fundamentos constitucionais de uma ordem econômica

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fundamentos constitucionais de uma ordem econômica
Ética empresarial: fundamentos constitucionais de uma ordem econômica socialmente
responsável
Thais Novaes Cavalcanti*
Sumário: Introdução; 1. Da ordem econômica na CF/88 e a função social da empresa; 2.
Ética da empresa sustentável; 3. Código de ética e conduta: premissas éticas na prática; 4. “A
ética é pessoal”, aspectos da filosofia moral; 5. Conclusões. Bibliografia.
Introdução
Estudos realizados pela Universidade de Oxford1 apontaram que a reputação de uma
empresa corresponde a 40% de seu valor de mercado. Reputação corporativa, imagem,
transparência, confiabilidade, responsabilidade. De uma forma geral, as pessoas
(consumidores, clientes, parceiros) escolhem um produto não apenas por fatores estéticos,
pelo status social que ele traz ou pela influência da propaganda. Também são colocados na
balança outros componentes relacionados ao produto, como o respeito ao meio ambiente, a
contribuição a projetos ligados a causas sociais, a disseminação da cultura da
responsabilidade global e também a ligação da empresa a escândalos de corrupção. Isto tudo
faz parte da reputação corporativa, que se consegue através de práticas éticas que resistem ao
tempo, adquiridas pela forma de agir dos acionistas e funcionários com relação aos clientes,
aos fornecedores, à comunidade, à mídia, ao governo.
Esta postura ética é o alicerce da concepção moderna da empresa, que busca o
desempenho econômico, ambiental e social conjuntamente, o famoso tripé da sustentabilidade
(triple botton lines).2
*
Mestre e doutoranda em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Master em
Teologia pela Pontificia Università Lateranense de Roma (Itália), professora de Direito Constitucional na
graduação e pós graduação no UNIFIEO, professora de Direitos Humanos e Teoria Geral do Estado na
Faculdade Integral Cantareira em São Paulo, professora e consultora de Ética empresarial, membro do site
www.eticaempresarial.org.br. Advogada, sócia do escritório Novaes Cavalcanti Advogados, membro do Portal
Academus e do IBDC, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. Organizadora e co-autora do livro
Princípios Humanistas Constitucionais (2010) e Economia e Vida (2009), além de outros artigos publicados em
revistas especializadas.
1
Publicada na Revista "Corporate Reputation", out/2002 in http://www.gecko.com.br/ferramentassa.asp em 22
de julho de 2011.
2
Sobre o conceito de triple botton lines ver WHITAKER, Maria do Carmo. Ética na empresa e nos negócio:
uma meta a ser acançada. In SOUZA, Carlos Aurélio Mota e CAVALCANTI, Thais Novaes (coord). Princípios
Humanistas Constitucionais. São Paulo: Letras Jurídicas e Cidade Nova, 2010.
1
O presente estudo possui dois principais objetivos. O primeiro é demonstrar que as
disposições constitucionais sobre a ordem econômica e financeira, principalmente o artigo
170 e incisos, determinam a função social da empresa, sendo um verdadeiro código de ética
para a responsabilidade sócio ambiental das empresas. O segundo objetivo é aprofundar o
tema da ética empresarial, fornecendo conceitos da governança corporativa e da filosofia
moral, demonstrando que o desenvolvimento de programas éticos na empresa fortalecem sua
função social e respondem à missão constitucional de valorização do trabalho, da dignidade
da pessoa e da justiça social.
1. Da ordem econômica na Constituição de 1988 e a função social da empresa
Ao comentar sobre a ordem econômica sempre se tem presente dois grandes pilares: o
Estado e a empresa. Ambos em busca do desenvolvimento, da geração de riquezas e do
crescimento em torno ao mercado. Desde 1934, todas as Constituições brasileiras dedicaram
um capítulo específico à ordem econômica, apresentando assim quais seriam as diretrizes e
princípios tanto para o setor público quanto para o privado.
