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#09 | novembro 2015
distribuição on-line gratuita
Editorial 3
Lista de autores publicados 68
Créditos e contato 69
Julia de
Souza
Thiago
Ponce de
Moraes
Miriam
Adelman
Marcos
Vinícius
Almeida
Lucas
Perito
31
Carla
Kinzo
36
Marcia
Pfleger
Matheus
Hatschbach
Jimena Arnolfi
em tradução de
ensaio
fotográfico de
57
63
5
20
41
10
52
14
Lubi
Prates
Vanessa
Carvalho
a imagem de capa e as
fotos ao longo da edição
são de Marcel Fernandes
N
ove.
Abrimos o editorial escrevendo um número por
extenso, assim como quem olha o tanto de caminho
que já ficou para trás. Talvez (certamente, aliás) já te-
nhamos usado essa metáfora da estrada várias vezes,
mas somos viajantes deslumbrados, desculpem.
Nesta edição, carregamos mais um pouquinho nas
mochilas. Trazemos presentes de poetas, contistas,
tradutores e fotógrafos gentis em dividirem conosco
impressões de suas próprias viagens.
Já houve quem perguntou o porquê de nunca falarmos muito sobre os materiais aqui. Pode parecer
desculpa, mas deixamos que falem por si nas próximas páginas. São vozes lindas.
Por fim, o que não pode ser ignorado: lançamos
esta nona edição em meio a tragédias. Calaram-se
tantas vozes. Calaram-se pessoas, calaram-se animais,
calou-se um rio. Calou-se Mariana, Paris, o mundo. E
tantos e tantos mais têm sido calados. Que não se cale
a razão.
os editores
Julia de Souza
[díptico]: um
artista precisa
de problemas
concretos
Ele chegou
Ele disse que os artistas não podiam ser
famosos. Ela disse que podiam. Mas não
deviam. Ela disse isso para discordar. Ele
disse os poetas, então. Não existem poetas famosos. Ela disse existem. Arrã, ele
com cheiro de cerve-
disse. Ela perguntou da sua vida. Da vida
ja. Ela fez chá. Ele disse que sua casa era
que ele tinha deixado para trás. Ele res-
bonita. E que gostava muito de hoteis. To-
pondeu sem querer e depois disse vamos
alhas limpas, muitas tolhas, sempre ali,
falar de você. Ele disse que ela fazia mui-
à mão. Ela concordou, falou dos lençois
tas perguntas. Perguntas demais. Ele dis-
brancos e sempre esticados. Ela não po-
se que gostava de estar distraído. Disse
dia ter concordado, não devia. Falaram
que se alguém chega perto demais, blo-
do dia, de como tinha sido o dia de cada
queia sua visão. E assim não se pode es-
um. Ela tinha tido um dia cheio. Ele tinha
tar distraído. Ele disse que era tudo uma
tido um dia de artista. Um dia improdu-
questão de perspectiva. Um artista preci-
tivo como deve ser o dia de um artista. Ele
sa ver o mundo, caso contrário, não exis-
contou de suas andanças e dos hoteis que
te. Ele disse que gostava de tudo, do im-
conheceu. Nem sempre eram hoteis, às
pressionismo, do modernismo, do poema
vezes eram albergues pulguentos em Chi-
concreto. De tudo. Que tudo no mundo
natown. Ela perguntou se ele era famoso.
era muito parecido. Ela foi irônica e disse
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você poderia me dar uma aula de perspectiva. De Renascença.
deviam. Eu disse isso para discordar. Ele disse os poetas, então.
De tudo. Ela não foi irônica. Ela pensou no verso do Drummond
Não existem poetas famosos. Eu disse existem. Arrã, ele disse. Eu
como são tristes as coisas quando consideradas sem ênfase. Ela
perguntei da sua vida. Da vida que ele tinha deixado para trás.
pensou mas não disse. Ela devia ter dito. Ela devia ter admitido
Ele respondeu sem querer e depois disse vamos falar de você. Ele
que roubou esse verso uma vez porque ele tem tudo a ver com
disse que eu fazia muitas perguntas. Perguntas demais. Ele disse
desejo, com a falta de desejo. Mas dizer a palavra desejo seria
que gostava de estar distraído. Disse que se alguém chega perto
demais. Seria demais falar de desejo, mesmo que fosse para fa-
demais, bloqueia sua visão. E assim não se pode estar distraído.
lar na falta dele. Certas palavras não devem ser ditas. Não a pro-
Ele disse que era tudo uma questão de perspectiva. Um artista
nuncie. Ele poderia ter dito isso. Porque bloqueiam a visão. Ela
precisa ver o mundo, caso contrário, não existe. Ele disse que
não se lembra dos detalhes. Não se lembra que roupa ele usava
gostava de tudo, do impressionismo, do modernismo, do poema
ou a cor da sua camisa. O desejo bloqueou sua visão. Lembra
concreto. De tudo. Que tudo no mundo era muito parecido. Eu
apenas que ele chegou, passou duas horas sentado em seu sofá,
fui irônica e disse você poderia me dar uma aula de perspectiva.
e foi embora. E que tinha gestos ambíguos, que eram pontes
De Renascença. De tudo. Eu não fui irônica. Eu pensei no verso
nunca atravessadas, que eram movimentos para frente e para
do Drummond como são tristes as coisas quando consideradas
trás, que repeliam qualquer coincidência, como quem não quer
sem ênfase. Eu pensei mas não disse. Eu devia ter dito. Eu devia
chegar nunca ao fim do poema.
ter admitido que roubei esse verso uma vez porque ele tem tudo
***
Ele chegou
a ver com desejo, com a falta de desejo. Mas dizer a palavra desejo seria demais. Seria demais falar de desejo, mesmo que foscom cheiro de cerveja. Eu fiz chá. Ele dis-
se para falar na falta dele. Certas palavras não devem ser ditas.
se que minha casa era bonita. E que gostava muito de hoteis.
Não a pronuncie. Ele poderia ter dito isso. Porque bloqueiam a
Toalhas limpas, muitas tolhas, sempre ali, à mão. Eu concordei,
visão. Eu não me lembro dos detalhes. Não me lembro que rou-
falei dos lençois brancos e sempre esticados. Eu não podia ter
pa ele usava ou a cor da sua camisa. O desejo bloqueou minha
concordado, não devia. Falamos do dia, de como tinha sido o
visão. Lembro apenas que ele chegou, passou duas horas senta-
dia de cada um. Eu tinha tido um dia cheio. Ele tinha tido um
do em meu sofá, e foi embora. E que tinha gestos ambíguos, que
dia de artista. Um dia improdutivo como deve ser o dia de um
eram pontes nunca atravessadas, que eram movimentos para
artista. Ele contou de suas andanças e dos hoteis que conheceu.
frente e para trás, que repeliam qualquer coincidência, como
Nem sempre eram hoteis, às vezes eram albergues pulguentos
quem não quer chegar nunca ao fim do poema.
em Chinatown. Eu perguntei se ele era famoso. Ele disse que os
artistas não podiam ser famosos. Eu disse que podiam. Mas não
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privilégio
esse ano farei cinco anos em um ele disse quem fica parado morre lembre é preciso matar
um leão por dia e há leões de cinco cabeças ele disse cinco cabeças em um leão ele disse engole o
choro isso é coisa da sua cabecinha você é um homem ou um animal para de olhar as nuvens para
de olhar o chão para de ler poesia chuva de estrelas cadentes não há não vai correr a maratona
se não o bicho come esquece o dorso fraturado do tigre ele disse um pouco de suor não faz mal
imagine conselho bom não sai de graça mas hoje estou de bem com o mundo não há de quê mas
por favor sai sai sai desse vão de escada vê só esse pé direito que privilégio e você aí debaixo desse
vão de escada.
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dois sonhos maus ou
autobiografia
chegavam todas as noites. Pulavam o portão
II.
Está ela ainda criança no banco de trás de um automóvel
da casa e iam a seu quarto violá-la enquanto dormia. O estupro
de passeio. Nos bancos da frente, seu pai e sua mãe – não há
tinha o único objetivo de contaminá-la com o vírus da Aids. De-
regra quanto a qual dos dois é o motorista, eles se revezam ar-
pois de algumas tentativas fracassadas, disseram ter finalmente
bitrariamente. De repente, os bancos da frente se esvaziam: não
conseguido transmitir a doença. Os ninjas não eram verdadei-
há mais pai nem mãe, não há mais um condutor no automóvel,
ros ninjas, isso se sabia, mas vestiam-se como tais, todos de pre-
que assim mesmo segue rodando pela cidade. Ela não possui
to e com gorros que deixavam só os olhos de fora. Havia mulhe-
meios de saber qual será a rota escolhida pelo carro autômato, e
res no bando. Quando soube que estava contaminada, resolveu
tampouco qual o destino final. Ela sente um desespero estranho
tomar providências. Foi a um posto de saúde, que mais parecia
e abafado, mas se mantém calada e sem cinto-de-segurança: da
um laboratório ou um centro veterinário. Contou o ocorrido à
janela vê a cidade familiar se transformar aos poucos em uma
mulher do balcão e ela imediatamente lhe ofereceu um antído-
paisagem que é sempre nova.
I.
Os ninjas
to. Uma só dose que reverteria de pronto a contaminação, mas
a deixaria careca.
Julia de Souza tem 28 anos, nasceu e vive em São Paulo. Formou-se em
Letras pela USP, onde atualmente desenvolve pesquisa de mestrado sobre a prosa de Hilda Hilst. Em 2013 lançou seu primeiro livro de poemas,
Covil, pela editora 7Letras. Publicou poemas em diversas revistas, como
Piauí e Pessoa e também o conto “Moinho” pelo selo digital Formas Breves.
Trabalha como preparadora de texto para algumas editoras.
8
Thiago Ponce
de Moraes
olho
pela janela através do vidro baço
o escuro da noite a estender seu limiar
para aqui e adiante sua caligrafia torpe enquanto
tenciono escrever a pressa os gestos da mudança
no que vejo e risco algumas coisas outras
deixo ao papel estrelas estelas cheias de inscrições
enquanto tenciono esta caligrafia baça este vidro fino torpe
tenciono escurecer a noite e suas pequenas janelas de luz pontos até o limiar
até a fúria com que vejo o aqui e o adiante a se aproximar
a fúria em que arrisco não mais ser mas escurecer
ou escapar às pressas com a caligrafia
que o esforço ruidosamente espessa
com a caligrafia que esgarço para
pela janela escrever seus riscos luzes sua fúria
escura tormenta a avançar a noite o risco as estrelas
aqui enquanto algumas coisas esqueço
outras vidros gestos noites adiante
cesso
traço
teço
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Quando balbucias tuas sílabas
E eu te devolvo a noite,
Estás em minha boca e tua língua
É minha língua.
Quando fremem os teus lábios
E eu os toco com a carne,
Estou já sobre teu corpo e teu corpo
É meu corpo.
Quando impera o silêncio
E meus olhos os teus tão perto,
Estamos juntos entre as pernas, existimos,
Somos nossos.
Meu olho se abre como ferida,
Abre-se como tua boca incerta,
Porto íntimo em tua fronte.
Abre-se em falhas e lágrimas,
Abre-se em fenda, chaga impossível,
Abre-se de tua cicatriz, como um livro,
Abre-se como tuas pernas
Que me apertam inconsútil
Até que cedo e me achego cego
Em derradeiro afã
À fonte que ao se dar
Me suga por completo,
Que me sutura vivo
Da noite até de manhã cedo.
