Capitalismo: teoria e dinâmica atual

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Capitalismo: teoria e dinâmica atual
PARA ALÉM
DO
NEOLIBERALISMO: A SAGA DO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
PARA ALÉM DO NEOLIBERALISMO
a saga do capitalismo contemporâneo
PAUL SINGER
Professor do Departamento de Economia da USP.
Autor dos livros Economia política da urbanização e Um governo de esquerda para todos.
Q
duz ou distribui mercadorias, como a produção simples,
mas difere desta porque abrange empresas não só pequenas como também de porte médio e grande.
Os modos de produção funcionam lado a lado, intercambiando produtos e competindo entre si. O modo capitalista emprega trabalhadores, cujo sustento depende em
maior ou menor medida da produção doméstica. O principal produto vendável desta é a força de trabalho. As
crianças nascidas e criadas nas famílias serão os futuros
trabalhadores, sem os quais o modo capitalista não poderia existir. O modo capitalista depende, portanto, da produção doméstica e também da produção pública (educação, saúde, etc.) para obter a mão-de-obra que lhe é
imprescindível.
O modo capitalista de produção compete e transaciona
com os outros modos de produção de mercadorias, o simples e o cooperativo. A competição se dá nos mercados,
entre firmas pertencentes a estes diversos modos de produção. O intercâmbio ocorre na mesma medida, pois firmas capitalistas, de produtores autônomos e cooperativas
compram e vendem umas às outras. Nos últimos tempos,
firmas capitalistas, para não desembolsar encargos trabalhistas, tratam de contratar trabalhadores não mais como
assalariados, mas como produtores simples de mercadorias ou cooperativas de trabalho. Esta transformação das
relações de produção ilustra a importância do relacionamento entre modos de produção como elemento da dinâmica social e econômica da formação social.
Os modos de produção em conjunto formam a infraestrutura econômica da formação social capitalista. As
relações sociais que se estabelecem entre os produtores e
consumidores, inseridos nos diversos modos de produção,
são reguladas por normas, leis e valores derivados de estruturas legais, políticas e culturais que formam a supra-
uando falamos de capitalismo, estamos nos referindo simultaneamente a um modo de produção e a uma formação social. Esta última contém vários modos de produção, dos quais o capitalista sói
ser o maior e o hegemônico. Por isso, a formação social
que vem se espalhando pelo mundo, nos últimos 200 anos,
também é chamada de capitalismo.
Convém desde logo esclarecer esta ambigüidade, de
que nem todos estão a par. Um modo de produção é uma
forma específica de organizar a atividade produtiva e de
repartir o resultado entre os participantes. O capitalismo
organiza a produção em empresas, que são propriedade
privada. Seus detentores comandam a produção, visando
maximizar o lucro. Para tanto, empregam trabalhadores,
aos quais pagam salários por tempo de trabalho e/ou quantidade produzida. As características da empresa capitalista vêm se modificando ao longo da história e são estas
mudanças – como ainda veremos – que marcam as transformações do modo de produção.
Na formação social capitalista há diversos outros modos de produção. Podemos enumerar os mais importantes. A produção simples de mercadorias é realizada por
produtores independentes, que possuem os próprios meios
de produção. Normalmente, os proprietários não empregam trabalhadores assalariados, mas membros da família. Excepcionalmente, haverá empregados, quase só em
funções auxiliares. A produção pública, estatal ou privada, emprega assalariados e oferece bens ou serviços gratuitamente, por exemplo, ensino público, segurança
pública, saúde pública, etc. A produção doméstica se caracteriza pelo autoconsumo. Ela abarca as atividades produtivas realizadas no seio da família para o consumo de
seus membros. A produção cooperativa é constituída por
empresas de propriedade de seus trabalhadores. Ela pro-
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estrutura. Esta distinção, que devemos a Marx, é extremamente útil, porque no capitalismo infra e supra-estrutura estão sujeitas a dinâmicas deveras distintas.
A infra-estrutura capitalista se move pela incessante
revolução das técnicas de produção e pela ininterrupta invenção de novos produtos. Estas mudanças originam-se,
via de regra, nas empresas capitalistas e é fundamentalmente por isso que o capitalismo, enquanto modo de produção, é hegemônico. As revoluções tecnológicas, que
geram novas maneiras de produzir e de consumir, são suscitadas planejadamente pelas grandes empresas capitalistas, mediante uma atividade sistemática de P&D (pesquisa e desenvolvimento). Os demais modos de produção são
atingidos pelos novos produtos e métodos e se adaptam a
eles.
Além disso, a dinâmica da infra-estrutura é produzida
pelo investimento produtivo, tanto na manutenção, reparação, ampliação, etc. das empresas existentes como na
criação de novas. Todos os modos de produção investem,
pois disso depende sua continuidade e desenvolvimento.
Mas, a capacidade de investir do capitalismo é maior,
exceto em períodos de guerra ou de reconstrução ou em
determinadas conjunturas da industrialização, quando os
investimentos mais importantes são realizados pela produção pública. Normalmente, o ritmo de crescimento da
infra-estrutura é determinado pela acumulação de capital, ou seja, pela inversão das empresas capitalistas.
A dinâmica da supra-estrutura é dada por um complexo de interações sociais e políticas. Uma das teses mais
controvertidas de Marx é que este complexo é sempre
dominado pela luta de classes. Os individualistas, por sua
vez, acreditam que, na “modernidade”, estas interações
são protagonizadas essencialmente por indivíduos, desejosos de maximizar algo como utilidade, satisfação ou
prazer. Ambas as teses são reducionistas, mas contêm importantes elementos explicativos da realidade.
Em determinadas conjunturas históricas, as classes
subordinadas se unem contra o status quo e, com isso, forçam as classes dominantes a se unir também, o que dá
lugar a confrontos que, eventualmente, desembocam em
revoluções ou contra-revoluções. Em outras conjunturas,
as distâncias entre classes dominantes e subordinadas
encurtam; boa parte dos indivíduos consegue vencê-las e
esta mobilidade interclassista ampliada dilui os laços de
solidariedade, fazendo com que a maioria dos indivíduos
atue mais isoladamente.
A era atual é de revoluções, contra-revoluções e guerras, ou seja, de movimentos de massa. Como resultado
destes, a supra-estrutura política vem se democratizando
e a massa trabalhadora, destituída de propriedade, conquista direitos. Cada vez mais, a supra-estrutura vem sendo
transformada por lutas de massa que, ocasionalmente, são
confrontadas com amplos movimentos repressivos. Que
teremos ocasião de discutir adiante.
O que importa aqui é deixar claro que infra e supraestruturas são impulsionadas por forças muito diferentes.
A infra-estrutura é basicamente movida pela dinâmica do
capital e é possível dizer que a supra-estrutura recebe os
impactos das revoluções tecnológicas e de seus resultados, que atingem de modo diferente cada classe social e
suas várias frações.
Além destes impactos, as estruturas legais, culturais e
políticas têm sua própria dinâmica. Marx supunha que os
impulsos decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas condicionariam o lento revolucionamento das instituições supra-estruturais. A história tem confirmado, em
boa medida, esta visão, mas seria um erro reduzir a evolução legal, cultural e política aos efeitos das transformações econômicas. É um erro cometido muito mais pelos
discípulos do que pelo autor original.
Examinaremos na seção seguinte a evolução histórica
do capitalismo e nas outras seções, a fase contemporânea
desta formação social e suas perspectivas futuras. O enfoque será do capitalismo como formação cada vez mais
global, mas trataremos de ilustrar as hipóteses com eventos de nossa própria história.
O CAPITALISMO EM PERSPECTIVA HISTÓRICA
O Surgimento da Formação Social Capitalista
O capitalismo, enquanto modo de produção, originase da revolução comercial, que teve a Europa medieval
como palco, por volta dos séculos XI a XIV. O comércio
intercontinental tinha cessado, após a queda do Império
Romano, mas foi sendo gradativamente restabelecido a
partir das Cruzadas, que podem ter sido um elemento
detonador da revolução comercial. Seja como for, a Europa foi se envolvendo cada vez mais em redes de trocas
comerciais com o extremo oriente, cujo grau de civilização era muito mais avançado. Surgiu daí uma crescente
produção para o mercado, organizada sob forma de produção simples de mercadorias nas cidades. Posteriormente, no campo, as prestações servis em natura foram transformadas em pagamentos monetários, o que deu início à
substituição da própria servidão pela agricultura camponesa, uma combinação peculiar de produção doméstica (ou de
subsistência) com produção simples de mercadorias.
A passagem da servidão à agricultura camponesa esteve longe de ser pacífica. Houve muitas guerras e sublevações camponesas, que pontuaram aquela transição. Onde
ela se atrasou, o desenlace tomou a forma de grandes revoluções, como a francesa, no final do século XVIII. O
que importa aqui é que a formação social que surgiu na
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Europa, entre os séculos XIII e XVI, tinha o grande capital mercantil como camada dominante. Este, para operar
no comércio de longa distância, tinha de ter por base uma
crescente produção de mercadorias, organizada majoritariamente como produção simples artesanal ou camponesa. Havia também empresas capitalistas, explorando
certo número de artesãos no sistema de encomenda
(putting-out) ou mesmo como assalariados, mas estas formas antigas de capitalismo eram minoritárias e, de início, excepcionais.
A partir do século XVI, a Inglaterra, que acabaria sendo a pátria do capitalismo, assistiu ao gradual desenvolvimento das empresas capitalistas em determinados setores de produção. “Ao mesmo tempo, numa série de novas
indústrias, como as de cobre, bronze e material bélico,
papel e fabricação de pólvora, alume e sabão, e também
na mineração e na fundição, a técnica de produção foi
bastante transformada, como resultado das invenções recentes, que tornavam necessário um capital inicial muito
além da capacidade do artesão comum. Conseqüentemente, neste setor, as empresas eram fundadas por homens e
iniciativas que se associavam ou reuniam ações, começando a empregar trabalho assalariado em escala considerável.” (Dobb, 1946:90)
Este ponto é fundamental para entender a evolução do
capitalismo. Sua vantagem em relação a outros modos de
produção foi, desde a origem, a possibilidade de organizar a
produção em escalas tão grandes quanto as requeridas pela
técnica de produção. O artesanato e a agricultura camponesa não tinham esta possibilidade, pois baseavam-se na produção familiar. Sua escala de produção dificilmente poderia
ultrapassar os limites do círculo familiar.
É interessante observar que alguns dos ramos em que
o capital teve cedo a oportunidade de revelar sua superioridade, na Inglaterra, se originavam de invenções chinesas, como a produção de papel e de pólvora, o que indica
que na China a manufatura em grande escala já deveria
estar implantada há muito tempo. Não sabemos se o modo
de produção capitalista se desenvolveu naquele império,
quando a Europa ainda estava no feudalismo, mas é uma
hipótese que não se pode descartar.
O capitalismo prosperou nos interstícios da produção
simples de mercadorias, dominada pelo capital mercantil, na Inglaterra, sobretudo nas atividades em que a melhor técnica exigia a cooperação de grande número de trabalhadores. A evolução técnica foi favorecendo o capitalismo
com o passar do tempo, mas a burguesia manufatureira
dificilmente poderia ter aspirado à hegemonia se, no século XVIII, a Primeira Revolução Industrial não tivesse
acelerado de forma brutal aquela evolução.
A ruptura deu-se com a invenção por Arkwright, em
1769, do water frame, uma máquina de fiar que era mo-
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CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
vimentada por animais de tração ou por rodas d’água. Até
então, as inovações técnicas na fiação e tecelagem eram
compatíveis com a produção artesanal. Mas, com as novas máquinas de fiar começou o período fabril nesta atividade, a mais importante da economia inglesa. Arkwright
mesmo, além de patentear o invento, associou-se a outros capitalistas e fez construir um crescente número de
fiações industriais, de natureza indubitavelmente capitalista. Poucos anos depois, em 1785, Cartwright logrou
construir o primeiro tear mecânico, por meio do qual o
capital se apoderou de todo o setor têxtil.
Os artesãos tiveram de competir com as fábricas e para
resistir precisaram abrir mão de parte crescente de seus
ganhos. Durante muitas décadas, puderam concorrer na
produção de artigos de melhor qualidade, que as primeiras máquinas não conseguiam fabricar. Mas, sua sorte
estava selada. As máquinas foram aperfeiçoadas até conseguirem qualidade melhor que a produção manual. Com
isso, milhões de artesãos ficaram sem trabalho e outros
tantos persistiram até morrerem de fome.
A partir de então, desenvolveram-se tecnologias que
utilizavam maquinismos cada vez maiores, cada vez mais
caros e cada vez mais eficientes. À frente desse processo
estavam capitalistas, ou seja, empreendedores que empregavam trabalho assalariado para construir suas máquinas.
Não por acaso, seus clientes também eram, em sua maioria, fabricantes capitalistas. Talvez o caso mais representativo seja o de James Watt, o inventor do motor a vapor,
que para poder aperfeiçoar seu invento se associou a
Matthew Boulton, um dos principais capitães da indústria metalúrgica da época.
A Primeira Revolução Industrial deu origem à formação social capitalista, ou seja, à formação social em que o
modo capitalista de produção domina a infra-estrutura.
Mas, este domínio não poderia se impor unicamente por
sua superioridade competitiva, pois no fim do século XVIII
os mercados estavam longe de ser de livre concorrência.
O avanço do capital na indústria têxtil e na agricultura, e
depois em todos os outros ramos, feria os interesses tanto
dos produtores simples de mercadorias como dos grandes mercadores monopolistas, detentores de privilégios
comprados a peso de ouro do rei e de seus ministros. Os
interesses feridos mobilizaram todos os recursos políticos que puderam para obter da Câmara dos Comuns a
proibição do uso das máquinas automáticas. Seu fracasso
mostra que também na supra-estrutura mudanças profundas estavam em curso.
Na Inglaterra, a principal mudança política tinha sido
desencadeada pela série de movimentos revolucionários,
que levaram à deposição e execução de Carlos I, à ditadura de Cromwell, à restauração Stuart e, finalmente, à
Gloriosa Revolução de 1688. Desde então, a Grã-Bretanha
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vinha tendo governos “representativo”, escolhidos por
uma Câmara eleita por voto censitário. Após um século,
esta Câmara recusou as petições contra as grandes máquinas e, pouco depois, aprovou feroz legislação contra
os “quebradores de máquinas”.
A vitória do capital industrial foi devida também ao
apoio da aristocracia fundiária, que pouco antes tinha assumido a vanguarda da transformação capitalista da agricultura. Ela promoveu o cercamento de suas propriedades e a expulsão dos camponeses delas. Amplas extensões
de terra foram entregues a grandes arrendatários capitalistas, que procediam ao seu cultivo com trabalhadores
assalariados. Para alguns, a Revolução Agrícola precedeu a Revolução Industrial. O aburguesamento da nobreza britânica foi crucial para que o capitalismo, enquanto
formação social, se viabilizasse.
Outro fator que certamente pesou foi a rivalidade com
a França, que estava passando pela sua grande revolução.
As longas guerras napoleônicas marcaram o embate entre as duas maiores e mais adiantadas nações européias:
França e Grã-Bretanha. A vitória final sorriu aos ingleses
também graças à sua superioridade econômica, alcançada mediante a Revolução Industrial. A competição externa foi o argumento usado pelos fabricantes para persuadir os Comuns a rejeitar as petições contra as máquinas.
com as unidades de produção precedentes, mas não grande demais para ser administrada pelo proprietário, com a
ajuda de uma equipe limitada de associados, parentes e
empregados de confiança. Nos principais mercados, o
número de concorrentes era grande e a firma capitalista
típica era “tomadora de preço”, ou seja, praticava o preço
prevalecente no mercado.
As exceções eram constituídas pelas prestadoras de
serviços públicos, como as companhias de estradas de
ferro, de construção e operação de canais, de navegação,
de telegrafia, etc. Para possibilitar o financiamento de seus
colossais patrimônios, “desregulamentou-se” a estrita legislação que até então (meados do século XIX) exigia carta
patente, concedida pelo Parlamento, para a criação de sociedade anônima e plena responsabilidade de seus sócios
pelos débitos da mesma. A aprovação da “responsabilidade limitada” dos detentores de ações foi uma revolução legal, que tornou possível o crescimento ilimitado da
firma privada mediante o amálgama de inúmeras poupanças individuais, sem que seus detentores se envolvessem
na gestão da mesma.
A transformação da supra-estrutura legal, política e
cultural foi imensa, através de contínuas revoluções políticas. Não há qualquer exagero em considerar a era aberta pelas revoluções Americana e Francesa como uma era
de revoluções e contra-revoluções. Basta recordar as revoluções coloniais na América Latina, iniciadas em 1810;
a Revolução de 1830, na França, seguida de perto pela
quase-revolução de 1832, na Grã-Bretanha, que aprovou
a primeira reforma parlamentar (por meio da qual a burguesia conquistou os direitos políticos); as numerosas revoluções de 1848, que cobriram a Europa quase inteira; a
Guerra Civil dos EUA (1861-65); a Revolução Meiji (1868)
no Japão; e a Comuna de Paris, em 1871, em que o proletariado fez o seu primeiro ensaio de tomada do poder
com sucesso.
O que estas revoluções tiveram em comum foi que todas elas representaram intervenções profundas na estrutura política e legal, que, de uma forma geral, transformaram colônias ou territórios “balcanizados” em nações
independentes e unificadas, estenderam direitos civis e
políticos a novos grupos sociais, limitaram o poder dos
governos e os submeteram à autoridade de legislativos
eleitos, aboliram privilégios e difundiram a igualdade dos
cidadãos perante a lei. No plano da cultura, estas revoluções difundiram nos países ditos “civilizados” os valores
do liberalismo, das liberdades individuais e dos direitos
da cidadania.
Uma pergunta-chave seria a seguinte: há alguma relação necessária entre a revolução infra-estrutural, que produziu a hegemonia do capitalismo, e as revoluções políticas, que prepararam o advento (no século XX) do mundo
Consolidação da Formação Social Capitalista
Entre 1780 e 1880, a indústria fabril consolidou-se na
Grã-Bretanha e se difundiu na Europa Ocidental e Central e na América do Norte. A construção acelerada de
ferrovias, a partir dos anos 40 do século passado, unificou mercados nacionais, inclusive de nações continentais
como os Estados Unidos. No mesmo sentido, ativou a
construção de canais e o desenvolvimento da navegação
a vapor, da telegrafia e da telefonia. A unificação de vastos mercados continentais possibilitou a produção e distribuição em massa, a partir dos 1870, o que vai dar origem à Segunda Revolução Industrial.
Mas, não foi só a indústria que se difundiu. Também o
governo representativo e o laissez-faire, praticados inicialmente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, foram
sendo aos poucos adotados por todos os povos “civilizados”. O Brasil do Segundo Império, por exemplo, também incorporou estes princípios à estrutura político-legal, embora sua prática esbarrasse na presença vergonhosa,
mas indispensável (à classe dominante), da escravidão.
Nestes cem anos, a formação social capitalista tornou-se
a regra na Europa e foi se desenvolvendo em quase todos
os países independentes.
Nesta fase inicial do capitalismo enquanto formação
social, a empresa capitalista era grande em comparação
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das nações e da democracia? A resposta positiva teria de
tomar por base o surgimento e o desenvolvimento do
movimento operário, como reação revolucionária à ameaça representada pelo avanço do capital industrial ao status
da classe operária.
Na época da Primeira Revolução Industrial, a classe
operária não agrícola era composta majoritariamente por
produtores independentes, artesãos pertencentes a guildas,
através das quais defendiam seu monopólio legal sobre
determinados segmentos de mercados, delimitados pela
especialização profissional. O advento da indústria fabril,
empregadora de grande massa de trabalhadores, inicialmente não qualificados e em seguida semiqualificados,
como operadores de máquinas, implicava a total destruição dos direitos profissionais e econômicos tradicionalmente gozados por mestres e oficiais. Como sabemos, a
reação inicial foi tentar impedir a construção das fábricas
por meios legais. E dado o insucesso desta tentativa, parte dos trabalhadores partiu para a destruição das fábricas,
o que foi imediatamente reprimido com extremo rigor.
Após o fim das guerras napoleônicas, o movimento
operário britânico mudou de rumo. Deixou-se influenciar
por Robert Owen, que achava as conquistas da revolução
industrial um passo enorme para a emancipação da humanidade e propunha aplicá-las em um novo modo de
produção, que denominava socialismo. Este tomaria a
forma de aldeias cooperativas, em que a produção e o
consumo seriam organizados coletivamente e democraticamente. Se Marx e Engels são os pais do socialismo
moderno, Owen deveria ser considerado com justiça o avô.
O fato histórico decisivo é que, a partir de certo momento, o movimento operário cessou sua oposição às inovações técnicas e passou a lutar não mais contra a indústria, mas contra o capitalismo. À medida que avançava o
capitalismo industrial em cada país, uma parcela cada vez
maior de seus trabalhadores se transformava em assalariados, cujos interesses imediatos eram melhorar suas condições de trabalho e de remuneração e acelerar a acumulação de capital, mediante a qual se expandia a procura
por força de trabalho e, portanto, a própria classe operária. Os interesses de longo prazo do operariado eram conquistar novos direitos – civis, políticos e sociais – no seio do
próprio capitalismo e preparar sua substituição por uma formação social em que não haveria mais capitalistas e assalariados, mas apenas produtores associados.
A presença socialista nos primeiros eventos da era das
revoluções foi minúscula. O papel de Babeuf e de sua
“conspiração dos iguais” na Revolução Francesa foi praticamente simbólico. Mas, com o passar do tempo e a proletarização dos trabalhadores, o movimento operário
ganha importância e sua participação nos diversos movimentos revolucionários será cada vez maior. Quando, em
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1848, Marx e Engels iniciam o Manifesto Comunista com
as célebres palavras: “Um espectro vaga pela Europa – o
espectro do comunismo”, eles talvez estivessem exagerando naquele momento. Mas a enorme importância que o
Manifesto ganharia nas décadas seguintes é uma clara demonstração de que o comunismo assombraria cada vez mais
não só a Europa, mas todo o mundo capitalista.
A partir de 1848, a presença de correntes proletárias –
socialistas, comunistas, anarquistas – nas revoluções será
crescente. E estas correntes são produzidas pelo avanço
do modo de produção capitalista sobre os outros modos
de produção, em particular sobre a produção simples de
mercadorias. Este seria o elo entre a revolução capitalista
na infra-estrutura e o amplo revolucionamento da supraestrutura, impulsionado não só, mas também, pelas revoluções políticas. A mudança supra-estrutural ganhará dinamismo próprio e tornará desnecessário o recurso à
revolução à medida que os direitos civis, políticos e sociais se universalizam.
Convém registrar, finalmente, que o advento do movimento operário socialista vai produzir um implante coletivista nos interstícios da formação social capitalista: as
cooperativas de consumo e de produção. A partir da iniciativa dos “Pioneiros Equitativos” de Rochdale, lançada
em 1844, inúmeras cooperativas foram criadas nos países capitalistas. Juntamente com os sindicatos, com a legislação do trabalho e da previdência social pública e,
sobretudo, com a democracia, as cooperativas representam germes de uma nova formação social, que poderão
desabrochar ou não.
A Segunda Revolução Industrial e o
Capitalismo Monopolista
A partir dos anos 80 do século passado, tem início nova
onda de inovações técnicas que constituem a Segunda
Revolução Industrial. Ela produziu o acesso a novas formas de energia, como a elétrica e a produzida pelo motor
à explosão, e a novas modalidades de consumo, desde o
automóvel e os aparelhos domésticos até a radiodifusão,
a televisão, a medicina científica, etc. Assim como a Primeira, também a Segunda Revolução Industrial encurtou
as distâncias mediante novas formas de transporte aéreo,
aquático e terrestre e de telecomunicações.
É claro que a infra-estrutura sofreu imenso impacto em
função da Segunda Revolução Industrial, com inúmeros
efeitos sobre produção, distribuição e consumo. Destes
todos, interessa destacar um, que teve o condão de fazer
o capitalismo entrar em uma nova etapa. Trata-se da produção e distribuição em massa. Como vimos, os resultados da Primeira Revolução Industrial permitiram a unificação dos mercados nacionais e continentais. Para
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produtos de maior valor agregado, criou-se mesmo um
mercado mundial. Foi esta imensa ampliação dos mercados que suscitou a invenção e o desenvolvimento de métodos de produção em massa. Sendo possível produzir para
dezenas e centenas de milhões de pessoas, os ganhos de escala industriais a ser obtidos passaram a ser estupendos.
O desenvolvimento de métodos de produção em massa deu-se, em primeiro lugar, nos Estados Unidos, cujo
mercado nacional havia crescido muito por efeito da fronteira móvel que, no fim do século XIX, atingiria o Pacífico. Ele começou na produção de líquidos, como bebidas
e derivados de petróleo, e se estendeu em seguida ao processamento contínuo de sólidos, como cereais, tabaco,
carne, etc. Finalmente, técnicas de produção em massa
foram inventadas também para as indústrias de montagem, a começar pela de armas, depois máquinas de escrever e, finalmente, automóveis. A invenção da linha de
montagem, por Ford, já no começo do século atual, é a culminância de um processo iniciado cerca de 50 anos antes.
Quando a produção em massa começou a revelar seu
prodigioso potencial, estas técnicas se difundiram por
outros continentes, a começar pela Europa e, em seguida,
pela América Latina e Ásia. Muitas empresas dos EUA,
tão logo consolidaram posições importantes nos mercados internos, trataram de se lançar à conquista de mercados externos, primeiro mediante exportação e, posteriormente, através da abertura de filiais em outros países. A
primeira multinacional foi a Companhia Singer, que construiu a maior fábrica de máquinas de costura do mundo,
nos 1860, na Escócia.
O exemplo “americano” foi prontamente imitado pelos europeus, sobretudo pelas empresas alemãs, que dispunham, depois da unificação do país, do maior mercado
interno do continente. Com a abertura dos mercados internos às importações, que se verificou nos anos 60 e 70
do século passado, todas as potências industriais passaram a disputar os ganhos de escala decorrentes da produção em massa. Os preços das mercadorias produzidas em
série passaram a cair rapidamente, o que eliminava dos
mercados os competidores que não conseguiam produzir
em quantidades tão grandes quanto seus rivais.
O resultado foi uma imensa centralização de capitais.
Muitas empresas se fundiam ou as maiores adquiriam as
menores, sempre no intuito de ampliar a escala de produção e distribuição. Em cada ramo industrial, o número de
empresas caía e o tamanho das que restavam era cada vez
maior. Havia, é claro, dificuldades em controlar e gerir
efetivamente empresas que se tornavam gigantescas. Mas
estes problemas já estavam sendo enfrentados, havia décadas, pelas grandes prestadoras de serviços públicos,
sobretudo as ferrovias. A estrutura administrativa desenvolvida por estas empresas foi adaptada pela indústrias
que resultavam da centralização do capital. Generalizava-se o capital monopólico.1
O caráter dos mercados modificava-se, pois os capitais monopólicos tinham poder para determinar seus preços em vez de aceitar os praticados no mercado. Os setores em que a produção em massa ainda não era possível,
como a agricultura, ficaram em posição de franca inferioridade em relação aos que se tornaram monopólicos. Os
farmers, nos EUA, vendiam sua produção a indústrias processadoras de grande tamanho que, em mercados regionais,
se tornavam monopsônios (compradores únicos). Ao mesmo tempo, eles tinham de adquirir adubos, sementes e máquinas agrícolas de monopólios. Seus ganhos eram esmigalhados pelos preços altos dos insumos que compravam
diante dos preços baixos que obtinham pelos seus produtos.
No fim do século passado, as regiões agrícolas dos EUA
originaram um movimento, chamado de “populista”, de
revolta contra o domínio do capital monopolista. Ele conquistou suficiente poder político para aprovar uma legislação anti-trust, que obriga o Departamento de Justiça a
dissolver os monopólios e impedir que a livre concorrência seja eliminada. Esta legislação não pôde brecar e reverter a centralização de capitais, desencadeada pela
Segunda Revolução Industrial. Mas serviu e continua servindo para impedir que a centralização seja levada às últimas conseqüências.
A lógica da centralização é produzir o monopólio. A
maximização do lucro em ramos de produção em que
ganhos de escala são significativos leva os capitais a se
centralizar até constituírem uma só empresa. Não há qualquer razão para cessar os processos de fusão e aquisição
antes. Mas, se nos principais ramos industriais e de serviços – inclusive transporte, telecomunicações, comércio e
finanças – os mercados se tornassem monopólicos, os preços e, possivelmente, as quantidades de mercadorias a ser
transacionadas teriam de ser fixados por algum árbitro
estatal, o que transformaria o capitalismo em alguma espécie de economia centralmente planejada.
A preservação do capitalismo é vital para todos os capitais, pequenos, médios e grandes. Por isso, coletivamente, a classe capitalista deseja preservar alguma descentralização dos capitais e alguma competição entre eles,
apoiando a ação governamental que impede a monopolização da economia. Esta ação admite a centralização até
o limite do oligopólio, ou seja, aprova Fs&As (fusões e
aquisições) até que reste um número mínimo, mas maior
que um ou dois, em cada mercado. A ação antimonopólica
do Estado capitalista é ainda bastante controvertida, mas
não resta dúvida de que todos os mercados dominados
pelo grande capital tendem a ser oligopólicos.
Surge assim uma elite de grandes empresas, integradas verticalmente e horizontalmente. Elas são, na verda-
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de, “multiempresas”, ou seja, conglomerados de numerosas empresas que – sendo independentes – seriam competidoras ou complementares. A multiempresa se integra
verticalmente ao fundir em si produtores de matérias primas, processadores de produtos intermediários, fabricantes
de produtos finais, distribuidores destes produtos no atacado e no varejo, empresas financiadoras de vendas a crédito, prestadoras de assistência técnica, etc. reunindo sob
a mesma firma todas as etapas de uma cadeia produtiva;
ela se integra horizontalmente ao fundir em si um grande
número de empresas que realizam a mesma atividade em
diferentes localidades de um país e em diferentes países.
A produção em massa suscitou uma nova lei: muitas
empresas reunidas em uma só tinham custos mais baixos
e, portanto, eram mais lucrativas do que o seriam separadamente. Mas, esta lei não abrangia toda economia. Em
setores em que os produtos não são padronizáveis, em que
a iniciativa local e imediata é vital na prestação de um
serviço ou em que o atendimento personalizado do cliente é de grande importância, os ganhos de escala não existem ou são insignificantes em face de outros fatores que
requerem descentralização. Na agricultura, no comércio
de produtos de alto valor (carros, objetos de arte, jóias,
etc.), nos serviços de reparação, na educação e na assistência da saúde, unidades descentralizadas podem ser mais
eficientes e lucrativas do que multiempresas.
Desta maneira, a classe capitalista passou a se dividir
em duas frações distintas: a fração oligopólica das multiempresas e a fração das empresas geridas pessoalmente
pelos donos. As multiempresas são administradas por diretores e gerentes profissionais, que são assalariados. Em
geral, são remunerados por opções de compra de ações, o
que os torna acionistas da empresa ao longo de sua carreira. Mas, eles não dirigem as multiempresas na condição de acionistas, e sim como profissionais assalariados.
Um grupo que detém uma maioria de ações com direito a
voto assume o controle da empresa, designa seus diretores e monitora seu desempenho através de seu conselho
de administração.
As empresas capitalistas geridas pelos proprietários
atuam nos setores descentralizados e, freqüentemente, são
satelizadas pelas multiempresas. Os cultivadores e criadores que dependem de indústrias processadoras, os
revendedores de produtos de multiempresas, como carros, seguros ou gasolina, etc, são exemplos de empresas
descentralizadas, operados pelos donos, mas que se pautam pelas regras das multiempresas que compram sua produção ou cujos produtos revendem.
Os efeitos centralizadores da produção em massa também atingiram os sindicatos de trabalhadores. As
multiempresas trataram de impedir de todas as maneiras
que seus trabalhadores fossem organizados por forças
DO
NEOLIBERALISMO: A SAGA DO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
hostis ao capital. Algumas recorreram à repressão violenta,
outras promoveram a formação de “sindicatos de empresas”, que elas controlavam. Nos EUA, apenas nos anos
30, no bojo das grandes lutas por direitos sociais, o movimento operário conseguiu tomar pé nas multiempresas.
Crise, Depressão e Segunda Guerra Mundial:
surge o capitalismo dirigido
O desenvolvimento do capitalismo monopólico aguçou as contradições entre as grandes potências, engajando-as em luta mortal pelo domínio dos mercados mundiais. O resultado foi a Primeira Grande Guerra (1914-18),
em que duas coligações imperialistas se defrontaram em
longo morticínio, que custou a vida de milhões de pessoas e devastou amplas regiões da Europa. Finda a guerra, eclodiu uma onda revolucionária, iniciada ainda em
1917, na Rússia, onde os comunistas tomaram o poder, e
em seguida atingiu os impérios derrotados. A monarquia
foi derrubada na Alemanha, na Áustria-Hungria e na Turquia, sendo que os dois últimos impérios foram totalmente
desmembrados.
A reconstrução das economias devastadas foi retardada
em parte pela exigência de pagamento de grandes reparações de guerra pela Alemanha e pela instabilidade política
nas novas repúblicas da URSS, Polônia, Hungria e Áustria.
Em todos estes países, a desordem fiscal e monetária do tempo
de guerra ainda se agravou na paz e hiperinflações violentas
destruíram as poupanças, desvalorizaram as dívidas públicas e arruinaram a pequena burguesia. O receio da inflação
tornou-se obsessivo entre as classes dominantes e, em conseqüência, ressurgiu o conservadorismo monetário, que
entronizava a estabilidade dos preços como valor supremo
da condução pública da economia.
Ao mesmo tempo, houve também importantes avanços democráticos. A maioria dos países adiantados adotou o sufrágio universal, estendendo plenos direitos
políticos às mulheres. No Brasil, o sufrágio universal foi
adotado a partir de 1932. O movimento operário ganhou
força e, pela primeira vez, em 1924, um partido de esquerda – o Labour Party – conquistou o governo num
grande país, a Grã-Bretanha. A consolidação do poder soviético na URSS deu imenso ânimo a todas as forças anticapitalistas.
Esta evolução foi, no entanto, freada pela crise de 192933, seguida por uma depressão que só terminou na década seguinte, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Esta foi, indiscutivelmente, a pior crise da história do capitalismo, em termos de destruição de valores, de amplitude e duração do desemprego, de empobrecimento em
massa. Os bancos centrais, com o “americano” e o inglês
à frente, permaneciam preocupados com o perigo de hi-
9
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
perinflação e mantinham contidos os gastos públicos e o
crédito. Deste modo, uma crise já agravada pela centralização do capital, como veremos adiante, tornou-se interminável por causa das políticas recessivas praticadas pelos governos e autoridades monetárias.