O fim da República Velha estabeleceu o início de uma nova fase em que o Estado
passou a interferir cada vez mais na economia, o que foi reforçado pelo espírito nacionalista
que influenciou a elaboração do texto constitucional de 1937. Já com a redemocratização
iniciada em 1945, foi incluído na Constituição de 1946, pela primeira vez, a expressão justiça
social, “termo emblemático constantemente utilizado para significar a busca por melhoria das
condições de vida da população, já agora encarada sob o ponto de vista da igualdade material,
procurando despojar-se da concepção clássica de igualdade perante a lei.”3 A partir daí, as
Constituições subsequentes tiveram sempre presente a ordem econômica juntamente com a
busca pela justiça social, com destaque para o rol dos direitos sociais.
Quando o poder constituinte originário definiu os princípios da ordem econômica e
financeira para a República Federativa do Brasil em 1988, fundamentalmente por meio do
artigo 170 e seus incisos, quis, deliberadamente, enunciar seu fundamento na livre iniciativa e
seu objetivo na justiça social. Desta forma, uniu aspectos aparentemente contraditórios para as
teorias clássicas em vigor na data de 1988. De um lado, o constituinte afirmou a ordem
econômica na iniciativa privada, destacando os princípios da propriedade privada (inciso II), a
livre concorrência (inciso IV) e o tratamento favorecido às empresas de pequeno porte (inciso
3
TOLEDO, Gastão Alves de. O direito constitucional econômico e sua eficácia. São Paulo: Renovar, 2004,
p.126 e 127.
2
IX). De outro, destacou a importância da valorização do trabalho humano e da justiça social,
apontando os princípios da função social da propriedade (inciso III), da busca do pleno
emprego (inciso VIII), a redução das desigualdades regionais e sociais (inciso VII), além da
defesa do consumidor e do meio ambiente (incisos V e VI).
Aspectos aparentemente contraditórios considerando que nas teorias clássicas o
sistema capitalista de produção, baseado na iniciativa privada, não seria compatível com a
busca da redução das desigualdades sociais, a função social da propriedade, enfim, da justiça
social. Alguns autores afirmam que o artigo 170 foi apenas um “sopro de socialização” 4 em
um sistema capitalista, no entanto, é inegável afirmar que a ordem econômica que estava
sendo formada, buscava algo além da constituição de um sistema fechado de economia de
mercado baseado no lucro e na produção.
Trata-se claramente de uma questão interpretativa, porém estes elementos sócioideológicos, na classificação dada pelo professor José Afonso da Silva, constituem-se um
“conjunto de normas que revelam o caráter de compromisso das Constituições modernas entre
o Estado liberal e o Estado Social intervencionista”.5 Estes elementos têm força de normas
constitucionais, expressas como princípios, que geram efeitos e possuem eficácia, no caso
limitada, pois dependem da atuação do público (Estado) e do privado (empresas) para a
realização da norma jurídica e da justiça.
A nova ordem econômica inaugurada em 1988 apresenta uma inovação em termos
econômicos, que vai além da dicotomia das teorias econômicas, superadas ao longo do século
XX. Esta superação de conceitos e paradigmas se dá, principalmente, no período pós 2ª guerra
mundial, em que a oposição entre o liberalismo econômico e o socialismo começa a ser
superada diante da necessidade de reciprocidade nas relações econômicas, da subsidiariedade
na a atividade do público e do privado, da concepção do homem como ser capaz de produzir,
de contribuir para o desenvolvimento e de cuidar do seu próprio destino, da liberdade como
desenvolvimento nas palavras do Nobel de economia Amartya Sen.
Aliás, um dos pontos centrais do pensamento deste importante autor, é a relação entre
Ética e Economia, destacando que outros fatores que não os exclusivamente utilitários e
econômicos são importantes para o sucesso e bem-estar das pessoas. A relação é nítida
quando afirma que “o fato de a economia ter se distanciado da ética empobreceu a economia
do bem-estar e também enfraqueceu a base de boa parte da economia descritiva e preditiva.”6
4
SILVA, José Afonso. Direito Constitucional Positivo. 34ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 788
Idem. p. 789
6
SEN, Amartya. Sobre Ética e Economia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 94
5
3
A lição de Sen é clara, pois se não há a capacidade de considerar outros fatores como a
liberdade, a ética, a pessoa no âmbito do desenvolvimento econômico, há um
empobrecimento da própria ideia de bem estar.