11
As cores mudam
Nos céus acima de nossas cabeças
Mudam
As estrelas e
A maneira pela qual
Emitem luz
Muda
O que víamos e o que vemos
Nos fissura
Nos sentimos
Nos tocamos
Passado e promessa
As campanas
Se encontram
Nossas trompas
Entre as coxas
Aqui
Nossa música
Enquanto
Sob um timbre de arrepios
Mudos
O agora
Vigora
Thiago Ponce de Moraes é poeta e tradutor. Publicou os livros de poemas Imp. (Caetés, 2006) e De gestos lassos ou nenhuns
(Lumme Editor, 2010), além do livro de ensaios Remos e Versões (Multifoco, 2012) e Agora sim... talvez seja eu e mais alguém:
específica experiência da leitura de Paul Celan e Ricardo Reis (NEA, 2014). Faz parte do Conselho Editorial da Revista de Poesia e
Debates – Zunái e foi editor da Revista Confraria de Literatura e Arte. Atualmente, é doutorando em Literatura Comparada
na Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor no Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). As peças aqui publicadas
fazem parte de seções distintas de sua terceira compilação de poemas: Dobres sobre a luz. No ano de 2015, participa de dois
festivais: 31º Festival Internacional de Poesia de Tróis-Rivières (Canadá) e XX Encontro Internacional de Escritores (México).
12
Miriam
Adelman
Vida Virtual
Desça do preto e branco
ônibus da vida. Aqui você,
não importa quem for
nem para onde ia, terá seu
lugar para brilhar, aquela foto
a cores que encontrou seu melhor
ângulo, apagou a inadequada sombra,
e poderá ser visto –
enquanto a página não rolar
muito para baixo, e se
as configurações permitirem –
por um navegante solitário
em Beijing ou na Croácia,
esse pequeno sorriso seu que será
para alguém, o mais intrigante
mistério.
14
Expectativa
Quando chegar a primavera
não irei me surpreender
com o sol repentino
ou tua mão fria
posando na minha nuca.
Nas estradas que um dia
amanheceram brancas
haverá apenas a esperança
sutil
de um calor que dure mais um pouco
de cores pequenas que despontem
do jasmim ou dos juncos que crescerão
na terra molhada,
e eu terei mudado em alguma coisa
desde o lugar onde hibernei
com meus ursos mansos
no oco de uma árvore, apenas sugando
amoras doces e alguns cenas da vida,
e se por acaso houver alguma
aprendizagem,
será apenas das mais simples, com
as patas no barro escuro e fresco,
sabendo das chuvas e dos caminhos
enganosamente infinitos.
15
Só quis
Só quis estar no mundo.
Era muito simples.
Ouvir muitas línguas,
olhar nos olhos
pegar um trem ou andar no vento,
ou até num grande navio que
- se navegasse para uma ilha
de promessas de cor esmeralda, eu iria mas se afundasse, também ia
dar as últimas braçadas e
entregar-me as salgadas ondas
por não querer para mim
o triste destino
de sobrevivente.
Algum segredo procurava
mas sabia que eram todos mentira,
que a chave era apenas o mais simples
repetido de outra maneira
com ar de interessante ou triste
como passar uns dias de pão e água.
Qual a raiz e o quê é supérfluo?
Há apenas a busca, apenas a esperança
Fresco
Clamava pelo pai
mas foi a mãe que veio.
As muralhas da cidade
pintadas de vermelho-sangue.
Cenas de destruição em toda parte
famílias engolindo
sua última cena, um campo regado
a ossos de javali e codorniz,
jarras que o inimigo despedaçou
e todo sobre um mesmo chão
(isto foi antes que inventaram
perspectiva).
Finalmente, a visão:
um escuro corredor em caracol
e um só átrio,
banhado em luz.
que o gesto conte.
16
Fábula III, ou “as formas da coragem”.
Para Joyce, Hettie e Diane. E para as que vêm chegando...
Era apenas uma menina
e o mundo, um lugar lotado
de criaturas com sonhos baratos.
Pegava todos os dias, de manhã
o bonde que descia a ladeira,
ela via figuras
seu coração dando saltos no ponto
dançando na água ou nas chamas
onde a curva sugeria uma fuga
da noite e sabia que
onde a mão do condutor podia
em algum lugar o caminho bifurcava
vacilar por um instante e perder
e seria só o rumo que ela conseguisse
o rumo.
vislumbrar quando todo mundo parasse
Noitezinha, na hora da sopa
de lhe falar, de lhe indicar com
a mãe chamava
as mãos ou apontar com os dedos
para ela colocar na mesa
o enferrujado dever, ou quando ela
os pratos azuis, os guardanapos de pano
não mais escutasse.
amarelados, as grandes colheres,
Os meninos pulavam
e ela obedecia,
os vagões do trem ou as
mansinha, as unhas de esmalte
ondas mais altas, e o tempo todo ela
de uma semana
sabia que isso não era para ela
guardando seu segredo escarlate.
porque não era longe o suficiente
Quando lá fora chovia, como de
ou talvez porque ser
costume, gotas misturando-se com
poeira e através da janela suja
todas as formas
alongavam-se, encurtavam-se,
apenas uma triste
fêmea da espécie
não lhe permitisse um lugar
entre os que desafiavam
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os mares, a Bruxa de Novembro
ou o Chinook. Enquanto isso
os garotos saiam e voltavam à casa.
Ela ouvia suas histórias e percebia
como esticavam suas meia-verdades
sobre a bruma, as baleias, os
adversários com suas espadas,
ou as armas comuns do bandido
da esquina.
Dançava sozinha frente ao espelho,
diante dos escuros olhos ciganos,
examinando a curva dos seus braços,
o quadril que se alargava, os
Miriam
Adelman,
nas-
cida nos EUA, mora em
Curitiba desde 1991. É professora da UFPR, da área
de sociologia, desde 1992,
e hoje atua também como
pequenos seios que endureciam sob
um fino tecido, as pernas que embora
curtas pudessem carregá-la muitas milhas.
Sentia então um estranho tipo
de medo-coragem
professora da pós-gradu-
que lhe dizia coisas inteligíveis:
ação de Letras dessa ins-
que poderia dormir ao relento,
tituição. Além dos traba-
construir um provisório
lhos acadêmicos, escreve
crônica e poesia, e se dedica à tradução (acadêmica
abrigo, aprender as línguas de
humanos e tigres, ser nômade
e literária). Um dos seus
como qualquer uma
projetos em andamento
ou como nenhum outro.
diz respeito ao estudo e
tradução das escritoras da
Geração Beat, ainda pouco
And then she went...
conhecidas no Brasil.
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Marcos
Vinícius
Almeida
Folia
Era tempo de frio e o pai gostava de ver os velhos tocando.
Primeiro a missa, depois a cachaça. O padre leu o Eclesiastes e falou do mundo. De ponta-cabeça — dias contados —,
fim de tudo. Os velhos subiram na carroceria do caminhão e
começaram.
João lambuzava a boca na canjica. Viu o padre encostar no
balcão da barraca de lona e virar meio copo e morder uma lasca de churrasco. E homens fedendo a quentão passando. Olhos
de brasa. Apertavam as ancas das mulheres que riam, girando, ali de frente do palco. O churrasquinho chiando na chapa
e as crianças lá na frente tacando copos descartáveis na fogueira. Cacos de brasa avançavam no rumo do céu, num riscado. E
sumiam.
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Vamos lá perto, perguntou para a mãe se podia.
Leva, disse o pai, sem desviar os olhos dos velhos na carroceria do mercedão amarelo.
escalaram um riscado vermelho. E apagaram.
Os moleques ali pouco falavam. Corriam, pegavam e jogavam.
João ia andando, meio a esmo. Queria outra coisa, alguma
A mãe pegou a mão do menino e foi no rumo do fogo. Os
coisa grande. Só parou quando viu um galho caído, enroscado
tocos de lenha bem maiores que aqueles que usavam em casa.
no canteiro. Pegou o galho e tentou puxar, mas não conseguiu da
Eucalipto, a mãe explicou. D. Joana e d. Rosalvina também olha-
primeira vez. Culpa dos braços miúdos e finos. Soltou e encarou
vam o fogo. Falavam que naquele tempo a fogueira era maior.
as coisas, procurando um jeito. Precisa comer mais tutano, o pai
Tinha mais gente. Naquele tempo era melhor.
sempre dizia. Puxou outra vez, com força, mas pouco adiantou.
Naquele tempo era como um lugar, donde as pessoas tinham
Foi aí que Irís e Rafinha chegaram. Agora vai dar. Agora é fácil.
sido empurradas. Sempre tinha alguém falando naquele tem-
O galho deu um estalo. E as folhas verdes chiavam enquanto
po em tom contrariado — à maneira dos desterrados, há muito
arrastavam. O pai não gosta de folia. Os outros moleques come-
exilados, há muito tempo longe de casa.
çaram a gritar. E se amontoaram feito procissão de Sexta-Feira
Os moleques catavam tudo o que fosse e atiravam no fogo.
Santa: misto de enterro e festa — arrastando um santo de gesso
Uns faziam feixes com espetinhos de churrasco. Outros joga-
ou célebre cadáver falso. Os moleques batiam na rabeira do ga-
vam latinhas e garrafas pet. A maioria, copos descartáveis. Res-
lho. Chutavam. E todo mundo olhava. Perto da fogueira, como
tos de guardanapo sujo.
se tivessem treinado antes, fizeram uma manobra e jogaram o
Podia ir mais perto? Igual aos outros?
galho lá dentro, de uma veizada. Espirrou um chumaço de fa-
Perigoso.
ísca. Sob os estalos da folhagem verde, a coluna crescia em go-
Mas então passava o Rafinha, Baiano, Bareta, todo mundo jo-
mos, cada vez mais fartos. Que cabeça! Onde já se viu? Crescia
gando latas de cerveja na fogueira.
no rumo da rua, mas depois foi virando, virando na direção do
Igual aos outros?
mercedão amarelo. Fumaça não pensa, mas era quase isso. A co-
A mãe olhou para trás e disse sim. Só um pouquinho. João
luna se deitou de uma pancada sobre os velhos.
soltou da mão dela e correu. Andou ao redor da fogueira, olhando as línguas tremulando pontudas. E como eram grandes as
***
brasas. Igual gelo de fogo. Brasa era gelo de fogo. Tirou a blu-
A lavareda que subia na trempe do fogão tinha diminuído.
sa e amarrou na cintura. Se chegasse mais perto, ia derreter o
Palha e sabugos consumidos. João achou melhor ajeitar o fogo.
rosto igual aquela cabeça de boneca velha que jogou no fogão
Pegou um toco de lenha, mas devolveu no lugar. Precisava esco-
uma vez. Viu uma latinha no chão. Mirou no meio da fogueira
lher direito. Precisava de um toco melhor. Pegou outro. Virou o
e jogou. A latinha bateu no toco e a fogueira cuspiu faíscas que
toco no fogo e foi se sentar no rabo do fogão.
21
O pai entrou logo depois. Passou direto para a pia levando
de quem tivesse passado do serviço direto para o balcão. Cum-
a vasilha cheia de mandioca fresca, ainda suja de terra. Foi no
primentou o pai e disse que fazia muito tempo. E o pai disse que
rumo do fogo. João só olhou. Só olhou como se já soubesse. O pai
fazia tempo demais. O homem de barba amarela tinha as per-
sacudiu a cabeça, não é certo. E puxou o toco de lenha e mostrou
nas moles e um copo amassado na mão. Passou a mão na cabeça
que não pode enfiar as costas do pau no fogo. Não é certo. Levou
de João. E da última vez que tinha visto o rapazinho, o rapazi-
lá fora, bateu a brasa. Voltou com o toco virado — do jeito certo.
nho era um cisco de gente. Cabia na palma da mão. E mais uma
E enfiou na boca do fogo.
vez o homem disse que fazia muito tempo. E mais uma vez o pai
disse que fazia mesmo tempo demais.
Por quê?, João perguntou.
Zanga com a vida, disse o pai.
