
bater DDT no rancho pra matar as muriçocas... Tem
alguém com febre?
– O Beto tá meio perrengue. Tá com sezão. O
senhor pode entrar e olhar ele. Teve febre ontem.
– Ele teve febre e frio? – perguntou o matamosquitos.
– Teve.
O diagnóstico prático estava confirmado: malária.
Alberto estava prostrado sobre o catre. O
funcionário abriu a caixa de medicamentos e, sem
dilação, apanhou oito comprimidos de aralém e disse:
– Ocê vai tomar quatro comprimidos agora –
ordenou, enquanto entregava os medicamentos a Alberto.
– Amanhã ocê toma dois e, no dia seguinte, toma os
outros dois. A febre não vai voltar e ocê será outro
homem...
Olhou para as paredes do rancho e, dirigindo-se a
Alberto, disse:
– Tenho que bater remédio aqui dentro. O cheiro é
muito forte. Ocê tem que sair.
Encabulado Alberto perguntou:
– Pra quê que serve esse remédio?
– É pra matar as muriçocas.
Alberto perguntou:
– O senhor veio aqui só pra trazer esse remédio?
– Foi. Tou cobrindo esta área e tenho que visitar
todas as casas. Eu trabalho para a Campanha de
Erradicação da Malária. É um serviço novo. Eles tá
querendo acabar com o impaludismo na região... O
senhor aguenta levantar um pouco? Tenho que borrifar o
rancho.
– O quê?
– Borrifar o rancho. Bater DDT pra matar as
muriçocas.
Alberto, sem entender, jogou as pernas para fora
do catre e caminhou vagarosamente para fora.
O funcionário da CEM rapidamente pulverizou o
rancho, e, após concluir seu trabalho, chamou Isabel para
auxiliá-lo a preencher o relatório de visita.
Anotou nome, sexo e idade dos ocupantes e a
localização do rancho.
Dirigindo-se a Isabel, disse:
– É preciso ter cuidado com a muriçoca. É ela que
transmite o impaludismo. Foi a muriçoca que passou a
febre para seu marido.
Isabel disse, olhando para o homem da CEM:
– Ora, seu moço, isso faz sentido, não. Foi essa
maresia danada que pegou febre nele.
– Pois é o que lhe digo, mas vou contrariar a
senhora, não – disse o bom homem. – O cheiro da
maresia prejudica a saúde, mas a febre de seu marido foi
transmitida pelas muriçocas... Agora que eu bati o
remédio nas paredes não vai ter mais perigo de muriçoca
dentro de casa... É bom evitar ficar da banda de fora
durante a noite.
– O senhor aceita comer com a gente? Só tem
peixe com abóbora.
– Faz mal, não. Eu como um pouco. Hoje ainda
tenho muito que fazer. Vou encontrar com os colegas no
Lajedo, à noite.
Isabel serviu o prato de comida.
– O senhor gosta de torresmo?
– Ponha um pouco.
Depois do almoço arrumou seus apetrechos e
despediu-se:
– Volto, quando tiver no tempo, pra borrifar de novo
o rancho, se não tiver enchente – disse ao sair.
– Boa viagem doutor, e Deus lhe pague – disse ela
com um lânguido sorriso.
12
Passaram-se dias.
No fim do mês de novembro as chuvas caíram
fortes e constantes. No céu, nuvens escuras caminhavam
pesadas e ameaçadoras. O vento soprava forte,
balançando os galhos das árvores das margens e
ondulando a superfície do rio que crescia, invadindo as
praias, inundando as vazantes, batendo forte e
assustador nos barrancos altos.
Por cima das águas barrentas, um lençol de
espumas brancas envolvia os troncos das árvores que a
erosão ia lançando à correnteza, alargando as margens e
assoreando o leito. Trovões ensurdecedores se
encandeavam; a terra estremecia. Raios flamejantes
ziguezagueavam pelo céu. A chuva caía em bátegas
sobre a terra, encharcando o chão. Toda a terra se
transformava em um grandioso lamaçal.
No leito do rio das águas morenas, não se
avistavam mais as areias brancas das praias.
Alberto cuja malária, atalhada a tempo, havia
curado, assomou à porta do rancho. Trazia às costas dois
sacos com seus apetrechos de pesca. Eram os últimos
haveres a serem removidos para o novo rancho
improvisado no alto do barranco, próximo a uma
mangueira secular, em uma velha tapera coberta por
viçosas ramas de cabaceiras e são-caetano.
As águas, dentro do rancho, atingiam já a altura
dos joelhos. Mais algumas horas e o rancho seria
totalmente encoberto.
Ele caminhou até a canoa, que estava amarrada a
um dos esteios do rancho.
Isabel, com as roupas e o corpo molhados, retirava
com uma cuia grande a água da chuva, que ameaçava
encher a canoa.
Saíram das proximidades do rancho.
A canoa, sustentada pelas mãos firmes de Alberto,
que remava rumo ao barranco, balançava sobre as águas
revoltas, que cobriam inteiramente a antiga praia.
– Se continuar chovendo desse tanto, a cheia vai
ser das grande – afirmou Isabel.
Ela estava sentada na proa da canoa. Sentia frio.
Tinha as mãos e os pés gelados.
Ele melancólico respondeu:
– É!... Vai ser.
Ancorada a canoa, molhados até os ossos, subiram
patinando o barranco escorregadio.
Durante todo o dia, a persistente chuva caiu sem
passar um só instante, tamborilando sobre as palhas do
novo rancho, e adentrou pela quietude da noite. O céu
desmanchava–se em água, parecia. Relâmpagos e
trovões sucediam-se numa constância assustadora.
Dentro do rancho, tudo estava molhado: roupas,
cobertas, tudo. A lenha molhada não pegava fogo para
esquentar o frio, que doía nos ossos. A fumaça,
provocada pela lenha chamuscada, ardia nos olhos e
fazia chorar.
Lá fora a natureza jazia, sufocada pelo peso da
chuva. Com exclusão do rumor da tormenta, um silêncio
total.
A chuva, em forma de goteiras, passava por entre
as frinchas das palhas da cobertura, abrindo buracos no
chão de terra batida. Dentro do rancho recendia forte o
cheiro de palha molhada.
Isabel rezava para a chuva parar.
As águas do rio subiam, subiam.
13
As chuvas passaram.
Alberto, sorrindo satisfeito, remava firme. A canoa
singrava pesada e vagarosa vencendo a correnteza do
rio. Lançara a rede pela madrugada e a pesca tinha sido
boa.
Devia ser sete horas quando a canoa abicou no
porto empedrado do Vavá, localizado abaixo do cais
natural, em São Francisco.
No alto do barranco, solitário e observador, estava
o escovado praieiro José Fraquinho, com seu corpo
franzino, pernas arqueadas. Encontrava–se ali desde que
clareara o dia, olhos fixos nas águas serenas e barrentas,
que se estendiam à sua frente ainda cobertas por densa
neblina, à espera das primeiras canoas de pescadores,
pensando na forma de engambelar o primeiro que
chegasse.
Ouvia-se o leve murmúrio das águas batendo nas
pedras do porto.
José Fraquinho desceu vagarosamente o barranco,
com os braços cruzados sobre o peito. Com murídea
sagacidade, aproximou-se da canoa de Alberto.
Do rio vinha uma brisa fresca.
Uma gaivota, com as asas abertas, pairou no ar
sobre o rio, olhando para o interior das águas.
– Pesca boa a de hoje, né? – perguntou José
Fraquinho.
– Foi das pior, não senhor.
José Fraquinho cuspiu no chão.
Conferiu o conteúdo da canoa. Os peixes,
derramados no fundo, não eram poucos. O lanço tinha
sido realmente bom. Com um sorriso petulante e
desdenhoso, ele, apreçando o conteúdo da canoa, disse:
– Dou dez mil réis no bolo.
– Tá muito pouco. Veja aquele moleque... Tem
muita curimatá grande.
Houve um instante de silêncio.
José Fraquinho encolheu os ombros. Com fingida
compostura. Acocorou-se junto à canoa. Tirou a faca da
cintura e começou a esgravatar o chão. Não era bem uma
faca; era um pequeno punhal, com lâmina fina e
comprida. Cortou ao meio uma saúva, que passou ao
alcance de sua mão. Não tinha pressa. Sabia que seria
fácil engazopar o analfabeto pescador com alguns
farrapos de conversa. Só cederia aos seus próprios
interesses.
Um silêncio pesado se estabeleceu. Finalmente,
Alberto disse, constrangido:
– Não dá pro’cê dá doze?
José Fraquinho, altivo e arrogante, fitando-o
friamente e pondo um ponto final na conversa, disse:
– Dá não.
Alberto não estava disposto a regatear. Com
expressão de aborrecimento ele disse:
– Entonce pode ficar.
José Fraquinho puxou uma cédula de dez cruzeiros
do bolso e fez o pagamento.
Alberto conferiu a amarra da canoa, recebeu os
dez cruzeiros e subiu o barranco. – Volto já.
José Fraquinho sorriu complacente e apoderou-se
da canoa.
***
Alberto caminhava só, pelas ruas da cidade, como
um estranho, sombrio e pensativo, voltado para dentro de
si, em conflito com seu próprio eu. Apalpou com a mão
direita a cédula de dez cruzeiros dentro do bolso de sua
calça de algodão.
– Não dá pra comprar quase nada – pensou. –
Tenho que voltar mais cedo pra conferir os anzol do
caçador. Pode ser que tenha pegado um surubim grande.
Aí sobra dinheiro pra comprar a roupa que Isabel pediu.
***
Um comprador veio. Vieram outros, mais outros...
– Quanto é esta curimatá, aqui?
– Dois mil réis.
– E aquele moleque?
– Cinco.
– Levo estas duas curimatás.
– Quatro mil réis.
– Passa aquele dourado pra cá.
– Este?
– Não. Aquele outro... Quanto custa?
– Três mil réis.
De um a um, os peixes foram vendidos. Ora era
uma corvina, ora um dourado, um curimatã, uma piranha,
um surubim pequeno (moleque), uma matrinxã.
14
Em dezembro, para alegria da cidade, os
estudantes chegaram em férias, cheios de sonhos e
refertos de saudades da terra mãe. Na cidade não se
falava em outra coisa.
O número de estudantes era muito reduzido. Ao
todo, doze: oito rapazes e quatro moças. Os homens
estudavam em Belo Horizonte ou em Januária. As
mulheres em Montes Claros ou Diamantina. Eram os
donos da cidade no período das férias; o centro das
atenções da sociedade.
Era verão. Os dias longos e quentes.
Às auras vespertinas, o belo e fogoso cavalo baio,
em marcha picada, orelhas em pé, olhos vivos, pisava
firme o chão da rústica e tortuosa estrada, vencendo os
seis quilômetros que separam a fazenda do Boi Morto da
cidade. Passava, naquele momento, sobre a pedreira que
margeia a Lagoa dos Mocós, de paisagem melancólica de
mato ralo. Na lagoa, os sapos coaxavam em um coro
uniforme.
Os raios do sol cintilavam ainda com alguma
intensidade, em um céu com esparsas e erradias nuvens.
O cão policial, língua pendente no canto da boca,
olhar vigilante, vinha poucos passos atrás, coberto pela
poeira que se levantava sob as patas do cavalo.
Antônio, o cavaleiro, filho mais velho do coronel
Brandão, estudante em férias, em sua robusta mocidade,
depois de uma semana de permanência na fazenda, tinha
urgência em saber o que de novo poderia ter ocorrido na
cidade. Estava com saudades da namorada e sentia falta
dos amigos.
A tarde daquele último domingo de dezembro
estava saudável. Soprava um vento fraco, mas presente.
Na cidade, em lugar de dirigir-se diretamente para
casa, firmou as rédeas do Beduíno e, seguido de perto
pelo Danúbio, dirigiu–se ao centro da cidade.
Ao contrário dos anos anteriores, em que
permanecia a maior parte das férias na fazenda, a vida
social da cidade tomava-lhe quase todo o tempo.
Na praça, encontrou-se com Nádia e Helena, que
desciam para o costumeiro passeio vespertino à beira do
rio. Helena foi a primeira a reconhecê-lo. Pararam à beira
da calçada. Antônio, sofreando o animal, aproximou–-se.
Elas o receberam com mostras de alegria estampada no
rosto.
Ele disse:
– Boa tarde! Como passaram a semana?
– Tudo bem. Sentimos sua falta. Nélio também
esteve na fazenda, mas chegou ontem – disse Helena.
– E você Nádia, como está? Não precisa
responder. Você está linda!
– Bem, obrigada – disse, aborrecida. – Estamos
indo à igreja assistir ao batizado da filha de dona Maria
Peres... Vamos, agora, porque não iremos à festa. Estou
de castigo por ter chegado tarde em casa domingo
passado, e você é o culpado.
– Como assim?! – exclamou Antônio. – Não eram
ainda dez horas quando você foi pra casa. Ainda demorou
muito pra a luz apagar.
– Você sabe como é a mamãe. O pai até que nem
liga... Espero por você no cais, mas não demore.
– Estarei lá em meia hora. É só o tempo de tomar
um banho.
– Precisa tanta pressa, não. Vou aproveitar e me
confessar.
A praça, àquela hora da tarde, já estava
movimentada com os rapazes e moças descendo para a
beira do rio. À noite, a agitação aumentaria com o footing
dos namorados. O lado do mercado era reservado, sem
que houvesse um edito oficial, à sociedade; o outro, à
classe operária.
A cidade não dispunha de um clube social, e cada
acontecimento era motivo para se organizar um baile, que
sempre começava as sete ou sete horas e meia da noite e
terminava as dez ou onze horas, de acordo com a luz.
As moças desceram e Antônio passou pelo bar do
doutor Breno, para tomar uma cerveja. Não demorou
muito. Montou e saiu a meio galope. Havia perdido uns
poucos minutos. Era muito tempo para quem estava longe
da namorada há uma semana.
Ao contornar o fim da praça, foi chamado por
Elvira, costureira e amiga de sua família, que estava na
porta da casa do senhor Felício, correligionário político
com quem o coronel Brandão mantinha relações de
estreita amizade. Além de Elvira, ali estavam Elza e
Marília, filhas do dito senhor.
Antônio não hesitou em parar, tendo sido recebido
com afabilidade por Elvira, esboçando um sorriso natural.
– Como você tá difícil! Tem alguma namorada na
fazenda?
– Ele, meneando a cabeça numa negação
antecipada, disse efusivamente:
– Claro que não! É que eu gosto da roça e sempre
tenho trabalho a fazer nas férias. E vocês, como vão?
– Bem! – respondeu Elvira, suspendendo
levemente as sobrancelhas.
Elza, que acabara de completar dezesseis
primaveras, embora não estivesse sendo insensível, não
demonstrou haver notado a presença de Antônio. Ele,
porém, olhou-a por um bom lapso de tempo estudando-a,
curioso, dos pés à cabeça, contemplando sua beleza
natural e fazendo uma grande descoberta. Ela não era
mais a menina das férias anteriores. Estava moça ou
quase. Era de uma altura mediana e de uma magreza
natural. Era bonita e elegante, mas vestia-se com
simplicidade, de maneira discreta. Seu rosto, de um
moreno claro, quase branco, era emoldurado por dois
olhos castanhos e grandes; o nariz reto e bem definido.
Os cabelos castanho-claros, lisos e compridos caíam
graciosamente sobre os ombros e desciam até próximo à
cintura. Na boca, ligeiramente aberta, duas carreiras
regulares de dentes claros.
Naquele fim de tarde, sentada à porta de sua casa,
Elza não pensava em nada de forma objetiva. Olhou
ligeiramente para Antônio e logo baixou as vistas,
ignorando aparentemente a sua presença.
O impaciente cavalo, mastigando o freio, batia
inquieto a pata no cascalho da rua.
– Tenho que ir. Qualquer hora eu passo por aqui
pra bater um papo – disse ele, enquanto fixava
ligeiramente os olhos no acentuado decote que deixava
visível o entresseio, que separava os seios volumosos de
Elvira.
Sem perda de tempo, ele esporou o sôfrego animal
e reiniciou o galope, deixando atrás de si uma nuvem
densa de poeira.
Marília, franzindo a testa, comentou com voz quase
inaudível:
– Não tolero esses estudantes. Eles pensam que
são donos do mundo. Chegam, tomam conta da cidade e
ninguém fala mais em outra coisa.
Enquanto isso se passava, na igreja, o padre
Rafael concluía, em latim, os rituais do batismo, com os
quais introduzia despoticamente a pequena Célia na
comunidade católica universal.
Em casa, Antônio não desarreou o animal; não
havia tempo. Foi direto para o chuveiro.
Dona Naná, andando de um lado para outro, dava
ordens às empregadas da casa. Estavam numa labutação
sem descanso, preparando o presépio para o Natal.
Ele reouve, com rapidez, o tempo perdido e,
quando os sinos da Matriz repicavam o toque do angëllus,
ele chegava à beira do rio. Nádia o esperava,
conversando com Nélio e Helena.
Nélio e Antônio regulavam pela mesma idade e
nutriam, entre si, há algum tempo, sentimentos de
profunda amizade.
Nélio, filho do doutor Fernandes, cumprimentou o
amigo e apresentou a novidade:
– Hoje tem festa em casa de dona Maria Peres.
– Já sei... As meninas não irão.
– Pois é!
O astro rei, completando sua tarefa diária, lançava
sobre as águas do rio, que estava sereno, os raios
multicoloridos do ocaso, mas aos dois pares de
namorados passava despercebida a grande beleza do
cair da tarde. Olhavam para o rio, viam o sol acenando
em despedida, olhavam os efeitos multicoloridos da luz
filtrada por entre as alvinitentes nuvens, mas não
percebiam a maravilha de cores e contrastes que se
formavam nas nuanças do majestoso espetáculo do
entardecer.
As últimas andorinhas roçavam de leve sobre as
águas e não tardariam, como as demais, procurar abrigo
no telhado da igreja.
Mais por hábito que por decisão previamente
tomada, viraram as costas para o rio e seguiram em
direção à praça central da cidade.
Helena e Nélio, de mãos dadas, iam uns dez
passos à frente.
Ele perguntou:
– Se a Nádia cair no rio, você vai com ela?
Ela descerrou os lábios. Com a boca entreaberta
ficou um breve tempo calada, depois respondeu
enfastiada:
– Ah! Será que você não entende? Ela é minha
melhor amiga e não tenho outra pessoa com quem sair.
Se ela não vai, eu não vou.
Ele ficou sério e apenas balbuciou:
– Não compreendo...
Ela meneou a cabeça negativamente.
Nádia e Antônio caminhavam em silêncio como
dois estranhos. Procuravam evitar falar na festa, mas não
encontravam outro tema para conversar. Não
caminhavam alegres.
– Que diabo! – ponderou Antônio, consigo mesmo.
– Mas ela não tem culpa... Moça deve ir mesmo cedo
para casa.
Procurou segurar a mão de Nádia, mas esta,
voluntariosa e franca, com inflexível decisão, a afastou
com gesto firme.
– Não – refutou desdenhosa. – Meus irmãos
podem ver e aí fica pior.
Antônio levantou os ombros conformado. Teve
ímpetos de acabar, ali mesmo aquele derriço, contudo,
conteve-se.
Ele ficou zangado, mas não contestou. Namoravam
há quase dois anos, mas nunca sentiram perfeita
afinidade. Nunca falaram de um possível noivado. Não
chegaram ao amor. Os seus encontros, às tardes, à beira
do rio e à noite na praça, tornaram-se hábito.
Conversavam sobre tudo ou quase tudo. Falavam dos
bailes havidos ou por haver. Discutiam matérias de seus
estudos. Revelavam seus ideais de vida futura, mas
nunca haviam relacionado esses ideais à possível vida
em conjunto que pudessem ter.
Um grupo de meninos, reunidos sobre o passeio da
rua, preparava-se para iniciar um brinquedo de pique.
Antônio olhou para os meninos, com emulação.
– Você quer brincar de pique? – indagou um dos
garotos.
– Quero! – responderam os outros em coro.
– É de pique, picolé?
– É.
– Quantos piques você quer? – perguntou o
primeiro, apontando para um dos participantes.
– Cinco.
– Um, dois, três, quatro, cinco... Geraldo saiu.
As luzes dos postes acenderam fracas e
amarelecidas.
Na Avenida Olegário Maciel, em frente à casa do
doutor Fernandes, ilustre advogado, meninas brincavam
de roda sob o olhar vigilante de dona Cristina, uma
senhora de meia-idade, sentada à porta.
A música alegre enchia o ar, chegando suave e
infantil aos ouvidos dos transeuntes:
Fui no Tororó beber água, não achei
Encontrei dona Marina que no Tororó deixei.
Ó Marina, ó Marinazinha
Entra nesta roda pra ficar sozinha.
Marina, uma garotinha loira de olhos azuis,
destacou-se das demais e, no centro da roda, respondeu
cantando:
Sozinha eu não fico
Nem devo ficar
Porque tenho Filhinha
Para ser meu par.
Nélio e Helena, bastante distanciados, já haviam
alcançado o passeio central dos jardins da Praça
Governador Valadares.
De uma casa próxima vinha o som de um piano
mal tocado.
Antônio e Nádia, caminhando mais vagarosamente
e sem trocar palavra, chegavam à esquina. O laconismo
estava tornando suas relações friamente amistosas.
Ao atingirem o passeio lateral, passaram pelo
coronel Sizenando, ex-prefeito do município, que, com
seu conceito elevado, autoridade e prestígio, jornadeava
com sua bengala, a espairecer sem pressa. Havia
governado o município com inteligência. No rosto, um
sorriso invariável. Um sorriso social, aristocrático,
elegante, mas que não definia seu real estado de espírito.
A cidade era um patrimônio seu e a praça, a menina de
seus olhos. Por onde passava, as pessoas paravam para,
respeitosamente, saudá-lo. Cumprimentou jovialmente o
casal de namorados, com uma ligeira curvatura de cabeça
e, apontando a bengala para frente, como a indicar o
caminho a ser seguido, continuou tranquilamente sua
digressão vespertina.
Antônio consultou o coração e rompeu friamente o
silêncio:
- Acho melhor você ir pra casa.
- Por quê?
A conversa morreu aí.
Sem responder ele afastou-se de retorno à beira do
rio; ia triste.
Ao cair da noite, Elza, Marília e Elvira, sentadas em
frente à casa do senhor Felício, pesquisavam o
movimento da praça.
15
Da radiola saiu o sensual bolero “Aquelles Ojos
Verdes”. A música suave, o ritmo musical cubano, invadiu
a sala como uma onda de sons convidativos.
As moças, sentadas nas cadeiras arrumadas ao
redor da sala, aguardavam o convite dos rapazes.
O sarau estava animado.
Antônio correu com os olhos o interior da festiva
sala. Decidido, atravessou-a de um a outro extremo e
aproximou-se de Taís, convidando-a para dançar.
Ela sorriu, lisonjeada.
Ele não estava satisfeito com a ausência da
namorada. Ela não gostava dele, pelo que já notara, e
nem ele sabia ao certo o valor de seus sentimentos.
Apenas a cortejava.
Os olhos de Antônio diligenciavam em busca de
outros, pelo menos para um flerte passageiro; uma
pequena aventura. Taís não era seu tipo e com ela
dançava por dançar.
Ela, ao contrário, sentia-se realizada. Apertava
contra seu corpo o de Antônio, roçando-lhe os seios e as
coxas, numa provocação premeditada. A música ajudava.
Elza, com ar jovial, em pé, recostada à parede
lateral, observava os pares em evoluções pelo pequeno
salão.
Marília, sua irmã, aproximou-se:
– Vamos embora, que já é tarde. A luz não demora
apagar.
– Vamos. Nunca vi um baile tão aborrecido.
Encaminharam-se para a porta.
Os olhos de Elza, por simples acaso, encontraramse com os de Antônio por uma fração de segundo. Ela
estava radiante. Ele sustentou, por instantes, aquele olhar
indeciso.
– Vamos logo – repetiu Marília.
Elza suspirou e, com um gesto de mão, suplicou
com um jeito suave:
– Espere um pouco. Estou com o corpo quente e
faz mal sair de uma vez. Posso me resfriar.
Antônio transferiu seu par para Felisberto, um
amigo que estava junto à porta, e interceptou a saída de
Elza.
Ela, tomada de surpresa, ficou imóvel, por um
instante. Hesitou entre o convite e a ordem da irmã mais
velha, mas o olhar dele transmitiu-lhe confiança e ela,
com um leve sorriso de inocência, deixou-se levar pelo
salão, enquanto a irmã gesticulava, nervosa.
Ele tentou entabular um diálogo, mas se perdeu
descontrolado pelo contato daquele corpo de meninamoça. Seus olhos se encontraram novamente e naquele
rápido instante, certificou-se, vendo dentro dos lindos
olhos, que ela era a mulher de seus sonhos. Ele apertou
ligeiramente sua mão na delicada mão de Elza e assim,
dançaram até o fim do disco.
– Obrigado – disse ele com voz terna.
Ela não respondeu e saiu, com demasiada rapidez,
ao encontro da irmã.
Antônio,
nutrindo
uma
esperança,
ficou
observando-a, enquanto ela se afastava. Os cabelos lisos
e longos desciam até a cintura.
Elza, da porta, voltou-se e encontrou o olhar dele,
firme e penetrante. Ele fez uma pequena curvatura, em
cumprimento.
***
Duas piscadas convencionais, dadas pelo
maquinista da usina de eletricidade, movida a vapor,
indicavam que dentro de meia hora as luzes da cidade se
apagariam. Eram onze horas e aquela noite mal se
iniciava.
– A luz piscou. Vamos embora – falou alguém no
fundo da sala.
Todos os presentes preparam-se para sair. Taís
aproximou-se de Antônio.
– Você ainda fica? – perguntou ela com um jeitinho
vivaz e travesso.
– Não. Estou aguardando Nélio, mas parece que
ele vai sair com Neide.
Em complemento, Antônio perguntou:
– Você está só?
– Não veio ninguém lá de casa.
– Vou com você. Pode ser que a luz se apague
antes de você chegar em sua casa.
Saíram.
Na rua, os dois casais, em lugar de seguirem para
o centro da cidade, voltaram-se para os lados do cais
natural.
Antônio e Tais, de mãos dadas e depois
abraçados, passaram pelo frontispício da igreja e foram
assentar-se em uma pedra, em um ângulo mais escuro do
cais natural, uma das maravilhas com que a natureza
havia embelezado a cidade.
– A luz vai apagar logo; é bom irmos pra casa –
disse Taís, com voz submissa.
– Ainda é cedo...
Ele olhou para o rio e observou:
– O rio tá bem cheio.
Com expressão um tanto sonsa, ela balbuciou:
– Tá frio hoje.
Antônio limitou-se a olhá-la, sem nada responder.
Taís se perguntou o que viera fazer ali, em lugar de
ir para casa. Estava, porém, satisfeita de estar sendo
cortejada, desejada. Antônio era um objeto quase
inacessível, e agora ele estava ali sentado ao seu lado.
Uma esperança luziu-lhe no coração.
Ele a prendeu em um abraço rígido dobrando
levemente sua cabeça para trás e beijou-lhe
voluptuosamente os lábios e o pescoço. Sua mão desceu
até a cintura e subiu por baixo da blusa. Taís reagiu sem
vontade. Encolheu-se um pouco e recostou-se em
Antônio, que recolheu a mão de volta à cintura, para subir
novamente, devagar, apertando com a outra o corpo dela
contra o seu. Ela ofegante deixou escapar um leve e
quase imperceptível gemido.
Antônio procurou localizar Nélio em algum lugar
perdido na bruma da noite, mas não conseguiu. A luz
havia sido apagada.
Com sincero afeto, ela passou o braço pela cintura
de Antônio e afagou-o carinhosamente. Ele afastou o
soutien, numa intimidade erótica, e passou a mão
vagarosamente sobre o seio nu, que se comprimiu
levemente, e sentiu o mamilo eriçar-se, fazendo-a
estremecer. Beijou-a novamente, um beijo demorado.
Ela, de olhos fechados, entregava-se.
Beijou-lhe a pontinha da orelha. Ela gemeu
baixinho quando uma das mãos de Antônio subiu
vagarosamente sob a saia, acariciando-lhe as coxas
entreabertas.
Taís, de um salto, ficou de pé.
Com voz suave, mas firme, ela disse:
– Vamos, que já é tarde.
– Temos que esperar pelo Nélio – disse Antônio
levantando-se. – Ainda tá cedo.
– Vamos embora.
A boca de Antônio abriu-se ligeiramente em um
sorriso contrafeito.
A tenaz resistência de Taís enfraqueceu os seus
desejos e ele, disfarçando sua decepção, olhou para os
lados à procura de Neide e Nélio. Desoprimido, ele
questionou:
– Onde estarão aqueles dois?
Saíram à procura dos amigos.
16
Era meia–noite.
O cabaré estava repleto de frequentadores
assíduos ou transitórios.
Dois policiais passavam indiferentes pelo salão.
Não olhavam particularmente para ninguém, mas
identificavam todos os presentes. Apesar da aparente
desordem geral, nada havia que os pudessem preocupar.
Os frequentadores eram os mesmos de sempre, já
conhecidos. As mulheres, com seus vícios e defeitos,
ainda não apresentavam acentuado estado de
embriaguez.
O comércio do amor na cidade era concentrado em
um único bordel: o Balalaica, onde pululavam muitas
meretrizes, que ali faziam a vida. Era um casarão médio,
com uma sala ao rés-do-chão, sem adornos. À noite os
homens de bem, atraídos pela ilusão grosseira das
delícias mundanas, estavam todos ou quase todos
chafurdados na promiscuidade pecaminosa, onde
imperava a imundície moral.
Ali, as mulheres mundanas, sem amor puro,
vendiam livremente os prazeres da carne, sem direitos
pessoais.
– Olhem quem chegou! – exclamou Mariana
erguendo as sobrancelhas com semblante prazenteiro.
Era conhecida vulgarmente como Urucuiana.
Nélio e Antônio, na soleira da porta de entrada,
esquadrinhavam o salão iluminado pela luz pálida das
velas colocadas sobre as mesas, procurando
familiarizarem-se com o ambiente boêmio da noite.
O abafado salão exalava um cheiro repulsivo de
álcool e suor. Um mundo diferente. Com um aceno de
mão, Nélio, com uma leve mesura cerimoniosa,
cumprimentou o doutor Reinaldo, que ocupava uma mesa
de canto e para quem a vida corria bem.
O doutor Reinaldo, letrado, formara-se em direito
em 1937, mulherengo de conspícua presença, às vezes
obsceno, acobertado por um véu de aparente serenidade.
Moreno escuro, alto e magro, era um dos mais elegantes
da chamada sociedade local. Filho de tradicional família.
Depois de alguns instantes de reflexão,
esgueirando-se entre as cadeiras das mesas, eles
andaram até uma mesa vaga, nos fundos, acenando com
a cabeça, de passagem, para os conhecidos presentes.
Sons ininteligíveis de vozes vindos de todos os
cantos do salão misturavam-se no ar, confundiam-se com
o tinir de copos. Uma rapariga, desacompanhada e
entregue às suas preocupações, bocejou sonolenta numa
cadeira ao lado. Um catrumano, ainda solitário, tossiu
artificialmente e limpou o suor do rosto com a manga da
camisa.
Parada à frente de Antônio, Urucuiana com um leve
sorriso aliciante, mostrando os dentes brancos, olhar
amoroso, expressão alegre, perguntou afavelmente, com
voz mansa e cativante:
– Por que ocê não veio semana passada?
Antônio dirigiu a ela um olhar vago. Sem atenção à
pergunta, ele ordenou ao garçom, com um tom natural de
voz:
– Traga uma cerveja e três copos.
Ela, mordendo o lábio inferior, voltado para dentro
da boca, sentou-se, acomodada.
Urucuiana era uma bela morena, que tinha vindo
da Barra da Vaca e que era a coqueluche do Balalaica.
Apesar de nova, era amestrada e, por isso, a mais
afreguesada. Não devia ter mais de vinte e dois anos. Era
uma mulher esbelta, porte altivo, de estatura mediana,
seios firmes e bem postados, corpo delicado, mas não
frágil, olhos castanhos e expressivos. Os cabelos lisos e
pretos caíam livremente sobre os ombros estreitos.
Impunha-se, sem ostentação, porém com altivez, ao
submundo em que vivia. Elegia seus clientes, em lugar de
ser por eles escolhida. Tinha especial predileção por
Antônio.
Joana, outra prostituta, já quase ébria, estava
sentada em companhia de um roceiro de barba crespa e
cerrada, em uma mesa próxima à do doutor Reinaldo.
Antônio levantou-se. Empertigou o corpo e
caminhou pelo salão. Cumprimentou o doutor Reinaldo e
perguntou pelo coronel Sizenando, seu sogro.
– Eu até o convidei para vir comigo, mas ele disse
que o pouco querosene que ele ainda tem é para a
lamparina lá da sua casa.
Riram.
Doutor Reinaldo disse:
− Veja bem essa promiscuidade. Isto aqui é um
charco imundo. Melhor seria como propõe Aldous Huxley
em seu livro Brave New World, que me fascinou. Não sei
se já existe tradução em português. Um mundo futuro de
castas, em que não existe moral, nem religião, bem a
propósito de uma zona boêmia universalizada. As
pessoas praticam relações sexuais entre sim. Todos
pertencendo a todos.
− Você pode ter relações com a mulher que quiser
e ela com o homem que quiser?
− É isto aí.
− Uma maravilha.
− Não existe família. As crianças, todas perfeitas,
são geradas em incubadoras.
Antônio sorrindo, falou:
− Hitler deve ter lido esse livro.
Uma ligeira pausa.
− Ainda não estou preparado para ler originais em
inglês, mas vou chegar lá.
− Sente-se – convidou o doutor Reinaldo.
− Estou ali, em outra mesa, com o Nélio.
− É só um instante. Isto tudo aqui é uma festa.
Antônio puxou uma cadeira e assentou-se.
− É uma promiscuidade pecaminosa.
− Não existem pecados, nem virtudes – sentenciou
o doutor Reinaldo – os mandamentos são artimanhas
religiosas para manipular as pessoas. Nós somos livres.
Não existe prêmio ou castigo em outra vida, porque não
existe outra vida. O sexo – disse Spinoza – é uma forma
de expressarmos nosso êxtase. Pertence a todos os
animais.
− Ainda não li Spinoza – confessou Antônio.
− É bom quem leia. O Deus dele é o melhor Deus
já criado pelo homem. Ele quer que seus filhos gozem,
cantem, divirtam e que desfrutem de tudo que existe. É
um pai e, como pai, não irá condenar nenhum de seus
filhos a sofrer eternamente no fogo do inferno, mesmo
porque não existe inferno. Para Ele, esta vida não é uma
prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem
um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é a
única que você tem e terá. Não existe outra.
Doutor Reinaldo fez uma ligeira pausa, como a
meditar.
− O Deus de Spinoza não é ególatra. Não quer ser
louvado e nos deu o livre-arbítrio. Não nos cobra nada.
− Vou ler seus livros, logo que regressar à Capital.
− É bom que leia. Vai abrir sua mente. Você, como
ensina Alexandre Herculano, dará às paixões todo o ardor
que puderes. O mundo é um paraíso, mas se tirar dele a
mulher ele se transformará em um ermo melancólico.
− Agradeço pela atenção, mas tenho que ir – disse
Antônio enquanto se levantava. − Obrigado pela lição.
Vou pensar nela.
Sorriu e completou:
− Vou dar uma volta por aí.
− Faça um bom proveito.
Antônio foi até a mesa onde Joana estava sentada.
– Como vai, Joana?
– Vou indo como Deus é servido.
– Pago uma cerveja pra você. Pode pedir.
O capiau, abrindo um sorriso apalermado, as mãos
trêmulas, mostrando os dentes estragados, perguntou:
– Como vai o senhor, Seu Antônio?
– Bem, obrigado.
Joana inquiriu:
– O senhor tem visto meu povo?
– Tenho. Estão todos bem... Com licença, fiquem à
vontade.
– Brigada! – agradeceu ela.
Antônio pensou:
– Essa menina poderia ter sido perdoada e voltado
para casa. O mais sagrado direito é o de perdoar.
Quando ele retornou à mesa, Urucuiana ficou de
pé, franziu a testa e reclamou:
– Ocê não esquece aquela sirigaita.
– Ora, é problema meu – respondeu ele, friamente.
– Aquilo é um bagulho. Vai ver foi ocê quem tirou
ela de casa.
