modelo de dissertação do programa de pós-graduação
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modelo de dissertação do programa de pós-graduação
JONATHAN MARTINS FERREIRA À MARGEM DA “PALAVRA OFICIAL”: DISSIMULAÇÃO E BOATOS NO MOTIM DE VILA RICA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS MONTES CLAROS Julho/2013 JONATHAN MARTINS FERREIRA À MARGEM DA “PALAVRA OFICIAL”: DISSIMULAÇÃO E BOATOS NO MOTIM DE VILA RICA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Montes Claros, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em História. Área de concentração: História Social Linha de Pesquisa: Identidades Poder, Trabalho Orientador: Prof. Dr. Renato da Silva Dias UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS MONTES CLAROS Julho/2013 e F383m Ferreira, Jonathan Martins. À margem da “palavra oficial” [manuscrito] : dissimulação e boatos no motim de Vila Rica / Jonathan Martins Ferreira. – 2013. 151 f. Bibliografia: f. 145-151. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros Unimontes, Programa de Pós-Graduação em História/PPGH, 2013. Orientador: Prof. Dr. Renato da Silva Dias. 1. Minas setecentistas. 2. Motim – Vila Rica. 3. Dissimulação. 4. Boatos. I. Dias, Renato da Silva. II. Universidade Estadual de Montes Claros. III. Título. IV. Título: Dissimulação e boatos no motim de Vila Rica. Catalogação Biblioteca Central Professor Antônio Jorge JONATHAN MARTINS FERREIRA À MARGEM DA “PALAVRA OFICIAL”: DISSIMULAÇÃO E BOATOS NO MOTIM DE VILA RICA BANCA EXAMINADORA: ________________________________________________________________ Professor Dr. Renato da Silva Dias – Orientador (UNIMONTES) ________________________________________________________________ Professora Dra. Isnara Pereira Ivo (UESB) ________________________________________________________________ Professora Dra. Carla Maria Junho Anastasia (UNIMONTES) Data:_____/_____/_____ UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS MONTES CLAROS Julho/2013 Ao meu irmão e grande amigo, que sempre esteve presente, apoiando-me na elaboração deste trabalho. AGRADECIMENTOS Ao professor Dr. Renato da Silva Dias, pela criteriosa orientação e contribuições indispensáveis ao desenvolvimento desta dissertação, além do empréstimo de livros e na cessão de documentos sobre o Motim de Vila Rica, sem os quais seria impossível a realização desta pesquisa. Agradeço, ainda, pelos cursos de Paleografia que ministrou, no qual nos detivemos no estudo e transcrição de documentos do século XVIII, conhecimento este valiosíssimo para minha formação e para transcrição paleográfica. Ao professor Renato, meus sinceros agradecimentos. Às professoras Dra. Carla Maria Junho Anastasia e Dra. Jeaneth Xavier de Araújo Dias, que em minha banca de qualificação deram contribuições e apontamentos relevantes para a redação final desta pesquisa. Agradeço, também, a todo o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História (strictu sensu), da Universidade Estadual de Montes Claros, que muito contribuiu para a minha formação intelectual. Mais uma vez, agradeço à professora Dra. Carla Maria Junho Anastasia e também à professora Dra. Isnara Pereira Ivo por terem aceitado o convite para participarem da banca de defesa desta pesquisa. A CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pela bolsa de estudos concedida durante dois anos. Apoio financeiro valiosíssimo. A Roseli Aparecida Damaso Messias Garcia, Diretora da Biblioteca Universitária da Universidade Estadual de Montes Claros, pelo profissionalismo e coleguismo na indicação e empréstimo de materiais. Aos familiares, em especial, aos meus pais, Sebastião e Maria, aos meus irmãos, Jones e Priscilla, e a minha prima, Miley Guimarães, pelo grandioso apoio. Aos meus colegas de curso e amigos, Anna Isabel, Cynara Soares, Karine Dias, Leila Cordeiro, Luís Santiago, Marcos Wagner, Maria Marta, Nília Oliveira, Susi Karla e Thiago Ferreira, que sempre que possível me ajudaram e pelos quais tenho profunda gratidão. Agradeço, ainda, aos discentes Gustavo Ramos e Jorge Luiz, pelo auxílio na transcrição de alguns documentos. A Deus, sempre. As sublevações populares (...) estão destinadas a não ter qualquer influência na estabilidade do Estado. Só se tornam perigosas se os Grandes se servem delas como meio para atingirem os seus fins. (Rosario Villari – O rebelde, em “O Homem Barroco”). RESUMO A presente pesquisa analisa o Motim de 1720 em Vila Rica, enfatizando a reação da elite local à política centralizadora empreendida pelo conde de Assumar. Observa-se a presença de um comportamento político fundamentado em valores cuja origem histórica se remonta à Restauração Portuguesa, de 1640. Nesse sentido, apontamos as ações dos líderes da revolta de 1720 que, apoiados em tais valores e, no plano local, nas insatisfações populares resultantes da implantação de novas alterações fiscais, notadamente o sistema de capitação e implantação das Casas de Fundição, passaram a defender seus interesses políticos na região buscando, ocultamente, tramar a expulsão do governador das Minas, acusando-o de ser um governante injusto e tirânico. Diante disso, esta pesquisa busca evidenciar a importância do recurso à dissimulação, e a um de seus elementos mais candentes, os boatos, como estratégias de ação política utilizada pelos líderes rebeldes – elemento ainda pouco explorado pela historiografia. PALAVRAS-CHAVE: Minas Setecentistas, Motim, Dissimulação, Boatos. ABSTRACT This research analyzes the Villa Rica Riot in 1720, emphasizing the local elite's reaction to the centralizing policy undertaken by the Earl of Assumar. The presence of a political behavior based on values whose historical origin goes back to the Portuguese Restoration of 1640 may be observed. Accordingly, we point out the riot leaders’ actions in 1720 that supported in such values and at local level, in popular dissatisfaction resulting from the implementation of new tax changes, notably the capitation and implementation system of Foundry Houses began to defend their political interests in the region secretly seeking to plot the expulsion of Minas governor accusing him of being a tyrannical and unjust ruler. Thus, this research aims to highlight the importance of the use of concealment and one of its most important elements, the rumors, as political action strategies used by rebel leaders - element still not explored by historiography. KEYWORDS: Minas eighteenth century, Riot, Concealment, Rumors. LISTA DE SIGLAS APM – Arquivo Público Mineiro AHU – Arquivo Histórico Ultramarino CMM – Câmara Municipal de Mariana RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro SC – Seção Colonial do Arquivo Público Mineiro [Secretaria de Governo] SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 – MOTINS DO SÉCULO XVIII NA AMÉRICA PORTUGUESA: NEGOCIAÇÃO, ACOMODAÇÃO E RESISTÊNCIA POLÍTICA.................................................................................................................. 16 1.1 A Restauração de 1640 e os Motins na América Portuguesa................................ 16 1.2 A Administração Colonial: um debate.................................................................. 24 1.3 A Autonomização do Poder nos Trópicos............................................................. 34 1.4 Os Motins do Sertão Mineiro................................................................................ 53 CAPÍTULO 2 – O LEVANTE DE VILA RICA: POLÍTICA INDESEJADA E FIDELIDADE COLOCADA À PROVA................................................................. 64 2.1 O Barulho do Minerar, Vila Rica de Ouro Preto: uma cidade sem descanso........ 64 2.2 As Razões de Assumar para a Punição aos Revoltosos de 1720........................... 78 CAPÍTULO 3 – À MARGEM DA “PALAVRA OFICIAL”: A DISSIMULAÇÃO E O BOATO COMO ESTRATÉGIAS DOS AMOTINADOS.......................................................................................................... 103 3.1 Dissimulação e Boato: o que são?......................................................................... 103 3.2 A Dissimulação e os Boatos no Motim de Vila Rica............................................. 112 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 141 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 145 11 INTRODUÇÃO 1720 foi o ano em que ocorreu o Motim de Vila Rica, em Minas Gerais. Esta revolta foi uma reação da população às novas formas de tributação sobre a produção mineradora, mais diretamente à instalação das Casas de Fundição, que foram criadas a mando do rei de Portugal, com o objetivo de impedir a circulação e o contrabando do ouro em pó, pois traziam prejuízos à arrecadação tributária. Com o funcionamento destas casas, o ouro em pó seria fundido e transformado em barras de tamanho e peso oficiais, sendo já cobrados 20 por cento em impostos destinados à Coroa. Alguns homens poderosos da região, também insatisfeitos com estas novas mudanças fiscais, responsabilizaram o governador D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, o conde de Assumar, pelas cobranças abusivas, incitando o povo a participar de motins contra ele, sob a alegação de que estava agindo injustamente, de maneira tirânica, contra os princípios do bom governo e do bem comum dos povos das Minas. Estes poderosos locais aproveitaram-se desse clima de desassossego geral para dar vazão aos seus interesses de assumir o mando na região, considerando que se encontravam descontentes com a política centralizadora do conde, que estava alinhada aos interesses da monarquia portuguesa. A princípio, o governador, sem força militar suficiente para debelar o movimento, tentou negociar com os revoltosos, prometendo atender a todas as suas reinvindicações, não só concedendo o perdão aos envolvidos, como também suspendendo temporariamente a instalação das Casas de Fundição. Com estas concessões, ele esperava evitar que o povo apoiasse a causa rebelde, ao passo que estava ciente de que os líderes ambicionavam mesmo era sua saída do governo. Assumar, em carta enviada ao rei de Portugal, acusava Pascoal da Silva Guimarães, Sebastião da Veiga Cabral, Manuel Mosqueira da Roza, dentre outros, de serem infiéis e dissimulados, pois fingiam o tempo todo apoiá-lo quando, na verdade, agiam ocultamente na liderança dos motins e na divulgação de boatos maledicentes contra sua honra, a fim de exaltar os ânimos das camadas mais baixas da população contra sua autoridade. Diante da continuação dos tumultos e da dificuldade de negociar uma solução pacífica, o governador mandou prender os líderes do Motim, cabendo ao 12 amotinado Filipe dos Santos, um subordinado de Pascoal da Silva Guimarães, o castigo mais severo: a execução sumária por enforcamento. Esse cenário sedicioso remontava a um movimento social ocorrido em Portugal no ano de 1640, a Restauração Portuguesa, que lançou as bases de um comportamento político de contestação a governos considerados tirânicos. Esta revolta se deveu ao desrespeito do rei da Espanha, Filipe IV, ao cumprimento de acordos estabelecidos com os portugueses durante a União Ibérica em 1580. Em Portugal, o monarca espanhol foi considerado um mau governante, por impor tributos pesados aos portugueses, envolvêlos em guerras que não lhes diziam respeito, nomear espanhóis para os principais cargos do governo local, enfim, por agir injustamente contra os direitos e privilégios dos súditos lusitanos. Descontentes, estes aclamaram D. João IV rei de Portugal, livrando-se do domínio espanhol e dando início à dinastia de Bragança. No Motim de 1720, o que se viu foi uma retomada desses valores que, guardadas as proporções, vieram se manifestar nas relações estabelecidas entre os moradores das Minas e os agentes da Coroa portuguesa, os quais poderiam ser depostos de seus cargos, caso fossem considerados déspotas ao atentar contra a justiça e o bem comum dos povos. Pode-se notar, portanto, que esta revolta, ocorrida no território de Minas Gerais, reproduziu a noção de direito natural que os povos acreditavam possuir, que lhes garantia o direito de resistir contra a opressão dos governantes locais, considerados tirânicos e injustos, similarmente aos ideais defendidos pelos portugueses revoltosos de 1640 (FIGUEIREDO, 2007). Nesse sentido, a presente pesquisa tem por objetivo analisar o Motim de 1720, em Vila Rica, como movimento reativo às políticas centralizadoras implantadas pela administração portuguesa na região das Minas; sobretudo, enfatizando a insatisfação das elites, com a redução de sua influência política, em face da intensificação do poder real. Tal insatisfação, vale ressaltar, era, contudo, direcionada aos agentes da Coroa, considerados tirânicos e injustos, ao passo que a figura e a autoridade do rei não foram questionadas. Ninguém desejava entrar em atrito com o soberano. Deste modo, o aspecto central a ser analisado nesta pesquisa é o recurso à dissimulação e aos boatos, 1) como estratégias de ação adotadas pelos líderes da revolta, no sentido de encobrir a sua participação nos motins sediciosos, temerosos de alguma punição; 2) como mecanismos de ação política, que procuravam atender aos anseios de uma parcela da elite local, que 13 se via, paulatinamente, acuada pelo avanço do poder central sentido, sobretudo, nas novas formas de fiscalização da atividade mineradora, bem como no impulso centralizador da política de Assumar. O texto é resultado do diálogo que estabeleci entre o objeto de pesquisa e os vários matizes teóricos desenvolvidos sobre a administração portuguesa na América. Durante as décadas de 1970 e 1980, prevaleceram estudos marcados pela defesa da concepção do monopólio comercial de Portugal sobre a possessão americana, através de uma administração centralizada na figura do rei, em que os seus interesses políticoeconômicos prevaleciam sobre os dos colonos. Já a historiografia mais recente, cujas análises se inscrevem a partir da segunda metade da década de 1990, “rompe” com esta visão, evidenciando que as relações entre o rei e os vassalos no ultramar não eram tão rígidas e opressivas, marcadas também por flexibilidade e negociações, enfatizando a crescente autonomia das periferias com relação ao poder central. Embora esta última abordagem possua elementos a serem considerados, neste trabalho partiremos das análises que enfatizaram o fortalecimento gradual do poder real nos domínios americanos, sobretudo, para explicar o contexto no qual se deram os motins mineiros ocorridos na primeira metade do século XVIII, como bem demonstraram Laura de Mello e Souza, Carla Maria Junho Anastasia, Luciano Figueiredo, dentre outros autores que, em suas obras, exploraram a existência de conflitos entre a esfera privada e pública no Brasil colonial. Nosso corpus documental se constitui de cartas, ordens régias, bandos, avisos e outros documentos trocados entre o governador D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, o conde de Assumar, e outros agentes administrativos da Coroa. Utilizamos, ainda, como material de apoio, os trabalhos de natureza bibliográfica, como artigos, capítulos, livros, dissertações e teses de doutorado, que nos permitirão compreender os entornos da pesquisa. Consultamos fontes manuscritas da Secretaria de Governo do Arquivo Público Mineiro e documentos do Arquivo Histórico Ultramarino. Além disso, trabalhamos com as seguintes fontes impressas: o Discurso Histórico e Político sobre a Sublevação que nas Minas houve no ano de 1720; o Códice Costa Matoso; a Revista do Arquivo Público Mineiro e o Código Filipino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. 14 No primeiro capítulo, intitulado “Motins do século XVIII na América Portuguesa: negociação, acomodação e resistência política”, o objetivo foi analisar a historiografia que trata de alguns dos motins ocorridos na primeira metade dos setecentos. Avaliamos, através do recurso à bibliografia, alguns motins ocorridos não só na região das Minas, mas que possuíram alguma relevância para o desenvolvimento do quadro geral que se instalou posteriormente em Vila Rica, que tomava como matriz ideias e práticas políticas originadas em Portugal, sobretudo a partir do movimento da Restauração Dinástica de 1640, que defendiam que os povos tinham o direito natural de resistir ou mesmo matar o governante que fosse considerado injusto e cruel. Outro elemento abordado nesta pesquisa foi o sistema de mercês, que se caracterizava basicamente por uma relação de reciprocidade e por pactos entre os vassalos e o soberano. Este exercia o monopólio da estruturação e hierarquização social e institucional, através da atribuição de benefícios materiais, cargos políticos, honras e distinções, regulando o espaço social no reino e nas possessões ultramarinas. Aqueles, por sua vez, através da prestação de serviços em favor do soberano, conseguiam em troca privilégios de vários tipos, que lhes davam, além do prestígio social, vantagens financeiras. Deste modo, a mobilidade social estava condicionada à prestação de serviços ao rei, o que reforçava o poder monárquico. Todavia, embora o sistema de mercês tivesse reforçado os laços de lealdade dos vassalos no ultramar para com o reino lusitano, também deu condições para a geração e reprodução de uma elite local com interesses próprios, para quem os cargos públicos cedidos pela Coroa eram usados antes obedecendo aos interesses privados do que para servir ao rei de Portugal propriamente (BICALHO, 2005; GOUVÊA, 2005; FRAGOSO, 2010). No segundo capítulo, intitulado “O Levante de Vila Rica: política indesejada e fidelidade colocada à prova”, objetivamos analisar a estratégia política empreendida por Assumar na tentativa de controlar a revolta, e as razões que o levaram a rechaçar tão violentamente os amotinados de 1720. Para tanto, partiremos do Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação que nas Minas Houve no Ano de 1720, importante documento escrito ao rei de Portugal cinco dias após o enforcamento de Filipe dos Santos, cuja autoria é atribuída ao governador das Minas, no qual constavam as razões que levaram à execução sumária do amotinado. No escrito, Assumar reconhecia que não lhe competia condenar tão severamente o acusado devido a sua condição de homem 15 branco e português, ressalvando que o fez por considerar a situação por demais grave, exigindo uma ação militar rápida, com o intento de inibir novas sublevações e garantir a ordem e o sossego públicos na região. O terceiro capítulo, “À Margem da Palavra Oficial: a dissimulação e o boato como estratégias dos amotinados”, tem como objetivo considerar a atuação daqueles que contestavam as ações dos agentes administrativos, evidenciando as motivações, as intenções e os interesses políticos e econômicos em jogo. Enfatizamos a tese de que havia uma estratégia, adotada pelos líderes da revolta na tentativa de assumir o poder, que operava a partir do uso da dissimulação, como forma de ocultar suas verdadeiras intenções, fingindo-se de aliados do governo na busca por informações que favorecessem a causa rebelde, bem como da divulgação de boatos sediciosos, a fim de inflamar a população a participar dos tumultos, o que daria uma aparência de legitimidade as suas ações. Assim, avaliamos a implicação desses mecanismos no contexto político local, sendo estes um aspecto do Motim de 1720 que ainda se apresenta pouco estudado, o que justifica a realização da presente Dissertação de Mestrado. 16 1º CAPÍTULO MOTINS DO SÉCULO XVIII NA AMÉRICA PORTUGUESA: NEGOCIAÇÃO, ACOMODAÇÃO E RESISTÊNCIA POLÍTICA 1.1 – A Restauração de 1640 e os Motins na América Portuguesa O governo da América portuguesa não foi uma tarefa fácil. Foi marcado, não raras vezes, por ameaças externas e internas, como as invasões marítimas estrangeiras e a eclosão de vários motins por todo o território. A Coroa portuguesa, ciente dessas ameaças e a fim de resguardar sua soberania nesta região, estabeleceu uma nova política de ação em que a cautela e a prudência passaram a ser atributos necessários ao exercício do governo local. Os motins ocorridos na conquista americana, sobretudo na primeira metade do século XVIII, tinham como característica fundamental o levantamento de grupos locais contra as autoridades públicas instituídas, no intuito de defenderem prerrogativas comuns aos que habitavam a região, como também os interesses políticos de alguns setores da sociedade, que agiam no sentido de preservarem a autonomia e o mando local. Nesse cenário inseriram-se, por exemplo, os motins resultantes das invasões francesas do Rio de Janeiro (Duclerc, 1710; Duguay-Trouin, 1711), a Guerra dos Mascates em Pernambuco (1709-1711), bem como a Guerra dos Emboabas (17071709), a Revolta de Vila Rica (1720) e os motins do Sertão do São Francisco (1736), ocorridos em Minas Gerais. Esse ambiente sedicioso, contudo, remontava a valores políticos presentes no movimento de Restauração Portuguesa, ocorrido em 1640, que culminou com a separação do reino de Portugal dos domínios espanhóis e estabeleceu novos paradigmas de ação política que mais tarde, como veremos, ressoariam até os domínios ultramarinos portugueses. Segundo Luciano Figueiredo: As formulações políticas que pavimentaram o caminho para que o reino de Portugal rompesse com a soberania espanhola e desse fim à União Ibérica (1580-1640), mantendo o respeito aos direitos sem implodir o edifício da monarquia, vazariam para a América. Ali contaminariam as bases das relações entre a Coroa e os seus moradores ultramarinos (FIGUEIREDO, 2007, p. 254). 17 Ainda segundo o autor, as reformas adotadas pela Espanha, que elevaram os impostos em Portugal, foram intensamente criticadas pelos nobres e pela Igreja alegando que tais reformas eram injustas e autoritárias e que elas não levavam em consideração os direitos, privilégios e autonomias políticas que estes grupos tradicionais asseguravam possuir, quando da união das duas Coroas, em 1580. Nesse sentido, os portugueses foram, gradativamente, convertendo e canalizando tais insatisfações em uma luta pela restauração dinástica. Para Figueiredo, “o princípio do bem comum que os reis deveriam respeitar, a fim de equilibrar uma comunidade harmônica, virtuosa e cristã, é aqui sumamente valorizado” (FIGUEIREDO, 2007, p. 254). Nos motins, o que se vê é um tipo de retomada desse pensamento que, guardadas as proporções, veio se manifestar nas relações estabelecidas entre os súditos americanos e os agentes régios, os quais eram, na maioria dos casos, acusados de proceder de maneira injusta contra o bem comum dos povos que, deve-se ressaltar, não se pautava apenas pela legislação oficial, mas também na defesa de direitos baseados nos costumes. Nas colônias ressoaria o eco dessa ideologia, validada para outros níveis de governo. Nunca mais governantes puderam dispor de poderes sem respeitar as autonomias locais ou os direitos dos súditos. Especialmente no império colonial português a lição foi bem apreendida. Desde 1640 até os anos finais da década de 80, pelo menos uma dezena de insurreições estala nas costas da América, da África e da Ásia contra os representantes régios (FIGUEIREDO, 2007, p. 254). Como se pode notar, alguns motins ocorridos na América portuguesa, abordados nesta pesquisa, aparentemente inspiraram-se no próprio movimento que restaurou a independência portuguesa. Este se deveu ao desrespeito do rei de Castela ao cumprimento de acordos estabelecidos com os portugueses durante a União Ibérica. Nesta época, o trono lusitano fora assumido por Filipe II que, objetivando controlar as revoltas em Portugal, garantiu aos naturais da terra a permanência da sua moeda, língua, leis e o direito aos principais cargos públicos, de acordo com o Estatuto de Tomar, feito em 1581. Passados alguns anos, a estabilidade no reino ibérico foi comprometida pelo envolvimento da Espanha na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648),1 o que acentuou um 1 Nome do grande conflito desencadeado no século XVII (1618), assim denominado porque o seu principal episódio – a guerra da Alemanha – durou 30 anos consecutivos. Na realidade, porém, a guerra durou mais tempo, pois outros países se envolveram nas hostilidades, só encerradas em 1660, após 42 anos de luta, que teve como causa predominante o antagonismo entre católicos e protestantes (AZEVEDO, 1999, p. 224). 18 processo centralizador nos domínios lusitanos, com a elevação dos impostos e o desrespeito a algumas daquelas garantias, principalmente, de ordem econômica e administrativa. Tais medidas da monarquia espanhola provocaram vários motins populares nas cidades de Arcozelo, Viana do Castelo, Vila Real, Porto, Lisboa e Évora, cujas rebeliões se espalharam por todo o Algarve e pelo Alentejo, lideradas pela nobreza com o apoio popular e dos padres jesuítas, obtendo êxito somente em 1668, quando a Espanha reconheceu definitivamente a independência portuguesa. A deposição de Filipe IV e a aclamação de D. João IV ao trono português, dando início à dinastia de Bragança, foram justificadas pelos participantes da restauração recorrendo a um tradicional argumento de origem escolástica: os povos tinham o direito natural de deporem reis considerados tirânicos, que atentavam contra a justiça e o bem comum. Em Portugal, o rei espanhol foi considerado déspota por impor tributos pesados aos portugueses, por envolvê-los em guerras que não lhes diziam respeito, por não dar apoio às conquistas ultramarinas portuguesas atacadas por inimigos espanhóis, por nomear pessoas indesejadas para governo local, enfim, por agir injustamente contra os direitos e privilégios dos súditos lusitanos (MONTEIRO, 2002). Além disso, a Restauração de 1640 não foi uma revolta nacional pela independência de Portugal, mesmo porque nem todos os setores da sociedade lusa aderiram à causa. Houve nobres, clérigos, letrados e burgueses que se mantiveram fiéis ao príncipe espanhol, fosse em defesa de interesses pessoais adquiridos com esta aliança ou por duvidarem do sucesso da rebelião. Ou seja, este movimento não foi uma luta de portugueses contra os espanhóis. Pelo contrário, as redes de alianças clientelísticas que lutaram a favor ou contra o movimento restaurador em Portugal dependeram, na verdade, das fidelidades grupais e dos interesses particulares em jogo, não se configurando em uma ação patriótica dos envolvidos. Assim, a Restauração Portuguesa não se deu a favor da independência, mas sim do estabelecimento do bom governo, da justiça e do cumprimento de acordos que garantissem privilégios e poderes de setores tradicionais da sociedade lusitana (MONTEIRO, 2002). Na América, a preservação da autoridade régia implicaria também o reconhecimento de certos poderes tradicionais locais, como forma de evitar rebeliões que poderiam colocar em xeque a soberania lusitana na região. As justificativas da eclosão dos motins americanos eram similares aos ideais defendidos pelos revoltosos de 19 1640. Igualmente, os povos da América consideravam ter o direito natural de depor os maus governantes na defesa do bem comum, do bom governo, dos costumes e dos privilégios políticos locais, e “isso denota a existência de um universo mental e político comum no reino e no ultramar americano” (MONTEIRO, 2002, p. 331). A Revolta na Catalunha, em 1640, foi outro movimento insurgente contra a política centralizadora da Espanha. Este levante se deu em virtude da insatisfação da nobreza local com a perda do espaço na vida pública, além do mais acusavam o rei de ser tirânico e negligente em relação aos problemas que assolavam a população, como a fome, a epidemia, as guerras e a elevação dos impostos. O movimento, que contou com o apoio da França, culminou na declaração de independência do território catalão no ano de 1641. Esta revolta como a de Portugal transformaram em valor positivo a resistência contra a tirania. Nesse sentido: O risco à fidelidade não parece circunstância distante da América portuguesa. Homens de seu tempo, os atilados governadores e conselheiros sentiram sua ameaça, expressa nas referências que aproximavam as contestações no Brasil ao caso recente na Catalunha. A revolta do Rio de Janeiro de 1660, a primeira depois da Restauração de 1640 em que se assiste ao controle de um governo local por súditos sublevados que depuseram a autoridade acusada de tirania, foi associada ao que se passou na Catalunha contra o domínio espanhol. Afirmou uma das autoridades atacadas que pelos mais exemplos de Catalunha se pode temer semelhantes desordens em gentes de poucas obrigações, movidos de desesperação ou do temor. Outra ocasião em que isto ocorreu foi em Minas Gerais nos idos de 1720. O Conde de Assumar admitiu ter sido aquela uma conspiração mui semelhante à da Catalunha (FIGUEIREDO, 2009, p. 248). Os motins ocorridos no território de Minas Gerais, na primeira metade do século XVIII, embora não tivessem caráter separatista, reproduziram o exemplo de resistência à opressão dos governantes locais, considerados tirânicos, e da insatisfação das populações com as mudanças na política reguladora do governo de Portugal. Tais mudanças deram-se em função da descoberta do ouro na região das Minas e da nova configuração social e política que este fato desencadeou. A disseminação das descobertas auríferas em Minas Gerais determinou a rapidez e a larga ocupação do território. O metal precioso, sem dúvida, foi fator determinante para o intenso fluxo migratório para aquela região, tornando-a, em pouco tempo, a mais populosa capitania da América portuguesa. A riqueza decorrente dos veeiros de ouro 20 levaria a Coroa a implantar a máquina administrativa e fiscal na região. André João Antonil faz a seguinte descrição sobre o enorme afluxo de pessoas para as minas: Cada ano, vêm nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa (ANTONIL, 1982, p. 167). A corrida ao ouro, com o intenso deslocamento de pessoas de todos os cantos e de outras regiões do Brasil para os sertões das Minas provocou, com o decorrer do tempo, atritos entre paulistas – que, por terem sido os pioneiros na descoberta do ouro, acreditavam-se donos das minas – e os recém-chegados, apelidados, pejorativamente, de emboabas,2 referindo-se aos portugueses, que disputavam também a posse das minas auríferas. A aversão se estendia igualmente aos povos de outras regiões. Esta rivalidade entre paulistas e “forasteiros” resultou na Guerra dos Emboabas (1708-1709). Houve entre estes dois grupos uma intensa disputa, que só teria fim com a intervenção do governador do Rio de Janeiro, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, que veio de Portugal com instruções especiais para apaziguar a área mineradora. O rei, visando pôr fim às desordens e estabelecer uma verdadeira autoridade na região, criou por decreto, em 9 de novembro de 1709, a “Capitania de São Paulo e Minas do Ouro”, separando-a da jurisdição do Rio de Janeiro, e nomeando Antônio de Albuquerque o primeiro governador (MATTOS, 1981). Nos primeiros anos de ocupação da área mineradora, o poder político do Estado português não teve uma presença marcante na região. Com a descoberta do ouro, a primeira medida tomada foi estabelecer normas para a arrecadação tributária sobre a produção aurífera. Foi só a partir da intervenção na Guerra dos Emboabas que a Coroa 2 Emboabas, segundo Capistrano de Abreu, era uma das designações dos reinóis na língua geral. Termo muito utilizado pelos paulistas no sertão da Bahia e de Minas Gerais para designar todos os que vinham de fora, acabou por designar a guerra civil travada entre paulistas e os grupos recém-chegados à região das Minas, entre 1707 e 1709. Com a descoberta de ouro pelos paulistas, no final do século XVII, um número muito grande de aventureiros passou a circular em Minas em busca de enriquecimento rápido, oriundos de Portugal e de diversas outras capitanias, sobretudo da Bahia. Fala-se em uma população de cerca de 30 mil pessoas na região, no início do século XVIII. Ao contrário do que se afirma outrora, a Guerra dos Emboabas não configurou uma “revolta nativista” expressa no conflito entre os paulistas, desbravadores das Minas, e os “estrangeiros” ou portugueses. Tratou-se, na verdade, de uma luta muito específica pelo poder, terras e ouro na nascente Minas Gerais (VAINFAS, 2001, p. 270-272). 21 resolveu instaurar um controle político e administrativo efetivo naquela região. Isso significou, entre outras medidas, a elevação, entre os anos de 1711 e 1715, de vários povoados à categoria de vila, de forma a permitir a disseminação da máquina administrativa. Em 1711, tornaram-se vilas: a Vila Rica de Ouro Preto, a Vila Real do Ribeirão do Carmo (Mariana) e a Vila Real de Nossa Senhora da Conceição (Sabará). No ano de 1713, recebeu esta designação a Vila de São João del Rei; em 1714, foi a vez da Vila Nova da Rainha (Caeté) e a Vila do Príncipe (Serro) e, em 1715, Vila de Nossa Senhora da Piedade de Pitangui. Além disso, no ano de 1714, no governo de D. Braz Balthazar da Silveira, foram criadas, pela provisão de seis de abril de 1714, as três primeiras comarcas da capitania: a de Ouro Preto, com sede em Vila Rica; a do Rio das Velhas com sede em Sabará, e a do Rio das Mortes, com sede em São João del Rei. Anos mais tarde, foi criada a comarca do Serro Frio, com sede em Vila do Príncipe, pela provisão de 17 de fevereiro de 1720. Também no ano de 1720 promoveu-se a separação da capitania das Minas do Ouro da de São Paulo, a fim de garantir a ordem nas áreas de mineração e a eficácia na arrecadação tributária do ouro (ANASTASIA, 2005). O governo português viu com bons olhos esse rush para os sertões das Gerais, porque quanto mais gente houvesse nas minas lavrando ouro, maior seria a arrecadação dos quintos. Nesse sentido, o governo luso procurou facilitar o acesso às jazidas auríferas, abrindo novos caminhos que conduzissem ao planalto mineiro, facilitando a passagem pelos rios com a disponibilização de barcas para os passageiros, ordenando o plantio de roças nos caminhos que conduzissem às minas, determinando o estabelecimento de estalagens, enfim, medidas estas que visavam a favorecer o povoamento daquela região. Entretanto, em pouco tempo, esse movimento se transformou em calamidade pública, tendo em vista o surgimento do perigo de despovoamento do reino e de outras regiões da América. Desde que esta situação alarmante se evidenciou, a Coroa passou a proibir e restringir o deslocamento de emigrantes para aquelas paragens. Além dessa medida, que dificultava o acesso, outras foram tomadas, como a proibição da abertura de novos caminhos e picadas e a ordem de expulsão dos estrangeiros, dos padres que não tivessem convento nas minas, dos ourives, mascates, mendigos e vadios que se concentravam em torno das lavras, no intuito de diminuir a população. Estas restrições, no entanto, não conseguiram impedir o fluxo de pessoas que corriam para as lavras auríferas, única e exclusivamente por causa 22 do ouro. O vertiginoso deslocamento de pessoas para a região das Minas, no final do século XVII, é explicado em parte pelas dificuldades pelas quais passava a economia açucareira nordestina, após a expulsão dos holandeses, pelo empobrecimento do reino português e, principalmente, pela oportunidade que representava a mineração do ouro, facilmente extraído de depósitos de aluvião, o que permitia a qualquer indivíduo sem recursos extrai-lo (ZEMELLA, 1990; ANASTASIA, 2005). O impacto econômico e demográfico das novas descobertas do ouro representou, contudo, sérias ameaças às regiões costeiras do Nordeste, o que exigiu medidas intensas. Durante toda a metade do século XVIII, as câmaras das cidades e vilas daquelas regiões atribuíram todos os seus infortúnios à mineração. Uma das queixas principais era que as zonas auríferas seduziam os homens brancos e pretos livres, afastando-os do cultivo da cana, do tabaco ou da mandioca, em busca do enriquecimento na mineração. Outro problema em relação às descobertas do ouro foi o aumento dos preços dos gêneros alimentícios e sua maior oferta para as regiões mineiras em detrimento do litoral nordestino, que diante da incapacidade de enfrentar esse aumento de custo, via os produtos de primeira necessidade serem remetidos para as Minas. A Coroa portuguesa, por seu turno, com vistas a proteger a região açucareira editou uma série de medidas: em 1701, a Coroa proibiu a comercialização e o transporte de gados ou gêneros alimentícios da Bahia para as Minas. A insuficiência de funcionários associada à impossibilidade de patrulhar extensas áreas restringiu a eficácia de tais ordens; em 1704, a Coroa proibiu que os comerciantes reexportassem, da Bahia para o interior dos sertões, produtos importados de Portugal. Essas restrições foram igualmente ineficazes. A sedução de lucros maiores com as vendas na zona mineradora era estímulo suficiente para burlar tais ordens (RUSSELL-WOOD, 2004). O abastecimento da capitania de Minas Gerais com gêneros alimentícios e artigos em geral era uma das maiores preocupações do governo, uma vez que os mercadores que vendiam seus produtos naquela região recebiam o pagamento em ouro em pó, não repassando a quinta parte a Sua Majestade. Esta prática era vista pelas autoridades régias como uma forma de fraudar os direitos da Coroa. Todavia, os mesmos não poderiam revogar terminalmente esses negócios, pois eram indispensáveis à manutenção dos que trabalhavam nas zonas auríferas. Contudo, apesar de não poder evitar a introdução do comércio nestas regiões, já que prejudicava os interesses 23 econômicos de Portugal, implantou-se uma maior vigilância, cabendo ao superintendente das minas e ao guarda-mor a responsabilidade de fiscalizar e punir os mercadores que descaminhassem os quintos. Assim: Já no artigo XIV do regimento de 19 de abril de 1702 procurara acautelar-se Sua Majestade contra os riscos que podiam seguir-se do negócio dos gados vendidos nas Minas. Porque, diz o legislador, “como o que se vende é o troco de ouro em pó, toda aquela quantia se há de desencaminhar, e porque esta matéria é de tão danosa consequência, é preciso que neste particular haja toda cautela”. Previne-se assim às autoridades responsáveis que, tendo notícia da chegada às Minas de algum gado, façam os condutores dar entrada de todas as reses, sujeitando-se os que as ocultarem a pagar o seu valor “anoveado” (isto é, multiplicado por nove) e ainda a ser presos e castigados com as penas impostas aos que descaminham a Fazenda de Sua Majestade. O superintendente há de informar-se, além disso, do preço por que for vendido o dito gado, para que se paguem nessa base os quintos de ouro dispendido, salvo se o ouro já estiver quintado (HOLANDA, 1982, p. 278279). As lojas, vendas e as negras de tabuleiro também exerciam papel fundamental no abastecimento das zonas mineiras. As negras ambulantes que iam até os morros onde se minerava vender comestíveis e bebidas, também foram alvo da legislação repressiva durante todo o século XVIII, acusadas de serem a causa principal dos desvios de ouro e diamantes, de provocar conflitos e desordens e de embebedar os escravos. No entanto, as autoridades portuguesas não as impediam de ter suas vendas e quitandas nos centros urbanos ou de vender mercadorias em locais permitidos pelas câmaras. Havia também as lojas, estabelecimentos de maior porte que se situavam principalmente no centro das vilas, e as vendas, estabelecimentos menores, localizadas geralmente na periferia. A preocupação das autoridades era maior com as vendas que podiam facilmente servir de esconderijos para escravos fugidos. Além disso, eram considerados espaços que propiciavam brigas, mortes e contrabando. Esses tipos de situação foram, sem dúvida, as principais fontes das preocupações das autoridades quanto a este comércio, o que não significava que esses estabelecimentos não pudessem funcionar nos locais permitidos e que não fosse do interesse das próprias autoridades mantê-los em funcionamento (SILVA, 2007). O governo de Portugal, através de sua política imperial, objetivava canalizar as rendas geradas com a exploração do ouro das Minas para Portugal. Em razão disso, a administração desenvolvida na época da descoberta do ouro foi marcada pelo arrocho 24 fiscal, exemplificado principalmente pela cobrança do quinto sobre a produção mineradora. Assim, a legislação nas minas auríferas, na primeira metade do século XVIII, tornou-se, gradativamente, mais rigorosa, ocasionando insatisfação por parte dos moradores. Isto se deveu ao fato de estas cobranças serem malquistas por eles, por considerarem-nas danosas aos seus ganhos. Logo, a crescente centralização política e o aumento dos impostos sobre a produção mineradora geraram insatisfações em todas as camadas sociais, que resultaram em revoltas por todo o território mineiro. Como exemplos disso, irromperam os motins de 1720, em Vila Rica, e de 1736, no noroeste de Minas Gerais. 1.2 – A Administração Colonial: um debate No Brasil, a partir de meados da década de 1990, intensificou-se o interesse pelo estudo da história da administração portuguesa na América. Esses novos estudos reveem com desconfiança certas premissas teóricas até então prevalecentes, que analisaram a ocupação e povoamento da América portuguesa a partir da lógica externa, focada no mundo europeu, não levando em consideração a dinâmica interna própria das sociedades coloniais. Além disso, elas baseavam-se em conceitos dicotômicos, que colocam em lados opostos metrópole (centro de decisão) e colônia (território subordinado), em que os interesses econômicos e políticos da primeira prevaleciam e ditavam as relações construídas entre os dois pólos. Maria de Fátima Gouvêa destaca que em meados dos anos de 1980 a produção historiográfica no campo da história política e do poder do Império Hispano-americano se apresentava marcada pela preocupação com o desenvolvimento de estudos sobre a organização de determinados grupos, destacando seus interesses regionais e levando em consideração a dinâmica interna da sociedade colonial. Desse modo, passou-se a relativizar o peso, quase que exclusivo, do papel econômico e político desempenhado pela Espanha, bem como do sistema colonial, no processo de formação das sociedades hispano-americanas. Os historiadores passaram a destacar as relações de negociação entre os diversos grupos locais nas Américas e a administração régia, como forma de 25 assegurar o exercício da autoridade real, bem como a soberania espanhola na América. Segundo a autora: A negociação política havia desempenhado papel preponderante nas acomodações suscitadas entre os diversos grupos que compunham a sociedade colonial, por intermédio da ação da administração régia através do exercício de sua autoridade em amplo senso (GOUVÊA, 2005, p. 69). Desta forma, a garantia da soberania imperial espanhola na América dependeu, não raras vezes, da capacidade do rei de negociar com as forças centrífugas locais, caso contrário, poderia colocar em risco seu poder político nestas terras tão distantes do reino. Gouvêa evidenciou, ainda, o impacto dessa abordagem na historiografia brasileira em importantes dissertações e teses de pós-graduação nas décadas de 1980 e de 1990. Para a autora, a constituição de hierarquias sociais e de redes imperiais tem sido enfatizada como elemento importante na formação das sociedades coloniais que integraram parte do Império Português. O rei era o ponto de referência jurídicoinstitucional na organização hierárquica desta sociedade. Isso se fundamentou na sua centralidade e no seu poder de reconhecer e atestar a autoridade dos diversos grupos sociais nos trópicos, através da concessão de cargos administrativos, bens materiais, honras e mercês. Os vínculos estabelecidos entre o soberano e os vassalos na América se materializaram segundo práticas culturais e políticas características das sociedades europeias de Antigo Regime. Deste modo, o processo de organização política e social da América foi marcado por uma forte identificação com os valores culturais e políticos europeus trazidos pelos portugueses que então passaram a viver nestas terras. Nesse processo de renovação historiográfica, portanto, passou-se a questionar certas noções clássicas sobre a história das Américas, como a de “exclusivo metropolitano” e a de “pacto colonial”. O processo de constituição das sociedades ibero-americanas seria analisado a partir de uma lógica interna, que desconsidera a polarização simplista entre colônia e metrópole. (GOUVÊA, 2005). A formação política do Império Português baseou-se na transposição do modelo jurídico e administrativo do reino para as diversas possessões ultramarinas. Padroado, instituições camarárias, governadores, ouvidores e capitanias hereditárias foram alguns dos principais componentes acionados pela Coroa no processo de estruturação e 26 organização de seu governo sobre estas terras em expansão. As câmaras, por exemplo, espaços de poder e formação das elites locais, criadas em diferentes partes da América, eram locais de negociação dos interesses privados com os interesses régios, bem como um importante canal de comunicação direta com o rei. A ocupação destes cargos camarários era conseguida através da prestação de serviços à Coroa, responsável por conceder tal privilégio. Reforçava-se, dessa maneira, a centralidade régia na organização dos espaços públicos de exercício de poder e de governança por todo o império ultramarino português. Deste modo: A expansão ultramarina portuguesa resultou na progressiva conquista de territórios, concorrendo para que a Coroa passasse a atribuir ofícios e cargos civis, militares e eclesiásticos aos indivíduos encarregados do governo nessas novas áreas. Passava também a Coroa a conceder privilégios comerciais a indivíduos e grupos associados ao processo de expansão em curso. Tais concessões acabaram por se constituir no desdobramento de uma cadeia de poder e de redes de hierarquia que se estendiam desde o reino, dinamizando ainda mais a progressiva ampliação dos interesses metropolitanos, ao mesmo tempo que estabelecia vínculos estratégicos com os vassalos no ultramar. Materializava-se, assim, uma dada noção de pacto e soberania, caracterizada por valores e práticas tipicamente de Antigo Regime, ou, dito de outra forma, por uma economia política de privilégios (GOUVÊA, 2010, p. 288).3 Logo, a organização/hierarquização social e política na América portuguesa foi gerida aos moldes das velhas práticas culturais e políticas de Antigo Regime, segundo as quais o rei concedia cargos públicos, privilégios e mercês àqueles que, com seu cabedal, prestavam serviços à Coroa, bem como assumiam o compromisso de fidelidade para com ele. Maria Fernanda Bicalho também rejeita esta perspectiva dualista. Para ela, o pacto político consistia na exigência, por parte dos colonizadores e primeiros povoadores das diferentes regiões da América, de honras, mercês, isenções, franquias e a ocupação de cargos públicos ao rei de Portugal, privilégios estes que proporcionariam, além do status social, o reconhecimento e a premiação por diversos serviços prestados à Coroa à custa de suas fortunas pessoais. Ao retribuir os feitos dos seus súditos, o monarca transformava o simples colono em vassalo, vinculando-o à monarquia, 3 Gouvêa define “economia política de privilégios” como sendo uma concessão de privilégios e mercês em contrapartida à lealdade e aos serviços prestados à Coroa (GOUVÊA, 2010. p. 314). 