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100 PRINCIPIA HORRERE Felipe Barros Lopes Resumo: Este trabalho pretende enquadrar parte da ficção de Poe como o primeiro êxito deliberado na estruturação do horror literário. Ainda que considerada a influência exercida por obras góticas na formação do autor, é impossível ignorar a feição pioneira de seus contos ao unir, em aparente paradoxo, a perspectiva científica à narrativa fantástica de teor macabro. A análise focará dois contos, “O gato preto” e “A verdade no caso do sr. Valdemar”, e buscará mostrar como algumas de suas qualidades, tais como a unidade de efeito, a economia descritiva e a dimensão psicológica, tornaram-se componentes indeléveis do sistema axiomático do horror. Palavras-chave: horror · ciência · estruturação Abstract: This work aims to frame part of Poe’s fiction as the first deliberate achievement in the structuring of literary horror. Even considering the influence exerted by gothic works over the author’s formation, it is impossible to ignore the pioneer trait of his tales when combining, in apparent paradox, the scientific perspective to the fantastic narrative of macabre tenor. The analysis will focus on two tales, “The Black Cat” and “The Facts in the Case of Mr. Valdemar”, and will attempt to show how some of their features, such as the unity of effect, the descriptive economy and the psychological dimension, have become indelible components of horror’s axiomatic system. Keywords: horror · science · structuring. INTRODUÇÃO Poucas expressões são tão aptas para captar a singularidade do relacionamento tempestuoso entre Edgar Allan Poe e sua matéria-prima como a advertência de Nietzsche: “Se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”. 1 Se o abismo em Poe pode ser prontamente identificado nos distúrbios de personalidade, alcoolismo e episódios de insanidade que atormentaram sua trágica existência, é inegável que, em contrapartida, trouxe consigo uma percepção aguçada dos aspectos obscuros da natureza humana, 2 além de uma habilidade inédita para dissecar as nuances da mortalidade em histórias curtas, dilacerantes. E da terrível imagem que ficou capturada em sua retina, nasceu o horror. Em primeiro lugar, é preciso asseverar que o maior obstáculo enfrentado por qualquer tentativa de sistematização do horror literário está na heterogeneidade da abordagem crítica quanto à definição dos termos essenciais – horror, terror e gótico – os quais, ao serem utilizados de maneira indiscriminada, perdem sua densidade significativa e misturam-se em uma “massa turva de contornos indefiníveis”. 3 O título deste trabalho alude ao Principia mathematica philosophiæ naturalis (1687), de Isaac Newton, obra responsável pela exposição das leis do movimento e teoria da gravitação, considerada o sustentáculo da ciência moderna. 1 NIETZSCHE. Para além do bem e do mal, aforismo 146, p. 79. 2 “Estar completamente familiarizado com o coração do Homem é obter nossa lição final no livro férreo do Desespero” (POE. The complete tales and poems, p. 711, tradução minha). 3 JEHA. Edgar Allan Poe: the fall of the masque, p. 10, tradução minha. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 100-108. 101 Dessa forma, com o intuito de evitar qualquer confusão terminológica, considera-se, neste trabalho, que o horror, como manifestação da literatura fantástica, diferencia-se do gótico e do terror pelo aspecto temporal e temático, respectivamente. 4 Assim, denomina-se gótico o movimento literário compreendido entre 1760 e 1830, que precede e fundamenta o horror, enquanto o terror, por outro lado, engloba a vertente literária de caráter mórbido, porém não fantástico. 