A referencia prática desta mudança de concepção econômica está na escola
denominada Economia Social de Mercado (ESM)7, concebida pelo economista Alfred MüllerArmack8 e levada à prática durante a administração de Konrad Adenauer a partir do ano de
fundação oficial da República Federal Alemã em 1949. O então ministro da economia,
Ludwig Erhard, dedicou seus trabalhos na combinação do princípio da liberdade de mercado
com o princípio da equidade social, que constitui a base do “milagre econômico alemão”
(wirtschaftswünder), como ficou conhecido.
A ESM enfatiza a propriedade privada, a concorrência de eficiência, a livre formação
de preços e circulação de trabalho, capital, bens e serviços, complementada por um amplo
sistema de garantias sociais com base na compensação social, todos estes princípios previstos
na Lei Fundamental Alemã de 1948, art. 2º, 12, 14, 20. A ESM “propõe um marco teórico e
de política econômico-institucional que busca combinar a liberdade de ação individual dentro
de uma ordem de responsabilidade pessoal e social.”9
É neste sentido a interpretação a ser dada ao artigo 170 da Constituição de 1988. Não
há incoerência em seu texto, mas a tentativa de conjugar a livre concorrência com a justiça
social, fundamentando assim a função social da empresa. Se a economia busca o
desenvolvimento da pessoa e consequentemente do país, tanto a concorrência quanto o lucro
podem ser fator de maior igualdade social. A empresa é, desta forma, o catalizador destas
propostas. Em nosso ordenamento jurídico, esta concepção da função social da empresa foi
tratada também no novo Código Civil (Lei 10.406/2002) e na Lei das Sociedades Anônimas
(Lei 6.404/76 atualizada pela Lei 11.638/2007).
Nesta linha, a empresa não pode mais ser concebida como propriedade exclusiva do
empresário, cujo único objetivo é o lucro. Ela é também responsável pelo desenvolvimento
social, através da geração de empregos, da formação da personalidade dos cidadãos, do
cuidado do meio ambiente, do auxílio comunitário.10 Fabio Konder Comparato afirma que “se
7
Para uma descrição mais detalhada sobre as origens da ESM recomendamos o livro de NICHOLLS, Anthony
James. Freedom with Responsibility: the Social Market Economy in Germany, 1918-1963. Oxford: Oxford
University Press, 1994.
8
Consultar Wilhelm Röpke (1899 –1966), sobre a origem deste pensamento econômico.
9
RESICO, Marcelo F. Economia Social de Mercado: uma opção de organização para América Latina. In Sair
da crise: ESM e justiça social. Cadernos Adenauer n. 3, 2009, Rio de Janeiro. p. 70.
10
TELES,
Giovana
Filomena
Silveira,
A
Função
social
da
empresa.
In
http://direito.newtonpaiva.br/revistadireito/docs/convidados/13_convidado_giovanna.pdf. Consultado em 21 de
julho de 2011.
4
quiser indicar uma instituição social que, pela sua influência, dinamismo e poder de
transformação, sirva como elemento explicativo e definidor da civilização contemporânea, a
escolha é indubitável: essa instituição é a empresa.”11
No que interessa ao presente estudo, a empresa adquire uma função social responsável
pelo desenvolvimento sustentável e isto se torna possível em razão das disposições
constitucionais do artigo 170, que determinam os princípios e as regras que permitem esta
visão mais ampla tanto da empresa quanto da economia.
Em 2005, a Revista Exame12 publicou uma reportagem destacando a oposição entre as
visões da população e dos empresários quanto à função da empresa. O total de 93% dos
cidadãos entrevistados afirmaram que a “geração de empregos” é a maior missão de uma
empresa. Já 82% dos empresários responderam que a maior missão de uma empresa é “dar
lucro aos acionistas”.