***
Tempo é doido, disse a mãe.
Só aí o pai perguntou como ia o Toninho Esperança, primo
do homem de barba amarela. E aquele nome mudou a cara do
Nada mais do que a faísca de um impulso arrastou os três
homem de barba amarela. Bebeu um gole e disse que tinha
bons samaritanos, praticamente juntos — impelidos por neces-
acontecido desgraça demais, mas que agora ele tinha achado
sidade de ordem, embora não muito conscientes disso —, ar-
sossego. Toninho Esperança tinha ido levar uma imagem de São
rastavam o galho para fora da fogueira, para fora da praça, só
Jorge para d. Maria do Bilé reformar. Era uma surpresa para a
que não sem resistência. Iam sob a zombaria de meia dúzia de
mulher, devota do santo. Toninho Esperança vinha a cavalo no
moleques — distribuindo chutes secos, gritando — na rabeira
rumo do Estreito, com o santo embrulhado num saco. Na altura
do galho. E foi a sanfona a voltar primeiro, depois a viola. Já ha-
da porteira, onde tem um grande descampado, foi atingido por
via música outra vez. Mas aquilo resistia no ar, enfraquecida,
um relâmpago. O raio estourou na testa do cavalo e o Toninho
diante do palco e dissipando-se à maneira das horas de espera.
Esperança voou no chão. E o cavalo veio por cima. Das pernas. O
Tão insistente quanto o fígado e a alegria daqueles homens e
diabo. Partiu os ossos. E foram umas doze horas caído até o dia
seus copos, olhos de brasa, atarracados à cintura das mulheres.
seguinte, já que ninguém passava por lá. Do santo não sobrou
Gargalhavam, giravam — imunes àqueles que arrastavam o ga-
nem o caco. Abriram o saco e era uma farinha só. O ar ainda
lho. Homens bons. Sérios. E, a certa altura, apenas três vultos
fedia pelo sapecado. E o doutor constatou que as pernas do Toni-
recortados sob a dobra de uma esquina, largando um rastro de
nho Esperança tinham apodrecido. Não cortasse fora, Toninho
fumaça no ar.
Esperança ia morrer. Depois que acordou, Toninho Esperança
Tudo doido, disse a mãe.
parou de falar. Todo mundo na expectativa e esperando uma
Então apareceu um sujeito da barba amarelada, exalando
piada, uma frase embolada e retorcida, igual esse povo que en-
quentão, com um chapéu na cabeça. Tinha na roupa a sujeira
torta a cara e enrola a língua. Mas não. Nenhum gemido. Nada.
22
Em casa, ele ficava só no quarto. Não queria comer e era indife-
mesmo no chão — lugar de bicho de sangue ruim. Bicho de san-
rente a visita. Não tiveram jeito de pagar ninguém para ajudar,
gue frio. Mas é preciso muito esforço para alimentar um senti-
e só havia a mulher. Falava-se muito da coragem dos parentes
mento. No ódio carece de cuidar tanto quanto de amor. Às vezes,
da mulher, de como os Oliveira tinham se erguido naquelas
até mais. E as necessidades práticas da lida com o irmão eram
terras do nada. Igual peste. Seu bisavô Oliveirinha foi um dos
tantas, que ele não teve escolha, sentenciou a mulher ao esque-
primeiros a chegar àquelas terras, a destocar aqueles pastos to-
cimento. E mesmo quando a encontrou no mercado, atarraca-
dos na mão, abrir caminho na enxada e cavar poço da largura
da com um mulatinho mais novo que ela, o homem de barba
de rio. Mas não. Ela era diferente do povo dela. No começo, era
amarela sentiu pena daquela desgraçada. O homem de barba
comum ver a moça cantar na beira do tanque, ou disparar uma
amarela coçou a barba e bebeu mais um gole. Olhou os homens
gargalhada depois que um prato se espatifava no chão. Pelejava
no mercedão, antes de continuar. A família se reuniu. E depois
para o Toninho Esperança tomar banho, cortar o cabelo e trocar
de muita discussão, ficou decidido que eles iam fazer uma es-
as fraldas. Mas a dureza do homem era doutra natureza. Uma
cala. Cada dia era um. No começo deu certo, dia sim, dia não.
fé ao contrário. E ela não aguentou as birras, a falta de força do
Mas mesmo assim era custoso demais. Nem todo mundo tinha
marido, entregue a um mundo só dele. Ela mesma ia se con-
paciência e jeito com a coisa. E cada um tinha seus próprios pro-
taminando daquela tristeza, ia amuando também. Foi embora
blemas. Era isso ou aquilo. A própria vida já é um pecado dana-
morar de novo na casa dos pais. O homem de barba amarela
do pra ajeitar. E no fim das contas o homem de barba amarela
tentou muitas vezes falar com a mulher. Convencer a mulher
ficou sozinho. E sozinho ele não dava conta de trocar fraldas e
que não era direito abandonar. Fosse de modo contrário, Toni-
forçar Toninho Esperança a comer uma sopinha de fubá que
nho Esperança não arredava. Esperanças. Nada adiantou. A mu-
fosse. Tinha de trabalhar. E minha mulher tava de saco cheio
lher repetia que só ela entendia a realidade da situação. Estava
dessa coisa de dormir longe de casa, disse o homem de barba
ali todo dia. Na visita, é fácil julgar. E não tinha como garantir,
amarela, antes de beber um gole. O resto da família nem liga-
só na ideia, que o Toninho Esperança não fizesse igual. Só na
va. Aproveitavam da boa vontade dele. Era um bobão. E real-
ideia é fácil. Só na ideia é mentira. Na ideia todo mundo é bom.
mente era complicado aguentar aquilo tudo sozinho. Por que
É quando o calo dói dia por outro que a gente compreende — e
não fazia igual aos outros? Se pelo menos o Toninho Esperança
muda. Fez o que fez. E nada além. Era livre. Tinha que tocar a
reagisse, xingasse, praguejasse contra Deus ou seja lá o que fos-
vida. Mas a culpa não é dele, o homem de barba amarela tentou
se. Se tivesse pelo menos raiva da vida e da mulher. Sei lá. Mas
explicar. E a mulher riu: onde cai desgraça, há culpa. E bateu a
não. Toninho Esperança só calava. Então ele chegou defronte de
porta da casa. O homem de barba amarela sonhou por uns dias
Toninho Esperança munido de ameaças. Ameaças de verdade.
em furar o bucho da mulher. Furar e colocar tudo para fora, ali
Decidido. Se Toninho Esperança não fizesse nada, ia embora. E
23
Toninho Esperança ia acabar com fome e com a calça cagada. Ia morrer seco e cagado, naquela cadeira de rodas. Era um esqueleto com pele costurada por riba do osso,
disse o homem de barba amarela. O espírito tinha escapado. Naquela mesma noite, o
homem de barba amarela acordou com um barulho. Na cozinha, encontrou Toninho
Esperança. A cadeira de rodas jogada para trás, com o pneu ainda girando em falso.
Um cheiro forte de urina que escorria pelo chão. E o fio da tomada do rádio, amarrado
na torneira da pia. O homem de barba amarela bebeu outro gole — olhou na direção
do palco, os velhos cantavam animados — e se calou.
A culpa não é sua, disse a mãe.
O homem de barba amarela abanou a cabeça, ameaçou umas palavras que emperram na boca. Abanou a cabeça e disse que qualquer hora eles se encontravam para
fazer qualquer coisa. Apertou a mão do pai, passou a mão na cabeça de João. E saiu.
E beberagem resolve?, disse o pai, olhando o homem de barba amarela rodopiar já
longe. Se beberagem resolvesse, dono de bar era santo.
A mãe não disse nada. Passou a mão na cabeça do menino.
João olhava o homem de barba amarela.
Tinha parado em frente a uma moça, o homem. Baixou o chapéu e fez um cumprimento desses de quadrilha, inclinando o corpo, baixando a cabeça. A moça sorriu. O
homem rodou o chapéu no ar, pegou, enfiou na cabeça. Numa folia só. Depois virou
o resto do copo, lançou no chão. E já saíram rodopiando, numa dança endoidada, sumindo no meio dos outros casais.
João riu.
Ninguém sabe nada, disse o pai. E já foi apontando a testa no rumo de casa.
24
O último jogo
Reinaldo era conhecido peladeiro, o terror dos campi-
Escombros, um rastro de destruição: zagueiros caindo, bufando, como prédios em ruínas, completamente perturbados.
Volantes batendo cabeça contra cabeça — um bando de cabras-
nhos de terra empenada, mas ninguém acreditava que ele daria
-cegas. E a cena termina com a triste figura do goleiro esmur-
conta de jogar num campo de verdade. Fora do jogo, tinha fama
rando o vazio, soltando gritos incompreensíveis, contemplando
de lerdo, meio atrasado. Tinha problemas com p e b e com m e
o fundo do gol.
n. Complicava-se com questões de direita e esquerda. Esquema
tático não entra numa cabeça tão concreta.
Mas bastaram dois treinos para o menino desmentir os mais
Um horror. Escândalo. Espetáculo.
***
pessimistas. Duas conversas demoradas com desenhos riscados
Reinaldo tinha um irmão mais velho — um branquelo da
com tijolo no muro do vestiário com seu Lazinho — velho do
testa larga e cavanhaque torto, chamado Regis. E Regis vivia ro-
nariz afundado, meio gago, constantemente com pressão alta.
deando o campo em dias de treino e jogo, embora não gostasse
Havia treinado o único juvenil decente a pisar naquele campo
de futebol. Regis era um desses caras de alma enfezada. De se-
por volta de 76. E agora, de volta ao comando do time, esticou
gunda a sexta, com o cigarro de palha que mais parecia um cha-
uma corda na ala esquerda do campo e disse ao Reinaldo que
ruto no canto da boca, não fazia outra coisa a não ser dirigir um
ele só podia correr naquela faixa — avançar quando o time ti-
caminhão basculante nas vielas da pedreira, levando entulho
vesse a bola e grudar no camisa 7 quando a bola estivesse com o
de um lado a outro. Mas era bater sexta depois do expediente,
adversário. Já na estreia, contra o Cruzeiro do Sul, fora de casa,
ele se enfurnava num bar e destampava a beber. Alguma coisa
um jogo que terminou empatado, Reinaldo desbancou um ma-
ruim que vivia lá dentro escapava. Ele vidrava os olhos e saía
grelo de chuteira amarela, meio metro mais alto, titular absolu-
no tapa com quem fosse. Falava-se em coisa de espírito. Da vez
to, para o banco de reservas.
que andou quebrando as coisas em casa, jogando a televisão no
E foi por essas e muitas outras coisas que o Reinaldo foi o me-
chão e dando de querer avançar no pai, a vergonha foi tanta que
lhor lateral esquerdo e um dos melhores jogadores no juvenil
Regis chegou a tomar uns passes. E realmente durante aquele
do Atlético Campo Grande, nos jogos escolares de 1996. Seu Chico
tratamento espiritual as encrencas cessaram, mas não porque
Azulão, a mais antiga e respeitada sumidade futebolesca daque-
se comprovasse a tal mediunidade. Por determinação do men-
las bandas, achava tudo aquilo um horror. “O moleque tem um
tor, ele tinha cortado a cachaça. Óbvio: sem cachaça, não havia
diabo em cada perna”, resmungava, quando Reinaldo disparava
confusão. Mas foi passar a vergonha, ele voltou ao copo. E vira e
com a bola. “É o jogador mais escandaloso que eu já vi.” E as ar-
mexe o pai tinha outra vez que buscá-lo na delegacia, isso quan-
rancadas do Reinaldo eram mesmo coisa de outro mundo.
do a polícia não o deixava em casa. Regis chegou a enfrentar,
25
sozinho, cinco caras, durante uma festa no Campo do Meio.
de tocar o braço do filho, teria sentido o quanto ele tremia. E se
Quando já estava cercado, sacou um capacete de motoqueiro
tivesse olhado direito, teria visto a mancha avermelhada no ros-
que estava sobre o balcão. Até então armados com tacos de si-
to dele.
nucas e canivetes de cabo curto, os cincos sujeitos terminaram
desmaiados. Dois deles com nariz estourado, o terceiro com o
Regis estava de pé, olhos esbugalhados e as calças respingadas de molho.
braço torto e o quarto caiu duro no chão, com as costelas fratu-
“Na sua idade eu já me sustentava”, disse.
radas. Não fosse a mulher do dono do bar entrar na frente — ia
A mãe começou a tremer. Recolheu-se contra a parede.
terminar em enterro de caixão lacrado.