– Era só o que faltava. Você com ciúmes da Joana.
– Eu!... Vê lá. Só tenho ciúme de gente. Vê só.
Paula havia se assentado ao lado de Nélio. Não
era uma rapariga bonita, contudo, era gentil e espirituosa,
de rosto pálido.
Nélio questionou:
– É até engraçado. Não sei por que falam tão mal
das prostitutas. O que seria da severa moral social sem
elas? Elas existem para que as moças possam continuar
virgens até o casamento... Se elas não existissem!...
Após um breve silêncio, ele sugeriu:
– Vamos promover a elevação moral das
prostitutas. Vamos sair por aí de braços dados, eu com
Paula e você com Urucuiana.
Antônio objetou, com um leve sorriso:
– Engraçado digo eu. Sabe que até seria uma
boa... Amanhã, porém, não haverá uma só família que
nos receberá.
– É uma merda! Esse conceito de dupla moral é
mesmo uma porcaria.
Na ebriedade da zona boêmia, Nélio levantou-se
com o copo na mão e, em voz alta, ergueu um brinde às
prostitutas.
Os presentes se entreolharam sem uma aprovação
ou desaprovação.
– Apoiado! – aplaudiu doutor Reinaldo, do outro
canto da sala, volvendo os olhos para Nélio. – Um brinde
às Messalinas, às Cleópatras, às Fedras, às Júlias, às
Teodoras, às Impérias, às Semíramis, às Cornélias, às
Lucrécias.
Pensou um pouco e completou:
– Um brinde à Minervina.
Minervina era uma prostituta especial, de classe.
Até certo ponto aceita pela sociedade. Não frequentava a
zona boêmia. Em sua casa, no centro da cidade, recebia
os jovens para o ritual de iniciação. Era uma perfeita
profissional, ciosa de suas responsabilidades. Bem paga,
nunca tinha pressa. Vencia, com facilidade, a barreira de
inibição natural do adolescente. Os adultos também
frequentavam, disfarçadamente, sua casa. Seu corpo
outoniço ainda despertava desejos.
Nélio, enquanto se sentava, disse a meia voz:
– Je ne suis pas sérieux.
Antônio, como se não tivesse ouvido, perguntou :
– Você se lembra da Minervina?
– Eu já estive na casa dela. Fui lá por curiosidade.
– Eu também.
– O interessante é que Minervina não se apega a
ninguém.
– Dizem que ela já teve um gigolô, tempos atrás.
– Boa noite!
Antônio levantou os olhos e reconheceu a pessoa
que o cumprimentou. Um carroceiro alto e magro, de cujo
nome não se recordou. Respondeu com um sorriso
artificial e um aceno de mão.
Nélio disse:
– É interessante como os sexos se separam tão
drasticamente. As moças são afastadas do seu
conhecimento, pelo menos aparentemente. Os rapazes
são lançados e até mesmo forçados a conhecerem e
praticarem logo no início da puberdade, sem preparo, sem
orientação. São homens, simplesmente homens; devem
ter nascido sabendo.
– E Deus os livre de se confessarem ignorantes! –
comentou Antônio.
– Todos ririam deles. Ninguém se preocupa em
orientá-los, nem mesmo os pais, para quem os filhos são
homens e devem agir como homens.
– Enquanto isso, as mulheres, ou são moças
honestas e mulheres casadas, ou são prostitutas.
– Lembro-me de um amigo de meu pai, fazendeiro
do Urucuia, que recebeu de um acostado dele reclamação
contra o filho caçula, um rapazola de quinze anos, que
estava saindo às escondidas com sua filha. Ele
simplesmente respondeu: “Meu garanhão tá solto; quem
tiver suas éguas, que prenda”.
***
Com seus vinte e cinco anos, Joana seria uma
mulher aceitável, não fosse a constante embriaguez e os
escândalos que aprontava, quando o cliente não lhe
pagava o que era por ela exigido. Aos poucos, os
melhores clientes se afastaram, restando-lhe o consolo de
uns poucos tabaréus e dos frequentadores fortuitos. Raro
era o dia que não apanhava da polícia ou de um cliente.
Nascida no meio rural, viveu até os vinte e dois
anos em companhia de seus pais, sob a proteção
placentária da família, mourejando na roça com seus
irmãos. Viera para a cidade trabalhar como empregada
doméstica em casa de dona Regina, esposa do coronel
Sizenando.
Os trabalhos na lavoura esconderam, durante
algum tempo, a beleza natural de seu corpo. De rosto não
se podia dizer que fosse bonita, mas era agradável no seu
todo e delicada na maneira de tratar as pessoas.
O ambiente citadino, em pouco tempo transformou
a acanhada roceira em uma das principais frequentadoras
dos bailes da Operária, de onde saía sempre
acompanhada pelo namorado da noite. Teve dois
namorados firmes. A necessidade de dissimular suas
origens fez dela uma moça fácil e volúvel. Procurava
mostrar-se evoluída. Os impulsos sexuais eram fortes
dentro dela. Defendia, contudo, sua honra, mas cedia
facilmente a todos os demais carinhos dos namorados.
Um ano mais tarde, numa terça-feira de Carnaval,
empolgada pelo calor da festa, bebera um pouco além do
aconselhável. A manhã de quarta-feira de cinzas veio
encontrá-la em prantos, em seu quarto.
– Que fazer agora? E s’eu pegar filho? Como
explicar pra dona Regina e pra meu pai?
O primeiro passo é sempre o mais difícil. Outros
namorados vieram... Outros encontros... Outros prazeres.
***
Urucuiana aproximou sua cadeira da de Antônio.
Nélio disse meio distraído:
– Aquela zinha me deixa maluco. Termino fazendo
uma tolice.
– Qual delas? – perguntou Antônio.
– Ora, a Neide.
Antônio passou o braço sobre os ombros de
Urucuiana, mas sua imaginação estava em Taís, lá no
cais. Ela, sentindo-se acariciada, abraçou-o. Ele estava
com Taís nos braços e beijava suavemente seus lábios.
Chegou mesmo a ouvir o murmúrio das águas a descer
pela correnteza do cais. Taís estava nua na penumbra da
noite.
Urucuiana admirou-se do tratamento que estava
recebendo e apoiou a cabeça em seu ombro. Ele nunca
foi homem de carinho fora da cama e, mesmo ali, nunca
lhe havia beijado na boca. Não beijava prostitutas.
As mãos de Antônio acariciavam os seios de Taís.
Urucuiana encostou-se toda em seu amante, numa total e
passiva submissão. Antônio suspendeu o copo de cerveja
até a altura dos lábios e sorveu todo o conteúdo de um só
fôlego. Em sua frente estavam agora os olhos de Elza,
meigos, sublimes, honestos. Afastou bruscamente
Urucuiana para um lado.
Com um gesto automático, ele encheu novamente
o copo.
Com voz sossegada, sentindo–se diminuída e
humilhada, ela suspirou quase em sussurro, com voz
desolada de vítima:
– Que deu n’ocê, homem de Deus? Que foi qu’eu
fiz de mal?
Antônio não escutou.
Paula bocejou, entediada.
Urucuiana olhou para ele, com um suspiro de
resignação, em busca de uma justificativa. No olhar, ela
retratava seu espanto pelo gesto brusco e inexplicável.
Não dera motivos e não deixara de corresponder às
carícias recebidas. Nele não encontrou resposta. Seu
semblante refletia calma e profunda paz interior. Ela
sentiu–se vazia, sentindo-o distante.
Dominando-se, ela falou com voz suplicante, macia
e chorosa:
– Posso pedir mais uma cerveja?
Ele autorizou com um gesto de condescendência,
mas emborcou seu copo. Tomando-lhe uma das mãos,
apertou-a levemente como a pedir desculpas.
Ela chamou o garçom.
Antônio disse, com serenidade:
– Hoje não vou demorar. Toma logo sua cerveja.
***
Quando chegou a São Francisco, após separar–se
do marido que ficara na Barra da Vaca, Urucuiana teve
alguns preferidos antes de se fixar em Antônio. Nem
todos que pretenderam tiveram oportunidade de ir com
ela para a cama, onde poucas com ela podiam ser
comparadas. Conhecia seu ofício e os que tiveram o
privilégio de dormir com ela uma vez voltavam,
necessariamente, a seus braços. Era senhora dos
mistérios do amor.
Ninguém ousava procurá-la quando Antônio
estivesse presente. Ela não dava oportunidade. Por outro
lado, o código da zona boêmia não permitia a nenhum
frequentador molestar mulher acompanhada.
***
Antônio sentiu uma nuvem de ondulações
indefinidas e, conquanto ainda não amasse Elza, fixou
nela seu pensamento. Entregue a conjeturas, agora,
dançavam uma valsa. Não havia mais ninguém no salão,
que era grande, muito grande.
– Que deu em você hoje? – perguntou Nélio.
Despertado de seu devaneio, Antônio sorriu.
Desemborcou o copo e serviu-se de mais cerveja. Bebeu,
empurrando o copo para o centro da mesa e respondeu:
– Nada!... Estava pensando.
Elza estava em sua mente. Entrara sem pedir
licença, de maneira definitiva, para ficar. Não sabia como
tudo havia acontecido tão de repente, sem aviso prévio.
Um verdadeiro coup de foudre. Seus cabelos compridos
roçavam levemente em seu rosto. Em sua quimera,
materializava-se a ficção da valsa, a princípio difusa,
informe; depois clara e definida:
Pra despertar teus ciúmes
Tentei flertar alguém
Mas tu não flertaste ninguém.
Olhavas só para mim...
O garçom serviu a cerveja pedida, retirando
Antônio de sua imaginação. Ao abri-La, um mundo de
espumas subiu pelo gargalo e espalhou-se pela mesa.
– Filho da puta... Vigarista ordinário! Cafajeste! –
gritou uma mulher no fundo do corredor, que dava acesso
aos quartos. Ouviu-se o ressoar de uma forte bofetada e o
tombo de um corpo ao chão.
Corre-corre geral.
Antônio,
Urucuiana,
Nélio
e
Paula,
instantaneamente, levantaram-se e se encostaram à
parede com uma clara dose de tensão, na expectativa dos
acontecimentos, momentaneamente insulados.
No meio daquela confusão, Antônio e Nélio
mantinham-se aparentemente serenos com olhares vagos
de quem nada tinha a temer. Antônio, estreitando os olhos
e franzindo o cenho, dançou um olhar pelo salão,
analisando a reação dos presentes.
O doutor Reinaldo, indiferente, estava assentado,
tomando a sua cerveja.
Os seios de Urucuiana arfavam; sentindo um nó no
estômago sua respiração latejava em pulsações
aceleradas; em seu rosto, uma expressão assustada, os
olhos espantados, os lábios trêmulos entreabertos.
Paula soluçava tremendo, presa aos abraços de
Nélio; seu estômago começou de repente a doer, uma dor
forte e quase insuportável.
Nélio pousou a mão no ombro dela e reclamou em
voz baixa:
– Deixa de choramingar. Está tudo bem.
Sem ouvi-lo, Paula assentou-se.
Antônio murmurou:
– É incrível!
Lá fora, a noite era bela. O céu estrelado.
A porta do prostíbulo era a fronteira de dois
mundos diferentes, distantes. Dentro, a imundície da
prostituição, a insegurança dos relacionamentos, um
código de honra que se cobre de sangue, insegurança e
aflição. Fora, a mentira dos fatos, a ilusão da vida, a
falsidade medíocre das aparências.
Os dois policiais atenderam prontamente a seus
deveres.
Joana, bracejando e quase gritando, disse:
– Este casca-grossa não me pagou e ainda me
bateu!
Seu acompanhante exclamou enfurecido, as faces
rubras:
– Esta puta sem-vergonha tá bêbada que nem
gambá!
Fez-se um breve silêncio. Segundos de
expectativa.
– Calados! – gritou um dos policiais impaciente, em
tom agressivo, contendo a turbação de ânimos, enquanto
o outro segurava o braço do acusado, um sujeito alto,
magro, com ares de capiau. Dando buscas, encontrou
uma faca dentro da calça. Foi desarmado, levado para
fora e mandado embora.
Alguns instantes depois a balbúrdia se
desvaneceu.
Um silêncio constrangedor.
Nélio observou duas prostitutas assentadas, sem
acompanhantes, numa mesa isolada conversando
baixinho, as frontes carregadas. Ele pensou:
– Como deve ser difícil viver nesse ambiente de
devassidão! Essas mulheres estão moralmente mortas.
As conversações interrompidas foram, aos poucos,
sendo reiniciadas.
Na indiferença de todos, Joana continuou a
blasfemar no fundo do corredor, proferindo palavras
obscenas, mas seus impropérios não eram ouvidos –
faziam parte da madrugada. A novidade seria se não
existissem. Ninguém os ouvia, nem suas queixas e
lamentações. Elas completavam a poluição sonora do
ambiente. Chorava. Seus olhos de deserdada de carinhos
derramavam irisadas lágrimas de saudade; saudade de
sua casinha humilde da roça, das auras puras das
manhãs, do gorjeio dos pássaros; saudade de seus pais e
de seus irmãos; saudade das plantações, da vida rude e
honesta do campo. A bebida, para ela, era um remédio
para a dor do espírito. Perdida na noite de sua vida era
como se os dias não tivessem luz.
17
Era noite cerrada, úmida e fria. Horas mortas.
Joana desconsolada, a fronte obscurecida pela
tristeza, entrou a caminhar pelas ruas sem destino certo,
lenta e pensativa. Das janelas de algumas poucas casas
ainda transudava a luminosidade vacilante de lampiões a
querosene e dos candelabros. A cidade estava entregue
ao sossego noturno.
Em frente ao mercado, velho e grande casarão em
estilo colonial na Praça Governador Valadares, ela parou.
Gastou ali um bom tempo.
Dentro do mercado, próximo a um pequeno fogo
abrasado, dois carreiros, estendidos em suas esteiras de
palha de buritizeiro, dormiam a sono solto. Perto, viam–se
as cangas e a tralha de comida. No pátio interno os bois
carreiros ruminavam o capim ingerido horas antes.
Próximo ao fogo, um cachorro preto também dormia,
aproveitando o calor das brasas.
Hesitante, ela aproximou-se de uma das janelas e
espiou para dentro. Encostou os cotovelos no portal da
janela e, encaixando o rosto entre as mãos abertas em
vê, olhou para os carreiros, para as cangas, para o
cachorro. Ali estavam os representantes de um mundo
distante, que ela havia esquecido. Os carreiros podiam
ser seu pai e um de seus irmãos. Sim, eram eles. Tinham
vindo buscá-la.
Em um dos cantos do vasto salão, sobre o piso de
lages de pedras, estavam empilhados muitos sacos de
mamona e milho. Em outro, mais afastado, viam-se vários
panos de toucinho e algumas cargas de rapadura.
Seus olhos fixaram-se nos dois homens deitados.
Eram eles. Tinha que ser! Como haveria de enfrentá-los?
Passou as mãos pelo rosto, sentindo-o gasto. E as
roupas? Estava quase nua para os padrões de vida de
sua família.
– Não aguento mais essa vida de roça. Qualquer
dia desses vou pra cidade trabalhar de empregada –
dissera ela para sua irmã Maria, já se não lembrava
quando.
Fazia tanto tempo!...
Maria, inconformada, respondera condenando:
– Ocê não fala mais nisso que pai não vai deixar.
Joana recordava-se bem da satisfação com que
havia recebido a informação do pai, quando este havia
decidido mandá-la para a cidade.
Dois policiais, que faziam a ronda noturna,
recolhiam-se para a Delegacia. Antes, estavam dando a
última volta pelo centro da cidade. Passando pela Praça
Governador Valadares avistaram um vulto encostado à
janela do mercado e aproximaram-se para verificação.
– Que essa puta anda fazendo por aqui uma hora
dessas? – perguntou um deles, dirigindo-se ao outro.
A voz do policial soou em seus ouvidos como uma
pancada. Ela olhou apreensiva para eles.
O mais alto dos policiais puxou-a com dureza pelo
braço e deu-lhe, sem vacilar, uma bofetada no rosto,
fazendo-a rodar e cair uns dois passos abaixo da calçada,
na poeira da rua.
Ele, irritado, gritou com tom de voz áspero e cruel:
– Suma já daqui, sua vagabunda, vá procurar a
rodilha onde quebrou seu pote.
Atirada ao chão, Joana num sobressalto começou
a soluçar baixinho. Uma palidez cobriu-lhe o rosto.
Levantou-se com dificuldade, o semblante acabrunhado,
os joelhos ensanguentados, a dor moral estampada em
seu rosto e caminhou para dentro do mercado, com
lágrimas nos olhos langorosos, buscando o amparo dos
carreiros.
– Aonde pensa que vai? – perguntou o mesmo
policial mal-humorado, enxotando-a dali com um
empurrão. – Volte já pra casa, se não quiser dormir no
xilindró.
O outro policial, de braços cruzados, observava,
inerte. Não aprovou a ofensa física, mas nada disse.
Encolheu os ombros, olhando para o colega com uma
gravidade cômica.
Joana, pálida e arquejante, recuou assustada,
cobrindo o rosto com as mãos. Olhou ainda para dentro
do mercado. Estendeu a mão procurando dizer ao policial
que só queria ver os carreiros, mas não disse, pois sentiu
um nó na garganta. Sabia, entretanto, que suas
explicações de nada valeriam. Sua voz ficou embargada.
Conteve as palavras, mas não as lágrimas que desceram
silenciosas e livres pelo rosto, em soluços de angústia.
A movimentação na parte externa do mercado não
escapou à curiosidade dos lavradores. Despertados pelo
barulho, levantaram-se apreensivos.
– Foi nada, não – falou o policial mais alto. – Era só
uma puta vagabunda, querendo roubar rapadura.
O mesmo policial retirou do bolso um maço de
cigarros. Apanhou um e ofereceu outro ao companheiro.
Procurou a caixa de fósforos, batendo com as mãos nos
bolsos da farda. Não encontrou. Olhou para um dos
carreiros e ordenou:
– Traga fogo.
O carreiro apanhou um tição abrasado e o entregou
ao soldado. Este acendeu o cigarro, chupando com
satisfação, e começou a fumar tranquilamente.
***
Com o espírito oprimido, órfã de pais vivos, Joana,
sentindo-se aflitivamente solitária, afasta-se caminhando
desvairada e vagarosamente pelo centro da praça, o
corpo macerado, o andar incerto e lasso, os olhos
tumefeitos. Sentiu nos lábios o sal de suas lágrimas.
Dominava-lhe a desesperança. Com resignação, a fronte
avincada e guiada pelos dissabores da vida, não tinha
pressa. O dia ainda demoraria a clarear. Deteve-se.
Voltou-se para o mercado e olhou-o com o coração
alanceado como se despedisse, pela última vez, de seu
mundo primitivo, onde a vida nascia a cada madrugada,
no gorjeio alegre dos pássaros, nos primeiros raios do sol,
no orvalho das folhas, no canto dos galos.
A cidade dormia tranquila e indiferente. Estava
morta. Era melhor assim. Ela estava só, dentro de uma
cidade sem vida, vazia.
No silêncio de seu padecimento, um cachorro
rabicó aproximou-se alegre, fazendo-lhe festas... Não,
não estava só... Acariciou, com a mão trêmula, o focinho
frio e úmido do vira-lata. Com a mão dolorida apalpou as
escoriações do joelho.
Com uma angústia interior opressiva, as pernas
trêmulas reiniciou melancolicamente a caminhada
aproximando-se do coreto, no centro da praça, que estava
erma àquela hora da noite. Presa à escravidão social, ao
mercado da prostituição, sem a sombra da fé, como um
espelho sem luz, naquela hora de amargura, pensou em
Deus, no Deus de seus pais, no Deus que ela havia
esquecido, que a abandonara. Tudo em sua volta era
indiferente e silencioso. Culpou Deus por sua desventura.
Por que ela não podia entrar na igreja como as demais
pessoas, sem ser vista com maus olhos, observada,
apontada? Odiou os homens, a espécie humana, que não
sabia perdoar, dar novas oportunidades aos seus
semelhantes. São todos insignificantes, bichos-debicheira. Estão juntos na podridão da ferida, apenas
juntos. Com essas imprecações na mente, ela galgou os
degraus da escada do coreto, com o espírito morto pelos
desenganos da vida. Enquanto subia, olhou para trás com
os olhos tumefeitos, procurando localizar o cachorro. Em
cima, com os olhos embaçados pelas lágrimas vertidas,
olhou para a torre da igreja, para a cruz de ferro inserida
no seu cimo, com os braços abertos para a cidade.
Sentou-se no último degrau da escada, sem
pressa; a noite é comprida.
Esperança morta e sem alento, para ela, naquele
momento, era indiferente se as estrelas do céu estavam
brilhando ou se tinham se apagado para sempre. Do seu
interior, naquele remanso da vida, em detalhado close-up,
emergiu a figura de Adão, seu namorado. Memorou as
promessas não cumpridas como se tudo estivesse
acontecendo naquele momento. Olhou para a casa onde
havia morado e trabalhado como empregada doméstica.
“Domingo a gente vai na casa de seu pai conversar com
ele... A gente pode até casar na festa da Serra”. Ele a
apertava contra a parede do muro, como se quisesse
esmagá–la. Suspendeu a blusa da grotesca fantasia e
apertou as carnes nuas de suas costas. Desceu a mão
pelas nádegas e suspendeu a saia. Dentro dela crescia
um desejo indefinido e incontrolável, forçando-a a apertar
com força o peito dele contra seus seios. Ele, pródigo em
juramentos, dissera: “A gente vai casar”. Foram as últimas
palavras que ela ouviu, mas que já não faziam sentido.
Naquela noite, perdeu o tesouro da castidade. Em seu
rosto, naquele instante, um duplo olhar – risonho e
lacrimejante.
O cachorro subiu as escadas do coreto e veio
fazer-lhe companhia. Ela sentiu frio. Olhou o animal, com
humildade. Lágrimas destilaram com abundância de seus
olhos e desceram pelas faces. A brisa fresca da
madrugada, soprando de leve, acariciava lhe o rosto
molhado.
O silêncio da rua foi quebrado por um galo que
cantou, anunciando a aproximação da aurora. Outros
galos cantaram em acompanhamento. Um novo dia
nascia.
O cachorro deitou-se a seus pés.
Com o clarão da manhã, aquietada a aflição da
noite, ela, enxugando os olhos, desceu as escadas do
coreto para a vagabunda ociosidade monótona e
despersonalizada de sua vida.
A rua estava, ainda, deserta.
18
Na segunda–feira, Antônio estava de volta à
fazenda. Sentia-se ligado a Elza de corpo e espírito.
Tinha, contudo, que tomar uma decisão: ela ou Nádia.
Nada tinha feito depois de ter chegado à fazenda. Nem
mesmo havia mandado Lázaro desarrear seu cavalo.
Depois de um exame de consciência, ficou
convencido. A segunda não lhe havia feito nada que
justificasse um rompimento, mas tinha dúvidas quanto aos
seus sentimentos. Entre eles não havia, necessariamente,
um compromisso. Aos poucos, convenceu-se de que não
sentiam prazer em ficarem a sós. Quando estava longe
dela, uma força de impulsão levava-o a procurá-la,
contudo, quando estavam juntos, outra força, talvez mais
forte, de repulsão, por carência de atração, provocava a
necessidade de rompimento daquele relacionamento.
Conversavam melhor na presença de Nélio e Helena. Ele
mesmo, quando estavam a sós, evitava conversas mais
longas. Não se lembrava como tudo havia começado.
Teria sido no carnaval do ano anterior ou um pouco antes,
no réveillon. Haviam se encontrado na tarde de domingo e
à noite na praça. Antônio confirmou que realmente nada
existia entre eles. Nada concreto; nenhum amor
verdadeiro. Cumpriam um ritual, mais por solidariedade
aos outros dois amigos, que por interesses próprios.
Embora o pai de Elza e todos da casa fossem seus
amigos, não teve coragem de ir visitá-la. Antes sempre
passava por lá, batia um papo, tomava um cafezinho e se
mandava. Agora as coisas haviam se complicado. Havia
descoberto Elza. Como é que não tinha reparado antes?
Ela estava ali, ao seu alcance, no seu convívio diário. Os
parentes dela participavam ostensivamente das lutas
políticas do coronel Brandão. Eram amigos. Maktub. No
sábado, quando voltasse da fazenda, iria visitá-los.
Montou a cavalo e saiu para dar uma volta pela
fazenda, para espairecer.
***
Maria, no verdor de seus dezesseis anos, no viço
da vida, viera com Manoel de Firmina, a pedido de dona
Paulina, para auxiliar nos trabalhos da casa. Naquele dia
deveria ser concluída a segunda limpa da roça. Seria o
último mutirão. Meio desconfiada e sem jeito, entrou na
cozinha pela porta dos fundos. Obedecendo às ordens de
dona Paulina, mulher de Celino, lavou as mãos e as
enxugou na saia.
– Como sua mãe tem passado? – perguntou dona
Paulina.
– Tá bem, assim, assim.
Parou um instante informou:
– Vosmecê num tá sabendo, não? Faz uns três
dias que ela moveu. Era uma menina.
– Eu num sabia que sua mãe tava prenha.
– Pois tava. Moveu com três mês.
– Pois é. Apanha aquela lata ali e vá buscar água
no córrego – ordenou dona Paulina.
Maria apanhou a lata e desceu para o riacho, que
corria em uma verdejante baixada, há pouco mais de
trezentos metros da casa.
Antônio passeava pelos arredores em seu cavalo
baio, presente de seu padrinho.
Sombras erradias de nuvens formavam manchas
passageiras sobre a hirsuta capoeira das margens do
córrego.
Ele subia pela escarpa mais íngreme da estrada,
vindo do córrego, quando avistou a mulata que descia
molemente, com a lata na cabeça, indiferente a tudo.
Parou o cavalo e esperou.
A moça, de uma beleza felina, teve dúvidas em
prosseguir. Conheceu logo Antônio, mas sabia que ele
não a conhecia. Vinha poucas vezes à fazenda e ele
passava a maior parte do ano fora, cuidando dos seus
estudos. Ela, meio tímida, olhou para ele com uma
espécie de fascinação, de submissão. Os olhos, ele não
os definiu, mas os pressentiu castanhos, ou seriam
pretos?
Com seu corpo flexível e pele trigueira, retomou a
caminhada, passando por ele, que a observava,
encantado. Ela tinha um não-sei-o-quê que prendeu
Antônio. Ela ficou inquieta, sentindo uma sensação
desconhecida, inoportuna.
Antônio, deixando-a passar e vencida a hesitação,
como um destro vaqueiro, à sorrelfa, embarafustou-se
afoito pelo mato, em demanda ao córrego, abrindo
caminho pela capoeira.
Ela olhou para trás, mas não o viu. Ele tinha
sumido.
Na margem do córrego, com viril anseio, Antônio
aproximou-se cautelosamente e amarrou o animal a um
galho de angico. A pé contornou o barranco até alcançar
a fonte. Escondido em uma moita de tabocas, esperou
pela chegada da moça, que não tardou.
O dia estava quente.
Na beira do regato, ela colocou a lata e a rodilha no
chão, próximas a um toco cendrado de aroeira, sob a
copa de um angico-branco e abriu os braços,
espreguiçando-se. Estava só. Olhou as águas cristalinas,
que rolavam translúcidas e serenas sobre o leito de
cascalho. Sem que tivesse realmente vontade de tomar
banho, após um ligeiro vacilo, olhou cautelosa em
derredor, sorridente, e suspendeu o vestido de algodão –
única peça de roupa que usava – fazendo-o passar pela
cabeça, e jogou-o junto à lata.
– Fecha a porta que o boi “é vem” – disse enquanto
passava ligeiramente o pé sobre uma moita rasteira de
sensitiva, deliciando-se com o movimento das folhas que
se fechavam.
Antônio, com os olhos cravados nas pernas
esbeltas de carne rija, lambeu os lábios ressequidos, e
subiu os olhos vagarosamente, deliciando-se.
Sentindo-se esparsa, ela caminhou suavemente
em direção à água. Seus pés sentiram a friagem da lama
antes de se molharem. Ela viu sua imagem refletida no
espelho das águas. Uma ninfa? Não. Uma rainha.
À medida que se aprofundava, as águas
transparentes, ensombradas pela copa do frondoso
angico-branco, iam subindo maliciosamente pelas pernas,
atingindo os joelhos, cobrindo a metade das coxas,
despertando luxúria. Ela levou as mãos entre as pernas e,
num gesto rápido, jogou-se na correnteza. As águas a
acolheram num abraço terno.
Antônio, que tudo via, permanecia quedo, olhandoa encantado. Não sentia nem mesmo as picadas dos
pernilongos. Nada para ele era mais valioso. Estava em
êxtase com a visão do corpo nu da moça, que nadava
suavemente.
Nadando como uma náiade, ela punha à mostra
todo o seu corpo de inefável beleza. De costas sobre as
águas, os seios apontavam para o infinito, mostrava ao
Criador a perfeição de sua criatura.
Antônio acomodou-se melhor atrás da moita. Era
como se estivesse vivendo um sonho.
Atingindo a outra margem do córrego ela pôs-se de
pé, o corpo meio submerso. Com as mãos, num gesto
simples, afastou os cabelos que lhe cobriam o rosto. As
piabas roçavam-lhe as pernas, prestando-lhe vassalagem.
Ela era, naquele momento, a rainha das águas. O seu
reino era o córrego. Os peixes, os pássaros e as árvores
em volta, seus súditos. A majestade evidenciava-se na
beleza de seu corpo, na harmonia de suas formas, na
naturalidade evolutiva de seus movimentos. No seu reino
não existiam problemas sociais, nem políticos, nem
econômicos e ela reinava soberana, sem pompas e sem
honrarias. Sorriu satisfeita, estendendo os braços para
frente e jogou-se sobre as águas que, como cortesãs
submissas, cobriram-lhe o corpo. As pedras disputavam o
direito de serem pisadas e a areia acariciava seus
augustos pés. Com sua cauda bifurcada, uma tesourinha
pairou no ar sobre sua cabeça.
Antônio engoliu em seco e pensou:
– Linda! Muito linda!
Arvorando todo seu supremo poder e deixando
para trás o manto de águas que lhe cobria o corpo, com
natural elegância caminhou rumo à lata, as gotas d’água
ainda a rorejar. Os arbustos das margens, tocados pelo
vento, inclinaram-se ante ela. Um galho de assa-peixe, de
onde pendiam duas crisálidas laranjo-avermelhadas, em
silvestre vênia, chegou a tocar de leve o chão, arqueandose em reverência. Ela jogou sobre o corpo molhado o
modesto vestido de algodão. Encheu a lata com a mesma
água onde há pouco havia tomado banho. Ajeitou a
rodilha na cabeça, suspendeu a lata e empreendeu a
viagem de volta, portando como atributos a virgindade e a
rude simplicidade.
Um pequeno orifício no fundo da lata derramava
um filete de água, que caía gostosamente sobre o seu
corpo.
Acordando de seu transe hipnótico, da visão
maravilhosa daquele cenário do Éden, Antônio voltou
rápido para onde havia deixado o cavalo e, sem se
preocupar com os possíveis arranhões que o mato
pudesse fazer em seu rosto, saiu em rápido galope. As
imagens do banho se diluíam em sua mente, mas ele
procurava prendê-las.
Chegou à casa muito antes de Maria. Deteve-se
momentaneamente pensativo antes de desmontar do
cavalo.
Esperou por ela. Logo que a lata foi posta ao chão,
retirou dela um copo bem cheio e bebeu daquela água
salobra, como se estivesse bebendo o próprio corpo da
menina-moça.
Dona Paulina, uma negra de pele lustrosa, lançou
um olhar de esguelha, observando a cena e informou:
– Seu Antônio, tem água do rio no pote. Ess’água
do córrego tá quente e não é boa.
A observação ficou vagabundeando no ar.
Dona Paulina, sem nada compreender, declarou:
– Tem café novo no bule, em riba do fogão.
Maria, encostada a um canto da cozinha,
aguardava novas ordens, olhando de soslaio para
Antônio. O vestido molhado, colado ao corpo, mostrava
bem vivas as formas que Antônio já conhecia, dando-lhe
mais sensualidade e provocando fantasias. Bonita, muito
bonita ela parecia agora. Dos cabelos molhados corriam
livremente pequenas gotas d’água, que caíam sobre os
ombros.
A dona Paulina, com a experiência de seus 35
anos, não passou despercebido o olhar de Antônio. Ela
ordenou a Maria:
– Tom’aqui. Vá catar esse arroz lá fora, pro sol
secar sua roupa.
Voltando-se para Antônio, perguntou:
– O senhor não quer café? Tá quentinho. Feito
agorinha mesmo.
Parou um pouco e insistiu:
– O senhor quer um pouco de coalhada? O senhor
não comeu nada depois que chegou da cidade.
Maria retirou-se vagarosamente, sentido o olhar de
Antônio. Teve ligeiramente a impressão de estar nua. Os
seios firmes forçavam o frágil tecido, que se ajustava às
suas formas. Com o canto do olho ela viu que ele
continuava a olhá-la.
– Ele vai me botar quebranto – pensou.
Riu interiormente de sua infantilidade, enquanto
saía pela porta da cozinha, levando nas mãos a gamela
com arroz.
Depois que Maria saiu, Antônio perguntou a dona
Paulina, em tom confidencial, ao ouvido:
– Quem é essa moça?
– Ué!... É Maria, filha de Seu Mané de Firmina, o
senhor tá lembrado dela, não?
Antônio estava adorando aquela singeleza de
menina-moça.
19
Elza passou a viver na expectativa de um possível
encontro com Antônio. Era uma moça graciosa, bonita.
Alta e esbelta, cabelos claros, lisos e longos, que desciam
até a cintura, no esplendor da virgindade.
Ela deixava o tempo fluir, devaneando, pensando
nele todas as horas do dia, em tenuíssimo sonho de viver.
Nada haviam falado e não sabia como tudo iria começar,
se é que começaria. Os olhos dele haviam transmitido
reações e sentimentos que nenhuma palavra poderia
substituir. Viu-se, de um momento para outro, sem
maiores empenhos, postada em uma condição ambiciosa
de ilusória fantasia, que lhe borbotava no coração. Tinha
presente em sua mente a lembrança do olhar penetrante
dele no último baile, da dança e da proposta de namoro.
Ela meditava ouvindo a voz da ilusão, vislumbrando
antecipadamente a possibilidade de amor, o mais nobre
de todos os afetos humanos. Estava feliz. Na primavera
da vida, seu coração pulsava com casta alegria. Tornarase uma moça risonha e expansiva, vivendo fantasias de
antemanhã amorosa, que ela mesma criava. Ingênuas
abusões de curiosidade ardiam-lhe o pensar sobre como
seria seu primeiro encontro com Antônio.
Haveria de encontrá-lo sábado, durante o baile no
bar de doutor Breno. Cuidou de se preparar. Pediu à mãe
um vestido novo e ela condescendeu. Sua alegria não
encontrava limites.
Tudo lhe parecia uma quimera, em uma dualidade
de imaginações.
– Será qu’ele vai?
Elza, desnudando os segredos de seu coração,
havia formulado a pergunta em voz alta, quase sem
sentir, o rosto iluminado. Estava descuidada, completando
os serviços de mão da barra do vestido.
– Ele quem? – perguntou Elvira, certa de que
acabava de descobrir uma travessura de Elza.
Elza sentiu subir-lhe o rubor à face. A pergunta
embargou-lhe os pensamentos. Momentaneamente ficou
sem movimento. Passou a mão pelos cabelos e baixou os
olhos antes de formular uma resposta.
– Nada. Estava distraída... Esqueça.
Elvira insistiu, gracejando, com olhar farejador:
– Quem é o felizardo?
Com as faces enrubescidas, Elza procurou corrigir
a traição de seu devaneio.
– Depois eu conto. Ainda não sei ao certo. Além
disso, ele tem namorada firme.
– Santinha-do-pau-oco... Como é que você
conseguiu enganar a todo mundo até agora? Ninguém
sabe que você tem namorado. Se você não me contar, eu
falo com Marília e ela não deixa mais você sair.
Pela porta e pelas janelas abertas entrava uma
brisa fresca.
Elza suspirou baixinho, olhando para Elvira.
− Adivinhe.
− Não tenho a menor ideia.
– Se você prometer guardar segredo, eu conto.
Elvira, cruzando os dedos da mão, indicou que ela
podia confiar e disse:
– Pode contar comigo... Você já se encontrou com
ele?