27 estreitando os laços e reafirmando o pacto político sobre o qual se criou as bases para o exercício do poder, do governo e da soberania portuguesa na América. Deste modo: Se a expansão, desde o século XV, e a conquista do Novo Mundo, a partir do XVI, abriram um variado leque de possibilidades de prestação de serviços à monarquia, também agiram no sentido de ampliar o campo de ação da Coroa, permitindo-lhe dispor de novas terras, ofícios e cargos; atribuir direitos e privilégios a indivíduos e grupos; auferir rendimentos com base nos quais concedia tenças e mercês; além de criar uma nova simbologia do poder, remetendo ao domínio ultramarino da monarquia portuguesa. (...) Essas novas formas de remunerar e organizar estavam em plena consonância com as ideias e práticas de Antigo Regime (BICALHO, 2005, p. 22). Sendo assim, Bicalho chama a atenção para a inconsistência do uso de conceitos dicotômicos, que põem em lados opostos os interesses da monarquia portuguesa e dos domínios ultramarinos e que privilegiam a lógica externa em detrimento da análise da dinâmica interna das relações sociais e políticas, próprias das sociedades coloniais. A relação entre centro e periferia também envolvia negociações e convergência de interesses entre o rei e seus vassalos na América, levando ao estabelecimento de um pacto baseado na relação de reciprocidade “entre dois mundos moldados e unidos por uma mesma cultura política” (BICALHO, 2005, p. 102). Estas discussões historiográficas requerem um repensar sobre as obras clássicas de renomados historiadores, como Raimundo Faoro, Caio Prado Júnior, Fernando Novais e Laura de Mello e Souza, que também, ao seu tempo, forneceram análises significativas para o entendimento do processo de formação política, social e econômica do Brasil. Assim, torna-se necessário considerar estas interpretações, tentando captar as nuanças e as contribuições que aprofundaram a compreensão sobre a história da administração portuguesa na América nos tempos coloniais. Raymundo Faoro, em sua obra Os donos do poder, evidenciou o papel central da monarquia portuguesa no processo de organização social e política da colônia americana e sua capacidade de moldar uma estrutura burocrática que sempre reproduzisse a ordem dominante. Faoro, fortemente influenciado por Max Weber, ressaltou a influência patrimonialista – indistinção entre o patrimônio público e privado – e estamental de Portugal na formação da sociedade brasileira desde o período colonial. O rei estava acima de todas as camadas sociais e o poder público estava concentrado em suas mãos e de seus aliados. Senhor das terras e dos homens, era o responsável pela 28 distribuição de cargos, patentes e privilégios, comandando, inclusive, o curso da economia, conduzindo-a segundo sua vontade pessoal. Assim: A propriedade do rei – suas terras e seus tesouros – se confundem nos seus aspectos público e particular. Rendas e despesas se aplicam, sem discriminação normativa prévia, nos gastos de família ou em obras e serviços de utilidade geral. O rei, na verdade, era o senhor de tudo (...) (FAORO, 1987, p. 8). Para Faoro, este modelo de administração absolutista característico do reino lusitano foi transposto com sucesso para as novas terras descobertas, tendo em vista um Estado que se centralizou cedo e soube submeter com maestria as elites locais. O rei que por vezes tolerou a rebeldia dos potentados nos sertões “enquanto eram úteis à Coroa” passou a não mais fazê-lo, atuando no fortalecimento gradual do poder central, principalmente depois das grandes descobertas de metais preciosos no interior das Minas. Para isso, contou com a atuação de um corpo de funcionários que, segundo o autor, era a expressão máxima da vontade do monarca, prolongando inflexivelmente sua “sombra” nos domínios ultramarinos. “Falar alto e firme ao rei não seria tolerado, em nenhum momento, expressão criminosa de anarquia” (FAORO, 1987, p. 150). Nesse sentido: A política seria, daqui por diante, outra: o governo metropolitano calaria a insubmissão (...). Acabam as transações, a tolerância e o pedido de favores em troca de honrarias. O ponto extremo da virada de rumo seria o governo de uma vocação de déspota, da linhagem dos Albuquerques, o legendário D. Pedro de Almeida, o futuro Conde de Assumar e Marquês de Alorna, que inicia seu mandato em Vila Rica, em 1717. (...) [Nas minas] o contexto é um só, ao norte e ao sul. O agente régio, reinol de nascimento, substitui o turbulento conquistador, caudilho e potentado. Primeiro, ele o assiste, ajudado com os seus meios. Depois, o controla, para, finalmente, dominá-lo e, se necessário, garroteá-lo (FAORO, 1987, p. 162-163). Dessa maneira, a influência dos potentados na política local foi constantemente reduzida em função da maior presença do controle burocrático e militar português na região das Minas. O rei queria súditos, não caudilhos. A revolta de Vila Rica, em 1720, é representativa desse novo tempo, marcada pela insatisfação de uma parcela da elite com a perda do espaço na vida pública e militar, resultado da ação centralizadora da Coroa que, por meio das instituições e dos seus agentes régios, buscava garantir, a todo custo, a soberania lusa e o fisco na região. O governador em exercício na época, D. 29 Pedro de Almeida, o conde de Assumar, com o apoio de soldados das tropas de dragões, recrutados em Portugal, “impôs aos potentados o sentimento de seu declínio. A ordem se restabelece: a lei é a lei do reino e não a dos sertões” (FAORO, 1987, p. 163). Assim sendo, em sua obra, Faoro defendeu a ideia do sucesso da imposição da ordem pública e da eficácia do aparelho burocrático repressivo e fiscalizador na região das Minas, em que a concentração do poder e da riqueza estava, incontestavelmente, nas mãos do soberano. A análise de Caio Prado Júnior sobre a administração colonial, no livro A formação do Brasil contemporâneo, contudo, diverge da anterior. Este criticou a Coroa portuguesa pela falta de originalidade na organização administrativa da América, evidenciando sua incapacidade de criar órgãos diferentes e adaptados às condições peculiares do novo território. Para o autor, os efeitos mais nefastos da cópia fiel dos sistemas governativos de Portugal foram os de centralizar o poder e de reunir e concentrar os funcionários régios nas capitanias e sedes, deixando o resto do domínio americano praticamente desgovernado e, muitas vezes, distante da autoridade mais próxima. Órgãos e funções que existiam em um lugar, faltavam em outros, sendo, portanto, necessária uma divisão do trabalho, pois os agentes régios não poderiam desenvolver suas funções em toda a conquista simultaneamente. A desorganização administrativa, a vastidão do território americano e a indefinição dos limites de jurisdição, não raro, ocasionavam, também, tensões e disputas entre a elite local e representantes da Coroa pelo exercício das funções públicas. Nesse sentido, sobre a administração portuguesa na América, Prado Júnior faz a seguinte análise: A complexidade dos órgãos, a confusão de funções e competência; a ausência de método e clareza na confecção das leis, a regulamentação esparsa, desencontrada e contraditória que a caracteriza, acrescida e complicada por uma verborragia abundante em que não faltam às vezes até dissertações literárias; o excesso de burocracia dos órgãos centrais em que se acumula um funcionalismo inútil e numeroso, de caráter mais deliberativo, enquanto os agentes efetivos, os executores, rareiam; a centralização administrativa que faz de Lisboa a cabeça pensante única em negócios passados a centenas de léguas que se percorrem em lentos barcos à vela; tudo isto (...) não poderia resultar noutra coisa senão naquela monstruosa, emperrada e ineficiente máquina burocrática que é a administração colonial (PRADO JÚNIOR, 1999, p. 333). 30 Assim, para o autor, a máquina burocrática portuguesa transplantada para a América era marcada pela confusão e pelo lento funcionamento, pela falta de clareza na confecção das leis e pela complexidade dos órgãos, que favoreciam a indisciplina e a desobediência de alguns potentados que, distantes dos principais centros e aproveitando-se da lentidão da aplicação da lei no interior dos sertões, tendiam a exercer o poder de forma autônoma, escapando a um maior controle político-social dos agentes da Coroa. Desta forma, à medida que o poder público se afastava dos grandes centros de decisão, reforçava-se na esfera privada, muito em função dos interesses locais ou da corrupção, incompetência e inércia de alguns oficiais régios em combater tal prática. Prado Júnior evidenciou ainda que o “sentido da colonização” na América se deveu à expansão marítima comercial dos Estados europeus, a partir do século XV. O pioneirismo de Portugal na expansão ultramarina resultou da sua melhor situação geográfica no extremo da Península Ibérica, o que o favoreceu no avanço pelo mar, tendo em vista a busca de novos mercados consumidores e fornecedores de matériasprimas, além da menor concorrência nesta nova via comercial. Para o autor, a expansão marítima com a colonização da costa africana e a do Novo Mundo tinha como sentido norteador o desenvolvimento comercial europeu. A colonização portuguesa na África e na Índia se deu pelo estabelecimento de simples feitorias, destinadas a comercializar com os nativos, além de servir de entreposto para as rotas marítimas e os territórios ocupados. Na América, a ocupação se deu de forma diferente, esta não podia ser feita apenas com o estabelecimento de simples feitorias, havia de se povoar as terras e organizar a produção de gêneros que interessassem ao comércio europeu. A própria estrutura da sociedade colonial, com a instituição da escravidão de nativos e de negros vindos da África, evidenciava a estratégia de ação de que lançaram mão os países da Europa, a fim de explorar comercialmente os vastos territórios e riquezas da América. Assim: A colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos (PRADO JÚNIOR, 1999, p. 31). 31 Deste modo, para o autor, a ocupação e o povoamento do Brasil se pautou nos interesses econômicos de Portugal, para os quais o conceito de povoar estava estreitamente ligado à necessidade de se organizar a produção a ser comercializada para a metrópole. O domínio americano constituía-se em fator essencial do desenvolvimento econômico da monarquia portuguesa. “É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras” (PRADO JÚNIOR, 1999, p. 32). Em seu livro Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (17771808), Fernando Antônio Novais, que seguiu a mesma linha de pensamento de Caio Prado Júnior, estabeleceu que o mercantilismo4 deu sentido à colonização durante o período em que ocorreram as descobertas marítimas, considerando que as novas possessões constituíram-se em retaguarda econômica das metrópoles. Os domínios ultramarinos tinham a função de garantir que suas metrópoles fossem autossuficientes em matérias-primas a serem comercializadas no mercado europeu, de serem consumidoras de produtos manufaturados vendidos a altos preços, bem como, uma peça chave para o processo de acúmulo primitivo de capitais. Para Novais, em termos políticos, o sistema colonial pode ser descrito através da relação de dois elementos: um centro de decisão (metrópole) e um pólo subordinado (colônia). Desta maneira: Reservando-se a exclusividade do comércio com o Ultramar, as metrópoles europeias na realidade organizavam um quadro institucional de relações tendentes a promover necessariamente um estímulo à acumulação primitiva de capital na economia metropolitana a expensas das economias periféricas coloniais. O chamado monopólio comercial, ou mais corretamente e usando um termo da própria época, o regime do exclusivo metropolitano constituíase pois no mecanismo por excelência do sistema, através do qual se processava o ajustamento da expansão colonizadora aos processos da economia e da sociedade europeias em transição para o capitalismo integral (NOVAIS, 2006, p. 72). 4 Termo adotado para caracterizar um conjunto de práticas econômicas vigentes no decorrer dos séculos XVI ao XVIII. O mercantilismo, como doutrina ou sistema econômico, nunca existiu. Suas práticas assumiram posturas diferentes nos diversos países que as aplicaram. Basicamente, essas práticas decorrem de uma concepção genérica, segundo a qual a riqueza de um Estado reside na maior ou menor quantidade de metais preciosos que possui. (...) Alguns aspectos gerais do mercantilismo podem ser apontados: intervenção do Estado na vida econômica; balanço de pagamento favorável como condição para o progresso de cada país; identificação da riqueza com a posse de metais preciosos (AZEVEDO, 1999, p. 301-302). 32 Todavia, segundo o autor, este esquema analítico não é suficiente para entender a colonização da América. Há que se levar em consideração também o processo de organização administrativa e social do reino de Portugal com a formação de um Estado centralizado e absolutista, caracterizado pela concentração do poder nas mãos do rei e por uma sociedade estamental fundada em torno de privilégios jurídicos. Para Novais, é o “Estado absolutista”, marcado pela “extrema centralização do poder real”, que executa uma política de incentivos à economia de mercado, baseada na circulação de diversos produtos no comércio europeu, reforçado, ainda, no plano externo, por uma política econômica de exploração das novas conquistas ultramarinas. Nestas, preponderou o regime de trabalho escravo. Na colonização do Novo Mundo, a preferência pelo escravo africano em relação ao índio pode ser explicada pela importância do tráfico negreiro, já que este comércio gerava altos lucros para a economia de Portugal, enquanto que os ganhos com o comércio indígena mantinha-se na colônia. Sendo assim, para Novais, “Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, política mercantilista, expansão ultramarina e colonial são, portanto, partes de um todo” que ajuda a compreender o processo de exploração colonial ocorrido na África, Ásia e América (NOVAIS, 2006, p. 66). Laura de Mello e Souza, em As redes do poder, capítulo em que analisa a administração das Minas, buscou fundir as interpretações de Raymundo Faoro e Caio Prado Júnior. Segundo ela, apesar de suas interpretações serem essencialmente divergentes quando confrontadas, apresentam grande utilidade. Assim sendo, ao analisar o período das grandes descobertas de metais preciosos, e levando-se em consideração o contexto mercantilista da época, a autora evidenciou a maior presença da monarquia na América portuguesa, devido, principalmente, à cobiça em relação ao ouro mineiro. Tal cobiça também atingiu a maioria dos homens que para aquela região se deslocavam, dentre eles, os potentados locais e os próprios funcionários régios que, distantes do reino, burlavam o poder central em proveito próprio, propiciando toda sorte de infrações nas Minas. Nesse sentido, para autora, dois aspectos fazem parte dessa região: autonomismo e extrema dependência (SOUZA, 2004). Além disso, Souza ressalta que o governo dessa capitania sempre foi uma tarefa difícil e delicada, exigindo a mistura de agressividade e suavidade nos assuntos administrativos. Havia, por parte do rei, a preocupação em se fazer sentir presente na 33 região, usando da força quando necessário. Todavia, ao mesmo tempo, instruiu os funcionários régios a exercerem o governo com brandura e prudência a fim de não ser indesejada e odiada. A Coroa portuguesa temia as distâncias e a lentidão do aparelho administrativo, o que poderia colocá-la em situação delicada. “O mando estava fadado a ser contemporizador, pois caso vestisse apenas a máscara da dureza, o edifício todo se esboroava, a perda do controle levando à da própria colônia”. Nesse sentido, no intuito de resguardar o seu poder, o governo português procurou exercer a autoridade real nas minas com brandura e prudência, “não se podia apenas bater, havia também que soprar, e com frequência” (SOUZA, 2004; SOUZA, 2006, p. 31). Logo, de acordo com a autora, a administração serviu, em primeiro lugar, aos interesses do monarca e, depois, em consonância com os seus interesses, aos dos poderosos locais; ou seja, os interesses destes estavam em segundo plano, e “o seu prestígio só foi tolerado até o ponto em que podia ser absorvido pelo Poder Central: nunca além” (MELLO E SOUZA, 2004, p. 200). Percebe-se, portanto, que os estudos das décadas de 70 e 80 sobre a administração portuguesa na América, a despeito das respectivas especificidades, são marcados pela defesa da concepção do monopólio comercial de Portugal sobre a possessão americana, através de uma administração centralizada na figura do rei, em que os seus interesses político-econômicos prevaleciam sobre os dos colonos. Já os historiadores que partem do conceito de império, todavia, rompem com esta análise, evidenciando em seus trabalhos que as relações entre o rei e os vassalos no ultramar eram marcadas por flexibilidade e negociações, com a distribuição de poder e prestígio a indivíduos e grupos sociais nos trópicos, o que reforçava os laços de lealdade e sujeição destes para com a monarquia. Estes defenderam a crescente autonomia das periferias com relação ao poder central. Todavia, parece-nos que esta última abordagem, ao enfatizar a força do poder local e de sua capacidade de negociação com a Coroa, negligencia, reduz ou até ignora o papel dos conflitos sociais e políticos na história do Brasil colonial, o que se pode evidenciar pelos inúmeros motins ocorridos na primeira metade do século XVIII, em várias regiões do Brasil, sobretudo, em face das ações de fortalecimento do poder real. Embora concordemos que seja coerente pensar as relações entre monarquia e seus colonos na América portuguesa através de uma relação de 34 reciprocidade, ainda assim, como bem assinalou Laura de Mello e Souza, o poder e os interesses do rei imperavam. 1.3 - A Autonomização do Poder nos Trópicos Na América portuguesa não se questionava a prevalência dos interesses da Coroa sobre suas possessões no ultramar, entretanto, isso não impedia que houvesse espaço para flexibilidade e negociação. Mesmo diante das insatisfações dos povos com a exploração lusitana, eles consideravam Portugal um modelo de referência em termos intelectuais, morais e espirituais, e não questionavam a autoridade do rei, mas ansiavam por desfrutar em seus domínios dos mesmos privilégios usufruídos pelos portugueses de Lisboa, Évora ou Porto. Assim: Quaisquer que sejam as vicissitudes que frequentemente caracterizavam o conturbado relacionamento entre portugueses e brasileiros, entre metrópole e colônia, entre centro e periferia, os brasileiros eram inabaláveis em sua lealdade para com a Coroa. Petições de colonos eram frequentemente expressas em uma linguagem que considerava o rei um parente fictício. O que os colonos almejavam com tais solicitações era o reconhecimento real de seu valor, de seus serviços e sacrifícios, e tais pedidos eram feitos e concedidos em um contexto altamente pessoal da relação vassalo-soberano (RUSSELL-WOOD, 1998, s/p). Portanto, na América portuguesa, o que os vassalos queriam realmente era uma recompensa, de ordem material e/ou imaterial, por serviços prestados em nome e a favor do rei de Portugal. Estes, à custa de suas “fortunas, sangue e vida”, prestavam serviços à Coroa e, em troca, requeriam cargos públicos, isenções, honras e mercês – privilégios já usufruídos pelos reinóis – que lhes proporcionariam, além de vantagens econômicas, o status social, dissociando-se da maioria da população pobre e escravizada do Brasil. Tal relação reforçava os laços de lealdade destes vassalos para com o monarca. Isso demonstra que as relações entre o centro e a periferia não eram tão rígidas, havendo espaço também para negociações e para o estabelecimento de laços de reciprocidade entre o soberano – aquele que dá, concede um benefício – e seus súditos no ultramar – aqueles que recebem o benefício. 35 A ideia de que o governo lisboeta era marcado pela rigidez de suas ações políticas, e que os interesses da sociedade americana não eram levados em consideração tem sido discutida e revista. Se, por um lado, a estrutura de governo era altamente centralizada em Portugal, na América, em virtude da distância do centro de poder, da precariedade das formas de comunicação, era necessário flexibilizar a estrutura administrativa, nomeando colonos para cargos do governo. O fato é que estes, muitas vezes, atuavam em favor dos interesses locais, frente à ação centralista da Coroa. Enfim, esses fatores contribuíram de forma decisiva para uma descentralização dos mecanismos de governo implantados no território americano (RUSSELL-WOOD, 1998). No tocante à comunicação entre a periferia e o centro, as petições eram um importante mecanismo de negociação dos interesses dos povos da América. Deste modo, os habitantes das terras americanas, mesmo os de menor condição social e econômica, eram suficientemente familiarizados com os mecanismos de apelação extrajudicial, remetendo seus casos diretamente ao rei. A Coroa também respondia às petições de natureza não judicial, como no caso daquelas apresentadas pelos regimentos de milícias de mulatos e negros livres, que se queixavam do fato de não receberem remuneração e de não serem valorizados no desempenho das suas funções em circunstâncias idênticas aos praticados pelos homens brancos. Assim: Tiveram sucesso requerimentos enviados ao rei por oficiais dos regimentos negros dos Henriques, de Pernambuco e Salvador, solicitando pagamento mensal básico e auxílio anual para a manutenção de seus uniformes, como era o caso dos oficiais dos regimentos de milícias brancas. Mais tarde, D. João (príncipe regente, 1792-1816; rei 1816-1826) estendeu esta equivalência de pagamento a todos os oficiais negros livres dos Henriques em todo o Brasil (RUSSELL-WOOD, 1998, s/p). Percebe-se, portanto, que as petições foram fundamentais na comunicação dos interesses dos habitantes da América ao rei de Portugal, em que lhe requeriam procedimentos mais justos no que tangia à convivência social nos trópicos. O principal órgão negociador que frequentemente representava os interesses da sociedade colonial era o Senado da Câmara. A elegibilidade dos que atuariam nos cargos camarários, bem como a daqueles que votavam, estava condicionada a um rigoroso critério que determinava que apenas os homens bons (indivíduos de reconhecida posição social) teriam o direito de participar desse processo. Isso significou 36 que não apenas as principais famílias da vila, cidade e região eram representadas na câmara municipal, mas que esta instituição servia também como mecanismo de articulação e proteção dos interesses das elites locais na América. Tais câmaras municipais gozavam de grande autonomia, além de serem importantes espaços de comunicação direta das pessoas influentes da região com a corte lusitana, em que suas solicitações ou reclamações poderiam facilmente chegar ao conhecimento do próprio rei (RUSSELL-WOOD, 1998). Segundo John Russell-Wood, no século XVIII, foi grande o número de pessoas nascidas no Brasil que ocuparam cargos na Igreja e no Estado. Isto se deveu ao fato destes terem estudado em Coimbra e retornado à pátria em busca de uma carreira no serviço público, bem como pelo aumento da prática da venda de cargos públicos. Criava-se, assim, um instrumento através do qual as elites locais poderiam ter acesso a estes cargos, por meio da sua compra. A maior participação destes grupos sociais no processo de tomada de decisão nos níveis local e regional poderia ser traduzida como um aumento de autonomia, tendo em vista que estes atuavam em prol do enriquecimento pessoal, das lealdades derivadas de relações de parentesco ou de uma intrincada rede de interesses especiais locais, do que pela defesa dos interesses políticoeconômicos ligados a Portugal. Nesse sentido: O instrumento financeiro impessoal do contrato isentava os compradores de cargos públicos de suas lealdades para com o rei de Portugal. A compra de cargos também estimulou a criação de oligarquias locais que acabaram por obter o domínio exclusivo sobre determinados postos, alguns deles passados de pai para filho ou oferecidos como dotes com a intenção de garantir um casamento ou de fortalecer as redes de parentesco coloniais. Reforçava-se assim a autoridade das oligarquias locais, cujo contraforte era a preservação dos bens coloniais mais importantes (RUSSELL-WOOD, 1998, s/p). Assim, a venda de cargos públicos modificou as relações centro-periferia na medida em que favoreciam uma maior participação das elites locais e regionais no governo. Estas estavam muito mais preocupadas em defender seus interesses pessoais do que os interesses da própria monarquia portuguesa. Luiz Felipe de Alencastro, em O trato dos viventes, evidenciou que a história do Brasil colonial não se restringia apenas ao nosso território. Para ele, as conquistas do Atlântico-Sul – Brasil e Angola – estavam unidas pelo oceano através de um intenso comércio de escravos negros, englobando uma zona de produção escravista situada no 37 litoral da América do sul e uma zona de reprodução de cativos centrada em Angola. O autor destacou ainda que, no processo inicial de colonização, os conquistadores lusos tiveram muitas dificuldades em assegurar o controle dos nativos e do excedente econômico das três possessões continentais: África, Índia e América. Ocorria que esse excedente econômico podia ser consumido pelos naturais da terra, ou era comercializado regionalmente, escapando, portanto, do controle da Coroa. Nesse sentido, o domínio ultramarino nem sempre resultava na exploração colonial e na obediência das forças sociais locais ao poder monárquico. Ainda que os excedentes econômicos dessas possessões tivessem como destino certo o reino portucalense, a expansão mercantil não garantiu necessariamente a sua exclusividade no comércio destas regiões, isso porque as transações econômicas e a ascensão dos comerciantes faziam emergir novas forças sociais centrífugas, tanto em Portugal quanto nas conquistas, colocando em lados opostos interesses privados e públicos. Desta forma, para Alencastro, a defesa dos interesses régios no vasto império ultramarino português dependeu da capacidade do poder central de negociar com estas novas forças sociais emergentes (ALENCASTRO, 2000). Para Russell-Wood, a história do Brasil fornece numerosos exemplos de como a sociedade colonial foi capaz de exercer suficiente pressão sobre os oficiais régios no sentido de evitar ou alterar totalmente editos reais ou de negociar um acordo menos ofensivo aos interesses locais. Na sua forma mais extremada, houve confrontação física marcada pelas agitações populares e lutas armadas contra as autoridades representantes do poder central. Porém, havia também espaço para flexibilidade e negociação entre aqueles que defendiam os interesses locais e os que atuavam no sentido de preservar os interesses da Coroa na região. Um exemplo clássico disto foram as constantes negociações em torno das formas de cobrança do imposto real sobre a produção mineradora durante a maior parte do século XVIII. Para o autor, as negociações entre as populações da América e os representantes da Coroa indicam que estes não só dialogaram com aqueles, como também se posicionaram, em alguns casos, a favor deles e contra o próprio rei de Portugal. Por exemplo, o vice-rei da Bahia (1720-35), conde de Sabugosa, apoiou os negociantes baianos para preservar o monopólio do comércio de escravos com o oeste da África e com o Golfo do Benin, contrariando os interesses dos comerciantes de Lisboa em participar deste lucrativo comércio, mesmo apoiados pelo 38 rei D. João V. Em outro caso, o governador de Minas Gerais (1732-1735), André de Mello de Castro, Conde de Galvêas, uniu-se aos mineiros resistentes à introdução do imposto da captação, apoiando a proposta local de uma quota anual de 100 arrobas de ouro a ser paga à Coroa (RUSSELL-WOOD, 1998). Entretanto, as acomodações resultantes da negociação dos súditos americanos com a monarquia portuguesa e com os oficiais régios não devem transmitir a ideia de que tudo era calmaria em termos do relacionamento entre os nascidos em Portugal e os nascidos na América. Pelo contrário, a relação entre estas partes é reveladora do forte sentimento de desconfiança e hostilidade. Os exemplos mais citados dessa aversão são a Guerra dos Emboabas, do ano de 1707, marcada pela disputa pelos direitos de posse das minas entre os paulistas de São Vicente, filhos da terra, e os reinóis, apelidados pejorativamente de “emboabas”, e a Guerra dos Mascates, do ano de 1711, marcada pelo conflito entre proprietários de engenho de açúcar, de Olinda, e os comerciantes portugueses, de Recife. A Guerra dos Mascates se deu em torno dos interesses dos comerciantes portugueses em elevar Recife à categoria de vila, tornando-a independente de Olinda, bem como suas pretensões políticas de participação no governo local, o que desagradou os proprietários de engenho, que eram contra a autonomia política de Recife. (RUSSELL-WOOD, 1998; MELLO, 2009). Desde finais do século XVII se polarizou o conflito entre estes dois grupos sociais, resultante das pretensões dos senhores de engenho em preservar o monopólio dos cargos públicos da administração local, sobretudo, a Câmara de Olinda, evitando, deste modo, o acesso dos comerciantes reinóis ao poder, sob o argumento de não serem pessoas naturais da terra. A despeito dos seus interesses, a Coroa portuguesa, através do decreto régio de 19 de novembro de 1709, elevou Recife à categoria de vila autônoma. A delimitação das novas fronteiras municipais ficou sob a responsabilidade do governador de Pernambuco, Sebastião de Castro e Caldas, que deveria consultar o ouvidor, Dr. José Ignácio de Arouche. Este estava vinculado à elite açucareira e desejava reduzir ao máximo as fronteiras da recente vila, enquanto que o governador estava a favor dos mascates e almejava incluir três paróquias vizinhas. Sebastião de Castro, desejando prevenir qualquer objeção dos senhores de engenho à inauguração oficial da nova vila, e sem informar-lhes sobre o decreto que recebera de Lisboa, determinou que erguessem um 39 pelourinho5 improvisado na praça principal, levando os olindenses a declararem que tudo aquilo não tinha autorização da Coroa. Tal atitude demonstra a inabilidade do governador em dialogar com as elites açucareiras. No dia 17 de outubro de 1710, ele sofreu um atentado à bala por um grupo de homens mascarados, que fugiram e nunca chegaram a ser identificados. Levemente ferido, e não conseguindo capturar os verdadeiros culpados, o governador mandou prender vários senhores de engenho e seus agregados por suspeição de serem cúmplices no atentado. Alegando autodefesa, estes reagiram organizando milícias armadas compostas por lavradores e seus escravos, com o objetivo de atacar Recife. Sem poder confiar totalmente em suas tropas, já que parte dela apoiava os amotinados, o governador decidiu fugir com alguns dos principais mascates para a Bahia, no dia 07 de novembro de 1710 (BOXER, 1969). Nota-se que o elemento motivador da reação da elite olindense foi a atuação do governador Sebastião de Castro e Caldas, acusado de tirania, por não respeitar seus pretensos privilégios, no que muito se assemelha ao descontentamento dos portugueses com Felipe IV, em 1640. Vitoriosos, os senhores de engenho e seus principais adeptos reuniram-se em uma assembleia geral em Olinda, no dia 10 de novembro de 1710, para decidir quem deveria substituir o governador foragido. A escolha recaiu sobre o bispo, frei Manuel Álvares da Costa, sendo que a ele foram feitas algumas exigências, sendo a principal delas o perdão formal, em nome do rei, aos vencedores de Olinda. Durante sete meses estes triunfaram sobre os mascates, todavia foram pegos de surpresa por um bem sucedido levante dos habitantes de Recife. No dia 18 de junho de 1711, estes pegaram em armas contra os olindenses e as tropas auxiliares paulistas, sob o comando de Bernardo Vieira de Mello. Saindo vitoriosos, os mascates também exigiram do novo governador a publicação de uma circular dizendo que tudo que acontecera até aquela data, 19 de junho, fosse perdoado e esquecido. Todavia, o bispo intimou os mascates a se renderem. Estes, por sua vez, recusaram render-se e elegeram um dos oficiais da guarnição, João da Mota, como seu chefe. Vendo que o confronto era inevitável, o bispo demitiu-se do cargo de governador, passando a governar uma junta composta pelo Dr. Valenzuela Ortiz, Coronel Christovão de Mendonça Arraes e os vereadores de Olinda, que rapidamente se mobilizaram no cerco a Recife. Somente com a chegada de Portugal 5 Segundo nota do próprio autor, pelourinho era uma coluna de pedra rematada por uma cruz, escudo ou as armas régias, que servia como insígnia de municipalidade e também como pelourinho e poste de chicoteamento para criminosos e escravos (BOXER, 1969, p. 134). 40 do novo governador, Felix José Machado de Mendonça, é que se pôs fim a esta contenda, com o perdão real a todos os envolvidos. Recife foi novamente elevada à categoria de vila com o erguimento formal de um pelourinho no dia 18 de novembro. Contudo, o fim da Guerra dos Mascates não significou o fim das hostilidades entre os comerciantes portugueses e os senhores de engenho. Menosprezando os termos gerais do perdão régio, o governador e o novo ouvidor, Dr. João Marques Bacalhau, atuando em favor dos mascates, mandaram prender os principais líderes envolvidos na primeira revolta contra o antigo governador, Sebastião de Castro e Caldas, além de deportarem o bispo, frei Manuel Álvares da Costa, para um ponto remoto da capitania. Muitos senhores de engenho sentindo-se inseguros, fugiram para matagais a fim de não serem presos. Tais medidas punitivas são reveladoras do ódio que ainda permanecia entre os naturais de Portugal e os de Pernambuco (BOXER, 1969). Evaldo Cabral de Mello, em seu livro Rubro Veio, demonstrou-nos que foi durante a Guerra dos Mascates que os senhores de engenho de açúcar pronunciaram o discurso de valorização do movimento de Restauração Pernambucana do ano de 1654, que expulsou os holandeses da região açucareira do Nordeste do Brasil. Contrários à autonomia política dos comerciantes portugueses de Recife, eles chamaram a atenção para a sua condição social, a de serem os legítimos descendentes dos restauradores pernambucanos, como forma de reivindicar o status de principais homens da terra, bem como o direito de exercício do poder político local. Em Portugal, como na América portuguesa, o termo “principal” não era empregado de maneira unívoca. Em primeiro lugar, denotava riqueza, afluência, grandes cabedais. Em segundo, aplicava-se ao indivíduo que exercia poder local, seja por ocupar cargos da governança ou por dispor de clientela ou de séquito de homens livres e escravos. Por fim, “principal” se refere ao homem detentor do status de nobreza ou fidalguia. Na concepção dos senhores de engenho, para ser considerado “homem nobre” ou “homem principal”, e com isso deter o direito de participação na vida política, era necessário descender dos restauradores de 1654. Deste modo, para eles, a ocupação dos cargos públicos, em Pernambuco, restringia-se à elite açucareira, ou seja, aos filhos e netos dos restauradores, que haviam participado das lutas pela expulsão dos holandeses. Para Mello: Nobreza da terra tornara-se a designação adotada pelos descendentes das pessoas principais de sessenta, setenta anos antes, de maneira a legitimar seu 41 domínio do poder local, no momento em que ele passara a ser disputado pelos mercadores reinóis. Nobreza da terra designava basicamente as famílias açucarocráticas de Pernambuco durante o século e meio de colonização, os filhos e os netos de indivíduos, que embora destituídos da condição de nobres no Reino, haviam participado das lutas contra os holandeses ou exercido as funções de gestão municipal, os chamados cargos honrados de república, categorias que, aliás, não estavam claramente separadas (MELLO, 2008, p. 162-163). Desta forma, os proprietários de engenho de açúcar, no intuito de reforçarem seu poder político na região e sua condição de “nobreza da terra”, enfatizaram o discurso que valorizava a ação dos restauradores de 1654. Com isso, fortaleceram a ideia de que a conquista e defesa da Capitania de Pernambuco contra a presença holandesa se deu “à custa do sangue, vidas e fazendas” dos seus antepassados, que não contaram sequer com o apoio financeiro e militar de Portugal. Nesse sentido, o imaginário político nativista da Restauração Pernambucana gerou uma concepção contratual das relações políticas entre as elites locais de Pernambuco e a Coroa portuguesa. Desta forma, valendo-se desse discurso, os senhores de engenho defendiam sua posição social de “homens principais da terra”, haja vista serem os legítimos descendentes dos restauradores, e sua supremacia política sobre os outros estratos sociais, na medida em que somente eles tinham as “qualidades” necessárias para a ocupação dos cargos públicos da administração local. O acesso a tais cargos, de acordo com o discurso dessa elite local, deveria ser vedado aos comerciantes portugueses de Recife (MELLO, 2008). Portanto, a noção de contrato, na visão dos senhores de engenho, baseava-se na noção de que a Coroa deveria lhes dar um tratamento diferenciado, protegendo os seus interesses e privilégios políticos na região, como forma de gratidão pela ação valorosa dos seus antepassados, que restauraram sozinhos o território de Pernambuco, devolvendo-o espontaneamente à monarquia portuguesa. Note-se, portanto, que nesse discurso, a devolução da Capitania de Pernambuco não se deu através de uma relação de reciprocidade, mediante laços de lealdade e submissão dos vassalos pernambucanos ao rei de Portugal. Pelo contrário, tal relação era mediada por uma noção de contrato, em que a capitania pertencia aos restauradores, por direito de conquista, sendo restituída ao patrimônio da Coroa, mediante o reconhecimento e a gratidão dos serviços prestados (devolução do território), bem como pela disponibilização, a estes e seus descendentes, 42 dos principais cargos da administração local. Para os senhores de engenho, caberia ao poder real resguardá-los a preeminência do poder político nas terras reconquistadas pelos seus ancestrais (MELLO, 2008). Nota-se, portanto, que a elite açucareira, utilizando-se do discurso que valorizava a ação política-militar dos seus antepassados, negociava com o rei a sua supremacia política na região. A Coroa portuguesa, não levando isso em consideração, autorizou a elevação de Recife à categoria de vila, o que conduziu à eclosão do motim. Tal movimento é revelador não só das tensões políticosociais existentes entre os naturais de Pernambuco e os de Portugal, como também da insubordinação dos primeiros às autoridades metropolitanas, o que era visto pela Coroa portuguesa como uma séria ameaça interna ao seu poder e soberania na região. À ameaça interna somava-se outro perigo ao poder de Portugal na América, o perigo externo. Em fins do século XVII e início do XVIII, a Capitania do Rio de Janeiro sofreu com as invasões corsárias de naus francesas animadas pelas notícias do descobrimento das minas de ouro no interior. Na sua costa litorânea, havia pequenos ancoradouros desde Cabo Frio até Parati, o que a tornava local privilegiado para a prática de corso e pirataria. Prudência, cautela e prevenção passaram a ser palavras de ordem no que se refere à entrada de navios estrangeiros nos portos desta capitania, em que o temor e a desconfiança era um sentimento compartilhado entre as autoridades régias e os moradores da região fluminense. As próprias guerras europeias entraram em uma fase em que os conflitos militares deixaram de ser essencialmente terrestres para se tornarem ações marítimas de concorrência comercial e de conquista de territórios no ultramar. Estes conflitos político-sociais travados no Velho Mundo poderiam repercutir certamente no Novo Mundo. Assim, tanto os fatores internos quanto os externos poderiam levar à invasão e ocupação da América portuguesa. Daí a imensa preocupação da Coroa, das autoridades e das populações americanas com a defesa e preservação do território (SOUZA; BICALHO, 2000). No século XVIII, a primeira tentativa de invasão do Rio de Janeiro ocorreu no dia 17 de agosto de 1710 por meio de uma esquadra composta por seis navios liderados pelo corsário francês Jean-François Duclerc, atraído pelo ouro das Minas que escoava pelo porto carioca. Todavia, este não teve sucesso na incursão do território, devido aos disparos de canhão provenientes das fortalezas da barra. Somente na manhã do dia 19 de setembro Duclerc conseguiu invadir a cidade, o que provocou reações do governo 43 local, apoiados por seus soldados e pelos moradores, seguidos por seus escravos armados de pedras e paus. Tiveram também participação no combate os padres, soando os sinos da igreja e conclamando os defensores à luta, os estudantes jesuítas e dois antigos emboabas, Bento do Amaral Coutinho e frei Francisco de Meneses. Estes saíram vitoriosos dando fim ao embate no mesmo dia da invasão. Duclerc foi feito prisioneiro e morreu na prisão (SOUZA; BICALHO, 2000). Em 12 de setembro de 1711, ocorreu outra invasão francesa em solo fluminense, comandada por Duguay-Trouin. No dia 19 de setembro, os franceses enviaram uma mensagem ao governador, Francisco de Castro Morais, exigindo-lhe sua rendição, o qual se recusou terminantemente. No entanto, ao anoitecer do dia 21, apavorados pela proximidade do inimigo, os regimentos e milícias que defendiam o espaço urbano e seus moradores começaram a desertar. O governador, por sua vez, determinou o fim do contra-ataque e o abandono das trincheiras e a total evacuação da cidade. Diante de uma cidade praticamente deserta, os franceses começaram a saquear e reunir em seus navios tudo o que de valor puderam encontrar. Os franceses, cientes da contraofensiva liderada pelo governador de São Paulo e Minas do Ouro, Antônio de Albuquerque, exigiram considerável quantia pelo resgate da cidade ao governador Castro Morais, e, caso não pagassem, eles a destruiriam. Sem esperar por Albuquerque e seus reforços, Castro Morais pagou o resgate. A maior parte foi paga com os quintos régios, além da colaboração financeira de moradores afortunados, que desejavam reaver suas propriedades tomadas pelos franceses (SOUZA; BICALHO, 2000). Para os vereadores das câmaras municipais, em carta enviada ao rei, a culpa deste triste episódio era atribuída ao governador Castro Morais, acusado de ter vendido a cidade do Rio de Janeiro aos franceses, sem consultar a opinião dos homens nobres da governança; acusando-o ainda, de ter sido incapaz de defender o território, bem como os interesses da Coroa e os de seus leais súditos no ultramar. Além disso, em seu discurso, os vereadores defenderam a ideia de que foram as pessoas principais da terra, e não as autoridades metropolitanas, que, à custa de suas vidas e fazendas, defenderam a cidade dos ataques franceses, dando provas da sua irretorquível lealdade ao rei de Portugal, e exigindo deste reconhecimento ao pedirem-lhe que os fizesse governar a região, caso não quisesse ver arriscados os seus domínios ultramarinos. De acordo com os vereadores municipais, assim que se encerraram as negociações do acordo pelo 44 pagamento do resgate, o governador enviou um amigo e um criado seu para negociar a compra de navios, fazendas e outros bens saqueados pelos franceses, afirmando, por esse motivo, que a negociação em torno da devolução da cidade se deu também em virtude de interesses pessoais do governador e de seus aliados, que buscavam garantir vantagens de ordem material. Diante de tanta insatisfação, da súplica do bispo, dos oficiais da câmara e dos demais ministros, e o risco possível de um motim por parte dos povos da região, o governador Antônio de Albuquerque assumiu o governo daquela capitania na esperança de acalmar os ânimos (SOUZA; BICALHO, 2000). Os oficiais da câmara, prevendo o perigo da eclosão de um motim popular, escreveram ao rei alertando-o que os moradores do Rio andavam receosos com a permanência de Castro Morais no governo da cidade, temerosos de que pudesse haver outra invasão e, consequentemente, o apoderamento de suas propriedades. Deixaram claro, ainda, que até os mais leais vassalos da região ameaçavam amotinar-se caso maus governantes colocassem novamente em risco suas vidas, propriedades e fortunas pessoais. Aqui, o que se nota é a adoção de uma ação política semelhante ao praticado durante o movimento da Restauração portuguesa de 1640, visto que os moradores do Rio de Janeiro, diante da insatisfação com a situação de insegurança posta, e com a inércia e a corrupção do governador Castro Morais, exigiram a sua imediata saída do posto. Para tanto, alegavam que ele não conseguiu assegurar a defesa do território e que agiu injustamente, ao negociar em favor próprio os despojos da invasão, o que revelava falta de zelo pelo bem comum dos povos, legitimando a insubordinação a sua autoridade de governador. Diante dessa conjuntura, durante todo o século XVIII a Coroa preocupava-se tanto com o perigo das invasões estrangeiras, quanto da eclosão de motins nos territórios americanos, o que poderia levar, igualmente, a uma possível perda do controle sobre estas regiões, tão distantes do reino de Portugal. Diante desses perigos, e ciente das dificuldades da manutenção da ordem, o governador Antônio de Albuquerque adotou a estratégia de lograr o apoio dos homens mais poderosos da região, que dispunham de cabedal e de grande número de escravos, o que o auxiliaria no socorro à cidade do Rio de Janeiro. Em troca, estes exigiam honras, mercês e privilégios de vários tipos, que lhes confeririam as condições necessárias para a ostentação do status de elite. 