5 O conceito de horror literário aqui adotado é, na verdade, um amálgama formado a partir das teorizações de H. P. Lovecraft e Noël Carroll sobre o tema. Lovecraft, para quem a criação de uma determinada sensação é sempre o critério final de autenticidade de um conto de horror sobrenatural, 6 aponta os seguintes elementos como constitutivos do gênero: Uma atmosfera inexplicável e empolgante de pavor de forças externas desconhecidas precisa estar presente; e deve haver um indício, expresso com seriedade e dignidade condizentes com o tema, daquela mais terrível concepção do cérebro humano – uma suspensão ou uma derrota maligna e particular daquelas leis fixas da Natureza que são nossa única salvaguarda contra os assaltos do caos e dos demônios dos espaços insondáveis. 7 Carroll, por sua vez, identifica o horror 8 literário pelo estado emocional que inflige ao leitor: uma agitação física anormal provocada pelo pensamento de um monstro (em termos dos detalhes apresentados pela obra), seguido do reconhecimento do seu perigo e impureza. 9 Partindo da premissa de que as reações emocionais do leitor tendem (idealmente) a 4 Sem qualquer pretensão científica, as distinções entre os termos serão traçadas de modo a melhor acomodar os objetivos deste trabalho. Todavia, a fim de evitar imprecisão, enfatiza-se que a utilização de cada termo estará estritamente vinculada ao significado a ele aqui concedido. 5 Essa é uma distinção de suma importância para a coerência deste trabalho, tendo em vista que Poe escreveu tanto contos de horror como de terror. Se, por um lado, o objetivo genérico de ambos é o mesmo – provocar medo e repulsa no leitor – a premissa utilizada para tanto (em termos de obediência às leis naturais) é substancialmente diferente, o que explica por que contos clássicos como “O coração delator” e “O poço e o pêndulo” devem necessariamente ficar de fora do horror, em que pese o pavor psicológico por eles gerado. Se essa distinção, em linhas gerais, é semelhante àquela feita por Noël Carroll, discorda-se da conclusão a que chega este autor: “Nos termos da teoria a ser proposta por este livro, a maior parte da obra de Poe não se enquadra no gênero do horror. Eu prefiro considerar Poe um mestre do terror, não horror” (CARROLL. The philosophy of horror, p. 215, tradução minha). 6 “Atmosfera é a coisa mais importante, pois o critério final de autenticidade não é a harmonização de um enredo, mas a criação de uma determinada sensação” (LOVECRAFT. Supernatural horror in literature, p. 108, tradução minha). Essa concepção de Lovecraft está umbilicalmente ligada à “Filosofia da composição”, de Poe, conforme será mostrado adiante. 7 LOVECRAFT. Supernatural horror in literature, p. 107, tradução minha. 8 “Arte-horror” é a nomenclatura preferida pelo autor, distinguindo o seu objeto de estudo – horror como um gênero da produção cultural – dos chamados “horrores naturais”, como os desastres ambientais, por exemplo (CARROLL. The philosophy of horror, p. 12). 9 Na verdade, essa é apenas uma brevíssima síntese do pensamento do autor, cuja complexidade previne uma análise mais detalhada. Todavia, vale acrescentar que o horror, como um estado emocional transitório, tem uma dimensão física e uma cognitiva. A dimensão física requer algum tipo de agitação física como, por exemplo, a aceleração dos batimentos cardíacos, enquanto a dimensão cognitiva envolve crenças e pensamentos que individualizam o horror através de uma análise factual (ex: há um caminhão vindo em minha direção) e avaliativa (ex: o caminhão é perigoso). Perigo e impureza são, na teoria de Carroll, os dois componentes avaliativos que constituem o objeto formal da arte-horror (emoção). O requisito do perigo (ou ameaça) é satisfeito pela mera capacidade letal do monstro, que, todavia, também pode ser perigoso em termos psicológicos, morais ou sociais. A impureza, por sua vez, é postulada como resultado da regularidade com que experiências de horCONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE · 2009 · Belo Horizonte 102 espelhar àquelas esboçadas pelas personagens, o autor vislumbra o cerne do gênero nas consequências geradas pela intervenção inesperada de monstros sobre o comportamento dos humanos (ficcionais), o que em regra envolve uma combinação volátil entre repugnância e incompreensão. Essa relação de causalidade desponta justamente como a interseção conceitual do pensamento dos dois autores – e a proposição contida nesta introdução – na medida em que distingue a estrutura primordial do horror nas distorções da ordem natural que agridem as normas de propriedade ontológica. 