Elza continuou muda, refletindo. Finalmente, disse:
– Não. Só flertamos no baile, em casa de dona
Maria Peres... Coisa sem muita importância.
Elza levantou-se bem-disposta. Sorrindo com os
olhos, suspendeu o vestido novo até a altura dos ombros,
deixando-o cair, colado ao corpo.
– Tá bem?
Seu sorriso se abriu claramente.
– Tá ótimo. Você vai abafar... Mas, quem é o
felizardo?
Com os olhos postos no vestido ela disse:
– Tou segura, não. Ele olhou para mim. Convidoume para dançar, mas não disse nada... Olhou para mim o
tempo todo, como se quisesse dizer alguma coisa... Seus
olhos me prendiam.
– Sim, mas quem é ele?
Ela fez uma pausa, meditando, esperançosa. Fixou
os olhos em Elvira e falou, rápido, como quem não quer
falar:
– Antônio, filho do coronel Brandão.
– Oh! Que ótimo... Notei que ele olhou muito para
você outro dia, aqui na porta. Lembra-se?
– Mas olha lá, não vá dar com a língua nos dentes.
Pode não dar em nada.
– Minha boca é um botão – disse Elvira, levando a
mão à boca.
– Ele parece gostar muito de Nádia... Namoram há
muito tempo.
Elza foi à janela aberta de par em par e debruçouse sobre ela, espreitando a praça, que dali se avistava,
com seus jardins floridos, suas árvores, seus gramados
verdes e bem tratados. Sorriu sozinha. A cidade haveria
de crescer. Outras praças seriam construídas, muitas ruas
seriam abertas, mas aquela praça continuaria ali. O lugar
possuía algo de especial, que ela não sabia explicar...
Certa nobreza. Uma dignidade das coisas antigas. Era
como se possuísse uma personalidade própria, Era
bonita, sem a ostentação vulgar das coisas modernas...
Quem a teria construído? Não sabia... Não interessava
saber. Era a praça da cidade... Quando chegou a São
Francisco, com seus pais, há alguns anos, vindos da
Bahia, ela já estava ali... Seus olhos prenderam a praça
como um todo. Teve ligeiramente a impressão de que as
duas alas laterais dos jardins se fechavam como duas
gigantescas mãos sustentando o coreto, que se projetava
ao centro. Sorriu, satisfeita, a uma amiga que passou.
Nela já brotava a semente do amor, como um capítulo
novo em sua vida. Entrou a perceber-se que gostava de
Antônio.
Voltando-se para Elvira, declarou resoluta:
– Vou lutar por ele.
Ela sorriu depois de revelar sua disposição.
Passos ressoam pelo corredor interno da casa.
Calaram-se.
Elza sentou-se em uma cadeira que estava
próxima à máquina de costura. Cruzou as pernas, dobrou
o vestido novo sobre o colo e começou a acariciá-lo,
pensando em Antônio, no baile do próximo sábado. Como
ia demorar!... Faltavam ainda cinco dias.
O quarto de costuras era pequeno, com duas
janelas e uma porta, que se abriam para a praça. Não
tinha forro, como o resto da casa, mas ripas, caibros e
telhas à mostra. O piso era de ladrilho de barro cozido e
as paredes de adobe. Construção antiga e descuidada. O
proprietário cobrava aluguel barato e não se preocupava
com a conservação do imóvel.
Marília assomou à porta. Era uma solteirona alta e
magricela. Trazia sobre os ombros o peso dos seus trinta
e dois anos, sem casamento. No rosto, via-se a máscara
de uma víbora, em contraste com sua mãe, dona Benta,
uma santa.
O ronco distante de um motor, a princípio
indefinido, depois bastante claro, indicava a chegada de
um teco-teco, que pousaria no Campo de Aviação da
cidade; possivelmente, um paulistinha.
– O almoço tá pronto – informou Marília. – Cês vêm
comer enquanto tá quente.
Elza levantou-se rápida. Jogou o vestido sobre a
cadeira e, sinceramente alegre, de passagem pela porta,
abraçou a irmã, dando-lhe um beijo na testa. Correu pelo
corredor rumo à sala de jantar.
Marília lançou um rápido olhar para Elvira e
perguntou:
– O que deu nela?
Elvira limitou-se a levantar os ombros.
Filha caçula entre seis irmãos, Elza crescera
geniosa e autoritária. Embora não fosse instruída, era
prendada. Costurava e bordava bem. Bordava mais que
costurava. No rosto mantinha um sorriso de inocência.
Um cão uivou no quintal vizinho, uivo prolongado e
lastimoso.
20
Cinco horas da manhã, ao lusco-fusco da
madrugada, Crispim, agregado do coronel Brandão,
montado em uma égua tordilha e correndo à rédea solta,
chegou apressado à sede da fazenda. Estava
visivelmente nervoso.
Nos arrebóis da manhã, Lázaro estava
arrebanhando as vacas soltas pelo pátio a fim de levá–las
ao curral, para início da ordenha.
Com voz açodada, sem desmontar, Crispim
perguntou:
– Lázaro, o coronel Brandão já levantou?
– Sei, não! Acho qu’ele já deve de tá de pé.
Demonstrando preocupação e medo, Crispim
disse:
– A gata pegou um cabrito no meu chiqueiro,
ind’agorinha mesmo, no pispiar do dia.
– Preta ou pintada? – perguntou Lázaro com
aparente naturalidade.
– Sei, não! Parece que é preta. Vi só o vulto dela
entrando na capoeira, no fundo da casa.
Lázaro, apontando para a casa sede da fazenda,
disse:
– Olha lá! Ele já levantou. Vá logo lá falar com ele.
Ele tá indo pro comércio agora mesmo.
O coronel Brandão era um sossego de homem e
refletia uma sabedoria estática.
O dia chegava devagar, vencendo a escuridão da
noite. Os sabiás, pulando de galho em galho nas florentes
laranjeiras do quintal, modulavam silvestre sinfonia,
saudando os primeiros sinais da aurora. No horizonte, a
tênue claridade da madrugada procurava vencer a
cobertura de nuvens, que se antepunha à sua passagem.
***
Na sede da fazenda, em alvoroço, os aprestos para
a caçada foram imediatamente iniciados. Limpavam-se
espingardas, lubrificavam-se carabinas, recolhiam-se os
cachorros.
Aparentemente calmo, o coronel Brandão, dando
ordens, tomava todas as providências.
– Mandem avisar ao compadre Zé Curador.
Antônio, enquanto colocava sobre a mesa duas
caixas de cartuchos, disse:
– Quero a papo-amarelo. Aqui tem cartuchos para
espingarda 24 e 16, com bala ou chumbo grosso.
Lázaro ordenhou duas vacas e soltou a bezerrada.
O curral encheu-se de berros. Berros dos bezerros à
procura das mães; mugido das vacas à procura dos filhos.
Despreocupado do curral e açodado pela notícia,
Lázaro foi ao pasto e tratou de reunir e arrear os animais.
No mínimo, seis cavalos seriam necessários, de acordo
com as ordens do coronel Brandão.
A notícia correu célere, fazendo afluir inúmeros
voluntários a indagar, apresentando-se para a grande
empreitada. A casa enchera-se de curiosos. Nem todos
sabiam o que iriam fazer. Apenas o coronel Brandão e o
velho José Curador tinham experiência e conheciam os
riscos a enfrentar, mas todos convinham que a presença
de Manoel de Firmina fosse importante. Todos os demais
eram marinheiros de primeira viagem. Rastrear onça na
catanduva não é o mesmo que esperá-la na carniça. É
luta de igual para igual.
Manoel de Firmina foi o último a chegar. O coronel
Brandão havia mandado um portador, a galope, avisá-lo.
Não havia como fugir à convocação.
– Com essa espingarda cano de chapéu-de-sol, de
carregar pela boca, ocê não vai nem fazer cosca nela –
brincou Celino.
Lázaro riu.
Manoel de Firmina sorriu contrafeito e disse:
– Pra mim basta meu facão jacaré. Vou picar ela
toda em pedacinho.
O coronel Brandão indagou:
– Compadre Zé Curador trouxe o Malhado? Ele é o
único cachorro que sabe seguir rasto de onça, sem ter
medo. Estes outros todos vão urinar só do cheiro dela.
Cachorro que late lagartixa não serve para caçar onça.
O movimento na cozinha era tão grande ou maior
que no pátio ou na sala. O coronel Brandão estava
preocupado com a demora. Ele ordenou:
– Celino! Veja se a paçoca tá pronta. Não podemos
esperar o tempo esquentar, senão os cachorros não vão
seguir bem os rastos... Iremos a cavalo até os Angicos e,
de lá, seguiremos a pé. Lembre-se de levar facão para
abrir caminho na catanduva.
21
O tropear dos cavalos e o alarido dos cachorros
denunciaram a partida. À frente da comitiva ia o coronel
Brandão montado em sua besta rosilha de nome Vaidosa,
híbrida infecunda, boa estradeira, seguido de perto pelo
filho. Encerrando o cortejo, José Curador e Manoel de
Firmina conversavam animadamente.
Os caçadores alvoroçados estavam aventurosos e
alegres, sem se darem conta de que poderiam estar
cortejando a própria morte.
Eram ao todo em número de seis, selecionados
entre os voluntários. Não havia necessidade de maior
número e as armas disponíveis não deram para todos.
O coronel Brandão, em caso de sucesso na
perseguição, contava com sua própria experiência, com o
preto José Curador e com Manoel de Firmina. Este último
havia enfrentado uma onça sem arma de fogo e havia
demonstrado muita coragem e sangue frio. Os demais
nunca tinham visto uma onça ou mesmo um rasto de
onça, com exceção de Antônio, que conhecia o animal em
circos e zoológicos.
José Curador disse:
– Onça é bicho danado, é arisca que nem gato. Ela
caminha silenciosa e pisa macio. É mais sabida que
gente. Ano passado nós matou uma lombo-preto nos
Angico... Era das grande.
Vadeado o córrego dos Angicos, pelo vau da
vazante, dentro em breve, os cavaleiros sairiam na
escalvada vargem dos Angicos, de mirrada flora, após
atravessar um quilômetro de trilha suavemente
ensombrada pela luxuriante mata da vazante, onde
refrondescem as altas braúnas e perambulam esquivas
zabelês. Pelos lados do rio São Francisco, ouvia-se o
guincho cavernoso de um barbado, que montava guarda
ao seu bando de guaribas.
O orvalho ainda molhava as pernas dos caçadores,
que roçavam nos ramos pendentes da estrada.
As mutucas, em número cada vez maior, ferroavam
o pescoço e as ancas dos animais, tornando-os
irrequietos.
Antônio vagueou o olhar pelas frondosas árvores
da vazante.
– Caçar onça acuada, em campo aberto é mais
fácil – afirmou paternalmente o coronel Brandão,
procurando transmitir confiança ao filho. – Hoje não tem
mais onça como nos velhos tempos... A pé-de-cabelo, por
exemplo, matou criações durante dois anos, do Brejo à
Canabrava, e desafiou os maiores caçadores. Havia noite
em que ela atacava, não apenas uma rês, chegava até
três. Com variados comentários, falou-se dela por muito
tempo.
Com a curiosidade excitada, Antônio ouvia
atentamente, procurando manter sua montaria o mais
próximo possível do coronel Brandão, que fez, naquele
momento, um breve silêncio, aguardando algum
comentário do filho, que não veio.
Ele continuou:
– Ela tinha um defeito em uma das patas dianteiras
e, muitas vezes, não conseguia vencer a resistência do
animal atacado, mas este saía sempre seriamente ferido.
Não matando o primeiro, atacava outro. Os prejuízos
eram grandes.
No fim da fila de cavaleiros, Manoel de Firmina,
alardeando sua coragem, contava a José Curador sua
história, procurando equiparar-se ao velho e experiente
caçador, mas rezava a todos os santos, pedindo que a
onça não fosse encontrada.
– Na hora qu’ela pisou na água, tirei o facão e
encostei dum lado da estrada. Sabia qu’era ela.
Estavam no fim da mata e já divisavam o início da
vargem, uma campina plana, de pouca vegetação. Dali à
casa de Crispim seria apenas mais um quilômetro, ou um
pouco menos.
Manoel de Firmina perguntou:
– Quantas onça ocê já matou?
– Eu não se lembro.
***
O Coronel ergueu a cabeça para olhar a planura da
vargem.
Espessas nuvens pairavam em um céu claro.
José Curador ouvia atentamente o companheiro.
Caçador experiente, ele conhecia bem os hábitos dos
felinos, sua maneira de caçar e de atacar. Para não
ofender o amigo, fingia acreditar naquela farsa enredada,
principalmente se fosse onça-preta. Suçuarana, mesmo
que fosse lombo-preto, não teria seguido um homem para
atacá-lo e, só por muita sorte de Manoel de Firmina, uma
onça-preta ou pintada teria pisado na água, fazendo
barulho, denunciando sua presença.
Contrastando–se com a mata virgem, a vargem
abria-se como uma pequena savana aos olhos dos
caçadores, com sua verdejante pastagem nativa de
gramíneas.
Esparsas
touceiras
de
alagadiço,
marchetadas irregularmente, quebravam a continuidade
uniforme da vegetação rasteira.
Alcançando a vargem, em terreno aberto, as
mutucas desapareceram.
– Era uma gata esperta – continuou o coronel
Brandão, com expressão séria – e quase nunca voltava à
carniça, como as outras. Matava, comia o que lhe
satisfizesse o apetite, e seguia em frente. Na noite
seguinte, caçava outro animal. Às vezes voltava de dia à
carniça só para caçar urubus.
Antônio estava empolgado e arriscou:
– Quem matou essa onça?
– Ela foi morta lá no Coitezeiro, dentro de uma
lapa, pelo Mariano das Cabaceiras, mas antes disso a
história é muito grande... Descobriram uma carniça dela,
nova e quase inteira, no Arrozal. Ao meio-dia, já estava
preparada uma grande jaula de madeira, bem reforçada,
não muito distante do local. À tardinha, um pouco antes
do anoitecer, puseram um tal de Torquato, agregado do
compadre Jacy, dentro da jaula, armado com uma
carabina papo-amarelo, das melhores. Estava totalmente
protegido e a distância, segura, para não errar o tiro.
– A onça não apareceu?
O coronel Brandão sorriu.
– Qual nada! Desta vez ela apareceu. Não
deveriam ser dez horas da noite quando ela chegou...
Como toda onça, não foi direto à carniça. Deu uma volta
completa pelos arredores, estudando o ambiente... Não
tardou a pressentir, pelo vento, o cheiro de homem e
começou a rosnar e a esturrar, enquanto prosseguia a
tarefa de pesquisa. Não tocou na carniça. O Torquato
tremia como vara verde e nem se lembrou da carabina.
Não é qualquer caçador que resiste ao medo quando vê,
na escuridão da noite, duas tochas fosforescentes acesas
no meio das trevas, e que não se abale com o rugido da
fera. A onça passou a menos de cinco metros da jaula e
desapareceu na escuridão da noite.
Perscrutando o horizonte, Lázaro avistou, no
lançante da mata, uma ponta de gado, que descia para a
vargem. Vinham à procura das pastagens naturais da
vargem e da aguada da lagoa do Cercadinho. Passariam
o dia na baixada e, à tardinha, voltariam para a mata.
Manoel de Firmina, típico cavalheiro de indústria,
completava sua narrativa:
– Inda fiquei parado, esperando. Como não sou
besta, peguei o facão e comecei a bater na lata pra fazer
barulho.
José Curador ouvia aquela parlenga sem acreditar.
Os outros caçadores não tinham novidades a
contar e se limitavam a seguir viagem, levando os
cachorros atrelados.
Lázaro fez um sinal com a mão, indicando que iria
ver as rezes que desciam. Era sua principal obrigação.
Ainda de longe reconheceu o garrote curraleiro de
Cristino, fazendeiro vizinho.
– Aquele pesteado voltou – pensou.
Chegando-se mais perto do gado, verificou que a
vaca Jurema estava com uma bicheira no vaso. Se fosse
curar, perderia a caçada. Quebrou um ramo verde, sem
olhar de que árvore e, partindo-o em dois, fez com os
pedaços uma cruz, dizendo mentalmente e olhando para
a vaca, que descia tranquila para a vargem:
– Assim como Jesus, filho de Maria, foge da mesa
de quem não reza, assim cai os bicho dessa bicheira, de
um em um, de dois em dois, de três em três, de quatro em
quatro, de cinco em cinco, de seis em seis, de sete em
sete! Bicho cai, vareja seca e bicheira fecha, com os
poder de Deus e da Virgem Maria, Amém!
Repetiu três vezes a oração, fazendo e desfazendo
cabalisticamente a cruz. Apeou-se e colocou a pequena
cruz em cima do rasto da vaca. Concluída a benzedura,
montou e voltou a galope, ao encontro dos outros
caçadores.
Emparelhou seu cavalo ao de Antônio, dizendo:
– A Moeda tá muito adiantada. Na volta, vou levar
ela... O garrote curraleiro de Cristino voltou e tá batendo
com a Piracema.
Antônio, com a testa franzida, disse:
– Se der tempo, depois da caçada, vamos castrálo, aqui mesmo na vargem e levamos os testículos para
dona Paulina assar.
– Na volta, deve de ter mais gado. O melhor é
mandar trazer sal pra botar no cocho, no curral de
Crispim. Assim fica mais fácil de pegar o garrote e a gente
aproveita pra separar o gado que for preciso.
– Creio que assim é melhor. Nesse caso, mande
Crispim apanhar sal, mas não se esqueça do ferrão e do
laço. Se ele não entrar no curral, nós vamos pegá-lo de
qualquer maneira. Já avisei seu Cristino.
– A Jurema tá com bicheira no vaso, mas já curei.
– Curou como?
– Rezei no rasto dela. Não vai ficar nem um bicho.
– De qualquer forma, é mais seguro aproveitar e
levá-la também.
– Pela bicheira eu garanto. Tá curada.
– Sei lá! Não acredito em nada que não tenha um
fundamento lógico. Você nem pegou na vaca. Se tivesse
posto qualquer coisa, mesmo que tivesse sido apanhado
no mato, era mais fácil de acreditar nos resultados.
– O senhor vai ver. Não vai ficar nem um bicho.
Antônio aproximou-se novamente do coronel
Brandão.
– Como eu tava lhe falando. Ela não voltou mais a
nenhuma carniça. Foi acuada duas vezes, mas matou os
cachorros antes dos caçadores chegarem... Nas águas
seguintes, ela atravessou o rio para o outro lado e matou
muito gado no Lajedo. Na seca, ela voltou.
– Era onça-preta ou pintada?
– Era uma canguçu das grandes, pintada, legítima.
Nenhuma onça fez mais estragos do que ela em toda
essa região.
Uma codorna ergueu-se em voo rasteiro, bem
embaixo das patas da montaria do coronel Brandão,
espantando o animal, que se arrancou para um lado da
estrada.
Com a besta novamente sob controle, o coronel
Brandão reiniciou sua narrativa.
– Ela matou ainda muito gado até que um dia
pegou um bezerro em um Retiro do compadre Jacy, no
Coitezeiro. Ao romper do dia seguiram o rasto dela até
uma lapa, não muito longe do Retiro. A entrada da lapa
era estreita e taparam a boca com uma grande pedra. Em
seguida, foram avisar ao compadre Jacy. A notícia correu
por léguas ao redor. Uma verdadeira multidão se juntou
em volta da furna, não faltando os vendedores de pinga.
O coronel Brandão balançou a cabeça
afirmativamente e completou:
– Uma festa.
Uma ligeira pausa.
– Ninguém se oferecia para entrar na lapa, embora
já somassem a cinco o número de novilhas oferecidas
pelos fazendeiros, para quem matasse a onça... Depois
de uns bons goles de pinga, um tal de Ferreirinha arriscou
dar uma de valente. Ele disse: “Será que não tem homem
nessa terra? Se tiver um, eu entro mais ele”. Desesperada
com a prisão e já faminta, a onça começou a esturrar
dentro da lapa. Um esturro mais forte era sempre seguido
de outro mais fraco. O compadre Jacy observou: “Parece
que tem dois gatinhos lá dentro. Quem acompanha o
Ferreirinha?” Ninguém se ofereceu. Fora da lapa parecia
uma romaria. O compadre Jacy já tinha mandado matar
uma vaca para fazer churrasco e a carne já estava
acabando.
Crispim, que havia retornado à sua casa logo após
haver dado a notícia ao coronel Brandão, avistou a
comitiva logo que entrara na vargem. De sua casa,
estrategicamente construída em uma aprazível elevação
do terreno, via-se toda a vargem até a Lagoa do
Cercadinho onde, naquele momento, um bando de ariris
fazia verão para pousar.
O coronel Brandão continuou:
– Finalmente o Ferreirinha resolveu entrar sozinho.
Preparou o facho e recebeu uma carabina 44, com oito
balas. Mandou retirar a pedra e espiou para dentro da
lapa. A onça deu um esturro forte. Suas pernas
começaram a tremer e suas calças se molharam.
O coronel Brandão riu mansamente.
– A lapa teve de ser fechada. Dois dias depois,
chegou o Mariano das Cabaceiras, que não se fez de
rogado. Preparou, ele mesmo, uma azagaia e prendeu
nela um facho. Experimentou a carabina, que foi
carregada e descarregada duas vezes, em manobras
rápidas. “Quero ver s’ela não engasga bala” – ele disse.
Em seguida, apontou para um carcará, que estava em um
galho próximo e puxou o gatilho. O estampido da arma
provocou uma série de rosnados e esturros dentro da
gruta.
Antônio escutava atentamente.
O coronel Brandão esporou o animal para
aumentar a marcha, e continuou:
– Mariano mandou abrir a furna. O compadre Jacy
recomendou muito cuidado.
A vigilância recomendada era necessária, posto
que em caçada dentro de qualquer caverna com paredes
anfractuosas, em caso de errar o tiro, havia a
possibilidade de a bala ricochetear e voltar para o
atirador.
O coronel Brandão prosseguiu:
– Enquanto se esforçava para passar pela entrada
da lapa, Mariano disse: “Tem perigo, não”. Com o facho
aceso à sua frente e a carabina colada ao corpo, foi
descendo vagarosamente, observando, com olhos de
lince, os pormenores da furna. Segundo ele disse depois,
uns cinco metros abaixo, a passagem tornara-se maior,
permitindo–lhe movimentos mais livres. O cheiro forte,
nauseabundo, cheiro que emanava da onça, estava
quase a sufocá–lo, mas prosseguiu na descida, sem
vacilar.
O coronel Brandão olhou para o filho.
– Um vulto saltou à sua frente, passando de um
lado para outro da lapa, como se estivesse saindo de um
compartimento superior, acima de sua cabeça. Ele
redobrou os cuidados e esperou um pouco.
Com voz fluente, o coronel Brandão fazia questão
dos pormenores.
– Exatamente como ele contou depois, o silêncio
dentro da furna não lhe agradava. Não era natural. A onça
deveria estar nervosa, miando ou esturrando. Desceu
mais um pouco, até alcançar a borda de um grande salão.
Dois grandes olhos, como duas tochas vermelhas, o
espreitavam de um ponto mais alto, como se estivessem
em cima de uma grande pedra. Não viu o corpo da onça,
mas não podia esperar muito. Firmou a azagaia contra a
parede da lapa e levou a carabina pra frente,
devagarzinho. Marcou entre os dois olhos e puxou o
gatilho. Quase perdeu os sentidos com o estrondo
provocado pela detonação.
O coronel Brandão franziu a testa, rememorando:
– O estampido do tiro da carabina, acompanhado
de um breve clarão, retumbou nas profundezas da
caverna e provocou uma avalancha de estalactites, que
se deslocaram do teto da furna. Ele não se moveu. Um
esturro forte e o salto de outro vulto fê-lo consciente de
que ainda não estava só. Tinha errado o tiro ou eram
duas onças. Ele manobrou a carabina e esperou até que
suas vistas, agora mais habituadas à escuridão, puderam
ver o corpo inerte da primeira onça. Mais além, outra onça
fitava o facho de luz, com olhos fosforescentes, mas não
atacava. Ele hesitou. Disse ele que pensou em voltar de
costas. Seus ouvidos não aguentariam um segundo tiro.
Antônio estava excitado, com o espírito invadido de
curiosidade.
O coronel Brandão fez uma ligeira pausa e
continuou:
– O ambiente fechado da lapa aumentava
exageradamente o estampido da arma. Ele não teve
alternativa. A onça já havia tomado sua própria iniciativa.
Alisara a cara, levantara as patas dianteiras e vinha
caminhando em sua direção. Marcou o peito, entre as
duas patas levantadas, abertas num oferecimento de
braço, e atirou. A onça deu um salto para um lado e caiu,
retorcendo-se toda nos estertores da morte.
O Coronel respirou:
– Ele entrou no salão. Encostou a azagaia com o
facho numa pedra que estava perto da última onça que
matara. Era uma onça-preta. Se era preta não era a péde-cabelo. Foi até onde estava a outra. Esta sim, era
pintada. Uma canguçu enorme. Verificou as patas
dianteiras e confirmou o defeito, que para muitos não
passava de uma lenda. Uma das patas era defeituosa e
ao caminhar, deixava marcas de pêlos no chão, por onde
passava.
O coronel Brandão, acabando de resumir a história
da pé-de-cabelo, com a fisionomia carregada e tom
persuasivo, procurando infundir responsabilidade ao filho,
achou de bom alvitre informá-lo dos reais perigos da
caçada.
Ele disse:
– Escute bem. Vou ser franco com você. Caçar
onça é muito perigoso. Você precisa ter cuidado, muito
cuidado. Se ela aparecer, você fica perto de mim o tempo
todo.
Os animais pararam em frente à porteira do quintal.
Logo que os recém-chegados descavalgaram,
Crispim levou-os ao chiqueiro das cabras.
Na cerca do chiqueiro havia visíveis sinais de
sangue. Sangue preto e coalhado. Viram as marcas das
patas da onça.
– Preta ou canguçu, seja lá o que for, é grande –
sentenciou José Curador, enquanto contornava com o
dedo as bordas do rasto.
Não se observavam sinais de animal arrastado. O
cabrito era pequeno e poderia ter sido suspenso pela
boca. As pegadas podiam ser facilmente seguidas e
indicavam que a fera havia seguido pela cerrada mata no
rumo do Mundo Novo, uma lagoa isolada no centro do
agreste, cercada por grande extensão de mata virgem.
O coronel Brandão levantou os olhos e disse:
– Deve ser onça-preta ou pintada. O rasto está
muito grande para ser de suçuarana.
José Curador afirmou:
– É!... Deve de ser onça-preta mesmo.
No terreiro da casa, as galinhas ciscavam,
indiferentes. Uma lagartixa estendeu-se entre duas achas
do chiqueiro, batendo com a cabeça. Dentro da casa,
Ideralda soprava o fogo, apressada com o café. A fumaça
da lenha verde queimava–lhe os olhos.
– Que fogo pesteado – pensou.
Despejou um pouco de querosene e a lavareda
cresceu, para amiudar logo em seguida.
Um joão-de-barro montava guarda à porta de sua
casa, construída em um galho do juazeiro, em cuja
sombra estavam os animais. Um canário-amarelo trinou
no galho de uma laranjeira.
– Os canários do Angico são os melhores canários
de briga que se conhece – afirmou o coronel Brandão,
procurando localizar, na laranjeira, o canário cantador.
Crispim convidou:
– Entra pra dentro; o café já deve de tá coado.
O coronel Brandão não podia perder tempo. Fez
com a cabeça um sinal afirmativo e entrou para tomar um
cafezinho ligeiro. Ele disse:
- A onça, de barriga cheia, deve estar dormindo. Tá
muito longe, não.
Ele foi até a cozinha, enquanto os demais
caçadores terminavam os preparativos.
Ideralda arrumou a lenha e, apoiando as mãos
sobre o fogão, abaixou-se para soprar o fogo. Suas saias
apertadas e curtas subiram até a metade das coxas,
deixando à mostra um belo e ainda bem conservado par
de pernas.
– Não demora não, Coronel. Tá quase fervendo.
– Tem pressa, não. Pode soprar o fogo.
***
O coronel Brandão, após transmitir em breves
termos algumas orientações, mandou soltar os cachorros.
O Malhado, destro sabujo, posto no rasto, farejou o
vento, arrepiou o pêlo e urinou. Destemido como um
terra–nova, ele suspendeu as orelhas, baixou novamente
o focinho e arremeteu–se célere, entranhando pela
capoeira, seguindo o rasto, com seu latido característico.
Os demais, açulados por José Curador, acompanharam a
batida; mesmo Trovão, um rafeiro vira-lata. Este, cativo do
medo, arrepiou o pêlo, meteu o rabo entre as pernas e,
ganindo amofinado, foi esconder-se debaixo do banco, na
sala da casa. Era um ótimo cachorro, muito bom no trato
com o gado. Segurava, pela venta, qualquer tamanho de
boi, mas não havia tempo a perder com ele.
A brisa morna da manhã balançava serenamente
as folhas da vegetação arbórea da orla da mata. Fazia já
um calor seco, mas agradável.
A onça tinha quatro horas ou um pouco mais de
vantagem, mas não deveria estar muito longe. Após a
refeição de cabrito, um de seus alimentos preferidos,
deveria estar descansando sobre os galhos de alguma
árvore mais frondosa. Os cachorros não tardariam a
descobri-la.
Os caçadores, feros e lépidos, com estrênua
disposição embarafustaram-se pelo mato, na mesma
direção, em ousada marcha forçada, esgueirando-se
como acrobatas pela adelgaçada trilha, no encalço da
onça, primeiro pela capoeira e logo depois pela mata,
para logo entrarem na Catanduva. A partir daí a marcha
foi, aos poucos, se tornando mais difícil.
O pequeno carreiro de gado, por onde a onça havia
seguido, dividia-se em vários outros e foi desaparecendo
para dar lugar à vegetação espinhosa e ressequida.
Malhado, já bem distante, dava seu ganido
distintivo de perseguição, seguido pelo latido dos demais.
Desvairado, o cachorro veadeiro de Crispim corria
doidejado de um lado para outro da trilha.
A marcha dos caçadores era cada vez mais lenta.
Os empecilhos aumentavam na medida em que eram
obrigados a abrir a própria trilha, desvencilhando-se de
cipoais. Distanciavam-se cada vez mais dos cachorros.
José Curador, ouvidos atentos, foi o primeiro a
escutar. Parou bruscamente e fez sinal para que os outros
parassem. Todos ouviram. O Malhado e agora também
uns dois ou três outros cachorros ganiam continuamente,
dando sinal de que estavam na perseguição direta de
algum animal.
– O Malhado levantou a gata – informou José
Curador.
Apesar da outoniça idade, ele mergulhou agílimo por
baixo de um ramo espinhoso de venha-cá e estugou o
passo.
Em silêncio todos o acompanharam, procurando
abrir passagem, de qualquer maneira, por entre os
espinhos. José Curador parava, de quando em quando,
para açular os cachorros, e logo reiniciava a corrida.
Os demais permaneciam em silêncio, com os
lábios fechados pelo selo do medo.
A presença da onça estava manifesta pelo cheiro
característico presente no ar, inalado pelos caçadores.
Antônio sentiu que seus cabelos se eriçaram. Com
a mão limpou o suor que descia pelo rosto e firmou o
chapéu. O fedor aumentava, infestava o ar. Teve a
impressão de que a onça estava ali mesmo na frente, mas
o latido dos cães estava cada vez mais longe. Em
silencioso horror, ele sentiu uma sensação nervosa de
angústia e medo. Com a certeza do perigo negrejando em
seu espírito, ele avançou. Era emocionante.
Lázaro, que vinha mais atrasado, transido de
medo, hesitou em seguir, mas logo cobrou ânimo e se
juntou ao grupo, que seguia em marcha forçada.
Uma hora ou duas, um tempo indefinido que não se
podia precisar, tinha durado a corrida pela catanduva
adentro, sem rumo certo, sem destino definido. O ulular
longínquo dos cachorros era a única referência; alcançálos, o objetivo.
O Malhado latiu, acuando; logo depois, os outros.
– Assunta! – exclamou José Curador, levantando
um braço. – Tá acuada.
Não era nem latido nem uivo; era um chamamento,
um apelo dos cachorros aos caçadores. Uma afirmação
de que a caça estava cercada, sob controle. Era um choro
cantado, espremido.
O Malhado não era um cachorro de raça. Isto ele não era,
mas tinha determinação. Franzino e ligeiro, não arredaria
pé enquanto os caçadores não chegassem.
***
Numa clareira da catanduva, a pouco mais de vinte
metros, estava ela, cercada pelos cachorros. À sua frente
achava–se o Malhado, único a lhe causar preocupações.
Os demais latiam numa barulheira infernal, mas não se
aproximavam muito. Era preta, pretinha mesmo. O chão
ao seu redor estava limpo, como se tivesse sido varrido
por mãos cuidadosas. Sua pele nigérrima brilhava em
contato com os raios solares filtrados por entre as
árvores.
Os cachorros, pressentindo a chegada dos
caçadores, reforçaram o ataque. Com um rugido
selvagem que ecoou pela catanduva, ela respondeu ao
assédio dos cachorros, e fez estremecer os nervos dos
caçadores.
Com a mudança de comportamento dos cachorros,
a onça defendia–se com as patas e com movimentos
rápidos de suas mandíbulas com fortes caninos. Os cães,
recrudescendo o ataque, avançaram a um só tempo e
foram recebidos por quatro fulmíneas patas e cinco unhas
longas, afiadas e retorcidas em cada uma. O resultado
não se fez esperar. O mais afoito foi lançado a uns metros
de distância e já caiu morto.
O felino, tumultuoso e tétrico espetáculo, provocou
tenebrosa estupefação entre os caçadores, que estavam
com os nervos enrijecidos formando um grupo compacto
e silencioso em torno do coronel Brandão. Aguardavam
sua ordem de comando.
Antônio perplexo, com os olhos tensos medindo a
extensão do perigo a que estava exposto, apertou com
força a coronha da carabina e pensou:
– Agora é que são elas. Que diabo tinha eu de
estar metido nessa?
Correu–lhe um calafrio pelo corpo.
Com um sinal de braço, o coronel Brandão ordenou
a formação de um semicírculo, dando a entender que
deveriam ficar sempre bem próximos uns dos outros.
Estavam todos vulneráveis, expostos ao perigo de um
ataque inesperado da onça.
Lázaro, exangue, respirava com dificuldade.
Segurou o braço de Antônio em busca de apoio. Estava
cadavérico, transfigurado, o cabelo eriçado; tinha perdido
o chapéu. Em seu rosto, uma expressão de aflição e
terror. Um suor frio escorria pelo corpo, molhando a
camisa de algodão. Com um gesto, Antônio deu a
entender que ele deveria segurar a espingarda em
condição de atirar.
Manoel de Firmina estava aterrado, as pernas
lassas. Começou a bater os dentes com náusea, quando
um segundo cachorro meio zonzo, desta vez o Malhado,
ganindo em desespero, veio ao seu encontro, arrastando
os intestinos pelo chão.
Ao sentir a presença dos caçadores, a onça aviltou
os cachorros, agora somente quatro. Um ranger de
dentes,
acompanhado
de
um
rábido
esturro
ensurdecedor, foi o sinal de revolta por ela emitido, como
a desafiar a coragem de seus perseguidores.
O coronel Brandão e José Curador entreolharamse e após rápido conciliábulo, com ígnea coragem,
movimentaram-se para frente.
Os demais caçadores, totalmente paralisados e
inúteis, dariam suas próprias vidas para fugirem daquela
cena dantesca. Antônio e Lázaro de um lado, Manoel de
Firmina e Minervino do outro, estavam tão juntos que
seria impossível atirarem na onça, se fosse necessário.
Impassíveis, eram meros espectadores.
O mato, excessivamente fechado, impedia uma
visão perfeita do animal e impossibilitava a livre
movimentação dos dois caçadores, que se deslocavam
quase de quatro pés.
Nenhuma atenção deu a onça aos demais
caçadores. Seus olhos se fixaram no velho José Curador
e, nem mesmo os cachorros, que voltaram ao ataque, a
preocupavam. Sem tirar os olhos do caçador, defendia–se
dos cachorros com as patas e batia nos flancos com a
cauda em movimentos uniformes. Todo o couro da testa
desceu sobre seus olhos, para logo depois ser recolhido
entre as pequenas orelhas, alisando a cara, num
prenúncio de ataque.