45 Dentre os potentados que apoiaram o governador em sua diligência estavam: Pascoal da Silva Guimarães, que foi agraciado com terras, a patente de sargento-mor e, posteriormente, a de mestre-de-campo do terço auxiliar de Vila Rica; Pedro da Rocha Gandavo, que recebeu uma légua de terra e o posto de sargento-mor, depois convertido a coronel de um regimento de cavalaria; e Sebastião Carlos Leitão, agraciado com o posto de sargento-mor, também tornado coronel. É interessante observar que estes vassalos, até então considerados leais e dignos de tais honrarias, estavam entre os amotinados de 1720, contra a autoridade do governador D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, o conde de Assumar. Apoiaram o governador Albuquerque, em 1711, no Rio de Janeiro, o que não aconteceu no ano de 1720, em Vila Rica, já que os revoltosos não compartilhavam dos mesmos interesses engendrados por Assumar, que impunha maior centralização política na região. Nesse sentido: No alvorecer da sociedade mineira setecentista, os governadores não podiam prescindir dos poderosos locais na aquisição e manutenção de formas, mesmo que mínimas, de governabilidade o que veio a requerer, tanto por parte dos governadores, como por parte das elites locais, estratégias de ação balizadas pela negociação e pela reciprocidade, interesses mútuos, quando convergiam, geravam benesses para ambos os lados. O mesmo princípio regeu as relações entre D. Pedro de Almeida e aqueles que lhe auxiliaram na contenção da revolta de 1720 (KELMER MATHIAS, 2005, p. 114). Interessante é que o próprio conde de Assumar já havia concedido mercês a Pascoal da Silva, ainda que por um período curto, no posto de governador de Vila Rica e seu distrito. Deste modo, percebe-se que a união entre poderosos locais e governadores foi mediada por uma relação de interesses, que quando convergiam, resultava numa relação amistosa, mas quando divergiam, nem mesmo os governadores, representantes da vontade do rei na América eram poupados pelos poderosos, sendo os motins a expressão máxima desse desentendimento. As mercês cedidas a Pascoal da Silva e outros homens influentes envolvidos na revolta mineira de Vila Rica são reveladoras de que tal mecanismo não era suficiente para garantir a obediência dos vassalos americanos à Coroa, nem mesmo a governabilidade política da região (KELMER MATHIAS, 2005). O principal órgão que permitia a interferência dos moradores no governo local era o Senado da Câmara, que funcionava não apenas como um local de diferenciação e hierarquização social, como também, de negociação dos interesses de ordem local com 46 o rei. Por esse motivo, as câmaras municipais eram alvo de constantes disputas entre as elites regionais, haja vista que eram um espaço crucial de representação dos seus interesses. Instaladas nas diferentes partes do Império português, as câmaras apresentavam contornos específicos característicos da sua realidade local. No entanto, estas instituições tinham pontos em comum com as câmaras sediadas no reino lusitano. A de Macau, por exemplo, criada em 1582, era representada por uma elite de ricos mercadores portugueses, em que estes gozavam dos mesmos privilégios, liberdades, honras usufruídos pelos reinóis da cidade de Évora, em Portugal. Igualmente: Composta por três vereadores, dois juízes ordinários e um procurador – todos eleitos –, ela foi, durante quase três séculos, o verdadeiro corpo governativo de Macau, cabendo aos governadores ou capitães-generais nomeados pelo rei ou vice-rei o simples comando das fortalezas e da exígua guarnição da cidade. (...) Nos anos 80 do século XVIII, quando a Coroa decidiu fortalecer o poder do governador em detrimento do exercido pelos oficiais da câmara, estes reagiram. Em carta ao vice-rei em Goa, afirmavam que durante os 226 anos anteriores haviam governado aquela colônia sem qualquer subordinação aos funcionários régios. As intenções metropolitanas frustraram-se, em parte devido à recusa das autoridades chinesas de reconhecerem qualquer outro interlocutor em suas negociações com a colônia portuguesa (BICALHO, 2010, p. 194-195). Deste modo, a Câmara de Macau apresentava características bem específicas, se comparada ao padrão das demais câmaras espalhadas pelo Império português. Longe de gozarem de uma autonomia política e econômica, estas, na verdade, viviam o outro lado da moeda, sendo que os seus oficiais estavam subordinados aos funcionários régios. Para Bicalho, apesar das singularidades presentes nas diferentes câmaras instaladas nas diversas possessões portuguesas, elas apresentavam algo em comum, o fato de serem espaços de nobilitação e representação das elites locais no ultramar, bem como um importante canal de comunicação direta com o rei de Portugal. Nesse sentido: As câmaras coloniais foram pródigas em utilizar canais de comunicação direta com o monarca. Era frequente recorrerem ao dispositivo das petições ou representações ao rei como via da resolução dos problemas e conflitos nos distantes territórios do ultramar. (...) Mesmo após o declínio das Cortes na segunda metade do século XVII – sua última reunião data de 1697/1698 – o envio de procuradores a Lisboa e o recurso às petições por parte das câmaras disseminadas por todo o Império demonstram a grande capacidade de comunicação entre o centro e periferia na fase clássica do absolutismo monárquico. Comprovam também, se não a eficácia prática, pelo menos a força simbólica da figura do rei como pai, sempre pronto a ouvir as aflições de seus filhos (BICALHO, 2003, p. 352-353). 47 A partir da Restauração Portuguesa, de 1640, intensificou-se o controle sobre os assuntos político-administrativos e tributários nas partes do império, cerceando progressivamente o poder político e econômico das câmaras ultramarinas. Uma das medidas adotadas para esse intento foi à criação do cargo de juiz de fora, que visava a aumentar o poder de interferência desse funcionário régio nos assuntos concernentes ao governo local, a fim de controlar os descaminhos e os possíveis prejuízos ao erário real. A desarticulação da autonomia dos poderes locais nas câmaras pela atuação do juiz de fora deveu-se a sua condição de oficial letrado, aplicador do direito oficial, indo, deste modo, contra as formas vigentes de justiça praticadas nas terras americanas, baseadas em um tipo de direito consuetudinário. Deste modo, pode-se considerar que a “eficácia da institucionalização do cargo de juiz de fora no processo de centralização monárquica residiu na hegemonização dos parâmetros jurídico-administrativos veiculados pelo poder central” (BICALHO, 2010, p. 200). Todavia, para Bicalho, este oficial vindo de fora nem sempre agiu em favor dos interesses régios, atuando, não raras vezes, em consonância com os interesses das forças sociais centrífugas. A ocupação dos cargos camarários era restrita à nobreza da terra, não se referindo àqueles que eram nobres pela consanguinidade, mas sim, aos que pelas ações valorosas e pelas altas funções desempenhadas na América adquiriam o status de homens principais da terra. Assim: De acordo com o alvará régio de 12 de novembro de 1611 – que servia tanto para o reino como para as colônias –, os eleitores deveriam ser selecionados entre “os mais nobres e da governança da terra”, prevendo-se que a escolha recaísse sobre a gente da governança ou filhos e netos de quem o fosse, e que provassem ser “sem raça alguma” 6 (BICALHO, 2003, p. 371). Desta forma, nas câmaras das principais cidades litorâneas – Salvador, Olinda e Rio de Janeiro – o alvará régio de 12 de novembro de 1611 serviu de respaldo para que 6 Segundo nota da própria autora, “sem raça alguma” referia-se ao estigma que pesava sobre os cristãosnovos, também chamados “gente de nação”. A política geral discriminatória, ainda que esboçada no século XVI dos Avis, ganhou fôlego novo com a ascensão dos Filipes em Portugal e assim ficaria, quase inabalável, até Pombal. No caso do clero, o Breve De Puritate, anterior a 1598 e várias vezes reiterado posteriormente, autorizou a exigência de pureza de sangue para o provimento de sinecuras com benefícios (direito de cobrar rendimentos eclesiásticos). Na legislação civil, o primeiro grande passo foi uma carta régia de 1604 proibindo o acesso de cristãos-novos às Ordens militares do reino. Com o tempo isso foi se generalizando, cunhando-se a noção de “sangue infecto”, denominador comum entre judeus, mouros, índios, negros, mulatos e outras “raças infectas” (BICALHO, 2003, p. 393). 48 as elites locais impedissem que oficiais mecânicos, pessoas impuras, comerciantes e reinóis tivessem acesso ao cargo camarário.7 Todavia, a intromissão dos representantes da Coroa (governadores e ouvidores) no processo de eleição dos vereadores, apoiando candidatos que não tinham a “qualidade” requerida para posse de tal cargo, levou a uma situação de conflito com as elites locais, que não admitiam tal interferência, pois ia contra o que era estabelecido em lei: que tais cargos só poderiam ser ocupados pela gente principal da terra. Segundo Bicalho, a reação das elites locais ao ingresso de pessoas “não fidalgas” nos cargos concelhios baseava-se no argumento de que eram os homens principais da terra, não apenas por suas condições de nascimento ou consanguinidade, ou por sua situação econômica e política, ou por serem senhores de terras e escravos e terem acesso aos cargos concelhios, mas sim pela valorização, através do discurso, da condição de serem descendentes dos “conquistadores, primeiros povoadores e defensores” das terras americanas (BICALHO, 2003). João Fragoso, ao analisar a formação das elites senhoriais no Rio de Janeiro, demonstrou-nos que os descendentes dos conquistadores e primeiros povoadores gostavam de ser reconhecidos como “principais da terra”. Estes estavam ligados ao poder político do município, em que as câmaras municipais eram um dos principais locais de representação do seu poder. Esta diferenciação social era corroborada ainda pelas mercês recebidas do rei de Portugal, pelos casamentos com pessoas do mesmo status e, principalmente, pelo reconhecimento dos próprios moradores, que os viam como membros de um grupo de qualidade superior. Desta forma, o ingresso na nobreza da terra passava pela descendência ou casamento com netas ou bisnetas dos conquistadores e primeiros povoadores do Rio de Janeiro, o que de certa maneira, conferia-lhes o exercício do poder político no âmbito local. As vantagens do acesso aos cargos públicos não se pautava tanto pelos salários pagos pela fazenda real, mas sim, dos eventuais lucros que tais cargos poderiam auferir, possibilitando aos beneficiários dos favores do rei a chance de ampliarem suas fortunas pessoais (FRAGOSO, 2010). 7 Bicalho aponta que nem sempre no Brasil, como em Goa e Macau, a eleição de pessoas para os cargos concelhios seguiu de perto as determinações desta legislação. E, cita, como exemplo, a câmara de Vila Rica, em que se encontravam membros sem as “qualidades” apontadas para o exercício dos cargos municipais, muito em virtude do caráter fluido e movediço dos grupos sociais que compunham esta região, marcada por uma maior mobilidade social baseada na riqueza, contradizendo de certa forma os códigos estamentais vigentes em Portugal (BICALHO, 2003, p. 371-372). 49 O sistema de mercês era uma velha prática da sociedade portuguesa, tendo suas origens nas Guerras de Reconquista contra os mulçumanos, na Idade Média, quando o rei concedia à aristocracia terras e privilégios como recompensa por serviços prestados à Coroa. Tal prática também foi estendida aos domínios ultramarinos portugueses, nos quais o rei concedia cargos, honras e privilégios àqueles que lhe prestassem algum tipo de serviço, conferindo-lhes vantagens econômicas e prestígio social e, acima de tudo, reforçando os vínculos de lealdade dos vassalos do além-mar. Deste modo, a mobilidade social estava condicionada à prestação de serviços ao rei, o que influenciou na organização da sociedade americana, que se corporificou aos moldes da estratificação social do Antigo Regime (FRAGOSO, 2010). Maurice Godelier, em seu livro O enigma do dom, demonstrou a teoria defendida por Marcel Mauss em Essai sur le don, em que este evidenciou que nas diferentes sociedades, épocas e contextos, os indivíduos estão envoltos entre si em uma relação de reciprocidade encadeada por três obrigações: dar – receber – restituir. Ou seja, o indivíduo que dá algo gera no indivíduo que recebe a obrigação de restituir aquilo que lhe foi dado, senão a mesma coisa, algo equivalente. Dessa forma: Dar parece instituir simultaneamente uma relação dupla entre aquele que dá e aquele que recebe. Uma relação de solidariedade, pois quem dá partilha o que tem, quiçá o que é, com aquele a quem dá, e uma relação de superioridade, pois aquele que recebe o dom e o aceita fica em dívida para com aquele que deu. Através dessa dívida, ele fica obrigado e, portanto, encontra-se até certo ponto sob sua dependência, ao menos até o momento em que conseguir “restituir” o que lhe foi dado (GODELIER, 2001, p. 23). Para Godelier, o ato de dar gera, portanto, uma relação de desigualdade de status entre aquele que dá e aquele que recebe, desigualdade que em certas circunstâncias pode se transformar em hierarquia. O dom aproxima o doador daquele que recebe, pois se configura aí uma relação de partilha, todavia, os afasta socialmente, isso porque um dos envolvidos nessa partilha se transforma em devedor do outro. Dos dois elementos – partilha e a dívida – presentes na prática do ato de dar e receber, é o segundo que provavelmente ocasionará mais efeitos na vida social, no que se refere às relações de poder, acesso à riqueza, saberes ou aos ritos. Para o autor, o dom: Pode ser, ao mesmo tempo ou sucessivamente, ato de generosidade ou ato de violência, mas nesse caso, de uma violência disfarçada de gesto 50 desinteressado, pois se exerce por meio e sob a forma de uma partilha (GODELIER, 2001, p. 23). O dom emana da vontade pessoal, em qualquer tipo de sociedade, hierarquizada ou não. O dom está presente em todos os campos da vida social nos quais as relações pessoais desempenham um papel dominante. O “ato de dar, para ser realmente um dom, deve ser um ato voluntário e pessoal, senão ele se transforma imediatamente em outra coisa, em imposto, por exemplo, ou em dom forçado, em exação”. O caráter fundamental do dom deve-se, na explicação de Mauss, ao fato de que “o que obriga a dar é o fato de que dar obriga”. Ou seja, aquele que dá algo, obriga quem recebeu a restitui-lo de alguma forma. Assim, para Godelier, entendido esta parte do dom, no que se refere aos motivos que leva a dar, resta agora solucionar o seguinte “enigma do dom”: Por que é preciso restituir a própria coisa que lhe foi dada? Apoiando-se, novamente, na teoria explicativa de Mauss, marcada por uma visão moralista e religiosa, insuficiente na visão de Godelier, o ato de restituir devia-se ao fato de que “as coisas dadas teriam uma alma que as levaria a voltar para a pessoa que, primeiramente, as possuiu e deu” (GODELIER, 2001, p. 26-27). Segundo Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha, nas sociedades de Antigo Regime o dom fazia parte de um universo normativo fundamentado nos atos beneficiais, que se constituíam em um dos principais mecanismos de estruturação das relações políticas. Também apoiados na teoria de Mauss, estes autores defenderam a ideia de que o ato de dar cimentava a natureza das relações sociais e, a partir destas, das próprias relações políticas. O prestígio político de uma pessoa estava relacionado à sua capacidade de conceder benefícios a outra pessoa, ou mesmo a um grupo maior de pessoas, estabelecendo, assim, uma relação baseada na troca de favores e/ou serviços (XAVIER e HESPANHA, 1993). Estas relações sociais de poder davam-se de maneira desigual, na medida em que o benfeitor, aquele que dava, era colocado numa posição de superioridade, devido, é claro, à sua condição de credor nesta relação, enquanto que o recebedor do benefício tomava uma posição de inferioridade e dependência, na proporção em que este se encontrava na condição de devedor, ficando, por este motivo, a cargo dele a obrigação de prestar algum tipo de serviço que compensasse o benefício recebido. Estas relações de poder poderiam levar à constituição de redes clientelares, como meio de concretizar 51 não só intenções políticas individuais, por exemplo, entre o governante e os governados, como também em redes de alianças envolvendo outros grupos sociais, como as elites locais, sendo que estas redes poderiam ser ou não concorrentes entre si (XAVIER e HESPANHA, 1993). Hespanha analisou também um conceito central para se entender a relação de reciprocidade estabelecida entre o rei de Portugal e seus súditos no ultramar: a“graça”, característico da tradição jurídica europeia medieval. A graça estava relacionada à doação (liberalidade régia) e à gratidão do rei, que tinha como dever retribuir com uma recompensa àqueles que lhe prestassem algum tipo de serviço. Os atos da graça do rei criavam uma rede de pactos entre quem doava e quem recebia, bem como obrigações mútuas “quase jurídicas”. Este pacto acabava por agregar o reino português e as conquistas ultramarinas em torno de uma figura comum a todos, referência última de legitimidade e justiça, destino último da súplica dos vassalos: o soberano. Assim, uma das bases que deu sustentabilidade ao governo português no reino e no vasto império ultramarino foi a chamada “economia da graça” ou “da mercê”, que se tratava não apenas da dependência dos vassalos em relação ao rei, mas também de uma rede complexa de obrigações recíprocas que dava solidez ao corpo do império (HESPANHA, 2009). Na sociedade portuguesa dos séculos XVII e XVIII o poder não estava concentrado unicamente nas “mãos” do rei, pelo contrário, este era partilhado entre os diversos órgãos: famílias, Igreja, comunidades, grupos profissionais, dentre outros que, no limiar de suas funções, exerciam certa autonomia político-jurídica sem, contudo, se indispor com a instância última de poder, prefigurada no poder simbólico do rei. Este era entendido, metaforicamente, como a “cabeça” que unia e mantinha em harmonia os vários membros que compunham o “corpo” social. Assim: A função da cabeça (caput) não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social (partium corporis operatio propria), mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio (ius suum cuique tribuendi), garantindo a cada qual o seu estatuto (foro, direito, privilégio); numa palavra, realizando a justiça (XAVIER e HESPANHA, 1993, p. 123). 52 As principais atribuições jurídicas do rei eram as de garantir a justiça e, em segundo lugar, a paz – sendo-lhe reservado o direito de fazer a guerra, a trégua, a paz e, sobretudo, o direito de punir. Este direito real poderia garantir-lhe certa disciplina da sociedade. Todavia, tal direito se restringia ao plano ideológico, resultando não mais que uma medida de prevenção geral. Na prática, o soberano utilizava-se mais do direito de perdoar, reforçando sua imagem de rei misericordioso que, tal como a Graça e o Amor de Deus, amava e perdoava seus súditos. Além disso, cabia-lhe, também, a exclusividade de estabelecer a “lei geral para todo o reino”, bem como a “prerrogativa de criar magistrados (oficiais dotados de jurisdição) e de vigiar o cumprimento das suas atribuições (sindicância, correição)” (HESPANHA, 1994, p. 488). Havia ainda outros direitos que reforçaram os poderes do rei, como o direito exclusivo de conferir títulos, brasões e distinções e o direito de dispor do reino ou de parte dele. Segundo Hespanha: Não é que ele fosse dono do reino ou das coisas nele existentes. Mas, de acordo com a teoria medieval e moderna da divisão do domínio, ele dispunha de um poder geral e virtual de disposição, que lhe permitia, quer dizer-se senhor das coisas abandonadas, de uso comum (como os rios e as estradas) ou sem dono, existentes dentro das fronteiras do reino, quer impor sobre as coisas dos particulares certos ônus ou tributos. O direito mais importante aqui incluído era, evidentemente, o de impor tributos (HESPANHA, 1994, p. 491). Todavia, o direito de impor ou aumentar os impostos estava condicionado a uma justificativa plausível por parte do poder régio, que revelasse aos seus governados a urgência e necessidade pública de tal medida, não podendo se configurar jamais em uma forma de enriquecimento pessoal do rei. A partir do século XV, no que se referia à estratégia política de Portugal, os mecanismos jurídico-jurisdicionais perderam força. A ação política da Coroa pautou-se na criação de espaços de poder, cuja função seria a de arbitrar sobre as ações de outros indivíduos, podendo impor modelos de conduta, oferecer recompensas de ordem material (doação de terras, rendas) e/ou simbólica (títulos, honras) em troca da prestação de serviços e sujeições, bem como estabelecer critérios de distinção e hierarquização social. A partir do século XVI, com a expansão ultramarina, o rei de Portugal dispunha de novas formas de remunerar e organizar: novas terras no ultramar, novos ofícios e cargos, novas formas de atribuir títulos 53 honoríficos, enfim, bens materiais e imateriais da Coroa que seriam concedidos àqueles que se colocassem a serviço dos interesses régios (HESPANHA, 1994). Devemos salientar, no entanto, que alguns autores discordam da tese defendida por Hespanha, sobretudo os que afirmam a existência de um poder central forte e resistem à ideia de uma fragmentação do poder na América, grupo em que se encaixa a historiadora Laura de Mello e Souza. Esta critica a teoria de Hespanha, argumentando que, sobretudo, a partir do século XVIII, a monarquia portuguesa assumiu uma forte tendência centralizadora, buscando anular possíveis poderes concorrentes, aos quais Hespanha atribuiu fundamental importância. Outra alegação de Souza é a de que Hespanha desconsiderou as especificidades das diversas partes do Império, ao determinar a ineficácia do poder real à distância dos territórios ultramarinos em relação a Portugal – à medida que se afastava do centro, o poder reforçar-se-ia na esfera privada. A falha no esquema do autor seria devida ao enquadramento da América portuguesa nos mesmos moldes dos territórios do Oriente, negligenciando o fato de que a América ficava à menor distância de Portugal do que as Índias. Finalmente, a autora acusa Hespanha de partir de conceitos específicos da realidade portuguesa do século XVII para tentar explicar o processo de colonização brasileira, o que para ela é incoerente. Nesse sentido, afirma que as teorias do autor: “funcionam bem no estudo do seiscentos português, mas deixam a desejar quando aplicados ao contexto do Império setecentista em geral, e das terras brasílicas em específico” (SOUZA, 2006, p. 57). 1.4 – Os Motins do Sertão Mineiro Desde o início da colonização da América, os portugueses almejavam encontrar metais e pedras preciosas. Nesse sentido, no primeiro quartel do século XVI, foram enviadas expedições exploradoras para devassar a costa litorânea em busca dessas riquezas minerais, que, contudo, foram infrutíferas. Ainda assim, a Coroa portuguesa nunca perdeu a esperança de encontrá-las, reforçada, consideravelmente, pelo sucesso espanhol, que atestou a possibilidade de se conseguir grandes quantidades de ouro e prata nos domínios americanos. Segundo Caio Prado Júnior, ao contrário do que ocorreu com a Espanha, no domínio americano português não se encontraram os 54 cobiçados metais, e tal situação persistiria por quase dois séculos. Somente nos últimos anos do século XVII foi que se realizaram as primeiras grandes descobertas de ouro em Minas Gerais, resultado da expedição de bandeirantes8 paulistas. Para Mafalda Zemella, inicialmente os homens do Planalto de São Paulo adentravam as matas para capturar e vender índios como escravos para as lavouras de cana-de-açúcar do Nordeste. No entanto, a crise da economia açucareira provocou o declínio das bandeiras de caça ao índio. Em virtude dessa situação, o paulista viu-se obrigado a procurar outra atividade econômica, daí a intensificação das bandeiras pesquisadoras de metais e pedras preciosas. Encontrado o ouro, as notícias se espalharam atraindo um enorme contingente de pessoas para as Minas, o que levou ao estabelecimento do primeiro conflito social significativo na região: a Guerra dos Emboabas (PRADO JÚNIOR, 1979; ZEMELLA, 1990). Segundo Adriana Romeiro, esta revolta, marcada pela disputa em torno do direito de exploração das jazidas auríferas, foi reveladora de uma prática política específica dos paulistas, conferindo-lhes certa especificidade aos olhos da Coroa. Estes impunham um tom contratualista nas negociações estabelecidas com o rei, tomando-o como mero contratador de serviços. Os bandeirantes do Planalto de São Paulo tinham uma concepção bastante firme e amadurecida do direito de conquista sobre as terras do Novo Mundo, que estava relacionado mais propriamente com o direito de descobrimento das minas, sendo que, em seu discurso, ressaltavam que, à custa de seu sangue, vida e fazendas é que se deram as descobertas e conquistas das minas de ouro de Cataguases e, por essa razão, mereceriam não só a gratidão do monarca, como também a posse dos veeiros, além de honras e mercês, e acesso aos principais cargos no governo das Minas. Por sua vez, nos princípios do século XVIII, a Coroa portuguesa já tinha consciência das inúmeras dificuldades em negociar com os homens do planalto, 8 “A expressão bandeirante refere-se aos aventureiros que participaram de expedições armadas pelo interior do Brasil entre os séculos XVI e XVIII. Mas essa denominação somente foi difundida no século XVIII, pois antes eles eram mais conhecidos como “gente de São Paulo” e “paulistas”. Inicialmente, os paulistas organizavam-se em bandeiras para combater estrangeiros e indígenas, depois se dedicaram ao apresamento e cativeiro de índios e à busca de minas auríferas e pedras preciosas. Entradas e bandeiras são termos quase sinônimos. Entrada possui, por vezes, acepção mais genérica, referindo-se às expedições originadas em diversas partes do Brasil, formadas por iniciativa oficial ou particular, ao passo que o termo bandeira remete-se às expedições dos paulistas. As bandeiras eram compostas, basicamente, de escravos ou aliados indígenas, capelão e chefe branco ou mameluco. O número de participantes podia variar entre algumas poucas dezenas e centenas de indivíduos” (VAINFAS, 2001, p. 64). 55 cuja prestação de serviços e fidelidade política estavam condicionadas à obtenção de privilégios e mercês (ROMEIRO, 2005). A administração de Artur de Sá e Meneses, governador e capitão general das Capitanias da Repartição Sul, assinala a primeira tentativa bem sucedida por parte da Coroa em impor algum tipo de controle social nas Minas. Este, a fim de promover a descoberta das minas de metais preciosos, firmou um acordo entre a Coroa e os descobridores (paulistas), que, caso descobrissem o tão sonhado ouro, receberiam em troca mercês e recompensas. Para a autora, a estratégia utilizada por Sá e Meneses neste acordo não pode ser reduzida à mera concessão de mercês e privilégios, mas sim e, acima de tudo, na sua intenção de estreitar os laços de lealdade entre os vassalos da Capitania de São Vicente e o rei de Portugal. Em que: Desde logo, Sá e Meneses percebeu que os descobrimentos dependiam deles, tidos como os mais experientes sertanistas e descobridores de metais preciosos. Habilidoso, soube estabelecer um vínculo entre os vassalos das vilas de São Paulo e Serra Acima e a Coroa, aproximando-os e estreitando estes laços. Assim, por sugestão sua, o rei escreveu cartas aos mais leais vassalos individualmente, prometendo-lhes uma mercê futura. Nesse sentido, a principal façanha de Sá e Meneses – aquela que lhe garantiu a cooperação dos paulistas e o desvendamento da região mineradora – deu-se no campo simbólico das relações entre o rei e seus vassalos: subvertendo a legenda negra então dominante, o governador transformou-os de vassalos rebeldes e insubmissos em honrados vassalos, animados pela boa lealdade (ROMEIRO, 2008, p. 54-55). Além disso, neste acordo proposto por Sá e Meneses, foi dada aos homens de São Paulo, em troca da descoberta dos veeiros de ouro, a garantia de ocuparem os mais altos cargos da administração colonial. Segundo critérios estabelecidos pelo próprio governador, os cargos de guarda-mor (principal cargo), procurador da fazenda real, tesoureiro e provedor deveriam ser ocupados pelos poderosos paulistas. O “acordo negociado entre Sá e Meneses e os paulistas resumia-se a uma fórmula bastante simples: o ouro em troca da supremacia política nas Minas” (ROMEIRO, 2008, p. 58). Desta forma, neste acordo, o governador se comprometia a dar mercês, honras, privilégios e cargos da administração local aos poderosos de São Paulo e, em troca, solicitava a prestação de serviços (busca das minas de metais preciosos), bem como a lealdade ao rei de Portugal. Todavia, para a autora, as relações entre os paulistas e o suserano, no Planalto de São Paulo, assumiram características peculiares, se comparadas com as dos 56 povos de outras regiões da América. Eles aliavam-se ao rei somente quando seus serviços eram devidamente bem recompensados, sendo a fidelidade condicionada ao atendimento de suas reivindicações. Tal relação era entendida pelos paulistas, segundo Romeiro, como uma relação entre iguais, mediada por uma noção de contrato, em que estes negociavam, antecipadamente, os serviços e as formas de recompensa, sem, contudo, se sentirem obrigados a prestarem obediência a Sua Majestade. Desta forma: O teor contratualista das suas relações com a Coroa implicava que a gente de São Paulo não estava obrigada a prestar a vassalagem a que estavam obrigados todos os habitantes do Reino e do Império português, da qual faziam parte os feitos e serviços prestados ao rei, considerados expressão de fidelidade. A vassalagem de cunho contratual significava antes que os paulistas somente se punham a serviço do rei quando devidamente recompensados, e que, longe de se animarem por amor à Coroa, interessavam-lhes tão-somente o que pudessem auferir no âmbito de um acordo que visava objetivos bem definidos (ROMEIRO, 2008, p. 240). No intuito de garantir o domínio político dos paulistas, Artur de Sá e Meneses criou o Regimento de 1700, em que estabeleceu que o principal cargo caberia ao guarda-mor, cuja função primeira era o de apaziguar todo tipo de conflito relativos aos trabalhos de mineração. Nesse sentido, nomeou para o cargo Garcia Rodrigues Pais, a quem o rei recomendara dar alguma função na administração das Minas, em virtude de serviços prestados à Coroa. Todavia, em abril de 1702, foi promulgado o novo regimento, promovendo alterações na estrutura administrativa, sendo que a principal delas foi a criação do cargo de superintendente das minas, transferindo-lhe todas as atribuições político-administrativas antes exercidas pelo guarda-mor. Esta nova organização administrativa objetivava introduzir a justiça e limitar o poder político dos potentados de São Paulo. O desembargador José Vaz Pinto foi designado para o cargo de superintendente, encarregado de levar o novo regimento aos mineradores. Cabia a ele examinar os ribeiros descobertos, proceder à repartição das datas, suprimir conflitos, supervisionar a exploração do ouro e cobrar os quintos reais. Sua ida para as Minas foi marcada pela tensão e hostilidade com os poderosos do lugar, que não aceitavam a sua interferência na política local. Após entrar em desavença com o paulista Valentim Pedroso, que ameaçou tirar-lhe a vida caso promovesse a investigação de uma morte, e odiado pelos pobres e poderosos do lugar, José Vaz Pinto decidiu abandonar a região, retornando ao Rio de Janeiro. Sua fuga é representativa da imensa dificuldade 57 encontrada pelos representantes da Coroa em impor sua autoridade sobre os homens do Planalto, bem como em instalar um governo político nos sertões mineiros. Com a saída de Vaz Pinto, a superintendência das minas voltou novamente para as mãos dos potentados paulistas (ROMEIRO, 2008). Em fins do ano de 1707, novamente a região das Minas foi palco de conflitos sociais envolvendo os poderosos paulistas. Tal conflito estava relacionado à arrematação do contrato dos açougues por Francisco do Amaral Gurgel e seus sócios, contando ainda com a participação e o apoio do governador do Rio de Janeiro, D. Fernando de Lencastre. Gurgel era quem detinha o rico contrato das carnes, que lhe dava o monopólio de toda a carne que fosse cortada na região mineradora, visto como um dos negócios mais vantajosos da época, superando até mesmo o rendimento das lavras auríferas. Vencido o contrato em 1706, ele foi novamente levado a leilão, sendo o próprio Amaral Gurgel um dos principais interessados na sua compra. O governador, também interessado em beneficiar-se com este negócio, procurou colocar Gurgel nas boas graças do rei, aludindo para o fato de ele ser um dos principais do Rio de Janeiro e um vassalo zeloso aos interesses de Sua Majestade. Em vez de arrematar sozinho o contrato, Gurgel preferiu unir-se a frei Francisco de Meneses, além dos freis Firmo e Conrado e de Pascoal da Silva Guimarães. A fim de que esta sociedade não despertasse suspeita, chamaram ainda o português Salvador Vianna da Rocha, cuja participação visava encobrir a aliança entre religiosos e fazendeiros em torno do contrato. Assim, em carta de junho de 1708, Lencastre informava ao rei que o contrato dos açougues fora arrematado por Salvador Vianna da Rocha (ROMEIRO, 2008). A arrematação do contrato de carnes por esta sociedade causou indignação nos moradores das Minas, o que desencadeou uma rebelião liderada pelos paulistas Domingos da Silva Monteiro e Bartolomeu Bueno Feio. Estes alegavam que tal contrato trazia muitos prejuízos à população local e que a ação de atravessadores, açambarcadores e monopolistas resultava em preços extorsivos, colocando em risco a garantia do abastecimento da região e o “bem comum do povo”. Soma-se a isso o interesse dos paulistas em participar do lucrativo negócio do gado, em que alegavam também prioridade sobre as arrematações relativas às Minas. Para eles, a arrematação do contrato de carnes, feita no Rio de Janeiro, colocava em xeque sua influência política na região mineradora. Assim, indispostos com essa situação, nomearam como 58 procuradores D. Francisco Mateus Rendon e Júlio César Moreira, incumbindo-os de levar as reclamações ao governador do Rio de Janeiro. Caso não fossem atendidos em sua solicitação, deveriam partir diretamente para Lisboa, para expor ao rei a opressão sofrida pelos povos dos sertões mineiros. Assustado diante da gravidade da situação, e temendo que o caso chegasse ao conhecimento do rei, o governador acatou a solicitação dos paulistas, suspendendo o contrato das carnes. Apesar da rapidez da ação do governador, a notícia do levante paulista chegou até o rei que, mostrando-se sensível à causa dos moradores de São Paulo, ordenou a anulação do contrato. Nessa contenda, os paulistas saíram vitoriosos. Para Romeiro, o Levante Paulista de 1707 revela uma estrutura muito similar à dos motins de fome ou de subsistência ocorridos na Inglaterra;9 foi marcado pela fúria das populações com o aumento do preço da carne, exigindo das autoridades, fosse o governador ou o rei, medidas que visassem a garantir o preço justo e o bem comum, assim como a punição aos transgressores que monopolizavam e elevavam o preço desse gênero alimentício. Nesse sentido, para Romeiro: É precisamente esta economia moral que estava na origem do caráter intervencionista da Câmara na economia da Vila de São Paulo, frequentemente sobressaltada pela fúria da multidão amotinada, a exigir dos oficiais medidas enérgicas para restabelecer o abastecimento, fixar preços e punir os infratores, sobretudo os monopolistas e açambarcadores. (...) No plano do discurso, a Câmara legitimava a sua política intervencionista apelando para noções como “bem comum” e “serviço régio”, agindo em conformidade com as formulações derivadas da teoria corporativa do poder, fortemente arraigada na Península Ibérica, e que postulava a ideia de que 9 No livro, A multidão na história, George Rudé aborda a questão dos “motins da fome” na Inglaterra, no século XVIII, demonstrando características que iam além dos aspectos econômicos; eram, também, apelos sociais e políticos, motivadores dessa agitação popular, que atuava na resistência e defesa dos direitos tradicionais baseados nos costumes do “preço justo” dos alimentos de primeira necessidade e de melhores condições de vida (RUDÉ, 1991). Outra obra historiográfica significativa para se entender os “motins da fome” ocorridos na Inglaterra, no século XVIII, é o livro Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional, do autor Eduard P. Thompson. Segundo este, a historiografia britânica tradicional retratou este movimento popular da história inglesa como ações espasmódicas, compulsivas e inconscientes, não passando de reações aos estímulos econômicos. Thompson opõe-se com vigor a essa historiografia tradicional e ao reducionismo econômico, que subestima ou nega a ação e a escolha humanas como produtos de uma compreensão consciente da sua realidade social estruturalmente condicionante. Contra essa visão espasmódica, o autor defende que é possível detectar em quase toda a ação popular do século XVIII uma noção legitimadora, em que os movimentos sociais, ocorridos nesta época, atuavam em defesa dos “direitos ou costumes tradicionais”, e que tinham grande apoio da comunidade. Estes movimentos reativos operavam dentro de um consenso popular de que eram práticas legítimas na defesa dos costumes contra uma prática de mercado inovadora que tendia a regular “os preços” pela oferta e procura dos produtos alimentícios. O desrespeito a estes direitos morais e costumeiros da plebe inglesa era o motivo habitual para momentos de perturbação social (THOMPSON, 1998). 