A pesquisa revela a influência histórica entre a teoria dos acionistas (stockholder
theory) elaborada pelo ultraliberal Milton Friedman e a teoria da função social da empresa
com remanescências da estrutura de classes do século XIX. A pergunta que surge é: porque a
função da empresa não pode ser dar lucro aos acionistas e gerar empregos? Porque estas
funções têm que ser colocadas de maneira oposta? Talvez os resultados tenham sido obtidos
pela má formulação das perguntas, que não deu aos entrevistados a possibilidade de
responder: todas as respostas anteriores.
O artigo 170 da CF/88 inova a ordem econômica desta forma, dando um roteiro de
ação ética para a empresa, um código de ética, esclarecendo assim, o conteúdo constitucional
da responsabilidade sócio ambiental da empresa.
Vale a pena reler o dispositivo completo antes de terminar este capítulo: artigo 170 da
CF/88: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios: I) soberania nacional; II) propriedade privada; III)
função social da propriedade; IV) livre concorrência; V) defesa do consumidor; VI) defesa do
meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental
dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII) redução das
desigualdades regionais e sociais; VIII) busca do pleno emprego; IX) tratamento favorecido
para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País.”
11
12
COMPARATO, Fabio Konder. A reforma da empresa. São Paulo: Saravia, 1990. P. 3
GUROVITZ, Helio e Nelson Blecher, “O estigma do lucro”, Revista Exame, 30 de março de 2005, p. 20-25.
5
2. A Ética da empresa sustentável
Empresa sustentável é aquela que “contempla não só sua competência para gerar
empregos e pagar impostos, mas também sua capacidade de tentar harmonizar seu sucesso
econômico com equilíbrio social e com qualidade ambiental, dentro de altos padrões éticos de
atuação.”13
A prática da responsabilidade social demonstra o grau de amadurecimento de uma
empresa privada em busca do desenvolvimento sustentável. Neste sentido, para o Instituto
Ethos a responsabilidade social é uma “forma de gestão que se define pela relação ética e
transparente da empresa com todos os públicos com os quais se relaciona.” 14 Ou seja, a ética
está no cerne da definição da responsabilidade social de uma empresa, que por sua vez,
assume o adjetivo de sustentável quando une todos estes fatores.
A preocupação com princípios éticos e valores morais é, sem dúvida, necessária para
que se estabeleçam critérios e parâmetros adequados para atividades empresarias socialmente
responsáveis. O famoso modelo piramidal de Carroll, elaborado pelo americano Archie B.
Carroll e publicado na revista Business Horizon em 1991, descreve as missões (ou
responsabilidades) conforme o quadro abaixo15:
13
TARAGANO, Rogéria Oliveira. Quanto vale a sua reputação?, in WHITAKER, Maria do Carmo. Ética na
vida das empresas. São Paulo: DVS editor, 2007. p. 261
14
Disponível em <www.ethos.org.br>
15
CARROLL, Archie B. The pyramid of corporate social responsibility: toward the moral management of
organizational
stakeholders.
Revista
Bussiness
Horizon,
july-august,
1991.
In
http://www.cbe.wwu.edu/dunn/rprnts.pyramidofcsr.pdf
6
Na base da pirâmide está a responsabilidade econômica, ou seja a contribuição que a
empresa dá a economia. A empresa tem a responsabilidade de ser economicamente viável e
saudável para poder atender a todas as demais demandas a que ela está sujeita. Na prática
implica na geração do lucro e no cumprimento das obrigações com investidores e com seus
funcionários. A empresa que não atende esta primeira etapa inviabiliza o crescimento
econômico.
A segunda etapa está relacionada à consciência do dever de cumprir as leis e as
regulamentações do setor. Pode-se afirmar que o cumprimento da lei no que diz respeito à
tributação, ao meio ambiente, aos direitos trabalhistas, ao consumidor, é o mínimo exigido a
uma empresa ética e socialmente responsável.
A responsabilidade ética é colocada pelo autor na terceira etapa e indica que não basta
desenvolver-se economicamente e cumprir a lei, é imprescindível que a condução dos
negócios seja pautada pela transparência, pela honestidade e justiça. A responsabilidade ética
significa, em outras palavras, ir além do que está estabelecido em lei, não atuando pautado
apenas pelo risco da punição, mas por uma postura ética em vista de um objetivo maior.