José Curador parou, o corpo hirto, olhou firme bem
nos olhos dela. Seus músculos se contraíram e algumas
pregas quebraram a superfície de seu rosto próximo aos
olhos. Com mãos ágeis e firmes, musculosas e destras,
levantou o trabuco à altura do ombro direito. Em seu rosto
não se notava o menor movimento. Os olhos fitos no alvo.
Na amplidão rústica da catanduva, retumbou o
estampido da arma do vetusto caçador. Nenhum gesto de
defesa, nenhum salto; só o estremecimento de um corpo
que, cambaleando, se despede da vida e cai em
convulsões.
Os cães, sentindo o enfraquecimento da onça,
saltaram sobre ela. Os demais caçadores, alentados,
aproximaram-se ainda temerosos, enquanto a onça
respirava rouca em seus últimos estertores.
Um instante de silêncio, que foi logo quebrado por
vários gritos triunfantes.
– Que tiro! – comentou o coronel Brandão. – É
realmente um belo animal.
Vencida a estrênua lida, todos se aproximaram da
caça, menos Lázaro, que permaneceu imóvel, incapaz de
mover as pernas.
O coronel Brandão foi até onde estava o cadáver
do Malhado. Chamou Lázaro e determinou:
– Enterre ele.
Voltou em seguida para o meio do grupo e
ordenou:
– Podem tirar o couro e deem a carne pr’os
cachorros. Eles merecem.
José Curador disse:
– Nós vai dar um tiquinho pr’os cachorro, mas nós
vai levar o que poder. Carne de onça é coisa de se
desperdiçar, não. É todo dia que tem, não. Tá ficando
cada dia mais difícil de encontrar.
Todos fizeram questão de passar a mão pelo
lombo da onça morta, nas orelhas pequenas, nos
bigodes.
– É fêmea! – falou Antônio. – E que manchas
maravilhosas ela tem! De longe parece que é toda preta.
De perto é que a gente vê as manchas. Tem as mesmas
manchas da onça-pintada, só que de longe as manchas
não aparecem.
– A onça-preta tem a mesma natureza da pintada.
Elas se acasalam e produzem filhotes pintados e pretos –
ensinou o coronel Brandão.
Manoel de Firmina aproximou-se, trôpego e
cauteloso do corpo hirto da onça.
– Quando mato a cobra, mostro o pau... Tá aí a gata que
me perseguiu.
Fustigando o corpo dela com a ponta do facão ele
completou:
– Com bicho homem não se brinca.
Com o uso de um facão amolado, o couro foi
rapidamente tirado e o corpo esquartejado. Os melhores
pedaços de carne foram separados e o resto deixado para
os cachorros, que aguardavam com as bocas abertas,
línguas pendentes para fora, ofegantes.
Após aquela fatigante jornada, absolutamente
sucumbidos, passados os momentos de agitação, a sede
e a fome, como únicos laureis, tomaram conta de todos.
Uma secura horrível na garganta. Passavam, naquele
instante, pelo suplício de Tântalo. Sabiam onde estava a
água e a comida, mas não podiam alcançá-las. “Tão perto
e, ainda assim, tão longe".
Água só na lagoa do Mundo Novo ou na casa de
Crispim e ninguém sabia ao certo em que ponto estavam,
naquele imaculado universo verde. Tudo muito igual,
muito plano, e a mesma vegetação rasteira e espinhosa.
Os carrapatos, e dos miúdos, era a maior desdita. Uma
coceira danada pelo corpo todo.
Eles estavam exaustos, o corpo moroso, as roupas
rasgadas e a pele lanhada pelos espinhos. Teriam que
pegar a batida de volta, em demanda da casa de Crispim.
Não poderiam arriscar marcar rumo naquele agreste.
– Quem tem fumo no bolso? – perguntou o coronel
Brandão.
Lázaro, livrando–se de sua estupefação e
escarafunchando os bolsos, aproximou–se, a passo de
tartaruga, do coronel Brandão e informou:
– Eu tenho, mas é fraquinho... Uai! O senhor não
pita – admirou-se Lázaro.
– É para fumar, não. Ninguém vai aguentar sair
daqui com tanto carrapato miúdo. O jeito é esfregar fumo
no corpo.
22
Antônio adorava a vida na roça. Gostava de
participar de todos os trabalhos da fazenda. Acordava
sempre pela madrugada para “pegar o sol com a mão”.
No curral, ajudava a separar as vacas, apartar os
bezerros, tirar leite, tratar do bezerro doente. Conhecia
todas as vacas pelo nome. Deleitava-se com o processo
utilizado por Lázaro para chamar os bezerros, na hora da
ordenha. – Piratinga... Piratinga... Piratinga. Chamava o
nome da vaca em voz alta. Umas mais lentas e
silenciosas, outras apressadas e berrando, confirmavam a
identificação e se aproximavam do chiqueiro dos
bezerros. O bezerro, por sua vez, vinha até a porteira,
impaciente, e destacava-se dos demais, aguardando o
momento de sair.
Das labutas do curral, gostava mesmo era da
marcação do gado com o ferro em brasa, que identificava
a propriedade. Da fumaça com cheiro de couro queimado;
cheiro de patrimônio. Não gostava dos serviços da
lavoura. Passava o dia todo a andar a cavalo, percorrendo
as pastagens para ver o gado de perto. Visitava amiúde
todos os agregados para ouvir suas histórias, tomar um
cafezinho, comer pamonha de milho verde, no tempo das
águas.
***
Naquele fim de tarde e princípio de noite, a luz
afogueada do pôr do sol ainda presente no horizonte, uma
fogueira no terreiro da fazenda foi acesa para fornecer
calor e luz. Ao redor, juntaram-se os peões.
Antônio aproximou-se do fogo, trazendo na mão
uma garrafa da pura cachaça do Brejo. Sentou-se no
tamborete que Celino lhe ofereceu.
José Curador falou:
– Conta-se que lá pras bandas do Urucuia, na vila
de Barra da Vaca, tinha um cabra muito valente, que
metia medo até nos coronel da região. Nesse tempo
chegou por lá um outro cabra, vindo não se sabe de onde,
com fama de valente, arrastando surrão. Aí um dos
coronel contratou esse cabra pra matar o valentão.
Municiou o contratado. Forneceu carabina e uma sacola
de munição e prometeu pagar cinco conto de réis.
– É muito dinheiro – comentou Celino.
– Vancê escuta. O contratado ficou esperando o
valentão aparecer. O valentão foi avisado do contrato e
um dia, ele chegou na vila, montado num burro preto, já
atirando. O contratado saltou no meio da rua, com a
carabina e a sacola de munição atravessada no ombro e
parou, esperando. Ficou um de lá e o outro da cá, se
olhando. O valentão atirou pra cima, esporou o burro e
caminhou no rumo do contratado. Este, já se borrando de
medo, colocou a carabina e a sacola de munição no chão
se entregando de tanto medo, mas ficou parado ali no
meio da rua com os braço cruzado. O valentão parou o
burro e ficou olhando. Encarou o contratado e pensou:
“Esse cabra é perigoso. Ele tá querendo me pegar na
unha.” Ficou com medo. Puxou as rédeas, esporou o
burro e saiu correndo da vila. O contratado, sem esperar o
pagamento, correu pro outro lado e sumiu pra dentro do
cerrado.
– Um correu com medo do outro.
– Foi isso que sucedeu – disse Zé Curador e
continuou:
– Homem valente foi Seu Antônio Dó. Ele foi mais
valente que Lampião. A polícia deu conta dele, não.
– S’eu me alembro, a briga dele começou mode um
olho d’água – ajudou Celino.
– Ele e Chico Peba vivia que nem cão e gato. Se
entendia, não. A rixa deles era pro mode um olho d’água.
Chico Peba era o cão em figura de gente. Ele dizia que o
olho d’água era de servidão. Seu Antônio Dó dizia que era
dele. Aí Seu Antônio Dó ficou enfezado e mandou fechar
a água. Chico Peba mandou desmanchar a cerca... Aí
Seu Dó mandou fazer a cerca outra vez. Chico Peba,
puxando a brasa pra sardinha dele, mandou prender Seu
Antônio Dó como s’ele fosse um joão-ninguém, sem eira
nem beira.
A lua cheia passeava vagarosamente pelo céu,
banhando a terra com sua pálida luminosidade.
Antônio levantou-se do tamborete e acomodou-se
de cócoras junto ao fogo. Bebeu um trago e fez passar a
garrafa da brejeira, de mão em mão. Era afável e
atencioso com todos.
– É da boa – comentou Militão.
Celino jogou umas duas toras de madeira para
reativar o fogo.
– Mas Seu Antônio Dó não se entregou a prisão,
não. Era duro nos arreios. Brigou com mais de dez
soldado. Antes de brigar com os soldado, ele fez o capitão
delegado de cavalo. Montou nele de espora e tudo. Aí ele
picou a mula e foi viver uns tempo nos confins do Urucuia.
Depois diz qu’ele teve uns tempo na Bahia e no Goiás,
comendo o pão que o diabo amassou. Quando voltou,
veio pra brigar. Juntou jagunço que não tinha conta. Ele
só queria o olho d’água... Com a briga, ele ficou magoado
com a polícia... Com a viagem dele pra Bahia, eles roubou
o gado dele. Aí ele queria receber o dinheiro do gado.
Todos atentos, ouviam a narrativa com interesse e
atenção muçulmana.
José Curador esmerava-se em pormenores. Era
um verdadeiro contador de histórias a relatar para a
posteridade os feitos do lendário Antônio Dó, o terror de
São Francisco nos princípios do século XX, cujos feitos
são transmitidos de boca em boca pelos barranqueiros,
que têm nele o símbolo da bravura sertaneja.
Buscando vagas recordações, ele prosseguiu:
– E como atrás de morro tem morro, não passou
muito tempo e Seu Antônio Dó chegou da banda de lá do
rio com a cabroeira toda. Dizia ele que tava vindo buscar
o dinheiro do gado.
José Curador fez uma pequena pausa.
– Eu era menino nesse tempo... Aí ele, muito
astucioso, atravessou pra banda de cá do rio e sentou
banca no mercado e a coisa ficou preta. Aí foi um
corrimento danado. Foi um Deus nos acuda. O povo saiu
da cidade. Sumiu no mato. Dava inté graça a gente ver as
mulher com as trouxa nas cabeça...
A jagunçada tomou conta da cidade, mas ele num
mexeu com ninguém, não... Seu Antônio Dó só queria que
fosse pago dos prejuízo que teve. Queria briga com
ninguém, não. Aí diz qu’eles prometeu pagar, mas pediu
prazo. Seu Antônio Dó, com a pulga atrás da orelha, foi
esbarrar na Boa Vista, na fazenda dele, esperar o
pagamento, que não teve.
Antônio olhou para a lua. Uma brisa fresca soprava
leve, tornando a noite agradável.
José Curador respirou fundo. Olhou fixo para a
fogueira, relembrando o passado, como se penetrasse
para dentro de si mesmo. Recordava lugares e pessoas.
Ele continuou:
– Seu Antônio Dó foi cabra desabusado. Tinha faro
de cachorro e ligeireza de gato-do-mato... Gostava d’um
pagode como ninguém. Disque ele viajava mais de cinco
légua atrás d’um. Arrebanhava o que era de gente da
redondeza pra se divertir... Foi um macho duro!
Sua voz era mansa, quase sumida. Era preciso
prestar atenção para ouvir bem. Olhou para Antônio,
estendendo a mão e pediu:
– Me dá um gole dessa água que boi não bebe
pr’eu matar o bicho.
Bebeu a cachaça, estalou os lábios, cuspiu no chão
e continuou:
– Chico Peba queria sossego, não. Levou a polícia
pra atacar Seu Antônio Dó lá na fazenda. Eles chegou à
noitinha, escurecendo... Seu Antônio Dó quis tirar
satisfação, não. Ele era homem de dar milho a bode, não.
Enquanto o diabo esfregou o olho, ele descarregou
chumbo neles... Disque foi um tiroteio danado. Bala
zumbia pra todo lado, que dava pra escutar da banda de
lá do rio... Parecia noite de São João. Aí a munição da
polícia acabou e foi um Deus nos acuda. O Comandante
ficou no mato sem cachorro...
– Esse tal de Antônio Dó era mesmo desabusado –
disse Antônio. – Gosto de homem valente.
José Curador continuou:
– O dito cujo era que nem burro. Burro quando
murcha as orelha, o coice é certo. Ele deu o braço a
torcer, não; entregou a rapadura, não. Ele reduziu a
polícia a pó de traque. Teve soldado que foi esbarrar em
São Romão... O Comandante caiu no rio e morreu
afogado. Teve um soldado que subiu num galho de pau e
viu os jagunço acabar outro soldado ali pertinho dele.
Disque eles matou de faca, furando ele devagarzinho. O
soldado gemia e eles, rindo, furava ele... O soldado tremia
de medo pendurado no pau, mais os jagunço viu ele, não.
De riba do galho de pau ele viu o companheiro
agonizando. Disque eles não tinha remorso, nem piedade.
A lenha já queimada diminuía o fogo. Celino jogou
mais lenha na fogueira, enquanto dona Paulina servia
café para espantar o sono.
Todos já conheciam a história de Antônio Dó, mas
nunca a tinham ouvido contar com tantos pormenores.
Antônio comentou:
– Não só os jagunços de Antônio Dó, mas todos os
jagunços do sertão de Minas e os cangaceiros do
Nordeste, não tinham piedade, não davam valor à vida
humana... Não valorizavam nem mesmo as suas próprias
vidas. Eles não acreditavam na justiça dos homens;
faziam justiça com as próprias mãos.
– Disque Seu Antônio Dó tinha fôlego de sete gato
– comentou Lázaro. – Foi um homem de sangue no olho.
José Curador tossiu e voltou a falar, com o pensamento
distante:
– Ficou só nisso, não. Veio mais soldado que
encheu a cidade. Parecia o tempo dos revoltoso... Nas
cantiga de roda, nas folia, não faltava o nome de Seu
Antônio Dó. Eles dançava e cantava, batendo nos ombro
e rodando:
Lá vem o Dó, cambada,
Quem não tem canoa cai n’água.
– Depois que Felão foi na batida dele da banda de
lá do rio, as coisa mudou. A polícia fez mais matança e
roubo que Seu Antônio Dó. Disque Seu Dó nunca roubou,
mas Felão fez de tudo. Todo mundo do outro lado ficou
mais com medo de Felão que de Seu Antônio Dó. Aí as
cantiga mudou:
Felão veio? Não veio não.
Por que é que não veio?
Não sei não.
Espora no pé tá tinindo,
Foguete no ar tá zunindo.
– Seu Antônio Dó era daqui de São Francisco? –
perguntou Antônio.
– Era não, senhor. Ele veio da Bahia. Era baiano,
mais disque ele tinha sangue de índio.
Pensou um pouco e completou:
– Ele tinha parte com o Demo. Qualquer coisa que
dessem pra ele comer, que não fosse dado por pessoa da
família, ele só comia com a mão esquerda. Era pra evitar
algum despacho.
– Hoje não tem mais homens como esse Antônio
Dó – afirmou Antônio. – Não é só pela civilização. É que a
fibra dos homens está acabando. Tem gente por aí que
rota valentia, mas corre com o revólver na cintura. Até se
esquece que tá armado.
Ele especulou em silêncio:
– Muita injustiça ainda se pratica, hoje em dia, em
nome da Justiça e da Lei.
Militão, um preto mal encarado, destemido, mãos
enormes e calosas, protestou:
– Esse menino, com licença da palavra. O senhor
tá enganado. A gente é porque não tem motivo. Se
precisar, mato um inté de porrete. De peixeira também é
bom. Dá gosto ver o cabra gemendo na hora que a gente
tira a branca do bucho dele e as tripa cai no chão.
Concluiu suas palavras ao mesmo tempo em que
retirava da bainha uma grande faca, cabo de chifre bem
trabalhado, serviço caprichado de artesão da Bahia.
Ninguém sabia ao certo quem ele era, nem de
onde tinha vindo. Tinha aparecido na fazenda e foi
ficando.
Antônio sacudiu a cabeça e pensou:
– Este homem é capaz de matar e roubar.
Os demais riram, aprovando ou achando graça e
olharam para Militão que, sentindo-se importante,
resolveu contar uma das suas.
– Na Bahia, mandei um volante pra cidade dos pé
junto porque ele tirou saimento com minha mulher.
– Qualquer um fazia isso - declarou Celino. – Com
mulher minha ninguém brinca.
Dirigindo-se a José Curador, Lázaro perguntou:
– Ainda que por mal pergunte, ocê conheceu Seu
Antônio Dó?
José Curador respondeu, esfregando as mãos:
– Conheci, não. Conheci Cristina, filha da viúva
Francilha, a última mulher de Seu Antônio Dó, mas me
lembro das feição dela, não. Conheci também Martinho
Berto e Miguel Fogoso, jagunços dele.
– Seu Antônio Dó foi um bandido – asseverou
Celino.
Antônio defendeu:
– Ele não foi um bandido. Não pode ser medido
pelos seus feitos como bandoleiro. Deve ser visto como
vítima de perseguição política. O seu comportamento
deve ser analisado pelas causas que o motivaram.
Em continuação, ele indagou a José Curador:
– Depois que Antônio Dó derrotou a polícia, ele
ainda ficou na Boa Vista?
– Não. Ele atravessou pra banda de lá do rio com a
cabroeira toda e foi pro povoado da Vargem Bonita, pra lá
da Serra das Arara. Aí foi que Felão foi procurar ele. Seu
Dó ficou sabendo e pegou Felão de tocaia. Matou quase
tudo que era soldado. Felão comeu gato por lebre. Ficou
maluco de raiva e deixou os soldado fazer de tudo. Eles
roubou e matou gente inocente... Depois, voltou dizendo
que tinha matado Seu Antônio Dó. Mentira pura.
Voltando-se para Celino, perguntou:
– Ocê conheceu Seu Antônio Dó?
– Conheci, não. Conheço Martinho Berto, que era
jagunço dele e que ainda tá vivo. Depois que Seu Antônio
Dó morreu, Martinho Berto trabalhou uns tempo pro
coronel Brandão, como arrieiro de comitiva.
Celino conhecia de oitiva a história de Antônio Dó,
mas não tinha conhecido o próprio.
Aquela conversa comprida, embora agradasse a
todos, ia ficando cansativa. O sono vinha chegando
devagar, fazendo dupla com o cansaço dos serviços do
dia e ia tomando conta dos ouvintes. Lázaro esticara o
corpo e fazendo travesseiro de uma acha de aroeira,
dormia tranquilamente. Militão, entretanto, permanecia
atento, olhos presos em José Curador, devorando cada
palavra.
– Felão tinha levado oitenta soldado – continuou
José Curador. – Mesm’assim prendeu Seu Dó, não.
Depois dessa derrota, a polícia esqueceu dele. Seu Dó
sumiu no mundo. Andou de deu-em-deu. Diz qu’ele morou
uns tempo na Formosa dos Couro.
***
Na sua imaginação, Militão estava com Antônio
Dó... Era o próprio, o valente sertanejo nunca vencido.
Fazia de tudo; percorria o sertão, cavalgando pelas
veredas verdejantes. No comando de dezenas de
jagunços estava acampado próximo à vila da Serra das
Araras. Em seu chapéu, três espelhos brilhavam,
refletindo a luz do sol. Instintivamente ele passou a mão
na aba do chapéu quebrando-o para trás, à moda dos
cangaceiros. Entraria na vila no dia 13 de junho, dia de
Santo Antônio. Riu do espanto que iria causar aos
romeiros apalermados com a surpresa de sua chegada.
Cavalgava agora pela rua do Urucuia à frente dos
jagunços. Tirou o revólver da guaiaca – como era bonita a
sua guaiaca, encomendada da Bahia – e começou a atirar
para cima. Os jagunços fizeram o mesmo. Um tiroteio
tremendo. Ele ria do povo correndo, uns entrando na
igreja, outros nos ranchos de palha. As ruas ficaram
desertas... Ele havia conquistado a vila.
***
– Mas Seu Antônio Dó voltou depois pra São
Francisco. Voltou mais um bandão de jagunço. Era pra
mais de cem. Daqui foi pro Gerais de São Felipe... Os
jagunços tava querendo matar ele, mas ele tinha o corpo
fechado. Bala matava ele, não... Aí eles astuciou de matar
ele com um porrete.
José Curador levantou a cabeça. Retirou o toco de
cigarro de palha esquecido atrás da orelha e apanhou um
tição da fogueira para acendê-lo.
– Um dia eles esperou ele baixar a cabeça pra
apanhar lenha e um deles bateu nele com uma mão de
pilão. Eles rachou a cabeça dele. Aí eles começou a atirar
nele inté a roupa pegar fogo.
– Puta merda! – exclamou Militão. – Como é
qu’eles matou um homem desse?!
Antônio perguntou:
– Não eram folhas para fazer chá?
– Sei não! É o que o povo diz.
Um silêncio prolongado.
Celino disse:
– Tou me lembrando do sermão do padre na festa
da Serra, ano passado. Ele falou muito mal do homem
casado que não respeita a mulher.
– Os padres falam demais da vida dos outros –
interferiu Antônio.
– É o qu’eu também acho. S’ele nunca casou,
como é qu’ele sabe da vida dos casado? Padre não sabe
o que é a gente aguentar a cantarola d’uma mulher no pé
do ouvido o dia todo.
Antônio perguntou:
– Você já amansou cavalo bravo?
– Ora, Seu Antônio, claro que já. Sou bom
acertador de cavalo. O senhor sabe disso.
– Pois é! Você sabe marchar?
Houve um súbito silêncio.
Todos os presentes se voltaram para Antônio,
apreensivos. Não era de sua índole ofender ninguém.
– Que é isso, Seu Antônio? O senhor deve de tá
brincando.
– Tou, não. Você sabe marchar?
Celino ficou aturdido, confuso, o rosto vermelho.
Havia uma expressão de susto em seu rosto. Ele
respondeu secamente:
– Claro que não. Eu não sou cavalo.
– Pois é. Você não sabe marchar, mas sabe
ensinar cavalo marchar. Assim são os padres.
Todo mundo riu. Um riso de alívio.
23
Era o dia 4 de janeiro.
O dia amanheceu alegre, o céu azul. Logo ao
romper da aurora, a cancela do pátio da fazenda rangeu,
ao ser aberta para dar passagem a um grupo de rijos
caboclos, transitoriamente abatidos pelas noites de vigília,
pelo álcool, pelo cansaço da peregrinação pelas
propriedades rurais da vizinhança.
Em fila indiana, toalhas brancas enroladas ao
pescoço, sem ânimo para o mais simples diálogo,
aproximaram-se da casa.
– Lá vem o Terno de Folia do mestre Canabrava –
anunciou dona Paulina, que estava na porta da casa a
olhar o gado solto pelo pátio.
Antônio assomou à porta.
Dona Paulina, cantarolando, correu para conferir os
arranjos do Presépio.
Antônio recebeu-os à porta.
Cumprimentaram-se, cordialmente.
– Vamos entrar – convidou Antônio.
Em um canto interior da sala, entre as portas de
dois dormitórios, sobre uma mesa pequena, o Presépio,
usança tenazmente conservada, estava armado, com
todos os seus componentes indispensáveis: São José,
Nossa Senhora, os Réis Magos, os pastores com suas
ovelhas. Cavalos, pombos, galinhas e um pato em um
espelho formavam os elementos complementares. No
fundo da gruta, feita de papel de jornal cuidadosamente
armado e pintado de preto, estava o Menino Jesus.
Ramos de carne-de-vaca, majestosa árvore, completavam
a ornamentação.
Um a um os foliões foram entrando, tendo à frente
Pedro Canabrava, que era porta-bandeira e mestre da
folia. Em seguida, por ordem, Joaquim Figueiredo (viola),
Minervino (rabeca), Fulgêncio (caixa), Sebastião
(pandeiro)
e
Juca
(reco-reco),
aproximaram-se,
reverentes, do Presépio.
Confabularam.
Joaquim Figueiredo afinou a viola e a melancólica
saudação foi iniciada pelo Pedro Canabrava, como guia:
Bom dia, meu Senhor
Bom dia vimos lhe dar.
Quem chegou foi os três réis
Que veio lhe visitar.
Santos Réis pede esmola
Mas não é por precisão.
Vem pedir experimentando
Quem dá de bom coração.
Minervino, como contra guia, com voz esganiçada,
repetia cada versículo, enquanto os demais foliões
acompanhavam, com seus instrumentos, a langorosa
melodia:
Meu rico, meu cidadão
Sai de lá e venha pra cá
Venha ver os três Réis Mago
Em seu nome conversar
O senhor Antônio
É homem de pundonor
Não há prata, não há ouro
Que rebuça seu valor.
Porém, não só de rezas e orações vivem os foliões.
Após a saudação obrigatória e recolhida a bandeira, eles
se descontraíram. As suas fisionomias, de aspecto
lúgubre, cheias de contrita piedade, abriram-se em
expansiva demonstração de alegria. A representação
banzeira da saudação deu lugar a uma franca
comunicabilidade.
Os contritos e fatigados foliões, conservadores das
evanescentes tradições populares de seus antepassados,
transformaram-se em alegres e folgazões dançarinos do
Quatro e da Súcia.
Cumprida a parte solene e religiosa da visita,
receberam os cumprimentos do dono da casa, que lhes
serviu uma corrida de cachaça.
– Tomem um café, antes do Quatro – disse
Antônio. – Hoje vou passar uma roda com vocês.
O mestre Pedro Canabrava pediu:
– O senhor mande Joaquim Figueiredo segurar a
ceroula.
Os que conheciam a história riram e olharam para
Joaquim Figueiredo, um dos membros permanentes da
folia do Canabrava.
– É bom que não aconteça de novo – disse
Antônio. – Eu morreria de rir.
– Ocês me pegou de surpresa – justificou Joaquim
Figueiredo. – Eu tinha chegado do comércio naquela
horinha. Tinha tirado a roupa pra dormir, justo na hora que
ocês chegou lá em casa atirando e gritando tanto qu’eu
levantei assustado. Vesti a calça correndo e esqueci da
ceroula que tava dentro da calça. Na hora de passar o
Quatro, ela desceu numa das perna e embaraçou nos pé
de Pedro Canabrava.
Antônio comentou:
– Eu vi aquela bandeira branca se arrastando pelo
chão, mas só compreendi o que era quando Pedro
Canabrava reclamou.
Todos entraram a rir, a bom rir, descontraindo
ainda mais o ambiente.
***
A história era recente. Não tendo o que fazer na
fazenda, logo no início das férias, Antônio reuniu alguns
agregados, em uma noite em que o satélite da saudade
estava em plenilúnio, e foram a cavalo fazer uma surpresa
a Joaquim Figueiredo. Entre os agregados estava Pedro
Canabrava, cabra bom de caixa e viola.
– Percorreram alegremente os três quilômetros e,
com a lua transcendente nas alturas do céu, chegaram
atirando.
Antônio descarregou a primeira carga de seu SW
32, cano longo, niquelado, cabo de madrepérola, logo na
entrada do curral.
Pedro Canabrava levantou seu HO e puxou o gatilho
quatro vezes seguidas, sem resultado. Mascaram todas.
Só atirou quando fez alvo no chão.
A garrucha de dois canos de Lázaro não negou
fogo, nem uma vez, fazendo inveja ao Canabrava.
Joaquim Figueiredo abriu a porta da casa, armado
com uma espingarda central e apertou, ao mesmo tempo,
os gatilhos dos dois canos, respondendo ao fogo.
Lázaro passou pelo poleiro e já entrou na casa com
duas penosas penduradas pelos pés, com o pescoço
torcido.
Enquanto dona Ritinha preparava as galinhas, eles
resolveram fazer uma roda de dança.
Antônio foi até a cozinha conversar com dona
Ritinha, ao tempo em que os outros afastavam a mesa, na
sala, para o Quatro.
– Como a senhora tem passado?
– Ando muito indisposta e cansada com as labuta,
Seu Antônio. Joaquim inventou um negócio de venda, lá
no corredor, e tou que não aguento mais. É um briquitar
sem alívio. Dou na cozinha, dou no engenho, dou na
fonte, dou na venda, inda dou na roda de farinha...
Agorinha mesmo tem café.
– A senhora quer uma dose? É da boa... Januária
legítima.
– Um pouquinho; só pra queimar o dente.
Bebeu o meio copo que lhe foi oferecido. Antônio
voltou à sala.
Joaquim Figueiredo, na sala iluminada pela luz
fosca de uma candeia de azeite, apanhou a viola e deu
uma pinicada nas cordas, afinando. Logo na primeira roda
do Quatro, a cueca dele desceu por uma das pernas,
embaraçando-se nos pés dos dançadores. Durante o
resto da noite, até a madrugada, curtiram o
acontecimento, bebendo pinga com tira-gosto de galinha.
***
Dona Paulina serviu café fumegante. Os foliões e
demais pessoas presentes se acercaram da mesa.
Alguns minutos de silêncio.
Joaquim Figueiredo comentou:
– Café quente, danado. Parece que foi feito no
fogo.
Pedro Canabrava pediu:
– Passa esse bolo-de-puba aí; parece que tá bom.
Terminado o café, a sala foi desocupada para a
roda do Quatro. A primeira roda foi dançada pelo
Canabrava, pelo Figueiredo, pelo Fulgêncio e pelo Juca.
No compasso da caixa e, no ritmo da copla, iniciaram as
evoluções coreográficas, cantando:
É a primeira vez que aqui venho cantar;
O senhor me dê licença pra quando tornar voltar.
Vamos dar mais uma volta, que a viola mandou dar
Depois da volta dada a viola vai parar.
Vamos dar mais uma volta, que é a derradeira
Pra ficar na lembrança daquela volta primeira.
Com esta e outras coplas, dançaram mais de dez
rodas de Quatro.
– É hora de sair – disse Pedro Canabrava,
dirigindo-se a Joaquim Figueiredo. – Nós tem que
pernoitar na Água Nova, na casa de Manoel de Firmina.
Reuniram o grupo e se prepararam para a contrita
despedida.
Meu rico, meu cidadão,
Santos Réis, já vai s’embora.
Vai levando seu retrato
P’ra Virgem Nossa Senhora.
Santos Réis já vai s’embora
Levando consigo alegria
Quem fica com saudade deles
Vai à festa do seu dia.
O navio do nascente
Navega sem marinheiro.
Santos Réis tá cantando
P’ro dia 6 de janeiro.
Os três Réis já vão s’embora
Já tá se despedindo
Despedindo do povo todo
Homem, mulher e menino.
Vamos dar a despedida
Deus louvar mais uma vez
Que viva os três Réis Mago
Cada um de sua vez
Tudo que tem neste mundo
Foi Deus quem criou e fez.
Antônio procurou Pedro Canabrava e ofereceu um
leitão para ser assado no dia seis de janeiro, dia dedicado
aos Réis Magos.
O mestre convidou:
– O senhor não deixa de aparecer na casa de
Joaquim Figueiredo, na festa do remate da Folia, dia seis.
Os foliões seguiram estrada a passo lento. A
desenvoltura dos dançarinos cedeu lugar ao cansaço
generalizado.
24
Na tarde de sábado, de céu nublado, Nélio e
Antônio, enquanto esperavam a hora para a peregrinação
diária à beira do rio, entraram no bar de Orlando, na
Praça Governador Valadares, para uma cerveja. Ali se
encontraram com Oswaldo e Edson, também estudantes
na Capital, integrantes da boemia cultural da cidade.
Todos na idade homérica em que se lê José de Alencar,
Balzac, Machado de Assis, Camões, Júlio Verne, Eça de
Queirós, Visconde de Taunay, Casimiro de Abreu e
Castro Alves, e já se aventuravam pelas searas gregas.
Alguns já tinham lido Herculano, Castilho, Tchekhov e
Shakespeare.
Sentaram-se na mesma mesa e pediram cerveja.
– Vocês dois, como estão com a política? –
perguntou Oswaldo.
Antônio respondeu:
– Quem está por cima não se preocupa com o problema.
Pergunte ao Nélio.
Nélio e Antônio não falavam em política. Os pais
eram adversários políticos, mas eles eram amigos de
infância.
Nélio, contrariado, disse:
– As posições políticas são transitórias. Na
próxima, vamos virar o caldo, apesar do maquiavelismo
do coronel Brandão.
As últimas palavras, Nélio proferiu, olhando para
Antônio.
Surpreso com a afirmação do amigo, Antônio
contestou:
– Os meios, às vezes, justificam os fins.
– Pas toujours – disse Nélio.
Antônio, levantando as sobrancelhas, prosseguiu:
– O maior crime político é perder uma eleição.
Mesmo assim, ele sempre age corretamente. Usa de
sagacidade, é claro. Em política, tudo é válido, de acordo
com os ensinamentos de Maquiavel. Não foi ele quem
ensinou o uso da intriga, da crueldade e até mesmo do
crime como fatores de êxito político?
Nélio, acomodando-se melhor na cadeira, encolheu
os ombros.
– Isso teoricamente, porque o uso de tais meios
retira da vitória política o seu valor moral. C'est ce que je
pense.
Oswaldo, futuro bacharel, aluno do segundo ano
clássico, aspirante à tribuna do Tribunal do Júri, bateu seu
copo na garrafa vazia, reclamando a demora em servirem,
e comentou:
– Os comunistas usam de qualquer meio para
alcançar o poder e olhem que estão crescendo em
número! Não fossem as leis sociais de Getúlio, e o PCB
seria o terceiro grande partido nacional.
Edson, aluno do terceiro ano científico, religioso por
tradição de família, cultivava a poesia, mas com os olhos
voltados para a Faculdade de Engenharia. Alisando os
cabelos, observou:
– Acredito que o comunismo não terá vez entre
nós, contudo, com a saída da clandestinidade, liberados
pela redemocratização, os partidários de Prestes estão
muito eufóricos.
– E como estão! – exclamou Oswaldo.
– Nossa salvação – continuou Edson – é a
formação religiosa de nosso povo, que é muito profunda.
Um mérito do catolicismo. Com acerto, Salomão afirmou
que o princípio de toda sabedoria é o temor de Deus,
contudo, entre os estudantes secundaristas de Belo
Horizonte, a grande maioria é, hoje, comunista ou
simpatizante do comunismo.
Discutiam com cordialidade e harmonia.
Antônio, cujas preferências abrangiam a Política e
a Literatura, sacudindo a cabeça negativamente, sem
tergiversar, declarou:
– O pior cego é aquele que não quer enxergar.
Como bem afirmou Eça de Queirós, a religião é o
desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar.
Acho que foi isso que ele disse. Um cão lambendo a mão
do dono, de quem lhe vem o osso ou o chicote. Assim ele
qualificou os devotos. Um ser prostrado em rezas ante o
Deus que distribui o Céu ou o Inferno.
Antônio continuou, tomando fôlego:
– O homem, em busca de Deus, oferece em
holocaustos os prazeres de sua própria vida.
– Vivas! É isto aí – disse Nélio, cultor da
intelectualidade francesa, aplaudindo. Viva les plaisirs de
la vie.
Nélio não conhecia Paris, a capital do mundo, mas
pretendia conhecer antes de se formar.
Antônio prosseguiu com gravidade e com a
segurança de quem defende uma tese.
– O Papa Bonifácio VIII afirmou publicamente que
não acreditava na imortalidade da alma e na vida eterna,
e que os prazeres dos sentidos não eram pecados.
– Não apoiado! Um sermão de ateu confesso –
declarou Edson com um gesto de desgosto. – O
pensamento de um Papa não é o pensamento da Igreja.
***
Um trovão redondo, seguido de outros mais. O céu
começava a escurecer.
Edson, enchendo seu copo, comentou:
– Vai chover.
Antônio, olhando para uma das portas que dava
para a praça, disse:
– Deixa chover; chuva passageira de verão.
Indiferente, Antônio continuou:
– O comunismo não tem conseguido penetrar no
seio das classes operárias pela proteção que estas estão
tendo, em função das leis sociais de Getúlio, e não pelo
espírito religioso.
– Vale tudo, menos política partidária. Vamos
mudar de assunto – propôs Oswaldo.
Antônio continuou.
– Não é política partidária. É reconhecimento.
Getúlio salvou, até agora, o Brasil do comunismo... Vocês,
udenistas, procuram tapar o sol com uma peneira, com
medo da verdade. Religião não mata a fome de ninguém.
A social democracia é a única salvaguarda contra o
comunismo. Um socialismo democrático, com melhor e
mais humana distribuição de rendas. O povo não deseja o
comunismo, mas poderá procurá-lo se outra solução não
for encontrada, e a solução não está na repressão, mas
na valorização do trabalho e do homem.