Convém observar que durante a etapa do capitalismo
concorrencial, sempre que ocorriam crises os preços despencavam, as empresas mais frágeis fechavam, a produção caía juntamente com a demanda, mas a tendência à
baixa da atividade e do emprego tendia a desacelerar. A
desvalorização do capital ajudava a recuperar a taxa de
lucro2 e a economia estava pronta para encetar nova fase
de crescimento. Na etapa do capitalismo monopólico, as
multiempresas não quebram e nem baixam os preços. Elas
preferem preservar as margens de lucro, reduzindo o volume de produção e despedindo parte dos trabalhadores.
O desemprego e a eventual baixa dos salários, que pode
ocorrer ou não, reduzem a demanda, o que induz as multiempresas a novos cortes na produção e no emprego. A
tendência à baixa não desacelera, podendo até acelerar se
houver pânico financeiro e falência de bancos e outros
intermediários financeiros.
A crise tenderia a se estender se não fossem as empresas pequenas e médias, que continuam baixando os preços e quebrando. Como os grandes e pequenos capitais
interagem, no final os preços todos caem (inclusive os das
multiempresas, cujos custos decrescem) e a crise eventualmente chega ao fim, mas depois de ter durado mais e
causado perdas muito maiores. Foi isso que aconteceu em
1929-33: após forte boom especulativo, a Bolsa de Nova
York sofreu baixas contínuas até entrar em colapso. A desvalorização maciça das ações cotadas arruinou os
aplicadores e os bancos que os financiavam.
A crise irradiou-se rapidamente dos Estados Unidos ao
resto do mundo, mas foi completamente subestimada tanto
pelos tecnocratas dos tesouros e bancos centrais como
pelos formadores da opinião pública, exceto por um punhado de clarividentes, entre os quais se destacava John
Maynard Keynes. O mundo oficial continuava mesmerizado
pelo temor à inflação e, por isso, aplicava medidas purgativas, que prolongavam e agravavam a crise.
Finalmente, após três longos anos de sofrimentos, os governos “bem-pensantes” começaram a ser substituídos por
outros, heterodoxos, prontos a fazer o oposto ao recomendado pelo consenso conservador. Em 1932, os social-democratas subiram ao poder na Suécia; e, em janeiro de 1933,
Roosevelt foi empossado na Casa Branca e Adolf Hitler na
Reichskanzlei, em Berlim. Estes governos passaram imediatamente a expandir o gasto público, a liberar o crédito e a
desvalorizar a moeda em relação ao ouro. Os resultados não
se fizeram esperar. A partir de 1933, suas economias retomaram o crescimento, embora em ritmo fraco e hesitante.
Pela primeira vez na história do capitalismo, a economia foi resgatada da crise não pela reação espontânea dos
mercados, mas por uma ação deliberada do Estado. Esta
mudança marca a entrada do capitalismo em nova etapa,
que chamaremos de “capitalismo dirigido”. Começou a
ficar claro que o capitalismo monopólico tem uma dinâmica cíclica diferente do capitalismo concorrencial. Como
o capital monopólico ajusta quantidades – nível de
produção e de emprego –, e não preços, a desvalorização dos capitais ocorre em grau menor, o que atrasa a
retomada espontânea dos investimentos. Abandonada
a si própria, a economia dominada por multiempresas
corre o perigo de cair em letargia, da qual dificilmente
sairá sozinha.
Por outro lado, o capitalismo é mais apto a ser dirigido
pelo Estado em sua etapa monopólica do que na etapa
anterior. Isso já se tornara evidente durante a Primeira
Guerra Mundial, quando a produção estatal assumiu a hegemonia e subordinou a economia civil às suas prioridades bélicas. As indústrias oligopólicas, que já eram planejadas pelos seus administradores profissionais, puderam
ser enquadradas com certa facilidade no esforço de guerra, o que, em absoluto, foi o caso da agricultura e de outros setores, em que a produção era efetuada por grande
número de unidades independentes.
As experiências inaugurais do capitalismo dirigido tiveram sentidos sociais e políticos deveras distintos. Os
social-democratas suecos e os newdealers de Roosevelt
reviveram a demanda efetiva redistribuindo renda aos
menos favorecidos, mediante novos direitos sociais e iniciando obras públicas necessárias ao bem-estar da população. Hitler e os nazistas reconstruíram a indústria alemã para poder se lançar a uma corrida armamentista, que
preparou a guerra mundial.
Sua política social consistia em compensar os baixos
salários com fervor patriótico, xenofobia e anti-semitismo.
A primeira estratégia equivaleu a uma revolução política e social, pois inaugurou um modo democrático de
governar, em que o poder de Estado passou a ser partilhado entre representantes do movimento operário e do
capital. O New Deal deu status legal à representação sindical, inclusive nos locais de trabalho, e criou um programa permanente de sustentação oficial dos preços agrícolas. A social-democracia sueca, que ganharia as eleições
nas décadas seguintes, desenvolveu um sistema de negociação permanente entre a central operária, a cúpula empresarial e o governo nacional.
A segunda estratégia, do nazi-fascismo, equivaleu a
uma contra-revolução política. Todas as conquistas democráticas foram anuladas, os direitos políticos revogados, todo poder de decisão foi concentrado na pessoa do
führer, o que representou um recuo aos tempos anterio-
10
PARA ALÉM
res ao século das luzes. Do ponto de vista supra-estrutural, o contraste entre estas estratégias não podia ser maior.
Não obstante, do ponto de vista infra-estrutural, elas apresentavam um elemento comum: no relacionamento entre
os modos de produção, o capitalista ficava, em certa medida, dependente e subordinado às decisões dos que estavam à testa da produção estatal.
As duas estratégias se confrontaram nos campos de
batalha da Segunda Guerra Mundial e a estratégia revolucionária das democracias triunfou sobre a estratégia contra-revolucionária do Eixo. Este desenlace definiu o destino do capitalismo no pós-guerra. Convém lembrar que
esta guerra mundial, ao contrário da primeira, foi um vasto
confronto político e ideológico entre o nazi-fascismo e
uma ampla aliança que reunia desde os conservadores ingleses de Churchill até os supostos comunistas de Stalin,
passando por todas as tendências democráticas: liberais
(no sentido geral), “liberais” (no sentido “americano” de
progressistas), social-democratas, socialistas, nacionalistas, trotskistas, etc.
O principal vencedor da Segunda Guerra Mundial foram os Estados Unidos e sua vitória representou a difusão mundial da revolução rooseveltiana. O capitalismo
dirigido, após 1945, adquiriu um sentido democrático e
progressista, consubstanciado no compromisso de todos
os governos – inscrito em leis e nas novas constituições –
de manter o pleno emprego. Este compromisso equivaleu
a um pacto social, pelo qual se reafirmou a democracia
adicionando-lhe a responsabilidade assumida pelo Estado de assegurar a todos os cidadãos trabalho e condições
aceitáveis de vida.
O compromisso do pleno emprego e do que se chamou depois de Estado de bem-estar social correspondeu,
no plano cultural, a uma profunda reviravolta na ciência
econômica: a revolução keynesiana. Keynes rompeu com
suas próprias convicções ortodoxas quando publicou, em
1936, sua Teoria geral do emprego, dos juros e da moeda. Procurou mostrar que, no capitalismo, o nível de emprego e de atividade não é determinado por livre concorrência nos mercados de fatores, mas pela variação da
demanda efetiva, que depende da propensão da população ao consumo e das decisões de investir dos empresários.
Assim sendo, o desemprego, que na época ainda era
muito grande, podia ser involuntário, no sentido de que
não seria reduzido pela aceitação de salários menores por
parte dos trabalhadores. Salários menores, se fossem gerais, aumentariam a deflação, visto que os demais preços
tenderiam a cair também, o que deprimiria a demanda,
pois os compradores adiariam seus gastos à espera de que
os preços caíssem ainda mais. Se a redução de salários
fosse parcial, provavelmente os preços não a acompanha-
DO
NEOLIBERALISMO: A SAGA DO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
riam, o que acarretaria redução dos salários reais e, portanto, do consumo operário, o que também diminuiria a
demanda efetiva e o nível de emprego.
Para reduzir o desemprego e elevar o nível de atividade, era preciso elevar a demanda efetiva, o que, naquelas
circunstâncias, só o governo poderia fazer, seja mediante
sua política fiscal – eventualmente gastando mais que o
arrecadado –, seja mediante sua política monetária, tornando a oferta de dinheiro abundante e a taxa de juros
baixa. A principal conclusão de Keynes é que o governo
pode governar a conjuntura através do que se chamou de
políticas anticíclicas. Estas consistem basicamente na manipulação da própria produção estatal, de modo que ela
sirva de contrapeso às oscilações da produção capitalista.
E, adicionalmente, a manipulação da política monetária
poderia servir ao mesmo propósito.
O capitalismo dirigido não surgiu de transformações
infra-estruturais, como foi o caso do capitalismo concorrencial e do monopólico, mas de mudanças revolucionárias na supra-estrutura. Ele resulta de um novo relacionamento entre Estado e mercado. No liberalismo, vigente a
partir de meados do século XIX, o Estado tinha por objetivo proteger o mercado, impedir que a monopolização
destruísse inteiramente a concorrência e fazer com que
as classes sociais, particularmente a operária, aceitassem
pacificamente o “veredicto do mercado”, qualquer que
fosse ele. No dirigismo, vigente a partir do segundo terço
deste século, o Estado tinha por objetivo guiar o mercado, induzindo os agentes econômicos a adotar condutas
que resultassem em pleno aproveitamento dos recursos.
Os Anos Dourados: revolução colonial,
guerra fria e globalização dirigida
Entre 1945 e 1973, aproximadamente, o capitalismo
passou por uma fase de extraordinária prosperidade. O
crescimento econômico foi tão intenso que o rápido aumento da produtividade não elevou o desemprego. Ao
contrário, os atingidos pelo desemprego tecnológico puderam encontrar novos empregos em setores em rápida
expansão, sobretudo na prestação de serviços. Um dos
logros mais extraordinários foi uma quase estabilidade
estrutural, tendo sido as recessões bastante débeis e curtas. Por tudo isso, este período vem sendo chamado, retrospectivamente, de anos dourados.
Durante estes anos, a era das revoluções não só prosseguiu como, inclusive, se intensificou. Nunca houve tantas revoluções num período tão curto, inferior a três décadas. Para começar, houve revoluções “comunistas”,
inspiradas pela Revolução de Outubro, na Iugoslávia, na
China, na Indochina (Vietnã e arredores), em Cuba, sem
contar com os golpes de Estado favorecidos pelas tropas
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
de ocupação do Exército Vermelho em vários países da
Europa Oriental, etc. Depois houve as revoluções para a
libertação das colônias, numerosas demais para ser enunciadas. Basta mencionar que, durante os anos dourados, a
revolução colonial estendeu-se ao conjunto da Ásia, da
África e do Caribe, levando à emancipação da grande
maioria dos países antes submetidos ao domínio colonialista.
Finalmente, houve grandes movimentos cívicos políticos, que equivaliam a revoluções sem sê-lo do ponto de
vista formal, pois não praticavam a violência nem pretendiam a tomada de poder. Como observamos anteriormente, após a adoção da democracia política, mudanças
supra-estruturais profundas podiam ser alcançadas sem a
necessidade de desalojar do governo seus ocupantes eventuais. Isso mudou o caráter dos movimentos revolucionários. Antes da democracia, o objetivo tático destes movimentos tinha de ser a tomada do poder, pois sem isto os
demais objetivos eram inantingíveis. Mas, dentro da democracia, o objetivo tático passou a ser mobilizar a opinião pública para eventualmente conquistar as mudanças
através de medidas políticas e/ou a adoção de novos valores e novas condutas por parte da população.
Merecem menção os grandes movimentos pela paz
e contra a guerra, particularmente nos Estados Unidos
durante a guerra do Vietnã; o movimento conquistou a
opinião pública, forçando o governo a retirar as tropas
daquele país. O movimento estudantil-operário de maio
de 1968, na França, também alcançou sua principal
vitória no campo cultural, pois seu principal propósito
era protestar contra o autoritarismo no seio das instituições da sociedade civil. Surgiu, no fim dos 1960,
sobretudo na Europa e na América Latina, uma aliança
operária-estudantil, que conferiu aos movimentos
reivindicatórios dos assalariados um certo toque de
rebeldia. A radicalização traduziu-se em maiores conquistas salariais, que contribuíram para a grande crise
inflacionária dos anos 70.
Ao lado destes movimentos, cabe lembrar aqueles dirigidos contra o totalitarismo stalinista: desde 1953, em
Berlim e na Alemanha Oriental; em 1956, na Polônia e
na Hungria; em 1968, na Tchecoslováquia; e novamente
em 1970, na Polônia; entre outros. Movimentos de mesma natureza contra ditaduras militares verificaram-se por
toda América Latina e países da Ásia. No Brasil, caberia
registrar as grandes demonstrações estudantis, em 1968,
contra a ditadura militar, replicadas em Cordoba, na Argentina (o “Cordobaço”), e no México, onde os manifestantes foram massacrados pela polícia na principal praça
da capital.
Estes movimentos provocaram amplas mudanças supra-estruturais nos principais países. De todas as re-
voluções encetadas neste período de extraordinária
efervescência, a que teve maior êxito (como escreveu
Norberto Bobbio) foi a feminista. As mulheres se emanciparam economicamente da tutela masculina e protagonizaram uma revolução sexual que abalou os fundamentos da família monogâmica nuclear. Uma de suas
conseqüências não visadas foi a queda da fecundidade, a
ponto de tornar negativo o crescimento populacional dos
países mais desenvolvidos.
De que modo estas mudanças afetaram o capitalismo
dirigido nos anos dourados? É preciso lembrar que o capitalismo se defrontava pela primeira vez com um sistema socioeconômico rival, que se autodesignava “socialismo real” ou “realmente existente”. Os países que o
adotaram estavam muito longe dos ideais do socialismo,
mas suas economias diferiam do capitalismo em um ponto essencial: toda atividade produtiva era controlada pelo
Estado, que alocava administrativamente os meios de produção às empresas, definia metas de produção e fixava
os preços de todas as mercadorias e os salários a serem
pagos.
No confronto entre capitalismo e “socialismo real”, o
primeiro estava na defensiva. A partir dos anos 1950, a
cortina de ferro dividia os domínios no Primeiro Mundo,
mas a disputa continuava intensa no Terceiro Mundo, onde
o atraso econômico fragilizava o capitalismo e suas instituições supra-estruturais. Um número significativo de excolônias adotou o “socialismo real”, ou versões derivadas dele, o mesmo acontecendo com Cuba, em território
americano.
Para conter a ofensiva stalinista, todos os países capitalistas uniram-se num bloco liderado pelos EUA. Ao
mesmo tempo, as economias devastadas pela guerra foram reconstruídas, com muito menos dificuldade e demora
que depois da Primeira Grande Guerra. Amedrontados pela
ameaça do “comunismo”, os EUA, desta vez, foram generosos. Perdoaram as dívidas de guerra, abriram mão de
reparações e ofereceram generosa ajuda financeira ao conjunto dos países europeus e ao Japão, através do Plano
Marshall. Desta forma, o “mundo livre” entrou numa fase
de grande prosperidade, em que as tendências à globalização puderam ser retomadas com ímpeto.
Ainda antes do fim da Segunda Guerra Mundial, os
“americanos” convocaram a conferência de Bretton
Woods, presidida por Keynes,3 em que delegados de todos países aliados conceberam um novo sistema internacional de pagamentos, tendo por eixo o Fundo Monetário
Internacional. Criaram também o Banco Internacional de
Reconstrução e Desenvolvimento. Estas duas instituições
financeiras intergovernamentais tinham por objetivo permitir a retomada da globalização, mas agora dirigida por
elas em conjunto com os governos nacionais.
12
PARA ALÉM
Durante os anos dourados, as EMNs (empresas multinacionais) “americanas” multiplicaram suas filiais, primeiro na Europa e, em seguida, nos outros continentes,
sobretudo na América Latina e na Ásia. Tão logo a reconstrução se completou, as multiempresas da Europa e
do Japão trataram de fazer o mesmo. O Brasil começou a
receber novamente EMNs, no pós-guerra, a partir da presidência de Juscelino Kubitschek (1956-61), quando o governo colocou como meta implantar uma indústria automobilística no país em cinco anos, ao final dos quais os
carros deviam ser produzidos com componentes inteiramente nacionais. Esta meta, assim como diversas outras,
na siderurgia, na fabricação de tratores e de navios, etc.,
foi cumprida mediante a implantação de filiais de multinacionais, sobretudo alemãs e japonesas.
Este exemplo ilustra bem o que veio a ser a globalização dirigida. O governo brasileiro, assumindo a liderança do processo de industrialização, fixava metas e negociava com as multiempresas do Primeiro Mundo as
inversões necessárias à sua realização. Algo semelhante
ocorria em outros países. Na França, o processo econômico era formalmente orientado por planos qüinqüenais
negociados pelos governos com sindicatos operários e
entidades empresariais e aprovados pelo Parlamento. No
Japão, o governo encetou uma política coordenada de
reindustrialização do país, sem permitir a participação de
EMNs estrangeiras. O ministério de Comércio Exterior fixava metas e orientava os fluxos de crédito de modo a suscitar as inversões necessárias para que estas fossem atingidas.
O grau e a forma de intervenção do governo na economia variavam muito de país a país. A única generalização
razoável é que esta intervenção tendia a ser tanto mais
profunda quanto menos desenvolvida era a economia. O
único país em que o governo restringia sua atuação às funções prescritas pelo liberalismo eram os EUA. O dirigismo
econômico neste país limitava-se à política monetária e
aos ponderáveis gastos militares, que acabaram gerando
o famoso “complexo industrial-militar”, ou seja, toda uma
economia de guerra em tempos de paz. Como potência
hegemônica do bloco capitalista, os EUA introduziram
uma cunha liberal nas instituições coordenadoras da globalização. Por causa da influência “americana”, o FMI e
o Banco Mundial nunca deixaram de pressionar os governos clientes a restringir e reduzir a intervenção estatal
na economia.
A partir de meados dos 1950, a vantagem tecnológica
dos “americanos” começou a ser erodida e, em lugar da
primazia de uma única potência, emergiu a hegemonia
econômica de uma elite de nações, formada pelos EUA,
países da Europa Ocidental e Central e Japão. Este novo
equilíbrio passou a se refletir no comércio internacional.
Os outros países da elite conquistaram espaço no merca-
DO
NEOLIBERALISMO: A SAGA DO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
do mundial, em detrimento dos EUA, cujo balanço de pagamentos passou a ser deficitário.
O déficit “americano” podia ser atribuído à exportação de capitais, já que os rendimentos externos das empresas dos Estados Unidos cobriam o excesso de importações sobre exportações. Este fato provocou uma reação
nacionalista de De Gaulle, que tinha reassumido a chefia
do Estado francês, a partir de 1958. Os EUA “pagavam”
o déficit de seu balanço de pagamentos com emissão de
dólares e/ou de títulos do Tesouro, avidamente demandados pelo resto do mundo. Pelas regras aprovadas em
Bretton Woods, o dólar era a moeda-chave do sistema internacional de pagamentos e, por isso, a forte expansão
das transações internacionais requeria crescente volume
de meios de pagamento, ou seja, dólares.
À primeira vista, era tudo normal, só que as multinacionais “americanas” continuavam comprando o controle de grandes empresas francesas (e também alemãs, italianas, inglesas, etc.), não com receita de vendas de
mercadorias, mas com “papel pintado”, ou seja, moedapapel. De Gaulle se insurgiu contra o privilégio dos EUA
de não precisar submeter-se à disciplina monetária que o
FMI impunha aos demais países. Ele determinou que a
França deixasse de acumular reservas cambiais em dólares, passando a fazê-lo em ouro. Outros governos, com
muito menos alarde, fizeram o mesmo.
Com isso, estourou a crise do dólar. Ela representou o
primeiro passo para a substituição da hegemonia dos EUA
sobre o mundo capitalista pela hegemonia compartida do
que hoje se chama Trilateral: Estados Unidos, Europa e
Japão. Além disso, a crise do dólar acarretou uma disputa
entre o governo “americano” e suas EMNs, que deu origem ao euromercado de capitais e à desregulamentação
dos sistemas financeiros. A partir dos 1970, o dólar deixou de ser a moeda-chave dos pagamentos internacionais4
e o FMI passou a emitir DES (Direitos Especiais de Saque), uma moeda internacional cujo valor reflete o de uma
cesta de moedas de diversos países.
A solução da crise do dólar marcou o fim dos anos
dourados. A partir de 1974, a economia capitalista voltou
a apresentar ponderáveis oscilações conjunturais, com
recessões profundas e longas. O ritmo de crescimento foi
caindo de década em década e as taxas de desemprego,
que eram negligenciáveis na maioria dos países adiantados, voltaram a se tornar altas e cada vez mais altas, a ponto
de atingir, nos 90, níveis semelhantes aos dos 30.
O fim dos anos dourados foi marcado por grandes
lutas de classe nos principais países. A rebeldia operária-estudantil, a que já nos referimos, era inexplicável
à primeira vista, pois o padrão de vida dos trabalhadores era muito confortável, incomparavelmente mais alto
que o de seus pais e avôs. Mas o conteúdo do trabalho
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
industrial continuava sendo rotineiro, extenuante,
alienador e cada vez mais insuportável para trabalhadores jovens, com altos níveis de escolaridade e capacidades inaproveitadas.
Quando o ritmo de crescimento da produção e da produtividade começou a cair, nos anos 70, a pressão das greves selvagens atingiu o auge. O resultado foi o repasse
dos custos aumentados da força de trabalho aos preços, o
que era facilitado pela elevada oligopolização da economia. Pela primeira vez, em tempos de paz, a inflação
nos países adiantados começou a subir vertiginosamente, atingindo taxas de dois dígitos em alguns países em
determinados anos. O temor da inflação descontrolada
cresceu nestes países, sobretudo entre os detentores de
ativos financeiros, o que incluía boa quantidade de operários.
A crise inflacionária dos anos 70 também foi agravada
pela crise do petróleo. A Opep, o cartel dos países exportadores, conseguiu aumentar violentamente o preço do petróleo por duas vezes, o que desencadeou fortes pressões
inflacionárias nos países usuários, dependentes deste combustível. Mas, ao contrário do que se pensou na época, os
efeitos da crise do petróleo foram inteiramente transitórios. Sua importância está em ter reforçado a grande reviravolta ideológica, que passou a desafiar o capitalismo
dirigido. Referimo-nos, obviamente, ao renascimento do
liberalismo sob a forma da vaga “neoliberal”.
devia lançar deliberadamente a economia em recessão, até
que o excesso de oferta paralisasse a subida dos preços.
A receita foi devidamente aplicada, mas seu resultado
foi a “estagflação”: a diminuição da demanda efetiva reduzia o nível de atividade e de emprego, mas os preços e
os salários continuavam a subir. Era algo novo na história da economia de mercado. Nos principais países, os
preços eram impulsionados por uma espiral preços-salários, que se mostrava imune à queda da atividade e ao
aumento do desemprego.
Isso acontecia porque os trabalhadores não abriam mão
de reajustes salariais, inclusive para compensar o aumento do custo de vida, porque estavam acostumados à situação de pleno emprego. Perder o emprego não era uma
desgraça, porque não se levava muito tempo para encontrar outro e, durante o período de inatividade, o segurodesemprego proporcionava um rendimento apenas um
pouco menor que o salário.
Além disso, havia um relacionamento estreito entre a
direção das multiempresas e a alta direção dos grandes
sindicatos. Para preservar a paz dentro das fábricas, a direção se inclinava a atender as reivindicações dos trabalhadores, inclusive porque era fácil repassar o ônus aos
consumidores. Governos trabalhistas e social-democratas tentaram impor diretrizes de contenção de salários e
preços a empresas e sindicatos, mas estas tentativas só
tiveram êxito em países pequenos, muito dependentes do
mercado externo e com um movimento sindical disciplinado, em que a orientação da central era seguida pelas
bases nas empresas. Nos países maiores, a pactuação de
preços e salários fracassou, possivelmente porque a opinião pública não foi motivada a respaldá-la.
Começou a tornar-se claro para os governos e as cúpulas empresariais que as pressões inflacionárias decorrentes dos conflitos distributivos – que envolviam não apenas operários e empregadores, mas também pequenos
agricultores, regiões deprimidas, grupos sociais marginalizados, etc. – só poderiam ser eliminadas de forma favorável aos interesses capitalistas se, em lugar do pleno
emprego, fosse restabelecido um ambiente de “sadia competição” no mercado de trabalho, ou seja, se fosse reconstituído um ponderável exército industrial de reserva.
Esta nova postura correspondia exatamente ao que vinham pregando os liberais remanescentes, que não se cansavam de acusar os governos keynesianos de promover a
inflação. Milton Friedman, o papa do monetarismo, tinha
acabado de “demonstrar” que as tentativas de reduzir o
desemprego abaixo do seu nível “natural” só tinham êxito temporário, enquanto a demanda efetiva crescia acima
do seu nível de equilíbrio, mas a inevitável subida dos
preços ainda não tinha se manifestado. Para Friedman, o
compromisso com o pleno emprego não passava de for-
O DESAFIO AO DIRIGISMO E A
TERCEIRA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL
O liberalismo entrou no que parecia sua crise derradeira nos anos 30, quando ficou evidente que a aplicação
de sua doutrina só prolongava a depressão. A desfuncionalidade do liberalismo para a gestão do capitalismo acabou então com sua credibilidade. Restaram bolsões de liberais nos ministérios de finanças, nos departamentos de
economia e de direito das universidades e em alguns jornais, com influência ainda perceptível nos países anglosaxãos, mas negligenciável nos demais. No Brasil, uma
das derradeiras manifestações do liberalismo foi a polêmica de Eugenio Gudin com Roberto Simonsen a propósito da intervenção do governo no processo de desenvolvimento.
Mas, nos anos 70, foi o keynesianismo que entrou em
crise profunda. De acordo com Keynes, inflação sói ser
manifestação de excesso de demanda efetiva em relação
à oferta agregada de bens e serviços. Portanto, para conter a inflação é preciso reduzir a demanda mediante corte
de despesa pública, aumento de arrecadação fiscal e contenção da oferta monetária. Estava claro que estas medidas eram recessivas. Para combater a inflação, o governo
14
PARA ALÉM
midável equívoco, do qual só poderia resultar inflação, e
inflação crônica e crescente.
Em poucos anos, este obscuro professor de economia,
que antes pregava no deserto, tornou-se o autor mais lido
e mais citado, com o maior número de seguidores e discípulos, criador de uma nova ortodoxia. O neoliberalismo
não passa do velho liberalismo redivivo. Friedman,
confessadamente, reformulou as proposições clássicas
para incorporar os conceitos macroeconômicos de inspiração keynesiana e os instrumentos econométricos que
permitem rejeitar hipóteses improváveis.
A vaga neoliberal iniciou-se na segunda metade dos
anos 70, tornou-se hegemônica nos 80 e inspira vasta
contra-revolução institucional nos 90. Ela corresponde a
uma necessidade objetiva da classe capitalista, que se sentia tolhida e ameaçada pelo dirigismo econômico, imposto por governos nos quais o movimento operário tinha
tanta influência quanto o grande capital. O desconforto
(para dizer o menos) dos capitalistas não era gratuito. Ele
foi produzido por uma grande e difusa ofensiva de lutas de
massa, entre os anos 60 e 70, em parte capitaneada pelo que
chamamos anteriormente de aliança operária-estudantil.
No plano cultural, o neoliberalismo representou uma
contra-ofensiva do pensamento conservador. No plano
político, o neoliberalismo apresentava aos atores um programa que prometia, ao mesmo tempo, estabilizar os preços e recuperar a taxa de lucro, comprimida pelas pressões não só salariais, mas também tributárias. À primeira
vista, parecia um programa inaceitável às maiorias eleitorais. Contudo, estas estavam insatisfeitas e impacientes
com os sucessivos fracassos de governos que pretendiam
estabilizar os preços sem abrir mão permanentemente do
pleno emprego e sem tocar nos direitos adquiridos dos
trabalhadores.
Em 1979, a eleição de Thatcher marcou o começo da
grande reviravolta. Seguiu-se a vitória de Reagan, em
1980, nos Estados Unidos, e depois uma enxurrada de triunfos neoliberais. A vitória do neoliberalismo tornou-se
completa quando governos socialistas, social-democratas
e semelhantes começaram a aplicar seu programa como
única saída para o impasse representado pela estagflação.
O programa neoliberal se assemelha ao keynesiano, mas
com claro viés antioperário e com muito maior alcance.
O aumento do desemprego, que para o keynesiano é uma
necessidade desagradável e que por isso deve ser tolerado apenas enquanto estritamente indispensável, torna-se
para o neoliberal um objetivo estrutural. Não que o neoliberal goste que pessoas fiquem sem emprego. É que ele
está convicto de que o desemprego resulta de opções individuais e, por isso, é “voluntário”. Ele defende o direito do trabalhador de optar por ficar algum tempo desempregado, até encontrar o emprego que lhe convenha com
DO
NEOLIBERALISMO: A SAGA DO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
a paga que ele (trabalhador) acha que compensa o dissabor ocasionado pelo trabalho. E não toma conhecimento
do drama dos trabalhadores que perdem seus empregos e
jamais encontram outros, em condições semelhantes ou
mesmo inferiores aos dos empregos eliminados.
Como sabemos, o neoliberalismo no poder resolveu a
contento a crise inflacionária. Ele conseguiu isto revertendo completamente as condições no mercado de trabalho. O desemprego tornou-se de massa e com duração cada
vez maior. Os sindicatos perderam prerrogativas e as garantias legais de estabilidade no emprego foram enfraquecidas, quando não revogadas. Em poucos anos, o movimento operário sofreu derrotas decisivas nos principais
países desenvolvidos.
Além do desemprego, os governos neoliberais usaram
a globalização para enfraquecer o movimento operário.
O contínuo aumento do livre comércio internacional permitiu às EMNs transferir numerosas linhas de produção a
países em desenvolvimento, onde a força de trabalho era
mais barata. A perda maciça de empregos contribuiu para
quebrar as últimas resistências do operariado. Quem conseguiu permanecer empregado dispôs-se a fazer qualquer
concessão – até mesmo aceitar redução de salário – para
não ser demitido.
A espiral preços-salários foi quebrada pelo lado mais
fraco, o dos salários. Nos Estados Unidos, o salário médio caiu nitidamente entre os anos 70 e 90. Nos países da
Europa continental, o movimento operário resistiu melhor à ofensiva neoliberal: os salários caíram menos, mas
o desemprego ficou maior. E os benefícios do segurodesemprego não duram para sempre. Os que não conseguem se reempregar passam a depender da assistência
social, ficando a um passo da miséria.
A estabilização dos preços tornou-se a alavanca com a
qual o neoliberalismo pretende levantar o mundo. Ele
conseguiu convencer a opinião pública de que estabilidade e pleno emprego são incompatíveis. Mas foi além.
Como a estabilização – neoliberal ou keynesiana – reduz
o crescimento da economia, os neoliberais precisaram encontrar um culpado pelas sucessivas recessões. Este passou a ser o movimento sindical (o “poder sindical”) e o
Estado de bem-estar social. São teses perfeitamente convincentes para capitalistas e executivos de multiempresas.
Os sindicatos passaram a ser culpados pelo desemprego involuntário ao sustentar a legislação do trabalho que
proíbe a contratação de trabalhadores por menos que o
salário mínimo, por jornadas maiores que a legal ou sem
os benefícios prescritos. Os governos neoliberais trataram de revogar esta legislação com o intuito de “flexibilizar” estes direitos, ou seja, de torná-los itens contratuais
negociáveis em lugar de obrigações do empregador. O
poder dos sindicatos de mobilizar os trabalhadores foi se-
15
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
veramente reduzido. Em alguns países, os sindicatos têm
de pagar multas pesadas se houver greves não autorizadas e o próprio direito de convocar greves passou a ser
restrito.
Os neoliberais nos governos lançaram-se numa ofensiva para destruir ou, no mínimo, privatizar o Estado de
bem-estar social. O argumento é que é preciso reduzir o
tamanho do Estado, transferindo ao mercado de seguros
o programa de seguridade social de responsabilidade pública. As famosas “reformas” institucionais do sistema de
previdência social, do sistema de saúde pública e do sistema de ensino público vão todas neste mesmo sentido.
O cerne da contra-revolução neoliberal é reduzir a intervenção do Estado na economia. Ela pretende revogar
o domínio muito relativo que a produção pública exercia
sobre o modo capitalista de produção. Para consegui-lo,
a desregulamentação financeira tem sido estratégica. As
multiempresas dos EUA conseguiram, no fim dos anos
60, derrotar o governo Johnson quando este procurou, em
defesa do dólar, restringir as inversões no exterior. O governo tinha usado a tributação para desencorajar as transferências de capitais para fora. Em resposta, as EMNs
“americanas” trataram de colocar seus fundos no euromercado, para ficar fora do alcance das autoridades de
seu próprio país.
Desde então, a movimentação internacional dos capitais tornou-se cada vez mais independente dos governos.
Isso ocorreu antes da contra-revolução neoliberal. Quando os neoliberais conquistaram os principais governos
capitalistas, estes já não controlavam, e sequer monitoravam, os fluxos de valores sobre fronteiras. Com isso,
o dirigismo econômico já perdera parte de sua eficácia.
Os governos neoliberais trataram de reduzi-lo ainda mais.
No Brasil, o governo Collor, o primeiro governo neoliberal explícito, eliminou todos os controles de preços
dos produtos básicos de consumo, inclusive dos remédios, que estavam em vigor há meio século. Também a
importação foi amplamente liberalizada. O governo
Fernando Henrique prossegue no mesmo sentido. Todas
as medidas de favorecimento dos capitais nacionais em
face dos estrangeiros foram revogadas quando o governo
conseguiu retirar da Constituição a distinção entre eles.
A privatização da produção estatal, com a única exceção
da Petrobrás, é outro programa que altera o relacionamento
entre os modos de produção. O modo capitalista de produção deixa de ser orientado e tutelado pelo Estado e sua integração ao grande capital global, controlado por residentes
na Trilateral, vem sendo sistematicamente fomentada.
