A lebre da Patagônia - Blog da Companhia das Letras

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A lebre da Patagônia - Blog da Companhia das Letras
claude lanzmann
A lebre
da Patagônia
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O novo primeiro-ministro respondeu rapidamente a meu
pedido e um encontro foi marcado em seu escritório de Jerusalém. Ficara combinado, fora isso, que o médico israelense tiraria
meu gesso naquele dia à noite. Begin não me decepcionou, tudo
correu conforme eu esperava, conforme minhas expectativas, e
ele adquiriu para sempre minha gratidão. Mas os detalhes e as
modalidades dessa nova ajuda tiveram de ser acertados com seus
conselheiros, em particular com Eliahu Ben Elissar, homem reservado e sem emoções, veterano do Mossad, primeiro embaixador de Israel no Egito, mais tarde em Paris, onde foi levado por
uma morte súbita. Para a ajuda que Israel estava disposto a me
dar, eu tinha de me comprometer a terminar o filme nos seguintes
dezoito meses e a que a duração não excedesse duas horas. Estava
tão longe do que eu sabia ser a realidade que fiquei como que
grogue, prometi e assinei tudo o que queriam. A soma que me
alocavam me permitiria dar continuidade às minhas pesquisas
mas sem iniciar a filmagem. Eu tinha a certeza interna de que
necessitaria de alguns anos para botar o ponto final no meu tra3
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balho e que o filme seria pelo menos quatro vezes mais longo do
que estava prescrito. Na verdade, eu vivia esse subsídio que me
concediam como uma condenação à morte do filme e me dizia,
conforme já pensara várias vezes antes, que não adiantava nada
me obstinar, que seria melhor largar tudo. Eu era o único a pressentir o que seria essa obra e me esfalfava tentando convencer os
burocratas, que ignoravam o cinema tanto quanto ignoravam a
shoah, a compartilhar ideias ainda opacas para mim mesmo como
se elas fossem claras. A trama de Shoah se desenhava sem precisão,
mas um filme como esse é uma aventura, que extravasa os limites
que se pretende lhe dar.
Eu estava mal, Angelika, que me acompanhara a Israel, me
persuadiu a descansar um pouco de modo a ter tempo para refletir e, antes de tudo, recuperar o uso do meu pé. Partimos para
Cesareia e sua magnífica praia de areia dura, ao longo da qual se
estendia um aqueduto romano por cujos arcos o mar se oferecia,
cintilante e tentador. Aqui e ali, entre os arcos, estacas tendo no
topo uma caveira ou tíbias cruzadas, legendadas em hebraico,
pareciam indicar um vago e incompreensível perigo. Apesar do
alerta que recebi na primeira noite em Gesher Haziv, não lhes dei
atenção. O tempo estava radiante, o mar naquele dia quase sem
ondas, embora as praias do Mediterrâneo oriental fossem reputadas como um paraíso para os surfistas. Entrei com precaução na
água, poupando meu pé sem força, e assim que pude fui entrando
no mar cada vez mais vigorosamente. Ir para o fundo, perpendicularmente à praia, em vez de seguir seu contorno, sempre foi
assim que nadei e teria sido minha divisa se o nascimento me
houvesse gratificado com um brasão onde inscrevê-la. Sou bom
nadador, minha braçada era eficaz e eu me dizia que o médico
israelense tinha razão: com esse tratamento, logo recuperaria a
musculatura. No entanto, afastar-me da praia como eu fazia era
loucamente imprudente. Devo ter dado umas cinquenta braça4
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das, vinte já teriam sido muito. Tratei de voltar, o sol estava a pino,
as areias brilhantes, claramente recortadas, eu nadava, pareceume que elas não se aproximavam. Nadei mais forte, mais firme, e
de repente me dei conta de que era exatamente o contrário que