Estas últimas palavras ficaram retumbando na
memória de Antônio como um chamamento a uma
atuação política.
Oswaldo retorna à cadeira, acomoda-se e,
cauteloso, diz:
– Prefiro não comentar. Não sou, nem serei
pelego... Gostaria de lembrar que não se fazem guerras
por princípios políticos. Todas as guerras têm sempre um
objetivo econômico... As minas de prata da Espanha e o
comércio no Mediterrâneo levaram Roma a destruir
Cartago. O comércio com a Ásia fortaleceu
Constantinopla, provocando a decadência de Roma e o
ouro da Macedônia fez de Alexandre o grande
conquistador...
– Bravo à lui, un historien – brincou Nélio.
Oswaldo, como se nada tivesse ouvido, continuou:
–
Existe
sempre
um
poder
econômico
determinativo de cada fato histórico. As instituições
políticas, bem como as ideias filosóficas, estão
fundamentadas nas estruturas econômicas de cada
época. Para Marx, o ideal é aquilo que das condições
materiais da vida passa por transposição para a cabeça
dos homens. Dentro dessa reflexão, ele estruturou a sua
concepção materialista da história.
– Não se pode confundir socialismo com
comunismo, embora um seja consequência do outro –
asseverou Antônio. – O comunismo transformou o
vacilante ideal socialista em ação revolucionária. Saiu da
expectativa para a ação.
– Não podemos negar que é injusta a atual
organização social – declarou Nélio. – A injustiça provoca
reações perigosas.
Nélio lembrou-se da Revolução Francesa, da
violência e da radicalização política pela influência dos
ideais iluministas. Ele recordou:
– Liberté, Egalité, Fraternité.
O tempo mudou. Um vento forte começou a soprar.
O céu escureceu. Relâmpagos riscavam o céu, seguidos
de trovões ensurdecedores. Uma chuva forte de verão
caiu sobre a cidade.
– Com essa chuva, uma cachacinha desce bem –
disse Osvaldo, abrindo um leve sorriso.
Edson olhou indiferente para a rua e, esboçando
um gesto de dúvida e sacudindo a cabeça lentamente,
perguntou:
– Será possível atingir o ideal socialista dentro dos
princípios democráticos?
– Sem dúvidas – respondeu Antônio. – Os
anarquistas acham que não, mas a social democracia
atingirá sua plenitude antes do fim do século, como uma
síntese entre a tese capitalista e a antítese comunista... O
comunismo não deixa de ter o seu mérito, com sua
doutrina libertária. Ele sacudiu os socialistas utópicos e
abriu os olhos da humanidade para a realidade social do
mundo.
– Muitas guerras foram feitas com objetivos
religiosos – afirmou Edson, sem muita convicção.
Antônio, esfregando as mãos, perguntou, com certa
dose de ironia:
– Qual?
Antes de qualquer resposta, continuou:
– Oh!... Você crê nessa? Outros foram os objetivos
dos cruzados ou, pelo menos, dos que organizaram as
Cruzadas. Para o povo, era uma luta religiosa, mas não
para os responsáveis por elas. A fé religiosa é uma forma
muito antiga de indução do povo ao sacrifício e à
obediência.
Edson, ligeiramente eclipsado, calou-se.
Oswaldo afirmou:
– A liberdade é o maior bem que pode um homem
desfrutar. Por ela são válidas quaisquer guerras, por mais
sanguinárias que sejam.
– Maquiavel foi o grande defensor das liberdades –
voltou Nélio ao tema primitivo. – Na UDN estão os
princípios da liberdade e da democracia.
– Liberdade não representa, necessariamente, uma
ideia de mudança – disse Antônio. – Vocês, udenistas,
pecam por se julgarem os únicos paladinos das
liberdades democráticas. O que querem, realmente, é
assumir o poder para imporem uma ditadura de elite.
– Não creio...
Oswaldo interferiu:
– É melhor mudarmos de assunto. O rádio noticiou
ontem que Hitler ainda estaria vivo, em algum país da
América do Sul.
As marcas da última guerra estavam ainda
presentes e bem vivas na lembrança de todos. A vitória
sobre os governos totalitários, contra o desrespeito aos
direitos da pessoa humana, tinha restituído as liberdades
democráticas, agora defendidas e implantadas em todos
os continentes. A vitória dos aliados havia sido, antes de
tudo, a vitória da democracia, do direito e do debate, do
direito de participação.
Nélio afirmou:
– Isso não passa de ideia de algum judeu
inconformado com a ausência dele no julgamento de
Nuremberg. Hitler est mort et bien mort. Está dormindo
nas trevas de além-túmulo.
Antônio comentou:
– Não localizaram o seu corpo. Antes ele não
estivesse morto. Ele deveria ter sido cortado em seis
milhões de pedacinhos, representando, cada um, um
judeu trucidado. Só assim, se faria justiça. Se você
tivesse sofrido na carne o que sofreram os judeus, não
pensaria assim. Os nazistas teriam demonstrado maior
nível de evolução se tivessem escravizado os judeus, em
lugar de massacrá-los, como fizeram. Se buscarmos as
origens da escravidão, chegaremos à conclusão
paradoxal de que ela foi um dos maiores saltos evolutivos
do homem.
Oswaldo refutou admirado, a testa franzida:
– Como assim? A escravidão é a maior mancha da
história da humanidade.
– A verdade é como o fulgir de um diamante que
possui várias faces, que brilham de acordo com a
conveniência do momento e o entendimento de cada um.
Com a mão direita espalmada, ele pediu paciência.
– Escutem! Se vocês analisarem o fato concreto,
sim. Mas se fizerem uma análise axiológica, remontando
ao que acontecia antes de surgirem as civilizações,
quando os bárbaros não valorizavam a vida humana,
concordarão comigo.
A chuva passou. Grossas enxurradas corriam pelas
ruas. Crianças brincavam dentro delas.
Antônio fez uma pequena pausa.
– Prestem atenção! – disse com os olhos fitos em
Oswaldo. – Os povos vencidos eram massacrados,
mortos, eliminados. A transformação do prisioneiro em
escravo, poupando-lhe a vida, foi uma evolução, uma
grande evolução... Melhor teria sido se os nazistas, em
lugar de trucidarem seis milhões de judeus, os tivessem
escravizado. Após a vitória dos aliados, eles teriam sido
libertados, com vida, a exemplo do que lhes ocorreu nos
cativeiros de Babilônia e do Egito. Os babilônicos e os
egípcios salvaram, com a escravidão, a raça e a nação
judia.
Dirigindo-se a Oswaldo, perguntou
– O que me diz?
Oswaldo encolheu os ombros e observou:
– O argumento é válido. Visto por este lado, sou
forçado a concordar. O bárbaro Gengis Khan matou
milhares de pessoas.
Ouve-se o sino da Matriz.
Silêncio respeitoso.
Oswaldo olhou o relógio de pulso.
Concluídas as badaladas, Antônio continuou:
– O antissemitismo não era exclusivo da Alemanha
nazista. Ele ainda está presente nos países comunistas.
Edson, com naturalidade e voz firme, afirmou:
– O nazismo foi uma afirmação do estado
maquiavélico, embora Hitler tivesse buscado dominar o
mundo, tornando-se seu senhor absoluto.
Antônio esboçou um gesto de dúvida com um
sorriso indulgente, enquanto Oswaldo, franzindo a testa,
perguntou:
– Afirmação ou negação?
– Ele procurou implantar o estado único defendido
por Maquiavel e pela própria Igreja – completou Edson. –
O Concílio de Trento aceitou a ideia de que, se existe um
só Deus, deveria existir um só rei e um só estado.
Oswaldo ia responder, mas Antônio antecipou-se a
ele com um leve sorriso de compreensão e
condescendência, sacudindo a cabeça negativamente, e,
sublinhando as palavras com um pouco de eloquência,
afirmou com vivacidade:
– Que eu saiba, Maquiavel defendeu a
independência das nações como estados, mas nunca
formulou a hipótese de um estado único. Essa ideia foi
apresentada por Dante... Quanto à Igreja, acredito que
esteja correto.
– Perdão – conciliou-se Edson com serenidade. –
Quandoque bonus dormitat Homerus.
– Modéstia sua.
Nélio, interferindo:
– Desculpem. Qual é o assunto? Estava distraído.
Dois sentidos não assam milho.
– Dois sentidos não se assimilam – corrigiu
Oswaldo.
Um breve silêncio.
***
Naquele instante, Dalva, uma solteirona não
requisitada para o casamento, mas ainda esperançosa de
encontrar seu príncipe encantado, descia risonha para
seu costumeiro passeio vespertino à beira do rio,
acompanhada de uma linda e desconhecida jovem.
Edson observou:
– Olhem quem vai passando! Ficam vocês
perdendo tempo com discussões acadêmicas e não
observam o desfile de beldades. Não entendo como Dalva
ainda está sobrando.
Antes mesmo de Edson concluir essa observação,
todos se levantaram e saíram à porta para observar, com
indiscreta curiosidade, a passagem das moças.
Edson pensou:
– Nós nascemos para o amor.
Oswaldo disse:
– Não é fácil sair do barricão com tanta menina
nova dando sopa por aí. São poucos os que raciocinam
como Balzac. Pensando bem, apesar da idade, Dalva é
muito boa... Como é tentador e sensual o seu andar!...
Olhem! Mulher é sempre mulher!
Antônio, de pé, com as mãos nos bolsos, observou,
indiferente:
– Ela não é tão bonita, contudo, como disse
Shakespeare, pela boca de Benvolio, “dando liberdade
aos olhos, podemos examinar outras belezas”. Que outras
belezas não devem existir por baixo daqueles panos?
Ele parou um pouco, olhando para Dalva, e
continuou:
– Quem não gosta de mulheres?! – em
complemento, questionou – Quem é aquela beldade que
está com ela?
– Não sei quem é – respondeu Nélio. – Não me
lembro de já tê-la visto antes.
– Deve ser alguma estudante de Montes Claros,
passando férias por aqui – observou Edson. – Gostaria de
conhecê-la.
Oswaldo disse, rindo:
– Dalva é um peixão. Dizem os entendidos que as
mulheres só envelhecem do pescoço para cima, contudo,
eu acho que elas só envelhecem da cintura para cima. A
mulher é, sem dúvidas, a mais perfeita obra da criação.
Refletindo por alguns instantes, Antônio, de volta à
sua cadeira, questionou:
– Da criação ou da evolução?
– Da criação é uma maneira de dizer. Mas que
animal teria dado origem à mulher? Não consigo aceitar
uma comparação entre uma mulher e uma macaca
qualquer, embora elas usem pular de galho em galho.
Antônio contestou, com três marcantes rugas na
testa, sacudindo a cabeça negativamente.
– O ser homem não descende de nenhum macaco,
pelo menos dos conhecidos. Ambos vieram de um outro
antepassado comum, ainda desconhecido.
Voltando-se para Antônio, Edson disse:
– Eu fico com a hipótese da criação. Só a mão
divina seria capaz de um trabalho tão perfeito, com tudo
nos seus devidos lugares.
Edson esboçou um leve sorriso e continuou:
– Em uma casa, aqui mesmo em São Francisco,
um filho perguntou ao pai sobre a origem do homem. O
pai disse que o ser humano era fruto da evolução,
possivelmente do macaco. O menino, que estava
estudando o catecismo, perguntou à mãe sobre a origem
do homem e ela disse que o homem e a mulher tinham
sido criados por Deus. O menino, então, falou que o pai
tinha dito que o homem vinha do macaco. A mãe,
nervosa, disse: Só se for a família dele. A minha veio de
Adão e Eva.
Riram.
Antônio, retomando a palavra, com ar de cientista,
afirmou:
– Temos que lembrar que a natureza teve tempo
de sobra para aperfeiçoar seu principal produto, assim
como gastou milênios para produzir o diamante. A mulher
é a mais perfeita obra da natureza, assim como o
diamante é a mais perfeita cristalização mineral. A
evolução aconteceu, e ainda está acontecendo, de forma
diferente do que está transcrito no primeiro livro do
Pentateuco.
Oswaldo, abrindo um sorriso matreiro, replicou:
– Aristóteles afirmou que a natureza só faz
mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é,
portanto, um homem inferior.
Nélio, com um gesto neutro, levantando levemente
os ombros, concluiu:
– Seja como for, Deus foi um grande escultor ao
modelar o barro ou um grande técnico ao conduzir a
natureza no seu trabalho evolutivo. Produto da criação ou
da evolução, la femme est un être divin.
Edson, alçando ligeiramente os olhos para o alto,
como se buscasse uma confirmação superior e como
adepto inconsciente da evolução teísta, afirmou:
– A evolução não exclui a presença de Deus. Ela
dá novas dimensões à ideia de Sua existência. Um Ser
superior deu o primeiro passo, criando a matéria de que
se compõe o Universo...
Fez uma pequena pausa e, repetindo Ruy Barbosa,
continuou:
– O gênero humano afunda-se no oceano violento
da matéria onde flutuam os destroços da civilização, no
oceano sem Deus, do materialismo científico.
– Bravo! – brincou Antônio.
O garçom voltou à mesa, servindo mais uma
cerveja, e afastou-se.
Oswaldo leu o rótulo da garrafa, com indiferença.
Na rua continuava o desfile das moças.
***
A imagem de Elza estava fixa na mente de Antônio;
não se afastava dele, não lhe dava descanso, nem
mesmo durante o sono, como a aurora de uma nova
paixão. Nádia havia desaparecido de sua memória.
O bar estava cheio àquela hora. Cheio de homens.
Na mesa ao lado, dois frequentadores discutiam:
– Na próxima eleição nós derrotaremos o coronel
Brandão. A UDN tem o governo do Estado e o governador
já mandou um delegado especial.
– Quando é que vão sair as nomeações das novas
professoras? É preciso mudar tudo.
Antônio fechou o rosto aborrecido ao ouvir o
diálogo. Voltando-se para os amigos da mesa, perguntou:
– Vocês irão ao baile?
Perguntou por perguntar. Sabia, por antecipação
que
somente
Edson
iria
aparecer.
Udenistas
intransigentes, Oswaldo e Nélio não iriam. Nem mesmo
entravam no bar de doutor Breno.
– Aparecerei por lá, mais tarde – disse Edson.
Oswaldo falou:
– Tenho programa melhor para esta noite.
Nélio não respondeu. Não era preciso.
Oswaldo levantou-se para ir à toalete.
– Onde vocês guardam tanta cerveja? Não consigo
beber duas sem descarregar.
Antônio declarou:
– A teoria da evolução está modificando os
princípios da religião. Ou se aceita uma ou outra. Não há
meio termo. Darwin, como todo cientista, analisou fatos
para tirar conclusões concretas, não se preocupando com
o aspecto espiritual. A ciência não pode permanecer
atrelada aos fundamentos religiosos da Idade Média.
Com um gesto de mão, Nélio interrompeu a fala de
Antônio, explicando:
– A teoria da evolução não é nenhuma novidade.
Epícuro, vinte e dois séculos antes de Darwin, já a havia
concebido. A evolução existe e acontece normalmente na
natureza, mas não surgiu da matéria inanimada. A
tendência da matéria inanimada é permanecer
estabilizada. Com o tempo, ela tende à decadência e não
à evolução.
Antônio replicou, com tom de mofa, um leve sorriso nos
lábios:
– Se não me engano, os elementos que compõem
a matéria viva são os mesmos da matéria inanimada. Só
a composição é que varia. Houve um momento, com o
constante movimento das águas, em que esses
elementos se juntaram na proporção certa, formando a
primeira célula viva. Li em Seleções que essa
coincidência, esse fenômeno biológico pode ser
comparado à façanha de um jogador que do décimo
andar de um edifício jogasse um baralho para a rua e ele
caísse arrumado, com todos os naipes e cartas em seus
lugares certos. É dificílimo de acontecer, mas não é de
todo impossível.
– Aconteceu uma vez e nunca mais repetiu? –
perguntou Nélio – A natureza perdeu a fórmula do bolo,
naturalmente. O homem, com toda a cultura acumulada,
conhecendo a composição e a atividade bioquímica das
células, nunca foi capaz de produzir uma célula viva,
partindo da matéria inanimada. A evolução a partir da
primeira célula viva é mais fácil de ser aceita. Como a
vida começou é que nenhum cientista pode provar.
Simplesmente não creio na evolução. Algumas mutações
podem ocorrer nas espécies, em seu processo de
adaptação às condições climáticas. Se a evolução existir
em alguns milênios, os homens serão deuses.
Antônio, levantando o copo de cerveja, brincou:
– E os demônios sairão do inferno, se é que existe
inferno.
Fregueses de outras mesas do bar voltaram as
suas cabeças e fizeram silêncio, ouvindo com a maior
atenção.
Bebeu uma porção do líquido e acrescentou,
olhando para Nélio:
– Particularmente não creio que exista nem inferno
nem céu. Após a morte só existe a saudade dos que
ficam. Penso como o amanuense de Eça de Queiroz. Céu
e inferno são concepções sociais para uso da plebe.
Quanto às mutações, elas são um processo de evolução
e ocorrem no decurso de milhões de anos. Os quatro mil
anos de história da humanidade são insuficientes para se
fixar uma simples mutação. O que aconteceu antes, o
homem ignora.
Edson levantou o braço direito com a mão
espalmada e, com um leve sorriso, antecipando vitória,
declarou:
– Nas camadas geológicas do período cambriano,
os fósseis já definem um estado de vida superior, e nas
camadas inferiores, não existem fósseis dos seres
intermediários... Tanto a Terra, como todos os seres nela
existentes, foram criados. As mutações podem ocorrer em
um ser criado, desde que ele mude as suas condições de
vida... Vocês aceitam a teoria da evolução para se
dizerem modernos, evoluídos. Aceitam a evolução como
um fato, mas não comprovam. As pesquisas científicas
nas camadas do período cambriano remontam há mais de
seiscentos milhões de anos e nenhuma evolução foi
comprovada.
Antônio retrucou:
– A evolução é clara e evidente porque é lógica.
Pode ser facilmente compreendida. Porém, na religião,
nem toda verdade pode ser claramente comprovada.
– É fácil elaborar teses, criar suposições –
observou Edson. – O difícil é prová-las. Os princípios
fundamentais da criação estão muito acima da cultura
humana atual. Não está à altura da nossa compreensão.
Antônio disse:
– A impossibilidade de justificar os fatos que lhe
são apresentados, a luta em busca de um prolongamento
para a vida e a ignorância diante da grandiosidade da
natureza levaram o homem a atribuir a seres superiores a
criação daquilo que foge à sua compreensão. A natureza
é a mãe suprema, a criadora de tudo que existe. Deus
seria a Lei que rege a natureza... Um ente indefinido,
incorpóreo.
Oswaldo sentou-se, enquanto ouvia as palavras de
Antônio e, balançando de leve a cabeça em ato de
censura, declarou:
– Oh, Deus! Vós que sois o criador de todas as
coisas, perdoai os infiéis, diria Pascal, se estivesse no
meu lugar. Só Vós sois durável, só Vós sois digno de
amor.
Edson, com segurança, completou:
– Não apenas Pascal, mas todos que não sejam
cegos para enxergar as maravilhas da natureza.
Antônio, um tanto agnóstico, declarou:
– A razão humana não é capaz de definir a
existência ou a inexistência de Deus. Ele, se existe, mas
não pode ser encontrado nas religiões. Deus, seja Ele
quem for, é vida. Religião é encenação, representação
teatral, fetichismo... As religiões, especialmente o
catolicismo, como disse Cyro dos Anjos no Amanuense
Belmiro, destroem a vida pelo modo mais violento.
Introduzem, em nossas vidas, a preocupação da vida
eterna, sacrificando a vida terrena.
Olhos fitos em Edson, Antônio continuou:
– Deus pode existir no conceito das religiões, mas
não se incorpora a elas. As religiões são criações
humanas, na busca de Deus, mas Ele transcende as
limitações da compreensão humana... O homem sabe que
Ele existe, mas não consegue encontrá-lo, defini-lo,
aproximar-se d’Ele. O homem fez egoisticamente um
Deus a seu modo, à sua imagem e semelhança... Quem é
o homem para ousar aproximar-se de Deus, criando-O a
seu modo? O sol é uma mísera estrela entre milhares de
estrelas maiores e nós vivemos em um dos menores
planetas dessa insignificante estrela.
Edson moveu-se na cadeira e parecendo assentir,
interveio:
– Sei aonde você quer chegar. Muitas casas
existem, mas só uma me pertence e pode ser a menor, a
mais humilde. Muitos sóis e muitos planetas existem, mas
só um foi o escolhido.
Oswaldo, intervindo:
– Essa ideia de Deus não é novidade. Camões
afirmou que “o que é Deus, ninguém entende, que a tanto
o engenho humano não se estende”.
– Não é ao corpo humano que a Igreja se refere –
replicou Edson. – A alma é que foi feita à imagem e
semelhança de Deus. O importante no homem é a alma.
É ela que distingue o homem dos animais. Não
conhecemos a alma, da mesma forma que não
conhecemos a Deus.
Antônio disse:
– Para Spinoza, Deus é a própria natureza. A
essência divina está em tudo o que existe. O universo é o
corpo de Deus e seu espírito é a energia que o move.
– Há duas coisas que não se deve discutir: política
e religião – aconselhou Nélio. – O importante é respeitar a
liberdade de pensamento e de opinião de cada um.
– Ótimo! – aplaudiu Antônio e lembrou – Buda,
como representante da sabedoria milenar chinesa,
afirmou que não devemos acreditar em algo,
simplesmente porque ouvimos; simplesmente porque
todos falam a respeito; simplesmente porque está escrito
nos livros religiosos ou porque os professores e mestres
dizem que é verdade.
Parou um instante. Penteou os cabelos com os
dedos da mão esquerda.
– Ele disse para não acreditarmos em tradições só
porque foram passadas de geração em geração, mas
somente depois de muita análise e observação, se você
vir que concorda com a razão.
Oswaldo, franzindo a testa, declarou:
– Muito sangue tem sido derramado para garantir
ao homem o direito à liberdade. Na última guerra, muitos
brasileiros foram sacrificados em nome da liberdade. E
não se sacrificaram em vão, espero.
– A liberdade é um bem inalienável – disse Antônio.
– Ela pertence à nossa individualidade e não é outorgada
por nenhuma autoridade. Somos livres em qualquer lugar,
sob qualquer regime, por ser ela a essência de nossa
condição de seres humanos. Os governos totalitários
podem proibir a exteriorização da liberdade, mas não
impedem que ela exista e se manifeste dentro de nós
mesmos. Por isto, ela é absoluta, total, sem limitações.
Mesmo encarcerados, podemos continuar a ser livres
dentro de nós mesmos.
Oswaldo retirou do bolso um maço de cigarros e
ofereceu aos amigos. Nélio aceitou e retirou um; Edson e
Antônio agradeceram.
– Mudando de assunto – falou Oswaldo – Vocês já
leram Os Sertões, de Euclides da Cunha? É um dos
clássicos da língua portuguesa.
– Eu não. – respondeu Edson. Dizem que é um
livro muito chato, pesado. É melhor ler a Suma Teológica.
Riram.
Nélio, que estava calado e quedo, pediu:
– Dê-me o fósforo.
Helena e Nádia cruzaram a praça com destino à
beira do rio. Nélio acompanhou-as com o olhar, até
dobrarem a esquina.
Edson, procurando entender o sentido das últimas
palavras de Oswaldo, e também preocupado com o
destino político do país, declarou:
– De nada valeram os esforços pela
redemocratização do país. O senador Getúlio Vargas será
candidato à presidência, e será eleito. Vamos voltar à
estaca zero.
– Não acredito em retrocesso. Somos uma nação
de homens, e não de alimárias – disse Oswaldo. –
Rousseau já afirmava que a faculdade de se aperfeiçoar é
que distingue o homem do animal. A democracia
brasileira está sendo aperfeiçoada e não pode ser
prejudicada com a volta de Getúlio.
– É pela democracia, em seu mais elevado
conceito, que se deve respeitar a vontade do povo –
declarou Antônio. – Não é justo falarmos em democracia
se não aceitamos suas consequências... Não creio que
Getúlio seja candidato... Embora não votasse, fui
brigadeirista em 45, contrariando minha família, mas não
seria capaz de votar em Getúlio agora. Contudo, a UDN
não pode se julgar detentora dos princípios democráticos.
Cabe ao povo a decisão, e não a um grupo isolado que se
arvora em defensor das liberdades. O Brasil é uma
democracia popular, não uma democracia de elite.
– Absurde inacceptable! – declarou Nélio. – Com
essa, eu me retiro. Aliás, já estou atrasado... Helena já
desceu... Pago duas.
Oswaldo segurou o braço de Nélio e, como
complemento às palavras de Antônio, declarou:
– Eu agora seria capaz de votar pela continuidade
do presidente Dutra. De quem menos se espera é que
sai... Vejam aí o programa do São Francisco. Se
cumprido, será a redenção do Vale... Não acho justo
impedir-se a reeleição do Presidente.
– Como Ministro da Guerra, ele sentiu o valor do rio
São Francisco. Foi por aqui, pelos vapores, que passou a
Força Expedicionária, com destino ao Nordeste, e de lá,
para os campos de batalha da Itália – lembrou Antônio.
Com um gesto de indiferença, Edson disse:
– Sou forçado a reconhecer que estão se
lembrando de nós, embora um pouco tarde.
– Antes tarde do que nunca. A implantação das
obras de infraestrutura programadas transformará
totalmente a fisionomia do Vale, mas não tenho
conhecimento de nenhum projeto no setor educacional...
O homem continua sendo o grande marginalizado... Não
seria utopia pensarmos na implantação de um ginásio em
São Francisco.
Nélio, em pé, com as mãos nos bolsos, aguardava
a complementação da conversa e o troco.
– Vamos – disse, dirigindo-se a Antônio como um
verdadeiro ultimatum. – Helena e Nádia já desceram. Não
devemos fazê-las esperar.
Este, indeciso, respondeu:
– Fico mais um pouco. Acabei ontem com Nádia.
Nélio sorriu e disse:
– Não diga!... Pourquoi?
– Por nada... Não interessa.
– Pequeno arrufo de amor; logo passa.
Com um gesto de desagrado, Antônio informou:
– Não. Foi definitivo. Ela não gosta de mim. Deitei
tudo abaixo em boa paz.
Nélio complementou, com olhar de malícia:
– Taís desceu com a Neide!
– Namorada de arribação, passatempo – disse com
um sorriso irônico. – Estou pensando em coisa melhor,
mais séria... Pode descer; hoje não irei à beira do rio.
– Quem não tem cão, caça com gato – disse Nélio
sorrindo, enquanto abotoava o paletó, e saiu
cantarolando.
***
Oswaldo afirmou:
– Não conheço bem todo o programa da Comissão
do Vale, mas fala-se em barragens para impedir as
inundações, em programas de irrigação, em obras
portuárias, em hospitais.
Antônio informou:
– Os hospitais e as obras portuárias já estão sendo
construídos. As verbas, entretanto, vão ser dissolvidas.
Deram uma extensão muito grande à ideia de vale.
Incluíram toda a bacia geográfica do São Francisco...
Cidades como Belo Horizonte, Curvelo e Montes Claros
estão incluídas no programa e nenhum relacionamento
têm com o rio.
– Não vejo como fazer barragem no São Francisco.
É um mundão de água no tempo das cheias. Arrebentará
qualquer barragem – disse Edson.
– O serviço de combate à malária já está
funcionando e muito bem – declarou Oswaldo. – O
friozinho da hora da febre até que é bom. Dá uma vontade
louca de se ficar a esquentar ao sol o tempo todo... O pior
é a gente ter que ficar sem beber por muito tempo.
– Pior que a febre era o gosto amargo do quinino e
a injeção de paludan – lembrou Antônio. – Era cada
injeção!... O aralém facilitou tudo. E ainda falam que as
guerras só trazem desgraças... Com a última guerra, a
humanidade evoluiu cem anos em seis. A malária, nas
ilhas do Pacífico, obrigou os americanos a pesquisarem e
descobriram o aralém... Com a ajuda dos americanos, foi
criado o SESP, para saneamento da Amazônia, com
vistas à extração da borracha... Sem a guerra não existiria
ainda a energia atômica, sem se falar nos jatos e no
radar.
Edson, com um leve e maldoso sorriso no rosto,
disse:
– Nem todo mal é mal, principalmente para nós,
que estamos do lado de cá do Atlântico. Por isso é que
dizem que Deus é brasileiro.
Antônio fez um gesto, concordando.
Edson é também um entusiasta das novas e
promissoras realizações do governo federal, mas está
revoltado com a dilapidação do cais natural, um
monumento de pedra calcária, presente da natureza à
cidade.
– Só não concordo com a destruição do cais
natural, para construir o outro. Com tanta pedra na
Lapinha, e estão quebrando as pedras do cais. As
dinamites vão terminar abalando até os alicerces da
Matriz.
Antônio, franzindo a testa, informou:
– Para os empreiteiros, é mais fácil apanhar as
pedras mais perto. Os interesses pessoais são sempre
maiores que os públicos ou coletivos. Não devia ser, mas
é.
Edson sentiu que havia provocado a entrada em
terreno perigoso. Pisavam agora a areia movediça dos
interesses e das ideologias políticas e, nesse solo
instável, quanto mais se mexe mais se afunda. Ele disse:
– Daqui a vinte anos, ou menos, haverá outra
guerra. O homem não vive sem guerras. A guerra faz
parte da natureza humana... No mundo animal, o
equilíbrio biológico se processa naturalmente. O mundo
humano sem guerras ficará superpovoado... A próxima
será a guerra final. Uma guerra ideológica. O capitalismo
e o comunismo destruindo-se mutuamente. O mundo
acabará em fogo... Está nas Escrituras. Será o fogo da
bomba atômica, queimando em cadeia. Não sobrará
nada.
Antônio, em suas leituras dos Sermões, guardava
bem nítida a imagem da guerra, descrita por Vieira:
– A guerra é um monstro que se sustenta do
sangue, da vida, e quanto mais come e consome, tanto
menos se farta. A guerra é a calamidade de todas as
calamidades.
Oswaldo, poético, comentou:
– A próxima será a guerra final. No mundo sobrará
apenas uma mulher e eu estarei com ela. Será o princípio
pelo fim. Começaremos tudo de novo. Um mundo
diferente, sem classes sociais, sem guerras, sem
conflitos. Nele, todos serão iguais. O governo será povo e
o povo será governo. Não haverá nem ricos, nem pobres.
Será uma grande cooperativa, todos trabalhando para um
fim comum: a felicidade terrestre ou, por que não dizer, o
paraíso terrestre idealizado por Marx, sem as distorções
trazidas pelo comunismo. Ninguém se lembrará das
misérias e da podridão do mundo atual. Se Edson quiser,
Deus poderá voltar a conviver com os homens, mas não
terá hegemonia sobre eles. O homem será o senhor
absoluto, em torno do qual tudo estará girando... Será a
era do antropocentrismo. O homem é, em verdade, a
razão de ser de tudo que existe.
Edson interveio para declarar que nada iria sobrar,
nem mesmo uma mulher. Que a vida iria desaparecer por
completo, tanto animal como vegetal.
Oswaldo não lhe deu atenção e continuou em seu
ominoso devaneio metafísico:
– Haverá, no mundo, uma perfeita justiça social; o
homem voltará ao convívio direto com a natureza. Não
haverá proletários, nem capitalistas. Não haverá conflitos
e as estruturas sociais serão estáveis.
A conversa estava cada vez mais acalorada.
Edson, encolhendo os ombros, comentou:
– Só restará um deserto. Não haverá lugar para
arcas e Noés.
Antônio, ouvindo, deu asas à imaginação. O mundo
destruído pelo próprio homem. Na atmosfera, um só
cogumelo atômico. Único, infinitamente grande... Elza
corria desesperada. Os átomos a perseguiam como bolas
de fogo a brincar de esconde-esconde. Não tinham
pressa. Vinham de todos os lados e caminhavam em
todas as direções. Mais cedo ou mais tarde haveriam de
abraçá-la, queimá-la, transformá-la em cinzas e fumaça...
“Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se
transforma...” Ela corria ao seu encontro. Eram duas
tochas humanas a se buscarem. O Tocha Humana saía
das revistas em quadrinhos para a realidade dramática do
fim. Não se encontraram... Foram evaporando,
queimando, sumindo. Os átomos incandescentes
destruíam tudo. Derretiam as paredes das casas,
abraçavam os postes de luz... Do chão subiam rubras
labaredas gigantes. Os átomos brincavam dentro da
chama ardente... Agora juntaram-se militarmente em
colunas gigantescas e cobriram toda a Terra, em seu
abraço final.
Edson continuou:
– No mundo moderno atual não há mais conflitos
de classes, nos termos definidos por Marx. O comunismo
transformou o proletário numa arma para dominar o
mundo. A luta saiu do campo doméstico das classes
sociais para internacionalizar-se, deixando de lado os
reais interesses do proletário, transformado em meio e
não mais em fim, como idealizou Marx.
Oswaldo interrompeu-o para dizer:
– No meu mundo não haverá parasitas, nem
favoritismos; que as mulheres terão os mesmos direitos
que os homens. Nele, ninguém será beneficiado, sem
retribuir os benefícios recebidos. Não haverá prostitutas,
nem pessoas desocupadas; não existirá policiamento,
pois cada cidadão, consciente de seus direitos e deveres,
será juiz de seus próprios atos. Será tirado o máximo
proveito social e econômico do cultivo da terra. A
consciência de liberdade e de responsabilidade de cada
cidadão será o agente de controle social.
– Pura utopia. Vamos tomar mais uma? –
perguntou Edson.
O garçom foi chamado.
– Traga mais uma cerveja – pediu Edson.
– Uma januária para mim – completou Oswaldo.
Antônio lembrou-se de seu álbum de figurinhas da
última guerra. Não ficara completo. Faltaram as figurinhas
de Roosevelt, das Superfortalezas Voadoras, de Romel e
de Hiroíto.
Oswaldo começou a bater compassadamente na
mesa, em ritmo de marcha. Em surdina, com seus botões,
cantou um dos grandes sucessos dos carnavais
passados. O carnaval estava próximo e era a mais
importante festa das férias, a mais badalada. Para o resto
do mundo, era a festa que precedia a Quaresma. Para os
estudantes, era o início do fim, o último ato das férias.
Edson e Antônio entraram no compasso. Juntaram-se as
vozes e a marcha saiu com segurança.
Loirinha, loirinha.
Dos olhos claros de cristal.
Desta vez em vez da moreninha
Tu serás rainha do meu carnaval.
– Não há festa como o carnaval – comentou
Oswaldo, continuando a bater na mesa no ritmo da
marcha.
– Cristo inventou as orações – disse Edson. –
Quem teria inventado o carnaval?
Oswaldo informou:
– O carnaval é mais velho do que Cristo. É uma
continuidade das lupercais romanas, que se celebravam
em fevereiro, em homenagem ao deus Pã.
Chamaram o garçom e pediram a conta... Dividiram
e saíram, dissolvendo a reunião.:
– Vou jogar uma partida de bilhar e, mais tarde,
estarei no Balalaica – disse Oswaldo.
25
Já havia descido o sol pelos lados do poente.
Antônio caminhava só, misterioso, sem destino
certo. Sem que desejasse, seguiu para a beira do rio. O
Velho Chico é a paixão de todo barranqueiro. Sua
imaginação fluía desordenadamente. Era preciso tomar
uma decisão. Cursava o terceiro ano científico e ainda
não se definira por uma profissão. Queria ser advogado,
mas gostava da vida rural. Durante as férias ele dividia o
tempo entre a fazenda e a vida social na cidade. Depois
do ginásio, entre o clássico e o cientifico, ele havia se
decidido pelo científico. Não tinha com quem discutir o
problema, abrir-se, expor suas incertezas. Não tinha
dúvidas de que seu pai amava os filhos, mas este
mantinha-se afastado, a distância. Elevado à condição de
líder da comunidade, vivia para o município, para a vida
pública. Nada faltava materialmente à família, mas ela era
parte de seu ser – lã do carneiro... Se ele estava bem, a
família também estava... Não dialogava com a esposa,
nem com os filhos. Durante as campanhas eleitorais, ele
se entregava de corpo e espírito aos interesses do
Partido. Bom homem, o coronel Brandão... Pai amoroso.
Melhor seria se não desse à vida pública maior atenção
que a seus familiares...
Mergulhado na floresta densa de seus sonhos
vagos, chegou à beira do rio, sem que tivesse
efetivamente desejado. Sentou-se em uma pedra e
passou a olhar indiferente para as pessoas que
chegavam.