Apesar de tudo, a contra-revolução neoliberal está longe de ter encerrado a etapa do capitalismo dirigido. Isto,
por vários motivos. O primeiro é que o neoliberalismo
encontra por toda parte considerável resistência. Dentro
das regras da democracia, é obrigado a negociar. A “flexibilização” dos direitos trabalhistas e a privatização dos
serviços sociais estão longe de ser universais. Onde estas
mudanças foram realizadas, os resultados prometidos raramente foram logrados. A eliminação do poder sindical
e dos direitos dos trabalhadores não ajudou a reduzir o
desemprego. A privatização dos serviços sociais não melhorou a qualidade destes.
Mas, a segunda ordem de motivos para o êxito mui limitado das reformas neoliberais é ainda mais importante.
Trata-se do fato de que o programa neoliberal é incapaz
de promover o crescimento econômico. Na realidade, ele
sequer pretende isto. Para os liberais, o crescimento econômico deve ser determinado pelos mercados, sem interferência do Estado. O orçamento público deve ser permanentemente equilibrado, o que permite à autoridade
monetária regular a oferta de meios de pagamento e de
crédito de modo a preservar a estabilidade dos preços.
Esta receita clássica conduz imanentemente a economia à estagnação. Sobretudo nos países mais desenvolvidos. É que o livre funcionamento dos mercados tende a
concentrar a renda, e o faz com mais vigor à medida que
os instrumentos fiscais de redistribuição – como os salários mínimos, os subsídios ao consumo dos pobres, os
impostos progressivos – são revogados. Os dados da distribuição da renda em todos os países em que se deu a
contra-revolução neoliberal mostram inequivocamente o
aumento do número de pobres e da distância entre estes e
os ricos.
A concentração da renda reduz a propensão a consumir. Como ninguém ignora, os ricos consomem menos
de seus rendimentos que os pobres. Se uma parte maior
da renda vai para os ricos, a parcela consumida de toda
renda cai. A parcela poupada aumenta. Mas, para que a
demanda efetiva não diminua, é preciso que o investimento
aumente na mesma medida que aumenta a poupança. O
que dificilmente ocorre, sobretudo quando o investimento público é contido para não gerar déficit e o investimento
privado é debilitado pela frouxidão da demanda. Em suma,
se a prioridade é evitar pressões inflacionárias, o resultado é minimizar a acumulação de capital e o crescimento
da economia.
É verdade que o ritmo de crescimento da economia
capitalista começou a encolher antes da contra-revolução
neoliberal. E o mais estranho é que isso se deu, em meados dos 70, quando a Terceira Revolução Industrial dava
seus primeiros passos. Foi nesta época que se aperfeiçoou
o microcomputador, tornando a computação muito mais
barata e acessível a todos os negócios e à maioria dos consumidores. A acelerada expansão do uso de métodos digitais em todo tipo de trabalho industrial e de serviços, e
inclusive na agricultura, proporcionou ganhos de produ-
16
PARA ALÉM
tividade do trabalho cada vez maiores. Com o aperfeiçoamento dos robôs, a automação deu um salto gigantesco
para a frente, tornando possível substituir o homem até
mesmo em atividades que exigem inteligência elementar.
Seria de se esperar que esta revolução infra-estrutural
acelerasse o crescimento da economia mundial capitalista, mas isso não ocorreu. De acordo com diversos relatórios do Banco Mundial e do Departamento para Informação Econômica e Social e Análise de Políticas da ONU
(1996), a taxa anual média de crescimento do PIB dos
países industrializados capitalistas foi de 5,1% em 196070, de 3,2% em 1970-80, de 2,9% em 1981-90 e de 1,5%
em 1991-95. O declínio do crescimento das economias
do Primeiro Mundo5 ao longo destas três décadas e meia
é deveras impressionante. Na primeira metade dos anos
90, a taxa de crescimento anual foi de apenas um quinto
da dos anos 60!
A discrepância entre a aceleração do progresso tecnológico e a desaceleração do crescimento econômico se
explica pelo fato de que o último depende muito mais da
evolução da demanda efetiva do que do avanço da tecnologia. A cada momento, as atividades econômicas empregam técnicas de diferentes “gerações”. Apenas uma certa
parcela da produção resulta do uso da técnica melhor ou
mais recente.
A coexistência de diferentes técnicas e, portanto, de
diferentes produtividades e de diferentes custos de produção explica-se por vários fatores: os mercados dos produtos estão longe de ser perfeitos, de modo que a mesma
mercadoria é vendida em lugares distintos por preços diferentes (em lugares mais “atrasados”, menos acessíveis,
alguns produtos serão mais caros); os salários também não
são iguais em todos os lugares e, provavelmente, as empresas que usam técnicas mais antigas são as que pagam
salários menores, de modo que a produtividade menor é
compensada por um custo menor da força de trabalho; a
qualidade dos produtos também não é uniforme; etc., etc.
Quando a economia cresce com vigor, observa-se uma
atualização mais rápida das técnicas, ou seja, as mais obsoletas são substituídas por outras mais modernas, o que
acarreta crescimento da produtividade, independentemente
do avanço das melhores técnicas. Quando a economia cai
em recessão, a atualização técnica desacelera. É possível
que empresas mais defasadas quebrem, mas outras que
se endividaram para se reequipar provavelmente também
entrem em falência. Em tempos de recessão, os investimentos diminuem porque a superprodução deixa os empresários pessimistas.
Nos anos 50 e 60, as economias européias e japonesa
se reconstruíram importando equipamentos dos mais avançados dos EUA. Neste período, o crescimento era excepcionalmente intenso e o aumento da produtividade tam-
DO
NEOLIBERALISMO: A SAGA DO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
bém, embora a tecnologia não estivesse sendo revolucionada. A partir dos 70, o crescimento desacelera, primeiro
em função da crise inflacionária, depois em conseqüência da contra-revolução neoliberal. A Terceira Revolução Industrial não alterou a tendência declinante. Embora as multiempresas adotassem com certa rapidez as
modalidades disponíveis de automação, é provável que
grande número de empresas persistisse em técnicas mais
antigas, compensando a produtividade menor com baixa
de salários, dado o excesso de força de trabalho e o enfraquecimento dos sindicatos.
Isso significa que, durante os últimos 25 anos, os ganhos potenciais de produtividade decorrentes da Terceira
Revolução Industrial foram muito pouco aproveitados,
porque a economia do Primeiro Mundo (e de boa parte
do Terceiro) foi travada por políticas monetaristas de forte
viés recessivo – o que provocou maior exportação de capitais do centro à periferia, sobretudo aos países em que
o dirigismo se manteve e que, por isso, apresentam maior
dinamismo. São exemplos os chamados “tigres” asiáticos.
A crise financeira que atingiu um certo número deles,
desde meados de 1997, em nada muda estes fatos. As economias do centro se mantêm semi-estagnadas e aquelas
atingidas por fugas de capitais apenas são resgatadas pelo
Fundo Monetário Internacional se aplicarem políticas recessivas, tendo em vista tolher as pressões inflacionárias
que a brutal desvalorização cambial desencadeia. As economias asiáticas que escaparam da crise – China,
Cingapura, Taiwan, etc. – provavelmente vão continuar
a dirigir estatalmente suas economias, pois só nesta condição poderão manter taxas elevadas de crescimento.
Desde dezembro de 1995, quando os trabalhadores
franceses organizaram demonstrações em massa contra
as reformas neoliberais da previdência, a resistência ao
neoliberalismo vem crescendo visivelmente. Tanto na
Europa como na América Latina. Mas, uma volta pura e
simples ao capitalismo dirigido dos anos dourados também não é possível. Para tanto, uma retomada do controle estatal sobre a movimentação internacional dos capitais privados seria indispensável. Além disso, seria preciso
encontrar uma solução não reacionária ao impasse da “estagflação”. Voltaremos a este ponto.
CONCLUSÕES
Tanto a revolução keynesiana, que trouxe a revolução
do dirigismo a partir dos 1930, como a contra-revolução
monetarista, que ensejou a contra-revolução neoliberal a
partir dos 1980, são mudanças sistêmicas na supra-estrutura. Cada uma delas redefiniu o relacionamento do modo
de produção capitalista com o Estado e a produção estatal. Modificações supra-estruturais como essas não se ge-
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
neralizam, porque esbarram em resistências maiores ou
menores em diferentes países. Como já vimos, o dirigismo
foi praticado em proporções muito diversas e o mesmo
vale para o neoliberalismo. Apesar da grande ofensiva
neoliberal em curso, em lugar algum o governo abandonou a responsabilidade de regular a oferta de moeda e a
taxa cambial. E a idéia de que o aumento do desemprego
e a falta de crescimento não devem ser politizados ainda
não é ponto pacífico em nenhum país.
Por tudo isso, não tem sentido falar em uma “etapa
neoliberal do capitalismo”. Na realidade, o neoliberalismo não passa de uma reação da classe capitalista ao impasse da estagflação. Esta resultou do descompasso entre
o poder adquirido pela classe trabalhadora de impor aumentos de salários e a não responsabilidade dos trabalhadores pela condução das empresas e da economia. O pleno emprego dos anos dourados deu ao operariado poder
de pressão por ganhos pecuniários, mas não lhe deu informações confiáveis sobre o real estado da economia e
sobre a capacidade das empresas de absorver os custos
decorrentes dos aumentos reivindicados.
O neoliberalismo “resolveu” o problema eliminando o
poder de pressão dos trabalhadores. Manteve-os na ignorância e devolveu-os à impotência. Só que no meio tempo, a aplicação de computadores e da telemática à produção e à distribuição está acabando com as tarefas rotineiras
e alienantes que eram a sina dos menos qualificados. As
novas tecnologias, via de regra, requerem trabalhadores
qualificados, motivados e cientes do todo de que participam. A chamada administração flexível reduz o número
de degraus da hierarquia gerencial e confere mais autonomia e responsabilidade ao pessoal de linha. A nova classe
operária, formada pela Terceira Revolução Industrial, dificilmente aceitará o papel que o script neoliberal lhe destina.
Durante os anos dourados, houve avanços consideráveis na participação dos trabalhadores em certas decisões
empresariais que os afetam diretamente. A experiência da
cogestão na Alemanha, depois da Segunda Guerra Mundial, foi significativa. Com as transformações da organização do trabalho, devidas à informática, pode-se esperar que novos avanços venham a ocorrer. Quando a economia
das empresas se tornar mais transparente aos que nelas trabalham e aos que compram seus produtos, toda negociação
salarial e de preços poderá se ampliar de modo a eliminar a
espiral preços-salários. Só então o pleno emprego – uma exigência democrática inescapável – se tornará um objetivo viável.
H. Knudsen (1995:157), que estudou a participação dos
empregados na Europa, diz o seguinte: “A ampla aplicação da tecnologia da informação durante as últimas duas
décadas não foi acompanhada por mudanças radicais nos
padrões de participação dos empregados e em geral não
há base empírica para a tese de que a nova tecnologia tor-
nou a participação uma necessidade produtiva.” E um
pouco adiante: “Em termos gerais, a tecnologia da informação, por causa de potencial produtivo e o papel novo
que confere ao trabalho humano, despertou um interesse
renovado na participação dos empregados e numerosas
companhias têm desenvolvido ativamente novas formas
de participação. É indubitável que, para muitos tipos de trabalho, a implementação e a utilização com êxito da tecnologia da informação dependem da boa vontade e da motivação da força de trabalho. Isso tende a favorecer participação
direta e possivelmente também a participação indireta.”
As revoluções que até agora demarcaram etapas da
história do capitalismo sempre se originaram de transformações infra-estruturais: a invenção da maquinofatura pela
Primeira Revolução Industrial, que criou a fábrica e a
empresa comandadas pelos donos; e a invenção da produção em massa, que suscitou o multiempresa, gerida por
uma tecnoestrutura profissional. Cada uma das duas etapas históricas do capitalismo caracterizou-se por um tipo
de empresa e por relações de produção típicas, impostas
pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas.
Estas revoluções, tecnológicas e organizacionais, sempre se universalizam, pois impõem-se pela concorrência.
Por isso, a questão de uma eventual nova etapa do capitalismo se liga às transformações sofridas pela empresa
capitalista, em conseqüência do avanço tecnológico, da
globalização e das mudanças políticas e ideológicas, que
penetram nas firmas pelas contradições de classe. Infelizmente, este assunto tem sido pouco pesquisado, de modo
que o conhecimento científico sobre as transformações
que vêm ocorrendo na empresa é muito insatisfatório.
Um aspecto que chama atenção é o crescimento da
multiempresa. Há uma visível aceleração das fusões e
aquisições e o tamanho das maiores unidades capitalistas
está aumentando. Isso se explica, em parte, pela ampliação dos mercados, decorrente da abertura das fronteiras
nacionais ao comércio. Os mercados mundiais de bens e
serviços se tornam cada vez maiores pelo acréscimo de
novos mercados nacionais. Isso suscita mais concorrência, reestruturação produtiva, com fechamento de grande
número de empresas débeis e, naturalmente, o crescimento
das fortes. A concorrência intensificada é apenas uma fase,
a ser seguida por outra em que cada mercado volta a ser composto por um pequeno número de enormes multiempresas.
É o que se chama “recomposição oligopólica”.
Mas, a ampliação dos mercados apenas oferece a oportunidade. Para que ela seja aproveitada, é preciso que haja um
aperfeiçoamento correspondente dos meios de controle.
James R. Beniger (1986) mostrou que o capital monopólico
só se viabilizou graças a uma série de inovações tecnológicas e organizacionais, que possibilitaram controlar efetivamente organizações que se estendiam por dezenas de paí-
18
PARA ALÉM
ses, com filiais espalhadas por vastos territórios, empregando centenas de milhares de pessoas para produzir e distribuir centenas e milhares de mercadorias diferentes.
As inovações tecnológicas vieram com a invenção do
telégrafo e do telefone e de instrumentos específicos de
controle como o termostato, o giroscópio e vários tipos
de volantes. Entre as inovações organizacionais, destacam-se a padronização e a cronometragem de tempos e
movimentos, a esteira móvel de montagem, a padronização dos componentes, o controle estatístico de qualidade
(Beniger, 1986:316-17).
Provavelmente, a principal inovação que tornou a
multiempresa possível foi a adaptação da burocracia, desenvolvida na administração pública, para a gerência das
multiempresas. A nítida delimitação de responsabilidades, padronização de condutas e imposição de disciplina
hierárquica permitiu uniformizar os procedimentos para
melhor controlá-los a partir da cúpula. A administração
burocrática foi aperfeiçoada pela invenção das máquinas
de escrever e de calcular, do adressógrafo, do arquivamento de informações em cartões perfurados, da reprodução de documentos por mimeógrafo, por fotocópias e
agora por xerox. Etc.etc.
A Terceira Revolução Industrial, que tem a computação e a telemática como centro, está contribuindo para
tornar possível manejar estruturas empresariais cada vez
mais vastas. É por isso que as maiores organizações capitalistas em cada setor estão conseguindo se fundir para
formar organizações ainda maiores. Mas, como vimos, este
processo de centralização do capital esbarra num limite:
a preservação da concorrência. Estando impedidas de crescer por agregação em cada mercado além de um limite
convencionado, as maiores organizações tenderão a se
expandir, invadindo novos mercados.
Este processo é chamado de conglomeração. Os conglomerados às vezes fracassam, possivelmente porque os
instrumentos e técnicas de controle ainda não permitem
gerir, com um mínimo de eficiência, organizações não só
gigantescas, mas muito heterogêneas. Uma hipótese que
parece bem provável é que o conglomerado capitalista,
quando ultrapassa determinado limiar de tamanho e diversidade, deixa de ser basicamente uma firma capitalista para se transformar em um ente misto, que preserva
características de firma mas adquire outras que são próprias de agrupamento político, no sentido de ser palco de
disputas de poder.
Numa firma comum, o poder provém da propriedade
do capital, diretamente, ou é exercido por procuração dos
donos, indiretamente. É um poder indiviso que, por suposto, submete tudo e todos ao propósito único de maximizar a taxa de lucro. Na prática, não é bem assim. Mesmo na firma comum, as pessoas que nela trabalham têm
DO
NEOLIBERALISMO: A SAGA DO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
seus próprios objetivos e se unem para realizá-los. Há sindicatos e suas representações na empresa, assim como “panelinhas” no seio da burocracia e nos escalões da hierarquia. Nepotismo, favorecimento e corrupção são condutas
que se podem observar em firmas, tanto mais quanto
maiores e mais complexas forem estas.
No conglomerado capitalista que está surgindo, estes
mesmos problemas devem se multiplicar. Há, evidentemente, formas autoritárias e repressivas de procurar
resolvê-los: alocar um corpo de polícia interno à empresa, instalar monitores e outros aparelhos de espionagem,
multiplicar as revistas e verificações, insuflar a delação,
etc. Mas, é pouco provável que isso resolva a questão em
conglomerados realmente grandes, inclusive porque se
torna dificil controlar os controladores. Além do mais, o
autoritarismo repressivo interfere na motivação dos empregados. Não dá para esperar lealdade e dedicação espontâneas de pessoas pesadamente vigiadas e reprimidas.
Ao que parece – esta é outra hipótese –, os conglomerados estão procurando superar o problema do controle
mediante a descentralização e a autonomia das partes. São
exemplos o franqueamento e a subcontratação. Nestes
casos, o conglomerado elimina a relação de produção típica do capitalismo que é o assalariamento e a substitui
pela relação de compra e venda. O franqueado não é um
assalariado que tem de ser controlado, mas um pequeno
ou médio emprendedor que aluga a marca e os serviços
de assistência técnica, comercial, etc. do franqueador. Seu
auto-interesse deve levá-lo a se comportar de acordo com
o interesse do franqueador.
Além disso, empresas que querem funcionar juntas não
precisam se fundir; em certas circunstâncias, basta que
selem alianças, sob a forma de contratos de parceria dos
mais variados. Se esta tendência se generalizar, o conglomerado tomará a forma de firma-rede, de que já fala a
literatura (Dunning, 1997). E a firma-rede apresentará com
mais força as características de ente político, já que nela
existem poderes dispersos cuja coordenação exige, mais
que controle, consenso. É provável que a firma-rede, formada por empresas aliadas, sócios franqueados e fornecedores e distribuidores subcontratados, seja mais democrática do que a firma-una, colocada sob o poder indiviso de
quem representa a propriedade de todo o capital.
Obviamente, se tendências como estas se impuserem,
estaremos diante de uma nova etapa do capitalismo ou,
quem sabe, na primeira etapa da transição para além do
capitalismo. Acresce-se a esta possibilidade o ressurgir
do cooperativismo e do que é genericamente chamado de
“economia solidária”, como resposta à crescente exclusão social produzida pelo neoliberalismo. A economia
solidária é formada por uma constelação de formas democráticas e coletivas de produzir, distribuir, poupar e
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
investir, segurar. As formas clássicas são relativamente
antigas: as cooperativas de consumo, de crédito e de produção, que datam do século passado. Elas surgem como
solução, algumas vezes de emergência, na luta contra o
desemprego. Ocupações de fábricas por trabalhadores para
que não fechem são semelhantes a ocupações de fazendas por trabalhadores rurais sem-terra. Ambas são formas
de luta direta contra a exclusão social, tendo por base a
construção de uma economia solidária, formada por unidades produtivas autogestionárias.
Estas formas reativas, abandonadas a si mesmas, tendem a ficar marginalizadas, por ter pouca significação
social e pequeno peso econômico. Mas, elas têm um respeitável potencial de crescimento político, se o movimento
operário – sindicatos e partidos – apostar nelas como alternativa viável ao capitalismo. Está comprovado que cooperativas de espécies complementares podem formar conglomerados economicamente dinâmicos, capazes de
competir com conglomerados capitalistas. Contudo, as
cooperativas carecem de capital. É o seu calcanhar de
Aquiles. Se o movimento operário, que partilha o poder
estatal com o capital, quiser estimular o financiamento
público da economia solidária, a cara da formação social
vai mudar. Um novo modo de produção pode se desenvolver, capaz de competir com o modo de produção capitalista.
Para além do neoliberalismo, podem-se vislumbrar
transformações sistêmicas do capitalismo em gestação. Por
enquanto, empresa capitalista e democracia são antípodas. Estamos diante dum dilema histórico: ou a liberdade
do capital destrói a democracia ou esta penetra nas empresas e destrói a liberdade do capital.
NOTAS
1. Utilizamos o adjetivo “monopólico”, já consagrado na literatura. Como veremos a seguir, o monopólio propriamente dito só é tolerado no capitalismo nos
setores em que ele é natural, ou seja, decorrente da natureza da atividade, como
por exemplo, a distribuição de energia elétrica, de água potável ou a prestação
de serviços de telefonia. A rigor, os capitais que denominamos monopólicos são
de fato oligopólicos.
2. A taxa de lucro é o quociente do lucro anual da empresa pelo valor da mesma.
Caindo o denominador mais que o numerador, a taxa aumenta. Isso tende a ocorrer
porque os preços dos bens de capital caem mais que os dos bens de consumo. O
excesso de capital é eliminado pela sua desvalorização, o que permite a retomada da inversão.
3. Keynes, ao lado do assessor do Tesouro dos EUA, Harry Dexter White, elaborou os planos para instituir o capitalismo dirigido no âmbito internacional.
Keynes não se conformava com a hegemonia assumida pelos EUA e procurou
evitar a tutela “americana” do FMI e do Banco Mundial. Mas fracassou e a amargura parece ter-lhe abreviado a vida.
4. Mediante emendas aos “Artigos do Acordo” do FMI, o ouro deixou de ser o
lastro do sistema internacional de pagamentos e o dólar deixou de ser o elo de
ligação entre as demais moedas e o ouro. Com isso, formalmente, o dólar tornou-se uma moeda como qualquer outra. Mas, de fato, ele continua sendo até
agora o meio de pagamento preferido, sobretudo para constituir reserva líquida
de governos, firmas e famílias.
5. Para avaliar o impacto da contra-revolução neoliberal sobre o crescimento, os dados relevantes são dos países capitalistas adiantados. O neoliberalismo chegou à América Latina sobretudo no fim dos 80 e à Ásia ainda mais
recentemente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BENIGER, J.R. The control revolution. Technological and economic origins of
the information society. Cambridge, Harvard University Press, 1986.
DOBB, M. A evolução do capitalismo. São Paulo, Abril Cultural, 1983. Publicado originalmente em 1946.
DUNNING, J.H. “The advent of alliance capitalism”. In: DUNNING, J.H. e
HAMDANI, K.A. The new globalism and developing countries. Tóquio,
UN University Press, 1997.
KNUDSEN, H. Employee participation in Europe. Londres, Sage, 1995.
UNITED NATIONS. Department for Economic and Social Information and Policy
Analysis. World economic and social survey 1996. New York, 1996.
20
FIM DE SÉCULO
FIM DE SÉCULO
LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO
Professor do Departamento de Economia da Unicamp
P
ara tratar das transformações econômicas e sociais
que vêm assolando a humanidade neste último
quartel de século, resolvemos fazer uma revisão
crítica das poucas idéias que até aqui sustentamos sobre o
assunto. Não é preciso dizer que, diante da complexidade
do tema, as tais idéias, além de escassas, revelaram-se
mesquinhas.
Aqueles que, por acaso, já tenham tido a desventura
de ler nossos artigos anteriores haverão de notar que, no
essencial, reafirmamos os argumentos centrais acerca da
natureza do chamado processo de globalização. A diferença entre este texto e os anteriores está na tentativa de
colocar estas hipóteses numa perspectiva mais ampla, à
luz do que passamos a chamar, inspirado em Elmar
Altvater, de “etapas de reestruturação capitalista”. Estes
seriam os períodos de subversão e reorganização das relações entre a lógica econômica do capitalismo e as aspirações dos cidadãos à autonomia diante das esferas do poder e do dinheiro e a uma vida boa e decente. Alguém
poderia dizer – e não estaria errado – que, nestes momentos de reestruturação, a luta política vai escolher as normas e os valores que, afinal, vão presidir nossos destinos
coletivos e individuais.
Como já sugeriu o professor Cardoso de Mello, em trabalho recente, a ilustração nos legou uma modernidade
que avança de forma contraditória, impulsionada pela tensão permanente entre as forças e valores da concorrência
capitalista e os anseios de realização da autonomia de um
indivíduo integrado responsavelmente na sociedade. Do
ponto de vista ético, este conflito desenvolve-se entre a
dimensão utilitarista da sociabilidade, forjada na indiferença do valor de troca e do dinheiro, e os projetos de
progresso social que postulam a autonomia do indivíduo,
ou seja, reivindicam o direito à singularidade e à diferen-
ça, ao mesmo tempo em que afirmam o que Robert Bellah
chamou de pertinência cívica.
Toneladas de tinta foram e continuam sendo derramadas sobre outras tantas de papel para falar sobre a tal de
globalização, sobre a maior integração das economias,
sobre os incontroláveis processos de automação e de informatização, sobre a terceirização e a redução do número de assalariados, sobre o fim do trabalho, sobre o poder
disciplinador dos mercados financeiros.
Todas essas tendências se apresentam freqüentemente
de forma exagerada e, não raro, apologética. Assim, o
inevitável torna-se também bom e desejável.
A repetição deste mote parece tão sinistra quanto o
choro das carpideiras, pelo menos para a grande maioria
dos pretendentes a ingressar no clube dos ricos ou das
sociedades desenvolvidas. Os acontecimentos recentes
mostram que, apesar da retórica triunfalista, o acesso ao
almejado título de sócio do clube dos desenvolvidos torna-se cada vez mais restrito. Por outro lado, mesmo nos
países adiantados, cresce o número de cidadãos e cidadãs que não concordam com a mão única que se pretende
impor às suas vidas. A sensação entre as classes não proprietárias é que, de uns tempos a esta parte, aumentou a
insegurança. Além do desemprego crônico e endêmico,
os que continuam empregados assistem ao encolhimento
das oportunidades de um emprego estável e bem remunerado. Não bastasse isto, estão sob constante ameaça de
definhamento as instituições do Estado do Bem-Estar que,
ao longo dos últimas décadas, vinham assegurando, nos
países desenvolvidos, direitos sociais e econômicos aos
grupos mais frágeis da sociedade.
Tal sensação de insegurança é resultado da invasão,
em todas as esferas da vida, das normas da mercantilização e da concorrência como critérios dominantes da inte-
21
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
gração e do reconhecimento social. Nos países em que os
sistemas de proteção contra os freqüentes “acidentes” ou
falhas do mercado são parciais ou estão em franca regressão, a insegurança assume formas ameaçadoras para o
convívio social. A informalidade e a precarização das relações de trabalho – e a desagregação familiar que as acompanha – se expandem e tendem a avançar para a criminalidade eventual e, depois, para o crime organizado. Os
subsistemas socioeconômicos que vivem da atividade criminosa ou ilegal passam a ocupar o espaço deixado pelo
desaparecimento das oportunidades de vida antes oferecidas pela economia “oficial”.
O jornal Le Monde Diplomatique, em sua edição de
julho deste ano, mostra como o encolhimento do Estado
do Bem-Estar nos Estados Unidos promoveu o aparecimento de um “Estado Prisional”, que abriga uma fração
substancial da força de trabalho americana. Os presos, em
geral jovens negros ou chicanos, são excluídos da população economicamente ativa, deixando, portanto, de figurar nas cifras de desemprego.
Bem feitas as contas, as transformações econômicas e
sociais que estamos presenciando, bem como as “teorias
do progresso” que as acompanham, podem ser entendidas como produtos de uma nova tentativa de “reestruturação capitalista”, acompanhada, desta vez, de um revigoramento da ideologia do laissez-faire.
sas para o conjunto. Este foi o caso, no plano internacional, das desvalorizações competitivas que acabaram provocando uma contração espetacular dos fluxos de comércio e suscitando tensões nos mercados financeiros. Tais
forças negativas propagavam-se livremente, sem qualquer
providência da parte dos governos, imobilizados pelo fetiche do padrão-ouro e do equilíbrio orçamentário. Assim, a economia global mergulhou numa espiral deflacionária que atingiu indistintamente os preços dos bens e
dos ativos.
A Grande Depressão e a experiência do nazi-fascismo
colocaram sob suspeita as pregações que exaltavam as
virtudes do liberalismo econômico. Frações importantes
das burguesias européia e americana tiveram de rever seu
patrocínio incondicional ao ideário do livre mercado e às
políticas desastrosas de austeridade na gestão do orçamento e da moeda, diante da progressão da crise social e do
desemprego. Não bastasse isso, assim que a coordenação
do mercado deixou de funcionar, setores importantes das
hostes conservadoras aderiram, não só na Alemanha, aos
movimentos fascistas e à estatização impiedosa das relações econômicas, como último recurso para escapar à
devastação de sua riqueza.
Em sua essência, estas reações foram essencialmente
políticas, no sentido de que envolveram a tentativa de
submeter os processos supostamente impessoais e automáticos da economia ao controle consciente da sociedade.
Em sua obra A grande transformação, Karl Polanyi,
escrevendo sobre esse momento da história, mostrou que
a revolta contra o despotismo do “econômico” revelouse tão brutal quanto os males que a economia destravada
vinha impondo à sociedade. Estudando o avanço do coletivismo, nesta quadra, Polanyi conclui que não se tratava de uma patologia ou de uma conspiração irracional de
classes ou grupos, mas sim da emergência de forças gestadas nas entranhas do mercado destravado.
Com o colapso dos mecanismos econômicos, a superpolitização das relações sociais tornou-se inevitável. O
despotismo da mão invisível teria de ser substituído pela
tirania visível do chefe. O político e a polícia começaram
a invadir todas as esferas da vida social, como se fossem
suspeitas quaisquer formas de espontaneidade.
As forças antifascistas, vitoriosas na Segunda Guerra,
trataram de criar instituições para disciplinar e organizar
o sistema econômico internacional. É impossível entender o sucesso da experiência do “período dourado” sem
compreender as condições em que foi efetuada esta gigantesca reestruturação econômica e política do pós-guerra.
Em primeiro lugar, a hegemonia americana foi exercida de forma benigna, não só por razões de política externa mas também interna: as forças sociais que se aglutinaram sob a bandeira do New Deal tinham uma visão
CRISE E REESTRUTURAÇÃO CAPITALISTA
NOS ANOS 30
A última reestruturação importante daquilo que, parodiando Schumpeter, poderíamos chamar de “ordem capitalista”, começou a se desenvolver a partir dos anos 30 e
encontrou seu apogeu nas duas primeiras décadas que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial. Esta reordenação
foi uma resposta aos desastres provocados pelas “falhas”
do mercado auto-regulado, agravadas pelo apego dos
governos a políticas fiscais e monetárias conservadoras.
Esta miopia liberal-conservadora suscitou violentas reações de autoproteção da sociedade assolada por desgraças como o desemprego em massa, o desamparo, a falência, a bancarrota. Tratava-se, essencialmente, de uma
rebelião contra a exclusão dos circuitos mercantis, o que
significava, para milhões de pessoas, a impossibilidade
de acesso aos meios necessários à sobrevivência.
Neste mesmo período, a economia mundial foi palco
de rivalidades nacionais irredutíveis, que se desenvolveram sem peias, na ausência de um núcleo hegemônico e
de mecanismos de coordenação capazes de conter as desesperadas iniciativas para escapar dos efeitos da crise.
Estas ações individuais, tomadas em defesa das economias nacionais ou de grupos sociais revelaram-se dano-
22
FIM DE SÉCULO
cosmopolita e progressista do papel dos Estados Unidos.
A filosofia moral e política que inspirou a reconstrução
ensejou, dentro dos marcos da guerra fria, o nascimento
do Plano Marshall e as iniciativas de reestruturação da
economia japonesa. Durante um bom tempo, sobretudo
nos anos 50 e 60, nem mesmo a tensão permanente entre
as duas superpotências, a competição entre o capitalismo
e o socialismo, a rivalidade econômica cada vez maior
entre a Alemanha, os Estados Unidos e o Japão, os conflitos armados e os golpes militares que se sucederam na
periferia do sistema impediram a maior liberdade das
políticas nacionais de desenvolvimento, que fomentaram,
diga-se, os processos de industrialização.
O pleno emprego foi colocado como meta a ser perseguida pelas políticas econômicas. Muitas constituições européias consagraram este princípio. Os Estados Unidos
promulgaram uma lei. Tudo isto para evitar os males causados por dogmas e políticas tolas do liberalismo a qualquer preço.
No pós-guerra, o rápido crescimento das economias
capitalistas esteve apoiado numa forte participação do
Estado, destinada a impedir flutuações bruscas do nível
de atividades e a garantir a segurança dos mais fracos diante das incertezas inerentes à lógica do mercado. Os sistemas financeiros, voltados ao financiamento do crescimento econômico e comandados por políticas monetárias
acomodatícias, funcionavam como redutores de incertezas para o setor privado que, por sua vez, sustentava elevadas taxas de investimento. Mas é preciso deixar claro
que a chamada era keynesiana estava fundada, sobretudo, na articulação de interesses entre trabalhadores e capitalistas e na construção de instituições e procedimentos
políticos destinados a reduzir a angústia de quem se propõe a assumir riscos e enfrentar os azares do mercado.
As políticas keynesianas tinham o propósito declarado de criar empregos e elevar, em termos reais, os salários e demais remunerações do trabalho. Não havia déficit público “estrutural”, salvo nos períodos de suave
flutuação do nível de atividade, em que tais desequilíbrios
eram logo absorvidos pela retomada do crescimento. Isto
porque o continuado aumento da renda e do emprego faziam crescer a receita dos governos. Os estoques de dívida pública acumulados durante a guerra caíram aceleradamente, como a proporção do PIB, em quase todos os
países. Os déficits crônicos e o crescimento das dívidas
públicas só apareceram depois, no final dos anos 60 e
começo dos 70, quando a economia perdeu ímpeto e as
políticas keynesianas começaram a recuar. O rompimento do círculo virtuoso entre gasto público, investimento
privado e emprego parece ter sido uma das conseqüências mais importantes e duradouras do declínio do chamado consenso keynesiano.
AGONIA DO CONSENSO KEYNESIANO E
POLÍTICA DE GLOBALIZAÇÃO
Seria conveniente relembrar, por outro lado, que a rápida recuperação das principais economias européias e o
espetacular crescimento do Japão foram causas importantes do progressivo desgaste das regras monetárias e cambiais acertadas em Bretton Woods. A concorrência das
renovadas economias industrializadas da Europa e do Japão e o fluxo continuado de investimentos americanos
diretos para o Resto do Mundo determinaram, desde o final
dos anos 50, um enfraquecimento do dólar, que funcionava como moeda central do sistema de taxas fixas de
câmbio.