59 cabia ao rei e seus representantes a garantia da justiça e do bem comum em troca da quietação e do sossego dos povos (ROMEIRO, 2008, p. 150). Sendo assim, o Levante de 1707 foi um movimento de defesa dos interesses dos homens do Planalto contra a arrematação do contrato de carnes, feita no Rio de Janeiro. Tal movimento acirrou a antipatia entre os paulistas e os emboabas, fato que ensejou mais tarde pequenos incidentes entre os dois grupos, levando a eclosão do Levante Emboaba no ano de 1708. Uma discórdia ocorrida em Caeté acentuou ainda mais o ódio entre os homens de São Paulo e os naturais de Portugal. Para Adriana Romeiro, não foi no âmbito da luta armada que se deu a vitória dos emboabas sobre os paulistas, mas sim no âmbito ideológico. A vitória emboaba resultou da capacidade e habilidade dos mesmos em articular suas demandas políticas e encaminhá-las adequadamente à Coroa, apresentando-as nos termos de uma legítima defesa dos interesses portugueses na América, ameaçados pelos ânimos revoltosos dos paulistas. Assim, no discurso emboaba, o levantamento se deu em virtude da preocupação em restaurar a liberdade e o poder régio numa região dominada politicamente pelos poderosos paulistas que, tidos como tirânicos e infensos a qualquer tipo de ordem, sobrepunham o poder privado ao poder da Coroa. “Tirania versus liberdade: eis o cerne do discurso emboaba. E o modelo de restauração a que estavam se referindo era indubitavelmente a Restauração portuguesa” (ROMEIRO, 2008, p. 267). Como foi dito, por todo o Império português estas teorias políticas ecoaram, desencadeando motins contra maus representantes do rei que atentavam contra o bem comum dos povos. No discurso emboaba, a Restauração se deu com a aclamação popular de Manuel Nunes Viana para o governo das Minas a fim de pacificar a região e garantir o sossego público, bem como a liberdade dos povos contra a tirania dos paulistas. Na busca de eximir-se de uma possível culpa no crime de lesa-majestade, a de ter usurpado o poder na região, Viana deu a entender que foi forçado a aceitar o cargo, e só o fez por temer por sua vida. Além disso, ele soube explorar o imaginário negativo em torno dos homens de São Paulo no sentido de legitimar a ação política emboaba em termos de uma pretensa causa a favor da defesa do poder e da soberania portuguesa na América, colocando-se, desse modo, como súditos leais de El-Rei. Sendo assim, para Romeiro, os emboabas, sob a liderança de Manuel Nunes Viana, selaram a própria vitória ao 60 manipular a legenda negra em torno dos paulistas, acusando-os de falta de fidelidade política ao rei de Portugal (ROMEIRO, 2008). Carla Maria Junho Anastasia, em seu livro Vassalos rebeldes, abordou os vários motins ocorridos na Capitania de Minas ao longo do século XVIII. Em seu trabalho, a autora verificou que esses movimentos reativos também se inscreveram em uma luta marcada pela tradição de defesa dos “direitos baseados nos costumes”, principalmente no que concernia o descontentamento dos povos das Minas com as alterações tributárias sobre a produção mineradora por parte da Coroa portuguesa. Além disso, ela evidenciou outro aspecto característico desses motins: a disputa política na região entre os poderosos locais e as autoridades representantes do poder central. Para Anastasia, a manutenção da acomodação entre os povos das Minas e as autoridades régias dependeu da capacidade destas e da Coroa de respeitar os costumes/privilégios que os primeiros acreditavam possuir. Estes exigiam procedimentos justos e moderados por parte da monarquia, pondo limites ao exercício do poder real. Se esses limites estabelecidos pelos costumes fossem desrespeitados, rompiam-se as formas acomodativas, tendo como principal consequência o surgimento de motins que, marcados pela tradição de defesa da manutenção das regras estabelecidas, visavam a restaurar o equilíbrio tradicional dos atores sociais no cenário colonial (ANASTASIA, 1998). É nesse contexto que se inseriu a sublevação que ocorreu em Vila Rica, no ano de 1720. Esta sublevação estava relacionada ao maior controle político e fiscal, o que levou ao rompimento da acomodação entre os atores sociais, tendo em vista o constrangimento dos interesses dos povos e dos poderosos locais pela Coroa portuguesa. Tal motim será analisado mais detidamente nos próximos capítulos deste trabalho. A Sedição de 1736 foi mais um exemplo das dificuldades encontradas pela monarquia portuguesa em estabelecer normas na Capitania das Minas do Ouro. Esta revolta se deveu à insatisfação da gente miúda e dos potentados com a cobrança do imposto de capitação no Sertão do São Francisco. A principal atividade econômica do noroeste de Minas era a comercialização de gêneros alimentícios e gados para as regiões mineradoras, bem como para a Bahia, Goiás e Mato Grosso. Os altos lucros provenientes desse negócio e a grande autonomia administrativa da região que, se comparada à área mineradora, sofria bem menos com os impostos reais, permitiram a 61 emergência de homens poderosos, desejosos do mando local e avessos às mudanças políticas e fiscais. Na primeira metade do século XVIII, o volume do ouro arrecadado em Minas Gerais estava abaixo das expectativas do rei D. João V. Em consultas feitas aos exgovernadores da capitania, D. Pedro de Almeida, e D. Lourenço de Almeida, estes indicaram a possibilidade de se adotar o imposto da capitação. Em 1733, atendendo às recomendações, foi enviado para as minas Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, com a Instrução de implantar o novo sistema de tributação do ouro. Cientes dessas intenções, as câmaras apresentaram uma contraproposta ao governador André de Melo e Castro, conde de Galvêas, de aumentar a contribuição dos quintos para um mínimo de 100 arrobas anuais, mantendo as Casas de Fundição. Aceita a contraproposta, esta vigorou apenas por um ano, pois a partir de 1735 efetivou-se o sistema de capitação. Neste novo sistema, “homens livres, oficiais de qualquer ofício e escravos ficavam obrigados ao pagamento de 4 ¾ oitavas de ouro per capita; as vendas eram taxadas proporcionalmente aos seus cabedais” (ANASTASIA, 1998, p. 69). Este novo tipo de imposto desagradou os moradores do noroeste de Minas Gerais, principalmente os de menor condição social, por considerarem o imposto lesivo aos seus rendimentos. A enorme resistência ao tributo deveu-se ao fato de os sertanejos não se considerarem mineradores, não sendo justa a obrigação de pagarem o direito do quinto, já que pagavam outros tributos que incidiam sobre o comércio de gado (FIGUEIREDO, 2007). Aos dezenove de fevereiro de 1736, o comissário André Moreira de Carvalho foi designado para a cobrança da taxa no sertão do São Francisco. Os sertanistas não aceitaram sua presença. Resistiram tanto os potentados, em ver reduzida sua autonomia política na região, quanto os populares, em pagar a nova taxa, o que levou à eclosão de vários motins contra as autoridades representantes da Coroa. O governador interino, Martinho de Mendonça, enfrentou graves dificuldades não só para obter informações precisas sobre os motins do São Francisco como para controlá-los. Para o comissário André Moreira, os motins eram resultado da indisposição do povo miúdo com o estabelecimento do novo imposto. Já para o desembargador Cunha Lobo os motins eclodiram em função da arrogância e da autonomia dos potentados, que se negavam a reconhecer a autoridade da Coroa. Nesses motins, a figura do rei foi preservada, sendo a fúria da população direcionada aos oficiais régios, considerados culpados pelas 62 injustiças cometidas contra os privilégios e costumes locais. Todavia, em outros enfrentamentos, marcados pela forte disputa política entre o poder privado e real, nem mesmo o rei escapou da ira dos amotinados (ANASTASIA, 1998). Nesse sentido: Em pasquins que circulavam nos sertões da Capitania de Minas Gerais, durante os furores sertanejos de 1736, parodiando a oração do pai-nosso em grossa crítica à cobrança do quinto do ouro, desafiava-se o rei às escâncaras. Pediam que para lá viesse o soberano a fim de ver as aflições dos súditos e advertiam para suas obrigações de rei-provedor que queirais fazer-se celeiro/ do suor de tais vassalos e, ainda, insinuavam franca desobediência: E sabeis que com a vontade estreita/ os pobres vos obedece [sic]/ porque vossa crueldade merece/ Não se faça a vossa vontade (FIGUEIREDO, 2007, p. 265). Na opinião de Martinho de Mendonça, não eram verdadeiras as informações passadas por Cunha Lobo de que os poderosos comandavam os povos nos tumultos de 1736. Para o governador, os graves tumultos no noroeste de Minas Gerais eram provocados pela gente miúda. Ele punha em dúvida, inclusive, a força desses levantamentos. Além disso, recusava-se a negociar com os rebeldes, por considerar que o acesso à justiça era garantido somente aos vassalos leais. Arrefecidos os ânimos e controlados os motins do Sertão, foram presas mais de sessenta pessoas, sequestraramse bens, registraram escravos e, finalmente, cobraram os impostos de capitação. O governador mandou ainda para Vila Rica alguns poucos presos acusados de atos sediciosos e violentos, como mortes, incêndios e estupros. Este, após os perigos que enfrentou com o motim de 1736, tomou conhecimento da imensa dificuldade em conter a insubmissão dos povos do Sertão, que na defesa de costumes e privilégios locais, não hesitavam em se levantar contra as autoridades representantes do poder régio (ANASTASIA, 1998). Logo, a formação e organização social e política das sociedades da América portuguesa foram também constituídas mediante os laços de reciprocidade e/ou pactos estabelecidos entre o rei e os súditos no ultramar que, através da prestação de serviços em favor do soberano, conseguiam em troca privilégios de vários tipos, que lhes davam além do prestígio social, vantagens financeiras. É importante ressaltar, nessa relação, que o rei era o centro de decisão e o responsável por atribuir direitos e privilégios a indivíduos e grupos. Exercia o monopólio da estruturação social e institucional, através 63 da atribuição de benefícios materiais, cargos políticos, honras e distinções, hierarquizando e regulando o espaço social nos trópicos. Nota-se, também, a influência das formulações políticas que deram legitimidade ao movimento restaurador de 1640, inspirando a ascensão de vários motins nas partes mais distantes do império português, cuja tônica residia em proteger o “bom governo”, o “bem comum” e a “autonomia política” das elites dominantes. O Motim de 1720 foi bastante representativo dessas concepções, pois aglutinou os interesses das camadas dominantes e de populares em torno de uma causa similar: a proteção dos direitos costumeiros, a manutenção do status quo, isto é, a defesa das regras do “jogo colonial” anteriormente estabelecido, questionado em face da investida centralizadora de Portugal, como se verá adiante. 64 2º CAPÍTULO O LEVANTE DE VILA RICA: POLÍTICA INDESEJADA E FIDELIDADE COLOCADA À PROVA 2.1 – O Barulho do Minerar, Vila Rica de Ouro Preto: uma cidade sem descanso Durante a primeira década do século XVIII ocorreram vários motins na região das Minas que desafiaram a autoridade dos representantes régios. A queixa geral girava em torno da garantia de privilégios políticos locais e da insatisfação com o aumento da fiscalização sobre a produção mineradora. Esse contexto de instabilidades levou a Coroa a introduzir, pouco a pouco, um maior controle administrativo no interior dos sertões,10 visando a conservar sua soberania nesta rica conquista. Foi a partir da Guerra dos Emboabas que se deu o início da implantação de um governo central mais efetivo na zona mineradora e, para melhor administrá-la, criou-se a “Capitania de São Paulo e minas do ouro”, separada da do Rio de Janeiro. A fundação de vilas foi outro mecanismo adotado pela monarquia portuguesa no sentido de impor sua autoridade e a ordem pública. Dos muitos arraiais (pequena povoação) surgidos em Minas Gerais, dois tornaram-se as primeiras vilas – que já apresentavam uma população considerável e certa organização do aparato administrativo da Coroa –, em 1711: Vila de Nossa Senhora do Carmo (atual Mariana) e Vila Rica (atual Ouro Preto). A obtenção do título de vila dependia, na maioria das vezes, do grau de enobrecimento da população local, sendo que as “funções exercidas por alguns habitantes e os privilégios de que gozavam podiam constituir um fator de enobrecimento para uma cidade, uma vila ou mesmo um arraial, tornando tais lugares mais dignos das graças régias” (FONSECA, 2011, p. 335). 10 “O termo sertão está associado à ideia de um lugar deserto, pouco conhecido e povoado, sendo que a sua conversão em território se faz na medida em que se avança e se intensifica o processo de povoamento neste local” (FONSECA, 2011, p. 51-55). “Termo consagrado pela obra de Euclides da Cunha, Os sertões, publicado em 1902. Depois de participar da quarta expedição militar que deu fim ao arraial de Canudos, interior da Bahia, em 1897, Euclides escreveu a mais pungente narrativa sobre o território do sertanejo nordestino: árido, inóspito, indômito, atrasado, imune à passagem do tempo e aos progressos da civilização. Diferenciou o sertanejo do paulista, sinônimo de bandeirante, tipo aventuroso, com a feição perfeita de um dominador da terra. Mas essa distinção do início do século XX não pode ser aplicada ao sertão do Brasil colonial, sinônimo de lugares não povoados, não necessariamente áridos, ao contrário, às vezes extremamente úmidos, como as capitanias de São Vicente e São Paulo, berço dos bandeirantes que desbravaram o interior da colônia de norte a sul” (VAINFAS, 2001, p. 528). 65 Para Charles Boxer, Vila Rica era talvez o núcleo urbano mais importante da América, sobretudo pelo descobrimento de ouro na região. Foi transformada em vila em 08 de junho pelo Governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, batizando-a com seu próprio sobrenome: Vila Rica d’Albuquerque. Todavia, a Coroa portuguesa considerou tal atitude um ato de lesa-majestade, restabelecendo o nome primitivo do lugar: Vila Rica de Ouro Preto. A descoberta do ouro deu-se, também, em outros lugares, como no interior da Bahia e nas Capitanias de Goiás e Mato Grosso. Mas, foi em Minas Gerais que tal descoberta proporcionou a alguns moradores da região, mais particularmente em Vila Rica, uma vida de opulência e riqueza. Para Laura de Mello e Souza, no entanto, a despeito da abundância do ouro, a sociedade mineira era marcada pelas desigualdades sociais e pelas dificuldades de enriquecimento da maior parte da população. Portanto, para a autora, a vida nas Minas era difícil; miséria, violência e conflitos sociais representavam o outro lado da moeda11 (BOXER, 1969; SOUZA, 2004). Para Virgílio Noya Pinto, a despeito das expedições dos paulistas terem dado início ao povoamento das Gerais, somente a partir das grandes descobertas do ouro e de sua notícia foi que este se deu em larga escala, com o intenso deslocamento de pessoas vindas de outras partes da América, do reino e de outras nações. Nessa época, o desenvolvimento econômico desta região contrastava com a decadência e a estagnação da atividade canavieira da Bahia. Assim: A paisagem brasileira convulsionou-se em poucos anos. À vida agrícola e pastoril, embalada pelo moer da cana e pelo ranger do carro de boi, sucedeu a vida da labuta mineira com o desafio das águas e dos morros; vida trepidante de aventureiros em que a cobiça estimulava os apetites. Toda uma avalanche de homens, cujo único acervo era a coragem e a audácia, transformou a paisagem solitária e tranquila das Gerais num pulular de vilas e povoados, surgindo no Brasil Central um tipo de cultura com características sociais diversas daquela criada pelo senhor de engenho (PINTO, 1979, p. 53). 11 Segundo Maria Verônica Campos, “a América não era o local onde mais se lucrava com a mineração, e o fluxo do ouro era controlado de longe pelos comerciantes lisboetas e europeus, especialmente ingleses e holandeses. Minas Gerais desempenhou importante papel na produção mundial de ouro no século XVIII, mas boa parte transferiu-se de praça em praça, até chegar aos locais de acumulação por excelência naquele momento, a Inglaterra e a Holanda. Uma parcela do ouro foi retida ao longo do caminho, no Rio de Janeiro, Salvador, Pernambuco, Buenos Aires, Angola, Costa da Mina, Lisboa e Porto. Uma pequena porção ficou em Minas, sob a forma de joias, ornamentação de igrejas e meio circulante” (CAMPOS, 2002, 13-14). 66 O autor ressalta que a Coroa portuguesa passou a se preocupar muito mais com a fortificação e defesa da América, já que a cobiça do ouro atingia igualmente outras nações europeias, temor confirmado pelas invasões no Rio de Janeiro. Laura de Mello e Souza evidencia que mal havia se dado a descoberta do ouro, Portugal já se preocupava em regular a zona mineradora através da urbanização e da implantação do aparelho administrativo e fiscalizador na região, a fim de garantir que a riqueza proveniente do território mineiro fosse drenada para a corte de D. João V. Ela ressalta, ainda, que antes mesmo de se iniciar o processo urbanizador e administrativo, os poderosos,12 na sua maior parte paulistas – vistos pelas autoridades reais como pessoas truculentas e avessas a todo tipo de ordem –, foram frequentemente utilizados pela Coroa para procurarem riquezas minerais no interior dos sertões e, em troca desta prestação de serviço, recebiam títulos e privilégios como recompensas, chegando até mesmo a ocupar cargos no governo local.13 Todavia, a partir do momento em que a política e a fiscalização sobre a região mineradora tornaram-se mais rigorosas, a relação entre os poderosos locais e os representantes régios ficava cada vez mais tensa, e isso gerou uma série de conflitos ao longo do século XVIII (SOUZA, 2004). Segundo a autora, a presença dos poderosos locais só foi tolerada enquanto seus serviços particulares eram úteis à Coroa portuguesa. Mas, quando passaram a questionála, quando da aplicação de maior controle político e fiscal na região, esses passaram a 12 Segundo Romeiro, para ser reconhecido como “Poderoso” (homem rico) no sertão das Minas, era necessário ser proprietário de uma extensa mão-de-obra escrava. Todavia, para a autora, “a mera riqueza não bastava para conferir o status de poderoso, sendo também necessário que o indivíduo constituísse um pólo de poder privado, tido e reconhecido pelos contemporâneos. O que a documentação da época permite entrever é que aqueles que se enriqueciam com os negócios da mineração ou do comércio podiam frequentemente alcançar uma posição social mais elevada aos olhos da população, conquistando o que Anastasia e Nonata da Silva chamam de território de mando. Nesses territórios de mando, parentes, afilhados, vizinhos e agregados se articulavam em vastas cadeias clientelares, que se distribuíam por povoados e arraiais, unindo homens pobres aos poderosos locais em relações de dependência e obrigação. A feição particular do povoamento da região, que caldeou para os sertões mineiros um alto contingente demográfico em ritmo vertiginoso, a par das exigências da mineração, que implicava tanto o aprendizado de técnicas quanto o apoio material dos mais afortunados, conformaram o complexo universo das relações sociais e políticas nas Minas, no qual o clientelismo desempenhava o papel estruturador por excelência. Aos mais pobres, colocar-se à sombra de um grande potentado local equivalia a uma estratégia de sobrevivência vital, a única capaz de assegurar-lhe o amparo necessário numa região dividida em territórios de mando” (ROMEIRO, 2008, p. 87). 13 Segundo Francisco Eduardo de Andrade, “o reconhecimento do feito de descobrimento, traduzido na concessão de privilégios, era tão indispensável aos sertanistas que, em 1718, o rei observou que havia um certo desalento nas ações descobridoras, desde que os descobridores estavam impedidos pelo Regimento de 1702 a repartir eles mesmos as datas minerais”. Ou seja, a descoberta de veeiros de ouro no interior dos sertões dependeu da capacidade da coroa portuguesa de negociar acordos ou prêmios que estimulassem os vassalos da América a prestarem tal serviço (ANDRADE, 2008, p. 42). 67 ser cassados e punidos, em face do fortalecimento do poder real e do controle social nas zonas auríferas. Uma estratégia adotada, no sentido de se estabelecer a autoridade real nas zonas mineradoras, foi o incentivo dado à urbanização, com a criação de várias vilas, embora anos mais tarde o governador D. Pedro de Almeida Portugal,14 o conde de Assumar, viesse a discordar disso. A urbanização das Minas tinha por função primária reduzir os moradores à obediência, de forma que os trabalhos auríferos fossem feitos com sucesso, possibilitando à Coroa retirar maiores lucros com esta atividade, e não foi outra a preocupação dos governadores, que para lá se conduziram a fim de garantir o sossego público e defender os interesses do rei de Portugal (SOUZA, 2004). Segundo Renato da Silva Dias, na tese Para a glória de Deus, e do Rei? Política, religião e escravidão nas Minas do Ouro (1693-1745), a elevação de vários povoados à categoria de vila não foi uma medida suficiente para a garantia do ordenamento social nas Minas, embora reconheça que a ereção de vilas contribuiu imensamente para a organização do sistema administrativo. Para o autor, as barreiras naturais, como as “densas matas”, as “montanhas” e os diversos “rios que cortavam as Minas” foram fatores que dificultaram a imposição da ordem pública e o controle sobre os habitantes da região, que não menos tentados pelo ouro, impunham uma série de dificuldades ao cumprimento das leis fiscais da Coroa, contrabandeando o ouro em pó, desviando-o ou até mesmo deixando de pagar os impostos, ainda que sob o risco de serem presos ou degredados.15 Os oficiais régios que, não raro, viviam em constantes tensões com os poderosos da região – insatisfeitos com recrudescimento da tributação e com a interferência na política local –, tinham consciência das dificuldades em impor uma autoridade mais efetiva nas Minas, muito em decorrência da imensidão do 14 “Natural de Lisboa; nasceu em 1688 e faleceu, em Cascais, no ano de 1756. Dos 16 aos 25 anos, acompanhou seu pai, dom João de Almeida, nas guerras contra Castela (Guerra de Sucessão de Espanha), quando se distinguiu em diversas batalhas, dentre as quais, comandou a retirada das tropas portuguesas da Catalunha. Casou-se com dona Maria José Nazaré de Lencastre em 1715, com quem teve 11 filhos, dos quais 3 morreram pequenos. (...) Em 1717, foi nomeado governador da capitania de Minas Gerais e São Paulo; durante o seu governo, fundou a vila de São José del-Rei; enfrentou sedições dos habitantes da capitania, em virtude do estabelecimento das Casas de Fundição (Filipe dos Santos/ 1720) e dos contratos das passagens dos rios de São Francisco e das Velhas; em 1722, retornou a Portugal” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 55) 15 Degredo “era uma pena, um castigo previsto para vários delitos da justiça secular, eclesiástica e inquisitorial. Degredar deriva de degradar, isto é, diminuir de grau, rebaixar. E, na prática, era pena equivalente ao desterro ou a trabalhos forçados para el-Rei, sobretudo nas galés. Foi o degredo no sentido do desterro para o Brasil o instrumento utilizado pela Coroa, não só para punir diversos condenados como também para povoar o território” (VAINFAS, 2001, p. 180). 68 território e da falta de um corpo administrativo e militar suficiente para aplicar a justiça e controlar os vassalos. Esta fragilidade institucional “tornava necessária a tomada de medidas drásticas, como o castigo exemplar” (DIAS, 2004, p, 47). Foi essa a tática adotada por Assumar para diminuir o poder dos potentados locais, fortalecer a presença da Coroa na capitania e aumentar a arrecadação fiscal sobre as atividades relacionadas à mineração. Em seu discurso de posse, 16 ele enalteceu o fato de que sua vinda para a América fora algo imprevisto e indesejado, já que afirmou constantemente que o fizera unicamente em obediência estrita às ordens do rei de Portugal, deixando, a contragosto, amigos e parentes na corte. Assumar afirmou, ainda, que o fato de ele ter vindo para a América, por si só, deveria ser tomado como exemplo de extrema obediência, a ser seguido pelos vassalos destas terras, e que estes não deveriam condicionar tal “resignada” obediência a algum tipo de compensação, já que aquela era devida ao rei por imposição divina, por ser ele um “vice-Deus na Terra”. Assim: Quanto mais um vassalo em servir ao seu rei se tem empenhado nas coisas que lhe alcançarão maior estimação e maior nome, tanto mais estimável mais honrada e mais airosa é depois a sua obediência resignada, não porque depois de memoráveis serviços se solte a obrigação, que Deus impôs ao vassalo de obedecer ao soberano, como a vice-Deus na Terra, mas porque parece uma espécie de gratificação do príncipe não obrigar com tão forte obediência aos que por ele generosamente, e tantas vezes sacrificaram a sua vida; e por isso mesmo quanto mais respeitoso, quanto mais submisso é o vassalo, tanto mais cumpre com os divinos e humanos preceitos (DISCURSO, 1999, p. 37). Este discurso elogioso à obediência realizado pelo conde era revelador da orientação política que nortearia suas ações na administração mineira. Aparentemente, porém, havia intencionalidade, já que é sabido que o posto de governador era cobiçado pelos nobres da corte, pois rendia grande prestígio na sociedade portuguesa, além da possibilidade de auferir rendas, ainda que de forma ilícita.17 16 DISCURSO de Posse de D. Pedro de Almeida, conde de Assumar, como governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, em 1717. Documento transcrito por Laura de Mello e Souza. (SOUZA, 1999). 17 “De D. Pedro de Almeida, dizia-se que regressou à Corte com mais de 100.000 moedas de ouro. Sua grande fortuna levantou suspeitas e esteve afastado da Corte enquanto suas contas eram investigadas, embora corresse à boca pequena que seu afastamento se dera não só pela devassa instaurada sobre sua administração, mas também por inveja do Marquês de Abrantes” (PEREIRA, 2009, p.129). 69 No livro O Império Marítimo Português, o autor Charles Boxer demonstra que os representantes do rei de Portugal, nas diversas possessões coloniais, envolviam-se no comércio, adquirindo rendas de maneira irregular, como forma de compensar os baixos salários. A maior parte dessa fortuna era empregada na compra de casas e terras e na formação de morgados18 em Portugal, para onde retornavam depois de encerrada a carreira pública. Para Boxer, a Coroa portuguesa tinha consciência das práticas ilícitas19 cometidas por seus funcionários no exercício do cargo público, todavia, parecia tolerálos, em certa medida, por considerar difícil e perigosa a vida nas distantes possessões coloniais. Laura de Mello e Souza também buscou evidenciar as dificuldades em se controlar os funcionários régios nas Minas que, distantes do centro de poder, cometiam toda sorte de infrações na região, em desacordo, inclusive, com as leis e ordens reais. O conde de Assumar também “oscilava no pêndulo da fortuna como qualquer outro governante, juntando ao exercício do poder e do dever a causa financeira dele e do rei” (BOXER, 2002; SOUZA, 2004; PEREIRA, 2009, p. 135). Os primeiros governadores de Minas Gerais queixavam-se constantemente ao rei da qualidade dos homens que emigravam para a região das Minas, acusando-os de truculentos, perigosos e provocadores de motins. O governador Dom Lourenço de Almeida,20 por exemplo, explicava à Coroa, em 1722, que a maior parte dos emigrantes era constituída de homens solteiros recém-chegados de Portugal. Na concepção do governador, estes não tinham nada a perder por disporem de pouco cabedal e por não terem mulher e nem filhos, o que de certo modo, favorecia para que desobedecessem às ordens de Sua Majestade, cometendo diversos delitos cruéis. Acusação idêntica foi feita 18 “Bens vinculados a certos sucessores de uma família, a quem vão passando sem se poderem vender nem dividir; tb. Bens diversos que, inalienáveis e indivisíveis, passam, por morte do possuidor, para o filho primogênito” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 109, v.1). 19 Adriana Romeiro, por seu lado, trouxe à tona a necessidade de observar que o conceito de corrupção no exercício da atividade pública possuía significação diversa da que assumiu nos séculos seguintes, de “bases teórico-políticas de cunho liberal, radicalmente diferentes da cultura política orientada pela Segunda Escolástica”. Alertava, então, para o risco de se cometer anacronismo, ao se pensar a corrupção na sociedade da América portuguesa entre os séculos XVI e XVIII partindo de pressupostos modernos. Segundo a autora, as fronteiras entre o lícito e o ilícito dependiam de que os funcionários da coroa não ultrapassassem os limites da justiça e do bem comum dos povos, colocando seus interesses particulares acima dos interesses públicos, sobretudo, aos do rei de Portugal (ROMEIRO, 2012, p. 55). 20 “Filho de dom Antônio de Almeida, o conde de Avintes. Governou a capitania de Pernambuco desde 1715 até 1718; foi o primeiro governador da capitania de Minas Gerais após o seu desmembramento de São Paulo, em 1720, tomando posse em 1721; estabeleceu as primeiras Casas de Fundição em 1725; durante o seu governo, foram descobertas as minas de diamante no Serro Frio, em 1729; na Metrópole, passou ao governo militar da província da Beira e foi conselheiro de Guerra. Faleceu em Lisboa no ano de 1750” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 23). 70 doze anos mais tarde pelo governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença,21 que acusava os paulistas, primeiros habitantes da capitania de Minas Gerais, de serem violentos e desobedientes, bem como os portugueses de origem mais humilde. O conde D. Pedro de Almeida, que governou Minas Gerais do ano de 1717 a 1721, ainda foi mais depreciador, descreveu os mineiros como a escória da terra, aludindo também para a desobediência destes às ordens do rei de Portugal (BOXER, 1969). Em um bando,22 publicado na Vila de Nossa Senhora do Carmo em 30 de dezembro de 1717, Assumar acusava poderosos locais de, através da força e da violência de suas armas e de seus escravos, perverterem a boa ordem. Além disso, sentenciava que todos aqueles, fossem de qualquer condição social, que se juntassem em grupos armados, exceto ao serviço de Sua Majestade, seriam considerados régulos e levantados, isto é, insubordinados. Seriam, então, penalizados pela lei e exemplarmente castigados, tendo seus bens sequestrados, dos quais caberia a quinta parte ao denunciante; uma forma de incentivar a delação. Alertava, ainda, para que nenhuma pessoa fizesse de suas casas esconderijos para os criminosos, sob pena de serem também castigados. Além disso, ordenou que nenhum negro, mulato ou natural da região portasse armas. Percebe-se, portanto, neste bando, a existência de indícios tanto de insubordinação e “má vontade” dos vassalos, em se sujeitar às leis de Sua Majestade, quanto de um recrudescimento das punições aplicadas pelo governo, contra os que se envolvessem em revoltas, ou que atentassem contra a ordem e o sossego públicos.23 O governador tinha, ainda, uma visão negativa a respeito da criação de novas vilas e, consequentemente, da instalação de um concelho.24 Ele considerava que em 21 “Natural da vila da Guarda, nasceu em 1693 e faleceu no ano de 1743; neto do matemático Leonis de Pina Mendonça. Integrou o movimento de crítica ao ensino universitário vigente. Foi guarda-mor da Torre do Tombo, bibliotecário e preceptor de um dos irmãos de dom João V, deputado do Conselho Ultramarino, fidalgo da Casa Real e membro da Academia Real de História Portuguesa; esteve em Minas no período de 1734 a 1738; em 1736, assumiu o governo interino da capitania de Minas Gerais (durante o afastamento de Gomes Freire de Andrade); foi responsável pela demarcação do território diamantino e pelas instruções para a extração dos diamantes no Serro Frio; envolveu-se diretamente com o projeto de implantação do imposto da capitação” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 56). 22 “Ordem ou decreto do governador e capitão-general publicando decisões pontuais, em geral relacionadas a questões cotidianas, ou medidas emanadas de uma ordem mais ampla e de instância superior, por intermédio de pregão, de maneira solene, ou afixado em lugar ou veículo de circulação pública. Pregão: publicação de qualquer coisa, feita nos lugares públicos, em voz alta, para que todos tomem ciência do seu conteúdo” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 78 e 115). 23 ANUÁRIO do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, 1955-57, p. 67-68. Doravante, cita-se somente ANUÁRIO para esta referência. 24 “Em Portugal, mantidas as diferenciações resultantes dos privilégios de que gozavam, as cidades e vilas figuram como sedes de concelhos, governados por câmaras – constituídas de um corpo de oficiais 71 terras tão insubmissas, marcadas pela ocorrência de motins, era melhor ter menos vilas e concelhos, já que estes serviam bem mais às vontades dos poderosos locais do que às do rei de Portugal (FONSECA, 2011). Segundo Fernanda Borges de Morais: Nos momentos de maior intensificação do esforço de povoamento, a ereção de vilas e cidades figurava como importante estratégia na qual a implantação de uma estrutura de organização administrativa, jurídica, fiscal, militar e territorial possibilitava à Coroa Portuguesa impor sua ordem e garantir maior controle fiscal sobre as riquezas produzidas. Por outro lado, conferir maior autonomia e poder a determinadas localidades e, consequentemente, às elites locais poderia não ser a melhor estratégia em momentos de crises ou ante a emergência de rebeliões e insubordinações da população (MORAES, 2007, p. 62). Em carta enviada a Vasco Fernandes Cézar de Menezes, no dia 13 de janeiro de 1721, o conde de Assumar ressaltou que, mesmo depois de encerrado o Motim de 1720, os povos ainda receavam a instalação das Casas de Fundição, encontrando nos homens de “nobreza da terra”, que ocupavam os cargos da câmara municipal, apoio para que não se efetuassem tais instalações. Segundo ele, estes agentes camarários se utilizaram de vários estratagemas, que visavam a este intento.25 Percebe-se, neste sentido, que as câmaras constituíam mais um espaço de interesses e de poder local, do que um lugar que representasse os interesses do rei, principalmente no que tangia às formas de cobrança do quinto. No Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação que nas Minas Houve no ano de 1720, 26 Assumar evidenciou a ocorrência de vários motins na região das Minas. Todavia, na sua concepção, o Motim de Vila Rica apresentava maior gravidade, por atentar contra a autoridade do rei de Portugal. Vários têm sido os motins e sublevações que em diversos tempos houve nas Minas, mas nenhuma de tão perniciosas consequências, e tanto para temer, municipais com atribuições judiciárias, administrativas, militares e fiscais. Era esse o modelo de administração local que a Coroa Portuguesa, desde o século XVI, buscou transferir, praticamente sem alterações, para suas colônias. As instituições municipais constituíam verdadeiros instrumentos para a construção e a defesa dos territórios portugueses de além-mar. Por meio dos conselhos é que os impostos eram coletados, a justiça era aplicada e as milícias recrutadas” (MORAES, 2007, p. 60). 25 APM, SC 13, fl. 15-15v. Doravante, cita-se somente “SC” (Seção Colonial) e o número códice nesta referência. 26 Para Laura de Mello e Souza este importante documento histórico sobre os acontecimentos ocorridos em Vila Rica, no ano de 1720, não foi escrito apenas pelo governador conde de Assumar, mas contou também com a colaboração de dois jesuítas de sua confiança: Antônio Correia e José Mascarenhas (SOUZA, 1994). 72 como a presente do ano de mil setecentos e vinte, pelo temerário e inaudito fim a que se encaminhava e dirigia, qual era alçar a obediência ao seu príncipe, usurpar ao patrimônio real esta rica porção, e introduzirem-se nela despoticamente soberanos os mesmos que ainda eram indignamente vassalos (DISCURSO, 1994, p. 59). Para este governador, os motins são naturais de regiões onde se descobrem o ouro, “e que é propriedade e virtude do ouro tornar inquietos e buliçosos os ânimos dos que habitam as terras onde ele se cria”. Ele faz ainda uma associação entre o comportamento dos moradores mineiros e o comportamento característico da gente paulista, considerada de má índole, desordeira e infiel ao rei de Portugal. Afirmou que os poderosos locais27 eram os principais incentivadores das desordens ocorridas na região das Minas, ao relatar que estes “fazem estrondos, excitam tumultos, movem bulhas, formam motins, solicitam liberdades”. Em sua opinião, a solução para se pôr fim aos motins seria a remoção destes homens destas terras, assim “como eles fazem ao ouro”. Todavia, tal acepção não pode ser estendida a todos os poderosos, havendo outros de honrada posição social e econômica que estavam empenhados em servir a Sua Majestade (DISCURSO, 1994, p. 60-62). Nota-se no Discurso Histórico, que apesar de o conde dar mais ênfase à infidelidade e ao caráter indômito dos homens poderosos que habitavam as Minas, ele não deixou de mencionar que outros se destacaram por atuações em favor da causa do rei. A ênfase negativa em torno destas pessoas talvez possa ser explicada, neste documento, pela necessidade que o conde tinha de justificar a punição rigorosa aplicada a alguns deles em virtude da participação na revolta de 1720. Todavia, como mostraremos adiante, o apoio militar dado por uma parcela dessa elite local foi determinante para a vitória do conde sobre os rebeldes. Para Boxer, muitas das queixas apresentadas pelos governadores não passavam de injúrias contra os povos das Minas, mas de fato a maioria dos imigrantes vindos de Portugal eram homens solteiros, pobres e de baixa índole, causando tumultos e desordens na região. Ele demonstra que a solução intentada para esta situação seria o casamento destes com mulheres brancas, bem como sua fixação em algum lugar, o que os tornaria cidadãos respeitáveis e responsáveis. No entanto, havia carência de mulheres brancas e as poucas disponíveis na região litorânea eram mandadas pelos seus pais para 27 Segundo Dias, os poderosos locais, muitas vezes, colocavam seus interesses políticos e econômicos acima dos interesses da coroa, “criando obstáculos ao fisco, investindo de forma privada o poder público, pondo em perigo o sossego da República” (DIAS, 2004, p. 38). 73 se tornarem freiras nos conventos da Bahia ou de Portugal. Tal situação era agravada ainda mais pela escassez de eclesiásticos para celebrar casamentos, bem como as altas tarifas que os padres cobravam para oficializar a união. Devido às dificuldades de se promover tais matrimônios, as uniões consensuais acabaram ocorrendo aleatoriamente, embora o controle social e repressivo sobre a população mestiça se tornasse mais rigoroso (BOXER, 1969; SOUZA, 2004). A mestiçagem da população mineira foi, por sua vez, um dos fatores elencados pelos governadores para justificar a rebeldia dos povos, bem como a dificuldade em se governar a região. Estes defendiam que a mestiçagem degenerava os povos, podendo inclusive contaminar os homens brancos, dissolvendo-lhe o caráter e desviando-os de praticar o bem. Boxer evidencia que, depois de algumas gerações, todo aquele que não fosse “negro puro” ou “branco puro” tinha uma dose de sangue português e africano em suas veias. “O fato de a maioria dos homens brancos ter filhos mulatos, legítimos ou não, constituiu-se um problema social e administrativo para gerações em sucessão”. Pela lei, ter sangue negro era um impedimento à ocupação de um cargo público na administração local, mas essa barreira de cor era, frequentemente, vencida. Bastava, para isso, que um candidato não fosse “escuro demais”, pois era a riqueza e não a cor da pele o critério principal para se ocupar tal cargo em Minas Gerais. Embora Boxer ressalte a miscigenação predominante do português com o africano na composição e formação da sociedade mineira, ele não deixa de mencionar também a miscigenação do português com os povos ameríndios, da qual os paulistas são o exemplo mais claro. (SOUZA, 2004; BOXER, 1969, p. 186). Para os governantes das Minas, os povos mestiços eram perigosos, o que exigia um constante estado de alerta. A justiça foi um dos mecanismos utilizados no sentido de impô-los a lei e a ordem. O funcionário responsável por aplicar a justiça era o ouvidor, que gozava de ampla autonomia em relação ao governador da capitania. Já em lugares mais afastados, o responsável por aplicá-la era o capitão-mor28 das ordenanças, que era indicado pelo governador e confirmado pelo rei. De maneira geral, a justiça se dava através da prisão, dos castigos exemplares e da aplicação da pena de morte. E tais 28 “Oficial militar com jurisdição sobre todas as companhias de ordenanças de um distrito. O preenchimento do cargo é feito mediante indicação do governador e depende de confirmação régia. Em localidades onde não há juízes pode substituí-los. Deve manter a ordem, vigiando indivíduos suspeitos e prendendo criminosos. É cargo vitalício e quase sempre sucedido pelo parente mais próximo” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 83). 74 medidas repressivas atingiam principalmente as pessoas de baixa condição social e, sobretudo, os mestiços e negros (SOUZA, 2004). Ao longo do século XVIII, a fuga e a revolta de escravos persistiram como outro grande problema enfrentado pelas autoridades das Minas, que não mediram esforços em castigá-los.29 Assumar, em carta encaminhada ao rei de Portugal em 13 de julho de 1718, alertava sobre os danos que estes causavam quando fugiam para os quilombos.30 Reuniam-se em bandos de vinte a quarenta negros armados, roubavam pessoas que andavam pelas estradas e saqueavam sítios e roças vizinhas às cidades. Assumar teve o cuidado, é claro, de ressaltar que tomou todas as providências possíveis para remediar esse mal. Mas os negros fujões eram muitos e estavam espalhados por diversas partes, sendo difícil o controle sobre essa população, que na sua concepção, era indômita e rebelde. Advertia o rei sobre a importância deste assunto, pois dele poderia depender “a conservação ou Ruina deste paiz”, e assim pedia-o que analisasse o caso com bastante seriedade e que apontasse uma solução mais adequada para a situação. No intuito de evitar a fuga e a revolta de negros, e de garantir a ordem pública e o bem comum, Assumar aconselhou ao rei, como punição, que lhes cortasse a perna direita e lhes pusesse uma de pau, podendo ser aproveitados, ainda, pelos seus senhores, no desempenho de alguma atividade.31 Percebe-se, portanto, que o conde dá um valor primordial à aplicação do castigo como forma de manter o controle social nas Minas. Até o ano de 1730, nenhuma autoridade em Minas tinha o poder de sentenciar alguém à morte; os réus deveriam ser encaminhados para a Bahia, onde o Tribunal da Relação os julgava. Somente em 24 de fevereiro de 1731 é que foi cedido o direito de sentenciar os naturais, índios, mulatos e negros à pena de morte. O julgamento deveria ser dirigido por uma junta composta pelos ouvidores das comarcas de Ouro Preto, Sabará, Rio das Mortes e Serro do Frio, pelo juiz de fora da Vila do Carmo e pelo 29 “À guisa de dominar um grande contingente de escravos que se rebelava, muitos foram os mecanismos empregados pelos senhores e governantes. Algumas eram preventivas, como a proibição do porte de armas da circulação de mancípios à noite, a restrição ao ajuntamento dos negros, a venda de bebidas, as ameaças de castigos físicos, e outras punitivas, tais como aplicação de castigos físicos no descumprimento das leis, os açoites públicos nos episódios de maior violência. No caso de rebeliões, ou de ataques a vilas, estradas e sítios, executavam-se a prisão e execução dos líderes” (DIAS, 2012, p. 101). 30 “Vocábulo de origem banto (kilombo) que significa acampamento ou fortaleza, foi termo usado pelos portugueses para designar as povoações construídas pelos escravos fugidos do cativeiro. (...) No Brasil, os termos mais comuns para nomear as comunidades de negros fugidos foram quilombo ou mocambo, este último derivado de mukambu, na língua quimbundo” (VAINFAS, 2001, p. 494). 31 Cartas do Conde de Assumar ao Rei de Portugal, RAPM, Ano III, 1898, p. 251-252. Doravante, cita-se somente RAPM (Revista do Arquivo Público Mineiro). 75 Provedor da Fazenda Real. Em caso de empate nos votos dos seis ministros, caberia ao governador, com seu voto, desempatar. A pena de morte era aplicada, sobretudo, aos homens pobres, negros e mestiços. Só em casos gravíssimos tal pena era aplicada aos homens brancos abastados, e mesmo assim, estes eram julgados na Bahia32 (SOUZA, 2004). Isso traz à tona o problema da pena de morte aplicada pelo conde de Assumar ao amotinado Filipe dos Santos (homem branco e reinol), a qual ultrapassava os limites jurídicos daquela época. Abriu-se, assim, um precedente que fugia à legislação, o que causou tanto desconforto que o próprio governador se viu compelido a se justificar diante do rei. As razões que levaram o conde a agir de tal modo serão explicitadas adiante. Renato da Silva Dias, no capítulo À sombra do Rei, ressaltou que a Coroa portuguesa, a fim de garantir a exclusividade da exploração aurífera, preocupou-se com “o controle de seus vassalos, dos potentados e dos negros, bastardos e mulatos, considerados ‘inimigos internos’, que poderiam abalar, ou mesmo colocar abaixo o domínio colonial naquela região”. Nesse sentido, o autor conclui afirmando que a “coroa travava uma dupla batalha: externamente, com a competição de outras potências e interna, com a necessidade de submeter os vassalos e os rebeldes, e organizar o aparelho administrativo” (DIAS, 2012, p. 38). Logo, pode-se perceber que havia um clima tanto de insegurança, por parte da administração, fosse em relação à insubordinação dos poderosos locais, ao perigo da mestiçagem ou ao risco de uma revolta de negros, o que poderia levar à perda da governabilidade na região; quanto de animosidade, por parte dos agentes sociais citados, que apresentavam constante insatisfação em relação às políticas coloniais adotadas, sobretudo, àquelas que promoviam a elevação dos impostos. Segundo Luciano Figueiredo, o lançamento ou a modificação de um tributo não era uma tarefa fácil. Pelos costumes locais, se essa alteração fosse considerada ilegítima e injusta ao bem comum dos povos, estes se inquietavam promovendo variadas formas de resistência, que poderia culminar em protestos ou, em casos mais graves, em revoltas antifiscais. Para o autor: 32 Somente em 1775 é que se criou em Minas Gerais uma Junta de Justiça para julgar todos os réus, independente de sua posição social ou etnia (SOUZA, 2004). 