O pai, cujo espírito tinha para si que toda conversa era em
Na casa de Regis e Reinaldo, a maioria das vozes vinha da
televisão ou de algum aparelho de som.
si mesma um pouco de conversa fiada, saía de casa antes que o
sol apontasse e voltava só à noite, cansado demais para qualquer
Regis chegou meio de fogo, num domingo à noite, e topou
coisa que não fosse um banho, comida e cochilar no sofá diante
com Reinaldo deitado no sofá da sala, assistindo ao jogo da se-
de um programa de televisão com anões de fralda levando ras-
leção. Sentou-se no sofá menor, acendeu um cigarro e ficou
teiras, extintores de incêndio, testes de DNA que terminavam
olhando o irmão. O pai tinha saído. O cheiro inundava o ar. A
em choro e ranger de dentes. A mãe, sempre ocupada demais
mãe preparou uma lasanha de frango e tinha comprado uma
com roupas ou panelas, estava resignada com aquilo e com mui-
Coca-Cola de dois litros. Ela entrou na sala com um prato esfu-
tas outras coisas. Ainda há pouco, aqueles dois meninos corriam
maçado e entregou a Reinaldo.
juntos pela rua, sentavam juntos para comer. Quando a situação
“Que vida, hein?”, disse Regis, com a voz embargada.
lhe vinha à cabeça, ela dizia, em conversas sussurradas ao apa-
A mãe baixou os olhos e Reinaldo nem olhou para o lado. É
gar das luzes, que o caso daqueles dois meninos era de coisa de
sempre assim que resolve. Então a mãe saiu para servir outro
vida passada.
prato. A travessa farta, o queijo escorrendo nas bordas. Tinha
“É Deus que dá oportunidade de a gente vir junto com um ini-
feito quantidade que sobrasse para o marido e o filho coloca-
migo, pra aprender o perdão”, ela dizia ao pai dos meninos, que
rem na marmita.
não retrucava. “Quando o caso é custoso, vêm gêmeos, e até gru-
Regis havia saído de casa cedo e provavelmente não havia
dados, que é pra aprender de uma vez.”
comido nada e ela colocou três pedaços no prato dele. Quando
Fosse como fosse, agora aqueles irmãos não se davam.
ela girou a tampa do refrigerante, ouviu o barulho dos cacos do
“Mãe, a senhora viu minha chuteira?”, perguntou Reinaldo, já
prato nopiso.
Reinaldo continuava sentado, na mesma posição que antes,
olhos voltados para os cacos no chão. Se tivesse a oportunidade
de saída para o jogo mais importante daquela temporada.
“Tá no mesmo lugar”, respondeu a mãe, sem desgrudar os
olhos da panela.
26
Ele deixou as chuteiras secando no varal, junto com o par
“Assim não dá”, puxou um molho de chaves barulhento do
de meias. Deixou os dois lá, tinha certeza, mas carregava só as
bolso e abriu o velho baú de madeira no canto do vestiário. Pu-
meias, encontradas caídas na terra. Não fazia sentido. Ele ba-
xou umas camisas com números desbotados que pareciam ras-
teu a terra das meias e procurou as chuteiras debaixo da cama,
tros de verdadeiros números já não existentes, uma velha som-
entre as roupas recolhidas do varal, debruçado sobre as caixas
bra presa ao tecido, listras pretas e brancas — restavam furos
entulhadas na garagem. Procurou até dentro do velho Fusca do
do tamanho de golas e o cheiro de pano podre —, até que surgiu
seu pai, há anos parado, juntando ferrugem e atraindo ratos.
uma chuteira de couro fosco, cadarços duros, que parecia ter
Reinaldo estava quinze minutos atrasado para o jogo quando
sido transportada de outro século.
pensou que talvez o cachorro as houvesse carregado para algum
“Se sobrar, coloca duas meias.”
canto. Assoviou e chamou. Não demorou muito e uma moita
Reinaldo calçou três meias e seus pés pareciam ter encolhido,
de capim se mexeu antes que o bicho saltasse e viesse em sua
porque ainda havia espaço demais lá dentro. Ele corria como se
direção. Mas ele rastreou aquelas moitas todas e mais não sei
corresse atrás da própria chuteira, que parecia estar um pas-
quantas vezes — tudo em vão.
so à frente. Não tinha equilíbrio para lançar ou participar das
O único lugar que não procurou foi o galinheiro. Seu pai dei-
triangulações e contra-ataques e acabou passando o primeiro
xava o lugar sempre trancado. Uma das coisas que enervava o
tempo próximo da linha lateral, sem avançar — um terceiro e
homem era chegar do serviço e topar com as galinhas — festei-
falso zagueiro, compondo uma linha empenada, procurando o
ras — devastando a beleza das couves. Ninguém mexia naquele
limbo do campo.
galinheiro sem as ordens do pai. Reinaldo chegou a dar uma
Sem o apoio de Reinaldo, as jogadas de ataque de seu time
espiada por fora da tela — uma das sete galinhas se mexeu no
acabaram restritas às tristes e inofensivas investidas pelo meio-
ninho, olhando de lado — e isso foi tudo.
-campo. Aquele time do Flamengo da Ponte Baixa era bem or-
Ele calçou as meias e depois um par de tênis e chegou ao ves-
ganizado e logo os dois volantes mais um meia-direita recuado
tiário no meio da reza, com o time já uniformizado. Vestiu o
criaram uma linha de três homens, uma barreira que minou
calção e a camisa número 6 e molhou o cabelo com o time sain-
praticamente todas as ofensivas do Atlético Campo Grande no
do já sob o som de fogos. O Flamengo da Ponte Baixa estava em
primeiro tempo. Já beirando os quarenta, em um contra-ataque
campo, se aquecendo.
articulado no espaço deixado por Reinaldo, o camisa 11 avançou
“Cadê a chuteira?”, perguntou seu Lazinho.
Fedendo a conhaque, usando sua típica camisa de botões
marrons com duas faixas cinza verticais, cheias de flores, seu
Lazinho olhou para os pés de Reinaldo.
em diagonal e acertou uma pancada da intermediária.
Cebolinha, o goleiro, que era fanho, até que tentou, mas ouviu apenas o barulho da bola escorrendo na rede.
O sol estava forte e seu Lazinho parecia ter lustrado a testa
27
numa lata de gordura. Havia manchas de suor sob os braços e
imprecisa. Veio alta, descrevendo um arco de parábola que cru-
nas costas. Não era um técnico muito sofisticado, principalmen-
zou a rota do sol, girando e sem mostrar pistas de onde ia cair.
te nos momentos de crise. Suas especialidades restringiam-se
Reinaldo soltou a trave e começou a caminhar para trás, tenta-
aos fundamentos, ali estavam todos os problemas e soluções do
do se defender das rajadas do sol com a mão sobre a testa. Mas
futebol. Pediu que os marcadores marcassem e os atacantes se
a bola havia desaparecido. Ele continuou a caminhar de costas,
movimentassem e chutassem para gol, que todos passassem a
procurando sinais, qualquer coisa no vazio do céu. Quando deu
bola com mais precisão e procurassem os vazios do campo. E
por si, o goleiro gritava e era tarde demais. A bola caiu diante
também aos reservas que arrancassem as chuteiras e as ofere-
dos seus olhos, Cebolinha tentou rebatê-la, jogou-se contra Rei-
cessem a Reinaldo. Mesmo constrangido — afinal, nem todos ali
naldo, mas o camisa 11 do Ponte Baixa chutou para o gol.
estavam satisfeitos com aquilo —, Reinaldo calçou e tirou cinco
pares de chuteira até que um deles assentou firme nos pés.
“É só jogar”, disse o treinador, passando a mão na cabeça do
menino.
O Flamengo da Ponte Baixa voltou ainda mais motivado para
o segundo tempo. A cada dividida, o time todo gritava junto, in-
Reinaldo bateu a grama da roupa sob os gritos e lamentos de
Cebolinha, as expressões negativas dos zagueiros, o tapinha nas
costas do capitão Valdinho. Enquanto o time tentava se recompor para soltar a bola, ele viu seu Lazinho ao longe, enxugando a
testa, fazendo gestos indecifráveis. Olhou para a arquibancada
e avistou seu irmão sentado sozinho, com uma lata de cerveja.
clusive os reservas e a meia dúzia de pais e mães na arquiban-
Enquanto meia dúzia de pais e mães gritava olé, o Flamengo
cada. Essa onda de motivação logo no início deixou o Atlético
da Ponte Baixa trocava bola de um lado para o outro, segurando
Campo Grande ainda mais nervoso. Acuados pela marcação sob
o resultado. Seu Lazinho até que tentou. Fez três substituições,
pressão e sem encontrar espaços para avançar, começaram a
colocou mais dois atacantes e resistia à beira do campo gritan-
tentar lançamentos da defesa diretamente para o ataque. O que
do calma, reclamado do juiz, cantando as jogadas de ataque.
agravava a situação era que não conseguiam vencer nenhum
Mas na confusão que tinha se tornado o Atlético Campo Grande,
dos rebotes. Cada lançamento resultava em uma nova ofensiva
o camisa 11 do Ponte Baixa avançou com facilidade pelo flanco
do Ponte Baixa.
esquerdo do campo. O primeiro zagueiro terminou deitado de-
Uma dessas jogadas terminou em escanteio. Como sempre
pois de ser ludibriado pelas pedaladas. Quando chegou à linha
fazia, Reinaldo se posicionou no primeiro poste, para bloque-
da grande área, o camisa 11 levou uma voadora por trás, soltou
ar um possível cruzamento fechado. Antes que o juiz apitasse,
um grito de dor e caiu rolando no chão. Pela violência do grito,
ainda espiou a movimentação dos jogadores adversários na pe-
parecia ter partido algum osso. Os jogadores se amontoaram e
quena área, perseguidos pela fúria dos marcadores. Reinaldo
no meio da confusão o juiz tirou o cartão vermelho e apontou o
se agarrou à trave e ficou de olho na bola. Mas a trajetória era
vestiário para Reinaldo.