No topo da pirâmide, Carroll coloca a denominada responsabilidade filantrópica (ou
discricionária), que é, na verdade, resultado das outras três responsabilidades já descritas.
Somente através do equilíbrio econômico, do cumprimento das leis e de posturas éticas que a
empresa conseguirá melhorar a comunidade em que está inserida e contribuir assim para o
bem comum.
Todas estas responsabilidades fazem parte da concepção moderna da empresa, não
podendo prevalecer uma em detrimento de outra. Mas é justamente o desenvolvimento ético
na empresa que fortalece seu crescimento econômico e viabiliza a realização de ações sócioambientais. Se não há responsabilidade ética, porque não forjar balanços da contabilidade? Se
não há responsabilidade ética, porque não utilizar projetos sociais para lavagem de dinheiro?
Se não há responsabilidade ética, porque não burlar normas ambientais?
Esta postura ética não é uma conveniência ou uma imposição, é também uma condição
para a sobrevivência democrática da sociedade. O sistema econômico é um sistema que
depende da criação da confiança. As relações sociais são baseadas em valores básicos como,
dizer a verdade, responsabilidade pessoal e justiça.
Uma empresa ética influencia positivamente todos os atores envolvidos no sistema
econômico, inclusive o próprio mercado competitivo. Maior confiança dos clientes e dos
próprios funcionários, maior compromisso dos empregados com a empresa, a satisfação do
7
cliente, maior qualidade da empresa, todos fatores produzidos por um ambiente mais ético na
empresa.16
Em que se traduz esta responsabilidade ética? Como desenvolver um ambiente ético
na empresa? Laura L. Nash, em importante obra sobre Ética nas empresas, destaca alguns
pontos concretos que vão desde o gerenciamento de riscos, a análise de procedimentos, o
controle de acesso, comunicação de atribuições, até a importância do comprometimento de
cada departamento e área da empresa.
Para a autora, há inicialmente a necessidade da tomada de decisão gerencial em três
principais âmbitos: “1) Escolhas quanto à lei, o que deveria ser e se deverá ser cumprida ou
não; 2) Escolhas sobre os assuntos econômicos e sociais que estão além do domínio da lei,
meios tangíveis ou intangíveis pelos quais se tratam os outros, e incluem não apenas as
noções morais de honestidade, palavra e justiça, mas também a de evitar danos e reparação
voluntária aos prejuízos causados; 3) Escolhas sobre a preeminência do interesse próprio, o
quanto o bem-estar próprio vem antes dos interesses da empresa ou de outras pessoas dentro e
fora da empresa, incluem escolhas quanto aos direitos de propriedade e quanto dinheiro deve
ser retido ou distribuído.”17
O ambiente ético de uma empresa não pode ser criado à força ou com regras prédefinidas e copiadas. Será difícil encontrar um manual “Torne sua empresa ética em 10
lições”. A ética empresarial reflete hábitos e escolhas dos diretores e administradores no dia a
dia da organização, muitas vezes submetidos a pressões institucionais e do mercado. Porém, a
ética está ligada a escolhas pessoais, que em razão da posição profissional tornam-se escolhas
institucionais. A ética na empresa e nos negócios é, portanto, o modo pelo qual tais escolhas
são “balizadas, analisadas e mantidas ou abandonadas”18 tendo em vista os meios e os fins
empresariais.
É neste sentido que surge a proposta de implantação de programas de ética nas
empresas, que envolvem a elaboração de um código de ética e conduta, a criação de Comitês
de ética e o treinamento de gestores de ética. Não com o objetivo de estabelecer
artificialmente um clima ético na empresa, mas colocar o tema da ética em pauta e assim
poder definir de forma conjunta, os critérios e diretrizes para as escolhas a serem feitas.
16
FERREL, O. C. FRAEDRICH, John; FERREL, Linda. Business ethics: ethical decision making and cases.