76 A aplicação de cada novo tributo foi acompanhada de descontentamentos e insatisfações. Ordens régias e bandos de governadores quase sempre são seguidos de grande alvoroço. (...) Protestos de rua, petições de câmaras, súplicas de moradores às câmaras, reclamações e representações ao Rei, recusa de pagamento, obras de sátira, pasquins e “papéis sediciosos”, rumores e “vivas”, indignação por cobranças violentas, sonegação, contrabando, falsificação de cunhos para marcação de barras de ouro, emissão de recibos falsos, o protesto tomava as formas mais diversas. (FIGUEIREDO, 1995, p. 66-67). De acordo com o autor, o sistema fiscal era o instrumento fundamental para a arrecadação de receitas destinadas a cobrir as despesas ou os compromissos dos cofres da Monarquia e a América seria a “retaguarda fiscal” e não apenas “comercial” de Portugal. O lançamento dos tributos era direito da Coroa, e cabia aos leais vassalos pagá-los. Todavia, se os impostos se tornassem “vexosos” ou injustos, “eles legitimavam na cultura popular o recurso extremo à rebelião” (FIGUEIREDO, 1995, p. 81). Foi nesse panorama que se desencadeou a Revolta de Vila Rica, no ano de 1720, resultado da insatisfação geral com as novas mudanças fiscais que ampliavam a carga tributária, sendo que os líderes do motim tentaram legitimar suas ações rebeldes em torno dessa causa comum: o não aumento dos impostos. A partir da última década do século XVII, a proteção e a expansão da atividade mineradora evidenciaram-se de súbito. Como consequência, teve início o Regimento de 1702, que impôs uma maior vigilância por parte das autoridades, assegurando, assim, os privilégios da monarquia portuguesa de lucrar com a exploração aurífera. Além disso, coibiu as transações ilegais, estimulou a mineração do ouro e facilitou a ação fiscal. Neste novo sistema, alterou-se a legislação anterior substancialmente e se modificaram as atribuições do antigo provedor, transformado então no Superintendente das Minas. Este oficial já não era obrigatoriamente um entendido na mineração, mas uma pessoa capaz, em teoria, de interpretar e executar a lei, procurando impedir discórdias, punindo culpados de delitos, apaziguando ânimos e escolhendo indivíduos zelosos para exercerem tarefas ligadas à exploração de metais (HOLANDA, 1982; LEME, 1980). A tributação do ouro sofreu inúmeras alterações, ao longo do período colonial, que, contudo, ficaram em torno da regra geral da cobrança do quinto. O ouro descoberto em Minas Gerais no final do século XVII só começou a ser tributado em 1700. A partir daí, e até o fim do sistema colonial, as regras da tributação do ouro sofreriam muitas alterações. Entre os anos de 1700 e 1710, eram permitidas a circulação do ouro em pó e 77 a livre saída do metal da capitania, mediante uma guia do imposto pago. No dia 20 de março de 1717, foi posta em prática uma nova forma de tributação que, através de prorrogações, vigorou até 22 de julho de 1718. Por este sistema, os mineiros comprometiam-se a remeter 30 arrobas anuais de ouro à guisa de quintos. Já entre os anos de 1718 e 1722, passou a ter vigência um novo contrato entre o fisco e os mineiros, no qual o imposto foi reduzido para 25 arrobas anuais e a diferença seria compensada com a transferência das rendas provenientes dos direitos das passagens, então pertencentes às câmaras, para o tesouro régio. Este sistema não satisfez por muito tempo os anseios econômicos da Coroa que, em 11 de fevereiro de 1719, ordenou a criação das Casas de Fundição (PINTO, 1979). Desta forma, percebe-se o interesse cada vez mais intenso da monarquia portuguesa em regulamentar a atividade mineratória, na medida em que as jazidas iam se tornando mais produtivas, e em evitar os descaminhos do ouro. Para Paulo Cavalcante, a combinação das riquezas provenientes das Minas com uma fronteira tida como “aberta”, haja vista os diversos caminhos que levavam às Gerais, tanto de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, facilitou a prática do descaminho. Mesmo nos portos mais guarnecidos, o desvio era recorrente. Para o autor, o descaminho era “uma prática social instituinte e constitutiva da sociedade colonial”, e desde “o descobrimento do primeiro veio descaminhou-se”. E mesmo os agentes régios, cuja função primordial era a de combater os desvios, acabavam, não raras vezes, facilitando-o e praticando-o em detrimento dos rendimentos de El-Rei, o que tornava mais difícil a fiscalização e o combate desta prática, já que aqueles que caminhavam no sentido de evitar os descaminhos também descaminhavam (CAVALCANTE, 2006, p. 43-64). A intensificação da prática dos descaminhos do ouro no decorrer da primeira metade do século XVIII deveu-se basicamente ao estabelecimento de uma política administrativa e fiscal cada vez mais rigorosa, que visava sempre ao lucro máximo sobre a produção mineradora. A própria conduta do governador D. Pedro de Almeida expressava bem essa nova política, que girava em torno não só da manutenção da ordem e do sossego nas terras mineiras, mas também da boa arrecadação dos quintos reais. Assim: Assumar não vem com outra missão senão a de assegurar a contenção dos ânimos de toda a região, particularmente conturbada desde os episódios dos 78 Emboabas, e ativar a lógica metropolitana, isto é, normalizar o trabalho nas minas, incentivar novos descobrimentos, cobrar os quintos devidos e encaminhá-los sem problemas para a real Fazenda (CAVALCANTE, 2006, p. 30). Todavia, este enfrentou grande resistência quando da mudança na forma de cobrança do quinto, com a instituição das Casas de Fundição. Numa sociedade em que corria o ouro em pó e seu consequente descaminho, ninguém queria mudanças que viessem a desarticular ou pôr fim a essa prática social, e a recusa à novidade levou a agitações e tumultos populares (CAVALCANTE, 2006). Porém, como veremos adiante, esta revolta esteve longe de ser apenas um protesto antifiscal, há que se levar também em consideração os aspectos políticos inerentes. 2.2 – As Razões de Assumar para a Punição aos Revoltosos de 1720 Na primeira metade do século XVIII, Minas Gerais foi assolada por vários movimentos sublevacionista.33 Essas revoltas deveram-se menos ao desassossego popular que à presença de “poderosos do sertão”, que atuavam na defesa de sua autoridade e de seus lucros. De um lado estava a Coroa portuguesa, que seguia uma política essencialmente de exploração das minas. Do outro, estavam os colonos que percebiam o crescimento das pressões burocráticas e fiscais a ponto de ameaçar seu meio de vida. Eis a combinação explosiva. A disseminação da autoridade real teve como consequência o aparecimento de formas de contestação social, oriundas da insatisfação da população em relação às medidas centralizadoras. Tal desagrado traduzia-se nas formas de não pagamento do quinto e de outras taxas, na exploração de novos filões sem a comunicação de sua descoberta, na mineração em áreas proibidas, no transporte de escravos e outras mercadorias pelas minas, sem registro, e no contrabando do ouro em pó. Isto é, houve uma resistência explícita, que foi o resultado da maior rigidez da cobrança do quinto, o que levou aos distúrbios da ordem e ao 33 “No período compreendido entre 1694 e 1736, a capitania de Minas do Ouro vivenciou 46 levantes. Desses 46 levantes, 37 ocorreram entre 1694 e 1720 sendo que entre 1717 e 1720 – período no qual o governo das Minas esteve sob a responsabilidade de D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, conde de Assumar – ocorreram 16 levantes” (KELMER MATHIAS, 2005, p. 17). 79 descontentamento da população em relação a qualquer medida oficial. Para John Russell-Wood: De longe o levante popular mais sério de quantos ocorreram em qualquer lugar de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás durante a primeira metade do século XVIII teve lugar em Vila Rica, na noite de 28 de junho de 1720. Seu alvo foi o ouvidor local e as novas regras (fevereiro de 1719) de cobrança dos quintos (RUSSELL-WOOD, 2004, p. 495). O rei de Portugal, buscando evitar os descaminhos do ouro, resolveu estabelecer Casas de Fundição nas Minas. Nesse sentido, ordenou ao governador conde de Assumar, aos 11 de fevereiro de 1719, que providenciasse as construções. O material necessário seria enviado de Portugal; e, da Bahia e do Rio de Janeiro, seriam enviados os oficiais e os instrumentos indispensáveis ao seu funcionamento. Fixou-se, ainda, o prazo de um ano a partir de 23 de julho de 1719 para que fossem inauguradas, além do mais, deveriam ser construídas à custa dos povos da capitania. Durante este intervalo, o sistema de fintas34 seria mantido. Contudo, com o funcionamento das Casas de Fundição e a alteração na forma de cobrança dos quintos, teve início um processo que apresentou como principal consequência o levante da população de Vila Rica, em junho de 1720, que, por outro lado, foi também uma consequência dos insustentáveis conflitos entre as autoridades reais e os poderosos locais pelo poder político na região (ANASTASIA, 1998). Somam-se a isso a vinda das tropas dos dragões,35 as ordens para dar baixa a todos os oficiais da ordenança, que não tivessem regimento, e a expulsão dos religiosos da região. Essas medidas desagradaram a todos, visto que: Os frades não podiam levar à paciência haver de retirar-se, (...) os oficiais sem regimento, que eram infinitos, não se acomodavam a encostar a divisa total da sua nobreza, que conforme a maior ou menor graduação de seus postos, era o único e glorioso caráter da sua distinção, (...) finalmente o povo todo, se se não opunha à lei dos quintos, ao menos a receava (DISCURSO, 1994, p. 65-66). 34 “Tributo que se paga ao rei ou à câmara do rendimento da fazenda de cada súdito, geralmente para a cobertura de despesas extraordinárias. É utilizada para a arrecadação do quinto do ouro em Minas Gerais a partir de 1714, quando é acordada a cota anual de trinta arrobas, cabendo às câmaras o lançamento do valor devido por cada contribuinte. Vigora até 1725, com alterações no valor da cota, quando é criada a Casa de Fundição de Vila Rica” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 99-100). 35 “Companhia de cavalaria especial criada em Minas Gerais durante o governo do conde de Assumar para assegurar a ordem interna e o recebimento dos tributos reais” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 126). 80 Para os poderosos locais, a nova política empreendida por Assumar, mais centralista e rígida, apoiando-se em força militar própria, significava a perda de seus títulos e patentes militares e, consequentemente, a perda de seu prestígio social e político. Deste modo, para estes, a solução contra estas mudanças se daria por meio da sublevação geral, e utilizaram como pano de fundo para este intento a inquietação popular com a iminente instalação das Casas de Fundição. A insatisfação e o ódio ao governador se deveram também a sua ordem de expulsão dos frades sem emprego nas Minas, ainda que advertido pelo bispo do Rio de Janeiro de que não tinha autoridade para ordenar tal ação. Para Assumar, os frades se opunham ao pagamento do quinto régio, daí a necessidade da expulsão. Todavia, tal tarefa não foi fácil, devido à “intercessão de poderosos, inação dos vigários de varas e ouvidores, e questionamentos do bispo do Rio de Janeiro” (VASCONCELOS, 1999; CAMPOS, 2002, p. 215). Segundo o conde de Assumar, no Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação que nas Minas Houve no ano de 1720, o levante em Vila Rica teve início à meia-noite de 28 de junho, quando um morador da Vila foi à casa do ouvidor da comarca, Dr. Martinho Vieira, avisá-lo de que naquela noite se formava um motim com a intenção de o matarem. O ouvidor, não desprezando o que lhe foi dito, tratou logo de evadir-se do local a fim de pôr sua vida a salvo. Seis mascarados lideravam o tumulto, seguido de perto por vários negros armados, “os quais vinham arrombando as portas e fazendo levantar da cama os moradores, que, oprimidos do sono e da ignorância do caso, se perguntavam atônitos uns a outros, que história era aquela?”. E sem saberem a que fim se destinava todo aquele movimento insurgente, os moradores foram forçados a seguir os mascarados até a casa do ouvidor, porém este já não mais se encontrava ali. Passaram então a agredir um criado seu com facadas, para que lhes dissesse onde o ouvidor estava; não satisfeitos, puseram-se a roubar e destruir tudo o quanto havia na casa, chegando até mesmo, alguns deles, a desonrarem uma criada que ali residia (DISCURSO, 1994, p. 88). Para Diogo de Vasconcelos, tais indisposição e ódio dos líderes do motim contra o ouvidor deviam-se ao fato de o mesmo ter um gosto especial por ridicularizar e trazer debaixo dos seus pés os homens poderosos da comarca, sendo visto, até mesmo pelo conde de Assumar, como uma pessoa leviana, de má língua e provocador de confusões, 81 pois fazia de seu tribunal um local de afrontas insuportáveis às partes que lhe pediam despachos (VASCONCELOS, 1999). Para o conde: O tribunal, lugar dedicado à retidão, assim se ofende da injustiça como da imprudência. Pouco obraram nele as letras, e menos os anos; nem estes nem aquelas contribuíram com a madureza, que prometiam; mas o certo é que, se na escola dos tempos e na cadeira das aulas se estudam ciências e se aprendem sucessos, não se lê a conservação, não se dita a cordura (DISCURSO, 1994, p. 75). Desta forma, Assumar queixava-se da falta de ética e decoro do Dr. Martinho Vieira na aplicação da justiça e no trato com a elite local. Aludiu para o fato de que, poucos dias antes do motim, o ouvidor havia destratado um sobrinho do potentado Pascoal da Silva Guimarães,36 chamado José da Silva. Além do mais, indispusera-se com outros homens poderosos, como Sebastião da Veiga Cabral e Manuel Mosqueira da Rosa, tendo ordenado a prisão do filho deste, sem uma justificativa plausível. Para Assumar, todos estes fatos, somados a tantas outras inadvertências de Martinho Vieira, contribuíram para elevar os ânimos e os ódios dos poderosos contra ele, e esta falta de zelo do ouvidor foi um dos motivos que levaram aos tumultos nas Minas (DISCURSO, 1994). Nesse sentido, para que não houvesse mais tumultos nas Minas, enviou correspondência ao rei de Portugal, aconselhando-o a nomear ouvidores que: Tivessem mais cabedal de modo e de afabilidade ainda que fossem mais diminutos de letras porque a experiência tem mostrado que depois que há Ouvidores nas minas, todas as alteraçoens que os povos tem movido são nascidas da sua injustiça ou movidos por eles mesmos (...), muy perigozo neste Paiz onde qualquer pessoa branca imagina ser Príncipe jurado (sic.) (SC 04, fls. 849-855). 36 “Natural de Portugal. Em 1704, deixou o Rio de Janeiro, onde trabalhava como caixeiro de Francisco do Amaral Gurgel, em direção a Minas. A princípio, minerou na região do rio das Velhas e depois passou às fraldas das serras de Ouro Preto, onde utilizou métodos espanhóis de extração do ouro, enriquecendo rapidamente; fundou o arraial do Ouro Podre (São Sebastião), ocupando a serra de alto a baixo; em 1708, era nomeado sargento-mor das minas de Ouro Preto e seus distritos. Disputou terrenos com a família de José de Camargo; participou na Guerra dos Emboabas, sem no entanto, apoiar o desacato de Manuel Nunes Viana ao governador Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre; hospedou a sua custa, por quinze dias, o governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho durante a pacificação dos conflitos na região. (...) Em 1720, pelo seu envolvimento no levante de Vila Rica, foi preso e remetido a Lisboa, e a sua propriedade queimada (Morro da Queimada), por ordens do governador conde de Assumar” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 41). 82 Percebe-se, portanto, que o conde atribuiu aos ouvidores, e mais especificamente no contexto da revolta de 1720, ao ouvidor Martinho Vieira, a culpa pelos tumultos e desordens na região, acusando-o de não ter cautela e prudência no trato com os poderosos locais, fatores indispensáveis à manutenção da governabilidade. Entretanto, pode-se questionar se o motivo das insatisfações se restringia somente à atuação do ouvidor, já que uma das exigências dos revoltosos era a expulsão do próprio conde do posto de governador das Minas. Segundo Maria Verônica Campos, na tese Governo de Mineiros: de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado (1693-1737), a ênfase dos embates pessoais entre os amotinados e o ouvidor no Discurso histórico era “uma forma de responsabilizar o ministro [ouvidor] pelo movimento e, simultaneamente, isentar o governador de culpa na deflagração do levante” (CAMPOS, 2002, p. 220-221). Ou seja, o que autora procurou mostrar foi que o conde tentou atribuir toda a culpa da deflagração do movimento à falta de prudência do ouvidor, no exercício de suas funções, isentando-se, perante Sua Majestade, de qualquer responsabilidade que se lhe pudesse recair. Contudo, pode-se perceber que as causas do levante não se restringiam à atuação do ouvidor, concentrando-se, também, na insatisfação dos poderosos locais com a nova configuração política que a região assumiu após a chegada de Assumar. Interessante notar que um dos líderes do motim, Manuel Mosqueira da Rosa, antigo ouvidor, também fora acusado pelos oficiais da Câmara de Vila Rica de agir imprudentemente, vexando os povos na aplicação da justiça, quando ocupava aquele posto. Os oficiais, em carta dirigida ao Conselho Ultramarino no ano de 1717, denunciavam a má conduta de Mosqueira diante dos moradores de Vila Rica. Aparentemente, o que se pode inferir é que o abuso do poder era uma característica quase que inerente ao posto de ouvidor, já que outros homens que ocuparam tal posto foram igualmente acusados de tais excessos37 (AHU/ MG, cx. 1, doc. 67). Diante da ameaça de morte sofrida e da fuga do ouvidor Martinho Vieira, os revoltosos acharam por bem dirigir-se à câmara municipal, de onde ordenaram aos negros armados ocuparem as entradas das ruas, para impedir que o povo se espalhasse 37 AHU, Cons. Ultram. Brasil/ MG, cx. 1, doc. 67. CONSULTA do Conselho Ultramarino sobre o que escrevem os oficiais da Câmara de Vila Rica em carta de 1717, dezembro, 17 e 1717, julho, 6, relativas ao procedimento e queixas do desembargador Manuel Mosqueira da Rosa. Doravante, cita-se somente “AHU/ MG” para esta referência. 83 desordenadamente. Enquanto isso, alguns foram atrás do letrado José Peixoto da Silva, para “forçá-lo” a redigir o primeiro termo de propostas, que foi encaminhado ao governador; “e para fazerem o caso mais feio, ordenaram ao emissário que a levava entrasse na Vila do Carmo (aonde já andava em dúvida a notícia) com ela na mão levada ao alto, correndo a cavalo, e dizendo a gritos que estavam as Gerais levantadas” (DISCURSO, 1994, p. 96). Segundo Campos, tal termo consistia em demandas de comerciantes e mineradores. Nesta proposta, os amotinados atribuíram à falta de decoro e justiça do ouvidor, Dr. Martinho Vieira, e ao não cumprimento dos dispositivos legais as principais razões do levante. Por fim, queixavam-se das novas medidas fiscais, consideradas exorbitantes, pediam que não fossem instaladas as Casas de Fundição e requeriam que lhes fosse passada uma guia de pagamento, com a qual poderiam provar que já tinham quitado seus débitos (CAMPOS, 2002, p. 245). Recebida a proposta, Assumar observou que muitas das queixas levantadas iam contra as determinações de Sua Majestade e, por esse motivo, convocou uma junta de ouvidores para que pudesse tomar uma melhor decisão em benefício do povo. Agindo dessa forma, ele esperava pôr fim aos tumultos, com a possibilidade, inclusive, de se conceder o perdão aos amotinados. Todavia, em sua opinião, os líderes da sublevação não tinham o interesse de ver as Minas sossegadas. Pelo contrário, tratavam logo de aterrorizar o povo, dizendo-lhes que, sossegado o tumulto, o conde não deixaria de tomar satisfações e de castigar os envolvidos. Novamente, os amotinados insistiram no atendimento da proposta e da concessão do perdão oficial. Três procuradores “do povo” – o sargento-mor Antonio Martins Lessa e dois letrados, José Peixoto da Silva e José Ribeiro Dias – foram ao encontro do governador solicitar-lhe que fosse a Vila Rica para conceder o perdão, pois só assim conter-se-ia a rebeldia do povo. Diante dos tumultos e da insuficiência de soldados da tropa de dragões para darem fim ao motim, Assumar achou por bem ceder, mas não sem antes consultar algumas pessoas principais e de sua confiança, pois o poder e a autoridade para conceder o perdão foi-lhe dado pelo rei de Portugal, e para efeito de sua validade, ele teria que aprová-lo. Os procuradores, no entanto, insistiram para que o perdão fosse dado sem a aprovação do rei. Assim sendo, embora alertasse sobre a possibilidade de nulidade do perdão, o conde concedeu-o mais por força do que por vontade (DISCURSO, 1994). 84 Em 01 de julho de 1720, estando presentes o governador D. Pedro de Almeida, o ouvidor, Dr. Martinho Vieira, o superintendente das Casas de Fundição, Eugênio Freire de Andrade, o tenente general, Félix de Azevedo Carneiro e Cunha, e o capitão dos dragões, José Rodrigues de Oliveira, foi publicado o termo de perdão38 pelos tumultos ocorridos em Vila Rica, iniciados em 28 de junho do mesmo ano. Estas autoridades, a princípio, consideravam que os levantes se deviam apenas à antipatia de alguns poderosos locais à figura do ouvidor da comarca de Vila Rica, sem possuir motivação outra que pudesse vir a trazer prejuízos ao serviço de Sua Majestade. Todavia, revelouse a existência de outros interesses, por parte dos cabeças do motim, os quais ensejavam e induziam a continuação da revolta, insuflando e coagindo o povo a participar, despachando, segundo o próprio conde de Assumar, cartas a todas as comarcas, convocando-as a apoiar o motim. Além disso, o governador apresentou preocupação em relação à adesão dos populares à insatisfação dos poderosos, sobre a nova forma de cobrar os quintos. Por esse motivo, embora considerasse que o perdão não seria suficiente para encerrar os reclames, presumia que sua concessão arrefeceria os ânimos, sobretudo dos populares, o que desarticularia o movimento. Ademais, alegava que, em face dos tumultos, o melhor “remédio” nesse momento seria a concessão do perdão – cujo edital copiamos abaixo –, a fim também de proteger “muita gente inocente que estava constrangida por força do mesmo tumulto” (SC 06, fl. 94-94v). Dom Pedro de Almeyda, etc. Por me ser reprezentado pellos Procuradores do Povo de Villa Rica o grande desasocego em que estavão pello receyo de serem castigados pello tumulto que tinhão feyto em vinte e outo do mez passado contra o Doutor Ouvidor Geral desta Comarca e ser esta cazo em que se costumão conceder perdoens em nome de Sua Magestade que Deos Guarde sendo convocados as pessoas doutas que me pareceo, hey por bem de conceder a todos os moradores da dita Villa e a outros quaesquer que se acharão dito tumulto, ou fossem cabeças delle, ou não, perdão em nome do dito Senhor com toda authoridade e poder que o dito Senhor me concede para que pello dito cazo e outros crimes que na dita ocazião se cometessem se não proceda em nenhum tempo pellas justiças do mesmo Senhor porque a minha atenção so he que o dito perdão tenha toda a validade e vigor, e para que assim conste mande publicar este edital que se registara na Secretaria deste Governo e será publicado a som de caixas por todas as partes da dita Villa e seu destricto. Villa do Carmo 1 de Julho de 1720 (sic.) (SC 11, fl. 289). 38 Cabe ressaltar que o rei de Portugal, através do alvará régio, expedido em Lisboa, a 26 de marco de 1721, ratificava o perdão concedido preliminarmente pelo Conde (SC 16, fl. 85v). 85 Tais medidas, contudo, não foram suficientes para acalmar os ânimos. Um novo motim se estabelecera em Vila do Carmo e uma nova proposta foi entregue ao conde de Assumar, aos 02 de Julho de 1720. A segunda proposta de reivindicações, apresentada pelos amotinados, mais ampla que a anterior, continha quatorze condições para se pôr fim à rebelião, das quais analisamos algumas. Os sediciosos eram contra a instalação das Casas de Fundição, cunhos e moeda; não queriam contrato novo algum que não estivesse em costume até o presente; não consentiam que se pagasse o registro de Borda do Campo, que era um posto de controle de circulação de mercadorias e do ouro, no qual era cobrado dos tropeiros um imposto de entrada sobre animais e escravos e sobre as mercadorias importadas para as Minas; queriam que os camaristas moderassem as condenações tão exorbitantes ao povo, que faziam sem regimento nem lei; defendiam que as calçadas das ruas se fizessem à custa da Câmara e não do povo, pois lhes comem as rendas; que os oficiais da câmara concedessem anualmente as licenças dos contratos de gado e outros negócios, pois era muito dispendioso tirá-las todos os meses; que as Companhias de Dragões comessem à custa dos seus salários, e não à custa dos povos; requeriam que nenhum ouvidor fizesse vexações ao povo com despachos violentos, procedendo à prisão sem as circunstâncias do direito; e, por fim, solicitavam o perdão a todos os envolvidos no motim (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 370-373). Para o governador, os líderes do motim esperavam que ele discordasse da segunda proposta que eles apresentaram, para terem assim o pretexto de fazer sublevarem-se todas as minas contra a instalação das Casas de Fundição. Na concepção do conde, isso explicava, inclusive, o conteúdo bem mais abrangente da nova proposta, que não passava de uma artimanha dos cabeças, com a finalidade de mobilizar todos os segmentos sociais, direcionando-os contra a ordem instituída. O governador, porém, acatou todas as propostas, justificando que o havia feito por duas razões urgentes. A primeira, porque estava seguro da intenção dos líderes do motim de valer-se desta situação de conflito para sugerir ao povo pretextos para que não houvesse governador nem ministros nestas minas, como forma também de não pagarem a ninguém as exorbitantes dívidas, e ainda assim conservar em suas mãos o poder político na região. A segunda razão do conde consistia na expectativa de que atendidas as reivindicações dos povos, restassem apenas os líderes do motim e seus negros. Assim: 86 Premido entre as duas faces da sedição de 1720, D. Pedro de Almeida buscou conciliar a resolução dos interesses do povo de Vila Rica, inscritos dentro das regras do jogo colonial, com a situação de soberania fragmentada,39 explicitada em movimento referido às formas políticas coloniais pelo qual os poderosos tentavam minar a autoridade do Governador e dos demais ministros da Comarca (ANASTASIA, 1998, p. 52). Para Carlos Leonardo Kelmer Mathias, em sua dissertação intitulada Jogos de interesse: estratégias de ação no contexto da revolta mineira de Vila Rica (1709-1736), o dia 02 de julho foi “o divisor de águas no desenrolar da revolta, pois marcou o momento de inflexão do poder dos líderes da sublevação e de extensão do poder do conde de Assumar”, que ao conceder o perdão aos sublevados e aceitar (taticamente) os termos da segunda proposta, sobretudo, adiando a instalação das Casas de Fundição, conseguiu retirar o amplo apoio do povo ao movimento rebelde. Além disso, passou a contar com o apoio de poderosos locais não revoltosos. Para o autor, “em nenhum outro momento posterior ao 02 de julho os amotinados conseguiram reunir um contingente tão numeroso” da plebe (KELMER MATHIAS, 2005, p. 92-93). Mesmo diante dessa nova realidade, os líderes do motim continuaram a insuflar e coagir os povos a prosseguirem com os tumultos. Em 06 de julho, estes lideraram novo motim em Vila Rica. Para o conde, eles não ansiavam pelo perdão, nem a conciliação, tampouco o fim das perturbações populares e o sossego das Minas. Pelo contrário, atuavam no sentido de deixarem os ânimos dos povos inquietos e sobressaltados, na medida em que inventam boatos mentirosos, como, por exemplo, o de que o ouvidor Martinho Vieira estava em Vila do Carmo a fazer uma averiguação judicial a fim de punir os envolvidos e de que a ele próprio não interessava perdoar, mas sim castigar exemplarmente a todos os sublevados. Assim, “cada dia, astúcias, traições, enganos vários, perfídias inventavam e teciam os cabeças” (DISCURSO, 1994, p. 112). Nesse contexto, o conde achou por bem ordenar que o Dr. Martinho Vieira saísse da comarca de Vila Rica, na tentativa de restabelecer a ordem e também como uma estratégia para desarticular a principal justificativa dos amotinados para a continuação das perturbações. Tirada sua atribuição de ouvidor, assumiu o cargo o juiz 39 No livro Vassalos rebeldes, Anastasia emprega o conceito de “soberania fragmentada” numa referência aos focos de poder privado que, ao longo da primeira metade do século XVIII, concorreram com o poder metropolitano, desafiando as tentativas de fortalecimento da autoridade real, contra as quais empreenderam uma obstinada resistência (ANASTASIA, 1998). [Grifo meu] 87 mais velho de Vila Rica. Todavia, não ficaram “sossegados os alvorotos, antes todas as noutes que são as horas a que costumam os amotinados deste Paiz comessar os seus movimentos continuavam na mesma forma”. Por mais que a atuação de Martinho Viera fosse motivo de crítica e reclamação, mesmo com sua saída estratégica das minas, os motins não cessaram, o que nos leva a afirmar a existência de outros interesses por traz do cenário de desordem. Desse modo, a despeito de todas as concessões obtidas, os revoltosos criavam um clima de terror e medo na população, no intuito de que nas Minas prevalecesse o conflito (APM, SC-04, fls. 855-858). Já em relação a Pascoal da Silva Guimarães e Manuel Mosqueira da Rosa, que eram os principais líderes do motim, Assumar, mesmo ciente do envolvimento destes, incumbiu-os de pôr fim às agitações populares, na esperança de que fizessem cessar os desatinos que eles próprios armaram. Todavia, só fizeram aumentar as desordens, isso porque: Percebendo que o Conde de necessidade lhes encarregava o mesmo em que os não podia fazer obedecer, e não duvidando ambos que pelo tempo adiante os viria castigar, faziam continuar as sem-razões; ou porque esperassem algum bom sucesso ao seu delírio; ou porque não quisessem mostrar que a mão com que agora moderavam os excessos era a mesma com que dantes alteravam os tumultos, e que tanto se lhes devia o motim do povo como o sossego da Vila (DISCURSO, 1994, p. 117). A esse respeito, o conde de Assumar ressaltou que a maior adversidade que encontrou para governar estas partes do império era lidar com a insuficiência do corpo administrativo e militar real, sendo que, para conservar a soberania portuguesa, “há de necessariamente dar o altar da fidelidade aos ídolos da traição, e consentir que pela mesma porta por que só sai a verdade também entrem os sonhos falsos”. Assim, o conde coloca à prova a fidelidade de alguns poderosos locais envolvidos nos distúrbios de 1720, agraciados em épocas anteriores com títulos, mercês e terras por serviços prestados à Coroa portuguesa, e que por esse motivo, eram considerados vassalos fiéis e dignos do apreço do rei. No entanto, para ele, estes poderosos, e cabeças do motim, dissimulavam fidelidade, já que atuavam mesmo era a favor dos seus interesses particulares. Nem as pessoas mais próximas eram totalmente confiáveis: muitos fingiam apoiá-lo, mas pelas suas costas tramavam em favor dos amotinados. Pascoal da Silva Guimarães, por exemplo, foi descrito por Assumar como sendo um dos homens mais 88 poderosos das Minas, senhor abastado e que possuía um grande número de escravos e que embora se fizesse de dócil, obediente e leal, era malévolo, vingativo e traidor, fingindo-lhe sujeição; mas, na verdade, tramava ocultamente contra a sua autoridade, na medida em que pretendeu, junto com seus comparsas, expulsá-lo do governo das Minas. Acrescenta ainda que nem mesmo os benefícios e favores concedidos a Pascoal foram suficientes para reforçar os laços de lealdade, pelo contrário, só promoveram danos e desordens, provas de sua maldade, dissimulação e ingratidão. Deste modo, para o conde, “parece que se hão os benefícios à maneira das flores, de que os ânimos generosos, como abelhas, constipam favos; e os ingratos, como aranhas, compõem venenos” (DISCURSO, 1994, p. 70 e 112). Kelmer Mathias evidenciou que os cabeças da revolta de Vila Riva eram, em governos anteriores, vassalos leais e dignos de todas as premiações,40 pois dispuseram de seus cabedais e escravos a serviço das prerrogativas do rei. Todavia, ajudavam-no não por fidelidade e sujeição, mas em troca de recompensas que lhes pudessem trazer vantagens financeiras e prestígio social. O rei, por sua vez, não dispondo de meios suficientes para defender a América dos perigos externos e internos, contava com a ajuda desses homens poderosos e de suas forças privadas para a manutenção da ordem e da garantia da governabilidade nestas terras tão distantes do reino, sobretudo na fase inicial da colonização (KELMER MATHIAS, 2005). Diante da continuação dos tumultos, o conde, a fim de garantir a ordem, tomou outra medida: adiar o processo de instalação das Casas de Fundição. Ele se viu obrigado, diante do iminente perigo de uma generalização do tumulto – já que a instalação das ditas casas era malquista por todos os moradores da região das Minas, que viam nelas um órgão fiscalizador que diminuiria os seus rendimentos –, a retroceder no intento de instalá-las, assim desobedecendo às ordens do rei de Portugal. Em correspondência enviada ao rei, Assumar apresentou preocupação sobre as dificuldades e inconveniências de se instalarem as Casas de Fundição. Primeiro, salientou a 40 O autor destacou a ajuda de poderosos locais – que anos mais tarde liderariam um motim em Vila Rica contra as autoridades reais instituídas – na diligência organizada pelo governador da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, D. Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, para socorrer e reconquistar a praça carioca da ocupação francesa, comandada por Duguay-Trouin em 1711. E mesmo apesar de o governador ter chegado à cidade tarde demais, encontrando-a já saqueada e com o acordo de rendição já assinado, “isso não significou que aqueles que o auxiliaram em sua diligência não fossem merecedores de todas as honras, mercês e privilégios, que Sua Majestade fosse servido fazer-lhes quando houvesse ocasião” (KELMER MATHIAS, 2005, p. 34). 89 dificuldade de guarnecer todo o território do governo das Minas, impedindo o descaminho do ouro em pó; depois, segundo ele, era natural aos povos da região a resistência ao pagamento do quinto real; em terceiro lugar, argumentou que a instalação de tais Casas de Fundição era dispendiosa e de “pouca utilidade”, já que com litoral tão vasto e tão pouco guarnecido, tornava-se praticamente impossível impedir a saída ilegal do ouro, pelos “infinitos portos do mar”. Diante desse panorama, o conde, após discorrer com o superintendente das minas, Eugênio Freire, “e algumas pessoas de mais authoridade deste Paiz”, sugeriu ao monarca que, ao invés das Casas de Fundição, fosse instalada a Casa da Moeda, que cobraria um imposto de 12% sobre todo o ouro extraído, e que no seu entender, seria mais facilmente aceita pelos povos (SC 04, fls. 849-855). Entretanto, os movimentos de sublevação continuaram. Um novo motim, que ocorreu aos 12 de julho, visava a colocar Sebastião da Veiga Cabral no poder. Para o conde, este fingia apoiá-lo, mas, na verdade, queria ocupar o lugar dele no governo das Minas, chegando a propor-lhe, inclusive, que fingisse estar doente e que abandonasse o cargo de governador, como forma de se pôr fim aos constantes motins. Tal dedicação em fazer sossegar as Minas era obra da mesma pessoa, “que alentava os tumultos só a fim de conseguir o governo”. Mal havia acabado de ouvir sua proposta, o conde recebera uma carta de um confidente de Ouro Preto, avisando-o que naquela noite se armava um motim para expulsá-lo das Minas, e que fariam governador, em seu lugar, o dito Sebastião da Veiga, o qual se encontrava presente quando do recebimento da carta. Nesse momento, o conde disse a ele que por hora responderia àquela carta, e que não poderia perder sequer um instante em dar ordens para impedir aquele dano. Ao dar-lhe esta informação, acreditava que o próprio Veiga avisaria imediatamente os amotinados de suas intenções, já que o conde não mais duvidava de sua participação nos motins, sobretudo por estar ciente dos seus desejos de assumir o cargo de governador, e por ter ciência de que embora Sebastião da Veiga defendesse com ardor a lealdade a ele, vivia a difamá-lo para os povos das Minas (DISCURSO, 1994, p. 125). Em 13 de julho de 1720, Assumar, em resposta às ações de homens mascarados, que agiam conclamando e coagindo os povos a participarem dos motins, autorizou a todos os moradores de Vila Rica abrirem fogo contra estes mascarados que, segundo o governador, perturbavam a ordem pública, e declarou, ainda, que os que assim o 90 fizessem, não seriam incriminados pela lei, sendo, ao contrário, premiados com cem oitavas de ouro. Além disso, no edital de 14 de julho de 1720, fazia saber a todos os moradores de Vila Rica e seus distritos das inquietações que ocorriam nas Minas, principalmente no tocante à atuação dos mascarados, considerados líderes das sublevações e homens perigosos. Estes, segundo o conde, intentavam expulsá-lo do posto de governador, bem como os ministros e demais oficiais de Sua Majestade, como forma de “dominarem os povos, uzupar lhes os bens e ficarem izentos de pagarem a pessoa alguma o que lhe devem, (...) sendo necessário dar a tudo isto o castigo necessario”. Deste modo, Assumar reconhecia que a participação da maioria dos moradores nos motins era, na verdade, involuntária, sendo que estes eram coagidos e obrigados, por força de armas, a participar dos levantes. Sendo assim, o governador eximia esses homens comuns de qualquer culpa pelos ocorridos e ratificava o perdão dado a eles, quando da primeira sublevação (SC 11, fl. 290v-291). Assumar fez a seguinte descrição sobre o modo como ocorreram os motins e a forma como o povo chega a participar deles. “Estes jamais se fazem senão pela meianoite adiante, no maior silêncio dela; (...) Começa-se ordinariamente a formar o motim por seis ou sete mascarados, a que acompanham trinta ou quarenta negros armados”. Estes eram incumbidos de arrombarem as portas das casas dos moradores e obrigá-los a participar do motim. Além disso, corriam pelas ruas gritando os seguintes dizeres: “Viva o povo, senão morra”. Os moradores, assustados e temendo por suas vidas e patrimônio, acabavam por aderir ao movimento insurgente, ainda que a contragosto. “Depois de terem alarmado o povo, que ainda ignora o para quê é semelhante ajuntamento, levanta-se um mascarado, e começa a dizer em alta voz: meu povo, quereis que façamos isto, ou aquilo?" E, caso, os moradores não se posicionassem a favor da causa, eram feridos ou mortos pelos negros armados, servindo, inclusive, de exemplo para os demais, que, para não caírem em igual desgraça, acabavam por não oporem-se aos amotinadores. Como se pode notar, para Assumar os povos jamais tiveram iniciativa de fazer rebelar a região das Minas, nem no motim de 1720, nem nas sublevações passadas. Estes eram, antes, incitados à força, pelos cabeças, embora acabassem por aderir às rebeliões e ajudar no mau intento dos sediciosos, por também compartilharem de algumas insatisfações, no que tangia às alterações fiscais instituídas. O conde ressaltou, ainda, que houve a participação de ladrões, assassinos, maus 91 pagadores e de pessoas que, aproveitando-se dos tumultos, atentavam contra a vida de seus desafetos particulares (DISCURSO, 1994, p. 84). Diante da “sucessão dos tumultos, o excesso das desordens, as evidências do perigo, as certezas da ruína”, já não havia mais espaço para moderação. Na opinião do conde, só um “remédio” daria fim aos motins, a imposição da ordem através da força militar, com a prisão dos principais líderes do motim e demais envolvidos, castigandoos severamente como exemplo para aqueles que ousassem questionar a ordem política e fiscal instituída. Nesse sentido, ordenou a imediata organização da Tropa dos Dragões, para que fossem ao caminho que dava acesso à Vila Rica, sob ordens de não deixar ninguém passar com algum aviso para os rebeldes, enquanto se fazia a prisão de Sebastião da Veiga Cabral, que foi remetido em seguida para o Rio de Janeiro. Além disso, ordenou a prisão de Pascoal da Silva Guimarães e Manuel Mosqueira da Rosa, bem como dos freis Vicente Botelho e Francisco do Monte Alverne, por estarem também envolvidos nos distúrbios de 1720. Segundo Assumar, por falta de tropas suficientes, não se prenderam naquela ocasião outros envolvidos, os quais atuaram no sentido de provocar novas desordens em Vila Rica (DISCURSO, 1994, p. 129). A prisão dos líderes da sedição desencadeou novo motim. Bandos de mascarados desceram do Morro de Ouro Podre com um grande número de negros armados, e, ao som dos estrondos dos tiros de seus bacamartes, arrombaram as portas das casas dos moradores, ameaçando incendiá-las e, ainda, a toda a Vila Rica, caso não fossem no dia seguinte libertar os presos. Generalizada a desordem, o conde dirigiu-se para Vila Rica, aos 16 de julho, com alguns poderosos do distrito da Vila do Carmo, acompanhados de seus negros armados, em número de aproximadamente 1.500, e com a Tropa de Dragões, a fim de controlar as inquietações e garantir o sossego público. Chegando a Vila, o governador mandou atear fogo às casas de Pascoal da Silva Guimarães e a muitas dos seus cúmplices, situadas no dito morro. Com o início de outra sublevação, no sítio de Cachoeira do Campo, prendeu-se Filipe dos Santos, acusado de ser o cabeça e o instigador do levantamento. Réu confesso, e preso em flagrante por Luís Soares Meirelles – que não era oficial nem soldado, mas um simples homem do povo –, foi “sentenciado a forca e com efeito diante de todo o povo foi enforcado e seos quartos postos em todos os lugares aonde tumultuou, com cujo espetáculo ficou o povo respirando da vexação que havia tantos dias padecia”. Luís Soares, por sua vez, foi 92 premiado com um hábito de Cristo, que lhe rendeu uma pensão de trinta mil-réis durante sua vida. Dessa maneira, o conde procurava transmitir a mensagem aos povos das Minas de que para os bons era-lhes reservado como prêmio mercês, e para os maus, o castigo (ANASTASIA, 1998; DISCURSO, 1994; SC-04, fls. 855-858). Findada a revolta, no dia 20 de julho de 1720, o governador enviou uma carta a Dr. Martinho Vieira comunicando-o da prisão dos líderes do motim, bem como do castigo exemplar aplicado a Filipe dos Santos. Logo, convocou-o a reassumir o cargo de ouvidor da comarca, do qual fora expulso pelos revoltosos dias antes, todavia, impôs como condições a sua volta, que o mesmo assumisse uma postura diferente da que apresentava anteriormente, passando a agir de acordo com a lei e a justiça, revestido de prudência no trato com as gentes das Minas. Disse o conde, em carta enviada ao rei: “para hir restituindo as couzas ao seu antigo estado avizei já ao Doutor Martinho Vieira que viesse ocupar o seu lugar, porque espero que o que lhe sicedeo [sucedeu] lhe sirva de emenda as suas ligeirezas (sic.)”