a dama em frente ao espelho

Transcrição

a dama em frente ao espelho
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
A DAMA EM FRENTE AO ESPELHO
segunda-feira, janeiro 23, 2012
http://nucleotavola.com.br/revista/a-dama-em-frente-ao-espelho/
por Tatiana Almeida D'Antonio de Souza*
“Sinto em mim um fogo que não posso deixar extinguir, que, ao contrário, devo atiçar ainda que não
saiba a que espécie de saída isso vai me conduzir. Não me espantaria que essa saída fosse sombria. Mas,
em certas situações vale mais ser vencido do que vencedor”. (Vincent Van Gogh)
Era uma manhã cinza de outubro de 1917 em Paris.
A freira bateu à porta do quarto. Do outro lado, instintivamente, a Senhora dirigiu seu olhar para aquela
direção, respirou fundo e, com força, apertou o nó do cinto que fechava o sobretudo preto, terminando de
se vestir. Colocou seu chapéu e abriu a porta.
Junto à freira que a chamara havia outras duas, mais novas, talvez noviças. Cumprimentaram-se com
discretos acenos de cabeça. A Senhora tinha um semblante sombrio.
Sem dizer qualquer palavra, a freira mais velha tomou a frente e pôs-se a caminhar pelo corredor. A
Senhora a seguiu. Atrás vieram as jovens freiras com olhares curiosos em relação à enigmática dama.
A cada passo, naquele longo corredor, sua mente foi envolvida por lembranças. Havia sonhado com seu
filho, morto há dezoito anos, quando era criança.
“—Porque sonhei com ele justamente hoje? Então foi por isso que ele morreu?”.
Ela pensava em Norman e na vida que teve há muito tempo...
A jovem Margarite folheava um jornal despretensiosamente, quando parou os olhos em um anúncio que
lhe interessou: “Oficial das Índias Orientais Holandesas em licença gostaria de encontrar moça de boa
índole para fins matrimoniais”.
Riu-se intimamente porque sabia que era ela a mulher que ele procurava.
Achou por bem apresentar-se logo: respondeu ao anúncio escrevendo uma carta e dentro do envelope
colocou também uma foto sua. Ela era uma moça bonita e sabia que isso encantaria o anunciante.
O Capitão MacLeod era vinte anos mais velho que ela. Não era bonito, mas tinha uma posição social
importante e isso foi suficiente para seduzir Margarite. Casaram-se na Holanda.
page 1 / 9
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
Logo após o nascimento do frágil Norman, Lady MacLeod já não nutria interesse por aquele homem.
page 2 / 9
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
“—O Capitão é pragmático demais... e... pouco reflexivo... não conversamos... a vida é sempre a mesma”.
A indiferença com a qual o Capitão a tratava a enfurecia e a entediava diária e alternadamente. Sentia que
tinha algo de especial escondido dentro de si, mas que o Capitão nunca seria capaz de reconhecer. Ela
queria a admiração dele e de todos.
Nessa época da vida de Lady MacLeod acontecia uma coisa curiosa: ela tinha alucinações.
Compulsivamente olhava para o espelho e sorria, mas a Imagem que ela via não sorria para ela.
Sentia terror, claro, pelo inusitado, mas o que especialmente a assustava era uma sensação de falsidade
que vinha bem do fundo de sua alma. Ela não sabia que sensação era essa, mas era algo que a inquietava e
assim, logo vinha o impulso de olhar para o espelho novamente.
Nesse contexto de monotonia, compulsão, falsidade e terror, Lady MacLeod enfim teve uma boa notícia:
o Capitão fora designado para uma missão militar nas colônias holandesas nas Índias e toda a família se
mudaria para Java!
Era tudo o que ela queria! Poderia existir maior aventura do que morar em Java? Sua mãe tinha
ascendência javanesa e o cenário da ilha fez parte de sua infância. Já estava sentindo o cheiro de sândalo e
a umidade da floresta.
Depois de uma longa viagem, ao colocar seus pés nas terras de Java, sentiu um tremor interno. Estar em
uma ilha e saber que se está rodeada por águas, sem comunicação com outras terras, trouxe a Lady
MacLeod a percepção de que a ilha simbolizava o que ela era internamente: sozinha, inacessível, com um
mundo interno escondido por uma pele que limitava sua existência.