Boston, MA: Houghton Mifflin Company, 2000. P. 215
17
NASH, Laura L. Ética nas empresas. Guia prática para a solução de problemas éticos nas empresas. São
Paulo: Makron Books, 2001. P. 7
18
Idem p. 7
8
3. Código de ética e conduta: premissas éticas na prática
Um perigo no âmbito da governança corporativa é entender a ética como um
modismo, instrumentalizando-a para fins exclusivamente econômicos. A implantação de
programas de ética ou elaboração de códigos de ética e conduta não podem ser vistos como a
“última moda” na área de gestão de pessoas. Os valores éticos devem ser vistos e trabalhados
como um valor em si, independente dos resultados econômicos, mas como uma necessidade
de estabelecer alicerces firmes para a empresa.
Em três anos, de 2008 a 2010, subiu de 29% para 41% as empresas que possuem
código de ética e conduta no Brasil, sendo que destas, 42% dão publicidade ao código pelo
website da empresa e também para seus stakeholders. Este número tende a aumentar devido a
sensibilização do mundo corporativo com relação às questões éticas. O Instituto Brasileiro de
Governança Corporativa – IBGC destaca também a importância de virtudes e da
concretização de códigos de ética nas empresas, conforme seu código das melhores práticas
da governança corporativa.
O código de ética e conduta “não tem a pretensão de solucionar todos os dilemas
éticos da organização, (...), nada mais é do que a declaração formal das expectativas da
empresa à conduta de seus executivos e demais funcionários.”19 Por isso, o código de ética e
conduta tem de ser específico para cada organização e deve estar baseado na missão, na visão
e nos valores definidos por cada empresa.
Empreender o projeto de implantação de um código implica uma decisão gerencial,
que deverá envolver todos os integrantes da empresa, desde os altos executivos até os mais
simples funcionários. O processo de implantação deve compreender etapas de sensibilização,
de discussão, concretização, motivação e capacitação de todos, devendo todo este processo
ser aproveitado para o fortalecimento institucional e seu crescimento econômico.
A função do código é abarcar princípios e valores perenes para a instituição,
auxiliando em questões concretas, internas e externas, a atuação dos membros desta
instituição.20
19
WHITAKER, Maria do Carmo; ARRUDA, Maria Cecília C.; RAMOS, José Maria R. Fundamentos de Ética
empresarial e econômica. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2009. p. 53. Parte das idéias apresentadas foi baseada no
capítulo 4 deste livro.
20
ARRUDA, Maria Cecilia C. Código de Ética: um instrumento que adiciona valor. São Paulo: Negócio
Editora, 2002. p.121 a 254; <www.eticaempresarial.org.br>
9
As vantagens e desvantagens na adoção de um código de ética e conduta estão
descritas no quadro abaixo, retirado do livro “Fundamentos de Ética empresarial e
econômica”21:
Vantagens
Desvantagens
Fornecer critérios ou diretrizes para que as
Implantar um código de ética encomendado e
pessoas descubram formas éticas de se
engavetado
conduzir
Garantir
igualdade
na
forma
de
Atribuir ao código de ética “efeito pacote”
encaminhar questões específicas
Estimular comprometimento de todos os
Ocorrer inconsistência e incoerência entre o
colaboradores e aumentar a integração
que está disposto no código de ética e o que se
entre os funcionários da empresa
vive na organização
Proteger
interesses
profissionais
que
públicos
contribuem
e
de
para
organização
Agregar valor à imagem da empresa
O trabalho para a implantação de um código de ética e conduta é o início de um
processo dentro da empresa, por isso ele deve ser acompanhado pela formação de um Comitê
de ética, que servirá como “instrumento de aconselhamento ou de tomada de decisão,
podendo, também, investigar e solucionar casos”.22 Os membros do comitê devem ser pessoas
íntegras, reconhecidas por seus pares, representativos de diversos departamentos da empresa.
A autoridade conferida ao comitê deve ser assegurada pelo vice-presidente da empresa ou por
outro membro da diretoria, devendo, porém, ser estabelecida uma linha direta dos
funcionários com o comitê com total discrição e imparcialidade. Caso contrário, o comitê
corre o risco de ser utilizado como meio de punição aos funcionários e não como órgão de
esclarecimento dos princípios e valores estabelecidos pelo código de ética e conduta.