. Advertia-o, nesse tocante, de que tais povos, para ele, possuíam natureza insubmissa e indômita, avessa à ordem e autoridade. Daí a necessidade da cautela, como meio de evitar novas desordens (SC-11, fl. 248v; SC-04, fl. 855-858). Ao rei de Portugal, Assumar teve o cuidado de ressaltar que tudo foi feito para que o fim dos motins ocorresse de forma pacífica, mas que, por rebeldia e resistência dos sublevados, o castigo fazia-se necessário como o único meio de pôr fim àquelas agitações e sossegar, por definitivo, as Minas. E, dessa forma, justificou-se também o fim trágico a que levou Filipe dos Santos. O governador assim sintetizou o desenrolar dos acontecimentos: Abriu-se em Vila Rica aquela boca da sublevação, que em dano dos moradores continuou aberta tantos dias. Que meios não tentou? Que diligências não fez por tapá-la o Conde? Porém, cada vez maiores as ruínas, e Filipe dos Santos mais solto: lançou-lhe prata dos editais, lançou-lhe o ouro dos perdões, a nada disto o bruto se movia, e não se satisfez nem cerrou a sublevação a boca menos que com o sacrifício da sua vida. (...) E veja-se como este merecido castigo de Filipe dos Santos, e justa queima do Morro fez um tal efeito, que imediatamente se afogaram os motins, e cessaram por toda a parte as perturbações, trocando-se o furor em brandura, a ousadia em rendimento, a violência em sujeição (DISCURSO, 1994, p. 138-139). A queima do Morro de Ouro Podre tinha um significado importantíssimo, já que para o conde este era um local que estava sob o domínio de Pascoal da Silva Guimarães 93 e seus sequazes, e de onde geralmente vinham os mascarados e seus negros, para aterrorizar Vila Rica. A destruição do Morro simbolizava, portanto, a vitória de Assumar e da ordem e autoridade públicas contra os desmandos e tumultos liderados pelos poderosos locais que lá moravam. O poder de Pascoal da Silva era tão forte nessa povoação que só ele e as pessoas próximas dele poderiam ter lojas e vendas nessa área, “em dano de toda a Vila e seus comerciantes, que várias vezes representaram ao conde esta sem-razão”. Além disso, era-lhe atribuído o acobertamento de indivíduos delituosos – ladrões, maus pagadores e assassinos – que para lá iam a fim de escapar à justiça. Os próprios oficiais incumbidos de aplicar à lei receavam entrar no Morro de Ouro Podre por temerem a reação de Pascoal. Os moradores das Minas queixavam-se também deste local ser refúgio de negros fugidos, que se escondiam dos seus senhores para não pagarem os jornais,41 já que todo o ouro que achavam ficava nas vendas. Estas funcionavam ainda como ponto de prostituição, visto que se expunham “negras gentis para mais pronta saída, fácil consumo dos seus efeitos, e segura atração dos negros, que até para as suas obscenidades ali achavam asseadas camas” (DISCURSO, 1994, p. 73). No dia 17 de julho de 1720, em virtude dos graves motins provocados pelos rebeldes do Morro de Ouro Podre, Assumar lançou um edital no qual declarava que toda pessoa que tivesse casas ou vendas nesta localidade deveria se desfazer delas, no prazo máximo de quinze dias, a contar da data de publicação do edital. Advertia-lhes, ainda, para virem morar em Vila Rica ou em qualquer outro lugar que não fosse o referido morro, pois este local seria destruído. Contudo, houve várias queixas da parte dos moradores do morro, o qual era considerado o palco da origem de todas as perturbações, alterações e prejuízos para o governo, além de abrigar os principais opositores do conde e ser um local inacessível à justiça oficial. Depois de ouvidas e consideradas as queixas, e realizada uma “madura reflexão”, o conde achou por bem rever a decisão anterior de despovoá-lo, sob a alegação de que “os inocentes não [fossem] castigados pelos culpados”, antes, fossem favorecidos e amparados por serem fiéis e leais vassalos de Sua Majestade. Por fim, o governador mandou publicar outro edital, o de 12 de agosto de 1720, em que coibia apenas a permanência dos “oficiais mecânicos” no local, que 41 “Valor prédefinido que o escravo dedicado a atividades que importem algum rendimento, como comércio e serviços urbanos, deve garantir a seu proprietário, diária ou semanalmente; quantia paga por um dia de trabalho” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 104). 94 exerciam atividades comerciais ligadas às vendas e lojas, cujas atividades foram proibidas (SC 11, fls. 291v). Segundo Assumar, a razão que permeou a participação de Pascoal da Silva Guimarães na liderança do motim deveu-se a seu endividamento em torno de mais de trinta arrobas de ouro. Este temia que o ouvidor Martinho Vieira, responsável por aplicar a justiça nas Minas, e que não tinha o menor respeito pelos homens poderosos da região, fizesse-lhe pagar o que devia aos seus credores. Outros líderes, Sebastião da Veiga Cabral, Sebastião Carlos, Pedro da Rocha Gandavo e outras trinta ou quarenta pessoas de menor influência, que participaram do movimento, encontravam-se sobre as mesmas condições: arruinados e endividados. Não dispondo de meios para honrar suas dívidas, Pascoal liderou os revoltosos com a intenção de matar o ouvidor da comarca e de expulsar o conde e demais ministros do rei de Vila Rica. Na opinião do governador, em função do grave delito praticado pelos envolvidos, a piedade já não era mais uma opção, somente o rigor poderia pôr fim à sublevação (DISCURSO, 1994, p. 71-72). Diante desse quadro de tumultos, a estratégia adotada por Assumar consistiu na aplicação do castigo exemplar, tendo em vista que mesmo depois de concordar com as propostas dos amotinados e de conceder-lhes o perdão, a rebeldia e as agitações populares permaneceram. E embora presos os cabeças, não foi o bastante para que cessassem os motins. Além disso, para os líderes da revolta não importava o atendimento das propostas apresentadas, pois o que realmente queriam era impugnar as ordens reais e expulsar o governador e os ministros do rei das Minas, bem como edificar uma República neste estado, segundo os argumentos defendidos pelo conde. Desse modo, a fim de se estabelecer a ordem natural das coisas, somente uma ação militar rápida e severa poderia pôr fim aos motins, caso contrário, não haveria mais remédio para esse dano, “porque só um castigo repentino equivale e supre a debilidade e falta de forças” (DISCURSO, 1994, p. 162). O governador ressaltava, igualmente, que a força do rei de Portugal estava no seu poder de castigar aqueles que atentassem contra sua ordem. Ao monarca não bastava a reputação de rei amoroso e benevolente, havia também que ser visto como um rei severo e castigador, pois só assim se intimidaria e amedrontaria os vassalos infiéis e desordeiros, e se faria prevalecerem as leis e a autoridade real. A razão por que os povos obedeciam aos poderosos e não aos ministros de El-Rei “era porque via[m] que em 95 poder dos tais estavam as leis, os direitos, as sentenças, a paz e a guerra, não se isentando nem a jurisdição eclesiástica de seu poder”, e que eles eram favorecidos com o perdão real, mesmo quando cometiam os piores delitos, pareciam estar seguros de que seus insultos não lhes renderiam qualquer tipo de castigo. Por isso, eram vistos pelos povos como os príncipes das Minas, “porque isso é ser príncipe não viver sujeito ao castigo”. Para o conde, as certezas do perdão eram o que oportunizavam a ocorrência dos sucessivos motins mineiros, e somente com ações enérgicas e rigorosas é que se fazia cumprir as leis, já que os moradores das Minas só queriam leis ao seu gosto. “Ainda os mais sisudos querem que a lei seja conforme eles vivem, e não querem viver eles conforme à lei”, disse Assumar. Além do mais, questiona o amor e a fidelidade de alguns homens poderosos da região, haja vista sua participação clara na liderança do motim de 1720. Para ele, somente o castigo exemplar poderia findar a revolta e salvar o governo, nestas terras tão distantes do reino lusitano. Não havia sequer tempo para esperar ou para fazer consultas aos ouvidores a respeito das resoluções a tomar contra os revoltosos. O perigo era iminente, a prontidão necessária e o castigo única opção e a melhor solução para a ocasião (DISCURSO, 1994, p. 68 e p.156). Segundo Maria Verônica Campos, a rápida repressão dos motins não seguiu os trâmites legais. Muitas vezes, a devassa era realizada depois de já terem sido aplicadas as punições, prisões, confisco e degredo. Ou seja, punia-se primeiro e se investigava depois. A autora aponta a atitude do conde de Assumar como sendo ilegítima para os seus pares da corte, tendo em vista que ignorava o mister judicial, passando, de certo modo, sobre todas as convenções e até hierarquias previamente instituídas nos processos de aplicação da lei, argumento que pode se apoiar no próprio esforço empreendido pelo conde em se justificar perante o rei. Na lógica invertida por Assumar, “a devassa deveria ser conduzida de forma a referendar as atitudes tomadas”. Para Marcos Aurélio de Paula Pereira, contudo, a prática de impor a lei conforme a circunstância era mais comum do que se pensa. O autor afirma que a aplicação da justiça no governo do conde de Assumar “só pode ser analisada a partir da ponderação do que era – na prática e no cotidiano e não, apenas, no discurso jurídico – fazer justiça, tendo por referência a política do rei que se servia e se representava” (CAMPOS, 2002, p. 253; PEREIRA, 2009, p.62). 96 Em carta dirigida ao secretário de estado Diogo de Mendonça, em 14 de dezembro de 1720, Assumar questionou os mecanismos judiciais e a brandura das leis de então para com os amotinados, que sempre eram perdoados quando cometiam delitos e crimes. Destarte, ele pareceu sugerir ao rei de Portugal uma mudança na abordagem dos amotinados, já que considerava que nem sempre as leis gerais do rei, que apregoavam a cautela e a prudência no trato com a elite local, funcionariam de forma satisfatória, havendo, pois, que adotar medidas mais severas, de acordo com o “clima da região”, com punições exemplares, visando a intimidar e amedrontar os envolvidos nos levantes. Nesta correspondência, já findado o motim e punidos os envolvidos, percebese que o governador buscou justificar suas ações, consideradas demasiadamente rigorosas pelos compatriotas de Portugal, por se tratarem, os réus, de homens brancos e portugueses, que gozavam de um status diferenciado, em relação aos demais agentes sociais (SC 13, fls. 11-11v-12). Para Diogo de Vasconcelos, a reação do conde aos revoltosos de 1720 se deu com exemplos pavorosos, desde a ordem para que incendiasse as casas dos líderes, até a morte de Filipe dos Santos, sem julgamento prévio; este último foi considerado por Vasconcelos o herói da revolta.42 Obrigado a se justificar perante os seus conterrâneos e o rei de Portugal, escandalizados com o desfecho dos acontecimentos que se deram nas Minas, o governador D. Pedro de Almeida argumentou em sua defesa que os cabeças da revolta de 1720 tinham a clara intenção de formar uma república neste governo, expulsando os representantes da Coroa das Minas, e não permitindo que outros viessem a governar a região. Para Vasconcelos, a ideia de que os revoltosos de Vila Rica tinham a intenção de instalar uma república nas Minas não passava de uma invenção do conde, como forma de se habilitar perante o rei e de se justificar pelos castigos enérgicos contra 42 “Filipe dos Santos Freire foi o único insurgente executado na revolta de Vila Rica de 1720, a despeito de ter desempenhado papel menor na urdidura do movimento sedicioso. Era reinol e desenvolvia atividades comerciais de pequeno porte na região de Vila Rica. Segundo Diogo de Vasconcelos, foi o “chefe e tribuno da plebe, único sedicioso verdadeiramente popular” e adepto de resoluções extremas. A maior relevância de sua biografia parece estar relacionada à forma como a historiografia brasileira do século XIX e início do XX tem considerado sua participação na revolta de 1720. Laura de Mello e Souza analisou como os membros do IHGB o classificaram como protomártir da independência do Brasil, traçando um paralelo entre a revolta de 1720 e a Inconfidência Mineira de 1789. A historiadora lembra, porém, que Filipe dos Santos não foi o principal protagonista da sublevação de 1720 que, aliás, sequer cogitou da independência de Minas Gerais. A revolta de Vila Rica de 1720 tinha como ânimo específico a oposição à criação das Casas de Fundição nas Minas Gerais, tarefa que a Coroa atribuíra ao recémchegado governador, conde de Assumar. Tratou-se de um movimento sedicioso organizado pelos grandes potentados locais, incluindo o poderoso mestre-de-campo Pascoal da Silva Guimarães, Sebastião da Veiga Cabral e Manuel Nunes Viana” (VAINFAS, 2001, p. 235). 97 os sediciosos, visto que nem em documentos escritos, nem em testemunhos verbais, invocou-se atribuir aos revoltosos de Vila Rica a precedência em tal ideia. Assim: Conservando viva a memória dessa revolta, nem de leve ao menos ligou-se até o presente à concepção da república. Pelo contrário, no curto espaço de duas gerações, consentiu, que os direitos dessa primogenitura pertença de modo inequívoco aos inconfidentes de 1789 (VASCONCELOS, 1999, p. 209). Na análise de João Pinto Furtado, por seu turno, a reação violenta do conde de Assumar ao motim de 1720 pode ser explicada pelo fato de que os revoltosos eram vistos como insubmissos, desleais e perigosos, e o uso da autoridade metropolitana e da força, naquele contexto, foi tida como um recurso político necessário e imprescindível, uma vez que só por meio da autoridade se anulava e minimizava a insubmissão popular nas Minas (FURTADO, 2005). Ao analisar o Discurso Histórico e Político sobre a Sublevação que nas Minas Houve no ano de 1720, Anastasia defendeu o duplo caráter da sedição. Esse movimento estava relacionado à briga pelo poder político nas Minas, por parte dos líderes do motim, tendo como principal interesse assumir o poder político e acabar com a autoridade do governador das Minas e dos ministros da comarca. Por fim, a sedição estaria relacionada também ao descontentamento dos mineradores com o arrocho fiscal sobre a mineração e, mais diretamente, com a instalação das Casas de Fundição, vistas por eles como uma forma de cobrança injusta. Desta forma, para Anastasia, o Motim de 1720 é híbrido, por apresentar tanto características de um movimento reativo de defesa dos direitos costumeiros, ou seja, os povos tinham o direito natural de se levantar contra maus governantes que os oprimiam com a elevada cobrança de impostos, quanto de um movimento desenvolvido em contexto de soberania fragmentada (ANASTASIA, 1998). Segundo Maria Verônica Campos, por sua vez, os poderosos locais – comerciantes e mineradores – compunham uma rede clientelar (ou de alianças) composta por parentes, aliados e pessoas com interesses comuns, que balizavam suas relações na troca de favores.43 Assim: “Os potentados de Minas conseguiram construir redes de clientela que ultrapassavam os distritos mineradores e o sertão, e tinham 43 Para melhor compreensão da rede clientelar de Pascoal da Silva Guimarães e de outros revoltosos de 1720, consultar KELMER MATIAS, Carlos Leonardo. Jogos de interesse e redes clientelares na revolta mineira de Vila Rica (1709-1736). Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, 2005. 98 ramificações em Salvador e na Corte”. A autora defende, desse modo, que Pascoal da Silva Guimarães exercia a liderança de uma dessas redes, a qual congregava vários outros elementos poderosos dentro da sociedade das Minas e de outras regiões. Portanto, era um homem que dispunha de grande poder político, econômico e de mobilização de bandos armados, fatores indispensáveis à política do favorecimento que ele empreendia, a qual lhe garantia seu mando e sua influência. Esta rede clientelar, para a autora, teria canalizado as insatisfações gerais em torno da política do governador conde de Assumar, tida por eles como contrária aos seus interesses, já que buscava fortalecer o poder central, retirando dos poderosos locais a possibilidade de nomeação de pessoas para cargos e funções políticas, de administrar rendas e de aplicar a justiça, em suma, tirando-lhes a influência política e social de que gozavam. Daí a participação destes nos motins de 1720 (CAMPOS, 2002, p, 251). Kelmer Mathias também enumerou vinte sete indivíduos que atuaram na Revolta de Vila Rica no ano de 1720, dentre estes, Manuel Mosqueira da Rosa – que intentava reaver o seu antigo cargo de ouvidor da comarca de Vila Rica, então sob a responsabilidade de Martinho Vieira – Sebastião da Veiga Cabral – que almejava o posto de Governador da capitania de Minas do Ouro – e Pascoal da Silva Guimarães, que compartilhava com os anseios de ambos, pois passaria a contar com dois aliados seus ocupando os postos da governança mais importantes da capitania. Sendo assim, para o autor, a Revolta de Vila Rica não reivindicava, em sua essência, benesses para a população em geral. Os principais líderes da revolta escondidos através de postulados de cunho comum – no caso, a não instalação das Casas de Fundição – tencionavam, na verdade, a obtenção e a realização de seus interesses particulares, sendo o principal deles o exercício do poder político na região das Minas (KELMER MATHIAS, 2005). Ainda segundo Kelmer Mathias, o governador D. Pedro de Almeida manteve um canal aberto de negociação com os revoltosos, chegando a conceder o perdão aos amotinados e a atender as suas solicitações. Porém, os cabeças da revolta não souberam canalizar esta ação em proveito próprio, prosseguindo com os motins na ambição de tomarem o poder político da região. Na opinião do autor, o conde demonstrou ser um estrategista melhor, na medida em que ao negociar com os revoltosos e acatar suas reinvindicações, desestruturou a base que dava sustentabilidade ao movimento, ou seja, 99 o povo; além do mais, conquistou o apoio de outros homens poderosos das Minas, apoio valiosíssimo e necessário. Para o autor: Os governadores procuravam estreitar laços com os homens possuidores de condições de lhes garantir sua governabilidade, ou seja, com homens proprietários de negros e/ou índios flecheiros e capazes de armá-los e os dispor aos interesses do Real Serviço, recebendo, evidentemente, contrapartidas em retribuição por terem havido mister (KELMER MATHIAS, 2005, p. 97). Nesse sentido, a contenção do Motim de Vila Rica não ficou apenas a cargo do governador e suas tropas de dragões. Ele contou com o auxílio das milícias de escravos de alguns homens poderosos que, não estando envolvidos nos levantes, rapidamente atenderam ao chamado do conde de Assumar, vindo acudi-lo no desmonte da desordem que tomara a vila. Foram os casos, por exemplo, de Manoel Cazado, Dr. Joseph de Saá, Joseph Mattol, Ambrosio Caldeira Brantes, Francisco Viegas Barbosa, o capitão Pedro da Silva Chaves, Joseph Alves de Oliveira, o padre Francisco Barreto, o capitão-mor Pedro de Morais Raposo e de Vital Cazado Rotier. A este último, o conde escreveu uma carta em 06 de agosto de 1720 agradecendo-lhe a boa vontade e o valoroso apoio dado no desbaratamento do motim. Ele teria marchado com seus aliados para Vila Rica, lutando contra os revoltosos e dando grande mostra do zelo e lealdade que tinha para com a causa do rei. Todavia, Assumar não perdeu a oportunidade de ressaltar que tal apoio era obrigação de todos os bons vassalos, mas que em virtude do grande risco que esta perturbação causou à ordem pública, havia que “louvar todos aquelles que desprezando as sugestões com que os procuravão induzir pella parte contraria”, distinguindo-os entre os demais, pela defesa desta comarca. Assim, recomendou os nomes de Vital e dos demais citados ao rei de Portugal (SC 11, fl. 254). Um caso exemplar foi o do potentado Bento Ferraz de Lima para quem, através de uma certidão oficial, o conde solicitava ao rei a concessão de “todas as honras e mercê que Sua Magestade que Deos o Guarde for servido fazer lhe (sic.)”, com a justificativa de que aquele teria despendido vultosos gastos e, com significativo empenho e obediência às ordens do governador, desempenhado papel de grande ajuda à manutenção da ordem local. Partindo para Vila do Carmo com os seus negros armados, na companhia do governador, Bento Ferraz teria combatido e prendido alguns dos amotinados, os quais ele, por meio da doação de quatro escravos, ajudou a conduzir até 100 a prisão, no Rio de Janeiro. Através da certidão, portanto, o conde de Assumar atestava a lealdade do vassalo, expondo os fatos e a participação do mesmo no desbaratamento da revolta, sempre salientando a existência de despesas materiais, bem como, o empenho pessoal no serviço do rei. Com isso estabelecia, por um lado, a relação de fidelidade e, por outro, a relação de serviço prestado, a qual assegurava ao vassalo um tipo de reconhecimento (CMM 12, fl. 6r, 6v). Outro exemplo é a certidão que atestava o louvável comportamento de Nicolau da Silva Bragança, quando do motim de 1720. No documento, o governador certificava que na ocasião do levante, ao receber as notícias do que se passava, aquele imediatamente deslocou “todos os seus escravos e camaradas bem armados” para Vila do Carmo, no intento de defendê-la dos régulos. No entanto, àquela altura, dada a concessão do perdão, o local já se encontrava pacificado. Em outra ocasião, Nicolau da Silva teria acompanhado outro potentado, José Rabello Perdigão, no desígnio de prender dois amotinados, José da Silva e Francisco Xavier, os quais, contudo, conseguiram escapar, por já terem a informação da ordem de sua captura antecipadamente. Atuou também, segundo o conde, na luta contra os homens mascarados, que aterrorizavam as vilas durante a noite, além de desempenhar a honrosa tarefa de conduzir os presos até o Rio de Janeiro. No final da certidão, o conde ressaltou que Nicolau da Silva se retirou “com todos os seus escravos todo o tempo que foi necessário para por em socego” os locais perturbados, até que, seguindo ordens do próprio governador, se retirou “para sua caza e em todo o tempo que durarão estas sublevaçoens, em que o ach[ou] sempre prompto, com aquella actividade e zello que se devia esperar de hum fiel e leal vasallo de Sua Magestade”, sem se esquecer de salientar a “grande despeza que fez da sua fazenda com a muita gente que tinha e caristia do povo”, ao que solicitava, então, as honras que, segundo o relato de sua conduta, viesse, aos olhos do rei, a merecer (AHU/MG, cx. 02, doc. 92). Mesmo algum tempo depois da ocorrência do motim, o rei ainda concedia mercês aos vassalos que se distinguiram no zelo do governo. Em uma carta régia, datada de 26 de março de 1721, o rei de Portugal saudava o governador das Minas, na época Dom Lourenço de Almeida, e afirmava “ser justo” que aqueles que se apresentaram fiéis à Coroa tomassem conhecimento da sua satisfação com o modo como agiram. Outrossim, ordenava que o mesmo os convocasse, depois de tomar as informações 101 necessárias e com assistência dos oficiais da Câmara, Ministros e Oficiais de Justiça, para lhes fazer um agradecimento formal, em nome do rei. Além disso, ordenava o monarca, que se declarasse que “ficão na minha lembrança para lhes fazer mercê quando se offerecer ocazião, e a cada huma dellas mandareis passar certidão para me poderem apresentar quando fizerem o seu requerimento”, solicitando, por fim, ao governador que lhe enviasse uma lista com os nomes daqueles que merecessem a demonstração de “agradecimento real”. Assim, não só galgar postos ou adquirir honrarias eram objetivos daqueles que prestavam seus serviços ao rei, mas também, em alguns casos, a confirmação de uma comenda ou do exercício de um posto já concedido pelo governador, mas ainda carente da ratificação real (SC 23, fl. 06). Como exemplo, citamos o caso do Capitão-Mor do distrito dos Currais, Sebastião Barboza Prado, que enviou requerimento ao rei solicitando a confirmação da patente que ostentava, em 10 de julho de 1722. Como resposta, foi ratificado no posto de capitão-mor, por ter “procedido com grande fidelidade e zello do serviço de El Rey Nosso Senhor, e por confiar delle que em tudo de que encarregar procederá com a mesma boa satisfação com que athé agora o tem feito”. Assim, através do reconhecimento formal, da instituição de honrarias e mercês, da distribuição de cargos e comendas, da promessa da “gratidão real” o governo conseguiu assegurar o apoio de muitos potentados da região das Minas, com o qual conseguiu desmantelar os grupos indômitos e restabelecer a ordem régia nas Minas (AHU/MG, cx. 02, doc. 52). Em face dos eventos levantados neste capítulo, cumpre enfatizar alguns aspectos importantes para a compreensão das razões alegadas pelo conde de Assumar na repressão dos motins. Primeiro, que o levante de Vila Rica deu-se em um contexto de centralização política e fiscal, sobretudo com a chegada do novo governador, fato que acirrou os ânimos dos poderosos locais que, até aquele momento, gozavam de certa liberdade e autonomia políticas na região, o que se pode mesmo observar na inquietação que as ações indesejadas do conde causaram no cenário político local, criando as circunstâncias que ensejaram as revoltas. Em segundo lugar, a partir da deflagração dos motins, o conde, por sua vez, pôs à prova a lealdade e a sujeição dos vassalos, principalmente, os poderosos locais possuidores de mercês e títulos, com os quais entrou em choque, mediante a existência de uma tradição política de resistência ao aumento dos impostos e a quaisquer medidas 102 consideradas opressivas e tirânicas. Foi a partir dessa concepção – oriunda das teorias corporativas de poder da Segunda Escolástica,44 que legitimaram as ações políticas dos restauradores de 1640 – que alguns poderosos de Vila Rica e do seu entorno buscaram validar sua rebeldia contra o governador D. Pedro de Almeida, o conde de Assumar, acusando-o de ser injusto, tirânico, e de não zelar pelo bem comum dos povos das Minas. Embora, como vimos, a elite local ambicionasse a manutenção e o fortalecimento do mando local. Devemos, também, ressaltar a atuação dos potentados que apoiaram o governador durante as agitações, os quais tiveram papel decisivo no findar do motim e receberam o devido reconhecimento real, na forma de títulos, cargos e comendas. Finalmente, deflagrados os motins, e diante do insucesso das negociações entre o conde e os revoltosos, o fim do movimento deu-se com a prisão dos principais líderes e a execução sumária de Filipe dos Santos. A aplicação dos castigos, considerados demasiadamente severos, até pelo próprio rei, trouxe embaraços ao conde, obrigando-o a se justificar; este o fez, então, defendendo que o recrudescimento das punições, mesmo sem julgamento prévio, era a única solução em face do contexto e dos interesses locais em jogo, para os quais consenso algum seria benévolo a sua máquina. Daí a aplicação do castigo, como forma de se por fim, de uma vez por todas, à revolta, bem como para servir de exemplo para que outros não viessem a cometer tal afronta ao poder público instituído. Portanto, a principal razão de Estado apresentada por Assumar, para justificar a sua ação repressiva, foi que os motins na verdade não passavam de uma farsa montada e alimentada pelos poderosos locais, visando a desestabilizar e desbaratar a estrutura política e fiscal que ele tentava implementar, além de ambicionarem ocupar a sua função, bem como de seus ministros, na administração da região das Minas. Nesse sentido, argumentou o conde, foi em defesa dos interesses de Sua Majestade que procedeu daquele modo. 44 Segundo Luiz Carlos Villalta, “as concepções corporativas de poder da Segunda Escolástica predominaram na Península Ibérica até meados do século XVII e tiveram bastante força até o século XVIII, quando ainda impregnavam a doutrinação política, constituindo-se como as premissas do pensamento político luso-brasileiro e hispano-americano. Nos domínios portugueses especificamente, nem as reformas pombalinas, nem a expulsão dos jesuítas lograram eliminá-las, com o que elas sobreviveram até o período da Independência” (VILLALTA, 1999, p. 24). 103 3º CAPÍTULO À MARGEM DA “PALAVRA OFICIAL”: A DISSIMULAÇÃO E O BOATO COMO ESTRATÉGIAS DOS AMOTINADOS A arte da dissimulação deve ser entendida como uma técnica básica de ocultar ou adiar a verdade, mas não de produzir a mentira (PÉCORA. Prefácio. In: ACCETTO, 2001, p. XX). O boato está em todos os lugares e em todas as esferas de nossa vida social. Ele é o mais antigo dos meios de comunicação de massa. Antes mesmo de existir a escrita, o ouvir-dizer era o único veículo de comunicação nas sociedades. O boato veiculava as informações, fazia e desfazia as reputações, precipitava os motins ou as guerras (KAPFERER, 1993, p. 4). 3.1 – Dissimulação e Boato: o que são? As formas sociais de intervenção política são múltiplas e variadas. De forma coletiva ou individualmente, os atores sociais buscam participar, direta e/ou indiretamente, na organização do poder e nas decisões relevantes ao contexto social a que pertencem, mesmo sendo estas em âmbito local. Em alguns casos, diante da limitação das formas institucionalizadas de participação, essas forças sociais desenvolvem mecanismos indiretos de intervenção política que, de certo modo, interferem neste campo em questão, com a pretensão de fazer pesar a seu favor o pêndulo social. Parece ter sido este o papel desempenhado pela dissimulação e pelos boatos no contexto do Motim de 1720, em Vila Rica, em que os líderes do movimento lançaram mão destes recursos copiosamente, visando a intervir no governo local. Assim, neste capítulo, analisaremos o uso da dissimulação pelos cabeças do motim como forma de omitir suas reais intenções do governador das Minas, bem como alguns boatos veiculados durante a revolta, enfatizando os efeitos causados no contexto em que apareceram e as respostas dadas pelo poder público, além de ressaltar os interesses ocultos na sua veiculação. 104 Como pensar uma teoria do que seja o boato? Primeiro, deve-se considerar o boato como uma forma de linguagem social, um movimento discursivo. Movimento porque sofre as metamorfoses produzidas pelas interações dialógicas e sociológicas. Isto é, a informação que é dada pode sofrer alterações à medida que for repassada boca a boca, ou dentro de um contexto social mais amplo. Segundo Monique Augras, o boato reflete diretamente a insegurança, a incerteza diante das informações dispostas. Nesse sentido, para a autora: A difusão dos boatos expressa as tendências inconscientes de um grupo, desde que esse grupo se encontre numa situação de insegurança, de tensão emocional, de incerteza no tocante às informações. Quanto maiores forem as tensões, em particular quando a própria sobrevivência do grupo estiver em jogo, mais facilmente aparecerão boatos e mais difícil será desfazê-los, porque serão fundamentalmente arraigados em motivos inconscientes (AUGRAS, 1970, p. 82). O sociólogo francês Jean-Bruno Renard, por sua vez, afirmou que os repertórios de boatos são variados e que não existe meio social que não possua o seu. Ou seja, o boato é um elemento discursivo presente em todos os contextos sociais, e sendo narrativas que comportam opiniões e atitudes, os boatos não se dão nem são objeto de adesão por falta de instrução ou por irracionalidade. Tem-se por conceito de boato, então, “um enunciado ou uma narrativa breve, de criação anônima, que apresenta múltiplas variantes, de conteúdo surpreendente, contada como sendo verdadeira e recente em um meio social que exprime, simbolicamente, medos e aspirações”. O boato é, desse modo, uma manifestação racional de um tipo de inquietação de cunho social, é “uma proposição ligada aos acontecimentos diários, destinada a ser aumentada, transmitida de pessoa a pessoa, habitualmente através da técnica do ouvir-dizer, sem que existam dados concretos capazes de testemunhar sua exatidão” (RENARD, 2007, p. 98; ALLPORT, Gordon W.; POSTMAN, Leo Apud BORGES, 2010, p. 40). Podem-se perceber algumas características comuns aos conceitos de boato apresentados: não existem dados concretos capazes de provar a exatidão das informações veiculadas como verdadeiras no boato; eles são baseados em dados informais, não apreciados ou verificados oficialmente; e, por último, observa-se que os boatos não são verificáveis, uma vez que a autoria é sempre desconhecida, assim como a origem. Nesse sentido, os boatos veiculados nas Minas amotinadas parecem se 105 encaixar nessa descrição, ao passo que há sempre um “mascarado”, um “negro sem nome”, um “desconhecido”, que passa a informação, que lança o boato ao povo. E o rumor sempre era direcionado a alguém, visava a desacreditá-lo, para por a sua honra à discussão, levantar suspeitas ou simplesmente para causar instabilidade política. O boato se constitui, desse modo, de “uma afirmação feita sobre uma dada informação, e tendo por objetivo aparente informar, ainda que seja de maneira ‘errônea’ (...) Porém esta afirmação não é verificada e/ou é inverificável”, é uma informação que ninguém confirma e ninguém nega, portanto, incerta. Deste modo: Não há como dizer que um boato seja verdadeiro ou que seja falso. Boato é boato. Isto não significa dizer que seu conteúdo não pareça ser uma informação factível, verossímil. Aliás, sem esta verossimilhança nenhuma pessoa o repassaria. Ninguém quer ser considerado um enunciador maluco (BORGES, 2010, p. 41). Assim, se o boato é investigado, verificado, ele conseguintemente deixa de existir, ou muda de categoria, tornando-se notícia, informação, algo dado como certo. Para Luiz Carlos Assis Iasbeck, em seu artigo intitulado Os boatos – além e aquém da notícia, os boatos, os rumores e os falatórios são: Fenômenos comunicativos que precedem, parodiam, subvertem e realimentam a novidade da notícia. Eles reacendem o interesse e a motivação que tendem a arrefecer-se quando revelado o mistério ou quando autorizada a versão oficial acerca de um fato esperado ou acontecido. O boato também cria fatos o que o torna foco das atenções e da vigilância da ordem pública, principal suspeita e alvo preferido dessa forma subtextual de realidade (IASBECK, 2003, s/p). Apesar de o boato dirigir-se a situações concretas, na maioria das vezes assume um caráter fantasioso, o que o torna não verificável, não comprovável, incerto. Tendo como única referência sua própria narrativa, e sendo quase sempre de autoria desconhecida, o boato perpetua-se em um ambiente de dúvidas e inquietude, cenário desenvolvido a partir da sua própria aparição. Assim, os boatos devem chamar a atenção de um grande número de pessoas, responsáveis pela propagação e, ao mesmo tempo, alvo, já que o seu objetivo é, sem dúvida, causar instabilidade e inconstância em um contexto social dado. Outra característica importante do boato é sua perecibilidade, isto é, o seu caráter efêmero, passageiro, além disso, é disseminado majoritariamente através 106 da oralidade, “mas isso não impede que estejam impregnados pelas marcas do texto escrito” (IASBECK, 2003, s/p). De onde vêm os boatos? Para Iasbeck, é um equívoco tentar descobrir a origem de um boato, sobretudo, tentar descobrir sua autoria, já que ele ganha força no desconhecimento daquele que o lançou, o que faz com que alcance a multidão e seja retransmitido por múltiplas vozes, às vezes até dissonantes. Sendo assim, para o autor, “sua constituição é coletiva e difusa, na medida em que cresce e corre com contribuições individuais, que se diluem nas narrativas subsequentes, mas que lubrificam o canal de passagem”. Entretanto, “se nos é difícil – senão impossível – localizar a origem de um boato, é possível, sem grande esforço, pesquisar o ambiente no qual surgiu e para o qual produz efeitos”. Deste modo, “nenhum boato surge em lugares nos quais não possa despertar ou inflamar interesses”, tornando-se indicioso da existência de querelas ou disputas políticas e sociais. Figura-se, portanto, ainda mais improvável identificar as origens ou o criador dos boatos, quando estes se dão em tal contexto. Do contrário, caso se encontre ciente da origem ou do(s) mentor(es) do boato, o grupo social alvo não o propagará com efeito, já que a divulgação deste não sortirá dúvidas ou incertezas, ao passo que se tratará de informação politicamente engajada, com significação e intencionalidade de conhecimento geral. Nesse sentido, para Iasbeck: Se o mapeamento do processo de propagação de um boato pode nos levar a entender forças que movem os interesses de determinado grupo, insinuando certezas sobre o nascedouro, com certeza nos desvia da rota multiplicadora que faz com que ele venha a ganhar efeitos (IASBECK, 2003, s/p). Assim, todo boato tem um fundamento, uma motivação implícita. O sentimento de transgressão e a aura de mistério que o envolvem tornam-no sedutor, como “versões não autorizadas” da realidade. É um símbolo que veicula um universo de possibilidades interpretativas para uma situação posta, desejada por alguém para alguém com alguma intenção. “O boato dirige-se a alguém porque possui motivação suficiente para chegar ao público que pretende atingir”. Neste sentido, ele “cria na mente da pessoa que o recebe uma outra versão equivalente ou mais desenvolvida, que seguirá em frente alterada, adulterada e adensada pelas contribuições dos interpretantes anteriores”. Assim, o boato representa uma narrativa insinuada por uma voz anônima, que não 107 assume a responsabilidade por tal informação e seus efeitos, mas que visa a englobar um número elevado de pessoas em torno de uma causa oculta (IASBECK, 2003, s/p). De acordo com Jean-Noel Kapferer, o boato é um fenômeno social pouco estudado. No entanto, pode-se afirmar sobre ele que se trata de um tipo de linguagem informativa popular, que segue uma fórmula simples: Importância (do assunto) X Ambiguidade (controvérsia) = Boato, isto é, quanto maior for a relevância social da questão colocada pelo boato, tanto maior será a sua divulgação e o seu impacto dentro dos grupos sociais atingidos. Para Kapferer, boato é “a emergência e a circulação no corpo social de informações que não foram ainda confirmadas publicamente pelas fontes oficiais, ou que não foram desmentidas por estas”, tornando-se, então, um fenômeno tanto sociológico quando político. E continua, afirmando que o boato é: Uma relação com autoridade desvendando segredos, sugerindo hipóteses, ele obriga as autoridades a falar, além disso, ele põe em cheque o estatuto de única fonte autorizada a falar (KAPFERER, 1993, p. 16). Consiste, então, basicamente em uma informação paralela, muitas vezes oposta ao discurso oficial e, neste sentido, se transforma em uma fala que enseja voz a um “contra-poder”. Para o autor, “não há política sem boatos. A essência do boato (...) é de ser uma palavra à margem da palavra oficial. Ela é um contra-poder. É natural, portanto, que os boatos proliferem no âmbito da conquista e da gestão do poder”. As vantagens do boato, no que se refere a uma disputa política, dão-se em função de que o interlocutor inicial permanece sempre oculto, o que o protege de qualquer tipo de retaliação oficial. Deste modo, não há responsáveis diretos a serem acusados, embora muitos estejam a par da notícia. “A fonte permanece oculta, inacessível e misteriosa” (KAPFERER, 1993, p.196). Vale diferenciar o conceito de boato de outros que se assemelham, mas que possuem natureza e abrangência diversas. Pode-se, por exemplo, ressaltar as diferenças entre este gênero de comunicação e o fuxico ou mexerico, a fofoca, o rumor e o ouvirdizer. O fuxico, ou mexerico, refere-se a histórias caluniosas, sórdidas, ofensivas, geralmente contendo um juízo de valor negativo, que deprecia a honra de uma pessoa. A fofoca, menos perversa que o gênero anterior, infunde no meio social com sabor o falar da vida alheia, “relata as chances e as desgraças, sejam elas pequenas ou grandes que nos cercam (...), ela é fugaz e deve ser substituída por outra ainda mais saborosa”, o 108 mais rapidamente possível. O rumor, contrariamente ao boato, é mais restrito, circunscreve-se a um espaço reduzido, a um número de envolvidos limitado e produz efeitos quase insignificantes ao contexto social. Finalmente, o ouvir-dizer abrange uma série de fenômenos diferenciados: “as conversas entre duas pessoas, as discussões de grupo, as confidências, as disputas, etc.” (KAPFERER, 1993, p. 18-19). Enfim, para que o boato seja efetivo, é necessário que ele pareça possível, plausível àqueles que o ouvem, assim: “é pelo fato de terem sido apreendidos como verossímeis que os boatos podem se desenvolver. Todo boato é rigorosamente realista no interior do grupo em circula”. À medida que o boato aumenta, ele se torna mais convincente; quanto maior o número de pessoas independentes que partilham a mesma informação, mais convincente esta se tornará, pois, “na verdade, a convicção se forma a partir da recepção da mesma informação de várias pessoas: se várias pessoas independentes dizem a mesma coisa, logo isto é verdadeiro”, abalando, inclusive, as mais íntimas convicções (KAPFERER, 1993, p. 65). A importância do boato e do mexerico, como elementos de comunicação de massa e causadores de grande comoção social, já era reconhecida e considerada pela Monarquia Portuguesa ao menos desde o século XVII, como se pode notar no livro V, item 85, das Ordenações Filipinas – conjunto de dispositivos legais que regulavam a lei portuguesa, promulgado pelo monarca Filipe I, em 1603, vigorando no Brasil até 1830, cujo texto está transcrito abaixo: Dos Mexeriqueiros Por se evitarem os inconvenientes que dos mexericos nascem, mandamos que se alguma pessoa disser à outra que outrem disse mal dele, haja a mesma pena, assim cível como crime que merecia, se ele mesmo lhe dissesse aquelas palavras que diz que o outro terceiro dele disse, posto que queira provar que o outro o disse. (LARA, 1999, p. 267) Ou seja, o código infligia a mesma punição que era prevista àquele que fizesse os mexericos aos que os espalhassem. Com isso, vislumbrava proibir e desestimular a veiculação dos mesmos que, segundo o próprio texto, resultavam em inconvenientes para a vida social. Assim, dada a importância a que era elevado o mexerico no código, pode-se concluir que, dada a semelhança, o boato também causava inoportunos ao poder público, tendo em vista o rigor da punição que era aplicada aos mexeriqueiros. 109 A difusão de boatos sediciosos estava presente também em muitos dos conflitos políticos e sociais estabelecidos na Capitania de Minas Gerais, durante o século XVIII, e foi causa de grande preocupação das autoridades representantes do poder régio, que viam na sua propagação um dos motivos das inquietações e distúrbios populares ocorridos na região. Para Adriana Romeiro, a boataria foi um mecanismo determinante para a vitória dos reinóis sobre os paulistas durante o levante de 1708, já que considerava os últimos mais capacitados na arte bélica. Neste sentido, a autora afirma que: O campo de batalha está longe de explicar suficientemente a derrota dos paulistas frente aos reinóis. Um fato invisível e insidioso, mas tão eficiente quanto um arsenal bélico, teve aí um papel central. Trata-se do boato, decisivo no curso da Guerra dos Emboabas, a ponto de alterar radicalmente o jogo de forças entre um e outro partido (ROMEIRO, 2008, p.80). De acordo com a “mecânica do boato”, explicitada por Romeiro, ele “desencadeava o medo, o medo levava à ação, a ação efetiva a revolta e o motim”, assim, ele sugestionava os povos, exercendo um mecanismo de (des)controle social. Esse mecanismo era agravado, no caso da região das Minas, pelas características demográficas e territoriais, marcadas por uma população esparsa, localizada em povoados distantes e com pouca comunicação entre si. A tática emboaba, então, foi espalhar os boatos de que os paulistas estavam preparando um terrível massacre a todos os forasteiros da região e de que suas tropas eram muito maiores do que efetivamente eram. Com essas falsas notícias, conseguiram arregimentar um grande número de reinóis a sua causa, o que foi determinante para a vitória (ROMEIRO, 2008, p. 88). Podemos encontrar outros exemplos ao analisar alguns documentos produzidos pelo governador D. Pedro de Almeida, também anteriores ao ano de 1720, nos quais ele já se queixava da publicação de boatos maliciosos, que maculavam a sua imagem perante o povo. Em 30 de novembro de 1718, por exemplo, em carta enviada ao governador da Bahia, Sancho de Faro e Sousa, conde de Vimieiro, Assumar alertava sobre a má conduta de Manuel Nunes Viana45 e Manuel Rodrigues Soares, acusando-os de divulgarem o boato de que ele “queria impor des por cento alem dos quintos, so afim 45 “O conde de Assumar, governador de Minas entre 1717 e 1721, assim definiu Viana: Não saiu do inferno maior peste, nem Deus deu aos sertões maior castigo, lamentando ainda que seus crimes não tivessem punição alguma” (VAINFAS, 2001, p. 372). 