acontecia: a praia se afastava. Nesse instante da tomada de consciência, tudo se consuma e se cristaliza num clarão: a silhueta de
Angelika, de pé à beira d’água, que me olha, já razoavelmente
preocupada, o sol que me cega por momentos, marolas ou ondas
de verdade que mascaram a praia de maneira intermitente e, acima de tudo, reunindo num só sentido esses sinais ainda disparatados, o cansaço. Ele me domina. Não aguento mais, meu pé dói,
compreendo que não vou conseguir alcançar a praia, voltar. Começo a gritar, peço socorro, faço gestos com os dois braços para
que Angelika, longíssimo e pequenina agora, me aviste e eu a adivinho correndo desesperada para a direita, para a esquerda, naquela praia deserta. Lembro que não havia vivalma quando entrei
no mar, ela não sabe nadar direito e não pode fazer nada por mim,
era preciso um barco. É a irrupção da tragédia em pleno sol, continuo nadando fracamente, engulo a água salgadíssima que me
sufoca. E, de repente, uma voz próxima, a estibordo, me interpela
em inglês. O homem que fala comigo e que percebo através da
cortina de respingos das ondas, é um louro grandão, alertado por
Angelika. Mas minha alegria dura pouco, ele mesmo já parece
estar esgotado e me diz: “I am not a good swimmer, but I will try to
help you”.* Põe-se atrás de mim e começa a me dar porradas nas
costas para me obrigar a avançar. Sei que não é um bom método,
ele próprio sabe disso e também que se cansa mais ainda, desiste
quase em seguida: “I am very sorry, but I have to leave you, I have
my wife and my little son on the beach, I am not even sure to succed
* “Não sou um bom nadador, mas vou tentar ajudá-lo.” (N. T.)
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to return. Good bye, forgive me”.* Ele desaparece como havia
aparecido.
Não há mais praia, não há mais sol, estou meio cego pelo sal,
sufoco com frequência, parei de resistir, tenho de morrer. Estranhamente me acalmo e considero a morte por asfixia não como
um fim, mas como uma passagem, um mau momento, um péssimo momento a passar, depois do qual poderei de novo respirar a
pleno pulmão, livremente, grandes lufadas de ar puro; um estreito,
um desfiladeiro, o buraco de uma agulha: do outro lado, a vida
recomeçaria. Espero a morte, portanto, não me mexo mais, não
nado mais, boio de costas, deixo-me levar, não perdi a consciência.
Porém mais uma voz, outra voz, voz clara, sotaque inglês perfeito,
me interpela bruscamente às minhas costas: “What is your name?”.
Respondo. Depois: “What is your first name?”. “Claude, I will try to
rescue you. Can you help me?” Respondo: “Yes, I think so”. “Move
your legs... Move your arms... O.k., you will help me with your
legs.”** Senti-me então firmemente agarrado pelas axilas, arrastado não para a praia mas para alto-mar. Sua voz imperiosa de profissional me ordenou que o ajudasse fazendo de costas com as
pernas o movimento do nado de peito. Yossi — era o nome do
meu salvador — nos fez descrever um enorme arco, ir ao largo,
depois voltar para a praia, porém muito mais longe, onde as correntes traiçoeiras não existem, onde eu deveria ter nadado se conhecesse Cesareia. Levou quase duas horas para me rebocar até a
praia. Se eu não tivesse podido ajudá-lo, ele teria me nocauteado,
confiou-me mais tarde: é mais fácil arrastar um corpo inerte do
* “Eu sinto muito, mas tenho de deixá-lo, minha mulher e meu filho pequeno
estão na praia. Não tenho nem certeza se conseguirei voltar. Adeus, me perdoe.”
(N. T.)
** “Qual é seu nome? Seu primeiro nome? Claude, eu vou tentar salvá-lo. Você
pode me ajudar?” “Sim, acho que sim.” “Mexa suas pernas... Mexa seus braços...
O.k., você vai me ajudar com suas pernas.” (N. T.)