A longa gestação do processo de globalização financeira foi, na verdade, resultado das políticas que buscaram enfrentar a desarticulação do bem-sucedido arranjo
capitalista do pós-guerra.
As decisões políticas tomadas pelo governo americano, ante a decomposição do sistema de Bretton Woods, já
no final dos anos 60, foram ampliando o espaço supranacional de circulação do capital monetário. O poder dos
mercados financeiros desregulamentados tem como origem a recuperação do predomínio da alta finança nas hierarquias de interesses que se digladiam no interior do Estado plutocrático americano.
É deste ponto de vista que devem ser analisadas as
mudanças na política econômica americana entre os anos
70 e 80. O sistema bancário americano foi cúmplice da
chamada “negligência benigna” até o momento em que o
declínio da moeda americana permitia a sua participação
nos ganhos de seignorage. Isto era possível através da
ampliação continuada do volume de crédito, denominado em dólares, a uma velocidade maior que a da taxa de
desvalorização da moeda. Isso acabou estimulando a primeira onda de expansão dos mercados financeiros internacionais, através do crédito bancário. Os símbolos desta
era foram, sem dúvida, o crescimento espetacular do euromercado e das praças off shore.
As tentativas de assegurar a centralidade do dólar –
depois da desvinculação do ouro em 1971 e da introdução das taxas de câmbio flutuantes em 1973 – determinaram o enfraquecimento da demanda da moeda americana
para transações e como reserva e o surgimento de um instável e problemático sistema de paridades cambiais. O
dólar, por sua vez, “flutuava” continuamente para baixo.
Sendo assim, não era de se espantar que o papel da moeda americana nas transações comerciais e financeiras começasse a declinar, assim como sua participação na formação das reservas em divisas dos bancos centrais.
Não há dúvida de que o gesto americano de elevar
unilateralmente as taxas de juros, em outubro de 1979,
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
foi tomado com o propósito de resgatar a supremacia do
dólar como moeda reserva. O fortalecimento do dólar tinha se transformado, então, em uma questão vital para a
manutenção da liderança do sistema financeiro e bancário americano, no âmbito da concorrência global.
Desde então, as políticas econômicas dos demais países, incluídos a Alemanha e o Japão, tiveram de se submeter crescentemente aos mandamentos do dólar forte.
A América Latina endividada submergiu numa montanha
de débitos impagáveis. A Europa e o Japão apoiaram fortemente seu crescimento nas exportações, diante da rápida ampliação do déficit comercial norte-americano.
corte de impostos, sempre amparados em taxas de juros muito
baixas, chocam-se contra o estado pessimista das expectativas, vazando para o exterior, sob a forma de aquisições de
ativos denominados em dólares. O iene está submetido, portanto, a pressões permanentes que o empurram para a desvalorização em face da moeda norte-americana.
Os chamados capitais de curto prazo contam, assim,
nos Estados Unidos, com um mercado amplo e profundo
que funciona como porto seguro nos momentos de grande instabilidade ou quando a confiança fraqueja em outros mercados. A existência de um volume respeitável de
papéis do governo americano, reputados pelo baixo risco
e a excelente liquidez, tem permitido que a reversão dos
episódios especulativos, com ações, imóveis ou ativos
estrangeiros, seja amortecida por um movimento compensatório do preço dos títulos públicos americanos.
O economista Robert Blecker mostra, em um artigo de
junho de 1998, que os fluxos líquidos de investimento em
portfólio, destinados por estrangeiros ao mercado americano, cresceram quase dez vezes entre 1990 e 1997, passando
de 52 bilhões de dólares para 564,4 bilhões de dólares. Se
tomamos como referência os últimos dois anos, 1995 e 1997,
o fluxo líquido de investimento de portfólio simplesmente
dobrou. As aplicações de residentes no Japão e o crédito
barato em ienes vêm contribuindo com uma parte importante deste fluxo de capitais para os Estados Unidos.
Os títulos da dívida pública americana são vistos como
um refúgio nos momentos em que a confiança dos investidores globais é abalada. Isto significa que o fortalecimento da função de reserva universal de valor, exercida
pelo dólar, decorre fundamentalmente das características
já mencionadas de seu mercado financeiro e do papel crucial desempenhado pelo Estado americano como prestamista e devedor de última instância.
Apesar de sua aparente solidez, a polarização da confiança não um é sintoma de boa saúde do sistema monetário apoiado na força do dólar. Duas são as fraquezas
maiores desse sistema: a primeira, sua reconhecida instabilidade; a segunda, a nem sempre sublinhada “assimetria dos processos de ajustamento”. A instabilidade das
paridades cambiais tem sido recorrente. Estamos diante
de um substancial aumento do déficit em conta corrente
dos Estados Unidos. Nestas circunstâncias, tanto o eventual “sucesso” do euro, a moeda única européia, quanto uma
recuperação do Japão (acompanhada de uma inevitável subida dos juros cobrados nos empréstimos em ienes) podem
ressuscitar os riscos de uma forte desvalorização do dólar e
de uma queda de muitos pontos na bolsa de Nova York.
A assimetria dos processos de ajustamento envolve,
outra vez, a delicada situação dos países de moeda fraca
e devedores. Deixando de lado a crise asiática, mais recentemente essa posição desconfortável ficou explícita na
A FORÇA DO DÓLAR E A
GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA
O Acordo do Plaza, de 1985, que antecedeu a desvalorização ordenada da moeda americana, depois da escalada de apreciação do início dos anos 80, colocou de joelhos os japoneses. A Europa, de olho na unificação
monetária, adotou, diante das novas circunstâncias, políticas de austeridade – a chamada desinflação competitiva –, cujo preço, como todos sabem, tem sido alto em termos do baixo crescimento e de elevadas taxas de desemprego.
O poder crescente de veto dos mercados financeiros é
usado com freqüência por muitos governos, como pretexto
para que adotem uma posição passiva, de absoluta submissão às exigências da concorrência, da desregulamentação e
da liberalização dos fluxos de comércio e de capitais.
Essa limitação crescente à ação dos Estados é, naturalmente, muito desigual. Os Estados Unidos, usufruindo
de poder militar e financeiro, dão-se ao luxo de impor a
dominância de sua moeda, ao mesmo tempo em que mantêm um déficit elevado e persistente em conta corrente e
uma posição devedora externa. Isto significa que os mercados financeiros estão dispostos a aceitar, pelo menos
por enquanto, que os Estados Unidos exerçam, dentro de
limites elásticos, o privilégio da seignorage.
Esta polarização da confiança se traduz em limitações
à autonomia das políticas nacionais de outros países. A
intensidade da restrição depende da forma e do grau da
articulação das economias nacionais com os mercados
financeiros sujeitos à instabilidade das expectativas. O
Japão, por exemplo, é um país superavitário e credor e
por isso teria, em princípio, mais liberdade para praticar
o expansionismo fiscal e juros baixos ou para tolerar
amplas flutuações no valor de sua moeda, sem atrair a
desconfiança dos especuladores. Imobilizada por uma
profunda crise bancária e pela existência de capacidade
produtiva excedente em muitos setores, a economia japonesa vem resistindo às políticas de estímulo ao crescimento. Os pacotes fiscais, que incluem aumento de gastos e
24
FIM DE SÉCULO
declaração do ministro de Economia da Rússia, que afirmou: “Jamais deixaremos de pagar os juros da dívida
pública para pagar salários atrasados.” Os salários de
muitos trabalhadores russos, inclusive os dos militares,
não são pagos há meses.
Isto foi dito para aplacar a desconfiança dos investidores, domésticos e internacionais, quanto à possibilidade de um default, o que acarretaria, de cambulhada, uma
forte desvalorização do rublo. A intervenção do FMI e
dos países do G-7 fez a confiança retornar, pelo menos
provisoriamente, depois da abertura de uma linha de crédito de mais de 20 bilhões de dólares. A liberação da primeira parcela de 6 bilhões de dólares ficou condicionada
à aprovação pela Duma de uma drástica reforma fiscal,
com aumento de impostos e corte de gastos que devem
ser aplicados a uma economia debilitada por seis anos de
quedas acentuadas do produto e da renda.
balho socialmente necessário, assim como o aumento brutal das escalas de produção e a explosão de todas as modalidades de superpopulação relativa; de outro, é impossível
desconhecer a inclinação permanente à sobre-acumulação,
o que vem produzindo o acirramento da concorrência e,
conseqüentemente, a queda das barreiras nacionais impostas à mobilidade do capital, sob suas várias formas.
Mas, entre todas, é a forma financeira que estabelece sua
supremacia. Esta forma “superior” – por ser a mais geral
e abstrata de existência da riqueza – impulsiona a centralização do capital e o endurecimento do controle capitalista, o que induz, inevitavelmente, a novas ondas de internacionalização e ao recrudescimento da rivalidade entre
os capitais. Estas são dimensões do que István Mészáros
chamou de “regime do capital”, que promove continuamente a mercantilização e impõe seus desígnios sobre
todas as esferas da vida. Falamos, inclusive, daquelas
como a religião e o tempo livre, que até há bem pouco
tempo eram consideradas, por sua natureza, fora do alcance dos negócios e da lógica mercantil.
Diante da força desta nova reestruturação capitalista,
é possível concluir que estamos observando, no imaginário social, a “reconstrução” de um tipo de sujeito funcionalmente adequado às exigências de operação da máquina
econômica. Trata-se do renascimento do homo economicus,
aquela invenção triunfante da filosofia radical e da economia política do século XVIII, que postulavam o ser
social reduzido às determinações da satisfação dos desejos através de uma razão viciada em adequar os meios
aos fins.
A economia política buscava e busca apresentar esta
sua construção, o homo economicus, como o ser racional
e calculador que fundamenta a sociedade, definida como
a agregação destes indivíduos atomizados. São leis naturais e, portanto, incontornáveis, as que induzem todo o indivíduo à troca e o submetem às normas da concorrência, ao
julgamento impessoal do mercado, entendido como locus
de coordenação e de conciliação dos egoísmos privados.
A história das sociedades deve chegar ao fim quando
“a propensão natural para a troca” e para o comércio triunfar definitivamente sobre os artificialismos da política,
entendida como invenção de instituições e mitos coletivos, empecilhos à ação racional dos indivíduos livres.
Apresentados não só como as formas “naturais”, mas também superiores, da sociabilidade, os nexos monetários e
mercantis aparecem como as condições para se alcançar
simultaneamente a Liberdade, a Igualdade e a fruição da
máxima Utilidade para todos. Essa “naturalização” das
instituições sociais e humanas é o mais conhecido truque
intelectual dos defensores puros e duros da superioridade
do mercado sobre as outras formas de integração social.
Na visão dos liberais de hoje e de sempre, os problemas
UMA NOVA ORDEM CAPITALISTA?
O desaparecimento do socialismo, o final da guerra
fria, o colapso das ditaduras militares na periferia, ao invés de uma nova ordem internacional, criaram as condições para uma reafirmação sem precedentes do poder econômico, político e militar dos Estados Unidos. As velhas
questões relativas ao convívio entre as nações soberanas
reaparece sob uma forma muito peculiar, neste mundo em
que o poder está praticamente concentrado em um só país.
Ainda não estão claras as conseqüências desta expansão
avassaladora do “americanismo” sobre sociedades que
apresentam trajetórias históricas diferentes daquelas percorridas pelos Estados Unidos. Assistimos, de fato, à disseminação para o resto do mundo de um modelo político,
econômico e cultural, o modelo americano.
Mas não se pode desconsiderar que a exasperação do
poderio americano deu curso às transformações nos métodos de acumulação de riqueza e às metamorfoses da
sociabilidade contemporânea. Essas transformações e estas
metamorfoses significam um “retorno” à hegemonia das
leis de funcionamento da economia mercantil-capitalista.
As inegáveis vitórias da lógica do “valor que se valoriza” vêm fazendo recuar as tentativas do pós-guerra de
domesticar a mercantilização universal e a concorrência
sem quartel. Afinal, em sua essência, o Estado do BemEstar, através da aplicação política de critérios diretamente
sociais, buscou encontrar soluções para o problema da satisfação das necessidades, contrariando as condições impostas pela troca generalizada de mercadorias.
Operam aí, de novo, a todo o vapor, as tendências centrais do capitalismo, ou seja, da troca generalizada de
mercadorias: de um lado, a elevação acelerada da produtividade do trabalho, através da redução do tempo de tra-
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
da economia ou a eclosão das crises devem ser tributados
às tentativas de interferir nas leis naturais que governam
o mercado livre.
Não é de espantar que, enquanto a direita toma a iniciativa das reformas, destinadas a demolir os obstáculos
que ainda se opõem ao livre desenvolvimento das forças
do mercado, a esquerda pareça condenada a defender as
posições já conquistadas.
Na prática, o pensamento dominante tenta demonstrar
que, com o fim da competição entre os dois sistemas – o
capitalismo e o socialismo –, não há outra alternativa para
as sociedades, ricas ou pobres, senão a economia de mercado e a democracia representativa. Aliás, aos pobres e
remediados do mundo, sejam eles países, classes sociais
ou indivíduos, não restaria outra opção senão a de trilhar
o caminho dos bem-sucedidos.
A fórmula do mercado – diante das restrições de recursos e da tecnologia – garante os melhores resultados
no que diz respeito à eficiente alocação de recursos escassos, tanto entre usos possíveis quanto entre consumo
presente e consumo futuro. Não bastasse isto, o mercado
oferece o modelo ideal para que os indivíduos racionais
possam escolher seus governantes, submetendo-os periodicamente a julgamento.
Nas últimas décadas, o refrão do caminho único conseguiu aceitação tão completa que chega a levar ao ridículo os
arroubos deterministas de certos seguidores de Marx.
Esta escatologia do “fim da história”, tal como apanhada
às pressas de alguma interpretação da filosofia da história
de Hegel, é a glória mas também a miséria do novo pensamento das classes cosmopolitas e dominantes, que espalham
sua descoberta de Nova York a Jakarta, de Londres a Buenos
Aires. Glória porque, finalmente, foi possível arrebatar o
estandarte do progressismo das mãos dos adversários de
morte, que julgavam ter a sua posse definitiva. Miséria porque a queda do “Império do Mal” não interrompeu, mas antes
acelerou o avanço da barbárie. Sob muitas máscaras, ela
ameaça os fundamentos da ordem burguesa, ao promover o
fracionamento das sociedades, cada vez mais divididas entre os integrados e os excluídos, ao mesmo tempo em que
fomenta a busca desesperada por formas de identificação
“primárias”, religiosas, étnicas e “tribais”, mutuamente hostis
e declaradamente inimigas dos valores republicanos. Ao
solapar a autoridade do Estado, colocando em questão sua
legitimidade, a barbárie moderna faz também periclitar o
monopólio da violência, abrindo caminho para a guerra de
todos contra todos. Tais incômodos, para os novos panglossianos, são apenas sobrevivências de um conflito moribundo, que será inevitavelmente debelado pela força conciliadora do Espírito.
Nas “Teses sobre a História”, Walter Benjamin rebelava-se contra tais versões social-evolucionistas quan-
do elas infestavam o pensamento de esquerda. Para Benjamin, o historicismo, assim como as filosofias da história, pretende congelar a imagem “eterna” do passado, enquanto o presente se transforma apenas em um ponto de
passagem para o futuro. O futuro pode ser projetado, como
uma ponte que atravessa um tempo homogêneo e vazio:
o progresso está lá, irremediavelmente à espera de ser desvendado pela Razão.
Benjamin sustentava que o materialismo histórico, ao
contrário, deve imaginar o presente como a apropriação
das experiências passadas, na perspectiva de construção
do futuro. O presente é, assim, o ponto de aglutinação entre
o que foi conquistado no passado pelas lutas sociais e a
inovação, ou seja, a contínua descoberta de novas possibilidades pela ação humana coletiva.
Não haverá descanso, nem fim, neste trabalho de derrubar as barreiras que se opõem à autonomia dos indivíduos. O alegado conservadorismo da esquerda pode ser
entendido, assim, como uma reação à tentativa do neoprogressismo burguês de fazer a história retroceder, em
nome do progresso, para os tempos da subordinação irremediável do destino das pessoas aos caprichos de uma
suposta “lógica” férrea da economia.
Não há dúvida de que só a radicalização da democracia é capaz de cumprir as promessas de autonomia do indivíduo integrado à sociedade – Liberdade, Igualdade e
Fraternidade – estampadas nos estandartes da modernidade. Para tanto, é preciso resguardar o indivíduo e a sociedade dos dois perigos que os ameaçam: o controle político da vida privada e a subordinação do mundo da vida
à lógica do dinheiro.
Os partidários da democracia radical têm sido mais
hábeis para identificar os perigos oriundos da excessiva
politização da sociedade (os abusos da burocracia, o corporativismo) do que para alertar sobre os riscos, muito
menos óbvios, representados pelo caráter despótico das
leis que regem a produção de “riqueza abstrata”. Enquanto
discutiam, e ainda discutem, a terceira via, “a nova esquerda” e outras coisas, as transformações na base econômica da sociedade vão ocorrendo a uma velocidade
estonteante, modificando radicalmente as perspectivas de
vida de milhões de seres humanos.
Diante das freqüentes derrotas de seus intentos “reformistas”, refugiam-se em uma vertente vulgar da “ética
discursiva”, cujas características maiores são a supressão
das diferenças de poder real entre classes sociais e o desconhecimento completo de que nunca foi tão profundo o
conflito entre a dinâmica econômica do capitalismo e as
condições requeridas para a radicalização da convivência democrática.
Hoje, mais do que nunca, a crítica da sociedade existente não pode ser feita sem a crítica da economia política.
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GLOBALIZAÇÃO
E
NEOLIBERALISMO
GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO
OCTAVIO IANNI
Professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor de A sociedade global, entre outros
O
nhecem plenamente, seja os que a relativizam, ou ainda
os que simplesmente a negam, todos revelam-se inquietos. Alguns alegam que se trata de uma realidade antiga,
evidente desde os inícios do capitalismo, quando declina
o feudalismo e emerge o mercantilismo. Outros afirmam
que está em curso uma diabólica maquinação ideológica
do neoliberalismo. Há os que distinguem “mundialização” da cultura e “globalização” da economia. Também
existem os que dizem que a globalização não é senão uma
nova face do imperialismo. São muitos os que insistem
na prevalência do nacionalismo, compreendendo a soberania do Estado-Nação e a importância das relações internacionais, como se a globalização não fosse senão uma
dimensão secundária ou até mesmo episódica das relações econômicas e políticas entre nações agrárias, subdesenvolvidas, mais ou menos desenvolvidas, emergentes, industrializadas e pós-industriais. Para outros, os
processos de integração regional, tais como os da União
Européia (UE), Tratado de Livre Comércio da América
do Norte (Nafta), Mercado Comum Sul-Americano (Mercosul), Comunidade de Estados Independentes (CEI) e
Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec), entre tantos regionalismos, seriam uma reação de autodefesa das
economias nacionais, embora haja os que alegam que o
regionalismo revela-se uma forma de atenuar o impacto
do globalismo sobre o nacionalismo. São muitos os que
se revelam inquietos com a sucessão de acontecimentos,
simultaneamente sociais, econômicos, políticos e culturais, embaralhando ou redirecionando as fronteiras de
todos os tipos, modificando os desenhos e os movimentos do mapa do mundo.
O que predomina, na época em que se dá a globalização, é a visão neoliberal do mundo. Em todos os países,
as práticas e as idéias neoliberais estão presentes e ati-
processo de globalização aparece de forma particularmente acentuada no âmbito das ideologias que
se criam e recriam, ou mesclam e degladiam. São
ideologias nas quais convivem utopias, nostalgias e escatologias, em geral decantando ou exorcizando o jogo das forças sociais que fermentam os novos quadros sociais e mentais de referência. Em todo o mundo, ainda que em diferentes
gradações, multiplicam-se as interrogações e as convicções
nas quais ressoam utopias, nostalgias e escatologias sobre o
destino de indivíduos e coletividades.
Desde que se tornou evidente a globalização de processos e estruturas sociais, abalando territórios e fronteiras ou soberanias e hegemonias, multiplicaram-se as controvérsias e os estudos, tanto quanto as inquietações e as
perspectivas, sobre as configurações e os movimentos da
sociedade, em âmbito local, nacional, regional e mundial.
O mapa do mundo revelou-se movediço e quebradiço, refletindo uma espécie de megaterremoto, simultaneamente geoistórico, econômico, político e cultural. E assim se
abalam mais ou menos drasticamente os territórios e as
fronteiras de todos os tipos, compreendendo os quadros
sociais e mentais de referência de uns e outros, indivíduos e coletividades ou povos, tribos, nações e nacionalidades, em todo o mundo.
Essa é a realidade: quando se abalam as bases sociais e
mentais de referência de uns e outros, todos são desafiados a repensar as suas práticas e os seus ideais, compreendendo as suas convicções e as suas ilusões. Ao mesmo
tempo em que se abalam as formas de sociabilidade que
pareciam estabelecidas e o jogo das forças sociais que
parecia equacionado, abalam-se as interpretações e os imaginários que pareciam sedimentados.
É evidente que a problemática da globalização tem
agitado os espíritos em todo o mundo. Seja os que a reco-
27
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
vas. É claro que elas não se difundem de modo homogêneo; ao contrário, concretizam-se irregular e contraditoriamente. Defrontam-se com realidades sedimentadas, no
que se refere seja às atividades, organizações e diretrizes
econômicas, políticas e sociais, seja às tradições culturais, compreendendo instituições, modos de vida e trabalho, formas de sociabilidade e outras características
próprias de cada povo, coletividade, tribo, nação e nacionalidade. O nacionalismo, tribalismo, localismo, provincianismo, chauvinismo e outras peculiaridades ou excentricidades revelam-se, com freqüência, obstáculos à difusão e
assimilação de práticas e idéias neoliberais.
O neoliberalismo compreende a liberação crescente e
generalizada das atividades econômicas, englobando produção, distribuição, troca e consumo. Funda-se no reconhecimento da primazia das liberdades relativas às atividades econômicas como pré-requisito e fundamento da
organização e funcionamento das mais diversas formas
de sociabilidade, compreendendo não só as empresas,
corporações e conglomerados, mas também as mais diferentes instituições sociais. “Neo” liberalismo porque se
impõe e generaliza em escala mundial, alcançando inclusive os países nos quais se havia experimentado ou continua a se experimentar o regime socialista ou o planejamento econômico centralizado. Sob o neoliberalismo,
reforma-se o Estado tanto dos países que se haviam organizado em moldes socialistas como os que sempre estiveram organizados em moldes capitalistas. Realizam-se a
desregulamentação das atividades econômicas pelo Estado, a privatização das empresas produtivas estatais, a privatização das organizações e instituições governamentais
relativas à habitação, aos transportes, à educação, à saúde e à previdência. O poder estatal é liberado de todo e
qualquer empreendimento econômico ou social que possa interessar ao capital privado nacional e transnacional.
Trata-se de criar o “Estado mínimo”, que apenas estabelece e fiscaliza as regras do jogo econômico, mas não joga.
Tudo isto baseado no suposto de que a gestão pública ou
estatal de atividades direta e indiretamente econômicas é
pouco eficaz, ou simplesmente ineficaz. O que está em
causa é a busca de maior e crescente produtividade, competitividade e lucratividade, tendo em conta mercados
nacionais, regionais e mundiais. Daí a impressão de que
o mundo se transforma no território de uma vasta e complexa fábrica global e, ao mesmo tempo, em shopping
center global e disneylândia global.
Simultaneamente, dá-se a globalização das forças produtivas e das relações de produção, ainda que de maneira
desigual, contraditória e simultaneamente combinada. Sob
as suas diversas formas, o capital atravessa territórios e
fronteiras, mares e oceanos, englobando nações, tribos,
nacionalidades, culturas e civilizações. Juntamente com
o capital, sob suas diversas formas, globalizam-se as tecnologias de todos os tipos, compreendendo crescentemente
as eletrônicas e informáticas. A informática concretiza,
agiliza e generaliza os processos decisórios, favorecendo
a dinâmica das empresas, corporações e conglomerados.
Multiplicam-se as redes de todos os tipos, incluindo os
movimentos de capitais, mercadorias, gentes e idéias,
sempre envolvendo decisões adotadas pelas tecno-estruturas nas quais se diagnosticam, decidem e implementam
as práticas por meio das quais operam e desenvolvem-se
as forças produtivas e as relações de produção. Nesse sentido é que as atividades, os movimentos e as diferenciações da força de trabalho também se transnacionalizam,
atravessando territórios e fronteiras. Inauguram-se movimentos migratórios, em novas direções, principalmente de nações do ex-Terceiro Mundo para as do ex-Primeiro Mundo. O que já ocorria nos tempos da guerra fria, em
parte alimentando de força de trabalho barata o “milagre
europeu”, intensificou-se ainda mais quando se dissolvem
as fronteiras geopolíticas criadas durante a guerra fria.
Ocorre uma espécie de “terceiromundização” do Primeiro Mundo; ou revela-se neste muito do que se encobria
com a “diplomacia total” que alimentava a guerra fria.
Passam a ser numerosos, multidões, os migrantes chegando em países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos,
vindos da Ásia, Oceania, África, América Latina e Caribe, além dos provenientes dos países que faziam parte do
mundo socialista. Mesclam-se trabalhadores de todas as
qualificações, etnias, culturas, línguas, religiões e outras
características, como se a fábrica global se tivesse transformado em um vasto e intrincado caleidoscópio ou nova
Babel.
Está em curso a reprodução ampliada do capital, em
escala global. Simultaneamente, desenvolvem-se a concentração do capital, no sentido da crescente reinversão
do excedente, lucro ou mais-valia, e a centralização do
capital, através de absorção de empreendimentos menos
ativos, secundários ou marginais pelos mais ativos, dinâmicos ou agressivos. Assim é que as forças produtivas e
as relações de produção atravessam territórios e fronteiras, globalizando-se. Essa é uma globalização que causa
impactos mais ou menos drásticos não só nas “fronteiras”– isto é, nas regiões ainda pouco impregnadas pelas
forças produtivas e pelas relações de produção capitalistas, dominantes –, mas também nas nações que haviam
experimentado regimes socialistas, ou economias centralmente planificadas. Mais do que isso, a globalização causa
impactos inclusive nas nações tradicionalmente organizadas em moldes capitalistas, “emergentes” ou “dominantes”, centrais ou periféricas, ao norte ou ao sul. Nessas
condições, a globalização do capitalismo implica sempre
e necessariamente o desenvolvimento desigual, contradi-
28
GLOBALIZAÇÃO
tório e combinado. “Desigual”, devido aos desníveis e às
irregularidades na realização das forças produtivas e das
relações de produção. “Contraditório”, porque leva consigo tensões e atritos entre os subsistemas econômicos
nacionais e regionais, enquanto províncias do sistema econômico global. E “combinado”, já que, a despeito das desigualdades de todos os tipos e das contradições também
múltiplas, desenvolve-se em geral alguma forma de acomodação, associação, subordinação ou integração, nas
quais os pólos dominantes ou mais dinâmicos subordinam, orientam ou administram os “emergentes”.
Sob o neoliberalismo predominante na economia global, “o critério principal é a competitividade; e, derivados dele, os imperativos universais da desregulação, privatização e redução da intervenção governamental nos
processos econômicos. O neoliberalismo está transformando os Estados em amortecedores situados entre as forças
econômicas externas e a economia nacional; isto é, agências destinadas à adaptação das economias nacionais às
exigências da economia global. Assim, o mercado irrompe livre de quaisquer barreiras nacionais, submetendo a
sociedade global às suas leis” (Cox, 1995:39).
O neoliberalismo predomina e prevalece em um mundo organizado em moldes cada vez mais sistêmicos. São
várias as articulações sistêmicas que organizam e dinamizam as atividades econômicas, políticas e culturais, ou
sociais, que articulam e balizam as coisas, gentes e idéias. É
óbvio que são muitas, distintas e também contraditórias
as formas de organização social de indivíduos e coletividades, tribos e nações, empresas e corporações, igrejas e
religiões, culturas e civilizações. Esse é um vasto e intrincado caleidoscópio, sempre em movimento, colorido,
sonoro, articulado e caótico. Nem por isso, no entanto,
deixam de prevalecer e predominar as articulações sistêmicas, também muitas vezes tensionadas entre si ou mesmo embaralhadas. Por dentro e por sobre tudo o que é
local e nacional, revelam-se articulações de tipo regional
e mundial. A despeito dos graus variáveis de organização
e concretização, é inegável que a União Européia, a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, o Tratado de Livre
Comércio da América do Norte e outras organizações regionais afirmam-se como estruturas de poder incipientes
ou já poderosas. Em outros termos, também são estruturas de poder mais ou menos eficientes a Organização para
a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE),
o Grupo dos 7 (G7), transformado em 1997 em Grupo
dos 8 (G8), e a conferência anual de empresários, representantes governamentais e outros, que se realiza em
Davos. Porém, as mais poderosas estruturas de poder são
as corporações transnacionais, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Banco Internacional
de Reconstrução e Desenvolvimento, Bird) e a Organiza-
E
NEOLIBERALISMO
ção Mundial do Comércio (OMC), que dispõem de recursos financeiros, técnicos e organizatórios, mobilizando ciência e técnica, equipes e aparatos, para diagnosticar, planejar e pôr em prática decisões que influenciam
as economias de cada uma e todas as nações, assim como
da economia mundial. A sua capacidade de estabelecer
critérios e diretrizes, não só econômico-financeiras mas
também técnico-organizatórias e outras, aos quais devem
ajustar-se os governos nacionais, lhes confere a categoria de estruturas mundiais de poder (Banco Mundial, 1996;
Tanzi, 1993; Tommasi, Warde e Haddad, 1996; Melo e
Costa, 1994).
Porém, cabe ressaltar a presença e a importância das
empresas, corporações e conglomerados transnacionais,
que estão direta e ativamente presentes em todos os níveis do sistema econômico, compreendendo a produção,
distribuição e troca, mas sempre induzindo, intensificando e generalizando o consumo. São empreendimentos que
atuam em todos os níveis e setores, incluindo a eletrônica
e a informática, o turismo e o entretenimento, a mídia impressa e a eletrônica. Não se deve esquecer que esses
empreendimentos são administrados por tecno-estruturas
sofisticadas, capazes de realizar diagnósticos e prognósticos, planejamentos e projetos. Estão presentes e ativos
em extensas partes da sociedade mundial, em geral mapeadas em termos de mercados reais e potenciais,
conquistados e a conquistar. Tudo isso influenciando,
cooptando ou atropelando Estados nacionais, em suas
organizações, diretrizes e intenções. Basicamente, a globalização significa a globalização do capitalismo pelas atividades das corporações globais (Korten, 1996;
Barnet e Cavanagh, 1994).
Sim, o neoliberalismo diz respeito à transnacionalização das forças produtivas e das relações de produção, atravessando os territórios e as fronteiras, tanto quanto os
regimes políticos e as culturas. São “forças produtivas”,
tais como o capital, a tecnologia, a força de trabalho, a
divisão do trabalho social, o mercado, o planejamento e a
violência, concretizando a transformação de formas de
vida e trabalho, compreendendo práticas e imaginários.
São “relações de produção”, tais como a liberdade e a
igualdade de proprietários organizados no contrato, o que
compreende a empresa, a corporação, o conglomerado, o
Estado, o direito, os códigos jurídico-políticos, a contabilidade, a calculabilidade, a produtividade, a competitividade e a lucratividade. Envolvem instituições e organizações, práticas e ideais, modos de pensar e agir, em geral
racionais, pragmáticos ou instrumentais, de modo a agilizar e generalizar as condições de operação dos “fatores
da produção”.
Esse é o contexto em que se cria e recria a nação, compreendendo a sociedade e o Estado, o território e a fron-
29
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
teira. Sob vários aspectos, pode-se afirmar que a nação
se forma principalmente no contexto do liberalismo e
transforma-se mais ou menos drasticamente no contexto
do neoliberalismo. No âmbito do neoliberalismo, o Estado-Nação entra em crise, é levado a redefinir-se. A dinâmica da globalização exige a reestruturação do Estado, a
privatização das empresas produtivas estatais, da saúde,
educação, transporte, habitação e previdência. Assim se
modifica, ou mesmo rompe, a relação entre o Estado e a
sociedade. Enquanto o Estado é rearticulado mais abertamente às exigências e às possibilidades da globalização
do capitalismo, amplos setores da sociedade civil dinamizam-se no sentido do nacionalismo, compreendendo o
território e a fronteira, a história e a tradição. Os indivíduos e as coletividades são desafiados a reposicionaremse em face de um Estado cada vez mais divorciado das
suas inquietações e ambições. Divorciam-se o Estado e a
sociedade, devido às diversidades e às exclusividades das
suas tendências predominantes. Rompem-se algumas das
articulações que conformavam o todo, Estado e sociedade, ou Estado-Nação. O Estado é reorganizado e dinamizado de conformidade com as injunções e as possibilidades da dinâmica dos processos de concentração e
centralização, compreendendo o desenvolvimento desigual, contraditório e combinado, operando em escala
mundial. Ao passo que a maior parte da sociedade nacional, por seus indivíduos e coletividades, bem como grupos e classes sociais, organiza-se e dinamiza-se na direção do nacionalismo. Sendo assim, desloca-se o lugar da
política. Quando se torna difícil falar em soberania, perde-se de vista um princípio fundamental da atividade,
organização e luta políticas. Os indivíduos e coletividades, compreendendo não só grupos e classes, mas partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais, defrontamse com novos obstáculos ou outras dificuldades para
pensar e concretizar qualquer tipo de hegemonia. Acontece que a nação está se transformando ainda mais concretamente em província do capitalismo global, em suas
implicações não só econômicas, mas sociais, políticas e
culturais. Isto significa que o Estado se transforma crescentemente em aparelho administrativo das estruturas
mundiais de poder, divorciando-se crescentemente de
amplos setores sociais da sociedade nacional (Camilleri
e Falk, 1992; Ohmae, 1995).
Esse é um cenário que se torna ainda mais complicado
quando se reconhece que a mídia impressa e eletrônica
predomina decisivamente nas mentes e nos corações de
todo o mundo. As mentalidades e as correntes de opinião
pública, bem como as noções e as interpretações sobre
muito do que ocorre no mundo, em âmbito local, nacional, regional e mundial, tudo isso está cada vez mais decisivamente influenciado pelas empresas, corporações e
conglomerados que atuam no âmbito da mídia, cultura de
massa e indústria cultural.