Elza veio ocupar seus devaneios. Ele pensou:
– Machado de Assis tem razão quando afirmou que
uma tal Laura foi capaz de fazer apaixonar um poeta.
Ele refletiu:
– Os poetas se apaixonam por aquilo que não
podem obter. Não é o meu caso.
Ele sorriu interiormente.
Ali se deixou ficar por cerca de uma hora.
26
Quando Antônio chegou, o baile já havia
começado. O salão estava cheio. Um garçom passou,
apressado, com uma cerveja e dois copos.
No fim do salão, o jazz-band tocava um bolero.
Justino soprava o saxofone com floreios de mestre. Dava,
às vezes, a impressão de estar chorando. As veias de seu
pescoço estavam infladas e seu rosto transfigurado. Viase a satisfação do músico amador, orgulhoso de sua arte.
O suor escorria-lhe pelo rosto. A música chegava aos
ouvidos, agregada às vozes indefinidas das pessoas mais
próximas.
Numa fantasia de cores e contrastes, no farfalhar
das roupas, as mulheres desfilavam, dançando ou
caminhando pelo salão, exibindo aos olhos curiosos, as
novidades da moda. Aqui, um vestido estampado, de
seda pura, com um decote provocante. Ali, um conjunto
leve de saia e blusa, mostrando, com uma exatidão quase
perfeita, as formas naturais do corpo.
Os olhos de Antônio passaram de leve sobre todas,
não se fixando em nenhuma. Ele estava ansioso.
Finalmente, junto à porta lateral do salão, lá estava ela,
em pé, conversando com Elvira. Usava um vestido azul
celeste, simples, sem adornos. Observou que ela não
usava pintura, deixando à mostra a beleza natural do
rosto. Estava, contudo, deslumbrante. Seus olhos se
encontraram.
Antônio, esgueirando-se por entre os pares, sentia
o aroma morno de uma mistura de perfumes e suor, numa
atmosfera contagiante, que absorvia as pessoas e ia aos
poucos formando uma só consciência coletiva,
impregnada do desejo de divertimento.
– Vamos dançar? – um convite e uma súplica são
feitos ao mesmo tempo por Antônio, tão amena era a
entonação de sua voz.
Elza estremeceu e se ofereceu para a dança
pedida.
Ele beijou-lhe a mão e começaram a dançar.
Sem outra forma de se declarar, sem preâmbulos,
Antônio perguntou:
– Você quer me namorar?
Surpresa com a pergunta, ela vexada corou
levemente o rosto. Vaidosa, sentiu-se feliz e sorriu
docemente.
− Sim! – respondeu ela pelos impulsos de seu
coração.
Ele sorriu e aumentou a pressão do braço e seus
corpos se juntaram. A música parou. Palmas.
Continuaram abraçados no meio do salão.
Matilde, uma amiga de ambos, ao passar por eles,
disse com um sorriso brincalhão:
– Vocês dois formam um lindo par.
Despertados, despediram-se sorrindo, com um
aceno de cabeça.
Não dançaram mais naquela noite. Ela evitava seu
olhar e fugia à sua aproximação.
Elza, aproximando-se de Elvira, disse segredando,
em voz baixa:
– Ele me perguntou s’eu queria namorar ele.
– Que lindo! E que foi que você falou?
– Sim! O que iria eu dizer? Mas, nunca namorei.
– E daí? – questionou Elvira, levantando os
ombros. – É só conversar como nós estamos
conversando.
– É? – perguntou ela com viço e graça,
emocionada.
– E por que não? Amanhã você vai dar umas voltas
na Praça. Irei com você.
– Sim! Não sei – respondeu sem consciência.
***
Elza chegou em casa exultante de felicidade, rindo
como se tivesse visto um passarinho verde. Entrou
imediatamente para o quarto. Mirou-se no espelho grande
da penteadeira.
– Ele quer me namorar! – pensou.
A luz apagou-se quando Marília entrava no quarto.
– Tem fósforos na gaveta da penteadeira, do lado
direito.
Elza abriu a gaveta e, tateando, localizou a caixa
de fósforos. Acendeu um e saiu à procura da vela.
A luz da vela iluminou fracamente o quarto.
Jogou a roupa sobre uma cadeira e vestiu a
camisola. Afastou a coberta, acomodou o travesseiro e
estendeu-se na cama. Todos esses gestos foram
automáticos. Seu pensamento estava no baile.
Marília perguntou:
– Posso apagar a vela? Estou morrendo de sono.
– Pode... Estou sem sono... O baile estava ótimo,
não acha? Tinha muita gente.
– Só vi você dançando uma vez com Antônio,
Ao ouvir o nome de Antônio ela sentiu um abalo.
Seu pensamento retornou ao baile. Ela, disfarçando,
disse:
– E foi o bastante. Gosto mais de apreciar, de ver
os outros dançarem.
– Eu também dancei poucas vezes. Mário não
apareceu... Você viu o vestido da Filhinha... Que exagero
de decote!
Elza não estava disposta a comentar o que esta ou
aquela mulher usava no baile.
– Meninas, vão dormir – ordenou o Sr. Felício, que
já estava deitado há muito tempo.
Elza rolava de um para outro lado da cama,
sonhando acordada, presa à agradável insônia,
fantasiando suas ideias, antegozando as comoções,
dando largas às emoções do primeiro encontro. Pela
primeira vez, em seu corpo púbere, sentiu a presença da
mulher. Antônio era o homem que o céu lhe destinava.
27
Sebastião Pereira, gari da Prefeitura, dedicado ao
seu modesto ofício, ainda moço, de estatura mediana,
mas bem socado, tardou muito a chegar ao Balalaica
naquela noite de sábado. Em pé, no balcão do bar, pediu
uma pinga. Bebeu a cachaça, que desceu queimando
garganta abaixo e cuspiu de lado uma saliva grossa.
Passou a manga da camisa, limpando a boca.
Joana, já embriagada, aproximou-se dele.
– Paga uma pra mim, Bastião.
Sebastião olhou-a de alto a baixo.
– Tu tá desocupada?
Com um sorriso nos lábios, ela respondeu:
– Tou sempre desocupada. Ocê é que nunca dá
atenção pra mim.
Com um gesto de assentimento, ele voltou-se para
o garçom e ordenou:
– Bota mais duas dose aí.
– Ocê só fica com a vagabunda da Miguelina.
Aquela negrinha à-toa.
Sebastião fechou o rosto e disse:
– Não seja boba.
– Carece ocê zangar, não. Tava só falando... Será
que não mereço dormir com ocê uma vez só?
Ele fez um gesto afirmativo.
– É!... Até que não faz mal.
Miguelina, que acabava de entrar no salão,
perguntou desafiadoramente:
– Bastião, que negócio é esse de pagar cachaça
pr’essa vagabunda aí?
Sebastião respondeu agressivo, os olhos severos:
– Pago com meu dinheiro e não é da sua conta.
– Ocê vai me largar, não... Eu mato ocê. Se não
ficar comigo não fica com mais ninguém.
– Por aí tem mulher muito mais melhor que ocê...
Ocê não passa dum bagulho.
Joana engoliu rapidamente a cachaça.
Miguelina, machona e desaforada, num acesso de
cólera avançou sobre ele, tentando agredi-lo.
Sebastião, desvencilhando-se da provocação, abriu
o paletó, disposto a revidar.
Miguelina disse meio chorosa:
– Só não lhe bato pra todo mundo ver porque lhe
amo.
– Tu só ama o dinheiro que sai de meu bolso.
Joana, impertinente, interferindo na discussão,
afirmou:
– Que essa puta vagabunda tá achando que é?
Pr’ela basta eu.
– Ocê?... Não bota seu bedelho adonde não é
chamada.
– O mal feito é da conta de todo mundo... Nós tava
conversando e cabia ocê na conversa, não... Vá procurar
homem.
Miguelina objetou:
– Uai! Bastião é meu homem. Sempre foi. Vou dá
ele de mão beijada pra ninguém, não.
– Agora não é mais.
Sebastião, dirigindo-se a Miguelina, ordenou com
ar severo:
– Esse tererê seu não resolve nada. O diabo que te
carregue!
Miguelina afastou–se um pouco. Subitamente
rodou os braços balançando as pernas em um gingado de
ameaça, o corpo fremente, e, num ímpeto, disse:
– Bata se tu é homem.
– Não amole! Saia daqui antes qu’eu faça uma
besteira.
– Bata se tu é homem – repetiu ela.
O álcool já começava a tomar conta de seus atos.
Sebastião, as feições alteradas, o sangue fervendo de
indignação, tirou o chapéu da cabeça com um grotesco
gesto, nos olhos um brilho de cólera, e desafiou:
– Não brinca, que o diabo atenta! Sou inté capaz
de matar ocê agora mesmo.
Ela, abrindo bruscamente o decote da blusa,
mostrou o busto e disse:
– Se ocê é homem cumpre sua palavra.
Vencida curta hesitação ele declarou:
– Só não lhe mato porque tou desarmado.
Miguelina, alardeando coragem, baixou as mãos e
suspendendo a saia, retirou de dentro da calcinha uma
peixeira e jogou em cima do balcão.
– Se tu é homem cumpre sua palavra agora. Tá aí
a faca.
Diante da inesperada arenga, Sebastião hesitou.
Miguelina era uma mulata atrevida; mulata, não,
preta. O cabelo crespo, dentes brancos e estragados,
olhos pretos, lábios grossos e carnudos, bunda saliente:
nagô.
Joana, de pé ao lado dele, murmurou alguma
coisa, com uma risadinha cínica.
O garçom, receoso de que eles se engalfinhassem,
disse:
– Deixa de besteira, homem! Larga isso pra lá.
Sebastião olhou de esguelha para o garçom,
umedecendo os lábios com a língua.
Joana resmungava solitária, próxima ao balcão.
Miguelina, com expressão danosa, aproximou-se
ameaçadoramente, disposta a tudo.
Sebastião encarando-a zombeteiro e, com um
gesto de desprezo, disse, em voz baixa:
– Não vou ficar com ocê porque ocê me botou
gonorreia... Ocê tava doente e não me avisou.
Miguelina gritou colérica, com voz tonitruante:
– Quem tá doente é tua mãe, seu filho da puta...
Ocê não é homem.
Diante do aviltante insulto, Sebastião, dentes
cerrados, os olhos selvagemente congestionados, a
irritação avolumada, suspendeu a possante mão, que
desceu pesada e firme como uma vergasta sobre o rosto
de Miguelina.
Perdendo o equilíbrio, ela foi cair sobre uma mesa,
derrubando copos e garrafas.
Joana estava petrificada.
O garçom, pálido e imóvel, sem tirar os olhos de
Sebastião, abanava a cabeça negativamente.
Miguelina, com um filete de sangue a escorrer-lhe
pelo canto da boca, voltou-se rápida e avançou contra
Sebastião, dando-lhe um tapa no rosto, com a mão
espalmada.
Ele, sem medir consequências, alucinado, o rosto
tisnado de raiva com expressão de rancor, impelido por
uma reação irresistível, sem hesitar empunhou a faca que
estava sobre o balcão.
– Nãããão! – gritou Joana.
Sebastião, num gesto rápido, com a faca, perfurou
os intestinos de Miguelina, empurrando-a para um lado.
Jogou a faca sobre o balcão, pôs o chapéu na cabeça, e,
desnorteado, saiu correndo, sem olhar para ninguém.
A cena desenvolveu-se num abrir e fechar de
olhos.
Miguelina contorcia-se em dores, gemendo baixo,
enquanto o sangue fugia vagarosamente de suas veias. A
dor foi, aos poucos, cedendo lugar a uma estranha
sensação de frio.
Uma mulher gritou:
– Que desgraça! Alguém chama um médico!
– Quem? Doutor Breno ou doutor Onias? –
perguntou outra.
– Qualquer um serve... Não, Miguelina é eleitora da
UDN. É bom chamar doutor Onias.
Um frequentador comentou:
– Esse negócio vai dar galho. Bastião é eleitor do
coronel Brandão. Vai dar muito fuá mesmo.
Joana, amedrontada, sem tugir nem mugir, afastouse do balcão e recolheu-se a seu quarto, onde chorava
copiosamente.
A imagem do rosto assustado de
Miguelina não saía de sua mente.
O salão foi aos poucos ficando deserto.
Com a chegada da polícia, Miguelina foi removida
para o interior da casa, enquanto aguardavam a chegada
do médico.
Um policial tomou as informações preliminares.
Nomes das possíveis testemunhas; causas prováveis do
crime, razões imediatas do delito. Anotou nome e
identidade de três testemunhas que, por informação do
dono do bordel, estavam presentes. Procurou por Joana e
convidou-a a acompanhá-lo à Delegacia.
Aos poucos, muita gente foi voltando.
A notícia percorreu rápida a vizinhança.
Todas as prostitutas e frequentadores permanentes
foram aparecendo. Uns contra, outros a favor da vítima,
de acordo com as identificações políticas de cada um,
comentavam o acontecido.
O doutor Onias tentou, em vão, salvá-la. Não era
cirurgião e não dispunha de meios adequados. O antigo
Hospital Municipal havia sido fechado. Não tinha nem
mesmo para onde transportá-la.
Miguelina faleceu pela madrugada. O corpo foi
estendido sobre uma essa improvisada.
28
Domingo de tempo limpo e céu azul. Antônio
acordou com o pensamento em Elza.
Dona Naná arrumava, com seu corpo franzino, as
xícaras sobre a toalha branca na mesa da sala de jantar
no grande casarão do coronel Brandão, ornamentada com
jarras de flores, que ela cultivava nos jardins da casa.
Vestido de pijama, os pés descalços, ele
aproximou–se da mãe e beijou-lhe os cabelos pretos e
lisos.
– A bênção, mãe!
– Deus te abençoa – respondeu ela com brandura,
oferecendo a mão direita para o beijo tradicional e fitou–o
carinhosamente com seus expressivos olhos pretos.
Beijou-lhe a testa. Olhou para os pés dele e determinou,
com voz branda:
– Volte e vá calçar um chinelo. Faz mal levantar
com os pés no chão. Banha logo o rosto e vem tomar
café.
– Que mal é que faz andar com os pés no chão? É
bom o contato com o chão. O corpo humano precisa
disso.
– Sei, não! Mas que faz mal, faz.
Um gato miou no sótão da casa.
Pela porta do quintal, aberta de par em par, uma
viração suave e fresca entrava na sala.
Antônio, bocejando, apanhou um bolinho de arroz e
retornou ao quarto, mastigando. Calçou os chinelos e saiu
para o quintal. Nada havia para ele mais gostoso que um
bolinho de arroz, feito por dona Olívia. O cão policial fezlhe festas.
Os periquitos chilreavam em bando nas mangueiras.
Rolinhas mariscavam perambulando pelo quintal.
O quintal era uma verdadeira chácara dentro da
cidade, com inúmeras fruteiras. Tinha cocheira e pasto
para os animais, como um pequeno sítio.
Com uma mão no bolso, passadas lentas e
calculadas, mergulhado em reflexões, o pensamento em
Elza,
ele
caminhava
pelo
quintal.
Arrancou,
inconscientemente, uma folha de laranjeira e encheu os
pulmões com o ar fresco da manhã.
O sol brilhava, com seus raios dourados.
Ele abraçou o tronco secular da velha mangueira
do quintal, sua amiga e companheira dos doces anos da
infância, agora esquecida. Seus olhos caminharam pelo
tronco e subiram para os galhos. Deu-lhe uma vontade
imensa de subir pelo tronco e acomodar-se, como fazia
antes, numa forquilha de galhos, bem no alto, mas não
subiu.
Retornou à sala, esfregando as mãos, e tomou o
café, saboreando os bolinhos de arroz.
O grande relógio carrilhão, no alto da parede, deu a
introdução sonora e, logo em seguida, badalou nove
vezes, indicando as horas. O som ecoou pela casa,
quebrando o silêncio aparente.
Retornou ao quarto.
Apanhou no criado-mudo, ao lado da cama, o livro
Caminhos Cruzados, de Érico Veríssimo. Releu o nome,
abriu o livro e começou a folheá-lo indiferente. Um
romance urbano, livro muito comentado nos meios
estudantis, que ele havia trazido para ler nas férias. Ele
pensou:
– Preciso ler este livro. Dizem que é muito bom.
Ele leu:
“Madrugada – a cerração empresta à travessa das
Acácias um mistério de cidade submersa. A
ruazinha de subúrbio se desfigura. A luz dos
combustores, que a névoa embaça, sugere vagos
monstros submarinos. As árvores que debruam as
calçadas são como blocos compactos de algas.
Todas as formas parecem diluídas”.
Fechou o livro e recolocou-o no mesmo lugar.
Apanhou um lápis e uma folha de papel em branco.
Sentado numa preguiçosa, construindo seus castelos
amorosos, embora não cultivasse a poesia, tentou
transcrever em versos seu amor nascente. O nome era
lindo. Um acróstico pegaria bem.
E
L
Z
A
Procurou encontrar inspiração. Pensou: Casta virgem. É,
pode ser virgem sem ser casta.
Eis a casta virgem que meu corpo sonha
L
Z
A
Tamborilou com o lápis na perna. Levou-o à boca
por um instante, invocando a ajuda de Calíope.
Eis a casta virgem que meu corpo sonha
Linda das ninfas puramente raras
Z
A
Cruzou os braços sobre o peito, olhando o papel à
sua frente. Linda entre as ninfas. Seria melhor, mas a
métrica não dá. Contou, batendo com os dedos na mesa:
Lin-da-das-nin-faz-pu-ra-men-te-ra.
Ele pensou:
– Fica assim mesmo. E agora o Z. Bolas! poderia
ser outra letra, ficaria mais fácil.
Completou.
Eis a casta virgem que meu corpo sonha,
Linda das ninfas puramente raras!
Zelando a alcova das roupagens claras
Ardentemente me esperarás risonha.
Releu o acróstico... Muito primário. À noite, se
houver oportunidade, entregá-lo-á a ela.
Ele pensou:
– Elza será com “z” ou com “s”!
Descontente, pegou a folha escrita e rasgou; jogoua ao chão e levantou-se. Outro dia talvez lhe venha uma
melhor inspiração. Vestiu o calção e desceu para o rio.
29
Do cais avistava-se, no pontal de baixo, a silhueta
de um vapor que subia vagarosamente. Dentro de mais
ou menos duas horas estaria chegando.
Em razão da vazante de janeiro, havia aparecido
parte de uma pequena praia do outro lado do rio.
Antônio encontrou-se com Vicente e João do
Padre, que também iam aproveitar o sol do domingo.
Procuraram uma canoa para a travessia.
– A croa hoje vai ser divertida – afirmou Vicente. –
Já atravessou muita gente. Croa em janeiro é novidade.
Pensou um pouco, medindo a largura do rio, e
disse:
– Vamos no braço?
Antônio estendeu os olhos para a margem oposta e
respondeu sorridente, com absoluta confiança:
– Eu topo.
Vicente era um colega do primário e haviam sido
criados praticamente juntos. Por várias vezes já haviam
enfrentado o rio, mesmo quando estava cheio, de
barranco a barranco.
João do Padre, apesar de ser um bom nadador,
não era barranqueiro nato. Havia chegado a São
Francisco há pouco mais de dois anos. Ele ponderou:
– Ainda está muito largo. Deve ter mais de
oitocentos metros e tá maretando.
– Vamos subir até o cascalho ou mais um pouco
pra cima – convidou Vicente. – A correnteza tá muito
forte.
No cascalho, uma pequena enseada, havia outros
banhistas a se divertirem por ali mesmo.
Caíram na água, dispostos à estúrdia travessia,
empreitada aparentemente banal para o barranqueiro.
Braçadas firmes e cadenciadas. Respiração controlada,
nadando em linha reta sem forçar a correnteza, que os ia
levando rio abaixo.
Haviam nadado já uns duzentos metros. Estavam
em pleno talvegue quando ouviram um grito à retaguarda.
Pararam quase ao mesmo tempo e, nadando em pé,
aguardavam uma repetição do grito.
– Socorro! Perdi o nado. Socorro!
Viram um corpo que se debatia sobre as águas,
uns cinquenta metros atrás, tentando permanecer na
superfície.
– Quem será? – perguntou Antônio.
– Sei, não – respondeu Vicente. – Nós podia acudir
ele.
– Vou apanhar uma canoa – afirmou João do
Padre, ao mesmo tempo em que empreendia a volta,
nadando com mais rapidez.
Antônio e Vicente permaneceram parados no meio
da correnteza, nadando em pé, sem saber o que
deveriam fazer.
Antônio olhou para as duas margens do rio.
– Como está longe! – pensou.
Ao nível das águas, as distâncias parecem muito
maiores.
Ele olhou mais, à procura de alguma canoa. Nada;
só água. Água barrenta e encapelada. Água profunda.
O vento forte levantava pequenas ondas, que
obrigavam os nadadores a um esforço maior. A
correnteza os levava rio abaixo.
– Ele deve ter perdido o nado – afirmou Vicente. –
A mareta tá forte.
Os apelos continuavam cada vez mais dramáticos:
– Não me deixem morrer! Socoooorro!
Antônio, sem saber bem o que iria fazer, começou
a nadar em direção à vítima.
– Náufrago costuma segurar a pessoa que vai
socorrê-lo e afundam os dois – ia pensando, enquanto
nadava – São encontrados depois abraçados e
estragados pelos peixes.
Pensou em Elza.
– Logo agora e eu arriscando a vida.
Estavam em pleno canal, onde o rio era mais
profundo.
Vicente,
compreendendo
a
decisão
do
companheiro, acompanhou-o.
Chegando perto, reconheceram a vítima. Era Luiz
Cunha, que nadava descompassadamente. As maretas
batiam fortes em seu rosto, descontrolando a respiração e
forçando-o a beber água.
– Ajudem-me! – pediu com ar penitente.
Antônio deu uma volta, nadando em torno dele,
guardando uma distância segura. Não sabia o que fazer.
Os olhos de Luiz estavam grandes e vermelhos. Debatiase contra as águas, contra a morte, buscando
desesperadamente manter a vida, mas não encontrava
apoio.
– Água não tem cabelo – pensou Antônio. – O rio
quer os que sabem nadar porque os outros não se
arriscam.
Súbito, de forma inesperada, Luiz imergiu nas
águas morenas. Em seu lugar se elevaram grandes
bolhas de ar.
Antônio
mergulhou
junto,
sem
medir
consequências, sem raciocinar, e apanhou o náufrago por
baixo, impulsionando-o para cima, enquanto Vicente o
recebia, segurando-lhe o braço. Antônio apoiou do outro
lado e começaram a nadar juntos, conduzidos pela
correnteza.
– Sustenta a cabeça dele fora d’água – pediu
Vicente.
Um canoeiro veio em socorro e aproximando-se,
completou o salvamento.
Nada mais de praia, nada mais de rio naquele dia,
nada mais de rio para Antônio por muito tempo. Aquela
seria sua última tentativa de travessia a nado do Velho
Chico, com seus remansos misteriosos, seus bancos de
areia traiçoeiros, que só os barranqueiros conhecem.
Do cais voltaram ao cascalho para apanhar as
roupas e subiram o barranco até o primeiro botequim.
– Três brejeiras duplas, por favor – pediu Antônio.
– Só duas. Eu quero, não – disse Luiz, vacilante,
com voz baixa, enquanto se sentava na primeira cadeira
que encontrou.
Dando uma palmada leve nas costas de Luiz,
Antônio com voz calma disse:
– Qual nada, você nasceu de novo.
Voltando-se para o dono do bar ele completou:
– Pode servir as três.
João do Padre apareceu.
Vicente sacudindo a cabeça dirigiu-se a Luiz
perguntando:
– Que foi que sucedeu? Não me lembro de ter visto
ocê atravessando o rio nenhuma vez. Muitos nadam, mas
atravessar o rio é pra qualquer um, não. Ocê pode contar
nos dedo os que tá acostumado a atravessar nesta época
do ano, com o rio cheio. Na seca tem muita gente que
afoita.
Ele respirou fundo, com a mão no queixo, a cabeça
latejando. Franziu a testa e, um pouco mais tranquilo, com
uma risadinha sem graça, respondeu:
– Ocês vai mangar d’eu, não, mas eu pensei que
ocês fosse apenas dar um fora e voltasse. Não sabia que
ocês ia atravessar. Logo que ocês caiu n’água eu cai
atrás. Senti cãibra e perdi o nado.
O som agudo de um apito anunciou a chegada de
um vapor. O barco passava agora pelo Campo de
Sementes e ainda demoraria uma meia hora para
ancorar. Daria mais dois apitos. O prático caprichava
sempre nesse primeiro apito. Ele identificava seu barco.
Uma puxada longa e firme na corda pendurada ao
alcance de sua mão, na cabine de comando, dava
passagem ao vapor d’água. Os apitos dos vapores eram
inconfundíveis.
– Aí vem o Wenceslau – afirmou Vicente.
Não havia dúvidas. Ninguém tinha visto o vapor,
mas todos sabiam, pelo apito, que era o Wenceslau Braz.
Era quase meio-dia. Levantaram-se da mesa e
saíram para a rua.
***
O apito mais comovedor era o do Barão de
Cotegipe. Era melancólico. Penetrava no espírito das
pessoas, provocando sentimentos místicos de saudade.
Era quase um choro de barco saudoso da velha Bahia, de
onde vinha carregado de sal e de retirantes do Nordeste,
para onde retornaria, levando de volta os retirantes dos
anos anteriores. Em cada passageiro, uma história. O
apito do Barão transmitia a angústia e o sofrimento do
nordestino, em sua migração perene, subindo ou
descendo o rio em busca de uma afirmação para sua
existência.
30
Sete horas da noite. Elza e Elvira, braço a braço,
caminhavam pela praça, como as demais moças, sem
namorado, no sentido horário. Os rapazes caminhavam
em sentido contrário. A praça, à noite, era o pasmatório
da cidade.
Nádia, Helena e Nélio faziam o footing no mesmo
sentido dos homens.
Antônio, parado na porta do bar de doutor Breno,
observava o movimento. Ele deixou que o trio passasse
para, logo depois, com garbo vaidoso, entrar na corrente
humana que circulava, cumprindo um ritual criado pela
tradição. Alimentando uma nova paixão, aproximou-se
risonho de Elza e parou à sua frente, com olhar confiante
e jovial.
– Posso acompanhar vocês? – perguntou com os
olhos fitos nela.
Elvira, com um franco e vitorioso sorriso de
satisfação, respondeu:
– Como não? Será um prazer.
Antônio segurou carinhosamente o braço de Elza,
que estava comovida, tensa, com os olhos fixos no chão,
como a escolher o lugar onde colocar os pés.
Ele disse:
– Pensei que você não viesse.
Elza, sem esconder o vexame daquela abordagem
e sem dizer palavra, levantou ligeiramente os olhos, que
se encontraram com os dele. Era bonita e aparentava ter
pouco mais de dezesseis anos.
Caminharam em silêncio.
Elvira, sorrateiramente, com um sorriso nos lábios,
foi ficando para trás, seguindo com os olhos o casal à sua
frente. Sua ausência não chegou a ser notada.
– Não vi quando você saiu ontem do baile. Não
consegui outra oportunidade para dançar com você.
Ninguém me interessava, por isso não dancei com
nenhuma outra pessoa...
Uma pequena pausa.
– Sinto que você me evita. Por que razão?
Ela permaneceu em silêncio, pensativa.
Ele, após uma curta hesitação, disse:
– Você não respondeu à minha pergunta... Ontem
eu lhe perguntei se queria me namorar e você não disse
nem sim nem não... Por quê?
Ela ouvia com atenção o que ele dizia. Olhou para
ele e respondeu:
– Por nada. Não sei se devo... Você namora há
tanto tempo com a Nádia, que não sei se devo... Você
gosta dela. Deve ter brigado com ela e procura apenas
provocar ciúme, conversando comigo.
Ele fechou ligeiramente o rosto e disse:
– Se minha vontade fosse essa, eu teria outras
moças, mais fáceis. Gostei de você e meu sentimento é
sincero. Não tenho mais nada com a Nádia.
Nádia, passando por eles, disse a Helena, para ser
ouvida por Antônio e Elza.
– Tem tempo que é assim mesmo, depois muda.
Nádia não demonstrava estar triste. Há muito
haviam se anuviado os primitivos sentimentos que a
ligaram a Antônio.
– Que foi qu’ela disse? – perguntou Antônio.
Ex-abrupto, Elza retrucou:
– Não ouvi. Se você deseja saber, pergunte a ela.
– Não se zangue, por favor.
Aos poucos, a conversa entre eles foi perdendo o
embaraço inicial. Deram umas duas ou três voltas,
conversando assuntos triviais. Ele, sentimental, em
íntimas efusões, fazia planos.
– Acho que já é hora de ir pra casa.
– Está cedo, mas se quiser, eu levo você até sua
casa.
Ela, com um gesto largo e com os olhos
espantados, contestou:
– Nunca! Isso, não!
– Ora, mas por quê?
– É por nada, não. É qu’eu não avisei que ia sair.
Anete, filha de doutor Breno e sobrinha de Elza,
aparentando ter pouco mais de dez anos, aproximou-se
correndo.
– Vó disse pra senhora ir pra casa. Já tá muito
tarde e Vô pode chegar logo.
Assim como havia chegado, desandou para trás a
correr, alegre e descontraída.
– Tenho que ir. Amanhã a gente se vê.
Ele não insistiu. Ela tinha uma vida quase
monástica, como convinha às filhas das boas famílias.
– Amanhã, às dez horas, irei tomar café em sua
casa... Durma bem e sonhe comigo.
– S’eu sonhar, virarei o travesseiro – disse ela,
sorrindo.
Era uma confissão.
Ele despediu-se, enlevado.
31
Com os olhos fitos na esposa, Manoel de Firmina,
depois de alguns instantes de meditação, disse:
– Nós tá carecendo de arrumar logo um casamento
pr’essa menina.
– É!...
– Tou sem saber com quem.
– Ocê é quem sabe.
– Tive pensando no Juvenal, filho do compadre Zé
Curador, que conheço desde sempre. É um moço
trabalhador, e gosta de festa, não. Vou palavrear com ele.
Ao redor do fogo aceso no terreiro, em frente à
casa, Manoel de Firmina e a mulher faziam hora,
aguardando a chegada do sono. Maria dormia o sono
inocente das virgens.
Na lagoa próxima, os sapos coaxavam, quebrando
o silêncio da noite.
– Ocê teve notícia do Beto? Já faz mais de mês
que não sei notícia dele.
– Tive, não.
Ele puxou forte o cigarro de palha e continuou:
– Se não for com o filho do compadre Zé Curador,
há de ser com Lázaro, vaqueiro do coronel Brandão. É!...
Lázaro é um bom partido. Tá fácil arrumar casamento pra
moça nos dias de hoje, não. Os homem que presta já foi
tudo pra São Paulo. Só resta os que não quer trabalhar.
Ele ficou alguns segundos calado.
– O casamento vai ser na festa da Serra, este
ano... Vou falar com Juvenal.
Juvenal, um jovem mulato de pouco mais de vinte
anos, vinte e cinco talvez, não tinha emprego fixo, mas
era trabalhador. Morava com o pai em uma propriedade
próxima. Prestava serviços aos fazendeiros vizinhos como
lavrador, de onde tirava o seu sustento, e auxiliava o pai
nas lavouras de subsistência da família. Era bom de
machado e de enxada. Nas derrubadas de roças, era logo
procurado.
Ao escolher Juvenal, Manoel de Firmina seguiu à
risca a memória secular: Casar sua filha com o filho de
seu vizinho.
32
Noite inteira de chuva. Eram mais de oito horas
quando Elza levantou-se. A chuva havia passado.
Atravessou a sala de jantar, passou pela cozinha e entrou
a caminhar pelo quintal, andando e parando, sem um
objetivo certo.
Havia passado mais de uma hora e ela não tinha
conseguido fixar-se em nada. Não havia arrumado nem
mesmo sua cama patente. A casa por varrer, a sala por
arrumar. Estendeu a mão e colheu uma bonina.
Vagarosamente, como quem busca uma definição para
seu destino, começou a arrancar as pétalas amarelas,
uma a uma, contando:
–
Bem-me-quer,
malmequer;
bem-me-quer,
malmequer; bem-me-quer, malmequer; bem-me-quer.
Não cabia em si de contente. Começou a
cantarolar à toa.
– Elza! – gritou Marília, com mau humor.
Com um gesto de impaciência, ela respondeu:
– Que é?
– Olha que horas são e você ainda não arrumou a
casa!
– Já vou.
– É bom que venha logo!
Para Elza, seria bom que o mundo parasse que
aquela linda manhã fosse eterna.
Ela lamentou:
– Nossa Senhora! Como fui esquecer?
Regressou correndo para o interior da casa,
apanhou a vassoura, varreu a sala, arrumou o quarto,
apanhou o sabonete e a toalha e precipitou-se para o
chuveiro. Tinha de estar pronta antes de ele chegar.
33
O sol já ia alto.
Antônio acordou com sede, a cabeça dolorida. O
ensaio de carnaval na Associação Esportiva havia
motivado a juventude e ele abusara do lança-perfume.
Levantou-se com dificuldade, a mão direita sustentando a
testa.
Sobre a mesinha de cabeceira, ainda aberto como
tinha ficado na manhã do dia anterior, Caminhos
Cruzados, de Érico Veríssimo, livro que ele estava lendo
no silêncio de seu quarto.
De pijama, encaminhou-se para o banheiro.
***
Um pouco mais tarde, na casa do Sr. Felício,
Marília, na sala de jantar, conversava preocupada, com
dona Benta, enquanto Elza e Antônio estavam a sós na
sala de costuras, em silêncio. Olhavam um para o outro,
sem assunto para conversar.
Marília disse a dona Benta:
– Eu quero só ver em quê tudo isso vai dar... Esse
namoro não vai dar em nada. Pura perda de tempo. No
seu lugar, eu não deixaria ela namorar. Logo ele viaja e
termina tudo.
Marília, com o despeito estampado no rosto, falava
com certa ironia na voz. Ela não conseguia esquecer, mal
grado seu, o amor frustrado de seus vinte anos. Ele fora
obrigado a se casar com outra – uma questão de honra –
e ela estava condenada a amargurar, pelo resto da vida,
aquele amor perdido. Elza só haveria de se casar depois
dela.
– Por mim, faço gosto. Ele é bom rapaz –
respondeu dona Benta. – Elza já tá no tempo de pensar
em casamento.
– Elza! – gritou Marília.
A voz dela era desagradavelmente áspera.
Por uma fração de segundo, Elza ficou indecisa
entre atender ou não ao chamado da irmã. Com voz
branda, ela disse:
– Com licença. Vou lá dentro e volto já.
Caminhou rapidamente pelo corredor.
Os olhos de Elza focalizaram-se bem dentro dos
olhos de Marília, firmes e interrogativos, desafiando a
carantonha da irmã. Ela disse:
– Pois não...
Marília perguntou:
– Por que vocês não conversam?
– Ora, por nada. Era só isso?
– O silêncio incomoda...
Elza olhou para a mãe à espera de alguma fala.
Dona Benta coçou a orelha, com o rosto
inexpressivo, mas não disse nada.
Assumindo ares de independência, com uma cara
de desgosto, Elza rodou nos calcanhares e voltou para a
sala de costuras, pisando firme pelo corredor.
34
Joana acordou tarde. No salão vazio, Mariana e
Paula jogavam uma partida de sete-e-meio. O baralho
sebento passava de uma para a outra.
Na rua, um cachorro latia.
Joana aproximou-se da janela, indisposta para o
menor diálogo. Olhou a rua deserta do seu mundo. Um
mundo morto durante o dia; vivo e estonteante durante a
noite.
– Tem café no fogão – disse Paula. – Não sobrou
nada do almoço.
Joana continuou a olhar a rua. O café poderia
esperar. Já que não tinha mais nada, não havia pressa.
Pobre é assim mesmo. Come hoje, amanhã não come.
Deus é grande e sabe o que faz.
35
Segunda-feira.
Logo cedo, às sete horas da manhã, Antônio
completava os últimos preparativos para seu regresso à
fazenda. Não tinha pressa, nem mesmo vontade de ir.
O dia estava claro. O céu limpo.
Na sala de jantar, dona Naná arrumava a mesa
para o café.
Josefa, uma empregada, entrou na sala e entregou
a Antônio um bilhete:
Favor devolver minha fotografia e minha carta.
Nádia.
Não tinha data.
– Quem lhe entregou este bilhete? – perguntou
Antônio.