10 Dentro dessa perspectiva inserem-se alguns brilhantes contos de Poe, legítimos pioneiros da “literatura de medo cósmico” por sua precoce aptidão, no início do século 19, de despertar no leitor “um profundo senso de pavor e de contato com potências e esferas desconhecidas”. 11 A CIÊNCIA DO HORROR A natureza paradoxal do liame entre o iluminismo e a literatura gótica é um tema elusivo que, embora repisado por inúmeros ensaios críticos, ainda desafia uma interpretação definitiva. Enquanto a opinião majoritária contenta-se em rotular os caracteres góticos elementares – subjetividade, emoção e regressão – como meros efeitos residuais da Idade da Razão, reduzindo o gênero a um fórum marginalizado para a expressão de crenças supersticiosas, outros estudos apontam para o caráter subversivo do movimento, socialmente engajado 12 na exposição das contradições culturais e na crítica ao status quo. 13 De qualquer forma, não restam dúvidas de que a vertente literária inaugurada a partir da publicação de O castelo de Otranto, em 1765, é discrepante dos lemas da objetividade e do progresso esposados por Descartes, Locke e Newton, porquanto caracterizada por sua excentricidade e inclinação soturna: ror enfrentadas por personagens ficcionais incluem referências a desgosto, aversão, etc. Ainda, nos termos do pensamento de Mary Douglas (Purity and danger), Carroll acredita que um objeto ou ser é impuro se ele é categoricamente intersticial, contraditório, incompleto ou disforme. A impureza, portanto, envolve um conflito entre uma ou mais categorias culturais (CARROLL. The philosophy of horror, p. 29-31). 10 “Quando isso ocorre, sentimos que nossas expectativas de ordem – as fronteiras – estabelecidas pela ciência, filosofia, moral ou estética foram transgredidas” (JEHA. Monstros como metáforas do mal, p. 21). Ainda: “O medo surge não porque nos deparamos com o desconhecido, mas porque a racionalidade do homem não consegue explicá-lo, o que resulta na perda da ilusão de controle” (JEHA. Edgar Allan Poe: the fall of the masque, p. 38, tradução minha). 11 LOVECRAFT. Supernatural horror in literature, p. 108, tradução minha. Tais contos “representam a literatura do horror sobrenatural em sua forma mais aguda; e dão a seu autor a posição permanente e inatacável de divindade preceptora da ficção diabólica moderna” (p. 135, tradução minha). 12 “O Gótico desestabiliza, oferece e dramatiza alternativas que podem ser terríveis, mas que tendem a iluminar as rachaduras e fissuras daquilo que presunçosamente tomamos como certo ou daquilo que é imposto sobre nós como natural, a ser obedecido” (WISKER. Horror fiction: an introduction, p. 7, tradução minha). 13 “É uma literatura de subversão, considerando que contraria a ordem dominante? Ou é uma literatura normativa e reacionária, dado que prega o retorno ao status quo anterior? Ou ainda, será uma literatura que subverte a ordem apenas para asseverar a norma?” (JEHA. Edgar Allan Poe: the fall of the masque, p. 10, tradução minha). Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 100-108. 103 Passagens subterrâneas, catacumbas, calabouços, porões – são todas matérias-primas dos primeiros autores góticos, providenciando locais em que o terror e a sandice predominam, onde paixão transforma-se em desgosto, amor torna-se ódio e o bem engendra o mal. Isto nos alerta para um dos princípios estruturais básicos do gênero, a inversão – o prazer em virar coisas ao avesso. 14 Os temas e imagens evocados pela literatura gótica compõem de modo geral um universo de surpreendente coerência, como se observa pelos expoentes clássicos do gênero no final do século 18: Os mistérios de Adolfo (Ann Radcliffe), Edgar Huntly (Charles Brockden Brown), O monge (Matthew Lewis) e Vathek (William Beckford). Tais obras foram responsáveis pela invenção de novos tipos de cenários, personagens e incidentes que, nas mãos de escritores mais naturalmente adaptados à criação fantástica, “estimularam o crescimento de uma escola imitativa do gótico, a qual, por sua vez, inspirou os verdadeiros criadores do terror cósmico – a linhagem de artistas que começa com Poe”. 