110 de mover o povo que estava, quieto e sossegado”. Em outro episódio, ocorrido aos 25 de fevereiro de 1719, o governador emitiu uma ordem ao tenente general Manuel da Costa Fragoso para que este entrasse em contato com José Simões Rosa, provedor dos quintos, visando a averiguar se “andam publicando vozes contra o serviço de Sua Magestade e quietação dos povos” e, caso interceptasse algum desses sediciosos, imediatamente o conduzisse à sua presença, para que pudesse ser aplicada a devida punição (SC 11, fl. 82v; SC 11, fl. 114). Sendo estes apenas alguns exemplos de como a existência de “vozes sediciosas” podia causar incômodo, ou até mesmo mudar os rumos de um conflito, “o ardil do boato seria definitivamente incorporado ao repertório político das Minas, reaparecendo em inúmeras revoltas e motins que ali tiveram lugar ao longo do século XVIII” (ROMEIRO, 2008, p. 88). É nesse sentido que este estudo analisa o impacto dos boatos na configuração política e social de Vila Rica, no ano de 1720, quando pulularam falas não oficiais e, quase sempre, maledicentes e direcionadas contra o governador conde de Assumar. Portanto, adiante analisaremos alguns boatos veiculados durante a Revolta de Vila Rica, enfatizando os efeitos causados no contexto em que apareceram e as respostas dadas pelo poder público, bem como a significação e interesses ocultos através de sua veiculação. Antes, porém, urge definir o conceito de dissimulação, seu alcance e seus limites, no que concerne a sua utilização como instrumento de ação política, bem como a sua aplicabilidade no cenário estudado. Torquato Accetto46 conceituou dissimulação como sendo a “habilidade de não fazer ver as coisas como são. Simula-se aquilo que não é, dissimula-se aquilo que é”. Desse modo, a simulação, para o autor, traz consigo uma conotação negativa, ao passo que simular aquilo que não se é apresenta uma tentativa de ludibriar, enganar os outros, agindo desonestamente. Por outro lado, dissimular o que se é não significa agir desonestamente, já que se trata apenas de omitir um fato ou informação, ao que não se trata como ato enganador, como ato pérfido. Para o autor, a maior demonstração de 46 “Existem poucas informações sobre a vida de Torquato Accetto; sabe-se que viveu em Nápoles na primeira metade do século XVII e que nasceu provavelmente em Trani, na Púglia, por volta de 1590. Foi secretário dos duques de Andria, Antonio e Fabrizio Carafa. (...) Publicou em Nápoles aquela que seria sua obra prima: Della Dissimulazione onesta. A obra permaneceria praticamente desconhecida até ser descoberta por Benedetro Croce, em 1928. Neste ensaio, a chamada “literatura de secretários” – a literatura produzida pelos secretários dos nobres da época barroca – encontra sua expressão mais perfeita e mais elíptica, na esteira da cultura do cortesão descrita por Baldassare Castiglione” (ACCETTO, 2001, p. XLVII-XLVIII). 111 esperteza que um indivíduo pode dar é manter a aparência de que não sabe, dissimular a ignorância, levando o inimigo a acreditar que está sendo bem sucedido em seu ardil. Assim, inspirando a falsa crença de que cai na teia do oponente, o homem que dissimula é capaz de prever seus movimentos e traçar uma estratégia surpreendente, já que, para Accetto, “será mais astuto quem mais souber manter a aparência de tolo, pois, mostrando acreditar em quem quer nos enganar, pode-se fazer com que ele creia em nosso modo” (ACCETTO, 2001, p. 27 e 42). Desse modo, dissimular tornava-se algo legítimo diante dos padrões morais de honestidade e da prudência no trato político. O uso da dissimulação como instrumento e estratégia de ação, no entanto, não era novidade. Já existiam tratados, sobretudo oriundos dos principados da Itália préunificação, entre os séculos XVI e XVII, nos quais já se apresentava tal artifício como uma das “qualidades” indispensáveis aos homens do “Estado”, ou mesmo àqueles que pretendessem obter sucesso na vida política. Muitos manuais foram produzidos, entre os quais citamos como exemplo característico, além do Da Dissimulação Honesta de Torquato Accetto, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel,47 obra escrita com o intuito de descortinar as “regras de ouro” do jogo político, com vistas a orientar os seus possuidores. Maquiavel, especialmente no capítulo XVIII de O Príncipe, procurou traçar o perfil que o príncipe deveria aparentar, afirmando que nem sempre seria vantajoso ao projeto da conquista ou da manutenção do poder ser de todo honesto, ou alimentar estreita congruência entre a palavra dada e a ação desencadeada, sob pena de incorrer no insucesso. Ao asseverar que “existem dois modos de combater: um com as leis, outro com a força”, sendo aquele próprio dos homens e este próprio dos animais, e que diante da insuficiência do primeiro conviria ao homem recorrer ao segundo, Maquiavel estabeleceu que, para agir de modo estratégico e bem sucedido, é necessário saber lançar mão dos dois estratagemas, tanto o da lei, aquilo que é permitido entre os 47 “Niccolò Machiavelli nasceu no dia 03 de maio de 1469, filho de Bernardo Machiavelli, advogado, e de Bartolomea de’ Nelli, no bairro de Santa Trinità, cidade de Florença” (MACHIAVELLI, 2006, p. 11). “Discípulo do literato Marcelo Virgílio Adriani, com este começou a instruir-se sobre os negócios públicos precisamente em 1494, quando Carlos VIII invadia Florença e daí expulsava os Medici; nesse ano, Machiavelli era nomeado escrivão na segunda chancelaria, sob as ordens de Adriani. Tendo este, em 1498, assumido as funções de chanceler da república, Machiavelli foi promovido a segundo-chanceler, posto que deteve por quatorze anos, além de exercer os cargos de secretário da República Florentina e do Supremo Tribunal de Liberdade e Paz. Assim, tinha a seu cargo o registro das deliberações do Conselho da República, a correspondência política e grande parte das relações diplomáticas, mais a redação dos tratados e a organização da milícia florentina” (MACHIAVELLI, 1985, p. IX). 112 homens, quanto o da não-lei, isto é, o que foge às regras do jogo. O pai da ciência política ainda afirmou que “um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra, quando isso seja prejudicial aos seus interesses e quando desapareceram as causas que o levaram a empenhá-la”. Dito isto, defendeu que o uso da dissimulação em um ambiente de disputa é mais do que aconselhável àquele que pretende vencer, ao passo que, para o pensador, a aparência era um fator fundamental, mais do que a essência, já que “todos veem o que tu aparentas, mas poucos sentem aquilo que tu és” (MACHIAVELLI, 1985, p.101-103). Assim, no jogo político, quanto mais se sabe, menos se deve demonstrar saber, comportamento que parece estar presente no contexto do Motim de 1720, tanto por parte dos amotinados quanto por parte do conde de Assumar. Podemos então notar, o que será ressaltado adiante, a clara presença da dissimulação nas ações dos atores envolvidos no conflito, que buscavam sempre parecer agir de certo modo quando, na verdade, agiam de forma oposta, escondendo suas verdadeiras intenções como tática para alcançar ou preservar o poder. 3.2 – A Dissimulação e os Boatos no Motim de Vila Rica Já no início do Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação que nas Minas Houve no ano de 1720, o conde de Assumar traçou um perfil dos moradores das Minas que, embora não fosse livre dos pressupostos e preconceitos eurocêntricos, tratou especialmente do caráter duvidoso que lhes atribuía: de serem pessoas que estavam cheias de “todo o gênero de (...) contendas, enganos, malícias e murmurações; que são execrandos, ignominiosos, soberbos, arrogantes, inventores do todos os males e desobedientes (...), sem fidelidade”. A ênfase dada ao caráter dúbio e maledicente dos mineiros no discurso revela um contexto de desconforto social presente durante o governo do conde, no que tocava à existência de boatos e intrigas do tipo palacianas, com o intuito de gerar conflitos e instabilidade política (DISCURSO, 1994, p. 62-63). Ainda nesse sentido, Assumar declarou que existiam certos traços característicos e comuns a todos os mineiros, ao afirmar: 113 Quem viu um, pode seguramente dizer quem tem visto todos os mineiros juntos, porque até alguns, que tiveram melhor educação e, fora das Minas, eram de louvável procedimento, em chegando a elas ficam como os outros, e quais árvores mudadas seguem a natureza da região a que se transplantam (DISCURSO, 1994, p. 63-64). Tal comportamento dos moradores era, para o conde, resultante da falta de “temor”, ou seja, da inexistência do receio de uma punição mais severa, portanto, ele se queixava de que se concedia o perdão demasiadamente aos delituosos, o que gerava um clima de impunidade. Consoante a isso, a insubordinação se dava já na certeza de que, ao fim e ao cabo, tudo era perdoado. Nota-se, portanto, que o governador desconfiava da conduta dos mineiros, inclusive daqueles que estavam investidos dos principais postos da governança da capitania, como vimos no capítulo anterior, no qual o conde asseverava que a câmara municipal constituía mais um espaço de atuação do poder privado do que de defesa dos interesses do rei. Um exemplo que ilustra bem essa situação foi a relação que ele estabeleceu com o juiz ordinário da câmara de Vila Rica, João da Silva, filho de Pascoal da Silva Guimarães. Para Assumar, o juiz dissimulava estar do seu lado, quando, na verdade, atuava ocultamente em favor dos interesses de seu pai. No Discurso Histórico, ele relatou que João da Silva enviara-lhe um aviso dizendo que se armara um motim com a intenção de expulsá-lo do governo das Minas, bem como de matar o ouvidor, Martinho Vieira. Neste aviso, João disse que se encontrava na rua a altas horas da noite com o seu primo, José da Silva, quando foram interpelados por um negro, que lhes disse que na esquina encontravam-se alguns mascarados desejosos de lhe falar. Receoso do perigo, João da Silva indagou de quem se tratavam, ao que o negro lhe respondeu que não havia necessidade de temer pela vida, pois se aqueles a quem se referia quisessem causar algum dano a ele e a seu primo, já o teriam feito. Dito isto, João da Silva e seu primo foram até o local apontado, onde encontraram uns mascarados que lhes convidaram a se juntarem a um motim a ser movido contra o governador e o ouvidor. Diante dessa situação, relatou a Assumar que havia empreendido todos os seus esforços para desviá-los daquele mau intento, tentando, sem sucesso, dissuadi-los, já que os mascarados se encontravam firmes no seu propósito. A justificativa dada pelo juiz, ao relatar tais acontecimentos ao governador, foi que o fazia para alertá-lo, no sentido de se providenciarem as medidas necessárias, que pudessem pôr fim àquele desígnio (DISCURSO, 1994). 114 Diante da carta recebida, o conde não deixou de agradecer pelo aviso dado, muito embora não o considerasse sem ressalvas. Em resposta a João da Silva Guimarães, Assumar escreveu-lhe uma carta dando pouco crédito à informação, além de incumbi-lo, lembrando-o das suas atribuições de juiz, de pôr fim àquelas maquinações que ele denunciava, pois o advertia de que, como leal vassalo, tinha a obrigação e os meios necessários para atalhar aquele mal. O governador questionou, ainda, a intencionalidade presente em tal aviso, já que suspeitava que o próprio João da Silva, a mando de seu pai, Pascoal da Silva Guimarães, lançara mão de tal história, que ele considerava não passar de um boato, cuja finalidade seria de semear o temor em face da iminência de um confronto com insurgentes, e, principalmente, de livrar seu pai de ser castigado por dar asilo a João Lobo, criminoso procurado pela justiça, acusado de assassinar uma mulata, sua amasiada (SC-11, fl. 240). Uma carta recebida pelo governador, que confirmou suas suspeitas diante da malícia de João da Silva, foi a emitida pelo tenente José de Morais Cabral, que relatava a prisão de João Lobo, aos 21 de junho de 1720, nas dependências de Pascoal da Silva Guimarães, revelando-se aí a culpa do último, já que era considerado crime oferecer guarida a criminosos. Diante de tais notícias, o conde mostrou-se grato ao remetente da correspondência, prometendo-lhe que levaria seu nome ao rei de Portugal, o qual saberia reconhecer devidamente o zelo demonstrado no exercício de seu ofício. Note-se que os delatores ao serviço da Coroa eram premiados com bens e comendas. O conde de Assumar, portanto, atuava não apenas em punir os vassalos rebeldes, mas também em negociar a concessão de mercês e privilégios àqueles que se destacavam por atos de lealdade na manutenção da ordem e na contenção das revoltas. Em contrapartida, o conde ordenou que o tenente conduzisse o acusado até o pelourinho, onde receberia o castigo que lhe cabia pelo crime que cometera, enfatizando que “as armas que se acharão a João Lobo, constando serem suas devem ficar por despojo aos soldados”. A seguir, o acusado foi remetido ao Rio de Janeiro “algemado” e sob todos os cuidados, para que não lhe houvesse possibilidade de fuga (DISCURSO, 1994; SC-11, fl. 239). Deste modo, o aviso malicioso de João da Silva sobre a organização de um motim parece não ter surpreendido o conde de Assumar, que transpareceu ter ciência de que havia muitos homens poderosos insatisfeitos com o seu governo e desejosos de sua saída. Além disso, afirmou diversas vezes que não ignorava a existência de estratagemas 115 variados, inclusive a disseminação de boatos, que visavam a criar um clima de instabilidade nas Minas. Diante desses acontecimentos, D. Pedro de Almeida levantou a seguinte questão: “quem não vê que este dito mais é reparo do discurso polido, que advertência de um negro bruto?”. Com isso, ponderava que tal aviso era, na verdade, parte de uma estratégia que, para ele, era empreendida pelo próprio pai do denunciante, isto é, Pascoal da Silva Guimarães. A despeito de todas as ponderações, contudo, o conde ainda achou por bem comunicar ao ouvidor Martinho Vieira dos fatos ocorridos e, simultaneamente, adverti-lo para que tivesse mais cautela no trato e na aplicação da justiça, a fim de não se exaltarem os ânimos dos homens poderosos da região, já bastante insatisfeitos com a sua conduta frente ao cargo de ouvidor, e que o acusavam de destratá-los publicamente com a finalidade única de humilhá-los (DISCURSO, 1994, p. 86). Assumar ressaltou, ainda, que três dias após a chegada das cartas da frota do reino, que determinavam o estabelecimento de Casas de Fundição nas Minas, teve início o motim do ano de 1720. Para o governador, este foi um movimento premeditado, liderado por poderosos da região, insatisfeitos com a política empreendida por ele, que estava mais alinhada aos interesses do rei de Portugal do que aos dos locais. Ele acusava os líderes do motim de se valerem da insatisfação não só deles, mas da população em geral, com a instalação das Casas de Fundição, como forma de ocultar e dissimular suas malícias, usando aquele fato como “capa” para encobrir os seus verdadeiros interesses, que eram de assumir o poder político na região. Para legitimar suas ações, os cabeças valiam-se da participação popular, nem sempre espontânea, sendo muitas vezes por coação, e da divulgação de boatos, com vistas a macular a imagem do governador, na medida em que afirmavam que este introduziria a nova lei dos quintos a todo custo e prejuízo dos povos. E, não satisfeitos, ainda publicaram um pasquim, no qual insinuavam a saída do conde de Assumar do governo. Tal pasquim (folheto difamador) continha os seguintes dizeres: “João, tendo se voltado, olhou para Pedro. Pedro, no entanto, saiu para fora e chorou amargamente”, que pareciam se referir a D. João IV, rei de Portugal, e a ao próprio D. Pedro de Almeida, governador das Minas (ANASTASIA, 1998; DISCURSO, 1994, p. 93). Outra situação vivenciada pelo conde, que no momento pareceu fortuita e sem importância, mas que depois de uma madura reflexão, levou-o a confirmar que Pascoal 116 da Silva estava liderando um motim, foi quando encerrada a comemoração do aniversário da condessa de Assumar, D. Maria José de Lencastre – que por um costume da época era comemorado mesmo sem a presença desta, que se encontrava em Portugal –, Pascoal da Silva Guimarães, um dos convidados da festa, ao se retirar do local, foi interpelado por um “amigo da equipagem do conde” sobre quando voltaria a Vila Rica, ao que o mesmo respondeu: “para o seu bota-fora, querendo dar a entender que isto era para quando o conde se fosse embora; mas ele, sem que o Conde se fosse, veio a Vila Rica, porque o bota-fora do seu pensamento era a do Conde”, que se daria através do motim (DISCURSO, 1994, p. 93). Daí a confirmação pelo conde de Assumar do envolvimento direto de Pascoal da Silva nos distúrbios de 1720, que se desvelava em um ambiente até então de desconfianças e incertezas. Diante dos tumultos generalizados que se sucederam, três procuradores do povo, o sargento-mor, Antônio Martins Lessa, e dois letrados, José Peixoto da Silva e José Ribeiro Dias, em conferência com o governador e algumas pessoas influentes na região, requereram-lhe que fosse a Vila Rica conceder o perdão aos amotinados, pois, caso não fosse, dificilmente conseguiria moderar os ânimos exaltados dos povos, ao que o conde respondeu: “que não tinha dúvida em ir”. Porém, acabada a conferência, o letrado José Peixoto da Silva disse ao conde, em segredo, que não fosse a Vila Rica, alertando-o de que se armava algo contra ele, o que provavelmente resultaria na sua morte, “mas desta notícia misteriosa, sem aquela clareza que o Conde pretendeu e nunca conseguiu de José Peixoto, ficou entendendo que ele tinha a chave do segredo, e o não queria descobrir” (DISCURSO, 1994, p. 98-99). Além disso, José Peixoto contou que sabia que Pascoal da Silva Guimarães dera uma ordem ao próprio filho, João da Silva, através do médico João Ferreira – primo de Pascoal –, que executasse tudo o que lhe fosse recomendado, para o bom sucesso do motim, e que os tumultos tinham chegado a um limite tal que era impossível retroceder. Sobre o que lhe foi dito em segredo, o conde questionou os reais interesses de José Peixoto, porque geravam mais dúvidas do que clareza dos fatos, ao afirmar que: Tudo mistérios, muita sombra para imprimir terror, e pouca luz para tomar resolução em negócio tão grave; porém o certo é que, quem isto dizia, calava o mais, e ainda quando só isto soubera, sempre deixara menos acreditada a sua verdade, pois esta não pode admitir partilhas; antes o que fazia dúvida mais do dito José Peixoto era que, ao mesmo tempo que em segredo expressava ao conde que não fosse a Vila Rica, forcejava por persuadir aos 117 que entravam na conferência do Conde que, para o sossego daquele povo, era urgente a necessidade da sua presença (DISCURSO, 1994, p. 99). Nota-se, nessa passagem, que o governador D. Pedro de Almeida duvidou da isenção das intenções de José Peixoto quanto à preocupação em relação a sua segurança e vida, já que este agia de modo contrário publicamente, ao incitar os participantes da conferência no sentido de que a presença do conde era indispensável ao estabelecimento da ordem e ao fim das agitações populares em Vila Rica. As ações de José Peixoto são reveladoras da estratégia dos amotinados de dissimular a fim de interferir na política local. Neste caso, por exemplo, este amotinado dissimulou apoiar a ida do governador a Vila Rica publicamente, como se o seu interesse fosse o fim dos motins, mas, secretamente, usando de boatos e mexericos, desestimulava o conde a fazê-lo, amedrontando-o, o que pareceu ser uma tentativa de criar uma situação conflituosa, diante da qual as únicas opções para Assumar seriam ou o confronto aberto, ou a sua retirada forçada do governo das Minas. Apesar do desejo de romper com tudo e atacar o povo tumultuado, diante de tal contexto de dissimulação e desconfiança, o conde não o fez porque não dispunha de força militar suficiente. Além disso, alegava a existência de obstáculos naturais para entrar em Vila Rica, como “desfiladeiros asperíssimos, o que seria com grande risco e nenhum efeito, por haver o povo ocupado as montanhas mais fragosas”. Para Assumar, na medida em que se revelavam as intenções dos amotinados e em face da sua impotência militar momentânea, não lhe restou opção senão acolher as condições e propostas colocadas pelos insurgentes, fazendo-o mediante uma consulta a “algumas pessoas principais e de maior confiança”. Alegou, contudo, que o perdão só teria validade se aprovado por Sua Majestade, mas, devido à pressão de José Peixoto, ele o concedeu mais por força e necessidade que por vontade, ainda que advertisse do risco da anulação do perdão pelo rei. Nesse sentido, o governador despachou um tenentegeneral com o perdão, enviando-o também ao Padre José Mascarenhas, religioso da Companhia de Jesus, com a missão de pregar ao povo a falta de razão e motivos para continuarem as perturbações e os motins. Entretanto, tais medidas não surtiram efeito, já que “tanto desta prática como do mesmo perdão zombou o povo, incitado dos agentes dos cabeças, que a qualquer resolução que se tomava, arguiam que o Conde, em todas as suas ações, não levava outro fim mais que enganá-los”. Assim, se não fosse a 118 interposição de “algumas pessoas zelosas”, o pároco, assim como o tenente, teriam sido mortos, já que “ambos correram rigorosa tormenta, entre ludibrios e ameaças de infinitos bacamartes, [para que logo se retirassem] lhes puseram atrevidos aos peitos” (DISCURSO, 1994, p. 99-101). Neste ponto, pode-se retomar a importância do boato, como elemento chave para a manutenção de um estado de insatisfação, desconfiança e rebeldia, estimulado pelos líderes do motim. Não obstante esta situação, e “malograda uma e outra diligência”, com vistas a reverter esse quadro de insubordinação, o governador D. Pedro de Almeida tomou a seguinte medida: escreveu à câmara municipal, mandando que se publicasse um edital no qual divulgava o adiamento da instalação das Casas de Fundição, que se daria no dia 23 de julho de 1721. Nesse edital, o conde declarava: Que as Casas de fundição e de moeda48 se hão de começar a fazer logo que o tempo der lugar e senão quintara nelas o ouro senão dentro de hum anno da publicação deste Edital porque todo ele será necessario não so para sua fabrica, mas para esperar as Rezoluçoens de Sua Magestade; e como a frota esta já tao vezinha e os quintos deste anno não podem hir nella: os Provedores dos quintos tirarão Listas Novas para se fazer novo lansamento para que as Camaras zellem esta matéria e corra por sua conta o não gravarse os povos, usando da melhor forma que entenderão para esta arrecadação, e para que venha a noticia de todos o mando publicar a Som de Caixas, e se Registrara nos Livros da Secretaria deste Governo e nos das Camaras de todas as Villas e nos mais a que tocar. Villa do Carmo, 1 de Julho de 1720 (sic.) (SC 11, fls. 289). Tal medida visava a garantir a ordem e o sossego públicos, já que Assumar receava que a imediata instalação das Casas de Fundição pudesse levar a grandes perturbações nas Minas, particularmente, de várias pessoas que se encontravam endividadas e oprimidas por seus credores, que desejavam recuperar imediatamente o seu ouro a fim de que não fosse fundido. Todavia, a publicação do edital não teve o efeito desejado, pelo contrário, só acirrou ainda mais os ânimos. O conde de Assumar acusava os líderes de alarmarem o povo com boatos de que a prorrogação da nova lei 48 “O mesmo que Oficina dos Quintos. Eram designadas como Casas de Fundição e Moeda, porque, segundo Diogo de Vasconcelos, a da Moeda era dependência das de fundição. Local onde o ouro extraído das minas era recolhido, fundido e, após a dedução do quinto, reduzido a barras marcadas com o selo real, indicando seu peso, quilate e ano da fundição. As despesas com a braçagem, soma devida ao fundidor, cabiam ao proprietário do ouro, bem como o pagamento da senhoriagem, direito real. Cada Casa deveria ficar em uma cabeça de Comarca e era composta de um escritório, uma sala para a fundição e um laboratório para os ensaios que determinavam o quilate, ou seja, a pureza do metal, que, sem a liga do cobre, possuía 24 quilates” (ROMEIRO, 2004, p. 71). 119 dos quintos não passava de invenção sua, como tática para pôr fim ao motim, favorecendo-se do clima momentâneo de tranquilidade, para ganhar tempo suficiente para planejar uma melhor forma de se introduzirem as ditas casas, bem como prevenirse contra os que fossem contrários à nova lei. No mesmo edital, o conde fazia saber, ainda, que Sua Majestade estava de “ânimo de conceder privilégios” a todos que se distinguissem pela prestação de serviços a favor da Coroa. Ou seja, no tocante ao estado em que se encontravam as Minas, seria premiado todo aquele que atuasse em prol do zelo público. No entanto, a política de recompensas demonstrou-se ineficaz na tentativa de “moderar aquela fúria e captar as benevolências de alguns”. Para Assumar, os povos das Minas não estavam inclinados a responderem aos estímulos do merecimento e da premiação, mas sim ao receio da punição. Os cabeças, por sua vez, “opostos e contrários à paz e quietação não queriam prêmios, que se ordenavam à obediência e ao sossego”. Deste modo, no discurso, o governador deixou transparecer a ideia de que tentou, de todos os modos, negociar uma melhor saída para o impasse, mas que os líderes sublevados, agitando parte do povo, por meio de boatos e murmúrios sediciosos, eram intransigentes na defesa dos seus propósitos. Dissimulavam interesse no fim do motim, mas, na verdade, acendiam aquela chama perigosa somente a fim de encobrir suas malícias (SC 11, fls. 289; DISCURSO, 1994, p. 101-102). Tal malícia parecia permear também as ações dos representantes da câmara, na qual era juiz o filho de Pascoal da Silva Guimarães. Os oficiais camarários disseram ao conde que o edital que lhes enviou fora lido publicamente, para o conhecimento geral do povo, que demonstrou interesse em “abraçá-lo”. Porém, para que isso de fato se concretizasse, era necessário que ele fosse pessoalmente a Vila Rica, pois só através de sua presença é que se daria fim àquele desatino. Aconselhavam que, caso decidisse ir, fosse só, sob a alegação de que “o excesso e estrondo da comitiva não confirmasse o povo, no receio de que estava de ser castigado”, e pediam que fosse de noite, com “fachos acesos”, e “acrescentava o condutor da carta que algumas pessoas eclesiásticas lhe tinham comunicado, como em confissão, que importava muito ao serviço de Deus que Sua Excelência, sem falta, entrasse só em Vila Rica”. Não satisfeitos, sugeriram ainda que o conde fosse a Vila Rica desarmado, para sua maior segurança. Este disparate reforçou sobremaneira suas queixas contra a dissimulação e a ousadia dos agentes do motim que, no atributo das suas funções públicas, no plano do discurso, 120 fingiam preocupar-se com o bem-estar e a vida do governador, mas, na prática, ansiavam mesmo era pela sua morte e/ou expulsão das Minas. Diante dessa situação de risco, o governador achou por bem dizer que estava ocupado e impossibilitado de fazer a viagem, mas que faria de tudo para “estar às oito horas da manhã seguinte” em Vila Rica (DISCURSO, 1994, p. 102-103). Como efeito da confirmação da ida a Vila Rica pelo conde, os oficiais camarários daquela vila tomaram as seguintes medidas: Armaram e municiaram o povo, e marcharam com perto de mil e quinhentos homens à Vila do Carmo; ou porque entendessem que o tumulto seria fácil alarmar a dita vila, e por indefeso ao Conde; ou porque esperassem (como com mais evidência se soube depois) apanhá-lo em caminho desapercebido. Miserável estado o da república, onde os mesmos que eram obrigados a concorrer para a paz ministravam o tumulto. (...) Porém que há de fazer a justiça, se eles têm tanta autoridade para com o povo, que cada um em particular pode mais que o mesmo senado? (DISCURSO, 1994, p. 103). Nesta passagem, o governador ressaltou a existência de interesses privados e sua preponderância até mesmo dentro das estruturas burocráticas da administração. O que ele evidenciou foi a superposição dos interesses de particulares e seu domínio sobre o povo, neste caso, orientados contra ele próprio, demonstrando que o Senado da Câmara, embora fosse palco do poder oficial, na prática, era, naquele momento, um espaço de atuação dos amotinados. Assumar esclarece que mesmo atendidas todas as reivindicações propostas pelos amotinados e concedido o perdão, ainda assim os tumultos prosseguiram, haja vista que os líderes tinham a intenção de ver o povo apreensivo. A intenção dos cabeças, segundo o governador, “era trazer o povo inquieto, tudo era meter-lhe horrores e receios, para debaixo da perturbação alheia inxerirem melhor a malícia própria”. É nesse sentido que o recurso à invenção de boatos parece ter sido um mecanismo usualmente utilizado pelos revoltosos, como estratégia de semear a discórdia e a dúvida, além de ganhar a confiança da população, ocultando interesses particulares sob o véu de um discurso de anseio popular. E, como justificativa para o prosseguimento dos tumultos, lançaram boatos de que sossegado o levante, mesmo com a promessa do perdão, o conde não deixaria de castigar os envolvidos. Estes boatos repercutiram de tal modo, que mesmo diante da publicação do edital do perdão e o conde assegurando que “tudo o que fosse justo se havia de conceder”, o povo não se acalmou, dando continuidade aos motins (DISCURSO, 1994, p. 97). 121 Consoante a isso, no mesmo dia em que foi concedido o perdão, em 01 de julho de 1720, o governador recebeu uma carta de Pascoal da Silva Guimarães, encaminhada por seu filho, João da Silva Guimarães, na qual relatava, com “pesar”, que soube de um boato de que se armava um motim contra ele em Vila do Carmo. O conde, contudo, observou que a carta, embora supostamente viesse de lugar distante dois dias daquele local, já que Pascoal residia na comarca do Rio das Velhas, fora datada de 01 julho, o que pareceu estranho, sobretudo no dia seguinte, quando de fato estourou o motim. Nesse sentido, a estranheza dos fatos levou o conde a levantar duas hipóteses: ou Pascoal já tinha conhecimento dos movimentos dos amotinados, portanto, estava de algum modo envolvido nos levantes, ou, devido à ligeireza da informação, ele se encontrava oculto em Vila Rica, como depois se soube. “Maligna indústria da traição, vestir-se de luto nas causas de seu agrado!”, exclamou o conde, ao perceber as armações (DISCURSO, 1994, p. 109). Segundo este, o plano dos amotinados era que ele negasse a nova proposta de reinvindicações, para que tivessem, assim, a escusa perfeita senão para o matarem, para depô-lo do governo das Minas, espalhando o boato de que ele iria impor a instalação das Casas de Fundição a qualquer custo, o que justificaria as ações dos revoltosos, “metendo o povo nesta utilidade comum”. Inclusive, já havia designado o responsável por acabar com a vida do conde, caso a proposta fosse rejeitada, este seria Filipe dos Santos, um apaniguado de Pascoal da Silva Guimarães. O que impediu o governador de rejeitar a proposta e atacar o povo tumultuado, mesmo após todas as concessões? Um anônimo. Segundo o conde, um homem, cujo nome não foi citado, havia-o confidenciado de que tudo não passava de um estratagema dos cabeças da revolta, que aguardavam sua negativa. Ciente dos riscos que correria, Assumar optou, então, por acatar todas as reivindicações feitas. Além desse episódio em particular, outros motivos que o impediram de atacar o povo amotinado em Vila do Carmo residiam nos fatos de que ele havia feito averiguação sobre a vontade geral do povo, constatando que a opinião geral era de aderir ao motim, com o objetivo de evitar a instalação das ditas Casas de Fundição. Além disso, apontava que alguns dos homens mais influentes, que apoiavam o governador, começavam a questionar também a nova lei dos quintos, pois alegavam que “era causa comum que cedia em utilidade e proveito de todos” (DISCURSO, 1994, p. 110). 122 No dia seguinte, conforme disposto na carta, de fato estourou um motim. Chegando o povo tumultuado próximo às imediações de Vila do Carmo, um dos homens que acompanhavam aquela multidão se dirigiu ao sargento-mor Manuel Gomes da Silva, informando-o que Filipe dos Santos, dispondo de um bando de pessoas de sua facção, pretendia, com armas em punho, disparar um tiro ao alto para insuflar o povo a ir até casa do conde, protestando contra ele. O sargento-mor, diante do que lhe fora noticiado, abordou Filipe e seus sequazes, exigindo-lhes uma explicação sobre aquela acusação que, caso se confirmasse, impedir-lhes-ia de seguir em frente. Dados os fatos, Filipe dos Santos teria respondido: Que sem embargo de ser verdade que havia disposto a função naquela forma que se lhe contara, que podia estar descansado, porque lhe dava sua palavra de a não deixar executar, mas que quando o Conde duvidasse de qualquer ponto da proposta, lho faria presente para se retirar com tempo para onde lhe parecesse (DISCURSO, 1994, p. 103-104). A par destes acontecimentos, D. Pedro de Almeida estava ciente de que Filipe dos Santos, homem de confiança de Pascoal da Silva Guimarães, preparara-se para atacá-lo caso negasse qualquer um dos pontos da proposta. Assim, ele teve de acatá-la, ainda que a contragosto. Tal ação destinava-se a pôr fim às agitações, mas, como ressaltou durante todo seu Discurso, os líderes sublevados e seus comparsas não tinham interesse algum no fim das perturbações, já que só lhes interessava o domínio político da região, que só se daria com sua saída do governo. Frustrados os planos dos líderes amotinados, diante da aceitação do conde de tudo o que lhe reivindicavam, eles não viram outra saída senão continuarem a dissimular e a disseminar ocultamente boatos de que o governador era injusto e que os enganava, na tentativa de alimentar os ânimos belicosos dos povos, cuja participação dava aparência de legitimidade as suas ações, de acordo com as formulações políticas que validaram o movimento restaurador de 1640, que determinava que os povos tinham o direito natural de depor um governante considerado tirânico. Daí a estratégia dos líderes rebeldes de difundir uma imagem negativa do conde, fomentando a inquietação popular contra sua autoridade. Nesse sentido, os cabeças dos motins lançaram outro boato, com o qual novamente se amotinou o povo. Alardeou-se que Assumar imporia um imposto de trinta arrobas de ouro a Vila Rica, isentando as outras vilas, sob a alegação de que não participaram do motim. O imposto, desse modo, seria uma represália a Vila Rica pelos 123 motins. Este boato inflamou de tal modo os povos, que estes passaram inclusive a questionar a validade do perdão concedido, sobretudo porque os cabeças espalhavam a notícia de que Martinho Vieira estava em Vila do Carmo fazendo uma averiguação judicial do caso, e “esta era a razão em que fundavam a suspeita de que não se guardaria o perdão, causando esta notícia tão geral revolução em todos que rara era a pessoa daquela Vila que não trouxesse o ânimo inquieto e sobressaltado” (DISCURSO, 1994, p. 111-113). Por fim, tornou-se necessário ao conde ordenar a publicação de um novo edital ratificando o perdão já dado: Por este edital torno a ratifficar o perdão para que todos vivao com segurança de que se não procedera a Castigo nenhum pello passado e fio dos Leais e fieis vassallos de Sua Magestade de Villa Rica, assim pessoas Ecleziasticas, e principaes como gente do povo contribuão todos unanimamente para a paz e quietação publica, sendo só esta e não outra a minha intenção pellos máz consequencias que do contrario se podem originar e para que venha a noticia de todos o mando publicar a Som de Caixas, e se registrara nos Livros da Secretaria deste Governo e nos mais a que tocar. Villa do Carmo, 10 de Julho de 1720 (SC 11, fl. 290). Além disso, o governador fazia saber a todos da saída do Dr. Martinho Vieira da comarca de Vila do Carmo, no sentido de demonstrar que o ouvidor não estava a fazer averiguação nenhuma, sendo tal informação muito mais um boato produzido por aqueles que se encontravam insatisfeitos com o seu governo, buscando infundir o receio e o medo nos povos, a fim de inquietar e perturbar o sossego público (SC 11, fl. 290). Assumar desmentiu, ainda, o boato das trinta arrobas, e para que não houvesse mais dúvidas lançou o seguinte edital: Como alguas pessoas entenderão mal a clauzulla do Edital de 2 do corrente em que declarava se pagarião a Sua Magestade que Deos Guarde trinta arrobas de ouro, e alguns quizerão entender que so Villa Rica as devia pagar, se declara não ser assim porque a dita villa so deve pagar o que lhe couber a proporção dos negros que tiver, e não as trinta arrobas por encheyo, e para evitar as duvidas que sobre isto se podem oferecer o mando declarar por este Edital e para que assim venha a noticia de todos mando publicar a Som de Caixas e se registrara nos Livros da Secretaria deste Governo e nos da Camara de Villa Rica. Villa do Carmo, 6 de Julho de 1720 (sic.) (SC 11, fl. 290). Como resposta à agitação provocada por este boato, o governador, D. Pedro de Almeida, escreveu uma carta aos oficiais de Vila Rica, na qual revelou o seu assombro 124 ao tomar conhecimento de que eles pudessem acreditar naquela notícia absurda, já que se tratava de um valor muito alto (cerca de 450 quilos de ouro) a ser cobrado apenas de uma vila, sobretudo em se considerando as dificuldades de se cobrar tal valor de todas as vilas juntas. O conde questionou o fato de eles terem dado crédito a uma notícia tão descabida, ao ponto de não perceberem, talvez propositadamente, que se tratava apenas de uma invencionice destinada a desacreditar as ações do governador. Nesse sentido, o conde requereu aos oficiais que informassem: A todos que athe se tirarem as novas Listas senão pode sabe de certo o que toca a cada hua das Vilas, e que essa [Vila Rica] não deve pagar senão a parte que lhe tocar como qualquer das outras, que por hora he o que basta para desfazer esta ma inteligência (SC 11, fl. 243v.) Segundo Assumar, nenhuma ação era o bastante para acalmar um povo com interesses tão desiguais, haja vista que o humor do povo variava ao sabor das circunstâncias, “porque quanto hoje no povo era silêncio, quietação, obediência, amanhã disparava em assembleias, tumultos, desordens; isto que agora o agradava, dali a pouco o não satisfazia” mais. Em Vila Rica, parte do povo, ao ouvir as leituras das cartas e dos editais publicados pelo conde, ficava satisfeita e alegre, todavia, outra parte ia ao encontro dos “agentes dos cabeças” em suas casas, para consultá-los, e de lá corriam turbulentos, furiosos, orientados de que toda a notícia veiculada não passava de mentiras para os enganar, “o que ao povo novamente alvorotava, e movia perturbar-se” (DISCURSO, 1994, p. 97-98). Nesse sentido, o conde escreveu os seguintes versos: Ó povo cego, e leve, as torpes fezes Aparta do ouro puro, e lança fora; Torna-te a teu pastor, perdido gado; Olha que vás sem ele mal guiado. (DISCURSO, 1994, p. 98) Ou seja, nos versos, o conde conclamava o povo, que ele chamou de “perdido gado”, a se redimir, afastando-se daqueles que buscavam promover a desordem e guiálo através de boatos e mexericos ao caminho da insubordinação; defendia, ainda, a necessidade de um governo forte, que fosse capaz de ordenar e liderar o povo de acordo com a vontade do rei. 125 Um dos líderes da sedição que guiavam os povos em direção aos tumultos foi Sebastião da Veiga Cabral, do qual o conde tinha notícias de que desejava assumir o posto de governador das Minas, tomando o seu lugar. Neste sentido, vale apontar a trajetória deste, que foi um dos principais personagens deste enredo. Nascido em Bragança, por volta do ano de 1665, judeu por descendência paterna,49 Sebastião da Veiga conseguiu o hábito de Cristo graças à dispensa papal. Iniciando sua carreira militar como soldado, foi galgando postos até chegar a ocupar o ofício de tenente de mestre-de-campo general.50 Tal posto foi-lhe dado devido à prestação de serviços em favor da Coroa, ao organizar a defesa militar das ilhas açorianas de Corvo, Flores e Terceira. Ainda, em função desses serviços, foi eleito governador da colônia do Sacramento em 1696, região dominada pelo comércio ilícito e pelo contrabando de ouro e prata, “sob a conivência, e não raro com a participação, dos próprios governadores”, que se aproveitando do prestígio e das vantagens que seu posto lhes conferia, cometiam toda sorte de infrações com o objetivo de aumentarem suas fortunas pessoais. Não raras vezes, alguns governadores, depois de encerrada a carreira pública nos diversos domínios portugueses, voltavam ricos para Portugal (SOUZA, 2006, p. 262-263). Sebastião da Veiga esteve oficialmente à frente do governo da Colônia do Sacramento até o ano de 1705. E, apesar de ter se envolvido no comércio ilegal, sobretudo no comércio de gado bovino e couros, atividades que, na época, proporcionavam altos lucros, parece que foi um bom governador, Cuidando tanto da vida civil como militar: dotou e casou órfãs, sustentou e vestiu quase todo o presídio, distribuiu mantimentos, reduziu enorme 49 O judeu ou cristão-novo estava associado à “raça infecta”, o que, geralmente, era obstáculo para a aquisição de títulos nobiliárquicos e determinados cargos públicos, que conferiam status a uma pessoa, distinguindo-o socialmente dos demais povos (BICALHO, 2003, p.393). “A sociedade do Antigo Regime, orientada pelo princípio da limpeza de sangue, estabelecia uma série de obstáculos à ascensão social dos cristãos-novos, a exemplo das inquirições, por meio das quais se procedia ao exame das origens dos candidatos para o preenchimento de cargos eclesiásticos, políticos e administrativos. Apesar desses critérios rigorosos, empregados para qualquer forma de concessão de honrarias e nobilitação social, os cristãos-novos conseguiram encontrar mecanismos para atenuar os rigores da lei, e mesmo a Inquisição forneceu, muitas vezes, cartas de familiares, atestando a pureza étnica de descendentes de vários cristãos-novos. (...) Nas Minas, eles logo se inseriram na sociedade local, filiando-se às irmandades, participando das festas religiosas, frequentando a igreja e, muitas vezes, engajando-se na administração” (ROMEIRO, 2004, p. 90) 50 “Oficial de guerra a que toca distribuir, pessoalmente ou por seus sargentos-mores, as ordens que lhe der o mestre-de-campo general. Deve dar conta de tudo o que suceder na tropa ao mestre-de-campo general para que este dê conta ao capitão-general. Usa bengala curta como insígnia” (CÓDICE Costa Matoso, 1999, p. 124). 