Reencontrar tão materialmente esta representação de si fez com que Lady MacLeod sentisse medo e, ao
mesmo tempo, desejo de conquista. Ela queria descobrir os mistérios daquela ilha e, assim, entender o
que ela própria escondia por debaixo de sua pele.
O Capitão, agora chefe de guarnição, era um homem poderoso. E, por isso, o casal passou a ser convidado
para todas as festas.
Boa observadora, Lady MacLeod percebia que os soldados projetavam em seu marido, o comandante, o
que almejavam ser. Assim, logo tornou-se o proibido objeto do desejo deles.
Fascinada com a nova posição, assistia às apresentações das dançarinas indianas, depois jantava e
dançava pelo salão. Nestes momentos, aproveitava para seduzir os militares - para deleite deles,
constrangimento de seu marido e fúria das damas esquecidas às mesas.
Como era de se esperar, as acompanhantes dos oficiais nutriram antipatia por Lady MacLeod, que se
divertia como nunca com os olhares reprovadores que as damas lhe dirigiam.
Ria, pois via que os homens, acompanhados de belas damas, interessavam-se mesmo pela dama alheia só
porque era essa a que não poderiam ter. E as damas, conhecedoras dessa característica de seus
cavalheiros, nada mais tinham a fazer a senão culpar Lady MacLeod por ser tão inadequada e
page 3 / 9
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
desagradável.
Nos momentos em que via a ira das damas desprezadas, se lembrava de uma viagem que fizera à porção
oriental da ilha, em que conhecera o maior vulcão que lá se encontrava: o Semeru. Era ativo, mas estava
adormecido. O tremor que sentira ao pisar na ilha se repetira quando ela percebeu a grandiosidade
daquele vulcão e reconheceu o perigo que ele oferecia.
Ela sabia o que acontecia dentro das paredes do vulcão porque ela mesma já havia sentido esta
efervescência dentro do seu corpo. Sabia o que uma explosão poderia causar.
Lady MacLeod nunca foi destas pessoas que provocam no outro o que ele tem de melhor, ao contrário,
ela provocava dor, inveja, questionamentos, incômodos e outros sentimentos difíceis de lidar.
Era assim que ela se divertia. Sentia bem-estar em desafiar os dogmas sexuais, morais e provocar
emoções perturbadoras. Isso logo a fez malquista por todos, inclusive pelo Capitão, que agora não mais
suportava sua companhia.
Diante da escuridão daquele corredor, a Senhora suspirou profundamente e quase riu da pequenez
humana. A velha freira tossiu baixo como quem pede respeito por um momento solene.
Lady MacLeod ficou grávida novamente e nasceu a doce menina Joana. Neste cenário, Norman morreu.
Ela havia chegado a casa depois de uma revigorante cavalgada pela floresta e chamara pelas crianças que
estavam, supostamente, sob os cuidados habituais da babá. Sem resposta, dirigiu-se ao quarto de Norman.
Ao abrir a porta, viu o filho deitado de lado, contorcido. Em volta dele, vômito. Joana chorava aos pés do
irmão. A mãe sacudiu o corpinho de Norman, mas logo percebeu que ele estava morto.
As circunstâncias da morte nunca foram esclarecidas. Pensaram em tifo murino, pois havia uma epidemia
na ilha e a própria Lady MacLeod havia contraído a doença há alguns meses. Mas ela nunca acreditou
nisto, pois os sintomas eram diferentes: não havia qualquer mancha vermelha na pele, nem febre.
A Senhora estava perturbada nesta manhã porque havia sonhado com os minutos que precederam a morte
de Norman: sua boca espumava e ele se revirava de um lado para outro, agonizando. Era possível ver seu
diafragma expandindo-se e contraindo-se numa tentativa desesperada de expelir o veneno que estava
dentro de si.
Sim, agora conseguira entender!
Norman fora envenenado pela babá, que era amante do Capitão. Ela tentara matar seus dois filhos por
vingança, por ter crescido nela uma insuportável sensação de inferioridade em relação à Lady MacLeod.
Joana não quis comer o mingau de arroz.
As imagens do sonho não saiam da cabeça da Senhora que ainda caminhava pelo corredor, cercada pelas
freiras. O som cadenciado dos passos transportou-a para seu interior trazendo-lhe as lembranças mais
significativas de sua vida.
page 4 / 9
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
Desfeita, a família voltou para a Holanda. O Capitão culpava a esposa, pois a considerava uma mãe
relapsa, apegada a festas, aventuras e bajulações. O casal não se falou mais após a morte do filho.