“As mudanças que abalam o mundo criam insegurança. Elas exigem que o povo reavalie e mude de atitudes,
de modo a administrar as novas mudanças. O povo busca
orientação e informação, mas tem também uma forte necessidade de entretenimento e recreação. Para fazer face
a essas diversas necessidades, uma corporação global da
mídia tem responsabilidades especiais. A comunicação é
um elemento básico de qualquer sociedade. A mídia torna essa comunicação possível, ajuda a sociedade a compreender as idéias políticas e culturais, e contribui para
formar a opinião pública e o consenso democrático. Hoje,
a sociedade usa a mídia para exercer uma forma de autocontrole. Com estas responsabilidades como pano de fundo, os executivos da mídia devem permanecer conscientes das suas obrigações, respeitando princípios éticos em
suas atividades” (Bertelsman, 1994:4).1
Na época da globalização, a mídia adquire a figura e
as figurações de um “príncipe” eletrônico. Já não se trata
mais de O príncipe de Maquiavel; nem do “moderno príncipe”, ou partido político, do qual falou Gramsci. No fim
do século XX, quando os meios de comunicação em geral adotam as tecnologias eletrônicas e informáticas crescentemente sofisticadas, intensificam-se e generalizamse a importância e o predomínio da mídia na formação e
transformação da opinião pública. As notícias sobre os
fatos sociais, econômicos, políticos, culturais, religiosos,
demográficos, ecológicos e outros são registradas, selecionadas, organizadas, enfatizadas, minimizadas ou esquecidas, ao mesmo tempo em que são difundidas pelos
quatro cantos do mundo; em geral em inglês e traduzidas
em línguas nativas. Mais do que o partido político, o sindicato, o movimento social, o parlamento, a igreja e outras instituições “classicamente” consideradas formadoras de opinião pública, é a mídia que ocupa crescentemente
as mentes e os corações de indivíduos e coletividades.
Além disso, na mesma medida que a mídia adquire preponderância na formação da opinião pública em geral, o
partido político, o sindicato, o parlamento, a igreja e outras instituições, assim como personalidades ou lideranças, passam a disputar um lugar na mídia. Buscam produzir notícias, manchetes, comentários, imagens, debates
ou controvérsias na mídia e para a mídia. Nesse processo, ajustam-se às linguagens prevalecentes na mídia, nas
quais podem predominar o texto taquigráfico, a narração
rápida, a tonalidade momentosa, a palavra mágica, a imagem imediata e impactante, a figura impressionante, o
colorido, o sonoro, o movimento, a velocidade, o choque, a surpresa do insólito, o brutal da violência; e tudo
isso estetizado. Nos programas de entretenimento, predominam o coloquial, a afetividade, o intimismo, a frus-
30
GLOBALIZAÇÃO
tração, o desencanto, a acomodação, a realização material, o consumismo, o narcisismo, a estetização do cotidiano. São muitos os meios e modos pelos quais a mídia
amplia e aprofunda a sua presença e o seu predomínio na
formação e conformação das mentes e corações de indivíduos e coletividades, transformando-se no “príncipe
eletrônico” que desloca radicalmente o lugar da política.
Em lugar do parlamento, assembléia, partido, sindicato
ou movimento social, é principalmente a mídia que se
desenvolve; e resolve muito do que é o político, a política, a construção da hegemonia. Nesse sentido é que a mídia
não só provoca o deslocamento da política para outros
lugares como opera decisivamente como “intelectual orgânico” dos grupos e classes sociais ou blocos de poder
dominantes em todo o mundo, em âmbito nacional e global. Sendo assim, poucos são os espaços que restam aos
grupos e classes sociais ou setores e coletividades subalternos, se se trata de organizar, conscientizar, mobilizar,
reivindicar e lutar. Reduzem-se ainda mais as possibilidades de construção de hegemonias, em níveis locais,
nacionais, regionais e mundiais, quando se pensa em globalização de baixo para cima.
Esse é o cenário em que prevalecem e florescem as teorias ou os mitos do “individualismo metodológico” e da
“escolha racional”. Supõe-se que o indivíduo é o ator e
agente por excelência da organização e funcionamento da
sociedade, a começar pela economia ou o mercado. Supõe-se que o indivíduo tende predominantemente a agir
de modo racional, próprio, deliberado, com relação aos
seus interesses, à realização dos seus objetivos. E que agirá
mais ou menos racionalmente, conforme a soma das informações de que dispõe, tendo naturalmente em conta
as escolhas racionais que também poderão estar realizando os outros indivíduos situados no mesmo contexto,
com base nas informações de que dispõem. São mitos que
dizem algo sobre as ações e relações sociais em alguns
contextos sociais, mas principalmente no mercado, no
processo de compra e venda de mercadorias reais e imaginárias; e se transferem do mercado para praticamente
todos os outros contextos sociais, vistos ou constituídos
com base no modelo do mercado. Desde que se desenvolva essa construção – uma espécie de “tipo ideal” –,
logo se passa a preconizar o individualismo por todos os
cantos do mundo. Nesse sentido é que os japoneses, os
chineses e os hindus têm sido levados a descobrir ou inventar os germes de individualismo no confucionismo,
hinduísmo, budismo, taoísmo e outras correntes do pensamento oriental. Algo semelhante tem ocorrido em povos da África subsaharica, assim como entre árabes,
indonésios, sul-americanos e antilhanos. Também os povos da Europa Central e Rússia estão sendo induzidos ou
forçados a adotar instituições, práticas e ideais correspon-
E
NEOLIBERALISMO
dentes ao individualismo e à escolha racional. Reinterpretam-se as raízes civilizatórias dos povos, tribos,
nações e nacionalidades à luz das hipóteses, instituições,
práticas, valores e ilusões compreendidos pelo imaginário neoliberal (Birnbaum e Leca, 1986; Elster, 1986).
Talvez se possa dizer que o individualismo metodológico e a escolha racional sintetizam-se, em boa medida,
no “cartão de crédito”, magnético, transnacional, global,
ubíquo. Esse é o signo de individualidade e individualismo, circulação e liberdade, diálogo e felicidade, em todas as partes do mundo. Na prática, é o signo por excelência da cidadania no âmbito da sociedade mundial, isto
é, do mercado global. O cartão de crédito, magnético,
adquiriu maior vigência do que a cédula de identidade e
o passaporte, os quais padecem das limitações da nacionalidade, do nacionalismo ou das limitações da província. Com ele o indivíduo pode circular pelo mundo, atravessando territórios e fronteiras, regimes políticos e culturas,
línguas e religiões, como algo volante, desenraizado ou
desterritorializado. Compra o que quiser e onde quiser,
sempre com a tranqüila confiabilidade de alguém transparecendo credibilidade. Assim se combinam o cartão e
o consumismo, as duas faces mais evidentes do tipo de
cidadania característica do neoliberalismo. Aquele que
compra necessariamente elege, escolhe ou pondera as alternativas possíveis, os ganhos e as perdas, de modo a
realizar da melhor forma os seus interesses e objetivos
reais ou imaginários, em geral pragmáticos ou prosaicos.
Aos poucos, fica evidente que o cartão de crédito e as
operações que se podem realizar com ele configuram a
prática do individualismo e da escolha racional, em escala local, nacional, regional e mundial.
Sim, o neoliberalismo articula o mundo em moldes sistêmicos. A despeito de complexo e contraditório, ou caleidoscópico e caótico, esse mundo é simultaneamente
organizado, integrado, administrado e dinamizado em
moldes basicamente sistêmicos. Sob certos aspectos, o
individualismo e a escolha racional podem ser vistos como
produtos e condições de toda uma visão sistêmica bastante sofisticada; na qual as condições e as possibilidades
da atividade de indivíduos e coletividades estão mais ou
menos delimitadas. As tecnologias eletrônicas e informáticas, agilizadas pelas corporações transnacionais e as
organizações multilaterais, intensificam e generalizam a
articulação sistêmica do mundo, compreendendo indivíduos e coletividades. Esse o contexto em que o cartão de
crédito e o consumismo se traduzem em cidadania transnacional, o mesmo cosmopolitismo das coisas no mercado. “Em todos os lugares, eletricidade vale como eletricidade, dinheiro como dinheiro, homem como homem; com
as exceções que sinalizam um estado patológico, atrasado e ameaçado” (Luhmann, s.d.:154).2 É assim que o pen-
31
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
BERTELSMANN. Annual Report 1992/93. Alemanha, Gutersloh, 1994.
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samento neoliberal inventa um mundo que parece integrado, que tende a funcionar harmonicamente, no qual as
“complementaridades” não só substituem como suprimem
as “antinomias”.
No bojo da ideologia neoliberal, florescem várias utopias muito evidentes e correntes. Expressões como “aldeia global”, “mundo sem fronteiras”, “nova ordem econômica mundial”, “fim da geografia” e “fim da história”,
entre outras, são muito indicativas das expectativas e ilusões que o neoliberalismo apresenta como ideais a serem
realizados. Sem esquecer que essas utopias, que no limite se dissolvem em uma só, inspiram a prática e o discurso, a publicidade e a retórica, as diretrizes e as exigências, de uns e outros situados nas organizações, corporações,
estruturas e blocos de poder que administram as linhas
básicas da globalização do mundo pelo alto.
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1. Consultar também Le Monde Diplomatique (1995); Curran e Gurevitch (1991);
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2.Ver também Castells (1996); Modelski (1987); Schaff (1990) e Wiener (1968).
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32
A INOVAÇÃO
NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
A INOVAÇÃO NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
ROBERTO C. BERNARDES
Sociólogo, Analista da Fundação Seade
E
m função do processo de globalização da economia, da aceleração do progresso tecnológico e do
surgimento de uma nova hierarquia de poder no
cenário político mundial, o regime de inovação e aprendizado tecnológico tem passado por mutações radicais. O
objetivo deste texto é mapear a nova dinâmica dos processos de inovação e aprendizagem técnica à luz das grandes tendências de mudança no ambiente concorrencial interempresarial. Sob esta ótica, serão examinados a dinâmica de evolução e sustentação intertemporal de trajetórias virtuosas de inovação tecnológica pelas empresas e o
alcance das políticas de competitividade em um ambiente de grandes incertezas.
centram cerca de dois terços do comércio mundial, basicamente no interior da Tríade EUA-Japão-CEE.2 Paulino
(1997:95) destaca, por exemplo, que há um encolhimento sem precedentes dos principais indicadores de fluxos
de tecnologia para o Terceiro Mundo: “Entre 1980 e 1989,
algo em torno de 96% das alianças tecnológicas estratégicas ocorreram entre empresas situadas nos países desenvolvidos, e 92% entre os países pertencentes à Tríade.
Alianças envolvendo países fora da Tríade responderam
por apenas 3,8% dos casos registrados no período. Com
relação aos acordos de transferência de tecnologia, cerca
de 90% dos contratos de transferência registrados durante os anos 80 foram feitos entre empresas da Tríade e de
outras economias desenvolvidas. Contratos de licenciamento de tecnologia entre empresas da Tríade com
empresas localizadas nos NICs responderam por cerca de
6% do total e entre empresas da Tríade e empresas dos
países menos desenvolvidos, 4% do total.” A preferência
pelas inversões nos países desenvolvidos justificar-se-ia
pelas dimensões de mercado, pela estabilidade macroeconômica e pelos esforços rumo à integração hemisférica.
Como decorrência, presenciou-se um acirramento das rivalidades concorrenciais entre as empresas e um movimento generalizado rumo à globalização dos fluxos
financeiros, informacionais, de bens e serviços e dos sistemas de produção.
A intensificação do progresso científico-tecnológico,
combinada à globalização da economia e à difusão de
novos padrões de gestão produtivos empresariais, vem
transformando radicalmente a base técnica industrial e as
normas concorrenciais interempresariais nos mercados
mundiais. A natureza da oferta e do perfil do mercado de
produtos e serviços, suas formas de produção, distribuição, comercialização e consumo, o comportamento do
GLOBALIZAÇÃO DA CONCORRÊNCIA,
INTERDEPENDÊNCIA ASSIMÉTRICA E
INOVAÇÃO SISTÊMICA
O cenário mundial tem se caracterizado por uma forte
tendência de globalização da economia internacional, com
intensa conexão dos mercados cambiais, financeiros e de
investimentos diretos estrangeiros (IDE), e com fluxos
maciços e continuados de capitais entre as principais praças financeiras. Atualmente, o capital financeiro mobiliza cerca de 1,5 trilhão de dólares por dia no sistema interligado do mercado cambial, enquanto o mercado de
capitais, por sua vez, movimenta cifras assustadoras de
aproximadamente 12 trilhões de dólares diariamente. Estas “nuvens” financeiras altamente voláteis são capazes
de gerar, ao menor sinal de incerteza, grande instabilidade ou vulnerabilidade a qualquer governo ou economia
nacional.1 Neste contexto, é também cada vez maior a
centralização do avanço tecnológico e do fluxo comercial entre as grandes empresas transnacionais, que con-
33
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
emprego, as relações de trabalho e o próprio marco político-institucional sofreram profundas mutações, que resultaram na emergência de um novo paradigma técnicoeconômico. A globalização do sistema produtivo conduz
a um afrontamento não mais na concorrência local, mas
sim diretamente no fórum do mercado mundial. Na chamada Terceira Revolução Industrial, a participação do
complexo eletrônico é crescente na geração de valor e nos
fluxos de comércio internacional, tornando-se o pólo dinâmico da indústria em substituição ao complexo metalmecânico que comandou o processo de desenvolvimento
tecnológico e econômico anterior (Segunda Revolução
Industrial) e que mantinha na indústria automobilística
sua força motriz. A microeletrônica, a informática e a
automação passam a impulsionar o avanço tecnológico
na indústria.
Nas indústrias que se situam na fronteira tecnológica,
as quais constituem parcela significativa da produção nas
economias avançadas – aeroespacial, microeletrônico,
computadores, química fina, biotecnologia, telecomunicações –, produzir avanços tecnológicos é o estágio primordial do atual ciclo produtivo, assim como a inovação
é o principal produto ou serviço que vendem. A divisão
clássica da teoria econômica, que identificava as categorias “empresas de trabalho intensivo” e “empresas de capital intensivo” e que expressava a importância relativa
dos fatores trabalho e capital, é ampliada para agregar uma
nova categoria: “empresas de conhecimento intensivo”.
Quanto mais um setor ou uma empresa é intensivo em
conhecimento, isto é, quanto mais sua vantagem competitiva depende do contínuo aperfeiçoamento de tecnologias apropriáveis derivadas de avanços científicos, mais
seu ciclo produtivo tende a se deslocar para suas atividades globais de inovação e sua competência a disparar e
gerir processos organizacionais e culturais destinados à
inovação. Não obstante, mesmo nas indústrias com maior
dependência de outros fatores competitivos, como escala
e produtividade do trabalho, mas com altos investimentos em P&D (como nas indústrias de máquinas), as atividades ligadas à inovação de produto estão se tornando cada
vez mais importantes, como resultado da fragmentação
dos mercados e da maior importância da produção customizada. Analisado sob o enfoque macroeconômico,
percebe-se o acirramento na competição pelos mercados,
exigindo que as empresas operem com produtos tecnologicamente atualizados e com preços menores.
Os mercados mundiais vêm sendo conquistados por
empresas ou grupos econômicos3 que demonstram capacidade no incremento constante de produtividade, nos critérios de qualidade e preços e na criação de inovações
tecnológicas. É mais inovadora, e portanto mais competitiva, a empresa que consegue combinar diversos fatores
da produção com máxima eficiência, integração e flexibilidade produtiva – desde a organização do trabalho, a
gestão de estoques e suprimentos, a capacidade de engenharia aplicada, a qualificação e o empenho da força de
trabalho até a adoção de novas estratégias de logística,
distribuição, comercialização e assistência técnica. Os
países que têm demonstrado maior dinamismo competitivo e atraído novos investimentos diretos são aqueles que
conseguem ofertar à sua indústria melhor infra-estrutura
física, produtiva e tecnológica e formar um estoque de
recursos humanos altamente qualificados, conceder incentivos à exportação, à inovação e estimular uma maior integração entre os centros públicos e privados de pesquisa
científica e desenvolvimento de produtos.
Na indústria e nos serviços high-tech, a globalização
traduz-se na presença de um seleto grupo de oligopólios
internacionais, nos setores mais importantes que detêm a
liderança tecnológica. São eles os protagonistas ou novos atores globais que atuam na arena econômica mundial. Nas últimas décadas, consolidou-se uma ampla reestruturação nas estratégias empresariais com o aparecimento
de grandes conglomerados econômicos multissetoriais dinâmicos que atuam como núcleos de liderança na irradiação de novos conhecimentos científicos e tecnológicos,
especialmente em segmentos como o aeroespacial, automobilístico, eletrônica, informática, farmacêutica, petroquímico, entre outros. São exemplos, os Keiretsus,4 no Japão, e os Chaebols, na Coréia do Sul. Esses modelos de
organização econômica são caracterizados por um relacionamento harmônico entre os braços financeiro e industrial do conglomerado, de tal forma que a organização bancária funciona como pulmão financeiro do grupo.
Outra forma de oligopolização global é notada no caso
de indústrias altamente especializadas, em que as economias cumulativas de escala são muito elevadas, ou naquelas em que o grau de especialização é muito alto e o
mercado relativamente reduzido, como no caso da indústria aeronáutica, em alguns segmentos de bens de capital
e equipamentos sofisticados (instrumentação e supercomputadores).
Como conseqüência dessa nova forma de estruturação
empresarial, foi gerada uma acentuada capacidade para o
desenvolvimento dos processos de inovação e aprendizagem técnica, atenuando as incertezas quanto ao risco econômico de inovar. Esta nova forma de organização industrial tem proporcionado um elevado grau de sinergia
interna, permitindo práticas duradouras de cooperação
com clientes e fornecedores, a celebração de contratos de
produção de longo prazo e integração das várias fases da
produção, desde a pesquisa e a engenharia até o marketing e os serviços pós-venda, de forma a obter maior eficiência sistêmica. Este movimento objetiva o fortaleci-
34
A INOVAÇÃO
mento da posição competitiva dos maiores grupos econômicos nos mercados, concentrando suas operações nas
áreas nucleares de atuação (core business), maximizando
as escalas de produção, facilitando a transferência e a
cooperação de tecnologia, os portfólios de investimentos
e a capacidade financeira.
Dessa forma, devido ao alto custo da pesquisa e desenvolvimento tecnológico (P&D), há uma tendência à
formação de alianças tecnológicas entre grandes empresas de um mesmo setor, ainda que concorrentes nos mercados interno e externo. A formação de alianças estratégicas, celebradas nas associações verticais entre
fornecedores e clientes, otimiza a competitividade de toda
a cadeia produtiva, abrindo espaço para algumas pequenas e médias empresas se inserirem neste processo de
modernização. De outro ângulo, as estratégias de associações horizontais entre grupos econômicos concorrentes é uma outra tendência observada em nível mundial.
Estas estratégias têm sido captadas em grupos econômicos e empresas líderes empenhados em continuar crescendo e consolidando de forma sustentável suas posições
nos mercados internos e externos, através da internacionalização dos seus negócios, associações e do aumento
das exportações.5
Os novos modelos de gestão empresarial competitiva
têm suas estratégias centradas na inovação: “seja para
capturar mercados pela introdução de novos produtos e
processos, reduzir lead times, ou produzir com o máximo
aproveitamento físico dos insumos com o objetivo de
competir em preços, a importância para a competitividade é inequívoca. O resultado econômico da empresa está
intimamente ligado à sua capacidade de gerar progresso
técnico. No contexto internacional, empresas líderes e
inovadoras não mais definem estratégias e competências
visando exclusivamente o desenvolvimento de linhas de
produtos. Visam crescentemente criar capacitação em
áreas tecnológicas nucleares – core competences – de onde
exploram oportunidades para criar e ocupar mercados”
(Haguenauer et alii, 1995:15).
O caráter sistêmico da inovação surge na fase de P&D,
com a congregação de diversos elementos como tecnologia, informações e variáveis de natureza econômica, e nas
dinâmicas tecnológicas cumulativas, abrangendo os investimentos tangíveis (equipamentos e máquinas) e os
intangíveis efetuados pelas empresas (contratos de licenciamento, treinamento da força de trabalho, novas formas
de organização da produção, etc.), constituindo-se fatores básicos para o novo processo competitivo. A natureza
sistêmica do processo de inovação é identificada na interdependência, sinergia e complementaridade entre as
técnicas produtivas, nos sistemas tecnológicos de informação, na qualificação dos recursos humanos, nas for-
NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
mas compartilhadas de conhecimento e nos suportes políticos institucionais implementados por países, estados e
regiões.
OS FATORES LOCACIONAIS DE COMPETIÇÃO
Com o refinamento das telecomunicações pelo avanço da telemática, com a disseminação na indústria, nos
serviços e no comércio de sistemas dinâmicos de integração informacional (como EDI – Eletronic Data Change,
Renpac, entre outros) e com a constituição de redes complexas conectadas a satélites e cabos óticos (o caso da
Internet é emblemático), criaram-se condições para a
emergência de novas formas de organização industrial,
integração comercial e cooperação tecnológica. Tais processos de integração e reestruturação provocaram uma
remodelagem dos espaços socioprodutivos territoriais. As
evidências demonstram que o desdobramento espacial e
o êxito desses processos vêm ocorrendo de forma diferenciada conforme a realidade de organização social, econômica, produtiva e territorial de cada local, região ou
país. Esses desdobramentos espaciais contrastam vivamente com os critérios estáticos de localização da empresa,
como os menores custos de insumos ou maior economia
de escala. A base da vantagem competitiva deslocou-se
da eficiência estática para a melhoria dinâmica, em que
as qualidades de localização mais decisivas passaram a
ser, entre outras, de alta qualificação da mão-de-obra, tecnologia aplicada, infra-estrutura personalizada, fontes experientes de capital e existência de serviços altamente especializados que contribuam significativamente para o
processo de produção, para a exportação e a formação de
“economias de aprendizado”. São expressivas as conseqüências deste rearranjo da produção e das novas estratégias de reestruturação industrial na dimensão regional do
desenvolvimento. As questões relativas à logística e os
fatores associados à formação de “externalidades dinâmicas”, como a infra-estrutura científica e tecnológica,
social e urbana local, assim como a qualificação dos recursos humanos, vêm adquirindo cada vez mais importância na nova ordem produtiva e na atração de novos
investimentos. A aplicação de processos de just in time e
programas de qualidade total, por exemplo, passa a depender da proximidade com os mercados finais; a exigência de maior integração e intercâmbio tecnológico demanda a proximidade física das unidades produtivas com os
fornecedores; variáveis como os custos de transporte, a
questão portuária e os corredores de exportação/importação “trazem sensíveis alterações na dimensão do que produzir e onde produzir”.6 A dimensão territorial, neste processo de reestruturação da economia, deixa de ser apenas
um locus da produção, passando a ser uma variável en-
35
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
dógena do processo produtivo e, por isso, merecendo uma
análise adequada a essa participação. Estas mudanças modificam dramaticamente a lógica produtiva e a dinâmica
do espaço organizacional das empresas. Impõe-se, na evolução pós-taylorista ou pós-fordista, um novo modelo de
gestão produtivo empresarial. A performance virtuosa da
empresa “piramidal”, unificada e verticalizada do padrão
fordiano de produção revela-se obsoleta para suprir as
variações de mercado não previstas.
padrão de inovação vigente, deve-se à influência produzida pela difusão das tecnologias da informação. Definese uma empresa-rede como um arranjo institucional básico para lidar com os processos de inovação sistêmicos.
As redes caracterizam-se como formas interpenetradas de
mercado e organização, possibilitando às corporações
identificar oportunidades emergentes para ligar a especialização flexível através das fronteiras das empresas e
para disparar os processos de inovação contínua e em interação. As relações cooperativas entre empresas constituem um mecanismo-chave de configuração de uma rede,
incluindo joint ventures, licenças, contratos de administração, subcontratação, compartilhamento da produção e
cooperação em P&D. A emergência da empresa-rede (firme reseau, impresa rete ou network firm), segundo Chesnais
(1996:107), “foi estimulada pela telemática e à adoção
de novas formas de quase-integração, com base na eletrônica, que geraram efeitos centrípetos baseados, fundamentalmente, na possibilidade de internalizar importantes externalidades, apoiando-se nas redes (networks
externalities)”. A expressão empresa-rede tem origem nos
estudos sobre as estruturas empresariais japonesas, especialmente os Keiretsus. Atualmente, tem sido utilizada de
forma mais ampla, abarcando clusters de inovações organizacionais, como o Keiretsu horizontal, formado por
um grupo de empresas que mantêm vínculos financeiros,
patrimoniais, comerciais e tecnológicos marcados pela
cooperação, o Keiretsu vertical, formado por uma grande
empresa e suas subcontratadas, acordos cooperativos de
P&D, envolvendo diferentes atividades tecnológicas entre empresas intra e inter-Keiretsu e, por fim, as multinacionais em rede, que constituem uma estrutura organizacional que supera as estruturas tradicionais com divisão
internacional, geográfica ou por produto. Estes novos arranjos institucionais econômicos funcionariam como verdadeiras redes de inovação. Dentre as diversas modalidades relevantes para a atividade inovativa que estes arranjos
permitiriam, destacam-se as joint ventures, as alianças
estratégicas,10 os acordos de P&D conjuntos, os acordos
de intercâmbio de tecnologia, o investimento direto (participação minoritária motivada por fatores tecnológicos),
os acordos de licenciamento e de second-sourcing, as redes de subcontração, de compartilhamento da produção e
as supplier networks (envolvendo o recebimento de tecnologia nova, pelo menos, por um dos parceiros, ou algum programa de P&D). Entre as principais motivações
das empresas em direção à cooperação tecnológica, podem ser elencadas as seguintes: redução e repartição da
incerteza e dos lead times nas novas áreas de P&D; encurtamento do ciclo de vida do produto e diminuição do
período entre a invenção e a sua introdução no mercado;
acesso ao conhecimento científico ou às tecnologias com-
REDES DE INOVAÇÃO E APRENDIZAGEM
TECNOLÓGICA: COOPERAÇÃO E
INTERATIVIDADE
A nova natureza da economia contemporânea tem sua
dinâmica de crescimento associada ao desenvolvimento
contínuo da produtividade e aos conhecimentos gerados
no campo da ciência e tecnologia, sendo identificada na
maior interdependência dos fluxos informacionais,7 seja
aumentando o caráter estratégico das informações e da
infra-estrutura tecnológica, seja adicionando valor na produção para a tomada de decisões de investimento produtivo empresarial, para o consumo, distribuição e comércio de produtos, para a pesquisa científica e tecnológica
e para o planejamento das políticas governamentais. A
nova arquitetura técnico-organizacional da indústria, mais
desverticalizada, com o desenvolvimento de formas reticulares de integração, alto grau de flexibilidade produtiva e mobilidade espacial, permitiu arranjos mais favoráveis às operações empresarias e à atividade inovativa
técnica em escala global, propiciando modalidades de transações econômicas mais interativas, joint ventures,8 alianças e acordos compartilhados de P&D ou licenciamento
de tecnologia. A configuração de redes industriais de subcontratação acabam por favorecer o global outsourcing,
estimulando uma atuação mais articulada entre o setor
industrial e de serviços, com o adensamento dos fluxos
comerciais intra/interempresariais.
Alguns estudos (Bergoiugnan et alii, 1991 e Kern,
1993) confirmam uma mutação global das formas organizacionais que afetam os modos de atuação territorial e
de gestão do espaço socioprodutivo da empresa. Neste
quadro, há uma redefinição de seu espaço mundial e uma
remodelagem da estrutura verticalizada da empresa multinacional para uma configuração de empresa-rede, isto
é, o desenvolvimento de formas reticulares a partir de um
processo de externalização9 ou desintegração verticalizada, em que se verifica o aparecimento de teias ou anéis
de cooperação empresarial. Para autores como Freeman
(1991) e Imai e Baba (1991), o fator crucial para a evolução das estruturas de organização das empresas para o
modelo em rede, e conseqüentemente a transformação no
36
A INOVAÇÃO
plementares e à aquisição de competências; monitoramento das mudanças e oportunidades do ambiente; desenvolvimento de estratégias relativas à competência tecnológica e ao acesso e posição nos mercados; internacionalização;
e globalização e entrada nos mercados estrangeiros (agregar mercados aos seus produtos).
As estratégias de alianças são definidas como contratos com duração determinada entre empresas que permanecem globalmente independentes e que podem ser concorrentes. As alianças podem ser estabelecidas entre
concorrentes diretos visando a exploração de algum mercado ou o desenvolvimento pré(ó)-concorrencial de novas tecnologias, para posterior exploração de forma
competitiva, com a participação de entidades sem fins lucrativos (universidades, centros de pesquisa, etc.) ou não.
Podem ser também feitas entre parceiros atuando em áreas
diversas em torno de objetivos comuns (grandes projetos, produtos sofisticados, etc.) que, no entanto, podem
vir no futuro a se enfrentar em mercados gerados pelo esforço conjunto. São mais comuns nos setores de maior
dinamismo tecnológico e deste modo as regras que são
acordadas contribuem para o estabelecimento de novas
formas de concorrência em novos mercados” (Debresson
e Amese, 1991:20). Tais alianças podem assumir distintas formas, como parcerias entre empresas com produtos
similares, entre empresas e fornecedores, empresas ou
clientes, e entre empresas e centros tecnológicos. Estas
alianças servem, sobretudo, para facilitar o acesso aos
mercados, propiciar o desenvolvimento de projetos tecnológicos e permitir a obtenção de financiamento de longo prazo.
As vantagens competitivas propiciadas pelas alianças
oferecem maiores condições para as empresas arcarem
mais facilmente com os custos de P&D, participarem de
licitação de novos contratos, assim como assumirem riscos de gerenciamento de programas que dependem de
tecnologias não testadas. Ademais, uma empresa operando internacionalmente tem um valioso conhecimento das
estruturas dos fornecedores locais ou globais, o que permite a busca pelo melhor preço mundial. No plano da
produção, é possível inaugurar aberturas de oportunidades para o aumento de vendas, sendo que a fabricação em
múltiplas unidades pode representar redução de custos
unitários de produtos, obtida pelo aumento da escala produtiva e especialização produtiva.
NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
arquetípico e idílico a ser reproduzido pelas empresas que
almejem ascender à condição de world class company.
As características da organização do trabalho da empresa
J (empresa japonesa em oposição à empresa A americana), em ruptura com o taylorismo e o fordismo, são, essencialmente, o trabalho qualificado, flexível e cooperativo em equipe (shojinka) e a falta de demarcação das
tarefas a partir de postos de trabalho (ocorrendo a perda
da centralidade ou crise da noção de posto de trabalho) e
tarefas prescritas a indivíduos, o que implica um funcionamento fundado sobre a polivalência, visão sistêmica e
rotação de tarefas (de fabricação, de manutenção, de controle de qualidade e de gestão da produção). As empresas
japonesas, ao contrário das americanas (cuja estrutura produtiva é altamente hierarquizada, multidivisional e verticalizada), desenvolvem múltiplos estágios de externalização dentro de redes formais de subcontratação, caracterizados por procedimentos horizontais de tarefas e um
fluxo de informações inter-relacionais entre departamentos, funções nos locais de trabalho e entre as firmas
subcontratadas.
Na empresa japonesa implementa-se a produtividade
internamente, através da versatilidade e da mobilização
da força de trabalho, ao invés de longitudinalmente, como
nos métodos de séries de compartimentalização das grandes linhas, típicos da cadeia fordista. A reconciliação entre produtividade e flexibilidade das tarefas, dos trabalhadores e das operações forma a base do círculo virtuoso
da empresa japonesa. O princípio da eficiência repousa
na aquisição da flexibilidade interna auto-sustentada. Os
arranjos técnicos, organizacionais e sociais possibilitam
a acumulação, por um longo período de tempo, de uma
considerável massa de conhecimentos armazenados através de uma constelação de tecnologias amparadas no sistema de relações industriais. Segundo Coriat (1991:131),
“uma das contribuições essenciais da escola japonesa de
gestão de produção liga-se ao fato de que ela soube, nas
inovações da organização interna da produção (just in time,
autonomação, linearização, etc.), acrescentar inovações
(e os conjuntos de saber-fazer ‘relacionais’ a estas ligadas) que concernem às relações de intercâmbio de produtos entre firmas. A inovação organizacional intrafirma
acresceu-se desta forma de uma inovação organizacional
nas relações interfirmas, cada uma reforçando a eficácia
da outra”.
Devem ainda ser citadas, para caracterizar uma organização empresarial “inovativa ou schumpeteriana” (Burlamaqui e Fagundes, 1996:135), três dimensões cruciais
apontadas por Best (1990):
- as incertezas que confrontam as empresas antes, durante, e depois da decisão de investir/inovar, que são caracterizadas pelas dúvidas financeiras decorrentes de recei-
O MODELO EMPRESARIAL JAPONÊS DE
INOVAÇÃO E APRENDIZADO TECNOLÓGICO
A empresa japonesa aparece freqüentemente no fulcro
do debate sobre a materialização de um novo sistema
produtivo de competitividade industrial, como o sistema
37
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
tas futuras e eventualmente os juros devidos, pelas incertezas tecnológica e produtiva referentes à capacidade de
resolução dos problemas de produção, desenvolvimento
e aperfeiçoamento dos processos, produtos e serviços gerados, pela incerteza competitiva proveniente da reação
dos concorrentes e a pela incerteza macroeconômica,
oriunda da imprevisibilidade sobre o ambiente econômico à época da maturação do projeto;
- aquisição de vantagens competitivas no chão de fábrica, que constitui uma lacuna tanto na abordagem schumpeteriana do processo inovativo quanto nas abordagens
organizacionais da firma, relaciona-se à utilização do trabalho direto e do chão de fábrica visto como fonte permanente de geração de inovações incrementais e, por conseguinte, de aquisição de vantagens competitivas. Segundo
Freeman (1986:335-36), na experiência japonesa foram
cruciais os processos de engenharia reversa, que consistiriam no método emulativo de assimilar e melhorar a tecnologia importada. Tais procedimentos implicaram fazer
com que as empresas pensassem no processo produtivo
como um sistema integrado ou na “firma como um empreendedor coletivo” (Best, 1990), favorecendo a idéia
de se usar a fábrica como um laboratório (Freeman, 1986).