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que um vivo em pânico. Estudante de direito em Tel Aviv, natural
de um moshav próximo fundado por judeus marroquinos, onde
passava os fins de semana com os pais, Yossi Ben Shettrit, salva-vidas profissional diplomado, era, com o louro grandão, a única
pessoa na praia de Cesareia naquele dia, e o milagre foi Angelika
tê-lo encontrado. No domingo anterior, exatamente no mesmo
lugar, o embaixador da Inglaterra se afogara e Yossi, chamado
tarde demais, só trouxe para a praia seu cadáver. Seis empregados
do hotel Dan Cesarea haviam perecido ali no espaço de seis meses.
Yossi mandou me levar, assim que pisamos em terra, para uma
enfermaria, a fim de se certificarem de que eu não tinha água nos
pulmões. Tudo estava bem e o louro grandão — que ele me perdoe
por não o chamar de outro modo, não pude gravar seu nome —,
depois de um longo desvio, havia voltado, exausto, para junto da
mulher e do filhinho.
Convidei meus dois salvadores para jantar no dia seguinte e
manifestei a eles uma gratidão que não sentia verdadeiramente.
Viver não me fazia dar pulinhos de alegria e, repensando hoje
nesse estranho episódio, digo-me que flertei voluntariamente com
a morte, a tal ponto os compromissos firmados com Ben Elissar e
Israel me pareciam impossíveis de ser cumpridos. Estávamos em
1977, Shoah seria concluído somente oito anos depois e eu sabia
que teria de mentir um ano depois do outro para os que me ajudassem, israelenses, franceses, governos ou particulares, ricos,
menos ricos e até pobres. Mentir para mim também, mentir a
mim mesmo, porque eu precisava de esperança para continuar. Eu
me dizia “ano que vem”, como se diz, na expectativa messiânica,
“ano que vem em Jerusalém”, perfeitamente consciente no entanto
de que eu nos contava lorotas, que eu seria inflexível e só obedeceria à minha lei. Shoah foi uma interminável corrida de revezamento: os que me apoiavam por um tempo abandonavam depois, eu
tinha de convencer outros, que pegavam por sua vez o bastão, de7
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pois mais outros, até o fim — depois do fim, inclusive, já que, terminado o filme, não havia dinheiro para pagar a primeira cópia.
Quando me questionam sobre a maneira como Shoah foi realizado, às vezes respondo: “Se tivessem me dito ‘o filme tem de estar
pronto em tal data, senão cortamos sua cabeça’, eu teria sido decapitado”, apesar do horror que, como vimos, essa forma de execução me inspira. Mas na verdade foi o que aconteceu na sala de Ben
Elissar. Ainda que nenhuma alusão tenha sido feita à guilhotina,
em todo caso foi assim que vivi a coisa. No entanto não cedi em
nada nem a ninguém, minha única regra foi a exigência interna do
filme, o que ele me ordenava. Fui senhor do tempo, e é certamente
disso que mais me orgulho. Releio-me: estas duas últimas frases
soam linda e pacatamente hoje em dia, mas sou o único a ter levado esse fardo de angústia, o único a saber o que me custaram essas
mentiras, juramentos e falsas promessas. Eu era como o Estado de
Israel com seus imigrantes. Quantas vezes, durante as dores do
parto do filme, medi com um pavor incrédulo, como que despertado subitamente e chamado à razão, que dois anos, quatro, cinco,
sete, nove, dez anos já tinham escoado? Afinal de contas, como
todos sabem, não traí ninguém: Shoah existe como tinha de existir.
Ein brera, é outra fórmula israelense para significar que não há
outra opção.
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Claude Lanzmann nasceu em 1925, em Paris. Antes dos vinte
anos já combatia nas fileiras da resistência ao nazismo. Cineasta
e jornalista, dirige há décadas a famosa revista Les Temps Modernes.
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[2011]
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