28
***
Ele caminhou sem olhar para trás. Tinha um bolo queimando na garganta e as lágrimas iam caindo, à medida que ia dei-
O pai acordou na mesma hora de sempre e colocou o café
xando o campo. Os gritos em comemoração ao terceiro gol che-
para coar. Ele calçou as botas e foi até o quintal carregando uma
garam abafados nas escadas e não havia ninguém no vestiário.
lata com milho e ração. Ainda havia estrelas e o canto de galos
Tirou o uniforme de qualquer jeito e calçou seu velho tênis. Por
próximos e distantes. Estranhou o silêncio. Havia casos de co-
que as coisas tinham dado tão errado? A água do chuveiro era
bras que bebiam ovos, também das últimas matilhas de lobos e
fria e ele ainda sentia frio enquanto ia para casa.
cães selvagens que atacavam no meio da noite, saruês famintos
O pai assistia à televisão e não perguntou nada sobre o jogo.
e também vagabundos que agem quando menos se espera. Mas
Embora não tivesse sede, Reinaldo foi à cozinha e bebeu dois co-
estava tudo trancado e não havia buracos na tela e o cachorro
pos d’água como quem procura algum consolo. Ele andou pelo
dormia na casinha, no lugar de sempre. Abriu o portão do gali-
quintal e olhou para o céu muitas vezes, mas não havia nada de
nheiro e caminhou devagar. O sol vinha lento ainda escondido.
diferente no céu nem na terra. Quando voltou para a casa, viu as
Só a preguiça de uma mancha cinza surgindo ao longe, e o escu-
chuteiras dependuradas no varal. Como se tivessem sido lava-
ro daquela hora ainda era o mesmo escuro da noite. Ele girou o
das ainda há pouco, tinham um cheiro de água sanitária mistu-
bocal e a luz caiu sobre as galinhas. Imóveis. Pescoço quebrado,
rada com alguma outra coisa que ele não conseguiu identificar.
recolhidas no ninho.
“Seu pai achou lá dentro do ninho”, disse a mãe. “Tinha um
Debaixo de cada uma delas, os ovos ainda estavam quentes.
ovo quebrado por dentro e eu tive que usar muita Q-boa.”
Marcos Vinícius Almeida nasceu em 1982, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, mas viveu
desde sempre em Luminárias, interior de Minas Gerais. Morou também em São João del-Rei
(MG), onde cursou Filosofia, sem concluir, e em Porto Alegre (RS) por um tempo. Hoje, vive
em São Paulo e cursa o último semestre de jornalismo. Publicou textos de ficção em revistas e
jornais, como a revista Cult, Suplemento Literário de Minas Gerais, entre outros. Também em
algumas antologias. Foi um dos laureados no Prêmio Ufes de Literatura, em 2010. É autor do
romance Inércia (Multifoco, 2009). E da coletânea de contos Quebranto (e-Galáxia, 2014). Blog:
http://quebracorpo.blogspot.com.br/
29
Lucas
Perito
Quatro Formas de Eros
(Fragmentos)
À Diana
I
Perder a si mesmo como
Um encontro ansiado
II
Quando nua doura a negra noite
Que guardas em teu olhar
III
A comunhão nasce da morte de nossos filhos
Que tu usas como alimento.
Aos que não nascem
Tu dás repouso no meu desejo;
Engole-os como bebo seus felinos olhos.
IV
Não temos fronteiras.
31
O Despertar
Num entrever de águas pesadas, o nado se torna denso, lerdo,
[perto
Nada é torpor, um pulmão que abre e fecha frente o vento que chega
Uma montanha de curvas sobre o salgueiro que freme a luz que entra nesse íntimo espaço
É um membro que cresce na vista que mais branca se torna
O algodão ao lado, o ato em cima,
A constatação do terrível despertar dos sentidos.
Do Escrever Sobre uma Raposa
É uma presa que marca
Em traços rubros
em meio a folhas virgens
Agudo passar entre árvores anêmicas
Todo belo
se encontra nesse andar
Incerto traço
que rasga a mata
Que fremee fere
Uma marca na presa.
32
Em Noites de Sol
Em tempos revoltos, onde, longo, parece o caminho, perece o ser de entendimento.
Locais, onde não se encontra o mal, pois oposto não é dado.
Caminham homens, com olhos arados entre mulheres que não caçam.
A música não mais ouvida faz sombra como seres ou objetos.
Espalham o suspiro dormente do momento que se repete.
Para assim se ver, em ilhas de húmus e pétalas, que desfolham o teu lugar.
Observa-se desonesto caminho dos desterrados ou envergonhados,
Que aqui, não encontram seu lar nem sua morada.
Não procures as faces dos destemidos - que aqui não os verás.
Os dias de trabalho, longos são, enquanto eterno sol brilhar.
É na escuridão, longe da intrusa e dentro da noite que luzes se formam.
Há caminhos que sempre contaram, mas que contados nunca foram.
Adeus - frente a bandos de vaidosos discursos magros,
E se os sinos tocarem espera-se que dias melhores virão.
33
A Ungaretti
Como aquela pedra de S. Michele,
Dura, ainda que natural
A mim se aproxima
Sua gélida face;
Cinza e amorfa
Confunde-se com que se tem
De inverso;
Distingue-se, pois figura eternidade.
Nasceu
em
São
em
1985.
em
Comunicação
Multimeios
É
Paulo
graduado
pela
em
PUC-
SP. Trabalhou na editora
Empresa das Artes, escrevendo livros ligados a
história e fotografia, fazendo os textos de acompanhamento para o livro fotográfico Caminhos
da Mantiqueira (2011) de
Galileu
Garcia
Junior.
Tem alguns poemas publicados na Revista Zunái,
na Revista Diversos Afins,
na Revista Benfazeja, na
R. Nott Magazine e no
Caderno-Revista 7 Faces.
34
I.
Carla
Kinzo
não mora no tijolo a casa
ou no barro
não está na porta a saída
ou no escuro o medo
o caminho não é o que afirma
o papel
o mapa
não é o terreno
não depende da palavra amor
o amor
nem toda confissão nem todo metro
é poema
como nem toda água salgada é lágrima
ou mar
36
II.
às vezes é dentro de um gesto o dia
mesmo quando o dia é mais pesado
que o gesto
às vezes é também como o amor num anel
sem marca de início sem marca de fim
muitas vezes é numa capela o clamor pela vida
outras numa esquina
profana
algumas vezes é longe de casa o adubo
pra raiz sob os pés
na maioria das vezes é no espaço da planta de um pé
o cimento da casa
ou como quando encontramos
na planta do anel na volta de um gesto
o caminho mais breve
ao lado leve da cama
III.
É talvez na linha
que divide a água e o ar
no exíguo espaço de um copo
Ou mesmo no fio de concreto
que separa a calçada dos carros
Na cena em que você se equilibra num meio
fio às seis da tarde
há muita gente na rua
você não me vê do outro lado
olhando esse quadro com a sede
que não se mata com a água
do exíguo espaço de um
copo
É ali que resisto bebê-lo,
equilibrista,
para tentar inscrevê-lo no espaço fatal
de uma palavra
37
IV.
Seus dedos
na direção do meu rosto
a pinçar um cílio caído
sobre as maçãs
são os únicos,
meu amor,
capazes de suspender
o derramado
dos dias
38
V.
Riscar o grafite na superfície da folha
com a mão leve como quem rouba
o negativo do verbo de outros tempos
de outras mãos
ainda que sejam as mesmas as mãos
sobre o papel há muito esquecido
Dar voz ao que se calou
mas restou como réstia
vaga impressão
de sílabas
dores
e abraçar um sentido contrário
como quem atira fogo
ao próprio corpo
pra buscar alguma luz
Carla Kinzo nasceu em São Paulo, em 1980. Publicou os livros Matéria
(7letras), ao lado de Caetano Gotardo e Marco Dutra e Cinematógrafo
(7letras). Trabalha em seu novo livro, Cartográfico, contemplado com um
ProAC de Criação Literária em Poesia. É mestre e doutoranda em Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP. Seu primeiro
livro infantil, Grão, fica pronto nesse semestre pela Pólen Livros.
39
A ânfora de ouro
“E eis que em meio à palha
descobre o bom agouro:
encontra o fazendeiro
um maciço ovo de ouro!”
Deitado na
Marcia
Pfleger
cabana – que apesar de muito velha me há
de ultrapassar – recordo a passagem, em minha vida, da ânfora
de ouro. Na verdade, nenhum um dia é gasto desta triste sina,
sem voltar a lembrá-la.
Os primeiros ventos do Outono sopravam prenunciando
chuvas. O rio estava barrento, as árvores, desbastadas. As favas
verdejantes amarelavam nas ramas e o mundo inteiro parecia
uma grande ruína sob a luz de um continuado crepúsculo.
Naquele dia, voltei cedo à cabana. Gelados os pés e as mãos
machucadas na horta, ansiava pelo calor do fogão a lenha. A
gaita de boca e o chimarrão eram as únicas companhias.
Um toc-toc na porta espalhou uma surpresa naquele calor de
aconchego, que era quase de temeridade. Abri a porta cautelosamente e um velho franzino, de olhar afável, pediu-me pouso.
A ventania enrolava sua longa barba. Tinha as roupas puídas,
um alforje encardido e um par de sandálias de couro ressecadas.
Não gosto de abrigar desconhecidos. Não gosto de abrigar
seja quem for, nem mesmo um cão faminto, portanto já ia me
desvencilhar do inconveniente quando um grande relâmpago –
que o Céu não perde o vício bíblico de anunciar desgraças – fez
desabar a tempestade.
41
Nessas condições, a contragosto, consenti que o velho entrasse e rapidamente cerrei a porta à chuva torrencial.
De início fui avisando que não tinha nenhum guisado. A refeição seria pão, banha e café amargo. Não gastaria com o velho
generosas se revelam - ele disse agradecido, com sua voz baixa
e rouca.
Por conta disso, retirou do alforje a pequena ânfora, depositou-a no chão e com a mão direita sobre a tampa, exclamou:
nem queijo, nem mel. Ele disse que aquilo seria suficiente. Na
- Seja o meu mérito com este repartido.
verdade, comia pouco, falava também pouco, na mesma contra-
E assim que levantou a tampa, a ânfora estava cheia de mo-
partida em que eu olhava muito, observava muito.
Percebi, entre outras coisas, que o alforje do velho tinha algo
de peso – um volume que retinia como metal. Não me contive:
edas de ouro!
Dei um salto para atrás, estupefato com aquela mágica. Ele
me entregou as moedas, agradecendo a hospitalidade. Segurei-
- Que é isso aí que leva em seu alforje?
-as com as mãos em garra, os olhos luzidios refletindo o brilho
- Ah, sim, isto aqui...é uma ânfora. Veja.
das moedas e as chamas que crepitavam no fogão de pedra.
E tirou de dentro uma pequena ânfora de metal barato, vazia,
- Como...como fez isso? - perguntei assombrado.
fosca, sem adornos ou marcas. Tinha uma tampa, razão pela
- Nada faço. Deus faz.
qual eu ouvira o sonido dos metais.
Imediatamente ocorreu-me que não poderia deixá-lo partir.
- E o que leva aí dentro?
Não ainda, pelo menos. Era imperativo descobrir o segredo da
Ele disse com naturalidade:
ânfora de ouro.
- Não levo nada; Deus é que coloca aqui dentro para mim.
Um pedinte de esmolas, deduzi. A ânfora devia fazer as vezes
do chapéu...
No mais, não carregava um dinheiro sequer - pude conferir
porque, na madrugada, enquanto um pesado sono o acalentou,
revistei-o cuidadosamente.
Nunca fiquei tão satisfeito com a intemperança do clima. A
chuva vinha em grandes golfadas contra a janela e fazia caprichosos canais no solo. A noite chegara mais cedo e foi então, que
me ocorreu a ideia...
Desta vez, servi ao velho também leite e queijo. Disse-lhe que
estava maravilhado com o milagre que presenciara e que eu era
Na manhã seguinte, como é hábito no Sul, o tempo continuou instável. A chuva parecia ceder e, de repente, recomeçava
homem muito temente a Deus. Roguei-lhe que me contasse o
prodígio da ânfora de ouro.
com bravura. Ao longe, ouvi o fragor do rio e imaginei-o borbu-
Ele mostrou-se reticente. Apenas me contou que era curandeiro,
lhante sobre as margens. Não tive escolha senão permitir que o
vagava pelo mundo tratando de pessoas pobres e ajudando os ne-
forasteiro ficasse por mais tempo.
cessitados como podia. A ânfora era um presente de Deus para que
- É nos momentos de grande necessidade que as almas
pudesse dispor de seus tesouros com generosidade e compaixão.