15 De certa maneira, podemos supor que o perfil eclético da educação de Poe, ao longo da terceira década do século 19, tenha culminado na fusão, aparentemente contraditória, entre o rigor lógico da ciência moderna e o teor lúgubre dos romances góticos que determinou a composição sui generis de sua produção literária. Não é coincidência, portanto, que o surgimento do horror tenha ocorrido em meio a essas circunstâncias, emancipando-se do gótico através da figura de Poe, 16 que buscou na razão iluminista “o tipo de concepção de natureza ou o tipo de cosmologia necessária para criar um real senso de horror”. 17 O horror de Poe não comporta interpretações pejorativas que o reduzam a uma mera fabricação de sustos, uma vez que a história fantástica genuína, na expressão de Lovecraft, tem algo mais que “um assassinato secreto, ossos ensangüentados ou vultos cobertos com lençóis que arrastam correntes”. 18 É com Poe que vemos o Gótico pela primeira vez se distanciando da ênfase em adereços e cenários – florestas negras e cavernas lúgubres, esqueletos e tempestades – em direção a uma sensibilidade singular caracterizada por tendências transgressivas e distorções extremas de percepção e afeto. A genialidade de Poe reside no seu reconhecimento dos tipos de analogias estruturais possíveis entre as armadilhas e a sensibilidade, e na destreza com que as entrelaça. 19 Longe de ser uma literatura escapista, seu legado merece ser avaliado como uma autêntica “expressão estética da perplexidade do homem diante de um universo assustador e aparentemente perverso”. 20 14 MCGRATH; MORROW. Picador book of the new gothic, p. 8, tradução minha. LOVECRAFT. “Supernatural horror in literature”, p. 114, tradução minha. 16 Não se pretende contestar a existência de várias similaridades entre o horror e o gótico. A questão, contudo, é o referencial utilizado para promover o enquadramento de Poe e, quanto ao ponto, sustenta-se que a singularidade de sua ficção é condição suficiente para tê-lo como precursor de um novo gênero. 17 CARROLL. The philosophy of horror, p. 57. No mesmo sentido: "O horror sobrenatural pode existir apenas onde o mundo ordinário de nossas vidas cotidianas é pressuposto como a norma; a ‘lei natural’, na frase de Lovecraft, só pode ser ‘violada’ quando se presume seu funcionamento no mundo real" (JOSHI. The weird tale, p. 7, tradução minha). 18 LOVECRAFT. Supernatural horror in literature, p. 107, tradução minha. 19 MCGRATH; MORROW. Picador book of the new gothic, p. 8, tradução minha. 20 JEHA. Edgar Allan Poe: the fall of the masque, p. 12, tradução minha. 15 CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE · 2009 · Belo Horizonte 104 O HORROR DA ALMA A hipótese central deste trabalho identifica o advento da ficção de Edgar Allan Poe como marco inicial do horror literário e será defendida por meio do estudo de dois de seus contos, “A verdade no caso do sr. Valdemar” e “O gato preto”, clássicos do gênero. No primeiro caso, a distorção da ordem natural verifica-se no êxito da mesmerização 21 em obter a paralisação anômala do processo de decadência física de um homem moribundo, cuja condição permanece inalterada por vários meses, intervalo durante o qual ele reitera por diversas vezes que já está morto; no segundo, as normas de propriedade ontológica são agredidas por um gato – encarnação demoníaca – que retorna da morte para assombrar o narrador. 22 Em ambos os contos são encontrados os ingredientes essenciais de seu “horror científico”: a unidade de efeito, o ceticismo do narrador, o tom factual do relato, a economia descritiva, a dimensão psicológica e a progressão gradual ao clímax (que efetivamente ocorre na última frase). A unidade de efeito é o princípio que preside sobre os demais, uma vez que, além de revelar a ratio essendi por trás da maior parte dos contos de Poe, traduz a concepção estética fundamental do autor, qual seja, conseguir excitar no leitor uma “intensa e pura elevação da alma”. 