Dias depois, Lady MacLeod ao retornar de um passeio pela cidade, chegou a casa e percebeu que não
havia ninguém. Nenhum som. Nenhum movimento. Pensou em Norman. Chamou por Joana. Correu até o
quarto da filha. Havia roupas jogadas sobre a cama. No quarto do casal, restaram poucas coisas. O
Capitão a abandonara levando a filha.
Passados alguns dias, recebeu uma carta do advogado do Capitão: agora ela era uma mulher divorciada, a
Sra. Zelle.
Foi um momento difícil. Viu que o esforço empregado para sustentar a posição de esposa e mãe não era
suficiente, e agora, não mais necessário.
Sentiu um torpor que lhe tomou a alma e a fez cair no chão da sala. O mundo girava e dentro dela se
instalou uma turbulência. Eram sentimentos que vinham de uma só vez, contraditórios. Houve, dentro de
sua mente, uma luta entre verdade e falsidade.
Depois, sentou-se no chão e respirou lentamente. A dama que se sentou era diferente da dama que caíra.
Naquela sala, sobre o tapete, havia acontecido uma transformação e ela percebendo a mágica, correu até o
espelho. Sorriu. Desta vez, a Imagem sorriu para ela. Feliz com o milagre, a Sra. Zelle disse para sua
sorridente Imagem:
“— Vamos para Paris. É para lá que vão as mulheres que têm algo a resolver”.
E foram, sem máscaras, orgulhosas de quem eram.
Os pensamentos da Senhora foram interrompidos por risos abafados das jovens freiras. Elas riam porque
possivelmente a Senhora fazia gestos e emitia sons por estar absorta em suas lembranças. Já não
carregava o semblante sombrio de antes. Levava um sorriso de satisfação.
Em Paris, assumindo sua personalidade sedutora, pousou para alguns pintores e logo sua beleza passou a
ser reconhecida no meio artístico.
Certo dia, num jantar, observou que haviam cachimbos sobre mesinhas entalhadas, tapetes e almofadas
com estampas de pele de animais, enfeites de elefantes, tapeçarias com imagens de camelos... Sim, a Sra.
Zelle percebeu que os parisienses, naquela bela época, interessavam-se pelas Índias Orientais. Logo lhe
veio à mente a idéia de que isso poderia torná-la uma pessoa especial diante do olhar daquela gente.
Astuta, percebeu que se vestindo de uma personagem poderia tornar-se conhecida. Sabia o que as pessoas
queriam ver e pensava que agora seria o momento de receber o reconhecimento que merecia.
Falava livremente, atraindo a atenção de todos ao contar histórias fantasiosas ambientadas em Java. Eram
aventuras nas selvas regadas a misticismo, sedução e mistério.
page 5 / 9
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
Essa imagem que foi construindo aos poucos seduziu os homens, em especial os que a interessavam.
Elaborou uma apresentação de dança oriental e logo estreou nos palcos parisienses com pompa e
expectativa.
Colocou a fantasia que havia confeccionado para a ocasião: uma saia feita com véus coloridos e um bustiê
de pedrarias que apenas tapava seus seios, deixando seu belíssimo corpo à mostra.
Correu até o espelho.
Ao ver-se, achou que estava bonita, pronta para a estreia! Não quis sorrir porque não sabia se a Imagem
sorriria para ela. Relutante, enfim, sorriu olhando fixamente para o espelho.
A Imagem sorriu também e ao ver tanto brilho, lhe disse:
“— Agora você é quem sempre foi: Mata Hari, a luz do dia”.
A apresentação foi um sucesso e Mata Hari sentiu, pela primeira vez, que sua grandiosidade fora
reconhecida. Ficou satisfeita consigo mesma.
No dia seguinte, os jornais de Paris noticiaram a chegada desta misteriosa dançarina que “chegava para
partilhar com a entediada sociedade europeia os mistérios das Índias Orientais”. Ela sentia o poder
borbulhar em seu ventre.
Mata Hari, com seu especial talento de observação, captava os gostos e interesses do público,
conquistando novos admiradores a cada apresentação. Tornou-se o símbolo da lenda oriental que habitava
o imaginário das pessoas.