42
Apertei as moedas de ouro que trazia em meu bolso. Como
Tomou mais um gole de vinho e suspirou reflexivo:
seria bom vê-las multiplicadas! Coloquei a segunda parte do
- Uma coisa maravilhosa isso que aconteceu comigo...
plano em ação.
A lenha crepitava no fogo e a chuva agora apenas tamborila-
- Nada como um bom trago nestas noites frias - disse pegando um garrafão de vinho que guardava. Enchi dois copos e servi
um ao guardião da ânfora.
va de leve nas telhas.Eu mal respirava para não perder uma só
palavra do que dizia.
- Já faz alguns anos que a tenho. Não para riqueza própria,
- Não bebo, muito obrigado.
mas para repartir com quem necessite. Então, coloco minha
Já esperava, portanto não me intimidei:
mão direita sobre a tampa da ânfora e invoco a frase que o anjo
- Ora, um copo de vinho não vai fazer mal. O vinho é bebi-
me ensinou...
da sagrada. Experimente, é de boa safra. Não vai me fazer essa
Eu lembrava e citei:
desfeita.
- “Seja o meu mérito com este repartido”.
Para ser gentil, aceitou. Fiquei olhando sua mão magra levar
o copo até os lábios e beber lentamente, no mesmo molde de
quem toma um café quente.
Estendi a prosa até tarde, pois é sabido que o cansaço e o álcool fazem soltar a língua mesmo do mais carola.
- Sim, isso mesmo, isso mesmo... - e bebeu mais um gole de
vinho.
- Por que não guarda algumas moedas para você? - perguntei.
Ele me olhou surpreso, como se fosse óbvio:
- Para quê? Eu tenho a ânfora de ouro!
Ele terminava de tomar o copo de vinho e, na distração, eu
o enchia de novo. Foi ficando sonolento, porém o sorriso já lhe
Preparamo-nos para deitar. O ancião estava acomodado
chegava fácil. Percebi a hora correta, quando comentava sobre
numa rede no fundo da cabana. O fogo quase se extinguira e
a importância da fé, e entrei no assunto:
alimentei-o com algumas achas. Olhei sorrateiramente para o
- Admiro quem tem uma fé assim, como a sua. E acredito que
seja genuína. O milagre da ânfora é para calar os mais descrentes.
Ele mordeu a isca e apanhou a ânfora, olhando-a com admiração. Então, contou:
velho, que já dormia tranquilo, e com um grosso pedaço de lenha nas mãos, acertei-o sem piedade. Matei-o.
Ah, mas eu não seria tolo de dar um fim ao corpo, sem tomar
algumas providências!
- Este milagre me veio num sonho... Um anjo do Senhor apa-
Ciente de tudo o que me havia revelado, com o machado que
receu e me entregou a ânfora. Disse que minha mão direita se-
usava para cortar lenha, decepei-lhe a mão direita. Mão e ânfo-
ria abençoada e todos os dias poderia repartir meu mérito com
ra estavam agora em meu poder, prontas para me fazerem um
alguém que eu achasse generoso. Quando acordei, encontrei
homem rico, muito rico.
essa ânfora ao meu lado.
Nessa empreitada, meio atordoado pelo vinho e pelo afã do
43
crime, acabei derrubando o machado e
Nenhum chá, unguento ou curativo re-
ferindo minha perna. Do talho abaixo do
vertia a ferida que se alastrava. Arrastei-
joelho brotou um sangue escuro e grosso.
-me até o cavalo e toquei para a cidade. O
- Seja meu mérito com este reparti-
Derramei um pouco de aguardente e en-
vento era cortante e grandes poças cor de
do...com este repartido...Repartir com al-
faixei o local sem cerimônias.
café com leite pontilhavam a estrada.
guém... É isso!
Já amanhecia com uma garoa fina.
Embrulhei o corpo do velho na rede onde
dormira e joguei-o no rio. A violência das
águas revoltas pelas chuvas o arrastaria
para longe, para nunca mais...
Lavei numa bacia a magra mão decepada e pensei em guardá-la junto à ânfora sob uma tábua solta do piso, na escura
despensa. Mais tarde, trataria de salgá-la
para que fosse preservada.
Estava um pouco febril e minha perna
doía, mas mesmo assim, em lugar de deitar, não contive o impulso de conjurar o
encantamento que me traria mais ouro.
Segurando a mão do velho sobre a
Foi quando me veio o que julguei ser
uma revelação.
Para pagar o médico, o remédio e o
O médico iria até a cabana pela ma-
que mais fosse - e principalmente para
nhã, então, eu invocaria a graça afortuna-
não deixar o dinheiro na cabana, tal o
da para repartir com ele as moedas. Não
apego que me incinerava - levei todas as
daria tudo para o doutor, como o velho
moedas de ouro comigo.
fez comigo - daria somente uma moeda
O doutor me deu injeção, fez curativos,
(e já era uma boa paga) e as outras seriam
receitou medicamentos e recomendou
minhas. Era esse o segredo da ânfora. E
que ficasse em repouso. Não aceitou pa-
assim faria, sucessivamente, até que ti-
gamento - dado o meu aspecto, imaginei
vesse um tonel de ouro!
que não desconfiava que eu era um ho-
O pensamento me fez sentir bem, sen-
mem rico, dono de uma ânfora de ouro!
tir-me generoso e sentir uma certa ale-
Perguntou onde eu morava e garantiu-
gria em ser generoso. A perna até parara
-me que iria lá no dia seguinte, para ver
de doer, tanto o sentimento de esperança
se eu melhorara.
é abundante em suas dádivas.
Na volta, tive de descer do cavalo porque havia chovido mais e a lama alta na
- A sua perna não está nada boa. É melhor
estrada dificultava a passagem. Escorre-
que fique uns dias no hospital - disse o
- Seja o meu mérito com este repartido.
guei diversas vezes. Numa dessas, em al-
doutor, apreensivo.
Abri cautelosamente a ânfora. Estava
guma parte do trajeto, acabei perdendo
Eu mal escutara sua recomendação,
as moedas de ouro que trouxera comigo.
afoito que estava para ver de novo uma
Ao dar falta da pequena fortuna, voltei
pequena soma em ouro em minhas mãos.
Fiquei cismando por um dia inteiro o
atrás, a pé, arrastando-me, chafurdando
Tivesse vasculhado o sentido de suas pa-
que teria dado errado. A obsessão deu
na lama, procurando desesperadamen-
lavras, saberia que minha situação era
trégua quando o mal-estar, causado pelo
te as moedas, sem encontrá-las. Urrei de
precária... Mas a lembrança do ouro me
ferimento da perna, foi tomando espaço.
frustração e ódio.
deixava febril.
tampa da ânfora, invoquei:
vazia.
44
- Doutor - disse ofegante - eu quero lhe
pagar...
Apesar de sua objeção, entrei claudicante na despensa da casa, cerrei a cor-
algum tempo. Após algum tempo, a perna vai ficando pior, obrigando-me a permanecer deitado. Já nem procuro mais o
médico. Sou um homem condenado...
tina e tirei das tábuas do chão a ânfora
Os poucos recursos que tinha, esta
de ouro e a mão (que eu já havia salgado).
invalidez precoce acabou por diluir, dei-
Murmurei o encantamento:
xando-me mais miserável.
- Seja o meu mérito com este repartido...
A mão do velho queimei nas cha-
Abri a ânfora.
mas do fogão de pedra, pois me causava
Vazia.
pesadelos.
Falei mais alto:
Só restou, encostada num canto da ca-
- Seja meu mérito com este repartido.
bana, a ânfora vazia, cujo metal barato,
A ânfora continuava oca, surda ao
assim como meu coração, parece nunca
meu apelo.
ter conhecido brilho...
Repeti várias vezes, com lágrimas de
frustração, até bradar em alta voz:
- Seja o meu mérito com este repartido! Seja o meu mérito com este repartido! ...
Há, há, há, há...! A ânfora, a maravilhosa ânfora de ouro, estava vazia, vazia
para sempre...
O doutor me encontrou chorando na
penumbra. Arrastou-me até o leito e disse que meu estado febril havia piorado.
Levou-me ao hospital onde fiquei alguns
dias. Curei-me. Voltei para casa.
No entanto, a ferida retorna após
45
Crepúsculo
solferino
avançava para o interior do cemitério,
E, se por um acaso remoto, a descobris-
seus passos ecoavam estranhamente no
sem? E se ele estivesse lá? Não. Muito ar-
cascalho. Por um momento pareceu in-
riscado. Corria um boato sobre transfor-
deciso. Percorreu com os olhos a imen-
mar as velhas edificações e outras ruínas
estava silenciosa. Nenhu-
sidão dos túmulos em ruínas, a tristeza
do local em patrimônio histórico. Não
ma criança brincava de roda nos arredo-
dos mausoléus que se recortavam contra
lhe agradava a ideia de que outros que-
res, como da última vez. Ao longe, casas
o céu gris. Reconheceu o caminho e, bem
brassem aquela paz, profanassem o que
esparsas e, mais além, alguns casarões
devagar, recomeçou a andar, a cabeça
estava fadado a permanecer no esqueci-
antigos, remanescentes de um tempo de
baixa, os olhos apertados.
mento. E se entrassem na velha capela, e
(Uma continuação inspirada no conto
“Venha ver o pôr do sol”, de Lygia
Fagundes Telles)
A tarde
glória da região, que há muito havia terminado.
Um frêmito nervoso percorreu-lhe o
corpo quando avistou a capela. Ali embai-
se descessem as escadas fantasmagóricas
da catacumba? E se o interrogassem?
Ricardo caminhava vagarosamente.
xo, na catacumba secular, há mais de um
Ele fora impecável. Ninguém jamais
Mas não andava à toa, como quem pas-
ano, trancara a amante infiel. Como esta-
descobriria. Ninguém o conhecia nas re-
seia aproveitando a erma quietude do lu-
ria o corpo?, pensou tomado de uma ex-
dondezas. Convidara Raquel “um último
gar. Tinha destino certo.
citação mórbida. Ricardo não fazia ideia
encontro, por favor”, e ela viera escondi-
Chegou ao grande portão do imenso
do que sobrava de uma pessoa após um
da de tudo e de todos. “Vou lhe mostrar
cemitério abandonado. “Vivos e mortos,
ano de sua morte. Ele teria desejado vol-
o mais belo pôr de sol de sua vida”, pro-
desertaram todos, meu anjo”, lembra ter
tar lá antes, bem antes, enquanto Raquel
metera. Viera sozinha, pousando os pés
dito a Raquel. De fato, as lápides racha-
estivesse moribunda, frágil, já sem um
incautos sobre uma teia invisível de ara-
das, cobertas pela hera, denunciavam
pingo de arrogância. Então, então ele lhe
nha. “Este é o local que você gostaria de
que o cemitério fora desterrado ao es-
falaria de seu imenso amor, de como ela
me mostrar?”, zombara ela quando en-
quecimento: essa morte que é maior que
havia destruído seus sonhos, de como ela
traram no cemitério. Ela sempre zomba-
a própria morte.
merecia expiar essa pena tortuosa... Mas
ra dele, lembrou com raiva. Zombara de
O dia estava abafado e um vento lú-
não podia. Muito arriscado. O marido a
seu amor, de sua paixão, trocando-o por
gubre agitava as árvores, parecendo sus-
procurava, a polícia, com certeza, havia
outro homem. “Ele é riquíssimo”, contara
surrar mensagens fúnebres. Ricardo
dado uma busca pelo desaparecimento.
para espezinhá-lo.