23 A escolha do efeito, logo, deve ser sempre a primeira consideração de qualquer artista: 24 ‘Dentre os inumeráveis efeitos ou impressões a que são suscetíveis o coração, a inteligência ou, em termos mais gerais, a alma, qual devo eu, na presente ocasião, eleger?’ Tendo escolhido um original, em primeiro lugar, e vigoroso efeito, indago se ele pode ser melhor explorado através dos incidentes ou da tonalidade – se por eventos ordinários descritos em um tom peculiar, ou o contrário, ou pela peculiaridade de ambos – buscando após em torno de mim (ou melhor, dentro de mim) pelas combinações entre evento e tonalidade mais adequadas para a construção do efeito em questão. 25 Para alcançar a unidade de efeito, todavia, duas considerações adicionais fazem-se indispensáveis: uma diz respeito à dimensão da obra, enquanto a outra se refere ao dénouement. Com relação à primeira, o grande mérito de Poe foi perceber que o conto é um formato muito mais apropriado para o horror do que o romance, pois, considerando-se que todas as emoções elevadas são necessariamente transitórias, a brevidade permite ao autor capturar a atenção do leitor e exprimir a totalidade de sua intenção sem o prejuízo de interrupções: 21 Nomenclatura antiga para hipnose ou hipnotismo. O nome dessa disciplina vem do físico alemão Franz Anton Mesmer (1734-1815), que acreditava na existência de uma força física que poderia ser usada na cura de estados de desordem física e mental. 22 As interpretações críticas de “O gato preto” normalmente concentram-se no estado psicológico do narrador. A história, no entanto, também pode ser lida nos termos da demonologia, considerando-se as frequentes alusões folclóricas aos poderes sobrenaturais dos gatos e sua capacidade de transgredir a fronteira entre a vida e a morte. Afinal, o próprio Lúcifer é comumente personificado como um gato. Por fim, dada a natureza analítica da mente de Poe, a coincidência entre o nome do gato no conto – Plutão – e o deus romano do inferno é dificilmente acidental. 23 POE. The philosophy of composition, p. 892, tradução minha. 24 “Se a primeira frase não se direcionou para esse efeito, ele fracassa já no primeiro passo. Em toda a composição não deve haver sequer uma palavra escrita cuja tendência, direta ou indireta, não leve àquele único plano pré-estabelecido” (POE. Twice-Told Tales: a review, p. 684, tradução minha). 25 POE. The philosophy of composition, p. 891, tradução minha. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 100-108. 105 O romance comum tem suas objeções, devido à sua extensão, pelos motivos já citados em destaque. Como não pode ser lido numa assentada, perde, é claro, a imensa força derivada da totalidade. Os interesses do mundo que intervêm durante as pausas da leitura modificam, desviam, anulam, em maior ou menor grau, as impressões do livro. Porém, a simples detenção da leitura por si só seria suficiente para destruir a verdadeira unidade. No conto breve, no entanto, o autor pode levar a cabo a totalidade de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora de leitura, a alma do leitor está nas mãos do escritor. 26 O dénouement, por outro lado, implica um planejamento meticuloso que tem a idéia do desenlace sempre em vista, com a finalidade de conferir ao enredo um “ar indispensável de conseqüência, ou causalidade, fazendo com que os incidentes e, especialmente, o tom geral, atendam ao desenvolvimento da intenção”. 27 Tanto “O gato preto” como “A verdade no caso do sr. Valdemar” são ficções construídas a partir da aplicação fidedigna da “Filosofia da composição”: 28 com menos de 4.000 palavras, ambos os contos primam pela concisão, comprimindo as narrativas rigorosamente aos eventos que detêm influência direta sobre sua conclusão. 