– Um moço. Ele tá aí fora, esperando a resposta.
– Não tem resposta nenhuma.
Fisionomia serena, Antônio releu o bilhete. Veio-lhe
uma vontade louca de rir. Era só o que faltava... Devolver
carta e fotografia. Que carta? Um bilhete alinhavado,
justificando a remessa da fotografia. Só isso. Devolver
coisa nenhuma. Não havia nada para ser devolvido.
O coronel Brandão estava no quarto lendo um livro.
36
Com o dia à altura das onze horas, sem saber
como e por que, chegou ele à casa de Manoel de Firmina,
na Água Nova. Um cachorro preto veio ao seu encontro,
latindo ameaçadoramente.
Na porteira do quintal, em frente à casa, ele gritou:
– Ôooo de casa!
Manoel de Firmina, parado na soleira da porta,
procurava identificar o visitante. Reconhecendo Antônio,
ralhou com o cachorro e encaminhou-se para a porteira.
– Bom dia! Como vai, Seu Manoel?
Com um convidativo sorriso, Manoel respondeu:
– Em paz, Seu Antônio. O senhor desmonta.
No fundo do quintal, Maria batia compassadamente
a mão-de-pilão, socando o arroz para o almoço. Com o
latido do cachorro, parou o serviço e espiou pelo oitão da
casa. Identificando o visitante, ela entrou correndo pela
porta da cozinha e assentou-se em um tamborete na sala.
O sol da manhã clareava profusamente o dia.
Manoel de Firmina afastou os paus da porteira,
para dar passagem ao visitante.
Desmontando, Antônio amarrou o cavalo em um
mourão da cerca e, sem-cerimônia, passou pela porteira.
Entrou na casa com o chapéu na mão. Cumprimentou
Firmina e olhou firme para Maria, que ficou perturbada,
mas devolveu-lhe o olhar, de forma insinuante.
– Menina, arreda pé daí pra Seu Antônio sentar –
ordenou Firmina. – O senhor repara, não. A casa tá como
se tivesse no tempo. Neco todo dia fala de arrumar, mas
fica só na querença.
Maria levantou-se, desajeitada, os olhos cintilantes
fitos em Antônio, captando simpatia.
Firmina, que se alegrara com a visita, interpelou-o:
– O senhor já almoçou, hoje?
– Não. Cheguei agora mesmo da cidade.
Dirigindo-se a Maria, Firmina ordenou:
– Pega um frango pra fazer almoço pra Seu
Antônio, enquanto eu vou botar água no fogo. Pega
qualquer um.
Maria olhou para Antônio e sorriu, um sorriso quase
angélico, mostrando os dentes brancos e perfeitos.
Firmina pensou um pouco.
– Não. Aquele cantador, não. Pega outro qualquer.
Antônio, ladino que só ele, seguia todos os gestos
da menina-moça, em êxtase contemplativo. Vislumbrando
a possibilidade de ficar a sós com ela, ele disse:
– Se não se incomodarem, eu gostaria de ajudar a
pegar o frango. Não tou fazendo nada.
– Ora, carece o senhor incomodar, não – disse
Manoel de Firmina.
– Nada disso! Eu ajudo a pegar o frango e você
apanha uma garrafa de cachaça, que tenho no alforje, no
cabeçote da sela. Eu sou de casa. Quero que fiquem à
vontade comigo.
Manoel
e
Firmina
entreolharam-se,
sem
compreender, mas nada disseram. Ele sacudiu a cabeça,
afirmativamente.
Antônio retirou as esporas e olhou à roda da sala
buscando onde colocá-las. Jogou-as sobre o banco.
***
Maria e Antônio corriam livremente pelo quintal.
Ela, atrás do frango; ele, atrás dela, acompanhando os
movimentos ondulantes de seu corpo, num verdadeiro
balé natural, mergulhando por entre os ramos e galhos de
laranjeiras pesados de frutos e mangueiras, levantandose e abaixando-se, procurando seguir a corrida
desesperada e irregular do frango condenado.
O frango, cansado, mergulhou em uma moita, mais
densa, que foi cercada. Maria de um lado, Antônio do
outro.
– Cuidado... Vamos devagar. Deixa qu’eu pego –
ordenou ele.
Ela era natureza no verdor dos anos. Abaixou-se, com a
saia desbotada ajuntada entre as coxas, que ficaram à
mostra. Olhou para ele com feição alegre.
O frango, apavorado, permanecia agachado no
fundo da moita.
Ao mesmo tempo, ele e ela levaram a mão
vagarosamente para apanhá-lo, tateando dentro da moita.
O frango arrancou-se, numa última tentativa de
salvação, mas as mãos deles se encontraram e Antônio
segurou firme, fingindo pegar o frango, feliz por aquele
contato. A mão dela era quente e macia. Ela sorriu, com
um ligeiro estremecimento. Ele sorriu lampeiro. Suas
mãos se desenlaçaram e eles saíram correndo,
reiniciando a perseguição.
Os cabelos dela, pretos e longos, voavam soltos. A
boca pequena, com lábios finos, conservava-se aberta
pelo esforço da corrida, auxiliando a ofegante respiração.
Os seios médios, rijos e salientes soltos por baixo da
blusa. Os pés descalços não sentiam as pedras e os
espinhos, por onde ela passava. A cintura era fina e
delicada. As pernas bem feitas davam-lhe a agilidade de
uma gazela.
Uma leve brisa farfalhava nas copas das fruteiras
do quintal.
O frango, bastante exausto, bico aberto, asas
caídas, afastava-se mais e mais para o fundo do quintal.
Passou por baixo da cerca e escondeu-se na capoeira.
Dentro de Antônio crescia um desejo incontrolável,
que em vão ele tentava afugentar. Seu coração batia mais
forte que o exigido pelo esforço da corrida. Com uma ideia
fixa, sentia por antecipação a maciez daquele corpo rijo,
que ele pressentia suave, quente e doce. O desejo
crescia. Um desejo recalcado.
Eles saltaram a cerca quase ao mesmo tempo.
Daquele ponto não se avistava a casa, escondida
entre as fruteiras do quintal. Ele, esquecido do frango,
segurou carinhosamente os braços dela, que caíam
livremente ao longo do corpo. Ela, imobilizada pela
exaustão, ficou estática, a respiração ofegante.
Conduzido pelo influxo do desejo, que lhe eliminou os
escrúpulos, cautelosamente, segurou suas mãos. Com a
aproximação, ele sentiu os eflúvios do suor que porejava
do rosto, das axilas, do corpo de Maria. Ela estava
trêmula, a mente confusa. Ele deslizou as mãos pelos
braços dela, até os ombros. Ela, sem forcejar, sentiu um
frio correr-lhe pela espinha. Sem saber o que fazer,
deixou-se ingenuamente ser levada por entre os arbustos
da capoeira, que estavam verdes com o luxuriante viço do
verão.
No céu claro não havia nenhuma nuvem.
Seguiam em silêncio. Numa antecipação de gozo,
Antônio, com ousadia, abraçou–a por trás e beijou-lhe a
nuca, suspendendo carinhosamente os cabelos que lhe
caíam sobre os ombros. Ela, sentindo o pulsar forte de
seu coração, os olhos tensos, a boca entreaberta, as
sobrancelhas levemente elevadas, estava indecisa. Ele
passou delicadamente as mãos sobre os seios e puxou o
corpo dela contra o seu. Desceu-as depois pelo corpo,
apalpando o ventre e sentindo a rigidez de suas carnes.
Ela aparentemente inerme, a respiração ligeiramente
ofegante, estava sentindo uma sensação estranha de
medo e prazer; quase inconsciente gemeu baixinho. Ele
baixou uma das mãos e suspendeu-lhe a saia. Ela,
instintivamente com a mão, puxou a saia para baixo, mas
logo soltou. Ele virou-a de frente e seus lábios se
encontraram. Os dela, tensos, não se moveram. Na
expectativa, os apelos dos hormônios entregavam o
corpo, mas ela própria, não. Por isso os seus lábios
cerrados.
– Mariaaa!
– Mamãe tá me chamando... Por favor, me deixa ir
– disse ela com voz trêmula.
Antônio, sôfrego de desejo, deitou-a bruscamente
sobre o tapete de relvas do chão da capoeira.
Com suas penas ele abriu as dela. Ela fechou os
olhos. Um beijo rude, quente, intenso reteve o ai dorido da
virgem.
Antônio levantou-se. Sentiu inesperadamente uma
sensação de culpa, o semblante estúpido. Um mal-estar
impedia-o de falar e ele não sabia o que dizer.
Finalmente, determinou:
– Vamos rápido pegar outro frango.
Ela puxou a saia, cobrindo as pernas, e levantou-se
acanhada, recompondo as roupas. O rubor que ainda
coloria a sua face sinalizava o acendimento em si de uma
sensualidade que ela própria desconhecia. Ainda
atordoada e sem conseguir, buscava entender o
acontecido; sua pele queimava e o corpo, tomado pela
languidez, retardava os movimentos. Ela apenas
caminhava atrás de Antônio. Saltaram a cerca, retornando
ao quintal. Tudo fora muito inesperado, mas houvera certo
encanto. Enquanto tentava apressar o passo, um feixe de
emoções e pensamentos contraditórios invadia o seu ser.
Da adrenalina resultante da corrida lúdica em busca do
frango, passara ao despertar de um desejo latejante pelo
contato com o corpo de Antônio. Ao levantar-se, teve ela
a convicção de que algo mudara para sempre. A menina
fogosa, livre e brincalhona ficara deitada na relva da
capoeira. Vivia agora Maria, a mulher que, para se sentir
compensada, começou imediatamente a construir em sua
mente um sonho impossível de amor.
A mãe continuava a chamar e ela precisava ir.
Como esconder o ocorrido e disfarçar aquela emoção,
que por certo estava estampada no rosto?
37
Passaram-se dias. Semanas. As férias escolares
terminaram. A cidade ficou deserta.
Elza estava sentada na sala de costuras, a cismar
sozinha, o pensamento a vagar em busca de um cenário
onde pudesse fixar-se em Antônio. O amor havia se
enraizado em seu espírito.
– Será qu’ele vai me escrever? – pensou – Já faz
mais de quinze dias qu’ele viajou e ainda não deu notícia.
– Carteiro!
De um salto, ela se põe de pé. Suas preocupações
dissiparam-se. Recebeu o envelope branco e,
certificando-se de que era mesmo para ela, saiu correndo
para o quarto e trancou a porta. Estava excitada.
Com as mãos trêmulas rasgou alvoroçadamente o
envelope e leu:
Querida Elza.
Sinto sua falta em forma de uma grande saudade,
em forma de uma lembrança suave, acompanhada do
desejo de lhe ver. Nunca havia sentido saudades antes;
não assim. Sentia falta das coisas, dos parentes, dos
amigos, da fazenda. Agora compreendo por que se diz
que a palavra saudade não encontra similar em nenhum
outro idioma. É um sentimento profundo, que só as
pessoas que amam verdadeiramente podem sentir.
Guardo na lembrança a sua imagem, na beira do
rio, acenando com a mão, enquanto o vapor se afastava
lentamente. Quase não suportei quando o vapor deu o
último apito. Parecia que estavam brincando com meus
sentimentos. Nunca tinha ouvido um apito tão demorado,
tão tristonho. Só entrei para o meu camarote depois que a
cidade desapareceu, coberta pela curva do rio, no pontal
de cima.
Durante a viagem até Pirapora, fiquei por muito
tempo observando as águas do rio. Durante muitas horas
olhava a roda batendo na água. Confesso que tive inveja
do rio. Ele descia, e eu subia, cada vez para mais longe.
A solidão tem tornado o colégio enfadonho. Não
consigo concentrar-me nos estudos, mas sei que isto é
importante. Vejo a vida, hoje, por um outro prisma. Tenho
em quem pensar. E como penso!
Mesmo para aqueles que só veem o lado material
da vida, acho que ela é bela. Não compreendo como
podem existir pessoas com tantos problemas. A mim não
me falta nada, agora que tenho você. As lembranças que
tenho dos passeios à beira do rio, da praça, das horas
que passamos sentados nas escadas do coreto, são uma
propriedade minha. É um bem que não posso alienar e
que está ao meu alcance em todas as horas do dia.
Felizes os que possuem reminiscências agradáveis.
Hoje verifico que o mais importante na vida não é a
satisfação de nossas necessidades físicas. Elas são
importantes porque nos garantem a existência, mas a vida
só tem valor quando ao nosso redor existe afeto, amor e
carinho.
Não é sem razão que já se afirmou que um ser
humano só se completa quando planta uma árvore, tem
um filho e escreve um livro. A árvore representa,
simbolicamente, a satisfação de nossas necessidades de
alimentação, de vida material. O filho é o resultado e o
complemento do amor, do afeto, do carinho. O livro
completa o triângulo de nossa existência por nos conduzir
à reflexão, atendendo às necessidades transcendentais. A
árvore satisfaz as nossas necessidades biológicas; o
afeto, as necessidades psicológicas e o livro nos conduz à
reflexão, nos elevando no plano cultural. Só será
realmente feliz o homem que conseguir viver atendendo
às três necessidades básicas de sua condição de ser
racional.
A mim, seria impossível, hoje, viver sem o seu
afeto, sem o seu carinho, sem o seu amor.
Anexo, envio-lhe um cartão-postal de nossa capital.
É a Praça da Liberdade, com suas imponentes palmeiraimperiais. Belo Horizonte é uma cidade maravilhosamente
bela, mas perde muito para a beleza natural de nossa
cidade. Aqui não tem rio, ou melhor, tem o Arruda, que
não pode se comparar ao São Francisco. Não tem um
pôr-do-sol tão lindo como o nosso; não tem praias e,
principalmente, não tem você.
Espero receber logo uma resposta sua.
Recomende-me a seus pais.
Abraços e beijos do seu
Antônio
Elza releu a epístola muitas, muitas vezes.
Apertou-a contra os seios. Dançou livremente pelo quarto.
Duas lágrimas, lágrimas de alegria, rolaram livremente e
vieram acomodar-se no canto dos lábios.
38
Isabel, no rancho da praia, levantou-se muito cedo,
antes de os raios do sol alcançarem a terra, para coar
café.
Retirou as cinzas que cobriam as brasas
aparentemente extintas do fogo e, com alguns sopros,
este se reativou. Adoçou a água da chocolateira com
alguns pedaços de rapadura e levou-a ao fogo.
Apanhou, em seguida, a tarrafa manjubeira, um
carretel de cordonete e, sentando-se comodamente fora
do rancho, pôs-se a consertar as malhas estragadas,
tecendo outras. Mas não tinha pressa...
A manhã estava clara.
Dentro do rancho recendia o cheiro de peixe.
Alberto esticou o corpo, estendeu os braços e abriu
a boca, com gesto simples e descontraído. O corpo
magro, o rosto ainda sem cor, a barba por fazer.
– A água tá fervendo – disse ele, em voz alta.
Sem coragem, ele começou a conferir a tarrafa.
Aos vinte e sete anos, Alberto já era um homem
vencido, acomodado. Não tinha orgulho de sua profissão,
mas dela não se afastava. Em sua mente não se moviam
mais os fantasmas da ambição, do desejo de mudança.
Isabel preparou o café, apanhou a grande rede de
caroá, de sessenta braças e começou a estendê-la nos
varais para os reparos que fossem necessários.
Alberto tomou uma xícara de café, apanhou o
remo, a tarrafa e três caçadores, enfiou o chapéu-depalha sobre os cabelos despenteados e caminhou para o
rio.
Afastou-se da margem, remando firme.
Em pé, no piloto da canoa, na solidão do rio, lançou
a tarrafa, que caiu aberta sobre a água. Repetiu dez
vezes a operação, sem sucesso. A tarrafa abria-se sobre
o rio; descia puxada pela chumbada e era recolhida vazia.
Depositou a tarrafa no fundo da canoa. Armou os
três caçadores. Apanhou o remo e começou a remar rio
acima, de volta ao rancho.
Aquele dia não começava bem.
A luz solar batia forte em seu rosto e originava
reflexos irisados nas pequenas ondulações da água. O
suor brotava-lhe de todos os poros, molhando a camisa
de algodão. Suas mãos calejadas suspendiam o remo,
que ia ficando cada vez mais pesado.
A canoa deslizava vagarosa, quebrando o espelho
das águas e formando pequenas maretas, que desciam
marulhando, ao longo do casco. O ar parado e quente
forçava a respiração, diminuindo o ritmo das remadas.
Esmaecido pelo ingente esforço, sentou-se no
piloto, quando a canoa abicou no barranco em frente à
sua casa.
Na humilde cabana, encontrou Isabel remendando
a rede, preocupada.
Com voz suave, ela disse:
– Esse menino tá bom, não. Desd’antonte qu’ele tá
com o corpo mole... Deve de tá com mau-olhado.
– Deve de ser.
– Ocê não pescou nada?
Com voz neutra, indiferente, ele informou:
– Vou lançar a rede depois do almoço.
– Dá mais tempo, não. Tá tarde.
Alberto mediu, com os olhos, a altura do sol.
– Tá, não. Inda vai dar... Mode que ocê não leva
ele pra sinhá Minervina benzer?
– É!... Acho que vou levar.
A malária havia sido vencida. Alberto sentia-se já
um novo homem. A cor do rosto, aos poucos, ia voltando.
***
No meio do rio, Alberto poitou a canoa com o
auxílio de uma pedra amarrada a uma corda de buritizeiro
de oito braças, presa à proa. Começou a lançar a rede,
em cuja ponta estava presa uma grande cabaça, que
funcionava como boia. A chumbada, feita de barro
queimado, entranhada na parte inferior, fazia a rede
descer verticalmente e as cortiças, de pedaços circulares
de tamboril, funcionando como pequenas boias,
sustentavam a parte superior da rede na superfície da
água.
Alberto ia soltando a rede, enquanto a cabaça,
levada pela correnteza, descia lentamente. Segurando o
calão da rede, suspendeu a corda e liberou a canoa de
toa. Sem soltar o calão, sentou-se no piloto, enquanto a
embarcação descia com o remo em leme, movida pela
força das águas. Garças sobrevoavam o rio. Com o remo
servindo de leme, foi desviando a canoa para a margem.
A cabaça navegava pelo canal.
Continuou a descer o rio sem esforço, absorto. A
rede, formando uma parede entre a canoa e a cabaça,
faria o trabalho.
Olhos fixos no horizonte longínquo, sua imaginação
vagava tranquila e despreocupada, sem se deter em
nenhuma ideia definida. Olhava o horizonte, mas nada
via. Em sua torre de marfim, manhosava em apática
melancolia. Seu rosto tranquilo, não revelava a menor
preocupação interior. A vida lhe parecia um fardo.
Ele, a canoa e a rede estavam incorporados ao rio,
como parte dele. Desciam vagarosamente. Ele,
indiferente e até mesmo esquecido do trabalho que
realizava.
***
Isabel, com a criança nos braços, iniciou a
caminhada pelo alto do barranco rumo à casa de sinhá
Minervina, meia légua rio acima.
Do alto do barranco, ela olhou para o rio, cujas
águas reluziam à luz solar. Não avistou nenhuma canoa,
nenhum barco, nada. Solidão. Ela acariciou suavemente a
cabeça do filho.
Isabel chegou à casa de sinhá Minervina.
Construção simples de pau-a-pique, sem reboco, coberta
de palhas de buritizeiro. Um cachorro magro latiu à sua
aproximação, mas logo se acomodou e deitou em um
canto exterior da casa.
Isabel entrou.
Na diminuta e mal iluminada sala, uma mesa, dois
tamboretes e um banco. Piso de terra batida. No ar, um
cheiro nauseante de rabugem e peixe. Minervina, uma
mulher idosa, magra, mal vestida, o rosto macilento e
inexpressivo, olhos sem brilho, enrolada em um xale
velho, estava assentada em um tamborete.
Isabel, ainda em pé, disse com voz trêmula:
– Acho qu’esse menino tá com mau-olhado.
Minervina olhou o menino, que estava prostrado
nos braços da mãe, e disse:
– É!... Espere aqui.
Levantou-se e foi até o quintal.
Um gato atravessou a sala, saindo pela porta de
entrada. Um gato preto.
Seu Malaquias, esposo de sinhá Minervina, entrou
na sala e puxou conversa. Uma fala mansa e cansada.
Sinhá Minervina voltou com três raminhos de
arruda. Fez o sinal da cruz sobre a cabeça do doente e
começou a rezar, silenciosamente:
Criança, sua mãe lhe teve,
Sua mãe lhe há de criar.
Quem quebranto lhe pôs,
Eu tiro, com um, com dois,
Com três hei de tirar.
De quebranto e mau-olhado,
Esse menino fica sarado.
Se for nos olho do menino,
Santa Luzia é que vai tirar;
Se for na cabeça do menino,
É São Pedro que vai tirar;
Se for nos ouvido do menino,
É Santa Polônia que vai tirar;
Se for no pescoço ou na garganta,
É São Braz que vai tirar;
Se for na cacunda do menino,
É Nossa Senhora do Rosário que vai tirar;
Se for no corpo do menino.
É Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que vai
tirar.
Minervina rezava em silêncio. Enquanto rezava,
passava os ramos de arruda sobre o corpo do menino e,
de quando em quando, engenhosa e esperta, sacudia os
ramos para trás, com força, como se estivesse retirando o
mal do corpo do doente.
Se for na barriga do menino,
É o Divino Espírito Santo que vai tirar;
Se for no braço ou na mão do menino,
É São Sebastião que vai tirar;
Se for na bunda, no pé, na perna do menino,
É São Pedro e São Paulo, os Anjos do céu e
Meu padrinho padre Cícero e
Minha Nossa Senhora mãe dos homem,
E os ares quente e os ares frio,
Ares de vento, ares de arrenego.
Em nome do Padre, da Virgem, de Todos os Santo
Que se quebre todos quebranto.
Amém!
Rezou três vezes seguidas e completou com três
padre-nossos e três ave-marias.
– Manhã ocê volta outra vez. Tá muito carregado –
disse, mostrando os ramos murchos.
***
Alberto levantou-se no piloto da canoa. Apanhou o
remo e começou a remar rio abaixo, fechando a rede.
Alcançando a cabaça iniciou o recolhimento da
rede.
A pesca não rendeu muito: cinco matrinxãs, duas
corvinas, quatro acaris e dois piaus. Os acaris foram
jogados no alto do barranco, para não infestar o rio.
Remou com segurança rio acima.
Já próximo ao rancho, ele enxugou com a camisa o
suor que escorria pelo rosto e fixou o olhar nos últimos
reflexos da luz solar. Entrou em casa com a vermelhidão
do entardecer, um pouco antes da sombra da noite.
Entregou os peixes a Isabel. Jogou o chapéu sobre o
catre de varas, que lhe servia de cama, e penteou os
cabelos com as mãos.
Isabel informou, abruptamente:
– O menino tá com quebranto. Tá muito carregado.
Amanhã eu volto lá na casa de sinhá Minervina.
Parou um instante e disse:
– Segundo me disse Seu Malaquias, marido de
sinhá Minervina, seu pai matou uma onça na fazenda do
coronel Brandão. Era uma onça muito grande.
Alberto levantou os olhos e os fixou em Isabel,
entusiasmando-se com a notícia, apesar do cansaço do
corpo. Seu rosto abriu-se numa demonstração de agrado.
Seu pai, como todos os pais, era seu herói. Seus olhos
brilharam, fitos na mulher.
– Como foi mesmo que sucedeu?
– Disque foi a onça que pegou um cabrito no
chiqueiro de Seu Crispim, no Angico.
Isabel retirou a panela da trempe para servir o
jantar: peixe e arroz.
– Acho que a comida tá boa, não. Ocê quer
farinha?
A noite quedou-se sobre a terra.
No rio, um vapor passava, descendo para Juazeiro.
A luz da lamparina balançava fraca e amarela,
saturando o rancho com sua fumaça negra, que se
prendia nas narinas e queimava os olhos.
Isabel contou-lhe que a onça havia matado todos
os cachorros; que tinha sido acuada dentro de uma moita
de espinhos; que Seu Manoel havia acabado de matá-la a
facão, pois o tiro de Seu Zé Curador só havia quebrado a
perna dela.
– Quantas onça seu pai já matou? – perguntou
Isabel, vivamente interessada.
Alberto fixou os olhos na mulher e respondeu:
– Certo, sei não. Ele já ajudou a caçar muita onça.
Nos outros tempo tinha muita onça. Agora já quase não
tem mais. Aparece uma ou outra passageira.
39
Manoel de Firmina, da porteira do terreiro em
frente à sua casa, chamou em altos brados:
– Firminaaa!
Sem esperar ser atendido pela mulher, entrou
apressado em casa. Mal chegou, apresentou a novidade:
– Juvenal aceitou o casamento. Tá decidido de
pedra e cal.
Firmina exultou-se. Com a alegria estampada no
rosto, disse emocionada:
– Benza Deus! Entonce a gente só tem que marcar
o dia sem delonga.
A tarde declinava.
Manoel de Firmina estava feliz. Sentou-se no
rústico banco e esticou as pernas. Naquele momento,
como por encanto, todos os seus problemas estavam
resolvidos. Ele se reencontrara.
Encarou a esposa e informou:
– Já tá marcado pro mês de junho, na festa da
Serra.
Voltando as vistas para o interior da casa ela gritou:
– Mariaaaa!
– Que é, mamãe? – acudiu ela.
Não demorou e Maria assomou à porta.
– Ocê vem cá – determinou Firmina.
Manoel de Firmina picava fumo para o cigarro.
Maria deu dois passos dentro da sala aproximandose da mãe, os olhos fitos no chão. Sentiu que algo de
anormal tinha acontecido ou estava para acontecer.
Manoel de Firmina passou a palha na língua e
cruzou as pernas.
Firmina disse:
– Juvenal aceitou o casamento. Tá marcado pra
festa da Serra das Araras, no mês de junho.
Maria abriu os olhos e recuou instintivamente, os
músculos faciais contraídos, a testa levemente franzida.
Sobressaltada e momentaneamente rígida, olhou para o
pai. Uma palidez mortal cobriu seu rosto. Embaraçada e
abanando negativamente a cabeça ela disse meio
inconsciente, com voz trêmula, quase gaguejando, gelada
de espanto e mergulhada em seus pensamentos:
– Eu quero casar, não!
Firmina ficou fulminada. Sem compreender a
vacilação da filha, fechou o rosto e com os lábios
entreabertos levantou os braços com as mãos súplices, o
rosto sepulcral, exclamando:
– Santo Deus! Que foi que ocê disse?
Manoel de Firmina, coçando o queixo, olhou de
esguelha para a filha, sem nada dizer.
Com a cabeça baixa, ela levantou os ombros e
confirmou consternada:
– Ora! Isso mesmo que a senhora escutou. Eu não
quero casar.
A mãe, com expressão pensativa, sobrancelhas
elevadas, a boca ligeiramente aberta, perguntou sem
compreender:
– Mode quê?
Ela engoliu em seco. Sem afetação respondeu:
– Uai!... Pro mode de nada.
Firmina lançou ao marido um olhar contristado,
interrogativo, mas logo, voltando-se para a filha,
sentenciou asperamente:
– Onde já se viu? Ocê não tem escolha. O
casamento tá marcado.
Manoel de Firmina parecia nada estar ouvindo.
Deixou-se ficar assentado, quase indiferente.
Maria suspirou, sentindo um calafrio. Ninguém
havia consultado seu desejo pessoal.
– É!... – concordou ela lamentando-se.
Seus olhos marejaram e ela desandou para o fundo
do quintal correndo, presa a uma angústia fúnebre. Ali
ninguém a iria incomodar. A notícia havia sangrado seu
coração. Começou a andar desvairada de um lado para
outro sem uma ideia definida, sem desejo manifesto. Seu
pensamento fixou-se em Antônio, no seu encontro nos
fundos do quintal, no ato de posse. Desejou que ele
aparecesse ali, naquela hora, e contasse tudo. Ela sentiase como uma propriedade dele.
Manoel de Firmina, como se nada tivesse ouvido,
indagou:
– Então? Que foi qu’ela disse?
Com voz entrecortada, ela respondeu:
– Que não quer casar.
– Como assim?
– Isso mesmo.
Um breve silêncio.
– Mode quê?
– Ora pois! Ocê procura pr’ela – falou, indicando
com a cabeça o rumo da porta por onde Maria tinha
saído. No tom de sua voz, denotava-se uma tristeza
indefinida.
Manoel de Firmina fechou o rosto e passou a mão
pela cabeça.
– Por que ocê não procura?
Firmina suspirou. Com a testa franzida, os olhos
tristes e voz dolorida, ela respondeu:
– Eu não tou mais entendendo essa menina. Ela tá
muito diferente.
Manoel levantou-se à procura da filha. Indeciso,
antes de alcançar a cozinha, conteve-se. Retornou à sala.
Sentou-se novamente no mesmo banco.
Desvanecidas as preocupações com a leviana
atitude da filha, em presença da autoridade paterna,
ocupou-se em providenciar os meios para o casamento.
Pensou em convidar Seu Antônio para padrinho,
mas sabia que ele estaria ausente na ocasião do
casamento. O padrinho tinha que ser mesmo o coronel
Brandão.
– Vou convidar o coronel Brandão pra ser padrinho
do casamento. Ele pode inté dá um adjutório.
Firmina, andando de um lado para outro da sala,
concordou com gesticular afirmação de cabeça. Dando
tratos à bola, ela procurava entender as razões da recusa
da filha. Parando em frente ao marido, com brandura, ela
disse:
– Carece ocê pensar nisso agora, não. Falta ainda
muito tempo.
– O tempo passa que ocê nem sente.
João entrou na sala e assentou-se em um
tamborete.
Silêncio.
***
Durante a noite, no telhado da casa, a chuva batia
forte, respingando por entre as telhas.
Maria não havia dormido um só instante. No quarto,
frouxamente iluminado por uma lamparina de azeite de
mamona, ela cismava, entregue às suas divagações:
– Como é que vai ser? Ele não vai contar, nem eu.
Mas que diferença vai fazer? Dá na mesma, contar ou
não contar. Casar é qu’eu não posso. Pai podia desistir
dessa ideia.
Lembrou-se de Antônio, com uma leve sombra de
ambição:
– Ele bem que podia casar com eu. Aí eu ia ser
dona da fazenda e não carecia ninguém saber... Ora, que
besteira a minha! Ele nem olhou mais pra mim...
Ela lembrou-se, excitada, do corpo dele sobre o
seu na capoeira, do farfalhar das folhas secas, do ato de
posse. Desejou encontrá-lo de novo, deitar-se na mesma
capoeira, esperando por ele. Lembrou-se do casamento
marcado.
– Mas Juvenal não vai aceitar e aí... Não. Eu posso
casar, não... A gente bem que podia ter dois pai... Meu
Deus, como é que haverá de ser? Santo Antônio podia
morrer e aí não tinha festa... Virgem Maria! Que besteira a
minha, Santo morre, não. Só si for o padre... Bicho-ruim
podia morder o pé de Juvenal... Não. Juvenal tem culpa
de nada. A culpa é dele, não; é minha mesmo, sorte a
minha.
Os respingos da chuva molhavam levemente seus
cabelos despenteados e seu rosto, agregando-se às
lágrimas que, incontroláveis, desciam de seus olhos.
Dentro dela emergia, com assombrosa clareza, a dura
realidade. Todos os encantos da vida haviam
desaparecido. Nada mais poderia ser feito. Pensou em
Antônio e suspirou. Correu-lhe um formigamento e sentiu
uma onda de calor pelo corpo. O desejo foi crescendo,
crescendo... Ela respirou profundamente. Que bom se ele
a procurasse outra vez... Nada mais tinha a perder. O que
estava feito, não estava por fazer. Que bom se ele a
deitasse novamente daquele jeito brusco, sem uma só
palavra... Não era preciso falar. As palavras, às vezes,
estragam tudo. Em suas floridas conjecturas, ela sentiu
nas costas a aspereza da relva e contorceu-se na cama.
As brasas, ainda vivas, se incandesciam pelo sopro da
memória. Sem esperança para seu infortúnio, ela queria
que aquelas lembranças mudas durassem para sempre.
Duas lágrimas de desespero empanaram o brilho de seus
olhos.
Com seus élitros cor de ébano, um besouro colidiuse com a chama amarela da lamparina, ofuscando,
momentaneamente, a diminuta luminosidade do quarto.
Extenuada, ela dormitou um pouco antes da
aurora. Ao amanhecer, havia esquecido o casamento
como se os acontecimentos do dia anterior tivessem sido
um sonho.
40
A seca havia chegado mais cedo. Em abril, as
últimas chuvas haviam caído e não mais voltaram. Mesmo
essas foram poucas e não deram para render água.
Em fins de maio, a Lagoa dos Mocós já estava bem
rasa. Em poucos lugares não dava pé. A pescaria seria
boa. Com a cheia de fevereiro, o rio havia jogado água na
lagoa e, com ela, grande quantidade de peixes.
Assentada na porta do rancho, Isabel cismava,
esperando pela claridade do dia, que não haveria de
tardar. Pelos lados do nascente já se observava a
mancha avermelhada da aurora, que se levantava na
sombra da noite.
Tudo estava pronto e eles deveriam partir naquela
manhã.
Alberto deixou sua cabana na margem do rio e,
com a mulher e filho, foi acampar na beira da lagoa,
aproveitando a sombra acolhedora de um juazeiro.
Do interior do município, muitas famílias de
lavradores estavam já abandonando suas roças para
virem acampar às margens da lagoa, formando uma
comunidade bastante numerosa de improvisados
pescadores. Ali permaneceriam enquanto houvesse
peixe. A pescaria teria, no mínimo, três meses de
duração.
Alguns poucos deixariam o local, em princípios de
junho, para a tradicional romaria à Serra das Araras, mas
voltariam depois. Outros ficariam por uma ou duas
semanas e regressariam para suas casas, dando lugar
aos mais retardatários.
A pesca comunitária ocuparia todos os válidos,
maiores de doze anos. As mulheres tratariam do pescado,
retirando as vísceras, retalhando, salgando e estendendo
em varais improvisados.
Nessa pesca, o anzol não teria serventia; não seria
usado.
Alberto chegou numa tarde dos últimos dias de
maio. Fazia um tempo frio, de vento úmido. Havia poucos
pescadores. Era um dos primeiros a chegar, mas em
menos de uma semana a notícia se espalharia e muitos,
muitos outros chegariam.
Escolheu com calma o seu local de acampamento.
Com olhos perscrutadores analisou a lagoa à sua frente.
Calculou bem com a experiência dos anos anteriores.
Ainda estava funda, mas já dava para pescar.
Sobre a lagoa voavam bandos de garças brancas e
pardas, colhereiros cor-de-rosa, marrecos e patos
selvagens. Alguns jaburus mariscavam, pousados com
suas longas pernas dentro da lagoa. Dois patos-asabranca passaram voando e foram pousar na outra
margem, na copa de um juazeiro. À beira da lagoa, alguns
porcos fuçavam as raízes dos gólfãos, uma espécie de
aguapé, em busca de alimento. A superfície da lagoa,
totalmente coberta pelas folhas dos gólfãos, apresentava
uma coloração esverdeada.
– É! Esse ano vai dar muito peixe – disse, dirigindose a Isabel, que apanhava o machado para cortar lenha.
As árvores mais distantes da lagoa estavam já
despojadas da folhagem de verão.
Concluída a preparação da improvisada morada,
Alberto saiu para dar uma pequena volta de
reconhecimento,
buscando
reencontrar
velhos
conhecidos.
Com
espingarda
polveira
na
mão,
um
desconhecido informou:
– Vou contornar a lagoa e derrubar um pato. É
mais melhor que jaburu.
Um bando de verdes periquitos passou voando,
com suas caudas cuneiformes, em demanda à outra
margem. Gaivotas pairavam no ar, para logo depois se
deslocarem, velozes e graciosas. Bucólicos cantores
plumosos, pousados na ramagem de uma árvore próxima,
completavam a população multicolorida daquele mundo
primitivo e, por isto mesmo, maravilhoso. Não pareciam
estar assustados com a presença intruja do homem.
41
Junho. Mês de romaria à Serra das Araras; um
misto de festa religiosa e bacanal. Serra das Araras: uma
vila, um povoado, uma romaria, uma imagem de Santo,
mas quanta gente nascida e vivida em São Francisco
nunca foi lá. Muitos haverão de nascer e viver sem nunca
pôr os pés na igrejinha de Santo Antônio, sem conhecer
uma parte substanciosa da essência virtuosa de uma
comunidade.