Durante os próximos dez anos, a vida de Mata Hari foi um sucesso: plateias delirantes, homenagens reais,
amantes influentes, vilas e castelos, hotéis de primeira classe, tinha criadagem própria, cavalos,
carruagens e o maior reconhecimento que ela poderia ter: uma Imagem sorridente no espelho. Tornara-se
o mito que sempre sonhara!
Mesmo em tempos de guerra, tinha trânsito livre pela Europa. Para ela, esta liberdade era fundamental
porque se apresentava em diversos lugares e tinha amantes em variados países. Seus preferidos eram os
militares de alta patente, pois considerava que estes eram os únicos merecedores de sua companhia.
Perspicaz, percebeu que a guerra estava cada vez mais densa especialmente entre os inimigos França e
Alemanha e temeu que os franceses a impedissem de transitar como desejava.
A trama começou quando Mata Hari quis encontrar um importante militar russo, seu amante, em Vitel,
zona de guerra. Dirigiu-se para o serviço militar de estrangeiros em Paris dizendo que precisaria ir àquela
cidade para tratamento de saúde.
Ela não sabia, mas o paranoico Serviço de Segurança de Paris acreditava que ela era uma espiã a serviço
da Alemanha infiltrada no território francês. Eles haviam acompanhado seus passos pela Europa e
observaram que ela mantinha amizades íntimas com oficiais franceses e alemães. Rapidamente,
page 6 / 9
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
concluíram que ela se valia do seu indiscutível poder de sedução para atrair oficiais franceses
arrancando-lhes segredos de guerra a fim de levar as informações aos alemães.
O pedido foi negado. Porém, numa ameaça velada, o chefe do Serviço Francês, Capitão Ladoux,
prometeu conseguir a autorização para a viagem desde que ela se comprometesse a “ajudar a França”.
Mata Hari não recusou a oferta, mas também não a aceitou formalmente. Pensaria no assunto desde que a
permissão de trânsito lhe fosse concedida. Quando retornasse, procuraria o capitão Ladoux para
conversarem.
Assim, incautelosamente tomada por seu espírito aventuresco, envolveu-se nas malhas da espionagem.
Visitou o amante e voltou a Paris. Procurou o Capitão Ladoux. Ele, com a intenção de mantê-la longe da
França, pediu que ela voltasse para a Holanda — pois o país mantinha neutralidade na guerra — devendo
permanecer à disposição do Serviço Secreto Francês.
Assim, ela embarcou em um navio holandês que pararia na Inglaterra e depois seguiria até a Holanda.
Os ingleses, aliados da França, também acompanhavam os passos de Mata Hari e ao saberem que ela
estava no navio, aguardaram o navio aportar na Inglaterra e detiveram-na para interrogatório.
Ela não se amedrontou, apenas contou que mantinha um trato com o chefe da Segurança Francesa e que,
portanto, também era aliada da Inglaterra. Suas informações foram confirmadas.
Aproveitando o contato feito pela Inglaterra, os franceses abortaram a ida de Mata Hari para a Holanda e
pediram que os ingleses a encaminhassem para Madri, onde deveria instalar-se e aguardar instruções.
Mata Hari ficou furiosa ao perceber que havia se tornado um joguete, mas, coagida, hospedou-se no Hotel
Palace em Madri.
Correu até o espelho. A Imagem estava irritada:
“— Estes cavalheiros deveriam saber que você é uma Dama e que, portanto, como nos jogos de cartas,
você só se encaixa entre o Valete (Alemanha) e o Rei (França). Você não é um coringa, um bobo da
corte, que cabe em qualquer lugar”.
E assim divagaram por horas discutindo a melhor forma de livrarem-se de todos eles.
Enquanto isso, em Paris, o Serviço Secreto interceptou a seguinte mensagem de uma emissora alemã
clandestina: “Agente H21 chegado Madri engajado pelos franceses aportado Espanha pelos ingleses pede
dinheiro e instruções".
Depois de quarenta e oito horas, os franceses interceptaram a resposta que vinha de Berlin ao suposto
espião: “Voltar para a França e prosseguir missão. Receberá 5.000 francos”.
Diante das peculiaridades mencionadas na primeira mensagem, os franceses não tiveram dúvidas: esta
page 7 / 9
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
espiã só poderia ser Mata Hari. Então, ordenaram que ela saísse de Madri imediatamente e fosse a Paris
tratar com o Capitão Ladoux.