29 A unidade de efeito transparece na textura hermética dos relatos, que progridem deliberadamente em um espectro de estranheza cada vez mais acentuado, desafiando a incredulidade do leitor. Sob essa ótica, o ceticismo dos narradores revela-se uma estratégia valiosa, na medida em que sua relutância em atribuir qualquer significado sobrenatural aos incidentes extraordinários, somada ao tom factual cuidadosamente divisado por Poe, atua como referência ao leitor, imediatamente seduzido pela lucidez de seus interlocutores. 30 Todavia, sucumbem – leitor e narradores – inesperadamente a uma armadilha, uma vez que o desfecho das tramas irá exceder os limites da racionalidade e trará consigo o caos inescapável do horror. É curioso notar que em cada caso o narrador se apresenta ao leitor e oferece detalhes de sua vida ou educação em uma tentativa de legitimar a autoridade de seu discurso. Em “A verdade no caso do sr. Valdemar” a autoridade decorre da experiência do narrador com as técnicas de mesmerização e ainda da presença de um grupo de médicos, cuja participação visa atender às exigências de imparcialidade e empiricismo do método científico, enquanto em “O gato preto” a autoridade não deflui precisamente de uma qualidade inata ao narrador, mas da sensatez com que reconhece a estranheza de seu relato e da admissão da possibilidade de elucidação lógica de circunstâncias aparentemente insondáveis, embora ciente de que isso iria somente ratificar sua culpabilidade e corroborar a validade da pena de morte que lhe fora imputada. A economia descritiva também concorre para o êxito dos contos, mostrando-se uma técnica apropriada para a narrativa fantástica, pois delineia o sobrenatural por meio de uma prosa esparsa e lacônica que não sufoca o leitor com pormenores, mas, pelo contrário, 26 POE. Twice-Told Tales: a review, p. 684, tradução minha. POE. The philosophy of composition, p. 891, tradução minha. 28 POE. The philosophy of composition, p. 891. 29 “Em ‘O gato preto’ os terrores são calculados com fria sutileza. Todo artifício é usado para aprofundar a impressão e intensificar a agonia” (BIRKHEAD. The tale of terror, p. 185, tradução minha). 30 Tal proposição é integralmente confirmada em célere exame de trechos do primeiro parágrafo de cada conto. “Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos.” (POE. The black cat, p. 223, tradução minha); “Torna-se agora necessário que eu exponha os fatos – até onde alcança minha compreensão dos mesmos” (POE. The facts in the case of M. Valdemar, p. 96, tradução minha). 27 CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE · 2009 · Belo Horizonte 106 preserva sua autonomia imaginativa e incita-o a preencher as lacunas. A descrição física do sr. Valdemar ilustra bem tal assertiva: dele só se conhece a magreza e o contraste entre as suíças brancas e o cabelo negro, além, é claro, da propensão à hipnose. Note-se que durante a evolução da história, o moribundo Valdemar cruzará o limiar que separa a vida da morte e, nesses termos, irá transformar-se em um monstro. Entretanto, é um monstro de contornos vagos, que pode ser aproximadamente representado por qualquer homem doente (e, talvez, mais perturbador por isso). Mesmo após o sobrestamento da morte, quando seus olhos se abrem e a cor desaparece de suas bochechas, pouco é dito sobre a aparência de Valdemar; o narrador menciona apenas seu matiz cadavérico, preferindo investigar o teor da voz hedionda – um som “áspero, quebrado e oco” – que chega aos seus ouvidos “de uma vasta distância, ou de uma caverna subterrânea profunda” e imprime sobre ele uma “sensação gelatinosa”. 