126 quantidade de índios à fé católica (...); empenhou-se nos descobertos metalíferos (SOUZA, 2006, p. 264-265). Retornou a Portugal no ano de 1706, todavia não conseguiu se afastar do Novo Mundo e, em 1712, concorreu ao posto de governador de São Paulo e Minas do Ouro, perdendo por maioria de votos para Dom Brás Baltazar da Silveira. No ano de 1715, Veiga, aos cinquenta anos de idade, pleiteou novamente o cargo de governador de São Paulo e Minas do Ouro, concorrendo desta vez com outras oito pessoas que também almejavam o mesmo cargo, a saber: Duarte Sodré Pereira, Ayres de Saldanha de Albuquerque, Manuel de Sousa Tavares, António de Brito de Meneses, Paulo Caetano, D. António da Silveira e Albuquerque, Antônio de Couto Castelbranco e D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, o conde de Assumar. Este último consagrou-se vitorioso, governando a região entre os anos de 1717 a 1721 (SOUZA, 2006). Interessante notar que foi no governo deste que estourou o motim de 1720, entre cujas várias causas apontadas para esse levantamento estava a cobiça de Sebastião da Veiga Cabral, considerado um dos líderes da revolta e que ambicionava justamente o cargo de governador. Para D. Pedro, essa era a principal razão para seu envolvimento no motim, e tanto foi, que o acusava de ser dissimulador e criador de boatos e “invencionices”, só a fim de macular seu nome e vêlo destituído do governo e fora das Minas. Em maio de 1720, Veiga concorreu mais uma vez para o governo das Minas, perdendo, desta vez, para D. Lourenço de Almeida, que iniciou seu governo aos 18 de agosto de 1721. Para Laura de Mello e Souza, a insistência de Veiga ao pleiteio do posto de governador de São Paulo e Minas do Ouro é reveladora de que ele “não desejava sair do eixo sudeste-sul, entre Minas, São Paulo e Sacramento” e de que tinha noção das vantagens financeiras que tal cargo poderia proporcionar-lhe, sobretudo no que se referia aos lucros com o comércio ilegal. Para Laura, o que talvez justifique o insucesso de Veiga nas três vezes que pleiteou o cargo de governador foi o fato de que pesava contra ele um inquérito sobre seu envolvimento em um motim militar, no Rio de Janeiro, em 1699, motivado pelo atraso no pagamento dos soldos. Soma-se a isso o fato de sua descendência judia (defeito de sangue), que embora não o tenha impedido de ascender na carreira militar e de ocupar o governo da colônia do Sacramento, “pesava, por certo, quando se tratava da condução de uma capitania que, em fins do primeiro quartel do século XVIII, começava a despontar entre as de primeira grandeza”. Ao 127 analisar o Discurso Histórico e uma correspondência de Dom Lourenço de Almeida, sucessor de Assumar, enviada ao rei de Portugal, Souza evidenciou que o motivo que parece ter levado Sebastião da Veiga Cabral a se envolver no motim de Vila Rica era o seu desejo de ser governador, “por qualquer caminho que fosse”, seja ele pelos trâmites legais ou não, e com isto assegurar a não cobrança de suas dívidas e as vantagens políticas e econômicas que a ocupação de tal cargo poderia lhe auferir (SOUZA, 2006, p. 269). Note-se que Sebastião da Veiga, mesmo sendo reinol e ligado à Coroa pelos cargos que ocupou, pelos títulos e mercês que recebeu por serviços prestados em nome do rei, não se dissuadiu, no contexto da revolta de Vila Rica, de colocar seus interesses pessoais e/ou de um grupo de poderosos locais acima dos interesses da monarquia, na medida em que intentou tomar o poder político na região e expulsar, ou até mesmo matar, o representante máximo da Coroa naquelas terras. Tal situação corrobora a ideia defendida por Laura, de que as distâncias em relação ao centro de poder, no caso, Portugal, poderiam influenciar nas ações dos vassalos espalhados pelas diversas possessões portuguesas que, longe do rei, cometiam todo tipo de infrações, na certeza da impunidade ou dos limites do alcance da justiça (SOUZA, 2004). Durante a desordem provocada em Vila do Carmo, este teria se dirigido ao povo amotinado, perguntando-lhes: “Filhos, não quereis casa de quintos, nem de moeda? quereis que vá o ouvidor com todos os diabos? Quereis-me a mim? Aqui estou, tudo se fará, que eu hei de ser vosso procurador”. Todavia, acabado o discurso, este foi ao palácio, ao encontro do governador e, com “fingida preocupação”, dissimulando, advertiu-o do enorme perigo daquele motim, que poderia colocar em risco sua vida. Para Assumar, Veiga liderava e insuflava os motins contra sua pessoa, desqualificandoo perante a população das Minas, acusando-o de ser injusto e castigador, mas, na sua presença, se mostrava uma vítima que nada fazia para prejudicá-lo, pelo contrário, que não media esforços para ajudá-lo no controle da revolta (DISCURSO, 1994, p. 105). Em determinada situação, por exemplo, quando da fuga do ouvidor-geral Martinho Vieira, Veiga mandou chamar dois padres da Companhia de Jesus, próximos ao conde, sob a alegação de que um criado seu estava para morrer. Chegando os padres em sua casa, encontraram-no “a fazer repetidas convulsões e trejeitos”, avisando-os que estava de partida para o Rio de Janeiro, pois chegara a ele a informação de que o conde tinha escrito uma carta ao rei, denunciando-o como o cabeça do motim, afirmação esta 128 feita por Martinho, antes de sua partida forçada. Sebastião da Veiga “logo se pôs a entrouxar fato, e a fazer vários fingimentos e aparências de querer-se ir na mesma noite”, dando a entender que temia ser castigado. Depois de toda aquela encenação, incumbiu os padres de apresentarem a sua despedida ao conde. Estes, chegando ao palácio, relataram os fatos ao governador, sobre os quais perceberam “que nas ações do Veiga se envolvia oculta malícia”. Inteirado dos acontecimentos, Assumar mandou dizer ao Veiga que tal notícia de que escrevera uma carta ao rei era falsa, pois ainda não havia apurado a real participação dos envolvidos nos motins, “e que tampouco o presumia de sua pessoa, que antes esperava que ele, por si e por seus amigos, concorresse para o sossego público”. Em resposta, Veiga protestou que não tinha “amigos”, “que não falava com ninguém” e que de si não podia falar coisa alguma, além de que para seu sossego era necessário que o conde lhe declarasse por escrito saber que ele não tinha parte no motim (DISCURSO, 1994, p. 117-118). O conde preferiu não prolongar o assunto, apenas reafirmou aquilo que mandara dizer os padres, e, sobre Sebastião da Veiga Cabral, afirmou: Dali por diante, deu em frequentar palácio, e mostrando-se zeloso da vida do Conde, tudo era representar-lhe que não se fiasse de ninguém, que mandasse vigiar a sua cozinha, porque lhe poderiam dar peçonha, que a tal governador a deram nesta, e a tal naquela forma, e que o verdadeiro partido que havia de seguir era retirar-lhe logo para São Paulo, porque não quebrava a homenagem e se livrava de algum insulto. Ave enfim de mau agouro, só prognosticava (...) infortúnios e desgraças, as quais aumentava com a representação e ampliava com o discurso, procurando (se pudesse) com espantos e temores fingidos persuadir o Conde a desertar as Minas; tudo era, a seu parecer, uma destruição geral; não havia perigo que não inventasse, medo que não descobrisse; ponderava evidências as imaginações, certezas e receios, as ameaças eram execuções, os golpes mortes, as faíscas incêndios; e instando sempre que se retirasse enquanto o tempo lhe dava lugar, porque não teria depois, quando lhe fosse precisa a retirada” (DISCURSO, 1994, p. 118-119). De tudo o que foi exposto, pode-se perceber que o artifício da dissimulação foi empregado de forma requintada por ambos os lados, tendo em vista que Sebastião da Veiga, por seu turno, parece ter usado desta estratégia de se vitimar, com o objetivo de perscrutar informações sobre os passos que Assumar estaria dando no sentido de debelar a revolta. Nota-se que ele não tinha a pretensão de se retirar para o Rio de Janeiro, tendo em vista que ali nas Minas se encontravam seus negócios, seus interesses 129 políticos e econômicos, objetos pelos quais empenhava todos os seus esforços, inclusive os que convergiam para o motim. Da parte de Assumar, por sua vez, ao tranquilizá-lo, afirmando que não o havia acusado e que esperava dele, antes, cooperação, o governador parece querer fazer entender que não tinha conhecimento da participação de Veiga nos motins, ocultando taticamente o fato de que estava a par dos nomes dos principais envolvidos. Aqui se percebe, também, como a dissimulação e os boatos podem servir bem aos propósitos escusos de um agente social inserido em um contexto de conflito que, diante das amarras políticas, vê-se obrigado a usar desses recursos, para tomar parte dos acontecimentos em torno dos quais gravitam seus interesses. O governador das Minas relatou também no Discurso Histórico que, em outra ocasião, Sebastião da Veiga Cabral havia lhe informado que dois mascarados tinham ido à casa dele, avisando-o de que os cabeças do motim haviam-no eleito governador, restando-lhe apenas a opção de aceitar o posto ou morrer, caso recusasse. O conde respondeu-lhe que aceitasse o governo, pois tal atitude poderia resultar na quietação e sossego dos povos. Tal afirmativa pode parecer estranha, à primeira vista, já que Assumar não tinha a intenção de se retirar do governo “enquanto o sangue lhe corresse pelas veias”, do que se pode depreender que não passava de uma estratégia do governador, que sabia das armações de Sebastião da Veiga, que dissimulava todo o tempo apoiá-lo, mas que inventava situações para desestabilizá-lo e fazê-lo se retirar das Minas. Portanto, já ciente das maquinações de Veiga, Assumar não deu crédito às informações. Veiga passou então “a chorar a sua desgraça, e a revestir-se de mil afetações, dizendo que estava resoluto a ir-se dali a três dias para o Rio de Janeiro, porque para a sua honra não lhe estava bem aceitar semelhante governo”. Chegado o dia de sua partida, alegou mil dificuldades que o impediam de partir, o que deixa claro que, de sua parte, não pretendia ir para o Rio de Janeiro, conforme dissera ao conde, o que só reforça a ideia de que sua história tratava-se de uma encenação. Por seu turno, D. Pedro de Almeida também usou do recurso da dissimulação, ao defender que Veiga aceitasse a “imposição” dos amotinados e assumisse o governo, já que queria passar a ele a impressão de que não suspeitava ou desconfiava de seu envolvimento nos motins (DISCURSO, 1994, p. 120). Segundo o governador, Veiga valia-se de várias estratégias para difamá-lo. Em vista das suas intenções de assumir o governo, buscava de todos os modos criar 130 situações que o colocavam em conflito com os moradores das Minas. Em um caso específico, Veiga disse ao mestre de campo Manoel de Queiroz que o conde desejava “acabar com ele”, o qual, receoso do que lhe poderia advir, por algum tempo se ocultou, mas, consciente de que nada fizera de errado, resolveu dirimir o assunto diretamente com o conde e, “lançado aos seus pés, disse que já se não atrevia a viver cuidadoso e retirado, e que ainda que não sabia sobre que assentasse, ali se vinha sujeitar ao castigo”. Porém, ele lhe disse não haver nenhuma queixa contra a sua pessoa, portanto, nenhum motivo para punição; entenderam, pois, diante dos fatos, tratar de outro boato lançado por Veiga no intuito de fazer malquisto o conde (DISCURSO, 1994, p. 121). Ainda sobre a atuação de Sebastião da Veiga Cabral, Assumar ressaltou que ele fazia “o verdadeiro ofício do diabo, semeava entre o mais limpo trigo a mais maliciosa cizânia; porque ora com as câmaras, ora com particulares, formava este ou aquele juízo sobre as ações do conde”. Em outra ocasião, por exemplo, Veiga visitou os homens mais humildes da região “estudando cortejos, afetando obséquios, submetendo-se a uns e outros, insinuando a grande valia com os maiores ministros, o muito que na corte podia, mostrando as cartas fingidas de Portugal”, tudo tentando dar a entender que tinha ordens de rei para fazer “averiguações secretas, assim do procedimento do Conde como de outros particulares”. Dizia ao povo que tinha um tipo de missão, da qual fora incumbido pelo rei, afirmando sempre: “ao que eu venho, isso só Deus o sabe, El-Rei eu”. Propagava, ainda, a notícia de que seria ele o sucessor infalível do conde no governo das Minas, angariando a simpatia do povo na medida em que “a estes prometia introduzir, aqueles melhorar; a uns consolava no desgosto presente, a outros brindava para o alívio futuro, e a todos se oferecia para tudo o que quisessem” (DISCURSO, 1994, p. 124); e, por esses meios dissimulados, buscava passar a imagem de que representava os interesses do povo, atraindo para si os descontentes com a política do conde, desejosos de mudanças. Ao final, o conde questionou o que Sebastião da Veiga afirmara na sua presença: que se retiraria das Minas, no intuito de fugir dos povos de Vila Rica, que desejavam fazê-lo governador contra a sua vontade. Todavia, pelo que se pode depreender da leitura de Assumar, embora Veiga tenha saído da cidade, este foi ao encontro dos amotinados, voltando, a seguir, para Vila do Carmo, no intuito de fazer uma estranha proposta ao conde: a de que a única solução para o fim dos motins “era fingir-se doente o Conde e largar-lhe o governo” (DISCURSO, 1994, p. 125). Mal havia 131 recebido a sugestão de Veiga, chegou às mãos do conde uma carta de um confidente de Ouro Preto, Manoel José, escrivão da ouvidoria, que lhe dizia: Que naquela noite se determinava amotinar, ou por força, ou por vontade, o povo para irem à Vila do Carmo expulsá-lo, e que publicamente falava em fazer governador ou chefe da república, que dispunham a Sebastião da Veiga (DISCURSO, 1994, p. 126). Além disso, Assumar havia recebido outro recado, este de Pascoal da Silva Guimarães, outro líder do motim, que dizia que “naquela noite infalivelmente se acabava o mundo e o iam depor e correr do governo, e que assim tomasse lá bem as medidas” (DISCURSO, 1994, p. 126). Para o governador, tais avisos sediciosos tinham uma dupla finalidade: por um lado, quem os enviava tinha a pretensão de fazer com que ele acreditasse nos avisos e agisse conforme os mesmos, e assim seriam bem sucedidos no boato; por outro lado, caso o conde não acreditasse no que estava sendo dito, poderiam aqueles argumentar que agiram de boa intenção, ao avisá-lo, no sentido de estarem sendo fiéis a ele advertindo-o do perigo. Em função da iminência do motim, Pascoal da Silva Guimarães, enviando outro recado ao governador, através de frei Francisco de Monte Alverne, disse que havia descoberto uma maneira de se pôr fim aos tumultos, e que necessitava apenas da aprovação de Sua Excelência: Era o meio oferecer-se Pascoal da Silva a ir amotinar os povos de São Bartolomeu, Cachoeira e Itaubira, e descer a incorporá-los com os de Ouro Preto, para fazer-se cabeça de uns e outros, como tomando sobre seus ombros a carga de tantos desacertos; e que então (visto o povo de Vila Rica duvidar da validade e vigor dos perdões até ali concedidos) instaria por novo perdão, o qual Sua Excelência concederia; porque vendo que ele, sendo como cabeça mais culpado, se acomodava, deporia (na certeza do presente) a dúvida dos passados, que era toda a causa de não se acabarem de sossegar os tumultos (DISCURSO, 1994, p. 127). Deste modo, ouviu o conde a proposição de Pascoal da Silva, porém não concordou com esta ideia, já que, para ele, “nunca seria acertado excitar um motim para destruir outro, (...) [que] ninguém podia segurar uma vez sublevados os povos; que os motins eram como fogo, que aceso uma vez se conservava por mais tempo” (DISCURSO, 1994, p. 127). A Revolta de Vila Rica foi um movimento dos potentados locais, todos portugueses, que procuravam fortalecer o poder local diante do governador, que tinha 132 vindo para as Minas para fazer exatamente o contrário, estabelecer o poder da Coroa portuguesa. Pascoal da Silva Guimarães, em seus embates pessoais com o governador, demonstrava a existência de dificuldades ao exercício do poder político pelas autoridades representantes do poder real na região das Minas. Filipe dos Santos, um apaniguado de Pascoal da Silva, foi quem comandou praticamente todas as agitações e quem recebeu a punição mais rigorosa no final. O motivo da participação de Pascoal na revolta não pode ser estabelecido com absoluta certeza, já que ele nunca admitiu culpa no episódio. Existem, porém, diversos fatos que permitem que se especule a respeito, com razoável margem de certeza. Dois motivos parecem claros: um de ordem econômica e outro de ordem pessoal. O primeiro motivo está ligado à questão da cobrança de impostos. A instalação das Casas de Fundição e o pagamento de direitos de entrada no registro de Borda do Campo lhe causavam desconforto, já que ele, provavelmente, conquistara a maior parte do seu patrimônio com o lucro do contrabando. O outro motivo está relacionado ao ódio ao ouvidor de Vila Rica, Martinho Vieira de Freitas, que se concentrou em dois aspectos: um pessoal, e outro de caráter político administrativo. No aspecto pessoal, a ira de Pascoal devia-se ao fato de o ouvidor oprimir os poderosos da comarca. Como Pascoal estava sendo cobrado na Justiça por suas dívidas, isso virou motivo para o ouvidor desafiá-lo e ridicularizá-lo. No último aspecto, relacionado à política administrativa, destaca-se a disputa pelo poder político na região (FONSECA, 2007). Finalmente, outra peça-chave da revolta, também um dos líderes, foi Manuel Mosqueira da Rosa que, tal qual Sebastião da Veiga, apoiou-se no discurso de que não poderia entrar em Vila Rica, pois temia que o povo o forçasse a ocupar o cargo do ouvidor. No Discurso Histórico o conde deixou transparecer que esta notícia não passava de boato, ressaltando que Mosqueira da Rosa não conseguia ocultar sua ambição, ao declamar contra a imprudência do então ouvidor-geral Martinho Vieira e se oferecendo, ainda, para o cargo de “provedor da fazenda real, pediu também carta para o bispo o fazer provedor dos ausentes, indo ao mesmo tempo insinuando de caminho os modos por que podia ser ouvidor, ao que brandamente se opôs o conde”. Ainda que ciente das maquinações de Mosqueira, Assumar resolveu, estrategicamente, fazê-lo de “ladrão fiel”, na medida em que o incumbia de por fim aos motins que ele próprio armara, “pareceu-lhe ao Conde que o emprego e a incumbência que lhe dava seria o 133 meio mais acertado de o corrigir e envergonhar, para não fomentar dali por diante os motins” (DISCURSO, 1994, p. 116). Nesse sentido, o conde expediu a seguinte ordem a Manuel Mosqueira: Por fiar ao grande zello e capacidade do Dr. Manuel Mosqueira da Roza e da aceitação que dele tenho pelo bem que servio a Sua Magestade que Deus guarde nos lugares que ocupou, lhe ordeno expressamente por serviço do dito senhor a lista em Vila Rica para socegar com o seu Respeito toda e qualquer alteração, procurando que pelas passadas fiquem os ânimos quietos e sossegados em virtude do perdão que lhes concedi, e pode prometer em meu nome de baixo de toda a fé publica que não tenho tenção de proceder, averiguar, nem castigar a pessoa alguã pelos delictos passados e que assim vivão quietos e sossegados sem alteração nenhua para o que emprego a minha palavra, e fio da prudência, zello e amor com que o dito Dr. Manuel Mosqueira da Roza servio a Sua Magestade cumprirá da sua parte com este serviço tão importante. Villa do Carmo, 10 de julho de 1720 (SC 11, fls. 244-244v). Todavia, tal ordem não impediu Mosqueira de continuar a insuflar os ânimos, chegando ao cúmulo de simular que o povo o aclamara ouvidor, como se pode perceber no seguinte trecho do Discurso Histórico: Juntando-se com Filipe dos Santos, famoso amotinador, sagaz, astuto e sábio em todo dano (de quem fiasse possa um feito grande), e de quem se valeu naquela conjuntura Pascoal da Silva para sublevar o povo, pretendeu com o seu favor que em uma noite o aclamassem por ouvidor; mas como o povo estava satisfeito por se lhe haver concedido tudo, e não quisesse já meter-se em semelhantes embaraços, convocara cinquenta ou sessenta homens de sua patrulha com bastantes negros armados, entre os quais se aclamou por ouvidor o dito Mosqueira. E o que mais se deve notar é que, estando na Vila há vários dias, nunca o povo, como ele tanto afetava recear, se movera a pedi-lo por ouvidor, e só no fim, para fingir que o aclamava, foi necessário persuadir a cabala aos sessenta, que uma noite (como com efeito se fez) tumultuosamente o aclamassem (DISCURSO, 1994, p. 116). Diante do exposto, o conde de Assumar, percebendo que tudo não passava de dissimulação, boatos e mexericos dos cabeças da revolta, para que ele se retirasse das Minas e pudessem aclamar Sebastião da Veiga Cabral como novo governador e Manuel Mosqueira da Rosa como ouvidor, decidiu enfrentar os opositores, pois viu que não havia outra saída para por fim aos motins que não o confronto aberto. Entendia que apenas o emprego do castigo severo findaria toda aquela maquinação e desordem. Segundo Maria Verônica Campos, na tese Governo de Mineiros: de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado (1693-1737), a imagem dos 134 grandes nomes da revolta – Pascoal da Silva Guimarães, Sebastião da Veiga Cabral e Manuel Mosqueira da Rosa – traçada no Discurso Histórico apresentava pontos em comum: todos eram descritos como falsos e dissimulados, que não mediam escrúpulos para atingir seus objetivos. Todavia, tais características também estavam presentes na conduta do conde de Assumar, sobre o que a autora considerou: O que era defeito no rebelde convertia-se em virtude no governante. Não há aí nenhuma contradição. Como governador, o uso da simulação era sinal de prudência e ponderação. No súdito, especialmente no amotinado, era falta grave e prova de desrespeito ao rei a seus representantes (CAMPOS, 2002, p. 227). Ainda de acordo com Campos, duas fontes que complementam o Discurso Histórico e auxiliam na compreensão do motim de 1720, são as duas propostas de reivindicação dos amotinados ao governador. Os termos da primeira proposta constituíam-se em exigências da elite local, composta por comerciantes e mineradores. Já os da segunda proposta, por sua vez, muito mais abrangentes, agregavam interesses de diversos setores da população: “agricultores, comerciantes, mineradores, setores urbano e rural”. Diante disso, a autora ressalta que era visível que a segunda proposta tinha um interesse claro de mobilizar todos os grupos sociais. Para ela, “é difícil de se acreditar que tenha sido realmente um movimento antifiscal, o que lhe daria uma feição de movimento popular contra o enrijecimento da tributação sobre o quinto”, ao passo que ela acredita que “a arraia-miúda não seria prejudicada com a cobrança do quinto nas Casas de Fundição”. Para Campos, a participação de um grande número de escravos forros e mulatos é justificada pelo “poder de mobilização que os poderosos locais detinham. Quarenta líderes com vintes escravos cada formavam uma multidão”. Outras pessoas da ínfima plebe que participaram do movimento fizeram-no por coação ou para se aproveitar do ambiente tumultuado para delinquir (CAMPOS, 2002, p. 246-247). A discussão de Campos, no entanto, parece superestimar o papel das redes clientelares no contexto da revolta de Vila Rica, sobretudo ao afirmar que a maior parte dos homens comuns que participavam dos levantes estava, de algum modo, vinculada a um poderoso local. Para ela, isto explicaria inclusive a liderança de Pascoal da Silva Guimarães, “um comerciante que detinha o maior poder de mobilizar bandos armados e prestígio pessoal para fazer críveis os boatos e obter a adesão de grande número de aliados” (CAMPOS, 2002, p. 249). A autora atribuiu, então, um papel totalmente 135 passivo ao povo, que atuava segundo orientações dos líderes da revolta ou por coação, e não por insatisfação com a instalação das Casas de Fundição que, como ela afirmou, incidiu mais severamente sobre a elite. Tal análise, todavia, não explica o motivo que levou tanto os “cabeças” quanto o governador D. Pedro de Almeida a disputar a atenção de uma parcela significativa do povo, seja para aderi-los à causa ou afastá-los do conflito. Como explicar os estratagemas de arregimentação dos povos, implementados pelos cabeças através da divulgação de boatos de que o conde iria impor, a todo custo, a nova lei dos quintos? E Assumar, por que se preocupou em desmentir tais boatos, publicando editais que demonstravam justamente o oposto, e afirmando que tudo faria em benefício do povo? Aparentemente, a autora reduziu demasiadamente o papel do povo nos motins, caindo em contradição em alguns momentos, sobretudo se se considerar a abrangência da segunda proposta, que congregava interesses de alguns setores mais baixos da população, e que não estavam ligados aos poderosos, já que estes disputavam a atenção e o apoio da maioria do povo ao movimento insurgente, como forma de legitimar suas ações. Tarcísio de Souza Gaspar, na dissertação intitulada Palavras no chão: murmurações e vozes em Minas Gerais no século XVIII, questionou a dicotomia presente no discurso apresentado pelo conde de Assumar sobre a Revolta de Vila Rica, no qual o governador defendeu a existência de dois estratos sociais atuando em frentes diferentes no encadeamento dos motins. Aos líderes ou “cabeças” da revolta, os poderosos locais, foi atribuída toda a maquinação em torno do movimento, cuja aspiração era a de tomar o poder político na região, encobertos por um discurso de apelo geral pela não alteração das formas de cobrança do quinto, que se daria com a instalação das Casas de Fundição. Ao povo, coube o papel de “coadjuvante passivo”, pessoas que se envolviam no conflito por interesses ou condições outras, que não a de tomar o poder político. Tais interesses remontavam, sobretudo, ao arrocho fiscal e à manutenção da fidelidade devida a um potentado local, ao passo que entre as condições motivadoras da participação dos povos contavam, inclusive, a coação física e outras formas de imposição. Ou seja, para o autor, o conde isentou a maior parte dos homens comuns, o “povo”, de qualquer iniciativa ou participação ativa nos motins. Nesse sentido, ele ressalvou que estes homens da “arraia-miúda” eram majoritariamente forçados a aderir aos movimentos, sendo que a maior parte da população não se queixava do seu governo, 136 isto é, não tinha interesse em sua saída. Destarte, os maiores interessados em destituir o conde e assumir os principais postos do governo, além de reaver certo prestígio político perdido com a vinda de Assumar para as Minas, eram os homens da elite local (GASPAR, 2008). Na concepção de Tarcísio Gaspar, entretanto, “a mesma dicotomia entre cabeças e plebeus torna a se repetir quando os assuntos são a redação dos termos rebeldes e a veiculação dos boatos”. O primeiro termo de reivindicações que foi entregue ao governador, no dia seguinte ao do início dos motins, apresentava o veto à instalação das Casas de Fundição e à cobrança dos dízimos por contrato, “capaz de angariar simpatias populares”, pois eram pontos que convergiam para o interesse comum (GASPAR, 2008, p. 109). Nesse sentido, o autor demonstra que, para Assumar, tal proposta reivindicatória tratava-se, na verdade, de um estratagema dos “cabeças”, cuja intenção era de conseguir a adesão da “plebe”, assim, o governador afirmou que tudo não passava da ação de particulares, pondo em dúvida a participação de populares na redação da proposta. Para Tarcísio Gaspar, o conde maliciosamente questionou o fato de a proposta, de alegada autoria popular, conter pontos de convergência de interesses de vários grupos sociais, sobretudo de setores da elite local. Do mesmo modo, quando da segunda proposta de exigências dos amotinados, escrita a 02 de julho de 1720 pelo letrado José Peixoto da Silva, o conde apresentou desconfiança, no que tocava mesmo à linguagem utilizada no documento, que destoava muito da linguagem da plebe iletrada e analfabeta (GASPAR, 2008). Este autor não nega “a preponderância política dos poderosos na condução da revolta”, nem sua capacidade de movimentar “imensos contingentes populacionais, como escravos e agregados, clientelas e dependentes”, tampouco a capacidade de influenciarem os povos com a disseminação de boatos e murmurações; entretanto, para ele, todos estes fatores não explicam, por completo, tudo o que ocorrera em 1720. Segundo ele, é possível questionar a visão dicotômica de que tudo não passava de “mera orquestração das elites”, já que discorda que tais grupos dominantes influenciavam, sobremaneira, a opinião pública de todos os setores da sociedade colonial, inclusive os não diretamente ligados a eles, e que também participaram dos motins. Contrário à ideia de que tudo não passava de maquinações de particulares, Tarcísio Gaspar defende que o segundo termo de reinvindicação dos amotinados continha pontos de “inegável apelo 137 popular”, indo até mesmo contra os interesses das elites mineradoras e comerciantes. Nesse sentido, o autor parece sugerir que tal proposta atendia, na prática, aos anseios gerais, e isso explicaria, de certo modo, a participação ativa de uma parcela da população na revolta, que não seguia cegamente as ordens e orientações dos cabeças (GASPAR, 2008, p. 117-118). Do mesmo modo, os boatos foram tratados pelo conde como maquinações dos cabeças, interessados em enganar o povo. Assim, na concepção daquele, a “arraiamiúda” não passava de uma receptora passiva das invencionices dos líderes do motim. Destarte: Conforme o Discurso situasse os atos de fala da revolta, veiculados nos boatos e rumores, enquanto manipulações orquestradas, a opinião pública local (que não era senão o conjunto deste vozerio) aparecia subordinada aos interesses específicos dos poderosos, regentes do falatório. Por conseguinte, a outra parte dos amotinados limitava-se a reproduzir, como bocas viciadas, uma ladainha não dialogada pelo “povo”, e independente dele, mas ressoante em suas palavras. Assim, todas as línguas não ultrapassaram uma velada parcialidade, imiscuindo no público ambições privadas ou particulares. (GASPAR, 2008, p.115) Neste trabalho, o autor afirma, a despeito do discurso do conde, que não é possível distinguir tantas especificidades nos parâmetros de ação dos líderes e da plebe, separadamente, isto é, de que não se pode separar a atuação dos líderes da do povo de maneira tão clarividente, tomando os primeiros como sujeitos e os segundos como meros objetos passivos. O autor, portanto, acredita na existência de uma articulação entre líderes e os homens comuns na difusão da boataria, para ele o povo era agente ativo neste processo. Desse modo: Se houve transmissão [de boatos] dos poderosos à “ínfima plebe”, ela não foi retilínea nem tampouco isenta de conflitos. Os “cabeças” podiam incentivar a eclosão dos rumores, mas o faziam sob determinados parâmetros e obedecendo a certa lógica de comunicação, de modo algum alheia aos anseios políticos do “povo”, este o verdadeiro retransmissor das mensagens. A parte inferior da cadeia teve interesses próprios, que não eram passivos. Por isto, as vozes veicularam temáticas de conteúdo social abrangente, como o receio do castigo e a opressão fiscal (grifo meu) (GASPAR, 2008, p. 120). Sendo assim, além de questionar a divisão e a atribuição dos papéis dos participantes da revolta que, segundo Assumar, estavam divididos em apenas dois 138 grupos: “cabeças” e “povo”, Tarcísio também levanta a dúvida sobre se todos os boatos eram originados no estrato mais elitizado dos amotinados, afirmando que havia participação de populares, que nem sempre estavam diretamente ligados a algum potentado, mas que também atuavam na difusão dos boatos. Tarcísio Gaspar discorda da interpretação da historiadora Maria Verônica Campos, ao tratar da veiculação dos boatos na Revolta de Vila Rica. Para ele, a autora não questiona e aceita “o fato de que as vozes do episódio fossem integralmente ditadas pelo grupo de poderosos locais, constituído, maiormente, de comerciantes, cujo líder era Pascoal da Silva Guimarães”. O autor discorda ao afirmar que a transmissão dos boatos não se dava inteiramente a partir da cúpula para os setores mais pobres da população, que estes não se limitavam “à recepção e reprodução passiva dos ditames superiores” (GASPAR, 2008, p. 117). A despeito da interpretação dada por Tarcísio Gaspar, fazem-se necessários alguns esclarecimentos. Primeiramente, este autor faz afirmações muito fortes ao asseverar que a população também participava da elaboração dos boatos; ou, ainda, ao insinuar que o povo tinha consciência da intencionalidade dos boatos; e, o mais grave, ao afirmar que os populares estavam articulados às lideranças do motim, todos homens da elite, e que ambos lutavam numa frente comum contra o conde de Assumar. Para construir tal discurso, o autor partiu da segunda proposta de reivindicações, apresentada pelos amotinados ao governador, e do Discurso Histórico, documentos que, entretanto, não subsidiam suas proposições. No Discurso Histórico, todos os boatos apresentados circulam no seio das lideranças, não aparecendo um sequer cuja autoria tenha sido atribuída a um homem comum. Ao dizer que o povo tinha consciência dos boatos, o autor parece entrar em contradição, já que este mesmo povo era o alvo que tais boatos queriam atingir e impressionar. Se estivessem conscientes da verossimilhança ou não destes, não lhes causaria impressão alguma o ouvir-dizer que corria pelas Minas. Finalmente, inferir que o povo estava, de certo modo, “aliado” ou articulado aos cabeças parece um tanto quanto forçoso, ao passo que, como dito, a principal documentação produzida no período remete aos líderes e, por outro lado, estes sim seriam os maiores beneficiados com a saída do conde, uma vez que já haviam inclusive elencado os nomes para os postos mais importantes na administração, até mesmo o de governador. No mesmo sentido, vários documentos, já citados nesta pesquisa, dão conta de que muitos 139 dos homens comuns que participavam dos levantes faziam-no coagidos, não voluntariamente. Desse modo, neste trabalho, discordamos da interpretação dada pelo autor acerca da veiculação dos boatos na sedição de Vila Rica, sobretudo, ao afirmar que os líderes da revolta e o povo estavam articulados na difusão da boataria. Pode-se inferir, a partir desta pesquisa, a relevância da dissimulação no cenário político do motim de 1720, artifício do qual os líderes do movimento se valeram no trato com o conde, a fim de colher informações que pudessem favorecer a causa rebelde. Diante do governador, faziam-se de vassalos leais, desejosos do bem-estar dele e do fim das inquietações e desordens populares, mas, pelas “costas”, agiam de maneira oposta, lançando boatos, como uma forma de desacreditar as suas ações, bem como sua reputação, no sentido de gerar instabilidade nas camadas mais baixas da população, o que alimentaria os ânimos contrários ao governo. Para que o movimento fosse considerado legítimo, era necessário que houvesse apelo popular e que o conde fosse acusado de ser tirânico e injusto. Assim, a dissimulação e os boatos foram mecanismos que serviram bem aos propósitos dos cabeças, na medida em que estes, ainda que estivessem insatisfeitos com o governo do conde de Assumar e desejassem a sua imediata expulsão das Minas, não desejavam demonstrar publicamente suas ambições, temerosos de provável punição. Assumar, por sua vez, também fez uso da dissimulação, sobretudo ao ocultar taticamente o fato de que já tinha conhecimento da participação de Pascoal da Silva Guimarães, Sebastião da Veiga Cabral e Manuel Mosqueira da Rosa na liderança dos motins, incumbindo-os inclusive de pôr fim a toda aquela agitação e dano ao sossego público, que eles mesmos provocaram. Como bem assinalou Maria Verônica Campos, tal tática dissimulatória era, no caso do governador, sinal de prudência e ponderação, evitando, deste modo, um conflito aberto, sobretudo, porque ainda não dispunha, naquele momento, de um contingente militar suficiente para fazer frente aos rebeldes. Quanto ao povo, sua participação no motim de 1720 parece ser ambígua. Por um lado, ao se agitar contra o governo, partindo do incômodo geral causado pelo possível rompimento das formas acomodativas, isto é, pela possível mudança forçada das regras do jogo fiscal, com o consequente aumento dos impostos e da fiscalização régia, parece fazê-lo consciente das prováveis implicações legais. Assim, mesmo com o risco da punição, as pessoas amotinaram-se baseadas no direito costumeiro, que garantia aos 140 povos o direito de se levantar contra os maus governantes. Por outro lado, no entanto, considerando o impacto dos boatos nos ânimos gerais, a população parecia estar inconsciente dos interesses implícitos em jogo, já que, de fato, colocava em dúvida as questões levantadas pelos boatos, o que se pode perceber claramente através da leitura dos documentos. Questionava-se se o conde de fato instalaria as Casas de Fundição, a despeito do desgosto geral, se o governador ignoraria o perdão dado, castigando o povo. Mas, com tudo isso, por que os boatos não surtiram o efeito desejado? Simples, porque foram desmentidos o mais rapidamente possível por Assumar, que publicou editais desdizendo o dito pelos boatos. Diante da garantia formal e oficial de que tudo faria em benefício do povo, este voltava ao estado de sossego. Nesse sentido, em face do desmantelamento da estratégia dos amotinados, estes partiram para o confronto aberto, como última opção, para tentar assegurar a influência política que possuíam, bem como formalizá-la, tentando assumir o poder e a representação políticos na região, em detrimento do conde de Assumar. A despeito disso, este conseguiu pôr fim aos motins, restabelecer a ordem e reforçar o poder real na região das Minas. 141 CONSIDERAÇÕES FINAIS O Motim de Vila Rica foi marcado pela disputa, em torno do poder político na região, entre forças privadas e os representantes da Coroa. Entretanto, também apresentou, ainda de que modo secundário, uma faceta econômica, que se referia ao descontentamento popular e das elites com as novas medidas fiscais, as quais o conde de Assumar tentava impor. Embora, como salientamos, prevalecesse o interesse da tomada do poder, por alguns homens poderosos da região, a dimensão econômica assumiu grande importância, na medida em que trouxe para a cena o povo – que estava mais preocupado com os impostos a pagar e a instalação das Casas de Fundição –, fato que era imprescindível à legitimidade da contestação que se instaurava contra o governo de Assumar. De acordo com a prática política corrente, apenas a participação do povo legitimava a contestação e a deposição do governador, caso este agisse injustamente e de maneira despótica contra os princípios do bem comum dos povos. Nesse sentido, evidenciamos o recurso à dissimulação e aos boatos, como estratégia política imprescindível à ação dos líderes rebeldes, em sua tentativa de tomar o poder. Acredita-se, desse modo, que a presente pesquisa contribui com a historiografia, na medida em que inova as discussões, ao ressaltar estes dois elementos, ainda pouco estudados, como mecanismos de ação política utilizados em momentos de disputa pelo poder. É neste cenário que se insere o Motim de 1720, ao passo que os líderes da revolta se valeram da dissimulação, com a intenção de se manterem anônimos e, simultaneamente, permanecerem próximos ao governador com intuito de sondar suas ações e informações que pudessem favorecer a causa rebelde. Assumar, por sua vez, também usou da arte da dissimulação ao encobrir, com astúcia, seu conhecimento das armações dos amotinados, visando a obter alguma vantagem dessa situação sobre seus inimigos. Quanto aos boatos, foram um recurso fundamental à ação dos líderes que, ao veicularem conteúdos difamatórios contra o conde, acusando-o de ser mau governante, insuflavam os ânimos dos povos contra ele. Assim, a dissimulação e os boatos foram mecanismos que serviram bem aos propósitos dos cabeças, que tencionavam a saída do conde D. Pedro de Almeida do governo das Minas, mas não desejavam demonstrar publicamente suas ambições, sobretudo, para não se indisporem com o rei de Portugal. 142 Destarte, no primeiro capítulo deste trabalho, apresentamos a discussão em torno do aparecimento e da manifestação de um comportamento político característico do reino português, sobretudo a partir de sua separação da Espanha, em 1640, que ressoou nos domínios ultramarinos e que se demonstrou através da natureza das relações sociais e, principalmente, das relações de poder, estabelecidas entre os colonos e as autoridades régias, quando da análise dos principais motins ocorridos na primeira metade do século XVIII. Tal pensamento político defendia que os povos tinham o direito natural de se levantar, em defesa do bem comum, contra o mal governante que os oprimisse. O que se deu em Vila Rica, em 1720, foi similar ao que ocorreu em Portugal naquela época, já que a população se levantou em defesa dos direitos costumeiros, mormente, contra as mudanças fiscais. Como visto, as elites souberam bem se valer dessas formulações políticas para acusar o governador D. Pedro de Almeida de tirania, o que legitimaria a sua expulsão do governo das Minas. Ressaltamos, entretanto, que os homens da elite local envolvidos nos motins estavam insatisfeitos, na verdade, era com o fato de verem seus privilégios e sua influência política serem minorados em função da presença mais forte de um poder centralizador, representada naquele momento pela figura do conde de Assumar, e pretendiam, por meio da realização dos motins, desestabilizá-lo, difamandoo em face dos povos. No segundo capítulo, partindo da análise do Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação que nas Minas Houve no Ano de 1720 e outros documentos, sobretudo os da Seção Colonial, problematizamos os motivos apresentados pelo conde de Assumar para a aplicação da punição dada aos revoltosos. Visando a justificar as suas ações na condução do governo durante os motins, além da punição infligida por ele aos revoltosos, considerada ilegal, já que fora consumada antes do julgamento, e exacerbada, já que um homem branco português fora executado sumariamente, Assumar criticou a brandura das leis gerais e da postura do rei, que sempre perdoava os amotinados com a preocupação de não parecer injusto, já que a tradição política sob a qual vivia era a do combate à tirania. Por sua parte, o conde defendeu no seu discurso a existência de limites a sua atuação, asseverando que nem só através da cautela e da prudência se garantiria a ordem e o sossego públicos, sendo que em certas ocasiões o castigo se faria necessário, que por vezes seria a única solução para as crises de poder. Desse modo, a defesa de Assumar se concentrou na afirmação de que apenas o castigo 143 debelaria a revolta e que o mesmo seria didático, já que serviria de exemplo para inibir futuras desordens. Finalmente, no terceiro capítulo, evidenciamos a presença e a importância da dissimulação nas ações dos líderes rebeldes, que buscavam encobrir suas malícias e maquinações. Além disso, insuflavam os motins, inquietando a população, por meio da boataria, almejando desestabilizar o governo do conde sem, contudo, incorrerem em crime de lesa-majestade ou se indisporem com o monarca. Os líderes lançaram mão de vários boatos, com o objetivo de criar um ambiente de desconfiança na capacidade governativa de Assumar, visavam a desdizer tudo o que era dito pelo governador, desacreditar suas ações e, entre outras coisas, criar situações conflituosas, que o taxassem de tirânico, o que legitimaria a sua expulsão das Minas. Contudo, o governador, já ciente das armações dos cabeças, teve o cuidado de publicar editais desmentindo, o mais rápido possível, o que era veiculado pelas vozes sediciosas. Assim, anulada a estratégia dos amotinados, eles partiram para o confronto aberto, como única opção de assegurar seus interesses e influência política na região. O conde de Assumar, por sua vez, também recorreu à dissimulação, para fazer frente às investidas dos amotinados. Em várias passagens, dissimulou acreditar nos avisos falsos e encenações dos líderes da revolta, inclusive membros de seu governo, sempre buscando desbaratar a estratégia de ação dos oponentes, sem se mostrar conhecedor de seus planos. Ao contrário, incumbia-os de pôr fim aos motins, lembrando-os de que se tratava de sua obrigação, como fiéis vassalos do rei, salvaguardar o governo. Assumar agia assim, também, em nome da prudência, na medida em que ainda não contava com contingente armado suficiente para enfrentar os grupos armados dos potentados amotinados, portanto, evitando um embate direto, com o qual teve, fatalmente, que se deparar. Diante do fracasso das negociações, da resistência dos líderes amotinados e da sucessão dos tumultos, Assumar impôs a ordem pública através da força militar. Nesse sentido, ordenou a imediata prisão dos principais líderes do motim, Pascoal da Silva Guimarães, Sebastião da Veiga Cabral, Manuel Mosqueira da Rosa, bem como, dos freis Vicente Botelho e Francisco do Monte Alverne. A prisão desses homens desencadeou novos motins. Assim, generalizada a desordem, o conde dirigiu-se para Vila Rica com alguns poderosos locais, acompanhados de seus negros armados, e com a 144 companhia da tropa de dragões, a fim de controlar as inquietações e garantir o sossego público. A contenção do motim de Vila Rica, desse modo, não ficou apenas a cargo do governador e suas tropas de dragões. Ele contou, também, com o auxílio das milícias de escravos de alguns homens poderosos que, não estando envolvidos nos levantes, rapidamente atenderam ao chamado do governador, vindo acudi-lo no desmonte da desordem que tomara a vila. Com o início de outro motim, no sítio de Cachoeira do Campo, prendeu-se Filipe dos Santos, acusado de ser o cabeça e o instigador do levantamento. Réu confesso, e preso em flagrante, foi sentenciado à forca. O recurso à violência como forma de salvaguardar o poder real nas Minas foi pelo conde sumamente valorizado, todavia, teve o cuidado de ressaltar ao rei de Portugal, que foi um governador prudente e cauteloso, que tudo fez para que o fim dos motins ocorresse de forma pacífica, mas que, por rebeldia dos sublevados, o castigo severo fazia-se urgente. 145 REFERÊNCIAS Documentação manuscrita Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) – Minas Gerais Cx. 01, doc. 67. Cx. 02, doc. 92. Cx. 02, doc. 52. Arquivo Público Mineiro (APM) SC-04 Registro de alvarás, ordens, cartas régias e ofícios dos Governadores ao Rei (1709-1722). SC-06 Registro de regimentos, ordens, cartas régias, resoluções e termos (1709-1754). SC-11 Cartas, ordens, despachos, bandos ou editais do Governador das Minas Gerais, D. 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