É imprescindível também na atuação do comitê o sigilo na análise dos casos e das
denúncias, demonstrando que é um órgão de apoio e não de controle.
Por fim, as empresas podem também criar a figura dos gestores da ética, que sob a
coordenação da diretoria tem como objetivo desenvolver programas de ética e formação,
inclusive do próprio comitê. Este deverá ser um profissional da ética, que deverá trabalhar
exclusivamente para reafirmar a missão, a visão e os valores da empresa através de trabalhos
21
22
WHITAKER, op.cit. p. 55.
Idem p. 55.
10
específicos em cada área e departamento da empresa. Estes programas podem compreender a
identificação de líderes e treinamento da liderança ética, a comunicação de questões relativas
a ética no trabalho, a avaliação de desempenho, relatórios sobre riscos e violações éticas,
auditoria em ética e treinamento.23
Os programas de ética em uma empresa possuem dois grandes planos de ação, a
projeção dos seus valores no exterior da empresa e a consolidação dos valores éticos no
âmbito interno da empresa. Tanto um como o outro são tarefas de médio e longo prazo,
principalmente porque envolvem a assimilação de valores e de princípios, a aquisição de
hábitos e formas de pensar individuais, que afetarão possivelmente o coletivo.
É por isso mesmo que são chamados de códigos de ética e conduta, pois tratam de
valores morais relacionados à conduta individual. Esta relação da ética a conduta individual
será abordada a seguir.
4. “A ética é pessoal”, aspectos da filosofia moral
Mas, afinal, o que é a ética? Haverá uma ética empresarial, outra ética nos negócios,
outra ética pessoal? A resposta é clara: não, a ética é uma só e é pessoal. As estruturas, as
instituições, a sociedade não são éticas ou antiéticas, somente a ação humana individual é
suscetível de uma valoração moral.
É impossível ser uma pessoa antiética na vida pessoal (grosseira, mentirosa, injusta) e
um administrador ético. Porque a ética na empresa e nos negócios é um reflexo dos valores
morais que a pessoa possui e pelos quais foi educada. É justamente no dia a dia, nas pequenas
atitudes que as pessoas são ou não são éticas.
A Ética tem sua origem na palavra grega ethos – caráter 24 , o que identifica sua
episteme ao agir humano. A Ética é a ciência moral, “parte da filosofia que estuda a
moralidade do agir humano, quer dizer, considera os atos humanos enquanto bons ou maus.”25
A Ética é diferente da moral, esta é o conjunto de normas da conduta humana, aquela é a
ciência que estuda a moral com o objetivo de extrair princípios e regras universais aplicáveis
a toda conduta humana.
23
Idem p. 57
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Colombia: Fondo de Cultura Economica, 1997.
25
RODRIGUEZ LUÑO, Angel. Ética. Pamplona: ediciones Universidad de Navarra, 1982. P. 8
24
11
Aristóteles, que dedicou seus escritos sobre ética ao seu filho – Nicômaco -,
relacionava conduta humana à busca do bem. Para ele, em síntese, o homem atua em busca de
um bem; o maior bem é a felicidade; a felicidade está na vida virtuosa. 26 E o que é a virtude?
Boas ações repetidas, hábitos em direção ao bem e ao justo.
Em síntese, a ética estuda a conduta humana livre que é direcionada ao bem através da
formação de virtudes na vida de cada um. A escolha é um ato de liberdade, entre algo bom e o
mau, como ilustra C.S. Lewis: “o ser humano não pode desobedecer às leis que compartilha
com as outras coisas. Mas pode desobedecer se assim o quiser, à lei que é peculiar à sua
natureza humana, à lei que não compartilha nem com os animais, nem com os vegetais, nem
com os seres inorgânicos.” Por isso é necessário a formação baseada em valores, para auxiliar
na escolha livre. A inteligência (razão) é quem define o que é o bem e a vontade adere
livremente.