46
“Venha ver, Raquel, aqui nas catacumbas”, dissera-lhe naque-
da situação, mesmo assim, não teria sobrevivido mais que pou-
la tarde, apontando o retrato em uma das gavetas fúnebres. “É
cas semanas. Nada de água. Nada de comida. Nada de luz. Se-
incrível como ela tem os seus olhos, Raquel”. E a tola – pensou
pultada viva.
-, curiosa como o são todas as mulheres vaidosas, foi descendo,
Girou a chave e lentamente empurrou a porta enferrujada.
um a um, os degraus de seu destino... Então, no momento em
Desceu apenas o primeiro degrau e esperou que seus olhos se
que ela se inclinava à luz do fósforo para olhar o retrato amare-
acostumassem à quase completa escuridão. Aos poucos, come-
lado da defunta, Ricardo trancou a porta gradeada, encerrando-
çou a distinguir contornos, formas, detalhes. Lá embaixo, em
-a para sempre no interior do mausoléu. “Há uma frincha na
um canto, finalmente os olhos encontraram, com terror, o que
porta, meu anjo. Por ali, você verá o pôr de sol mais belo de sua
procurava. Então, um remorso agudo rasgou-o ao meio! “Raquel”,
vida”, disse na despedida.
gemeu. Dobrando os joelhos, Ricardo chorou convulsivamente.
Os gritos de Raquel ainda ecoavam na lembrança: primeiro,
Eram gritos desesperados, inumanos...
aterradores, embrutecidos; depois, distantes, quase ausentes; finalmente, na entrada do cemitério, apenas o fantasma de um
Alguns dias mais tarde, a milhares de quilômetros dali, a
lamento. Seria o vento nas árvores que trazia esse som de preci-
mulher jogou o jornal sobre a cama. Estava tudo consumado,
pício? A cantiga de roda das crianças continuara...
pensou. E deu um sorriso. Embora o marido a tratasse com mi-
Parou em frente à capela. Só para se certificar, correu a vista
mos, enchendo-a de compensações, Raquel já estava sentindo
ao redor: não havia ninguém. Tateou o bolso e retirou nervoso
que viver na Europa estava sendo mais entediante do que pre-
o molho de chaves de onde balançavam um cortador de unhas,
vira. Agora, poderia voltar.
um canivete e, entre outras, a chave que buscava. Uma chave
nova, da fechadura que dava acesso ao lôbrego recinto.
O marido a achava, às vezes, estranha, ausente. Desde aquele misterioso assalto, há mais de um ano, a esposa costumava
Abriu as portas da capela, cobrindo parte do rosto com a gola
entrar num estado em que parecia totalmente ensimesmada.
do blusão, prenunciando miasmas putrefatos. “O que sobrou de
(Nem o passeio de duas semanas ao Oriente a tinha feito esque-
você”, murmurou com rancor.
cer o trauma). Em tais momentos, Raquel tornava-se pensativa
Estava escuro, bem mais escuro que da última vez, pois a tarde, então, era ensolarada e não tinha esse aspecto cinzento, de
e, nesses devaneios, seus olhos verdes se escureciam, denunciando um brilho cruel.
luto verdadeiro. À direita do altar, na semi obscuridade, a grade
É claro que era cruel, sempre o fora. Não era a isso que de-
que levava às sepulturas parecia inalterada. Um pensamento
via tudo o que tinha conquistado, não era a isso que devia, até
louco, contraditório, nascido de uma tênue esperança, ocorreu-
mesmo, a própria vida? Não fora esse laivo de impiedade que
-lhe: “E se estivesse viva?”... É claro que não. Se resistira ao terror
lhe deu a coragem? Não fora, sustentou Raquel para si mesma,
47
esse desprezo pela fraqueza – tanto alheia quanto própria – que
aguardava a chegada do dia, quando teria ao menos um pouco
a salvou?
de luz para enxergar, sem que a imaginação projetasse horrores
Ah, como havia sido ingênua, tola mesmo, ao aceitar aquele
na escuridão.
convite. Um psicopata! E o pior: como foi que chegara a ter, veja
Nauseada, vomitou ali mesmo, no alto da escada, e a exaus-
só, um romance com ele! Bem fizera trocando-o por outro, me-
tão que isso causou lhe trouxe até certo alívio. Depois, recostou
nos debiloide e, além de tudo, milionário.
a cabeça na grade, resignada, já sem forças. Apenas esperava a
As sombras daquele cemitério ainda pairavam em seus
manhã.
olhos. Só a perspectiva de que Ricardo pôde ser capaz de dese-
Quando o céu foi perdendo o negrume e adquiriu aquele tom
jar-lhe tanto mal, tanto, tanto, causava desconforto. Mas, agora,
de azul que permite certa visibilidade, percebeu que a aurora
estava tudo consumado. Recostou-se no parapeito da janela de
se aproximava. Uma réstia de luz passava pela frincha da por-
onde vislumbrava o mar e rememorou tudo minuciosamente.
ta. Imbuída de novo alento, outra vez sacudiu as grades, várias
Ela fora perfeita.
vezes, diversas vezes. Com as mãos em forma de garra, tentava
Fechou os olhos e se viu novamente na velha escada da cata-
puxar a fechadura, em vão.
cumba. Pela fenda da porta da capela, a luz irisada desaparecia,
Foi quando seus olhos, involuntariamente, sutilmente, desli-
os últimos vestígios de luz. A garganta doía-lhe de gritar e um
zaram apenas um pouquinho, um átimo à direita da fechadura.
tremor de pânico se espalhava pelo corpo, como se mil tarân-
Então, voltaram... vagarosos, criteriosos, estudando a possibi-
tulas lhe percorressem as veias. Por um instante, pensou des-
lidade. Raquel deu um passo atrás, a respiração em suspenso.
falecer. Agarrada às grades enferrujadas da porta, recusava-se
Olhou da fechadura nova ao velho caixilho engastado nas pa-
a descer onde repousavam as criptas. Logo, ela seria mais uma
redes de taipa e pedras. As pedras eram pequenas, ovaladas e,
naquela multidão de cadáveres do velho cemitério.
talvez, algum dia tivessem sido brancas. Agora eram escuras,
Mesmo sabendo ser inútil, ainda tentou sacudir as antigas
manchadas, com fungos proliferando em algumas partes.
grades, onde a fechadura nova, trocada por Ricardo, reluzia nos
Quanto mais examinava, mais a ideia fazia sentido. Reme-
últimos respingos de luminosidade. Passou a noite ajoelhada e
xeu afoitamente a bolsa à procura de algo apropriado. Foi adivi-
agarrada às grades. Com desalento, recordou que ninguém sa-
nhando o pente, as luvas, os cigarros, os óculos de sol, a carteira,
bia onde estava. Ninguém jamais poderia imaginar. Ninguém
os fósforos (pegou os fósforos), um batom e, então, no fundo da
jamais a ouviria gritar. Ninguém entraria no velho cemitério.
bolsa, achou a caneta de metal. Presente elegante de uma amiga
Num instante, a escuridão ficou absoluta. Aqui e ali, aterro-
(nunca pensou que seria tão útil). Acendeu um fósforo e exami-
rizada, escutava ruídos. Nenhum lugar é completamente silen-
nou com os dedos delicados o caixilho e a parede. Quase os aca-
cioso à noite.
riciava, enquanto os olhos sondavam a expectativa. Enrolando a
Já chorara várias vezes e, ansiosamente, suplicantemente,
suave echarpe de seda em torno das mãos, começou a apunhalar
48
devagar o sutil espaço entre o caixilho e a parede. Enfiava a caneta nos ângulos, como se quisesse rasgar o estuque, golpeava
com firmeza, os cabelos em desalinho, os dentes cerrados.
ruína, uma pedra que cabia inteira na palma da mão.
Subiu as escadas e com vigor golpeou a pedra no caixilho
enegrecido. Viu que não ia ceder. Uma ratazana passou corren-
No começo, pareceu-lhe que nada acontecia. A parede mostra-
do por entre suas pernas. Raquel levou um susto. Num canto,
va-se sólida. Com o tempo, aos poucos, um pedacinho começou
viu os olhos miúdos do roedor brilharem. Certeira, esmagou-
a esfarelar. Raquel estava totalmente concentrada, totalmente
-o dando várias estocadas com a pedra, descarregando toda sua
presente no que fazia. Ao notar os progressos da empreitada,
frustração. O animal guinchou.
chegou mesmo a sentir certo prazer naquilo tudo.
Quando se voltou, ofegante, para o caixilho percebeu: pode-
Súbito, a caneta entortou e as costas das mãos se arranharam
ria entortá-lo com força no sentido do pequeno espaço cavado
nas grades sujas. Começou o trabalho novamente, porém ficara
na parede! E assim fez, golpeando metodicamente com a pedra.
mais difícil; com a ferramente deteriorada, as pedras pareciam
O trabalho era lento, o ferro frio é difícil de malhar. Teve a ideia
irredutíveis. Bateu, bateu, bateu (as mãos já sangravam). Caiu
de esquentá-lo, fazendo uma pequena labareda com alguns car-
no choro e esfregou o rosto com as mãos feridas. Após um mo-
tões que estavam na carteira, gastando quase todo conteúdo da
mento de autopiedade, o gosto do sangue na boca deu-lhe novo
caixa de fósforos. Teve resultado...
ânimo, revitalizando-a como se fosse uma vampira.
Finalmente (as mãos doíam), terminou. A tranca da fecha-
“Calma, Raquel”, disse a si mesma. Recomeçou com calma,
dura poderia passar pelo caixilho violado. Tentou abrir, mas
calculando cada golpe. Começou a fazê-los um sobre o outro,
não pôde! “Vamos, estou quase saindo”, instigou. Raquel sacu-
em um mesmo ponto, até que sentisse a taipa voltar a esfarelar.
diu violentamente a porta meio desconjuntada. “Se a suspender
Cerca de duas horas depois, conseguiu fazer um pequeno
um pouco, quem sabe...”. Então, com uma sensação de regozijo,
buraco por onde enxergava a lingueta cintilante da fechadura.
conseguiu. Estava livre!
Aproximou os olhos do buraco para observar o caixilho. Trata-
Abriu devagar a saída do cárcere macabro. Encaminhou-se à
va-se de uma moldura inteiriça, com uma fenda retangular no
porta da capela, perto das janelinhas empoeiradas, “já amanhe-
meio, por onde passava a tranca. A fenda era um pouco maior,
ceu...”. Girou o trinco e esta não estava trancada. Tão infalível
delatando que a antiga fechadura (a original) era mais robus-
Ricardo achara seu plano, que nem se dera o trabalho de trocar
ta. Isso dava uma pequena folga à porta, evidente quando a
a fechadura desta!
chacoalhava.