Naquele ano, Manoel de Firmina iria visitar Santo
Antônio como arrieiro da comitiva do coronel Brandão.
Aproveitaria a viagem para fazer o casamento de Maria, já
contratado com o filho de Seu José Curador.
A tropa, reservada com dois meses de
antecedência, recebia das mãos de Lázaro os últimos
cuidados: crinas e cascos aparados e ligeiros repasses.
Dia nove.
Maria levantou-se cedo, bem cedo. Muito mais
cedo que o de costume. Queria acompanhar pari passu
todas as nuanças do amanhecer. Queria ouvir os
primeiros trinados dos pássaros, ver o clarão da aurora, o
nascer daquele dia. Tudo teria que ser feito em detalhes.
Antes da claridade da madrugada ela acendeu o fogo e foi
à lagoa buscar água. De regresso, coou o café, deu milho
às galinhas e alimentou os porcos do chiqueiro.
Quando o sol estivesse na linha do horizonte, ela
estaria viajando, com seus pais e seu noivo, para a Serra
das Araras. A viagem começaria ao raiar do dia.
Na porta do quintal olhava, como se olhasse pela
última vez, aquele mundo que era seu. Seus olhos
divagavam pelo rústico pomar. Aquela laranjeira ela a
havia plantado com suas próprias mãos. Era a sua
laranjeira. Conhecia todas as galinhas do terreiro e as
tratava como pessoas. Agora iam ficar desamparadas.
Suspendeu a saia para enxugar duas lágrimas que
desciam de seus olhos e assoou o nariz.
***
Já em São Francisco, a tropa arreada esperava
passivamente a hora da travessia do rio.
Reginaldo disputava com Serafim as preferências
para a travessia, com seus ajoujos, montados sobre duas
canoas emparelhadas. Os udenistas davam preferência a
Serafim. Os pessedistas atravessavam com Reginaldo,
sempre que podiam. Não havia uma distinção fechada.
Era apenas uma questão de preferência.
O ajoujo de Serafim ficava entulhado com quatro
cavalos; o de Reginaldo era maior, atravessava seis de
cada vez. A travessia era feita a remo.
Nas festas de Nossa Senhora dos Navegantes, na
procissão fluvial, o ajoujo de Reginaldo assumia ares de
importância. Ia à frente, com a imagem da Santa,
comandando o curso da procissão.
Os cavalos treinados, já acostumados com a
travessia, saltaram tranquilamente para dentro do
pequeno barco. Os outros tiveram que ser empurrados.
Em duas barcadas, a tropa do coronel Brandão foi
atravessada. Com ele viajavam Manoel de Firmina,
Firmina, Maria, Juvenal, José Curador, Lázaro e Militão.
Maria estava preocupada com o início da viagem
que, realmente, começava após a travessia. Juvenal
aproximou-se dela e conferiu, cuidadosamente, sua
montaria. Apertou a cilha e conferiu o peitoral e o rabicho
dos arreios.
Eram dezenas, não, centenas de cavaleiros, vindos
de todos os lugares.
Das estradas secundárias, inúmeros romeiros,
filhos do sertão, buscavam a estrada principal,
aumentando o movimento, despertando alegria. Velhos
amigos se encontravam.
Todos os anos, o mesmo movimento nas estradas.
Menos intenso nos primeiros dias de junho; mais ativo a
partir do dia nove.
De São Francisco à Serra das Araras seriam três
dias de viagem. Léguas e léguas de estrada areenta, que
margeia várzeas e veredas de águas cristalinas. Paraíso
ainda não profanado pela mão do homem. As linhas de
buritizeiros, com suas palmas verdes, estendiam-se por
dilatados horizontes, a sumir de vista, delineando o
caminho a ser seguido. Uma jornada cheia de tropeços,
em uma região despovoada.
Durante a viagem, os romeiros, como nômades,
viverão em contato direto com a natureza selvagem,
percorrendo primitivos caminhos, que cortam uma
vastidão incomensurável de ermados cerrados virgens e
vastos tabuleiros. Dormirão ao relento, ao abrigo da copa
frondosa de algum pequizeiro. À tardinha terão, por
companheiros, os bandos de papagaios, que adejavam,
libertos. Suas vistas se deleitarão com a visão passageira
de um veado-galheiro ou de alguma campeira, com sua
cauda branca, atravessando as verdejantes colinas, que
separam as úmidas veredas. Não será difícil que um
guará, menos arisco, passe correndo com seu andar
desengonçado. Araras multicoloridas estarão pousadas
nas frondes dos buritizeiros ou passarão voando, em
pequenos grupos, como famílias distintas. Serão
vermelhas, amarelas ou azuis, de inefável beleza,
chilreando, alegres.
Após quatro horas de viagem sob um céu límpido,
inundado de sol, no meio do cerrado de solo arenoso, que
rangia sob as patas dos resfolegantes cavalos, apareceu
à frente a primeira aguada, depois do rio. Era a vereda da
Prata, maravilhosamente exuberante, formosíssima
paragem primitiva na vasta planura do cerrado, onde
vicejam com luzente esplendor as palmas altaneiras dos
estipes eretos dos buritizeiros, que deslumbram a vista
com sua exuberante imponência selvagem. O primeiro
pouso obrigatório para o almoço.
No calor do meio-dia, na plenitude do estio, os
cavalos suavam de formar espuma. No céu, nenhuma
nuvem. O tempo parecia estagnado, sem vento ou brisa,
que balançasse as luzidias palmas dos buritizeiros.
Parado. A natureza em estio, obscurecida à presença dos
romeiros.
Duas seriemas cantavam no meio do cerrado.
O coronel Brandão soltou as rédeas da besta
Vaidosa e picou de esporas obrigando-a a galopar até a
margem da vereda. Os outros chicotearam os cavalos,
apressando a marcha; menos Lázaro, responsável pela
condução da lerda azêmola, que transportava a comida.
Na margem da vereda, ele estacou.
As águas da vereda corriam mansas e cristalinas,
num leve marulhar.
– Afrouxe o peitoral – ordenou o coronel Brandão,
dirigindo-se a Maria, cujo cavalo havia entrado nas águas
da vereda e baixado a cabeça para beber.
A voz do coronel Brandão ressoou forte no silêncio
da vereda, despertando Maria de leve devaneio.
Maria, com sinais claros de amargura no rosto, não
se parecia com uma noiva a caminho do altar. Tinha muito
pouco da anterior juventude alegre vivida no sítio da Água
Nova. Sentia-se órfã de pais vivos.
O coronel Brandão, apontando com o dedo em riste
para um buritizeiro que se erguia no meio da vereda,
disse confiante, com olhar grave:
– Vejam aquela pinta branca, no meio daquele
buritizeiro... Aquele que tem um ramo de baunilha
pendurado.
Segurando firme a rédea de sua montaria, sacou o
trinta e oito da cintura, cano longo, SW, cabo de
madrepérola, niquelado, fez pontaria e atirou. A bala
perfurou o tronco do buritizeiro bem no centro da mancha,
com inexcedível presteza.
Outros tiros foram ouvidos logo em seguida, mais
perto, mais distante. Atiravam por atirar, em resposta, em
cumprimento, em solidariedade. Era uma das diversões
da viagem.
O individualismo egoísta de cada um ia cedendo
lugar a um sentimento coletivo de alegria e de festa. Os
reflexos sensoriais iam passando de pessoa a pessoa,
contagiando a todos.
Ao longo da vereda, em um lanço da estrada, uma
nuvem de poeira levantava-se, em toda a sua extensão.
Uma leva quase única de animais, uns parados, outros
andando, vindos de todas as partes. A partir dali
começavam a se encontrar, a misturar as marchas,
aumentando o caudal humano.
Em outras estradas, em outras veredas, vindos de
São Romão, da Barra da Vaca, de Januária, da Bela
Lorena, do Rio Pardo, do Porto da Manga, das margens
do Carinhanha, de todas as fazendas, de todos os
povoados, a cavalo, a pé, em carro de bois, em comitivas
ou à escoteira, naquele momento, centenas de romeiros
pousavam para a primeira refeição do dia. Vinham de
todas as direções, fechando um grande círculo, puxados
por estranha força centrípeta, em viagem alegre e
fatigante em busca de um único ponto perdido no meio do
sertão, na solidão do agreste. Uns por devoção,
cumprindo promessas; outros, a grande maioria, pelos
divertimentos da romaria.
Um pouco adiante, o coronel Brandão dirigiu sua
montaria para o refúgio da sombra de um frondoso
pequizeiro, na orla do cerrado.
– Vamos dar lombo aos animais e comer um pouco
de paçoca.
Pousaram.
Outros romeiros iam passando. Pousavam mais
adiante.
Lázaro desarreou a sua montaria e arriou a carga e
a cangalha da besta de carga.
Desarreados e soltos, peados de pé e mão, os
animais pastavam livres a viridente relva fresca, que
vegeta na margem da vereda, recamada de pastagens
naturais.
Os
romeiros,
desoprimidos
da
viagem,
refrescavam-se nas águas frias da vereda, comiam
paçoca de carne-de-sol ou farofa de frango, incomodados
pelo zumbir dos insetos. Bebiam. Bebiam muita cachaça.
Não tinham pressa. Para muitos, o melhor da romaria era
mesmo a viagem.
O coronel Brandão mandou armar a sua rede para
um merecido cochilo.
Juvenal desfazia-se em cortesias com a noiva.
Maria sempre olhava para ele com ar de desprezo.
Próximo ao pequizeiro, em um pequeno rancho
coberto com palhas de buritizeiro, um meninote
apregoava em voz alta:
– Laranja doce do Junco!
42
Fazia já uma semana que o padre Rafael e os
comerciantes haviam se instalado na vila da Serra das
Araras, minúsculo vilarejo que se ampliava todos os anos
com a presença dos romeiros. Cada um, a seu modo,
fazia os preparativos necessários.
Para o vigário, era a maior festa religiosa de sua
freguesia. A única realmente importante de toda a região,
só superada pela romaria de Bom Jesus da Lapa, na
Bahia. A festa renderia, em quatro dias, em cumprimento
de promessas ou proveniente de batizados e casamentos,
mais da metade do orçamento anual da Paróquia. O pior
para o padre era quando o prelado romano da Diocese
resolvia aparecer para fazer crismas e dividir a renda.
Naquele ano, ele estava tranquilo. Entre os batizandos,
não faltariam novos afilhados seus, produtos da festa dos
anos anteriores.
A alvinitente igreja projetava-se no centro da praça
principal, como uma casa de orações. Ela abrigava as
esperanças e reconfortava o espírito de legiões de
penitentes, devotos de Santo Antônio, como um oásis de
paz. Fora da capela, a movimentação crescia a cada
novo dia. A pequena vila não oferecia nenhum conforto.
Os construtores das barracas de palhas, que seriam
alugadas, apressavam-se na conclusão de seus afazeres.
Os comerciantes, mais retardatários, discutiam com
o fiscal da Prefeitura em busca de uma melhor e mais
estratégica localização para suas ratoeiras, onde
praticavam com sagacidade suas falcatruas comerciais.
Nelas, expunham para venda pentes, sabonetes,
braceletes, quadros de santos e uma infinidade variada de
quinquilharias.
Os fotógrafos acomodavam-se próximo à capela.
Nos bares já rolava solto o dinheiro dos primeiros
romeiros, vindos principalmente de Januária, a terra da
boa cachaça.
Joana, Mariana, Paula e outras prostitutas de São
Francisco, e dezenas outras de Januária ali estavam,
desde os primeiros dias de junho. Não seriam muito
procuradas. Estariam quase sobrando dentro do turbilhão
de promiscuidade da festa, que se ia estabelecendo.
O cerrado, que contorna a vila, transformara-se em
privada pública e alcova improvisada. Não raro, à noite,
uma senhora de respeitável fazendeiro se agachava de
cócoras, à moda indígena, para fazer xixi ao lado de um
casal deitado sobre uma capa colonial, em quase pública
fornicação. A senhora virava o rosto como se nada
estivesse vendo e não estivesse sendo vista. Não raro,
ainda, que a capa tivesse sido aberta sobre um monte de
excrementos humanos, ali deixados minutos antes.
A massa humana ia crescendo às centenas a cada
hora. A grande maioria, que chegava a cavalo, dava
voltas completas em torno da igreja – cumprindo um ritual
desconhecido – apeava em frente à porta principal,
entrava, atravessava a nave principal até o santuário,
ajoelhava-se, fazia o sinal da cruz, saía e ali não mais
voltava.
O jogo campeava livre, por licença do Delegado,
que cobrava alto preço pelo alvará, não escrito, de
autorização.
No córrego da Catarina, onde água e areia não se
separam, rolando juntas pelo leito largo e raso, mulheres
apanhavam água para a serventia das barracas.
Na barra da vereda do Feio, no córrego da
Catarina, de águas claras e terrivelmente frias,
impudentes homens e levianas meretrizes banhavam nus,
observados pelas crianças, escondidas nas moitas
próximas.
Mais acima, no leito da mesma vereda, as moças e
as senhoras, de calcinha e soutien, longe do bulício da
vila, regalavam-se nas águas frias, protegidas dos olhares
curiosos e, quase sempre, vigiadas por algum parente
próximo.
43
Na Lagoa dos Mocós, mais de trinta homens
rolavam os gólfãos dentro d’água, preparando a parede
do curral, em forma de uma ferradura, com a abertura
voltada para a mãe-da-lagoa. Utilizavam a mesma técnica
empregada pelos antepassados que, por sua vez, haviam
aprendido com os destemidos xacriabás, que em outras
eras habitaram aquela região. Nenhum utensílio moderno
era usado.
– É preciso remontar a parede do fundo –
determinou o velho Ferreira. – É lá que o peixe faz mais
força. Ocês asinha logo que já tá ficando tarde.
Nu da cintura para cima, com sua volumosa barriga
despejada sobre as pernas, o velho Ferreira, proprietário
das terras circunvizinhas e da própria lagoa, dirigia os
trabalhos, sentado no piloto de uma canoa.
Em faina suarenta, nova remessa de gólfãos foi
rolada, engrossando a parede do fundo até mais de vinte
centímetros acima do nível da água.
– Tá bom assim. Vamos bater o peixe.
Os pescadores deram uma volta por fora até a
mãe-da-lagoa e começaram a bater na água, formando
um semicírculo, como vaqueiros aquáticos, conduzindo os
peixes para a entrada da ferradura.
Concluído esse trabalho, fecharam a entrada,
saltaram para dentro do cerco e começaram a andar em
círculo, sujando a água e formando um redemoinho.
Uma barata-d’água picou a perna de Alberto, na
altura do joelho direito.
– Olha o sol, barata – disse ele, instintivamente,
levantando as vistas para o céu, em obediência a um
imperativo da tradição.
Gaivotas e garças-brancas pontilhavam o céu,
fazendo verão por cima do cerco, na expectativa das
sobras.
Não tardou muito e os peixes começaram a beber.
Chuço em punho e fieira de embira presa ao cós da
calça, os pescadores iam chuçando os peixes à medida
que punham a cabeça fora d’água, bebendo.
– Tem muito peixe – comentou Alberto, que já tinha
mais de dez enfiados na fieira, que boiava sobre as
águas.
– Viva o Senhor Bom Jesus – gritou um pescador
que havia chuçado uma piranha.
Era uma piranha vermelha, das grandes e
perigosas.
Não tardou muito e um rapaz, aparentando quinze
anos, agitado, pulou para cima da parede do cerco,
gritando de dor. Em sua perna destacava-se a marca
visível de dentes de piranha. A marca circular, tão perfeita
como se tivesse sido feita a compasso, punha à mostra o
osso da perna, branco e liso. A dor crescia e o meninohomem saltou para fora e, arrastando-se por dentro da
lagoa, caminhou para a margem.
Passado o alvoroço, a pescaria continuou. O
acidente era comum e sempre esperado. Quem não se
arriscava, não pegava peixe. Não havia escolha.
O dia caminhava já para o meio da tarde. O velho
Ferreira, como sempre fazia, abandonou o cerco e remou
para a margem, postando-se no local por onde os
pescadores deveriam sair.
O peixe escasseava no cerco e aumentava nas
fieiras.
Entardecia.
Um após outro, os pescadores foram abandonando
o cerco. Uma fila de homens se formou entre o cerco e a
margem. Na boca de espera, o velho Ferreira sorria. O
primeiro pescador aproximou-se e estendeu a fieira no
chão, como de costume, aos pés do proprietário da lagoa.
Apontando com o dedo em riste, o velho Ferreira
determinou:
– Tira este e aquelas quatro curimatá.
Era o único surubim da fieira e as curimatás eram
as maiores.
Com um gesto de enfado, o pescador disse:
– Tiro só duas. Quatro e mais o moleque tá muito;
assim não dá.
O velho Ferreira retrucou com franqueza:
– Se não quiser, precisa voltar amanhã, não. Tira
as quatro.
O monte da renda ia crescendo e os peixes das
fieiras diminuindo.
Os pescadores passavam.
As gaivotas e as garças assumiram o comando do
cerco.
– Ladrão barrigudo – resmungou um pescador,
lívido de raiva.
– Que foi que ocê disse?
– Disse nada, não.
44
Naquele primeiro dia de viagem, ainda com o dia
claro, a comitiva do coronel Brandão acampou para
pernoite no Sítio Novo. Outros romeiros ali também
acamparam. Na manhã do dia seguinte, decampariam,
para nova jornada.
Enquanto os peões de comitiva cuidavam dos
animais e do acampamento, o coronel Brandão,
aproveitando a ainda profusa claridade do fim da tarde, foi
à casa do proprietário para cumprimentá-lo, embora fosse
seu adversário político.
Ursino, como a grande maioria dos habitantes do
distrito de Serra das Araras, era udenista.
O coronel Brandão sabia, por ouvir dizer, o que
estava acontecendo naquela casa. Ele foi entrando, porta
adentro, sem se anunciar. Encontrou-se com Ursino no
corredor que ligava a sala à cozinha.
Cumprimentaram-se.
Na casa havia um vazio assustador.
O coronel Brandão notou que ele estava
macambúzio. A tristeza e o horror pairavam no ar. Uma
grande inquietação dominava todos os sentidos de
Ursino, que foi logo soltando suas preocupações.
Em tom elegíaco, ele disse:
– Tá acontecendo muita coisa horrível nesta casa.
Aqui tá todo mundo apavorado. O diabo tá andando por
aqui... Cada dia tá ficando pior. Todo mundo vê.
– Vê o quê? – perguntou o coronel Brandão.
– Ora, as estripulia dele... Essa casa tá malassombrada. Ele joga milho no telhado, come a comida
dos prato... Ele deixa a marca dos dedo nos prato.
Ursino estava realmente aterrorizado. Com ele
também deveriam estar os demais membros da família.
– Isto é pura imaginação sua. Não acredito em
assombrações.
– Então o senhor não acredita na gente? –
questionou Ursino.
– No senhor, eu acredito. Não acredito é no que o
senhor fala que está acontecendo aqui.
– Mas, Coronel! A gente vê as porta e as janela
batendo, comida sumindo dos prato, milho jogado no
telhado... Teve um dia qu’ele fez uma lata sair voando.
Ele joga pau e pedra nas panela de comida. E, o que é
mais pior, ele bate na Joaninha.
Parou por um instante e disse:
– O medo me confunde.
– É!... – disse o coronel Brandão com ceticismo.
Naquele instante, doutor Reinaldo, que havia
acampado ali naquela noite, aproximou-se.
Apertando a mão do coronel Brandão, ele disse:
– Olá, Coronel, como vai indo de viagem?
– Você por aqui?
– Também estou nessa. Dizem que a festa da
Serra é muito boa. Vou lá para conferir.
Escurecia.
Joaninha entrou na sala, trazendo uma lamparina,
e logo saiu.
– Esta é minha décima viagem consecutiva – disse
o coronel Brandão. – E você, está gostando?
Doutor Reinaldo, apertando ligeiramente com as
mãos a parte interna das coxas, respondeu:
– Muito. É tudo muito divertido... O corpo é que não
está reagindo bem. As pernas estão muito doloridas.
– Amanhã você já vai estar mais acostumado.
Lembrando-se das preocupações de Ursino, o
coronel Brandão perguntou:
– Ursino já lhe contou o que está acontecendo
aqui?
– Já. Logo que eu cheguei, ele me contou. Todo
mundo pela estrada, desde o barranco do rio, só fala que
esta casa é mal-assombrada. Resolvi dormir aqui para
conferir...
Com um sorriso e com ar de superioridade, ele
completou:
– Não existem assombrações.
Ursino velou-se. Recuando, retrucou:
– É porque o senhor nunca viu uma.
Doutor Reinaldo, compassivo, disse:
– Não estou dizendo que não podem aparecer
fenômenos de difícil explicação. Existem fenômenos
misteriosos, mas não têm origem em seres espirituais.
Não são influenciados por nenhuma força oculta. São
criações da própria mente humana.
– Mas todo mundo vê, como Ursino informou –
disse o coronel Brandão – Que você pensa disto?
Doutor Reinaldo, com seriedade, e umedecendo os
lábios com a língua, afirmou, com certo mistério:
– É um caso típico de psicorragia.
– O que é isso? – questionou o coronel Brandão,
franzindo o sobrecenho.
Ursino perguntou:
– Que diabo é isso? Alguma doença de rua?
Doutor Reinaldo fez uma pequena pausa com um
leve sorriso, parecendo meditar.
– As forças psíquicas do inconsciente podem ser
esporadicamente liberadas e transmitidas, provocando
efeitos polipsíquicos, isto é, uma pessoa libera
inconscientemente suas forças, criando fenômenos
estranhos. Outras pessoas veem e participam, também
inconscientemente.
Outro silêncio.
– A psicorragia é contagiosa.
O coronel Brandão, atônito, fez um gesto de quem
não estava acreditando no que estava ouvindo, contudo,
as aparentemente desarrazoadas explicações de doutor
Reinaldo excitaram a sua curiosidade. Ele não tinha um
conhecimento científico do assunto, mas tinha-o de forma
intuitiva. Com expressão de dúvida, disse:
– Não deu para entender direito.
Com voz pausada, doutor Reinaldo informou:
– Se todos da casa tiverem calma e procurarem
esquecer
os
fenômenos,
eles
desaparecerão
naturalmente.
A mente
humana
tem
poderes
extraordinários, nem sempre controlados. Esses poderes
podem ser cientificamente explicados.
Com ideia fixa, Ursino sentenciou:
– Isso é obra do demônio. Credo!
Com os olhos fitos em Ursino, doutor Reinaldo, em
tom irônico, declarou:
– Do demônio que está dentro de você mesmo,
diria melhor.
– Iche! Cruz credo! – tartamudeou Ursino, enquanto
fazia o sinal da cruz, olhos fitos no doutor Reinaldo.
Criou-se um certo mal-estar.
O Coronel, mais consciente, embora não
conseguisse compreender, disse:
– Quem houvera de pensar uma coisa dessas?
Concordo com suas explicações, mas esses fatos tão
concretos não poderiam ser mais bem entendidos como
sendo produzidos pela força dos espíritos?
Doutor Reinaldo perguntou:
– Que alma teria interesse em assombrar esta
casa?
– Sei, não – respondeu Ursino. – Iss’é praga de
ódio de algum infeliz.
Doutor Reinaldo explicou:
– Os mortos não podem ter mais força que os
vivos. Isto é lógico e natural... Eu explico. O espírito dos
mortos necessita, sempre, segundo o espiritismo, de um
corpo para se manifestar, que eles denominam aparelho.
Logo o espírito dos vivos, que já têm o seu próprio corpo,
deve ser muito mais forte...
Ursino estava constrangido.
O Coronel entrou a fazer reflexões.
Doutor Reinaldo fez uma pequena pausa, olhando
para o coronel Brandão.
– Os espíritos dos mortos não voltam à terra. O
caso que aqui está acontecendo não é espiritual.
Promana da própria força física do inconsciente das
pessoas que aqui moram.
– Confesso que estou ficando curioso – disse o
Coronel. – Gostaria de saber o significado de psico...
– Psicorragia – ajudou doutor Reinaldo.
– É isto aí. O significado de psicorragia.
Fitando o Coronel nos olhos, ele explicou:
– Seria como um derramamento psíquico, uma
hemorragia de forças do inconsciente, eu diria... É uma
hemorragia. Quando muito frequente, pode levar o
indivíduo
à
loucura,
pois
são
manifestações
incontroláveis.
Ursino, que nada estava entendendo, olhava
boquiaberto para doutor Reinaldo. Seus olhos exprimiam
dúvida.
O Coronel perguntou:
– Então a visão de fatos, como os que estão
ocorrendo aqui, é sintoma de loucura?
– Claro que não. Eu estava dando somente uma
explicação. Eles estão realmente vendo tudo que está
acontecendo aqui, e tudo está realmente acontecendo, só
que não é obra do demônio, como pensa Ursino.
Voltando-se para Ursino, continuou:
– Vocês têm que esquecer tudo que está
ocorrendo. Procurem não se lembrar, nem querer que
aconteça de novo. Fiquem calmos e tudo desaparecerá.
– Sei, não! – disse o Coronel quase inconsciente.
Doutor Reinaldo perguntou:
– Aonde vamos tomar uma? Nesta viagem eu
estou bebendo à tripa-forra.
O coronel Brandão, puxando doutor Reinaldo pelo
braço e empurrando-o na direção da porta, disse:
– Venha cá. Lá no meu acampamento tenho uma
muito boa. É do Brejo.
Ursino acompanhou-os até a porta.
Havia anoitecido.
Caminhavam iluminados pela luz do astro da noite.
De onde estavam, podiam ouvir a linguagem misteriosa
dos sapos que coaxavam nas águas da vereda.
O Coronel disse:
– Estou vivamente interessado em entender melhor
suas explicações. Já li ou ouvi alguma coisa a respeito,
mas confesso que não entendo nada do assunto.
Na vereda do Sítio Novo, os acampamentos dos
romeiros, distribuídos ao longo da margem e definidos
pelo clarão de minúsculas e faiscantes fogueiras, estavam
movimentados, com rumores de conversações. Em um
dos acampamentos, alguém soltou um foguete de três
tiros.
Doutor Reinaldo acendeu um cigarro:
– A Parapsicologia é uma ciência relativamente
nova. Como todas as ciências, ela teve o seu período de
incubação. Assim como a Astronomia nasceu da
Astrologia, a Parapsicologia teve sua fase primitiva. Ela
passou pela Magia, pelo Ocultismo, pelo Espiritismo.
O Coronel ouvia atentamente. Doutor Reinaldo
estava satisfeito. Havia lido muito sobre as forças ocultas
da morte e ali estava a oportunidade de demonstrar seus
conhecimentos.
Chegaram ao acampamento.
Por todos os lados viam-se pequenas fogueiras
crepitantes, alumiando o ambiente.
Para além do acampamento, o cerrado estava
mergulhado em trevas.
– Celino – chamou o coronel Brandão. – Traga uma
garrafa de brejeira.
Celino, levantando-se do toco onde estava
sentado, comentou, apontando para a casa de Ursino.
– Aquela casa é mal-assombrada. Todo mundo tá
falando.
– Bobagens. Traga a pinga.
Voltando-se para doutor Reinaldo, perguntou:
– O que vem a ser Parapsicologia?
Doutor Reinaldo olhou para seu interlocutor, com ar
altivo.
– Não podemos defini-la bem, mas somente indicar
seus objetivos. É ainda uma ciência muito nova e pouco
difundida, como já disse. Poderá ser entendida como a
ciência que estuda as manifestações do inconsciente
humano.
Celino regressou com a garrafa de cachaça e um
coité.
O ar estava impregnado com uma fragrância
indefinida, que vinha da vereda.
O Coronel explicou:
– Esta é boa. Cinco anos de envelhecimento em
dorna de umburana.
Doutor Reinaldo cheirou o conteúdo do coité que
lhe foi oferecido, e bebeu vagarosamente, como se fosse
o néctar, a bebida dos deuses, sentindo-se inebriado.
– É boa, de fato.
– Mais um pouco?
– Agora, não. Mais tarde.
O Coronel não bebeu. Estava mais interessado em
continuar a conversa, em aprofundar-se no conhecimento
de uma ciência nova, desconhecida. Ficou parado,
esperando que doutor Reinaldo continuasse. Este disse:
– Posso explicar, mais não. Numa simples palestra
de beira de estrada não posso dar explicações mais
concretas. É uma ciência muito nova, entende? Estou
correndo o risco de ser mal interpretado. Só posso dizer
que ela explica cientificamente todos os fenômenos
humanos, até então atribuídos a espíritos do além.
Celino, buscando receber do Coronel uma
explicação, como lenitivo para o medo, que ia crescendo
dentro dele, disse:
– Diz qu’ele joga milho no telhado, come nos prato,
joga pedra e bate nas pessoa.
O Coronel explicou:
– Isso é conversa desse povo. Tem nada disso,
não.
Celino continuou:
– Eles pediu ao padre Rafael pra benzer a casa e
não adiantou nada. O demo saiu, não.
Brincando, doutor Reinaldo disse:
– Talvez porque a bênção não serviu. O padre
Rafael devia estar pensando nas mulatas lá da Serra. De
acordo com a Igreja, não seria caso de ser resolvido por
qualquer padre. Seria necessária a presença de um
exorcista. O caso é, entretanto, da alçada de um
psiquiatra. Pelo que eu ouvi, estão acontecendo
manifestações telecinésicas, isto é, movimentação de
objetos por força psíquica não consciente. O bater de
portas e janelas, os milhos jogados no telhado, a lata
voando, a comida desaparecendo... Poderia ainda o
fenômeno aproximar-se mais da realidade, isto é,
poderiam ter sido vistos os dedos ou a mão apanhando a
comida. Nesse caso, seria uma manifestação
ectoplasmática, próxima à fantasmogênese. Tudo
possível e cientificamente explicável.
O Coronel boquiaberto estava ficou atônito.
Doutor Reinaldo, que permanecia com o coité na
mão, pediu mais uma dose.
– Em São Francisco conversaremos mais a
respeito – disse ele.
Bebeu, desejou a todos uma boa noite e saiu para
os braços de sua amante, que o acompanhava na
viagem.
***
Maria, deitada na rede armada ao relento, entre
duas caviúnas, amargurava a falta de sono. Chorava
silenciosamente. Fatigada da viagem e com muito pouca
disposição, sentia o bater espaçado do coração. Incapaz
de uma decisão, deixava-se levar pela força misteriosa do
destino. Via no céu, por entre os troncos e folhas, as
cintilantes estrelas. Embora estivesse frio, o calor
instalara-se em seu corpo. Ouviu o pio tristonho da mãeda-lua, ave noturna, na vegetação da vereda. Tentando
acalmar-se, rezou à Virgem Maria. Finalmente
adormeceu.
45
O dilatado campo, de uma tonalidade verde
escura, estendia-se até a linha do horizonte, onde se
destacava, em alto relevo, a Serra das Araras, que se
apruma, dominando majestosa toda a região em torno,
sobranceando a vila de igual nome, localizada em suas
cercanias, o ponto cêntrico da romaria. Um lugar lendário.
Uma nuvem de poeira, que pairava sobre o arraial,
definia, à distância, sua localização.
O Coronel, apontando na direção da vila, disse:
– Lá está a Serra. Aqueles dois morros ali, à nossa
esquerda, são os Dois Irmãos e, bem à nossa frente, está
a vereda dos Barbados, onde almoçaremos. À tarde
entraremos no povoado.
O Coronel olhou a paisagem em volta. Grandes
línguas de fogo, provocadas pela insensatez de algum
romeiro, levantavam-se rubras no cerrado próximo,
elevando uma cortina de fumaça, densa e escura. O
violento incêndio, um turbilhão de fogo, caminhava pelo
cerrado, subia pelos taludes, descia pelas escarpas, ora
crepitando forte, devorando as copas dos adustos
pequizeiros, ora brando, rastejando como uma enorme
serpente vermelha, deixando desnuda a terra. Queimaria
dia e noite, sempre ameaçador, até alcançar um aceiro
natural: uma estrada, uma vereda, um córrego. Acontecia,
às vezes, que o vento, soprando forte, atiçando as
chamas, transportava fagulhas além do aceiro e o
incêndio reiniciava campo adentro, em nova etapa
devastadora, calcinando a terra. Atrás ficava apenas o
brasido, o cerrado exsicado reduzido a cinzas.
Os romeiros, indiferentes, passavam ao largo. Em
alguma parte crua do cerrado, por onde o fogo ainda não
passara, não faltava quem se desse ao trabalho de apear,
riscar o fósforo e divertir-se vendo o crescer do fogo.
Era assim todos os anos. Tinha sido assim antes e
continuará a ser.
***
No terceiro quarto do dia, a comitiva do coronel
Brandão chegou ao povoado, onde grupos ruidosos de
gregários romeiros recheavam todos os espaços da praça
central e dos becos adjacentes.
Um povoado de edificações rudimentares, feitas de
pau-a-pique e cobertas com palhas de buritizeiro,
emoldurado pelo cerrado virgem.
Não se sabe quando começou a romaria à Serra
das Araras. É possível – tudo é possível – que tenha tido
princípio nos primórdios da colonização e perdura hoje,
tão fortificada quanto antes, e estará presente quando a
atual geração não mais existir. É tão velha quanto a fé, e
esta tem quase dois mil anos de existência.
46
Nas proximidades do córrego Catarina, que deflui
das grimpas da Serra próxima, nas cercanias da vila,
estava acampado um grupo de ciganos, vindos das
divisas de Goiás. Não eram muitos, mas o bastante para
serem notados. Dali seguiriam viagem, como nômades,
para lugar algum. Não paravam muito tempo no mesmo
local, não se fixavam. Comerciavam com cavalos e
fabricavam utensílios de cobre.
Um pouco antes do cair do sol, Maria, a passo
tardo, dirigiu-se ao córrego Catarina para apanhar água.
Parou a meio caminho, entre a vila e o acampamento,
aparentemente indecisa. Observou o movimento dos
ciganos. Sempre tivera medo de ciganos. Eles roubavam
cavalos e tudo que encontravam ao alcance da mão.
Roubavam também crianças, diziam. Vagarosamente
aproximou-se do acampamento. Estava angustiada,
dentro de um vácuo. Não ouvia mais o barulho da vila,
não via os romeiros que por ela passavam, nem sentia o
cheiro agreste do cerrado.
Vultos indefinidos passavam, subindo para a vila ou
descendo para o córrego.
Os olhos dela estavam fitos no acampamento. Dois
cavaleiros passaram a meio galope.
Na vila, os vendedores ambulantes apregoavam as
qualidades de suas mercadorias; o sino da igreja
anunciava a hora da procissão; os políticos bajulavam os
eleitores; os soldados espancavam as prostitutas; o cego
pedia esmolas na porta da igreja; o jogador trapaceava.
Uns poucos romeiros rezavam dentro da igreja.
Maria olhou rapidamente para os lados, como se
procurasse alguém, alguma pessoa amiga.
Na indiferença geral, os romeiros passavam.
Ela não teve mais dúvidas. Sem arrimo e sem
esperança, suspirou profunda e tristemente. Fez o sinal
da cruz em seu rosto e, desvairada, com o coração
acelerado, sem imprecações ao destino, caminhou com
estoica decisão, passos nervosos, em demanda do
acampamento com as sobrancelhas erguidas, sem saber
ao certo o que iria fazer ali.
47
Quinze de junho. Desde o dia anterior, a vila ia
ficando deserta, enquanto as estradas, que partiam em
todas as direções, novamente ganhavam vida e
movimento.
Não havia alegria na viagem de volta.
No raiar do dia, no bar do Manoel, na Rua do
Urucuia, os retardatários, romeiros de Januária,
cantavam, acompanhados por um velho violão e bateria
improvisada, o samba Serra das Araras, nascido da
paixão do romeiro pela romaria:
Adeus, Serra das Araras!
Adeus, linda urucuiana!
Adeus, está chegando a hora!
Adeus, Alice, eu vou embora.
Já fiz prece, fiz promessa,
Pra Santo Antônio me ajudar.
Neste samba, expresso o que sinto:
Para o ano eu pretendo voltar.
Adeus!
A voz dos sambistas espalhava-se solitária pelas
ruas já desertas do povoado.
A vila, logo depois, emudeceu e quedou-se silente
à espera da romaria do ano seguinte.
Contracapa
Livro na rua
Uma realização da
Academia de Letras, Ciências e Artes do São Francisco
Distribuição gratuita
***
Oh! Bendito o que semeia
Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n'alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!
Castro Alves