As novas regras de competição impostas pelo paradigma
organizacional japonês exigiram a redefinição entre as
relações de trabalho direto e gerência com a integração
entre o fazer e pensar no chão de fábrica, ou com a integração do trabalho direto na dinâmica de inovação tecnológica (Burlamaqui e Fagundes,1996:136), qualificado
também por Coriat (1992) como o processo de “whitecollarisation of the blue-collars”, quando haveria também um processo de dissipação do trabalho direto na
produção e, conseqüentemente, a extensão do trabalho
indireto;
- e, por fim, a extensão da coordenação administrativa
intrafirmas à relação entre empresas, que parece ser a lógica operacional das firmas contemporâneas – a coordenação via networkings –, isto é, um conjunto de arranjos
institucionais marcados por mecanismos de reciprocidade e cooperação.
Segundo Fleury (1990), é sobre este regime de inovação que o modelo empresarial japonês extrai a sua maior
força de eficiência: “a flexibilidade produtiva não está
ligada fundamentalmente aos princípios do just in time,
mas sim à capacidade de conduzir uma trajetória de inovação tecnológica constante em condições de incerteza
quanto ao futuro”. Além disso, como salienta Zarifian
(1993), esta competência tecnológica é dinâmica, em que
os conhecimentos e habilidades utilizados na produção
constituem conjuntos de informações organizadas, que são
otimizadas por meio de um aprendizado tecnológico cons-
tante. A força deste modelo organizacional resultaria precisamente de sua capacidade para ativar esse aprendizado interativo. Nos estudos de Womack et alii (1990) e Aoki
(1984), observou-se que a rapidez e a qualidade do processo de P&D foram otimizadas com a adoção das técnicas de desenvolvimento de novos produtos em paralelo e
com a aproximação entre os departamentos de P&D e os
de produção. Como observou Prochnik (1996:173-74), “a
maior inovatividade é fruto da maior cooperação entre as
empresas. No modelo japonês, a participação de fornecedores e distribuidores no desenho de um produto/serviço
é muito maior do que no modelo tradicional da corporação americana. Os revendedores de veículos, por exemplo, têm, no modelo japonês, um papel crucial no fornecimento de informações comerciais para as empresas
montadoras, que auxilia o planejamento do marketing e o
desenvolvimento de novos modelos”.
GENEALOGIA E MORFOLOGIA DOS
PROCESSOS DE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA
Sob esta ótica, é interessante recuperar a discussão teórica sobre os processos de inovação tecnológica. A matriz do conceito de inovação tecnológica foi elaborada por
Schumpeter em 1926, quando foram classificadas cinco
situações em que se formalizariam o processo de inovação: a introdução de um novo produto e/ou serviços; a
introdução de um novo método de produção; a abertura
de um novo mercado; a descoberta ou a conquista de uma
nova fonte de insumos; e o estabelecimento de uma nova
organização na estrutura de mercado. No modelo schumpeteriano, é o empresário empreendedor, através do acesso
ao crédito, que realiza novas combinações (inovações),
rompendo com o equilíbrio econômico e conferindo dinamismo no sistema produtivo. Este autor propõe três
caracterizações do processo de mudança tecnológica: invenção; inovação; e difusão. A invenção está relacionada
à descoberta de um novo produto. Este processo/mecanismo mantém-se restrito ao universo científico, vinculado à Pesquisa Básica e Pura,11 e, portanto, fora do sistema econômico. A inovação é a introdução destes novos
conhecimentos na economia e nos sistemas de produção.
Schumpeter distinguia entre inovações primárias e secundárias: as primeiras, que representam mudanças profundas da tecnologia convencional utilizada, seriam as inovações radicais (majors innovations); e as segundas são
caracterizadas por alterações relativamente pequenas e
incrementais de produtos ou processos, na busca de aumento de produtividade ou na melhoria da qualidade de
produtos, decorrentes de uma trajetória cumulativa de
aprendizagem (minor innovation). Por fim, identificava
a difusão como o espraiamento da inovação. Este enfo-
38
A INOVAÇÃO
que da inovação é baseado na fase inicial schumpeteriana,
representada pela Teoria do Desenvolvimento Econômico (TDE). A contribuição schumpeteriana sobre a dinâmica de inovação na sua fase final, registrada no trabalho
Capitalismo, socialismo e democracia concebe o progresso tecnológico como um processo endógeno do crescimento econômico, tendo um papel-chave destinado às
empresas na etapa schumpeteriana da inovação, isto é, no
momento da conversão de invenções em inovações propriamente ditas. É importante notar esta mudança de ênfase de Schumpeter, na fase final de sua contribuição (década de 40), quando o lugar de destaque do empresário
enquanto descobridor de novas oportunidades de inovações é ocupado pela função das organizações empresariais e de estruturas de mercado, no processo de endogeneização das inovações tecnológicas.
Posteriormente, contribuições importantes sobre a dinâmica de inovação na economia contemporânea foram
desenvolvidas por autores pertencentes à corrente neoschumpeteriana (Nelson e Winter, 1977; Freeman, 1974;
Dosi, 1984), sendo que o argumento básico defendido é
que as inovações situam-se em parte no âmbito das grandes empresas industriais e seriam introduzidas a partir da
atividade de P&D (pesquisa e desenvolvimento) operada
por laboratórios e/ou departamentos especializados, pelo
esforço de cientistas, sucedendo a iniciativa individual,
criativa e imprevisível (animal spirits) dos empresários.
A vertente neoschumpeteriana contemporânea enfatiza a
importância da inovação incremental como fonte de aumentos de produtividade e base para aquisição de vantagens competitivas. Nelson (1993:4) define o conceito de
inovação num sentido mais amplo, prescindindo do ineditismo schumpeteriano, podendo “incorporar os processos que as firmas aprendem a dominar e a pôr em prática
designs de produtos e processos manufatureiros que são
novos para as firmas, se não para o universo destas ou
mesmo para o país”. Nesse aspecto, o conceito de inovação é mais amplo do que o categorizado por Schumpeter,
não “estando necessariamente vinculado à liderança em
uma dada tecnologia, e sim ao desempenho competitivo
real em contextos dinâmicos”. Nesta acepção, “a inovação no contexto de um país de industrialização recente
pode significar a importação adequada de uma nova tecnologia de produto ou processo, e também de novas técnicas e conceitos de produção que reduzam custos e melhorem a qualidade” (Quadros de Carvalho, 1994:135).
Nos estudos desenvolvidos por Nelson e Winter (1977),
ganham importância os aspectos internos da empresa, em
que os conteúdos de conhecimentos tácitos e específicos
locais (idiossincrasias) seriam ferramentas estratégicas
para o processo de aprendizagem e aperfeiçoamento tecnológico. Para eles, o conceito de competitividade está
NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
interligado à dinâmica do progresso tecnológico, elemento
central da eficiência produtiva. Segundo esta interpretação, são duas as possibilidades básicas de difusão das inovações técnicas sob a ótica de um ambiente econômico
evolucionário: pelo crescimento da firma que incorpora
a inovação – situação em que há aumento da competitividade, das assimetrias e da heterogeneidade industrial; e
pela disseminação da inovação interfirmas – caso em que
se reduz a distância entre a média e a best practice produtiva, aumentando a competitividade e a eficiência de
todo o sistema industrial. No conjunto da obra de autores
como Nelson e Winter (1977), Dosi (1984) e Malerba e
Orsenigo (1996) são identificadas quatro dimensões no
regime de inovações tecnológicas: a oportunidade tecnológica; a apropriabilidade; a cumulatividade; e a base relevante de conhecimento. A primeira (oportunidade tecnológica) está associada à facilidade de adoção de novas
tecnologias rentáveis pelas firmas ou setores. Estas oportunidades estão condicionadas pelas singularidades técnicas de cada indústria e pelo grau de desenvolvimento
do paradigma tecnológico, que definem as trajetórias tecnológicas de cada indústria. Os paradigmas tecnológicos
fixam direções para o progresso técnico a partir de uma
base de conhecimento científico e de rotinas institucionalizadas de procedimentos de investigação e resolução
de problemas técnico-econômicos. As trajetórias tecnológicas, que representam o seu refinamento, são as direções seguidas pelo progresso técnico dentro de um paradigma. A apropriabilidade das inovações é associada à
capacidade de converter os diferenciais de custos, gerados pelo progresso técnico, em lucros. Por sua vez, a
cumulatividade relaciona-se aos padrões de inovação e à
capacidade de inovar das firmas, sendo dependente, em grande medida, dos processos de aprendizado tecnológico. As
características da base relevante de conhecimento expressam-se em duas dimensões: no grau de conteúdo tácito do
conhecimento e de complexidade do conjunto das técnicas
envolvidas; e na diversidade de competências necessárias
para a exploração de determinada tecnologia.
Em relação aos processos de aprendizagem, são identificadas seis modalidades principais: a aprendizagem pela
prática (learning by doing), de Arrow, relacionada às atividades de produção; o aprendizado pelo uso (learning
by using), de Rosenberg, que parte da idéia de que uma
empresa pode aprender a melhorar seus processos e produtos se conseguir identificar os problemas que são gerados na utilização dos bens que produz; o aprendizado pela
busca (learning by searching), de Nelson e Winter e Dosi,
em que a pesquisa e o desenvolvimento internos são considerados um esforço pelo qual as firmas geram os avanços técnicos cumulativos em direções a trajetórias
específicas; o aprendizado pela interação (learning by
39
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
interaction), de Lundvall, segundo o qual os intercâmbios entre fornecedores e usuários produzem novos conhecimentos tecnológicos; o aprendizado pelos avanços
da ciência e tecnologia (learning by exploring), relacionado à absorção destes avanços pela empresa; e, finalmente, o aprendizado pelas transferências interindustriais
(learning from inter-industry spillovers), ligado à absorção dos conhecimentos gerados pelos competidores, seus
fornecedores e outras indústrias.
Sinteticamente, poderiam ser identificados dois pressupostos básicos que perpassam transversalmente a corrente neoschumpeteriana:
que este conhecimento tecnológico encontra-se registrado às pessoas e às rotinas de operações técnico-produtivas. Como a transmissão destes conhecimentos não ocorre automaticamente através de contratos de licenciamento
ou por meio de aquisição de equipamentos, seu compartilhamento ou sua transferência só pode ser efetivado através do fluxo constante de informações qualitativas e pela
ação direta (técnicos e especialistas). Com efeito, o intercâmbio contínuo e o livre fluxo de informações pela arquitetura de canais de comunicação para o aprendizado
interativo constituem uma plataforma competitiva poderosa para as empresas. Um fator crítico em relação às estratégias delineadas pelas empresas, apontado por Baptista
(1997:99), refere-se ao “patrimônio genético”. A contribuição da autora é importante ao definir o conceito de
“patrimônio genético” das empresas, o qual “materializa-se em seus ativos (tangíveis e intangíveis), capacitações
e rotinas (inclusive de aprendizado). Esta ‘herança’ da
firma estabelece um forte vínculo entre o seu passado e o
futuro, uma vez que os ativos (...) estão na base de suas
vantagens competitivas diferenciais. Em outras palavras,
o processo de crescimento das firmas apresenta um forte
caráter path dependent – o seu comportamento e trajetória de expansão são condicionados pelos investimentos,
capacitações e rotinas desenvolvidos no passado” . Ainda assim, como alerta Baptista (1997:18), “os ativos estratégicos para a firma envolvem, de um lado, a sua capacitação tecnológica básica e, de outro, os ativos
complementares específicos e de difícil reprodutibilidade. Em qualquer caso, trata-se de ativos essencialmente
intangíveis e difíceis (ou mesmo impossíveis) de serem
reproduzidos, transferidos ou transacionados no mercado, dado que são o resultado de processos de aprendizado complexos incorporados nas rotinas das firmas. É justamente em função destas propriedades que estes ativos
são a fonte básica de geração de vantagens diferenciais
por parte da firma” (ver Figura 1).
O modelo convencional de inovação tecnológica era
concebido como um processo linear que passava por etapas de pesquisa, desenvolvimento, design, produção e,
posteriormente, por comercialização, vendas e serviços.
Este modelo, baseado nas experiências de indústrias de
produção em massa, não reconhecia a sinergia das trajetórias de cumulatividade do processo inovativo. O que é
interessante notar nas teorias e nas evidências empíricas
sobre as novas formas de organização empresarial e industrial é que a empresa isolada, própria do modelo
fordiano de produção de massa adotado em escala mundial, ou ainda, a empresa estatal característica do estilo
brasileiro de industrialização do modelo de desenvolvimento econômico conhecido por substituição de importações, cede lugar para um modelo organizacional mais
- a natureza, os determinantes e o impacto da inovação
sobre o sistema produtivo, com destaque para o processo
evolutivo, cumulativo e descontínuo do progresso técnico, através dos paradigmas tecnológicos (Dosi,1984), das
trajetórias naturais num ambiente concorrencial evolucionário (Nelson e Winter, 1977) e dos imperativos e convergências tecnológicas (Rosenberg,1982). Qualquer que
seja a denominação, o mais relevante é o enfoque endógeno do progresso técnico no ambiente concorrencial das
empresas;
- a dinâmica intersetorial, na criação de uma taxonomia
do progresso técnico por setores industriais, em que a inovação é uma função das oportunidades tecnológicas de
mercado, percebidas pelas empresas, sobretudo nas de
grande porte (Pavitt et alii, 1984). Neste caso, a decisão
de investir em alguma atividade tecnológica está vinculada a outras dimensões, tais como a posição relativa no
mercado, a estrutura industrial na qual a empresa se insere e o seu próprio grau de dinamismo empreendedor.
A inovação sistêmica surge nos processos de fusão e
fissão tecnológica. A fusão tecnológica “gera inovações
de maior impacto econômico, em que novos produtos são
fruto da integração de tecnologias anteriormente distintas entre si. Esta integração também produz novas áreas
de saber tecnológico, como mostram os exemplos da
multimídia, mecatrônica, originada na fusão da eletrônica com a mecânica; medicina nuclear, que associa o knowhow do médico com a eletrônica e a engenharia nuclear”.
O conceito de fissão tecnológica, por sua vez, “procura
representar o conjunto das reações em cadeias, que se
seguem à introdução das inovações mais radicais, na forma de novos produtos derivados” (Prochnik, 1996:177).
Os processos de fusão tecnológica e de inovação sistêmica radical são conduzidos, em geral, pelos grandes conglomerados industriais líderes. Os produtos vencedores
destas disputas conformarão os padrões concorrenciais de
mercado que irão vigorar mundialmente.
O processo de aprendizado é impregnado pela presença de conhecimentos tácitos e específicos à empresa, sendo
40
A INOVAÇÃO
NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
dade produtiva ou externa, seja nas relações interempresas, de subcontratação ou cooperação tecnológica.
FIGURA 1
ATIVOS COMPLEMENTARES NECESSÁRIOS À COMERCIALIZAÇÃO
DE UMA INOVAÇÃO
SISTEMAS NACIONAIS DE INOVAÇÃO:
TECNONACIONALISMO, TECNOGLOBALISMO
E TECNO-REGIONALISMO
Simultaneamente às grandes tendências de mudanças
na economia mundial, foi-se cristalizando, como idéiaforça entre os organismos multilaterais e internacionais,
um forte consenso sobre o papel que exercem os processos e os suportes políticos institucionais que estimulam a
apropriabilidade, aprendizagem, capacitação e inovação
tecnológica no desenvolvimento econômico e na otimização das vantagens competitivas das empresas, regiões
e dos países. O desenvolvimento econômico de uma nação e a ampliação da competitividade sistêmica de suas
empresas estão fortemente relacionados à capacidade de
realizar inovações e à capacidade de apropriabilidade e
desenvolvimento tecnológico. O ponto central desse enfoque é que o esforço nacional no domínio do novo paradigma de desenvolvimento não deve ser orientado pela
linha tradicional do modelo linear de ciência e tecnologia, como descrito anteriormente, isto é, o modelo que
situava a inovação, em grande medida, como fenômeno
exógeno à base econômica, pela dependência excessiva
em relação ao livre funcionamento do mercado, ao sistema de pesquisa, a novas descobertas e a desenvolvimentos científicos autônomos. Por um ângulo completamente inverso à abordagem exógena, instituições como a
OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico), em seu estudo Tecnologia e economia, a
Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), com
o trabalho Transformação produtiva com eqüidade, e as
Nações Unidas, com o trabalho Fortalecer o desenvolvimento têm dedicado uma grande ênfase na proposição de
modelos interativos que identificam os processos de inovação tecnológica como processo social predominantemente endógeno, que é influenciado fortemente pelas suas
relações mais amplas com toda a sociedade.
Com efeito, foram sendo agregadas à visão da empresa, como locus principal da concorrência, novas evidências que identificam a importância que os arranjos políticos institucionais (techno-nacionalism) desempenham nos
processos de apropriabilidade, aprendizagem, inovação
e difusão tecnológica diante de um ambiente econômico
e empresarial globalizado (techno-globalism). A fértil
elaboração de autores pertencentes a esta vertente teórica, como Freeman (1974), Nelson (1993) e Lundvall
(1988), sintetizou um grande acúmulo de pesquisas e estudos sobre os fatores determinantes do progresso tecnológico através de um conceito denominado de sistema
Fonte: Teece apud Baptista (1997:18).
Nota: As áreas sombreadas representam a parcela menos imitável da cadeia de valor; os segmentos do círculo externo representam os ativos complementares; os segmentos do círculo
interno representam o know-how.
sistêmico, holístico e interativo, em que a modernização
e a mudança tecnológica não refletem somente o quanto
se aprende ao realizar as rotinas produtivas, mas também
o quanto se aprende pelos canais de interação com outras
empresas (learning by interacting). O modelo de aprendizagem e autonomia tecnológica voltado para dentro da
empresa, preso fundamentalmente aos aspectos técnicos
e de engenharia, não pode ser considerado mais precondição suficiente para desenvolver uma capacidade competitiva em escala global; a experiência de trabalho desloca-se para os espaços produtivos sistêmicos e interativos,
nos quais os processos de aprendizagem são gerados no
interior de redes de subcontratação ou agrupamentos
(networks ou clusters) em que abundam externalidades e
interdependências entre os agentes econômicos diferenciados. Hoje não basta ser eficiente; tem que se buscar
escalas de produção com qualidade e oportunidade, bem
como redução do tempo de throughput.12 Os mais diversos estudos a respeito dos processos de mudança tecnológica e competitividade concordam que o principal obstáculo à
inovação na empresa é a debilidade na dinâmica de cooperação, seja interna à empresa, relacionada a fatores como
qualificação dos recursos humanos, integração e flexibili-
41
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
nacional de inovações. Tal conceito é definido como “uma
construção institucional, produto de uma ação planejada
e consciente ou de um somatório de decisões não planejadas e desarticuladas, que impulsiona o progresso e o
sucesso competitivo de economias complexas”. Esses arranjos institucionais envolvem as empresas, as redes de
interação entre as empresas, as agências governamentais,
as universidades, os institutos de pesquisas, os laboratórios de empresas e as atividades de cientistas e engenheiros. Estes arranjos políticos institucionais articulam-se
com o sistema educacional, o setor industrial e empresarial, bem como com as instituições financeiras, completando o circuito dos agentes que são responsáveis pela
geração, implementação e difusão das inovações.
Esses arranjos institucionais envolvem o Estado e as
suas agências governamentais financiadoras e de fomento à inovação, empresas-articuladas em redes de parcerias ou isoladas, universidades, institutos/centros de pesquisas e o sistema educacional, todos os responsáveis pelo
processo de geração e difusão de inovações tecnológicas.
Segundo Nelson (1993:520-3), “a diversidade dos arranjos que configura os sistemas de inovação é grande”. A
pluralidade dos arranjos institucionais varia entre países
e está fundada em características dinâmicas específicas
de cada agente envolvido, da estrutura produtiva e da própria história das empresas inovadoras. Grosso modo, essa
diversidade poderia ser percebida a partir de características, tais como as especificidades das firmas inovadoras
de cada país, a relação dessas firmas com as instituições
de pesquisa, o peso dedicado à ciência básica, o papel do
governo central na articulação das instituições dos sistemas, o papel das pequenas empresas dinâmicas, os diferentes arranjos do sistema financeiro, o nível da formação profissional dos trabalhadores, etc.13 Em países como
Japão e Coréia do Sul, a sociedade foi capaz de perseguir
objetivos nacionais comuns, facilitados e estimulados por
mecanismos de coordenação e solidariedade entre governo, empresas, trabalhadores e sociedade civil, viabilizando as trocas de informações – “verticalmente” (entre produtores e governo) e “horizontalmente” (entre agências
governamentais e no interior de associações de produtores). Dessa forma, tornaram-se possíveis a coordenação
de iniciativas, a aglutinação de interesses e o estabelecimento de objetivos e metas com credibilidade. A volatilidade do movimento do capital financeiro especulativo e
produtivo, provocada pelo processo de globalização da
economia, vem continuamente vulnerabilizando os sistemas econômicos nacionais e a capacidade de ação das
políticas públicas e erodindo a própria construção institucional do Estado-Nação. Com a recente crise econômica enfrentada pela Coréia do Sul e a recessão da economia japonesa, a eficácia do arcabouço político-institucional
dos sistemas nacionais de inovação tem sido amplamente
contestada. No caso do Brasil, a realidade é mais complexa ainda, pois o sistema de ciência e tecnologia brasileiro nunca evoluiu ou convergiu plenamente em direção
a arranjos institucionais de inovação mais dinâmicos, tal
como idealizado pelos autores neoschumpeterianos. A
literatura recente tem evoluído para abordagens científicas mais pragmáticas, que privilegiam as experiências de
especialização técnico-produtiva regionais ou territoriais
(tecno-regionalismo), valorizando as interações entre “sistemas locais ou regionais de aprendizado e inovação”. São
alguns exemplos o Vale do Silício, nos EUA, e a indústria de bens de capital na região da Emiglia Romagna, na
Itália.14
CONCLUSÕES: INCERTEZAS, ASSIMETRIAS E
POLÍTICAS DE COMPETITIVIDADE
Neste artigo, procurou-se demonstrar as evidências, a
partir da literatura científica e de experiências internacionais, que fundamentassem a proposição de uma matriz
teórica dinâmica quanto à percepção da atual dinâmica
de inovação e capacitação tecnológica no capitalismo
contemporâneo. Com este breve retrospecto comparativo, pretende-se salientar que as experiências internacionais bem-sucedidas têm demonstrado que, para a utilização plena das potencialidades da nova tecnologia, um país
necessita de capacitação tecnológica articulada a um suporte político-institucional e a determinados arranjos econômicos que estimulem a atividade inovativa. Conforme
o argumento aqui desenvolvido, capacitação e desenvolvimento tecnológico não significam apenas a adoção de
novos produtos e equipamentos ou qualificação para o uso
deles. A capacitação tecnológica encarna-se em pessoas
e instituições e requer redes e interações entre múltiplos
tipos de informações e agentes – públicos/privados, locais e estrangeiros. Os programas de cooperação continuam sendo uma das principais características do novo
padrão de competição e, neste plano, as políticas tecnológicas e a pressão política dos governos para a negociação de participação nestes programas têm exercido uma
função vital para a celebração, a conquista dos contratos
de parceria e o acesso à matriz tecnológica internacional.
A aplicação de uma política de competitividade para a
indústria pode atuar de forma dinâmica, estimulando o
repasse através de fomento à qualificação de fornecedores, de parte das rotinas industriais, da difusão dos novos
critérios de qualidade e produtividade e de atividades de
P&D, atualmente centralizadas em poucas empresas, para
outras empresas nacionais, de maneira a aumentar o conteúdo nacional dos produtos, ampliando e reforçando a
cadeia produtiva. A política tecnológica ou de competiti-
42
A INOVAÇÃO
vidade pode ter como metas a criação e o fortalecimento
das externalidades e dos vínculos de interdependência
entre fornecedores e usuários de tecnologia, fundos de
investimento e linhas de financiamento de longo prazo
destinadas aos processos de inovação e capacitação tecnológica e à formação de recursos humanos qualificados.
A arquitetura destas redes ou “cadeias de valor”15 incorpora efeitos maximizadores na geração de valor agregado provenientes de economias de aprendizado ou de aglomeração pelos seus encadeamentos tanto “para trás”, com
as atividades de fornecimento de insumos, como “para
frente”, com as atividades de base tecnológica e serviços.
Em face de tal realidade, a proposição de uma política de
competitividade de corte neoschumpeteriano, como vem
propugnando Margarida Baptista (1997), demonstra-se
uma solução bastante factível e sintonizada com o atual
ambiente concorrencial socioeconômico.
Contrariamente aos argumentos propugnados pela vertente teórica que advoga uma participação mínima do
Estado no desenvolvimento industrial e tecnológico contemporâneo, as evidências descritas revelam que a função do Estado, mesmo com poder de atuação mais reduzido, continua a ser vital, bem como o papel das políticas
industriais e tecnológicas no desenvolvimento econômico, no sentido de reduzir as incertezas quanto aos investimentos, e o estímulo às trajetórias virtuosas de cooperação interempresarial, de aprendizado e inovação
tecnológica. A estratégia de desenvolvimento implica o
estabelecimento de uma visão de longo prazo, cuja capacidade de condução transcende as condições efetivas dos
agentes individuais, embora as políticas de competitividade e o modelo político-institucional de Estado, em função das grandes transformações contemporâneas, já tenham sido transformados, adquirindo novas arquiteturas,
mais sofisticadas e dinâmicas, distintas do período pósguerra, quando predominava o padrão autocrático e intervencionista estatal no desenvolvimento econômico e
industrial. A formulação de uma nova política tecnológica no Brasil deve ter como meta a construção de alianças
estratégicas que conectem as empresas nacionais às redes empresariais dinâmicas, proporcionando condições de
capturar as sinergias dos fluxos tecnológicos internacionais, decorrentes destes arranjos empresariais. Uma outra lição a ser apreendida refere-se ao fato de que este não
é um processo automático ou espontâneo gerado pelos
mecanismos de mercado, mas sim dependente, em grande medida, de fatores políticos, institucionais e sociais,
que serão maximizados ou enfraquecidos pelo grau de
coesão e organização de cada sociedade. Por fim, com a
atual forma de organização empresarial em rede, descortinam-se espaços para a formulação de políticas de competitividade locais implementadas pelos municípios ou
NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
regiões ou unidades federativas, que se têm revelado bastante eficazes. Com efeito, são necessários dispositivos
institucionais e governamentais que favoreçam o seu desempenho competitivo, sem inibir a pressão concorrencial de mercado, e que estimulem a sua performance exportadora e a celebração de alianças estratégicas.
NOTAS
1. As crises cambiais e econômicas nos anos 90 em países como o México e
outros do sudeste asiático, exemplificam bem esta instabilidade e vulnerabilidade das economias nacionais perante a globalização e volatilidade do capital financeiro. Segundo Thurow (1997), nenhum país está imune à fuga ou ações
especulativas de investidores, que, ao indício de incertezas no front econômico,
afastem os investimentos externos e detonem uma revoada de capitais que podem consumir, da noite para o dia, as reservas de qualquer nação. Até mesmo o
Japão, que tem as maiores reservas do mundo, não possui cacife suficiente para
enfrentar o mercado global. Ver também Deos (1997).
2. A análise do desempenho do comércio internacional desses blocos apresenta
números impressionantes. Em 1995, os blocos europeu, da América do Norte e
asiático, que compreendem 32 países apenas, eram responsáveis por 80% de todas as exportações e 81% das importações internacionais, sendo que 44% do
total das exportações eram feitos intrablocos, ou seja, dentro desses três blocos
comerciais. Ressalve-se ainda que os fatos políticos e econômicos nas nações
industrializadas têm demonstrado que o movimento de globalização da economia mundial vem incidindo de forma significativa no processo de flexibilização
e desregulamentação dos mercados de trabalho destas regiões.
3. Definiu-se grupo econômico como um “conjunto de empresas subordinadas a
um centro único de decisões que, através de ligações financeiras, pessoais e (sobretudo) de propriedade acionária é capaz de exercer o poder, no mínimo, em
termos estratégicos (investimentos, base tecnológica, estratégia financeira, etc.).
Em geral atua em diversos mercados e através de diversas empresas, com uma
organização institucional descentralizada e com diferentes graus de autonomia
nas decisões de gestão” (Comin, 1996).
4. Os Keiretsus são grandes conglomerados japoneses, que resultam da reestruturação dos antigos Zaibatsu no pós-guerra, capazes de organizar as relações
entre suas empresas constituintes, que atuam em setores produtivos distintos,
através de intensa participação cruzada na propriedade de cada uma pelas outras
(participação acionária cruzada) ou diretorias cruzadas. São compostos por um
banco comercial (main bank ou city bank) e outras instituições financeiras (cias.
de seguro e bancos de investimento) e uma trading company (sogoshosha). Possuem processos de consulta recíproca mais ou menos permanentes e relações
estáveis de compra e venda de insumos entre si. O Keiretsu também é definido
como “uma rede densa de vínculos de cooperação entre os membros do grupo:
nesse sentido, já é uma rede, com a diferença de que os vínculos de colaboração
no plano financeiro, tecnológico, industrial e comercial, que os membros do
Keiretsu estabelecem entre si, decorrem, ao mesmo tempo, da cooperação entre
parceiros iguais e da formação de um mercado interno” (Chesnais, 1996:106).
5. Tal processo tem acarretado o enxugamento dos custos operacionais, a extinção de empresas menos eficientes, a simplificação dos níveis hierárquicos, eliminação das superposições ou duplicidades das atividades produtivas e administrativas. As tecnologias de informações transformam as microfunções ou tarefas individuais. Os softwares com produtos de multifunções (processamento
de texto, dados, voz e imagem) ou os sistemas como o CAD (Computer Aided
Design), o CAE (Computer Aided Engineering) e o CIM (Computer Integrated
Manufacturing), integrando projetos, engenharia e manufatura e ainda os
hardwares, capazes de se interligarem, estão rompendo barreiras funcionais em
que os especialistas podem ampliar e enriquecer suas atividades. A mão-de-obra
de baixa qualificação é substituída pelos robôs. A multifuncionalidade nas tarefas é uma tendência em que a integração está centrada nas pessoas, ou melhor,
em uma equipe de pessoas.
6. Estes fatores associados como elementos cruciais para o incremento sistêmico da produtividade e competitividade têm sido identificados, especialmente, na
experiência de reestruturação do setor automotivo. A proximidade com os fornecedores tem sido um dos pontos críticos de sucesso para a implementação dos
sistemas de produção enxuta, estruturados nos programas de just in time. Segundo a Anfavea, haveria hoje cinco determinantes para a localização de uma montadora: mão-de-obra qualificada na região; sistema de transporte integrado com
porto, ferrovia e rodovias; mercado de veículos forte próximo à cidade que abrigará uma fábrica; fornecedores no local; e assistência médica, água e esgoto para
trabalhadores (Pacheco, 1996:133).
7. Sobre a nova dinâmica internacional e as mutações nos caminhos que conduzem a novas formas de dependência política e econômica, ver Castells (1993).
43
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
8. Joint venture, em inglês, significa risco partilhado. “Associação entre duas ou
mais empresas para a condução de um projeto específico que resulta na formação de uma nova empresa cujo capital e controle são partilhados pelas empresas
que a formaram”(Comin, 1996).
turais, tais como a história política, sindical e os sólidos laços familiares nestas
regiões, foram variáveis decisivas para o sucesso. “Por extensão, o conceito de
sistema local de inovação compreende os arranjos e agentes responsáveis pela
internalização do progresso tecnológico na dinâmica econômica de uma localidade. Este conceito envolve além das outras relações de mercado o papel de indução do Estado, bem como outros agentes que desempenham distintos papéis –
no País e externamente – e suas relações de interdependência para geração e
introdução de inovações” (Rocha, 1997).
9. Refere-se ao processo de externalização dos serviços de apoio, onde procurase focalizar recursos na atividade-fim (que constituem a vocação principal da
empresa) e eliminar atividades de suporte ou etapas do processo de produção,
transferindo-as a uma rede de pequenos e médios fornecedores, que se organizariam para esta finalidade. Com a focalização/descentralização, busca-se evitar
ociosidades e atingir níveis “ótimos” de escala. O conflito entre economia de
escopo e economia de escala pode ser enfrentado pela desverticalização quase
integrada da indústria, gerando inclusive condições para a economia de amplitude reduzir custos administrativos e custos de desenvolvimento de produto e processo, transformar custos fixos em variáveis, obtendo uma mesma produção final com menor investimento por parte da fábrica, bem como maior controle da
tensão nas relações de trabalho.
15. São atividades específicas necessárias para projetar, pedir e oferecer um produto específico, da concepção ao lançamento, do pedido à entrega, e da matériaprima às mãos do cliente. Ver Porter (1990).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
10. Podem ser identificadas, pelo menos, quatro motivações para a formação de
alianças: alianças pré-competitivas, que consistem na preparação para a introdução de novos produtos, através do desenvolvimento conjunto de pesquisa genérica; alianças para o desenvolvimento de novos produtos, formadas nos estágios
iniciais do ciclo, quando a principal meta é determinar a viabilidade de um novo
conceito de produto; alianças para a criação de padrões alternativos de produtos,
que são vistos como um poderoso instrumento para aumentar parcelas de mercado e ameaçar a posição dominante de empresas concorrentes; e alianças para
reduzir custos, que estão associadas à fase de maturidade do produto, quando
são diminuídas as margens de lucro e, freqüentemente, contrai-se o crescimento
da demanda e do volume de vendas.
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11. As definições e convenções básicas de P&D são classificadas em três categorias: 1- Pesquisa Básica ou Pura, relacionada ao trabalho teórico ou experimental empreendido primordialmente aos fenômenos e fatos observáveis, sem
ter em vista nenhum uso ou aplicação; 2- Pesquisa Aplicada, que é uma investigação original concebida pelo interesse em adquirir novos conhecimentos. É,
entretanto, essencialmente dirigida em função de um fim ou objetivo prático específico. No setor empresarial, a distinção entre Pesquisa Básica e Aplicada é
freqüentemente marcada pela criação de um novo projeto para explorar os resultados promissores de um programa de Pesquisa Básica; 3- Desenvolvimento
Experimental, que consiste no trabalho sistemático, delineado a partir do conhecimento preexistente, visando a comprovação ou demonstração da viabilidade
técnica ou funcional de novos produtos, processos, sistemas e serviços, ou ainda
no substancial aperfeiçoamento (Manual de Oslo, 1995 e Manual Frascati, 1994).
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12. Tempo necessário para que um produto evolua da concepção ao lançamento,
do pedido à entrega ou da matéria-prima às mãos do cliente. Inclui o tempo de
processamento e o tempo de fila – tempo que um produto leva na fila esperando
o próximo projeto, processamento de pedido ou etapa de fabricação (Womack e
Jones, 1996:391).