Escavou mais um pouco, (a testa úmida de suor), mais ainda,
até que a tranca ficasse à mercê de seu vandalismo. Respirando
Num longo hausto respirou o ar da liberdade. Ah, quão sutil
é a linha entre a vida e a morte! Às vezes, um pouco de determinação e astúcia podem fazer toda a diferença.
com júbilo, acendeu um fósforo e desceu à catacumba. Olhando
Só neste momento Raquel se deu conta de que estava com sede
para o chão, encontrou o que precisava: um pequeno pedaço de
– mas isso não era importante agora. Ao lusco-fusco percorreu
49
depressa a via de cascalho que levava ao
caixilho, recolocar a tranca no lugar e os
uma bolsa e uma echarpe apodrecidas,
portão do cemitério. “Escapei, maldito”,
pedaços de estuque na parede. Tinha cer-
que não tinham identificação. Mas o que
pensou com fúria e alegria. Mas... e se ele
teza de que Ricardo voltaria, afinal o vira
realmente intrigava, eram as circunstân-
voltasse? Estacou. E se descobrisse que
guardando as chaves. A porta deveria pa-
cias insólitas do suicídio. Os peritos ten-
fugira? E se Ricardo começasse a perse-
recer inviolada. Deixaria na catacumba
tavam desvendar um mistério: por que
gui-la para terminar o intento assassi-
algumas coisas, entre elas, a bolsa (sem
o homem se matara, cortando os pulsos,
no? Não, Raquel não poderia chamar a
dinheiro e documentos, é claro), o que
abraçado apaixonadamente a um cadá-
polícia, não poderia contar a verdade – o
serviria também de álibi para o “assalto”.
ver centenário...
marido, ciumentíssimo, iria querer satis-
Então, ao encontrar o que precisava em
fações do porquê fora se encontrar às es-
um dos túmulos quebrados do cemitério,
condidas com o ex-amante.
arrumaria tudo, impecavelmente. A vin-
Começou a pensar. Ou melhor, a ide-
gança seria perfeita.
alizar. Ao esposo, diria que tinha sido as-
- O que está fazendo, querida?
saltada e largada em um lugar distante. A
Raquel abriu os olhos. Um crepúscu-
pretexto de trauma, pediria-lhe para não
lo esplêndido, solferino, a surpreendeu.
envolver a polícia e nem tocar mais no
A voz do marido a trouxera de volta ao
assunto. Quanto ao seu algoz... ah, Ricar-
presente.
do teria uma grande surpresa!
Olhou ao redor, o lugar era mesmo
- Estou admirando o pôr do sol, sorriu
enigmática.
deprimente e assustador. Lápides em
O esposo a abraçou e ficaram juntos
ruínas, mármores partidos, tudo, tudo
a contemplar o horizonte matizado, os
Marcia Pfleger (pronuncia-se Flêguer), é jorna-
abandonado. Mas, tinha tempo. Ainda
barcos que navegavam ao longe, sentin-
lista e escritora. Nasceu em União da Vitória (in-
mal amanhecera...
do a brisa marinha acariciar o rosto, em
Com uma cruz de ferro caída de um
completa paz.
terior do Paraná), mora e trabalha em Curitiba.
Participou da edição 6 da Revista Parênteses
e da antologia Paralelos - Contos Fantásticos,
túmulo dirigiu-se novamente – assom-
Sobre a cama, a página aberta de um
pela Editora Inverso, com o conto O Segredo do
brada com a própria audácia – para os
jornal brasileiro trazia uma estranha no-
Alquimista. Também integra o Dossiê Woolfiana
fundos do sinistro cemitério. “Acho que
tícia... Em um ermo vilarejo, dentro de
- Mulheres escritoras dos séculos XX e XXI, organi-
será um bom instrumento para o que
um antigo cemitério abandonado, fora
zado pela UFPR. É autora do blog Unha que risca
preciso fazer depois”, pensou.
encontrado um homem – morto recen-
A primeira coisa seria desentortar o
temente. Ao lado do seu corpo estavam
a lousa. Seu livro de estreia, Caneca de Café com
Versos, foi lançado em setembro deste ano pela
Editora 7Letras.
50
A perpétua saudade
daquele novembro café
Nós éramos cicatriz
Uma chaga na pele de Gaia
Contorcionistas equilibrantes dos
Quereres & carências
Contaríamos ainda mais uma vez as palavras
dos tântricos movimentos das nossas pregas
de couro cru:
-Um hiperorgasmo em latim- Uma
saliva que não mata a sede- E
um veneno vencido no mar do jardimMeu sangue te queria por completa
empurrava minhas artérias
Caçando o oxigênio das tuas inspirações
Todo o odor que percorria a casa
Era um convite pra inércia teimosa
daqueles corpos estendidos,
a completarem-se entre os ácaros que
especulavam pelos fios do carpete
Desde que estive em você na perpétua
Matheus
Hatschbach
marca dos vales sedosos de novembro.
52
Quem sabe
se num café
te encontrar
lendo aquele
alérgico livro
blasé
de sempre
possa
olhar reto
sem despencar
na gravidade óptica
da suja orbita
sua.
53
Poesia escrota
Quero uma antropofagia escrachada
Vomitada num beco atrás da tua esquina
Vulgarizar todos meus versos
Só para escandalizar esse comichão retrógrado que me puxa a
espinha
Poesia são
os teus brilhantes olhos
de ressaca
é o carinho disfarçado nas
pulgas dos cachorros de rua
é o cheiro
do creme hidratante
de frutas vermelhas
entrando intempestivamente
Amedrontar tuas regras das minhas linhas
Tuas métricas nas feridas
Por que elas não me deixam fechar
Quero apodrecer toda expectativa de uma lírica
Não sou teu poeta, meu bem
Quero explodir o mundo só para
O bem gozar do meu vagabundo
Não quero a arte,
Quero pintar o papel d’umas gotas de suor sangue e saliva
na minha pele
é você
sendo sem
mas
nem que
é você.
54
Aqui jaz um poeta
Teimou tanto
Em ter o mundo
numa rima
Que terminou
Sem fundos
nem linha.
Matheus
cresceu
Hatschbach
inundado
nasceu&-
pela
nebli-
na curitibana, com os pulmões
carbonizados pela cidade. Cursa
História e Direito e constrói o
Coletivo Invernáculo. Participou
dos livros Desnamorados e O Corvo.
Os escritos são publicados no blog
devaneiostropicais.wordpress.com.
55
Jimena Arnolfi por
Lubi Prates
Hibernación
Hibernação
En tiempos de autopromoción constante
Em tempos de autopromoção constante
lo mejor es esconderse
o melhor é se esconder
hibernar como un animal
de sangre caliente
hibernar como um animal
entrar en un sueño profundo
de sangue quente,
que el latido sea más lento
entrar num sono profundo
que la temperatura descienda
onde a batida do coração seja mais lenta
ahorrar energías
onde baixe a temperatura;
usar las reservas almacenadas
de los meses más cálidos
poupar energia
mutar en una refugiada,
usando as reservas armazenadas
invencible.
durante os meses mais quentes
se transformar em uma refugiada,
invencível.
57
Día del inquilino
Los días en la ciudad se parecen
a la escenografía de un teatro
una vez que termina la obra
ganarse la vida es arruinarla.
El tren es más mi casa que la casa donde vivo
todo el tiempo miro edificios
imagino torres de cuerpos acostados
Dia do inquilino
uno encima del otro.
Os dias na cidade se parecem
Siento un poco de alivio
com o cenário de um teatro
cuando termino de crujir mis dedos
quando a peça já terminou,
necesito que exista
ganhar a vida é arruiná-la.
una acción similar para la mente.
Podría renunciar a este trabajo
O trem é mais minha casa que a casa onde moro
y recuperar la vida en general
todo tempo olho edifícios
pero no lo haré
imagino torres de corpos estendidos
debo, antes, pagar el alquiler.
um acima do outro.
Me sinto aliviada
quando meus dedos param de ranger e
preciso que haja
a mesma ação para a mente.
Poderia renunciar a este emprego
e recuperar minha vida
mas não farei
devo, antes, pagar o aluguel.
58
http
Afuera, la luna creciente o menguante,
http
Lá fora, a lua crescente ou minguante,
adentro, un brillo oscuro en la botella.
aqui dentro, um brilho escuro na garrafa.
Colecciono redes sociales
Coleciono redes sociais
para demorar la hora en la que me voy a dormir.
só para atrasar o horário de dormir
Estoy sola pero lleno la cubetera
Estou sozinha, mas encho a forma de gelo
para no despertar a nadie.
para não despertar ninguém.
59
Estatísticas
Estudos de mercado para saber
que tipo de mente você tem
que sabonete ou creme dental usa,
em qual candidato vai votar.
Quando o telefone toca e
é uma nova pesquisa
minto em todas as respostas.
Depois me sinto bem
Estadísticas
como se tivesse ganho um prêmio.
Estudios de mercado para saber
qué tipo de mente tenés
qué jabón o dentífrico usás
a qué político vas a votar.
Cuando suena el teléfono
y es una nueva encuesta telefónica,
miento en todas las respuestas.
Después, me siento bien
como si hubiera ganado algo.
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Militancia
Militância
Estoy a favor de cualquier cosa
Sou favorável a qualquer coisa
que me haga pasar la noche.
que me faça passar a noite.
La actitud que tomemos será crucial
A atitude tomada será crucial
para sobrellevar este clima de fin de época.
para suportar este clima de fim de época.
Jimena Arnolfi nació en Buenos Aires, Argentina en 1986. Estudió
Lubi Prates: nasceu em 86, em São Paulo. Estudante de Psicologia. Tem pu-
Comunicación Social. Sus escritos circulan en antologías, revistas y pu-
blicado o livro coração na boca (Editora Multifoco, 2012) e algumas par-
blicaciones online. Publicó Todo hace ruido (Editorial Pánico el Pánico,
ticipações em revistas e antologias literárias nacionais e internacionais.
2013), Metafísica (La Fuerza Suave, 2015) y el cuento Yo quería que lo ma-
Escreve no blog coração na boca. Edita a Parênteses, revista literária virtual,
tes en formato audiolibro (Grupo Alejandría, 2015). Tiene un blog:
e traduz. Vive em Curitiba.
www.elpoemadelmomento.blogspot.com.ar
61
ensaio
fotográfico de
Vanessa
Carvalho
Vanessa Carvalho nasceu em Recife, em 1995. Mantém desde 2013 o
projeto Reconhecendo-se em Desconhecidos, no qual, por onde anda,
fotografa pessoas que ela nunca viu. Também escreve e publica no
blog Filosofia de Quinta.
Lista de autores já publicados
Alan Kramer, Ana Guadalupe, Ana Kehl de
Moraes, Ana Martins Marques, Ana Rüsche,
André Oviedo, Andréa Del Fuego, Aníbal
Cristobo, Barbara Mastrobuono, Bruna Beber,
Bruno Palma e Silva, Cecilia Pavón, Daniel
Francoy, Daniella de Paula, Déa Paulino,
Deborah Prates, Dimitri br, Edu Suppion, Érica
Zíngano, Fabiano Calixto, Fabíola Weykamp,
Fabricio Corsaletti, Felipe Nepomuceno,
Gabriela Ventura, Gertrude Stein, Grazi
Shimizu, Guilherme Damasceno, J.F. de Souza,
Juliana Amato, Juliana Krapp, Luana Vignon,
Ismar Tirelli Neto, Jeanne Callegari, Julianna
Motter, Laura Liuzzi, Leandro Jardim, Lielson
Zeni, Lyn Hejinian, Leo Ventura, Leonardo
Gandolfi, Lilian Aquino, Lubi Prates, Luca Argel,
Luci Collin, Ludmila Rodrigues, Maíra Ferreira,
Maíra Matthes, Marcos Casadore, Mariana
Botelho, Marília Garcia, Marcia Pfleger, Mirella
Carnicelli, Múcio Góes, Nathalie Lourenço,
Noemi Jaffe, Odile Kennel, Pierre Masato, Rafael
Mendes, Raimundo Neto, Ricardo Domeneck,
Rodrigo Garcia Lopes, Rubens Akira Kuana,
Sergio Mello, Stephanie Borges, Tao Lin, Thiago
tizzot, Vanessa Rodrigues, Victor Heringer,
Virna Teixeira, William Zeytounlian.
Fotógrafos
Adelaide Ivánova, Ana Kehl de Moraes, André
Lasak, Alexandre Santos, Carol de Andrade,
Camila Lordelo, Daniela Feder, Edu Suppion,
Julio Perestrelo, Marcel Fernandes, Mariana
Caldas, Raphael Bernadelli, Rodrigo Sommer,
Thany Sanches, Vanessa Carvalho.
Edição
Bruno Palma e Silva
Lubi Prates
Fotos
Marcel Fernandes
cargocollective.com/marcelfernandes
Projeto gráfico
Bruno Palma e Silva
palmaesilva.com.br
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