Cansada, foi a Paris disposta a pôr um fim em tudo. Mas, para sua surpresa, foi presa sob a acusação de
espionagem, colaboração e conivência com o inimigo.
A freira parou. A Senhora manteve-se atrás dela. O escuro corredor havia acabado. Agora, ao ar livre, viu
a luz do dia. Seus olhos doeram, mas o prazer de ver o Sol trouxe-lhe a felicidade dos gloriosos tempos.
Adiante havia um extenso gramado e mais além, um grupo fardado.
Dirigiram-se até lá. Primeiro a velha freira, depois a Senhora, seguida pelas jovens freiras. Agora, atrás de
todas, um cabisbaixo advogado.
Nem ele, nem ela, conformavam-se com a condenação. O único argumento do serviço de segurança era a
suposição de que ela havia se aproximado dos oficiais franceses para obter informações de guerra a fim
de levá-las ao inimigo alemão.
Ela considerava absurda esta falta de autoestima dos franceses. Porque era tão difícil entender que ela se
envolvia com eles por atração pelo poder ou por aventura apenas?
“— Ora, senhores, meu apreço por fardas vem de longa data, desde meu casamento com o Capitão
MacLeod. Não é obvio o interesse de uma bela dama por poderosos oficiais franceses?”.
Os franceses não se convenceram porque não viam a si próprios com bons olhos. Não se sentiam
atraentes, nem como homens nem, talvez, como nação.
No íntimo, para os julgadores pertencentes ao Conselho de Guerra Francês, ela correspondia à mulher
fatal que detinha o poder de descobrir na alcova os segredos guardados por homens desavisadamente
seduzidos. Explica-se, assim, porque aqueles senhores sentiam-se pessoalmente traídos por ela sem nunca
a terem visto.
Ao receber a sentença de morte, Mata Hari parou seus olhos nos olhos de Marianne, que estava, em
estátua de bronze, no centro da mesa julgadora do Conselho, representando a República Francesa e
lembrando aos cidadãos os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Esbravejou:
“— Impossível! A França que adorava minha beleza e admirava meu poder de sedução, agora, pelos
mesmos motivos, me condena à morte? Cortesã sim, mas espiã? Mariane, como dizia Napoleão, não sabe
que a História é um conjunto de mentiras sobre as quais se chegou a um acordo?”
Levada por guardas, deixou o tribunal gritando com a estátua.
A freira chacoalhou o braço da Senhora com força para que ela tomasse consciência do momento que
vivia e pudesse arrepender-se de todo o mal feito e alcançar o perdão divino.
A Senhora saiu do sonho que estava imersa e olhou para frente. Há três metros dela havia doze militares
page 8 / 9
Revista Tavola Online - http://nucleotavola.com.br/revista
armados. Não era um presente à outrora sedutora admiradora de oficiais, mas sua execução.
Ela soltou o cinto que fechava seu sobretudo.
O comandante colocou-se atrás do pelotão de fuzilamento juntamente com a velha freira, o advogado e as
freirinhas e iniciou a contagem:
Um: preparar.
Dois: apontar.
Neste momento, ela colocou ambas as mãos sobre o peito como se cobrisse seu coração.
Três: atirar.
Três... ela abriu o sobretudo recebendo em seu corpo branco e nu várias rajadas de tiros.
Naquele dia, em Java, o vulcão Semeru entrou em erupção e espalhou lava por todos os cantos. A Terra
estava enfurecida pela morte de uma de suas criaturas mais genuínas.
O que se soube, somente muito depois, foi que em Madri, no mesmo dia em que Mata Hari esteve
hospedada no Hotel Palace, no quarto ao lado ao seu, estava a verdadeira espiã, Marthe Richard, a agente
H21, a quem a mensagem interceptada se referia. Marthe morreu em 1982, com 92 anos, de complicações
cardíacas, em Paris.
Dizem que até hoje Mata Hari é vista, com vestes de dançarina, caminhando em Java, nos arredores do
Semeru, de mãos dadas a um menino pequeno...
*Tatiana Almeida D'Antonio de Souza psicanalista em formação pelo Núcleo Tavola Instituto de
formação e pesquisa em psicanálise
e-mail: [email protected]
_______________________________________________
PDF gerado por Kalin's PDF Creation Station
page 9 / 9
Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

Documentos relacionados