E como identificar o bem e o correto? A formação baseada em valores, a escolha a
partir da consciência, o senso comum identificado a partir de uma cultura positiva de valores.
Por exemplo, algumas perguntas do senso comum podem ajudar a identificar o certo do
errado: “1. Isso é certo? 2. Isso é justo? 3. Estou prejudicando alguém? 4. Eu poderia divulgar
isso para o público ou para alguém respeitado? 5. Eu diria a meu filho para fazer isso? 6. Eu
gostaria que isso acontecesse comigo?”
A ética é simples, como afirma um dito popular: “é fazer a coisa de uma forma que
você possa conversar a noite com os seus filhos à mesa da sala de jantar.”
A ética diferencia aquilo que se pode fazer fisicamente e aquilo que se pode fazer
eticamente. “Nessas duas expressões, a palavra pode tem significados distintos. Daí deriva um
axioma ético muito simples: nem tudo o que se pode fazer fisicamente é ético. Ou mais
brevemente: nem tudo o que é possível é ético.”27
Portanto, o que qualifica uma empresa como ética, são as escolhas boas (corretas)
feitas livremente por seus empresários e funcionários, que devem ser auxiliadas pelo ambiente
ético desenvolvido na empresa a partir de programas de formação em ética. Isto poderá
auxiliar o combate a inversão de valores que existe atualmente. A tolerância com pequenos
delitos, denominar de informal certas atividades econômicas que tecnicamente são ilegais,
transformar o planejamento tributário de uma empresa em sonegação, corrupção e mentira, a
aceitação de condutas ofensivas etc.
26
27
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Madri: Gredos, 1995, 1099b, 5 in WHITAKER, op.cit. p. 5
GOMEZ, Rafael Pérez. Ética empresarial. Madri: Rialp, 1990 in WHITAKER, op.cit. p. 6
12
A postura ética é uma mudança que começa a partir da formação dos valores em cada
um, passa pela tomada de decisão correta e atinge desta forma, todas as nossas relações
pessoais e profissionais. A ética é pessoal, é uma só e começa com a decisão de cada um.
5. Conclusões
A Constituição de 1988 com suas diretrizes e regras para a ordem econômica
possibilitou o desenvolvimento da uma nova concepção da empresa no Brasil. Como foi
demonstrado, os conceitos de livre iniciativa e justiça social, de livre concorrência e redução
das desigualdades não são antagônicos, mas formam a proposta de uma economia social e de
empresas responsáveis pelo desenvolvimento.
A responsabilidade sócio-ambiental das empresas pode gerar um círculo virtuoso na
economia de um país. No livro “Rentabilidade dos valores” organizado pela Uniapac – União
Internacional Cristã de Dirigentes de Empresa28, há a projeção das relações positivas que se
formam em torno as empresas socialmente responsáveis. Por definição, estas empresas são
consideradas empresas sustentáveis e humanas, com alma e ideais baseado em valores (ética),
tornando-se assim empresas mais competitivas no mercado. Este crescimento gera mais
empregos e melhores remunerações e assim fortalecem o mercado interno, diminuindo a
pobreza. Este primeiro resultado afeta diretamente o crescimento econômico do país e
estimula a formação de mais empresas e mais empregos, que significa maior arrecadação
fiscal, o que torna o país mais competitivo por ter mais recursos para o investimento interno.
Esta aplicação de recursos também será destinada a educação e outros fatores que podem
produzir o aumento da cultura de cidadania, que em contra partida irá fortalecer novas e mais
empresas socialmente responsáveis.
Este círculo virtuoso só é possível através do comprometimento ético de cada pessoa
envolvida no processo, tanto do setor privado como do setor público.
A ética empresarial é, portanto, o fio condutor da atividade empresarial, que reforça o
compromisso econômico, social e ambiental das empresas. Diante disso, é possível concluir
que o investimento em programas de ética na empresa é o ponto central para a concepção de
uma nova economia de mercado, que respeita mais a pessoa e contribui para o crescimento
econômico justo e solidário.
28
UNIAPAC, A rentabilidade dos valores. São Paulo: Nova Bandeira Produções editoriais, 2008. p. 15
13
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