13. Para melhor explicar o nível do desenvolvimento tecnológico de um país,
citando Matesco e Hanseclever (1996) identificam três tipologias:
– os sistemas maduros, com a capacidade de manter o país próximo da (ou na)
fronteira tecnológica internacional. Nesta primeira tipologia está o grupo de países formado pelos Estados Unidos, Alemanha e Japão, que disputam a liderança
tecnológica mundial, e o grupo composto pela França, Inglaterra e Itália, com
dinamismo tecnológico bastante acentuado, porém relativamente menor ao primeiro grupo;
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– os sistemas intermediários, voltados basicamente à difusão da inovação, com
forte capacidade doméstica de absorver os avanços técnicos gerados nos sistemas maduros. Nesta categoria, encontram-se dois grupos de países: os pequenos
de alta renda (Suécia, Dinamarca, Holanda e Suíça); e os países asiáticos (Coréia
do Sul e Taiwan). Esses países tornaram-se bastante especializados, aproveitando as suas vantagens de localização, por estarem próximos dos principais centros avançados tecnologicamente, como fatores relevantes para a criação de vantagens comparativas;
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– os sistemas incompletos, constituídos por uma infra-estrutura tecnológica mínima e presentes em países em desenvolvimento, tais como Brasil, Argentina,
México e Índia. A característica comum destes sistemas é a sua baixa articulação com o setor produtivo, o que contribui relativamente pouco para o crescimento econômico. Esses países construíram os seus sistemas de C&T, porém
não os transformaram em efetivos sistemas de inovação (Alburquerque, 1996).
Teoricamente, um sistema nacional de inovação deveria contribuir para diminuir o gap tecnológico com a fronteira internacional. Durante os anos 80, o que
se viu no Brasil, ao contrário do que ocorreu com a Coréia do Sul e Taiwan, foi
a perda de posições competitivas. Constata-se, agora, a existência de um risco de
ampliação do hiato entre os países de terceira categoria e a fronteira tecnológica.
14. No caso das experiências de determinadas economias regionais industrializadas – ou como denominaram alguns autores “sistemas industriais localizados”
(Baden-Württemberg, na Alemanha; Emiglia Romagna, na Itália; entre outros) –
onde observa-se a predominância de formas de produção artesanais e plenamente integradas ao comércio mundial, as políticas de competitividade locais implementadas pelos municípios ou regiões, associadas aos fatores locacionais e cul-
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45
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
A EMPRESA TRANSNACIONAL
JORGE VIEIRA DA SILVA
Gerente de Desenvolvimento de Sistemas para América Latina e Canadá do Setor Farmacêutico da Novartis
A
história do capitalismo neste século XX compreende a evolução dos modelos do planejamento estratégico empresarial. A racionalidade do meio empresarial mudou sua forma de interpretar o mercado, de se planejar mundialmente e, conseqüentemente, seu modo de agir. Historicamente, porém,
as empresas, os países onde estas se fazem presentes e
as pessoas que as integram não desenvolveram essa racionalidade de modo homogêneo. Aspectos não somente sociais, econômicos, culturais e ambientais, mas
também políticos influíram e influem nesse processo
evolutivo.
Hoje, a dinâmica do capitalismo mundial apresenta
diferentes modelos, tanto entre diferentes empresas, quanto, por vezes, em uma mesma empresa, dentre os países e
as pessoas que a compõem, o que a torna complexa, dificultando uma análise mais elaborada e a tarefa de prognosticar uma tendência mundial.
A partir do modelo multinacional e do refinamento da
teoria da administração de recursos humanos, na segunda metade do século, evolui-se para dois outros modelos:
o modelo global e o modelo transnacional. Esses, particularmente, transcendem as fronteiras de países, colocando
fábricas e escritórios comerciais em nações diferentes
daquela de origem da empresa, de acordo com uma logística mundial centralizada em um ou mais países (modelo global) ou conforme o mercado consumidor mundial (modelo transnacional).
O modelo global não é o mais recente, mas é aquele
que intensificou, através da análise da reorganização do
trabalho e da produção empresarial, principalmente na
comparação da organização “americana” do fordismo à
“japonesa” do toyotismo, uma análise sociocultural comparada de diferentes países.
Nesta linha, por exemplo, Geert Hofstede (1991) compara diferentes formas de administração de recursos humanos em 50 países em uma pesquisa junto à transnacional IBM. Esse autor analisa, primordialmente, as
diferenças culturais, tais como a relação de autoridade, a
autoconcepção individual, a concepção individual acerca da sociedade, a concepção da masculinidade e feminilidade e o modo como o indivíduo se comporta em situações de conflito, no que concerne ao controle emocional
e à expressão de sentimentos. Entre os resultados obtidos, tem-se, por exemplo, um comportamento relativamente mais individualista por parte dos norte-americanos
e mais coletivista por parte dos japoneses.
A partir desse estudo de Hofstede, poder-se-ia concluir
que o fordismo é um modelo mais apropriado para os
norte-americanos e o toyotismo, para os japoneses. Porém, o mercado mundial não permite à Ford, empresa
transnacional automobilística de cujo fundador deriva o
OS MODELOS EMPRESARIAIS
O século XX se inicia com uma racionalidade empresarial baseada no tradicional modelo internacional mercantilista. Esse modelo restringe a empresa a mera troca
de bens e serviços entre diferentes nações. Trata-se de um
comércio entre nações e de uma ação empresarial internacional.
O advento da reorganização da administração da produção nos Estados Unidos, na primeira metade do século, tornou possível o surgimento de um novo modelo estratégico mundial: o modelo multinacional. Esse modelo
empresarial reproduz, em menor escala, a estrutura organizacional produtiva, comercial e financeira do país de
origem em outros países de interesse da empresa.
46
A EMPRESA TRANSNACIONAL
nome fordismo, ser menos eficiente do que a concorrente
Toyota, da qual vem o nome toyotismo. Por outro lado, a
Toyota, devido à cultura do povo e à ação do governo
dos Estados Unidos, precisa instalar fábricas em solo norte-americano e empregar trabalhadores locais, caso deseje atingir o mercado consumidor daquele país. Resultado: ambas as empresas e ambas as culturas precisam se
adaptar para continuar atuando no mercado; e a rapidez
com que se adaptam pode ser crucial para sua sobrevivência comercial. É, pois, neste contexto que os estudos
dos autores mencionados se tornam importantes para a
administração de empresas.
Dada a condição de sobrevivência comercial das empresas mundiais, o modelo transnacional se apresenta
como uma evolução do modelo global. Várias referências são eferecidas nesse sentido, por exemplo: Octavio
Ianni (1995) aponta um “capital internacional” que se torna
“global e desterritorializado”; Kenichi Ohmae (1995) afirma existir uma “economia sem fronteiras” (bordless
economy) em um “mundo sem fronteiras” (bordless
world); Eric Hobsbawn (1995) fala de uma “economia
transnacional” e de uma “força global”; e Liszt Vieira
(1997) afirma que multinacionais se transformaram em
“empresas apátridas”, em “empresas transnacionais”.
Christopher Barlett e Sumantra Ghoshal (1992) afirmam, baseados em suas pesquisas recentes, que, hoje, as
empresas de grande porte, atuantes no mercado mundial,
podem ser definidas como companhias multinacionais,
globais, internacionais ou transnacionais. A diferença de
terminologia se dá, segundo esses autores, pela forma como
as empresas abordam o mundo, por sua estratégia mundial.
Estes autores afirmam que algumas companhias se
caracterizam por “uma postura estratégica e uma capacidade organizacional que lhes permite ser bastante sensíveis e receptivas às diferenças entre os ambientes nacionais ao redor do mundo.” Essas “administram um portfólio
de várias entidades nacionais”. Por isso, chamam-nas de
“companhias multinacionais”. Segundo esses autores, as
companhias multinacionais têm maior flexibilidade de
atuação em diferentes nações do globo. Têm uma “flexibilidade multinacional”.
“Em contraste, outras companhias (particularmente as
japonesas) desenvolveram operações internacionais muito
mais impulsionadas pela necessidade de eficiência global e muito mais centralizadas em suas decisões operacionais e estratégicas.” Como esse segundo grupo de companhias trata o mercado mundial como um todo integrado,
Barlett e Ghoshal as chamam de “companhias globais”.
“Para estas companhias, o ambiente operacional global e
a demanda do consumidor mundial são as unidades dominantes de análise, e não a nação-estado nem o mercado
local. Produtos e estratégias são desenvolvidos para ex-
plorar um mercado mundial unitário e integrado.” O ganho de escala, oriundo da abordagem global permite, segundo esses autores, uma “competitividade global” a essas
companhias. Elas perdem em flexibilidade, mas ganham
na escala de produção.
“A estratégia de um terceiro grupo de companhias baseia-se principalmente na transferência e adaptação do
conhecimento e habilidades da companhia-mãe aos mercados externos. A empresa-mãe mantém influência e controle consideráveis, mas menos do que uma companhia
global clássica; as unidades nacionais podem adaptar produtos e idéias vindos do centro, mas têm menos independência e autonomia do que as subsidiárias multinacionais.”
Uma vez que as estratégias destas companhias refletem o
padrão de exploração mundial, Barlett e Ghoshal as chamam de “companhias internacionais”. A vantagem competitiva das companhias internacionais, para eles, está no
aprendizado local em contraste com o original da companhia-mãe, o que os autores chamam de “aprendizado
mundial”.
Finalmente, os autores fazem a proposta da chamada
companhia transnacional, que agrega os pontos positivos
dos outros três tipos de companhias. Esse tipo de companhia, segundo eles, busca: a flexibilidade multinacional,
trazida da estratégia das companhias multinacionais; a
competitividade global, trazida da estratégia das companhias globais; e o aprendizado mundial, trazido da estratégia das companhias internacionais. A estratégia transnacional figura como uma tendência para as companhias
multinacionais, globais e internacionais da atualidade: “...
ela (a companhia transnacional) reconhece a importância da
receptividade local, mas como ferramenta para obter flexibilidade nas operações internacionais. As inovações são vistas
como resultados de um processo maior de aprendizado organizacional que engloba todos os membros da companhia.”
EMPRESA TRANSNACIONAL
Concordando-se, para efeito de análise, com o raciocínio de Barlett e Ghoshal, segundo o qual as companhias
tendem a uma estratégia transnacional, o termo empresa
transnacional pode ser utilizado genericamente, tanto para
companhias multinacionais, globais e internacionais, como
para as transnacionais, muito embora seja reconhecida a
diferença do trato estratégico mundial atual entre essas.
Se se combina a idéia da busca empresarial pelo lucro e
as definições destes autores, pode-se definir o que vem a ser
uma empresa transnacional. Trata-se de uma empresa que,
atuando em mercados de mais de uma nação, busca uma
competitividade global, uma flexibilidade multinacional e
um aprendizado mundial, de modo a auferir o lucro esperado por seus investidores passivos. Para isto, a empresa trans-
47
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
nacional usa “a receptividade local como ferramenta para
obter flexibilidade nas operações internacionais”.
Na definição de empresa transnacional, portanto, há
uma relação entre o transnacional, o global, o multinacional e o internacional, de um lado, e o local ou nacional, de outro. A empresa que possui transnacional como
adjetivo interage com a sociedade, a cidade ou o Estado,
que, quase sempre, têm local por adjetivo.
Nesse contexto, o poder local é prejudicado no processo de negociação pelas condicionantes do poder transnacional. As empresas transnacionais têm semelhantes
racionalidades econômicas. As sociedades locais, por
outro lado, oferecem receptividade e oportunidades diferenciadas ao investimento transnacional, decorrentes de
sua economia, de sua política, de seus recursos naturais e
de sua infra-estrutura, entre outros motivos (Dowbor, 1996
e Naisbitt, 1995).
Dentro desta idéia, sob a perspectiva das empresas
transnacionais, Barlett e Ghoshal afirmam que “a volatilidade do ambiente externo aumenta a necessidade de
processos flexíveis de coordenação. Uma vez que as necessidades do consumidor, as tecnologias, as forças políticas e as estratégias competitivas estão em constante fluxo, qualquer companhia com uma visão estática sobre as
necessidades de coordenação ou com uma abordagem
inflexível dos problemas enfrentará dificuldades significativas”. Isto é, enfrentará sem trunfos, sem vantagens o
poder e as adversidades locais.
Em decorrência dessa diferença de amplitude de abordagem, a mundialização do capital é seletiva. Os investimentos de capital podem se direcionar para determinadas
regiões do mundo em detrimento das demais, a despeito
de seus desejos e necessidades. Têm-se os escolhidos e
os excluídos, além de uma relativa ingerência de ambos
sob o direcionamento do capital da empresa transnacional. Isto ocorre pois a racionalidade, o processo empresarial de seleção de regiões, o permite, dada a própria
amplitude transnacional, através de sua estrutura transnacional de análise de negócios e oportunidades.
Estruturada para agir em um mercado mundial, a empresa transnacional se depara com a necessidade de definir para si onde estão as melhores oportunidades de negócios no mundo. Antes mesmo de traçar seu plano de
ação, ela elabora uma análise dos mercados locais do
mundo e de suas possibilidades diante dos mesmos. No
âmbito local e, posteriormente, no âmbito mundial, desenvolve um sistema de inteligência de mercado, baseado no estudo dos fornecedores, concorrentes, clientes, intermediários, governo, imprensa e universidades, ou seja,
sistema de análise de todas as entidades externas à empresa e de sua interação, de seu posicionamento em relação a essa. A empresa analisa, por exemplo, a legislação
e o controle governamental, o conhecimento e a pesquisa
desenvolvida nos meios universitários, o comportamento
favorável ou desfavorável da imprensa e da opinião pública e, sobretudo, estuda as outras empresas que também
atuam no mesmo mercado, desde os fornecedores de matéria-prima até os eventuais intermediários. As variáveis
internas à empresa, tais como produtos ofertados, preços,
propaganda e pontos de distribuição, são também comparadas com a prática das concorrentes que atuam no
mesmo mercado consumidor de modo a obter um melhor
posicionamento em relação ao mercado e às possibilidades de lucro no mesmo.
Como as entidades externas à empresa podem interferir ou interferem em sua atuação comercial e financeira,
essas são analisadas com intuito de se estabelecer um plano
de ação. Esse, com o uso correto de recursos humanos e
financeiros, irá permitir a gerenciabilidade sobre o ambiente em que a empresa atua.
A análise de negócios “traduz” os dados internos e
externos obtidos (no mundo), em informações úteis conforme as necessidades do usuário de um sistema de apoio
à decisão. Esse usuário do sistema de apoio à decisão, o
executivo transnacional, então, não somente tem todas as
informações de que necessita para negociar com os clientes, fornecedores, governos e sindicatos com os quais se
relaciona, mas pode, inclusive, escolher com os quais
clientes, fornecedores, governos e sindicatos do mundo
se relacionará ou não. Dessa forma, por ser transnacional,
a empresa pode excluir-se da análise do mercado local que,
por sua vez, passa a ser considerado um objeto de análise.
Pode-se, conseqüentemente, verificar que a empresa
transnacional depara-se com diferentes possibilidades de
negociação em cada uma das regiões (ou países) sob análise. A empresa transnacional, por estar presente em diversos países, pode pensar em “triangular” relações com
diversas e variadas sociedades e governos do mundo inteiro. Cabe à empresa analisar suas relações com a sociedade local, via análise de demanda e de custos de mãode-obra, e com o Estado local, via análise da burocracia
local. Uma empresa transnacional que tenha representações em diversos países, no contexto econômico atual,
passa a ter vantagens para analisar este triângulo de negociação local. Essas vantagens vão desde as mais simples, como a coleta dos dados, até as mais complexas,
como a compreensão da cultura local. Tem, pois, maior
gerenciabilidade. Tem uma gerenciabilidade mundial.
O negociador da empresa transnacional, buscando a
flexibilidade multinacional, a competitividade global e o
aprendizado mundial apontados por Barlett e Ghoshal, tem
atrás de si um eficiente serviço de inteligência empresarial e um versátil sistema de apoio à decisão. Com essa
pessoa, os representantes da “receptividade local”, ou seja,
48
A EMPRESA TRANSNACIONAL
a sociedade e o Estado, irão negociar, se tiverem algo em
troca a oferecer. Colocando de outro modo, sob a perspectiva da política, os representantes locais devem negociar, posicionando-se democraticamente diante de empresas transnacionais altamente competitivas dentro do
sistema capitalista mundial. Sob o enfoque econômico das
empresas, as sociedades e os Estados do mundo podem,
por sua vez, ser vistos como competidores entre si, pela
busca dos investimentos do capital.
A empresa transnacional, de posse de uma análise
mundial de suas possibilidades de investimento, parte para
a elaboração de um plano de ação. Este deve refletir as
expectativas, os objetivos de curto, médio e longo prazos
dos investidores da empresa, o que refletirá sua conduta
nas diversas regiões do globo em que opera. Considerando-se o lucro como o objetivo financeiro principal de
qualquer empresa, outros objetivos vêm ao encontro deste como forma de continuá-lo, de perpetuá-lo. As empresas costumam definir um objetivo social e, por vezes até,
um objetivo ecológico, de compromisso com o meio ambiente (isto é, de não agressão, preservação e proteção do
meio ambiente). Desse modo, os objetivos financeiros,
sociais ou mesmo ecológicos de empresas vêm a direcionar seus planos de ação.
A forma de agir dos membros de uma empresa necessita de um plano, cujo propósito é conferir coerência e
racionalidade na busca dos objetivos empresariais. Define-se um plano de ação para empresa, uma orientação formal dada por ela ao seu conjunto de ações, de modo a atingir os objetivos organizacionais (macros), através da
realização de metas, ou seja, de objetivos datados e
quantificados quanto aos detalhes da organização (micro).
Para isto, a empresa executa atividades de planejamento,
ou seja, um conjunto de atividades destinadas à elaboração de seus planos de ação.
A empresa determina seus objetivos, a partir dos
quais define um planejamento estratégico e metas para
cada uma de suas áreas funcionais. Essas desdobram
esses objetivos e metas do todo da empresa em objetivos e metas funcionais. Esse processo de desdobramento, ao se repetir até cada indivíduo ou grupo de indivíduos, acaba por transformar os objetivos de toda a
organização, em metas, isso é, em objetivos datados e
quantificados para cada indivíduo.
O planejamento estratégico da organização se divide
em planejamentos táticos funcionais, que se subdividem,
por sua vez, em planejamentos operacionais. O planejamento empresarial é, usualmente, no meio empresarial,
dividido em três níveis: estratégico, tático e operacional.
O planejamento estratégico é definido na cúpula da empresa e desenvolvido a partir de informações dos sistemas de apoio à decisão. O planejamento tático é desdo-
brado do planejamento estratégico no nível gerencial da
empresa e desenvolvido a partir dos sistemas de informações gerenciais. O planejamento operacional é desdobrado do planejamento tático no nível de chefias operacionais e desenvolvido a partir dos sistemas básicos.
Como o planejamento, a conseqüente negociação entre a empresa e seu ambiente externo, enquanto ação planejada, pode ser dividida em três níveis, também associáveis à hierarquia de planejamento e de sistemas:
estratégico, tático e operacional. A negociação estratégica é desenvolvida enquanto ação estratégica, a partir do
planejamento estratégico empresarial. Essa negociação
conta com informações dos sistemas de apoio à decisão,
disponíveis ao negociador empresarial (deal maker). A
negociação tática é definida no nível da exceção da rotina operacional, na chamada “administração por exceção”.
A gerência, nesse caso, intervém baseada nas normas e
diretrizes da empresa, no planejamento tático e nos sistemas de informações gerenciais, atuando nas exceções da
rotina estabelecida. A negociação operacional é definida
no nível da rotina operacional básica comercial da empresa, como, por exemplo, na negociação de venda ou
compra de produtos ou serviços.
A capacidade de bem negociar, segundo este raciocínio, deriva da capacidade de definição dos objetivos e
metas em todos os níveis organizacionais da empresa,
tendo como base os objetivos da empresa. Uma vez estabelecidos esses objetivos e metas, deve-se ter capacidade
de definir um planejamento que leve a eles. Deve-se ter
capacidade de agir politicamente de modo a obter o planejado. Finalmente, deve-se ter capacidade de interagir
com o ambiente no sentido de obter as informações necessárias (feed-back) para controlar os rumos da ação, os
rumos de um “replanejamento”, de uma redefinição.
O capital mundial visa atender, com produtos e serviços, inclusive financeiros, um mercado mundial consumidor e investidor, um mercado composto de pessoas
presentes em diversas regiões do planeta. A captação de
recursos financeiros e sua aplicação em atividades industriais ou comerciais pretendem ser mundiais. Visam
interagir com pessoas consumidoras ou investidoras onde
quer que estejam no planeta. Desta forma, os conceitos
de mundialização do capital e de mundialização do mercado, embora não sejam sinônimos, expressam e dão nome
à dinâmica do mesmo fenômeno contemporâneo: a mundialização das atividades industriais, comerciais e financeiras de empresas.
Dada a existência de um capital mundial, com a existência de empresas atuando em um mercado mundial,
pode-se passar a um segundo fenômeno da mundialização do capital: a racionalidade dessas mesmas empresas
transnacionais com relação a novos investimentos de ca-
49
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
pital. Esta implica uma racionalidade na ação do mercado mundial que é expressada pela empresa transnacional.
Esta racionalidade determina quem recebe e quem não recebe o capital mundial, isto é, o capital-dinheiro e o capital-mercadoria. As empresas transnacionais, detentoras do
capital em suas diferentes formas, baseiam sua análise de
investimentos em critérios mercadológicos, financeiros,
econômicos e políticos, visando, principalmente, eficiência, lucro ou participação de mercado. Desse modo, acabam, em seu curso de ação, por direcionar seus investimentos de capital para determinadas regiões ou países do
globo em detrimento de outras.
Nesse contexto de capitalismo transnacional em que
atuam as empresas, dois outros agentes devem, então, ser
considerados tendo em vista uma melhor compreensão do
processo deste momento do capitalismo. Estes agentes são
o Estado e o indivíduo.
pólos distintos: EUA, CEE e Japão”. Para a autora, “a
dinâmica mundial da década de 80 deu origem a três grandes blocos em que o poder de conquista de mercados se
baseia em largas escalas de produção, maior qualidade e
incorporação de tecnologias sofisticadas e não mais em
custos de mão-de-obra e matérias-primas”. Thorstensen
afirma ainda que “a formação de blocos regionais implica uma nova política comercial”. Ela prossegue: “Se antes o comércio internacional se pretendia fazer sob regras
gerais, atualmente o comércio entre os grandes blocos é
feito mediante confrontos permanentes em que pressões
e concessões são os elementos de negociação. Isto significa um comércio administrado, item por item, no qual a
prática do protecionismo é vital e se traduz de duas formas: preferências para os integrantes e barreiras para os
não integrantes”.
Os blocos, as comunidades e as uniões de países, tais
como o Mercosul – Mercado Comum do Sul, a UE – União
Européia, o Nafta – “North America Free Trade Act” ou
Tratado de Livre Comércio da América do Norte e a Asean
– “Association of Southeast Asian Nations” ou Associação das Nações do Sudeste Asiático, onde se pratica o que
Vera Thorstensen chama de comércio administrado, estão, hoje, na pauta das Ciências Políticas.
A mundialização do Estado, definida como a supranacionalização das atividades deste, figura, no final do século
XX, como resposta aos fenômenos da mundialização do
capital e do mercado com os quais passa a interagir. Surge,
neste contexto, a necessidade de redefinição dos preceitos
das ciências políticas, da administração pública, da economia e da sociologia, entre outras áreas do pensamento, onde
o papel do Estado precisa ser redefinido.
A racionalidade do Estado passa a se confrontar com
uma nova racionalidade ou com novas racionalidades de
um Estado mais mundial, tanto na visão, quanto na prática de ação política e administrativa. O Estado, que antes
agia diante de outros Estados em prol de seus cidadãos e
de suas economias locais, passa se colocar diante de poderosas empresas e de uma sociedade mais informada,
além de outros Estados, agora organizados na forma de
blocos econômicos, comunidades econômicas e, mesmo,
uniões. Por outro lado, o Estado que antes agia mais isoladamente, também passa a somar forças com outros Estados, com os quais tem acordos comerciais e políticos,
de modo a obter melhores condições de vida para seus
cidadãos e de desenvolver sua economia local. O Estado
passa a agir supranacionalmente, através de entidades supranacionais.
Ao mesmo tempo que as estratégias empresariais mudam, desencadeia-se o processo de criação de entidades
estatais supranacionais, tais como blocos e uniões de países, chamado de mundialização do Estado, também re-
O ESTADO SUPRANACIONAL
Como não há, talvez por enquanto, um Estado supranacional soberano sobre o território das diversas nações
onde agem as empresas transnacionais, o capital mundial,
seja o chamado capital-dinheiro ou o chamado capitalmercadoria, pode fluir e refluir entre as atuais fronteiras
internacionais, conforme a reação das empresas transnacionais às medidas deste ou daquele governo, desta ou
daquela sociedade do planeta.
A ação de governos e das entidades não governamentais
de um determinado país podem atrair ou afugentar o capital-dinheiro e o capital-mercadoria das empresas transnacionais que atuam em seu território. Os governos dos Estados
nacionais (e as sociedades) têm, pois, pouca ou nenhuma
governabilidade sobre a ação empresarial transnacional.
Porém, os Estados nacionais, politicamente, não podem ficar inertes diante dessa desterritorialização. Por esse
motivo, a mundialização das atividades comerciais e produtivas da iniciativa privada acaba por provocar, em parte, uma aceleração dos acordos bilaterais e multilaterais
de comércio em detrimento de acordos mundiais gerais.
Países que, em uma primeira fase, apoiavam a internacionalização de suas empresas e produtos, viram suas economias ameaçadas por igual fenômeno proveniente de
outros países. Conseqüentemente, acordos gerais do comércio mundial sofreram um retrocesso e passaram a surgir blocos econômicos de países, dando ênfase, entre outros acertos socioculturais, aos acordos bilaterais e
multilaterais de comércio, às zonas de livre comércio e
às uniões aduaneiras.
Analisando esses acordos bilaterais e multilaterais de
comércio, Vera Thorstensen (1990) afirma que “a ordem
econômica atual está se concentrando ao redor de três
50
A EMPRESA TRANSNACIONAL
sultante de uma racionalidade estratégica que tem evoluído através do tempo. A história recente dessa racionalidade, isto é, este último quarto do século XX, aponta
para o que Vera Thorstensen chama de uma “nova ordem
mundial” e para um “comércio administrado”. A nova
ordem mundial, sob o enfoque da política de Estado, ocorre nos bastidores e nas sessões de negociação entre governos no comércio administrado. Esse processo de negociação, se não ocorre em entidades supranacionais ou
“intergovernamentais de caráter global ou regional”, como
é chamado por Liszt Vieira, tais como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas ou as secretarias da União
Européia ou do Mercosul, ocorre, ao menos, em rodadas supranacionais ou intergovernamentais de negociação.
Mais uma vez, mas agora na esfera dos Estados, temse um confronto da multiracionalidade e multiculturalidade do planeta, na qual a diplomacia também é primordial. Há pessoas negociando e agindo de acordo com
o que Hofstede chama de coletivismo e individualismo
ou Gilberto Rodrigues (1992) chama de “paradigmas das
relações internacionais”. Nesses paradigmas, os modelos
realista, da dependência, da interdependência e da paz dão
o tom da multiracionalidade das relações internacionais.
Se ainda forem considerados os problemas locais e regionais derivados da ação empresarial, entre os quais se inclui a já mencionada marginalização de indivíduos do ciclo
empresarial, vê-se nas “mãos” dos negociadores do Estado,
na sua administração do comércio, o futuro de indivíduos.
Esses últimos, dependendo da performance dos negociadores internacionais, podem se ver empregados ou desempregados, marginalizados ou não pelo sistema capitalista.
O fato de os indivíduos e os problemas da nação alheia
serem interessantes ao negociador de um governo e de influenciarem em seu modo de agir, então, é colocada. Assim,
tem-se ampliada para os Estados a discussão da multiracionalidade da mundialização, onde, então, inserem-se os
chamados paradigmas das relações internacionais e as chamadas funções de legitimação e de acumulação do Estado.
pranacionais que estabelecem normas, procedimentos e
administram, em nome dos países-membros, certas atividades comuns a seus respectivos governos.
Diante da mundialização dessas entidades abstratas,
formadas por grupos de pessoas que são chamadas de
Estados e empresas, ocorrem os fenômenos da mundialização dos indivíduos. O indivíduo, tal como coloca
Octavio Ianni, diante do que ocorre no globo, pode ser
“tomado singular e coletivamente como povo, classe, grupo, minoria, maioria, opinião pública”. Dessa afirmação
de Ianni, pode-se definir um “indivíduo singular”, privado, particular, ele próprio e um “indivíduo coletivo” que
faz parte de grupos como empresas e Estados. Se ainda
adicionarmos à idéia desse indivíduo coletivo a “teoria
do esquema de papéis” (role dynamics) de Jacob Levy
Moreno (1964), tem-se o que passamos a chamar de “indivíduo ator” ou “indivíduo participante”, que pode, nos
grupos aos quais pertence, representar diferentes papéis
sociais, tais como: capitalista investidor, trabalhador, governante, etc.
Dada essa definição do indivíduo, pode-se, genericamente, falar dos fenômenos da mundialização diante de
um indivíduo singular, cuja maior relevância é o impacto
positivo ou negativo que esse pode sofrer, ou diante do
indivíduo coletivo, cuja importância é o impacto positivo
ou negativo que pode causar na vida de outros indivíduos.
O indivíduo singular, passivo, independente de sua participação em empresas e Estados é, em princípio, qualquer indivíduo que se beneficie ou não, que sofra ou não
as conseqüências da ação dessas mesmas empresas e Estados.
O indivíduo coletivo é aquele que pode ser definido e
agrupado conforme seu papel social. Trata-se daquele
indivíduo participante dos fenômenos da mundialização
do capital e dos Estados, que age em empresas transnacionais e em governos estatais, enquanto investidor, trabalhador, consumidor, político, etc.
O “indivíduo genérico”, vale notar, seja o indivíduo
singular ou o coletivo, no final do século XX, tem maior
e melhor acesso aos meios de comunicação, melhores,
mais rápidos e mais acessíveis meios de transporte, maior
acesso a produtos, serviços e culturas de outros países e
maior capacidade de participação e intervenção em atividades sociais, ambientais, comerciais e políticas globais.
Enfim, o indivíduo é ou pode ser mais “global” e sofre ou
pode sofrer mais intensamente os impactos positivos ou
negativos dos fenômenos da mundialização.
Empiricamente, é mais fácil crer na maior mundialização do indivíduo coletivo do que na do indivíduo singular, dada a maior facilidade de obtenção de referências
bibliográficas sobre o primeiro do que sobre o segundo.
Ohmae (1995), por exemplo, justifica sua idéia da mun-
A MUNDIALIZAÇÃO DO INDIVÍDUO
O último quarto do século XX traz dois novos conceitos para as ciências políticas: o transnacional e o supranacional. O primeiro conceito é, quase sempre, utilizado
como adjetivo para empresas que agem independentemente das fronteiras nacionais: as empresas transnacionais.
O segundo termo é utilizado para Estados que encontram
soluções negociadas comuns, cuja administração é centralizada para o conjunto dos Estados-membros. Assim,
tem-se a expressão: Estado supranacional. Esta última expressão, ainda que incorreta, pois os Estados nacionais
têm sua soberania preservada, dá nome às entidades su-
51
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
dialização dos indivíduos argumentanto que esses, enquanto consumidores, “tornaram-se mais globais em seu modo
de agir (global in orientation)”. O autor afirma: “Com
maior informação sobre estilos de vida ao redor do mundo, eles estão muito menos sujeitos a querer comprar produtos americanos, franceses ou japoneses, meramente, por
causa de sua associação nacional, assim como estão menos condicionados às determinações de seus governos
neste sentido. Os consumidores querem produtos melhores e mais baratos, não importando de onde venham.”
Diante da nova condição do indivíduo coletivo derivada de sua própria mundialização, diante de um indivíduo mais “global”, bem como da mundialização do Estado e das empresas, nota-se uma nova racionalidade
individual. O “eu no mundo” se tornou diferente. Existem novas possibilidades para a ação individual que precisam ser pensadas. No entanto, deve-se ressaltar, os
impactos positivos e negativos dos fenômenos da mundialização sobre o indivíduo singular, o “eu interior”.
Tanto a empresa transnacional como o Estado supranacional derivam de estratégias que evoluíram recentemente (no século XX), porém muitas empresas e Estados
ainda se encontram em desenvolvimento ou estagnados
em modelos anteriores. Embora existam tendências transnacionais ou supranacionais, o mundo, hoje, apresenta uma
multiracionalidade. As empresas, que provocam o fenômeno da mundialização do capital, podem agir de acordo
com diferentes modelos, isto é, de acordo com os modelos multinacional, internacional, global e transnacional.
Os Estados, por sua vez, podem agir, por exemplo, de
acordo com um coletivismo, individualismo sob a perspectiva do comportamento ou segundo os chamados “paradigmas das relações internacionais”.
O indivíduo passa a ser afetado de diversas formas pelos
poderes transnacional e supranacional. O indivíduo participante das estratégias (e táticas) de empresas e Estados, que passa a ser chamado de “indivíduo participante
coletivo” ou “eu no mundo”, é afetado por conhecer e
integrar uma organização empresarial e estatal. O indivíduo privado, particular, específico, subjetivo, o “indivíduo singular” ou “eu interior”, sofre as conseqüências
positivas ou negativas da ação dos mesmos. Este último,
vale ressaltar, entre outras conseqüências, pode ter ampliados ou restritos sua liberdade, seus direitos e sua cidadania.
O indivíduo participante é o objeto da análise. Esse,
por ter um papel social definido, através de sua ação em
empresas ou Estados, afeta o indivíduo singular, independentemente dos papéis que desempenha no contexto social. Todavia, como este indivíduo singular tem direitos,
ele acaba sendo o objetivo final, teoricamente, do Estado
democrático.
O fato de o indivíduo ter ou não capital para investir
em empresas, gabaritos que lhe dêem garantia de trabalho ou poder aquisitivo de compra, o fato de ter ou não
um papel definido na sociedade, não deve influir em seu
direito à vida, à dignidade, à felicidade, à liberdade de
consciência, de ação e de associação. Não deve influir
também em seu direito ao status de cidadania, cuja definição será apresentada mais adiante. Dado este raciocínio, o estudo da racionalidade de mundialização começa
pelo mercado e empresas transnacionais, passa pelo Estado e por suas funções, discorre sobre o indivíduo participante com papéis sociais definidos, para, finalmente,
chegar ao indivíduo singular e seus direitos, o que inclui
a liberdade e a cidadania.