31 Da mesma forma, os momentos que deflagram maior tensão em “O gato preto” são sutilmente disfarçados em descrições prosaicas, como a impressão do gato (com a corda em seu pescoço) sobre a parede da casa e a mancha branca em seu ventre que progressivamente adquire forma definida. A dimensão psicológica nesse conto torna-se evidente, a princípio, pela radical transição de gênio sofrida pelo narrador, que, dotado de uma índole dócil e pacífica, cede à intemperança. Esta, somada ao estupor da embriaguez contumaz, resulta, certa noite, na agressão gratuita que irá desencadear os sucessivos infortúnios de seu destino, começando pelo incêndio da casa e o fatídico retorno do animal. O horror então se torna palpável na agitação mental do narrador diante da presença agourenta do gato e na constante oscilação entre remorso, perversidade e pavor que atinge seu apogeu no homicídio acidental e, em seguida, na diabólica denúncia de seu algoz. 32 Resta, por fim, salientar o talento inigualável de Poe na construção do clímax. O final de seus contos é sempre memorável e, seguindo à risca sua disciplina no engendramento da unidade de efeito, elevam o momentum de suspense e apreensão da narrativa a um pináculo horripilante, capaz de povoar os pesadelos dos leitores por várias gerações. 33 31 POE. The facts in the case of M. Valdemar, p. 101, tradução minha. Trata-se de um testamento da genialidade de Poe, que com breves pinceladas detém absoluto controle sobre as emoções do leitor: é impossível não se sentir fisicamente repelido pelas implicações tenebrosas da cena. 32 Em “A verdade no caso do sr. Valdemar,” destaca-se a tensão psicológica do momento subsequente à apavorante declaração de Valdemar – “Agora estou morto!” –, quando o estudante de medicina desmaia e o narrador declara não ter palavras para exprimir seus sentimentos. 33 “Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!” (POE. The black cat, p. 103, tradução minha). “Enquanto eu fazia rapidamente os passes magnéticos, entre ejaculações de ‘Morto!’, ‘Morto!’, irrompendo inteiramente da língua e não dos lábios do paciente, todo seu corpo, de pronto, no espaço de um único minuto, ou mesmo menos, contraiu-se... desintegrou-se, absolutamente podre, sob minhas mãos. Sobre a cama, diante de toda aquela gente, jazia uma quase líquida massa de nojenta e detestável putrescência” (POE. The facts in the case of M. Valdemar, p. 230, tradução minha). Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 100-108. 107 A SOMBRA CRESCENTE Poe é o fundador de uma tradição literária macabra de quase dois séculos de existência. Sua influência é incontestável nos cinco maiores textos de horror do final do século 19: Drácula (Bram Stoker), A ilha do dr. Moreau (H. G. Wells), O médico e o monstro (Robert Louis Stevenson), A volta do parafuso (Henry James) e O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde); além disso, sua repercussão estende-se sobre outros célebres autores do gênero como Ambrose Bierce, John Sheridan Le Fanu, William Hope Hodgson, Guy de Maupassant, Edith Wharton e Oliver Onions. Ecos de seu legado também podem ser notados na tradição da weird tale que abrange Arthur Machen, M. R. James, Lord Dunsany, Algernon Blackwood e H.P. Lovecraft, nos representantes do horror no século 20 – Robert Bloch, Richard Matheson, Shirley Jackson, Ira Levin e William Peter Blatty – e na inspiração de autores contemporâneos como Clive Barker, Ramsey Campbell e Stephen King. Finalmente, é sempre válido lembrar a ressalva de Lovecraft a respeito de comparações pontuais alheias ao contexto de evolução do gênero: É verdade que escritores subseqüentes podem ter produzido contos específicos melhores do que os dele; mas devemos compreender que foi somente ele quem ensinou, por meio de seu exemplo e preceitos, a arte que os demais, tendo o caminho limpo à frente e um guia explícito nas mãos, foram capazes de levar a maiores distâncias. Quaisquer tenham sido suas limitações, Poe fez aquilo que ninguém mais fez ou poderia ter feito; e a ele devemos a história moderna de horror em seu estado final de perfeição. 34 REFERÊNCIAS BIRKHEAD, Edith. The tale of terror. London: BiblioBazaar, 1921. BOTTING, Fred. The gothic. London: Routledge, 1995. CARROLL, Noël. The philosophy of horror. New York: Routledge, 1990. COHEN, Jeffrey Jerome (Ed.). Monster theory: reading culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996. COLAVITO, Jason (Ed.). 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