David Held (1991) afirma que “as nações proclamamse democráticas no momento mesmo em que mudanças
no âmbito da ordem internacional comprometem a possibilidade de um Estado-Nação democrático independente.
À medida que, progressivamente, vastas áreas da atividade humana organizam-se em termos globais, aumentam
as incertezas com respeito ao destino da democracia”. A
partir desta afirmação, esse autor passa a questionar o que
chama “de premissas subjacentes da teoria da democracia”, as quais estabelecem “que as democracias podem
ser tratadas essencialmente como unidades auto-suficientes; que as democracias são claramente separadas umas
das outras; que as mudanças no âmbito de uma democracia podem ser explicadas em grande parte por referência
às estruturas internas e à dinâmica das sociedades democráticas nacionais; e que a política democrática expressa,
em última análise, a interação de forças operando no plano do Estado-Nação”.
Segundo ainda Held, “uma concepção inquestionada
de soberania está no centro do debate a respeito da democracia liberal. Trata-se da soberania do Estado-Nação. Presume-se que o Estado tem controle sobre seu próprio destino, sujeitando-se apenas a compromissos que deve
assumir e a limites impostos pelos atores, agências e forças operando nos seus limites territoriais”. Ele prossegue
afirmando que “o mundo putativamente ‘fora’ do Estado-Nação – a dinâmica da economia mundial, o rápido
crescimento das ligações transnacionais e as grandes mudanças da natureza do direito internacional, por exemplo
– é objeto de uma teorização mínima e suas implicações
para a democracia não são pensadas”. A partir dessas colocações de Held, surgem certas questões acerca das causas dessa “teorização mínima” e dessas “implicações não
pensadas”.
Qual é, afinal, a racionalidade estatal no contexto dos
fenômenos da mundialização, principalmente, daqueles em
que os próprios Estados soberanos são os agentes, ou seja,
no contexto dos fenômenos da mundialização do Estado?
52
A EMPRESA TRANSNACIONAL
David Held, ainda, sustenta que “operando num sistema cada vez mais complexo, os Estados têm ao mesmo
tempo sua autonomia limitada e sua soberania afetada”.
Diz o autor: “Qualquer concepção de soberania que a tome
como uma forma ilimitada e indivisível de poder público, portanto, está posta em questão. A soberania, tal como
ela deve ser concebida hoje em dia, já se divide em um
certo número de agências – nacionais, regionais e internacionais – e é limitada pela própria natureza dessa pluralidade.”
Essa “pluralidade”, a qual o autor se refere, é o que se
pode chamar de uma das dimensões da mundialização do
Estado, um dos chamados fenômenos da mundialização.
Essa mundialização se processa, atualmente, de duas formas básicas:
A EXTERIORIDADE CONTESTADA
As empresas globais e transnacionais deram início a um
processo que transformou a análise econômica localizada nos
países para uma esfera mundial. A exterioridade vem sendo
contestada pelo sistema capitalista transnacional atual. A
posição do Estado de supranacionalizar-se através de blocos e uniões de países aumenta a possibilidade de regulamentação da economia mundial, conduzida no âmbito dessas empresas, mas acaba por diminuir a soberania nacional
do território compreendido em suas fronteiras. Nesse sentido, as fronteiras (e o rompimento de fronteiras) culturais
ganham, através da relação, da interdependência das empresas, Estados e organizações não-governamentais, relevância na rotina dos indivíduos.
Um desafio, então, se coloca ao capitalismo moderno:
visto que a prática capitalista mundial mudou neste último século e o processo de aprendizado é agora mundial,
a política de preços empresariais de bens, serviços e do
próprio capital se orienta por princípios empresariais geralmente aceitos (best practices), em que uma regulamentação mundial originária não somente dos Estados, mas
também das bolsas de valores, tenderá antes a premiar a
criatividade do indivíduo coletivo do que sua capacidade
empresarial de negociar em mercados locais.
- através da união de Estados em blocos com entidades
supranacionais regionais, como nos casos do Mercosul,
União Européia e Nafta;
- através da união de Estados em entidades supranacionais globais, como a Organização das Nações Unidas –
ONU e suas entidades afiliadas, o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial.
A definição de racionalidade dos Estados nesse processo, porém, não é convergente, como a definição da
racionalidade das empresas transnacionais no processo da mundialização do capital. Enquanto nesse último se fala em uma estratégia transnacional como um
ponto comum da racionalidade das empresas que
atuam mundialmente, a racionalidade do Estado encontra vetores dos mais variados nas “relações internacionais”, nas relações globais. Ambas as formas denominadas de mundialização do Estado precisam ser
explicadas e analisadas, assim como os diferentes tipos de racionalidade do Estado em que estas se baseiam. Contudo, deve-se reconhecer uma conseqüência inequívoca de ambas as formas de mundialização
do Estado: a formação e o desenvolvimento de entidades supranacionais, enquanto formas de resolver problemas cada vez mais globais. Deve-se reconhecer que
ambas pressupõem entidades governamentais supranacionais com fóruns supranacionais de negociação.
As diferentes formas da mundialização do Estado,
isto é, a solução via formação de blocos de países e a
solução através de entidades supranacionais mundiais,
colocam a necessidade de repensar e analisar a racionalidade do Estado democrático capitalista (a racionalidade realista, interdependentista, dependentista ou
pacifista) diante dos fenômenos da mundialização do
capital e da racionalidade das empresas transnacionais,
bem como diante do fenômeno da mundialização do
próprio Estado.
NOTA
E-mail do autor: [email protected]
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53
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
NOVA DINÂMICA DAS
EMPRESAS TRANSNACIONAIS
GIORGIO ROMANO SCHUTTE
Cientista Político, Assessor do Sindicato dos Químicos do ABC
E
AS ESTRATÉGIAS DAS
EMPRESAS TRANSNACIONAIS
ntre os atores da nova dinâmica do capitalismo
destacam-se as empresas transnacionais. Desde
os anos 50, a economia brasileira caracteriza-se
pela presença predominante das transnacionais nos setores-chaves. A atual política econômica do governo FHC
aposta em um processo de modernização e aumento da
capacidade produtiva através de um novo ciclo de investimentos estrangeiros, ampliando a presença das transnacionais em setores até então controlados pelo capital nacional ou por empresas públicas.
Por meio das privatizações, aquisições, fusões e novas
instalações, as transnacionais ampliam a sua presença no
Brasil. As subsidiárias introduzem novos conceitos de
produção e organização com base em experiências internacionais.
Essa nova onda de investimentos externos diretos para
o Brasil corresponde não só a uma nova atitude do governo brasileiro, caracterizada pela liberalização e desregulamentação, mas também a novas estratégias de investimento internacional dessas empresas. Ao mesmo tempo,
mudou também o contexto internacional. A preocupação
com a concentração de poder das transnacionais em relação aos governos nacionais e aos trabalhadores deu lugar
a uma corrida internacional para atrair investimentos externos diretos e criar um clima favorável para a sua expansão. Esta nova fase de regulamentação internacional,
agora não mais para equilibrar a expansão das transnacionais, mas sim para deixá-las mais à vontade, ocorre não
só através de legislação unilateral e bilateral, mas também de acordos regionais. O grande debate hoje é se é
oportuno e possível fazê-lo em nível multilateral. É difícil imaginar atualmente um governo desenvolver políticas comerciais, industriais e tecnológicas sem considerar
essa nova dinâmica das transnacionais.
Após a Segunda Guerra Mundial, as empresas transnacionais começaram a jogar um papel importante na
economia capitalista. Porém, até os anos 80, a principal
forma de integração das economias nacionais ainda se
dava por meio do comércio externo. Um dos indicadores
do grau de internacionalização consiste precisamente na
relação entre o crescimento das economias nacionais e
do comércio internacional, isto é, o total das exportações e
importações. Desde o pós-guerra, sob a hegemonia econômica dos EUA, o comércio internacional cresceu muito
mais do que o aumento da produção mundial, representando maior integração e interdependência das economias
capitalistas. Os países de economia planificada, que representavam um terço da população mundial, ficaram fora
dessa realidade.
Nesse período, o crescimento dos investimentos externos das empresas aumentou ainda mais do que o comércio internacional, porém, não foi linear, tendo se expandido com mais força a partir de meados dos anos 80,
como se observa na Tabela 1.
A média anual dos investimentos externos das transnacionais entre 1982 e 1986 foi de 61 bilhões de dólares.
Em 1996, já havia subido para 349 bilhões de dólares.
Um crescimento muito acima do aumento da produção
mundial e também muito superior à ampliação do comércio global, o que indica uma importância crescente do
papel econômico e político das transnacionais. Esses valores são ainda maiores se considerados os empréstimos
recebidos pelas subsidiárias, captações nas bolsas de valores locais, incentivos fiscais e subsídios. As Nações
Unidas calculam que, em 1996, o total dos investimentos
54
NOVA DINÂMICA DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
TABELA 1
Investimentos Externos Diretos
1982-1996
Anos
1982-1986
1987-1991
1990
1993
1994
1995
1996
Países
Desenvolvidos
(Em US$ bilhões)
43
142
170
139
142
206
208
Países em Desenvolvimento
(Terceiro Mundo)
Em US$ bilhões
%
19
31
34
73
90
96
129
31
18
16
33,5
37
30
37
América Latina (1)
(Em US$ bilhões)
8
8,9
18
27
25,4
38,5
Europa do
Leste
(Em US$ bilhões)
0,02
0,6
0,3
6,3
5,9
14,3
12,3
Total
(Em US$ bilhões)
61
174
211
218
239
317
349
Fonte: Unctad, FDI/TNC database.
(1) Os investimentos especificados para a América Latina estão também embutidos nos números totais dos investimentos destinados para o Terceiro Mundo na coluna anterior.
ligados às operações das transnacionais chegava a 1,4 trilhão de dólares.
Com exceção da segunda metade dos anos 80, a porcentagem dos investimentos no Terceiro Mundo foi da
ordem de 30% do total, alcançando 37%, em 1996. No
final dos anos 80, alguns analistas consideraram que a
queda relativa do interesse das transnacionais nos países do Terceiro Mundo seria uma tendência permanente, sobretudo porque a nova forma de produção tende a
automatizar o trabalho simples, não-qualificado e monótono e, portanto, não necessita mais da mão-de-obra
barata. Entretanto, não foi o que se verificou nos anos
seguintes. Cabe ressaltar que, mesmo neste período, os
investimentos nestes países (entre os quais está o Brasil) aumentaram de uma média de 19 bilhões de dólares ao ano no início dos anos 80, para 34 bilhões de
dólares em 1990.
Verifica-se, ainda na Tabela 1, a movimentação na
Europa do Leste. Antes da perestroika quase não havia
investimentos das transnacionais nestes países. A média
anual no início dos anos 80 era de 20 milhões de dólares
para toda a região. Num primeiro momento, havia a expectativa de uma invasão, mas isso não se confirmou. As
empresas ainda estavam cautelosas, considerando a instabilidade política existente. Porém, recentemente, os investimentos começaram a crescer significativamente, passando de 300 milhões de dólares, em 1990, para 12 bilhões
de dólares, em 1995. Tais investimentos estão concentrados, sobretudo, nos países considerados mais estáveis,
como a República Tcheca e a Hungria.
turamento anual de alguns destes gigantes com o PNB
(Produto Nacional Bruto) na Tabela 2.
TABELA 2
Comparação das Vendas das Empresas Transnacionais nos Setores de
Petróleo e Automobilístico com o PNB de Alguns Países
Países Selecionados – 1995
Em US$ bilhões
Empresas/Países
Vendas
General Motors
Indonésia
Dinamarca
Toyota
Portugal
Venezuela
Exxon
África do Sul
Noruega
Shell
Polônia
Egito
164,0
111,7
121,8
110,0
-
PNB
167,6
145,5
92,3
58,5
123,0
113,5
92,8
40,9
Fonte: Relatório de Investimento Mundial 1997 das Nações Unidas e Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 1996 do Banco Mundial.
A General Motors, por exemplo, que segundo algumas
análises estaria em decadência, ainda tem a capacidade
de gerir um faturamento de 164 bilhões de dólares, o que
é quase igual à produção de bens e serviços da Indonésia
e até maior da que a da Dinamarca.
O TAMANHO DAS TRANSNACIONAIS
TENDÊNCIAS DO NOVO CICLO
DE INVESTIMENTOS
As empresas transnacionais cresceram tanto que se
transformaram em importantes atores políticos no cenário internacional. Isso fica evidente ao se comparar o fa-
Algumas tendências principais caracterizam o novo
ciclo de investimentos internacionais. Dentre elas, destacam-se as apresentadas a seguir.
55
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
Crescimento
lização dos elementos estratégicos nas matrizes ou centros de controle: desenvolvimento tecnológico e gestão
financeira. Em muitos casos, inclusive, há uma forte disputa interna entre filiais e departamentos para convencer a
matriz a promover investimentos produtivos e financeiros. A China capta quase um terço do total dos investimentos transnacionais destinados ao Terceiro Mundo. O
Brasil é, sem dúvida, um dos países que está integrado na
política de investimento das empresas, sendo, em 1996, o
segundo país receptor dos investimentos externos. Das 500
maiores empresas, 382 possuem atividades no Brasil.
Um crescimento médio anual dos investimentos de
24,7% ao ano, entre 1986 e 1990, e de 12,7%, entre 1991
e 1994, o que representa um aumento cerca de quatro vezes
superior ao crescimento da economia mundial. Esta tendência deve se manter por um bom tempo. A explosão no
final dos anos 80 estava relacionada, de um lado, com a
tendência geral da globalização, que continua nos anos
90 e, de outro, com alguns fenômenos específicos, como
a intensificação da integração da União Européia e a
mudança na estratégia das empresas japonesas. Estas últimas seguraram durante muito tempo a produção doméstica conquistando os mercados mundiais através da exportação. Com a globalização, houve um rápido processo
de expansão das transnacionais japonesas, sobretudo nos
Estados Unidos, Inglaterra e Espanha (principalmente na
procura de mercados) e nos países asiáticos (principalmente na procura de mão-de-obra barata).
Principais Países
Do total dos investimentos, dois terços provêm de
empresas que têm suas sedes nos cinco países mais desenvolvidos: Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, Japão e França, isto é, os mais poderosos do planeta que
dão as cartas da globalização e controlam as políticas dos
organismos multilaterais. As empresas de origem norteamericana são as principais investidoras, mas, ao mesmo
tempo, os EUA são o país que mais recebe investimentos
de empresas transnacionais, devido ao interesse por seu
mercado e ao seu desenvolvimento tecnológico.
Apesar de as transnacionais adotarem uma estratégia
global, ainda existe uma forte ligação com os governos
nacionais nos países de origem. Essas empresas tentam
convencer os governos nos países de origem e nos países
para onde se destinam que o que é bom para elas é bom
para todos. A grande contradição é que esses mesmos
países estão envolvidos numa disputa cada vez mais acirrada. É impossível “beneficiá-los” ao mesmo tempo.
Concentração e Multiplicação
Ao mesmo tempo em que se observa um processo de
concentração (oligopolização), assiste-se a ampliação do
número total das empresas com atividade de produção de
bens ou serviços fora de seu país de origem. Em 1969
existiam 7.000 transnacionais e, em 1996, 44.000, com
um total de 280.000 subsidiárias espalhadas pelo mundo.
Segundo dados de 1994, 797 transnacionais são de capital brasileiro. Este crescimento não contradiz o processo
de concentração. Acontece que muitas empresas fornecedoras começaram a acompanhar a estratégia global das
empresas para as quais vendem os seus produtos, ocorrendo, ao mesmo tempo, a internacionalização de setores
que eram tipicamente nacionais, como os serviços. Exemplo disso, no Brasil, é o interesse por parte de mais de 50
pequenas e médias empresas estrangeiras da área de telecomunicação, em busca de parceiras para fornecer acessórios aos gigantes, que estão entrando com o processo
de privatização.
Privatizações
O processo de liberalização dos mercados, a desregulamentação e a privatização criaram um novo clima para
os investimentos internacionais. Na América Latina, observa-se a volta do interesse do capital internacional para
os setores de infra-estrutura, o que era muito comum na
primeira metade do nosso século. Em 1940, um terço do
total do estoque dos investimentos externos diretos na
América Latina era dirigido a setores de infra-estrutura,
que depois foram objeto de nacionalizações e expropriações. A privatização reabriu esses mercados até recentemente dominados por empresas estatais, como é o caso
das telecomunicações, setor elétrico, os portos e do saneamento e água.
No Brasil prevê-se um ciclo de investimentos de cerca
de 80 bilhões de dólares em ativos (incluindo venda de
participações minoritárias) nos próximos três anos ligados principalmente a privatizações de telecomunicação e
Terceiro Mundo
Nos últimos anos, cerca de 30% do total de investimentos foram destinados aos países do chamado Terceiro Mundo, o que, em vez de superar, tem aprofundado a
desigualdade entre esses países, já que os investimentos
destinam-se apenas aos dez principais desta região, que
recebem em torno de 75% do total. Isto mostra a existência de mecanismos de integração seletiva e acirra a disputa entre esses países, comprometendo sua unidade no plano
internacional. Constata-se, ao mesmo tempo, uma centra-
56
NOVA DINÂMICA DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
energia elétrica. Só entre 1995 e 1997, cerca de 25 transnacionais entraram na disputa nas privatizações do setor
elétrico. Das que entraram efetivamente o principal país
de origem são os EUA. Até 1997 foram privatizadas, no
Brasil, 76 empresas por um total de 44,4 bilhões de dólares (incluindo 8,1 bilhões de dólares em transferências de
dívidas). Deste total, 50% são da área de infra-estrutura.
Mais de um terço correspondeu a capital externo. Cabe
frisar que esta participação estrangeira vem crescendo rapidamente.
regionais sobre investimentos. Principalmente no caso do
Nafta, houve um compromisso claro por parte dos governos do Canadá, México e dos Estados Unidos (sobretudo
nos dois primeiros) de abrir mão do uso de políticas restritivas à livre circulação dos capitais, financeiros e produtivos. Trata-se de um processo de homogeneizar a desregulamentação. No caso do Mercosul, foi assinado em
1994 o Protocolo sobre Promoção e Proteção de Investimentos provenientes de Estados não membros do Mercosul. Busca-se harmonizar os princípios jurídicos gerais a
serem aplicados pelos países-membros do Mercosul aos
investimentos externos diretos, estabelecendo parâmetros
máximos de concessões. Este acordo, assim como aqueles bilaterais que o Brasil assinou, regulamenta através
de tratados internacionais a aplicação do artigo 172 da
Constituição Federal, que afirma que a lei disciplinará,
com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros.
Porém, as transnacionais estavam particularmente interessadas num acordo multilateral para codificar a desregulamentação em relação aos investimentos externos
diretos. Houve uma certa confusão sobre o fórum que trataria disso, mas foi a OCDE que saiu na frente. O seu
Conselho de Ministros decidiu, em maio de 1995, iniciar
as negociações para um acordo geral sobre investimentos
internacionais: o Acordo Multilateral de Investimento
(MAI). A primeira proposta foi apresentada em meados
de 1997. Contudo, encontrou tanta resistência por parte
de alguns governos, principalmente o francês, e grupos
organizados da sociedade civil, sobretudo no Canadá, que
não é muito provável que se chegue a um acordo ainda
este ano. Cabe frisar que, depois de décadas de discussões sobre regulamentação internacional para limitar o
poder das transnacionais em relação a governos e trabalhadores, o MAI representaria o contrário: uma tentativa
de um amplo acordo que reduza a regulamentação dos
governos sobre investimentos, garanta a proteção destes
investimentos (contra nacionalização especificamente) e
instale um mecanismo de resolução das disputas em torno de investimentos, tanto entre governos como entre
governos e investidores. É interessante notar que o governo brasileiro, na apresentação do Tratado sobre investimentos do Mercosul, afirma que este faz parte de uma
política para aproximar-se cada vez mais nas negociações que vem desenvolvendo na matéria com referência
à OCDE.
Desregulamentações
A desregulamentação acabou com uma série de normas legais – sobretudo nos países do Terceiro Mundo –
que tentavam amarrar os interesses das empresas às estratégias de desenvolvimento nacional, como, por exemplo, a exigência de índice de nacionalização pelo qual uma
empresa era obrigada a comprar as peças no país. Isto
permitiu, por exemplo, o crescimento do setor de autopeças no Brasil, onde se criaram mais empregos do que nas
próprias montadoras.
Uma pesquisa internacional da Unctad mostra que só
em 1995 foram realizadas 112 mudanças nas legislações
de 64 países. Destas, 106 tinham como objetivo a desregulamentação. Conscientes de que as transnacionais teriam sempre outros lugares como opção para investir, os
governos adotam medidas para atrair esses investimentos competindo entre si.
Existem, porém, várias formas de fazer isso, com efeitos diferentes para os trabalhadores. Algumas são inaceitáveis, como a criação de zonas de livre exportação com
exceções à legislação social, trabalhista e ambiental vigentes no país. Outras (isenção fiscal, eliminação de alíquotas de importação de matérias-primas ou semifaturados), quando associadas a planos de desenvolvimento
regional e políticas de emprego, podem ser negociadas. Esse
tipo de política não se vincula necessariamente à existência de zonas de livre exportação, mas está presente também no Brasil, no âmbito da chamada guerra fiscal. O
governo FHC e os governos estaduais têm oferecido todas essas vantagens sem exigir qualquer contrapartida.
Em muitos casos, os governos coíbem o direito de livre organização ou de negociação existente no país, como
em várias zonas de livre exportação, sobretudo na Ásia.
Na América Central e Caribe, as zonas em que são operadas as chamadas “maquilas” funcionam sob o mesmo regime da lei trabalhista, mas de fato todos sabem que o
governo não faz nada para impedir que as empresas instaladas desrespeitem esses direitos básicos dos trabalhadores.
Além das medidas unilaterais dos governos nacionais
e os acordos bilaterais, foram assinados vários acordos
Liberalização do Comércio
Com o avanço dos acordos de livre comércio regional
e, principalmente, a queda das tarifas alfandegárias em
57
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
função dos acordos multilaterais (Gatt/OMC), as empresas têm mais liberdade de organizar a sua produção internacionalmente. Uma empresa como a Unilever (Gessy
Lever), por exemplo, possuía várias fábricas produzindo
a mesma coisa em diferentes países da Europa. Com a
intensificação do processo de integração, esta empresa
concentrou a fabricação de um determinado produto em
um só país e algum outro produto do grupo em outro. Essa
concentração vem em geral acompanhada de investimentos em novas tecnologias de produção, de tal forma que o
aumento da capacidade produtiva não vem se refletindo
no crescimento do número de trabalhadores. Ou seja, a
perda de postos de trabalho nos países onde se encerrou a
produção daquele produto não vem sendo compensada por
um aumento dos postos de trabalho no país onde a empresa decidiu concentrar a produção. A sensação dos trabalhadores, muitas vezes, é de que o emprego foi roubado por outro país. Pode-se verificar o mesmo em relação
ao Mercosul, principalmente nos setores que mais souberam aproveitar até agora as vantagens da livre circulação
de mercadorias.
setor. O grosso dos investimentos voltaram-se para energia, telecomunicação, transporte, vendas ao varejo (supermercados) e serviços financeiros.
A “invasão estrangeira” no mercado bancário, um setor até pouco tempo considerado tipicamente de domínio
nacional, está mudando rapidamente. O HSBC inglês,
Santander e Bilbao Vizcaya já entraram e acredita-se que
isso seja só o início. Vale destacar que os bancos estrangeiros de olho no mercado brasileiro são os mesmos que
atuam na Argentina: o HSBC comprou o Banco Roberts,
o Bilbao Viscaya adquiriu o Banco de Crédito Argentino
e o Banco Santander comprou 51% do capital votante do
Banco Rio de la Plata. Isso sinaliza o acirramento da
disputa por fatias do mercado do Mercosul, como vem
acontecendo em outros de integração regional.
Esse processo também ocorre com a internacionalização das atividades chamadas “associadas”, como, por
exemplo, concessionárias, contabilidade, marketing e
publicidade. No Brasil, em 1990, no ranking das 15 maiores agências de publicidade constavam apenas três estrangeiras. Hoje, na mesma lista, já são dez.
Setor de Serviços
Reagir aos Problemas Cambiais
Até a Segunda Guerra Mundial, a maioria dos investimentos estavam voltados para as matérias-primas, especialmente na área de mineração ou em plantações de
produtos utilizados na indústria. Na fase de expansão do
capitalismo posterior a 1945, os investimentos em sua maioria
dirigiram-se para o setor manufatureiro. Hoje a tendência é
uma expansão da importância dos setores de serviços.
As novas tecnologias de comunicação permitem, com
maior facilidade, a divisão de produção e subcontratação
de setores até então tipicamente nacionais. A tecnologia
de informação reduz a necessidade de aproximação entre
produtores e consumidores e permite que alguns serviços
que não podiam ser negociados internacionalmente se
tornem comercializáveis (tradables). Qualquer atividade
que possa ser feita por computador ou telefone, como
escrever software ou vender passagens aéreas, pode ser
realizada em qualquer lugar do mundo conectada ao escritório central por satélite e computador. No setor financeiro, por exemplo, partes do serviço bancário (compensação de cheques) podem ser transferidas sem a necessidade
de instalar o banco todo.
Mesmo num país como o Brasil, onde a atuação das
transnacionais estava tradicionalmente identificada com
o setor industrial, verifica-se esta mudança. Do estoque
total dos investimentos internacionais registrados no Brasil, 30% correspondem ao setor de serviços. Observando
as novas entradas de capital em 1996, percebe-se que 62%
dos investimentos neste ano foram dirigidos para este
Um dos fatores mais problemáticos para a estabilidade na economia mundial corresponde, sem dúvida, às grandes e rápidas mudanças nos mercados de câmbio de moedas, devido ao seu caráter especulativo. Além disso,
existem câmbios reais que refletem mudanças na correlação de forças entre as diferentes economias. Na segunda
metade dos anos 80, a moeda do Japão (iene), por exemplo, subiu muito em relação ao dólar. Efetivamente a economia japonesa tinha se fortalecido em relação à americana. Para uma empresa japonesa, tornou-se desvantajoso
continuar produzindo no Japão e, a partir daí, exportar
para os outros países, porque os produtos tornaram-se
muito mais caros para os consumidores nos outros países. Para evitar esta perda de competitividade, a empresa
é estimulada a produzir num país que está na zona da outra
moeda. No entanto, para não ter que reagir o tempo todo
às flutuações nos mercados de câmbio, procura-se estar
presente em várias zonas (dólar, iene, marco alemão) ao
mesmo tempo e organizar a exportação e importação a
partir da situação do momento.
Aquisições, Fusões e Alianças Estratégicas
Com o processo de globalização, houve uma mudança nas estratégias de investimento das transnacionais
não só quantitativa, mas também qualitativa. Em muitos setores, o que gera a vantagem competitiva é o controle sobre a tecnologia de ponta. Investimentos para
58
NOVA DINÂMICA DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
estar à frente do desenvolvimento tecnológico podem
ser muito onerosos e implicam altos riscos. Assim, surgiram novas formas de reunir esforços que não necessariamente envolvem toda a empresa. Dois gigantes do
setor de eletrônica podem decidir, por exemplo, investir conjuntamente no desenvolvimento de um novo tipo
de vídeo, com acordos de divisão posterior do mercado conquistado.
O registro dos investimentos não diferencia, de um lado,
os investimentos novos que aumentam diretamente a capacidade produtiva e, de outro lado, os investimentos que
representam transferência internacional de recursos para
a compra de capacidade instalada.
O próprio acirramento da competitividade internacional provocou um movimento de fusões e aquisições, além
da já mencionada onda de privatizações. Esse crescimento pode ser observado na Tabela 3.
Financeirização
Tradicionalmente existe uma diferença nítida entre os
chamados “investimentos portfólio” e “investimentos
externos diretos”. No primeiro caso, trata-se de uma aplicação financeira sem envolvimento no gerenciamento nem
controle sobre políticas de investimentos (a não ser através das reuniões dos acionistas). No segundo, trata-se de
um controle direto.
Hoje essa diferença começa a ser menos clara na prática, exatamente pelas estratégias das transnacionais de
obtenção de maior flexibilidade e capacidade de reação
rápida aos ambientes economicamente adversos. Isso envolve atividades de compra de controle acionário, não por
motivos produtivos, mas especulativos, ou seja, aguardase a valorização dos ativos para logo em seguida vendêlos. Em termos técnicos, isso vem sendo chamado de
“maior liquidez” dos investimentos diretos ou de “financeirização dos investimentos produtivos”.
Se uma empresa decide investir em uma nova fábrica,
dificilmente vai desfazer-se deste negócio logo em seguida, pois seu objetivo é produzir sob condições consideradas favoráveis. Entretanto, atualmente existem empresas
transnacionais que consideram que o investimento numa
operação não produtiva, mas especulativa-financeira, pode
ser mais interessante. Vários analistas consideram esse
fenômeno de transferência do setor produtivo para o setor financeiro uma das principais características da globalização e da atual fase do capitalismo (particularmente importante para este debate é o estudo do Giovanni
Arrighi, 1996).
TABELA 3
Percentual das Aquisições e Fusões no Total dos Investimentos
Externos no Mundo
1990-1996
Anos
%
1990-1992
1993-1995
1996
27
35
47
Fonte: Relatório sobre Investimentos Mundiais da Unctad de 1997.
Um exemplo do crescimento observado na Tabela 3 é
o setor de alimentação, que majoritariamente era de capital nacional e que hoje está passando por uma nova fase
de internacionalização. Só a Parmalat adquiriu 14 empresas nacionais entre 1991 e 1994. No Brasil, foram as transnacionais que lideraram o processo de fusões e aquisições.
Outro exemplo foi a aquisição da Kibon pela Gessy
Lever por quase 1 bilhão de dólares. Trata-se de uma
empresa que detém 60% do mercado nacional, setor que
vem sendo agitado pela entrada de novos concorrentes (a
norte-americana Haagen Dasz), com grande perspectiva
de crescimento.
No âmbito internacional, os valores envolvidos chegam a ser gigantescos. No início de outubro de 1997,
a WorldCom, empresa norte-americana de comunicações, fez a maior oferta na história das fusões e aquisições, com um lance de 30 bilhões de dólares pela MCI
Communications. Trata-se de um valor equivalente a duas
vezes o PIB anual do Uruguai. Esse exemplo se dá num
contexto de outras megafusões no setor de telecomunicação, à medida que as empresas tentam abocanhar uma fatia
do mercado global que está sendo desregulamentado.
Comércio Interno das Empresas Transnacionais
Foi feita aqui uma diferenciação entre investimentos
diretos e comércio internacional, como duas opções para
as empresas, ou seja, conquistar mercados simplesmente
a partir de exportação ou transferindo capacidade produtiva e/ou de distribuição para o exterior.
Na realidade, hoje esta distinção também não é tão nítida, principalmente porque as mesmas transnacionais
também dominam o comércio internacional. A Toyota,
por exemplo, vem tentando conquistar o mercado norteamericano através da implantação de montadoras nos
Estados Unidos, mas ao mesmo tempo também exporta
para lá a partir das suas instalações no Japão ou na Inglaterra. Ou ainda, uma empresa alemã que se instalou na
Argentina e a partir daí exporta para o Brasil. E, por último,
exportações de insumos para produtos para outras unidades da mesma empresa (por exemplo, uma empresa norte-americana produzindo peças no Brasil que exporta para
sua unidade no México para montagem final de um pro-
59
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
duto a ser vendido no mercado norte-americano). Sem
dúvida nenhuma, as transnacionais jogam hoje um papel
determinante na organização do comércio mundial.
Mais de dois terços do comércio internacional são controlados diretamente pelas transnacionais, sendo que um
terço desse total corresponde a exportação e importação
dentro de uma mesma transnacional. Este comércio está
estreitamente ligado à formação de acordos regionais que
facilitam este tipo de divisão de trabalho interno. De fato,
todas as formações de blocos comerciais regionais vêm
acompanhadas por uma onda de reestruturação interna que
envolve especialização e reorganização da produção total
de cada empresa presente nos diferentes países envolvidos.
Existe um problema muito discutido relacionado a estas trocas internas. Quem estabelece o registro dos preços
com que esses produtos são importados ou exportados no
interior de uma empresa são as próprias transnacionais. Não
há mecanismos confiáveis para controlar se os preços declarados nessas transações correspondem realmente aos valores envolvidos. A Mercedes-Benz instalada no Brasil
importa caixas de câmbio da Mercedes argentina, o que
aumenta as importações brasileiras. Qual é o valor dessas
transações que aparece na balança comercial brasileira e
como isso repercute sobre a política econômica e fiscal
dos dois países? Isso influencia não só as disputas comerciais (acordos entre governos que buscam equilibrar
as suas balanças comerciais), mas também na arrecadação fiscal. Dessa forma, as transnacionais diminuem o
pagamento de impostos. Este fenômeno é conhecido como
transfer pricing (preços de transferência). Trata-se na realidade de fraude fiscal decorrente do sub ou superfaturamento
nas operações de importação e exportação entre unidades
de um mesmo grupo.
Hoje existem até formas mais sofisticadas manipulando outras variáveis que compõem o preço final das
mercadorias, de difícil aferição, como as despesas com
royalties, pesquisa e desenvolvimento, custos de treinamento e capacitação profissional. Contudo, ainda persistem formas menos sofisticadas, como foi revelado em
setembro de 1997, quando se descobriu que a Ford do
Brasil havia importado 30.000 veículos da Argentina sem
registrar a operação e, portanto, a tarifa zero.
O Gráfico 1 compara as tendências dos fluxos internacionais de investimentos em escala global e no Brasil. É
possível observar uma defasagem no tempo. Em âmbito
internacional, houve um salto a partir de meados dos anos
80. No Brasil, isto se verificou somente no início dos anos
90. Não chegaram a ocorrer desinvestimentos durante a
década de 80. Para manter a capacidade instalada foi, inclusive, utilizada parte dos lucros adquiridos no próprio país.
As empresas atuantes no mercado brasileiro mantiveram sua presença durante os anos 80, aguardando uma
GRÁFICO 1
Tendências dos Fluxos de Investimentos em Escala Global e Nacional
1970-96
Investimentos Internacionais
Investimentos Nacionais
Fonte: Dados Unctad/Nações Unidas.
oportunidade de crescimento, que foi dada pelo plano de
estabilidade econômica. Logo em seguida ao Plano Real,
os investimentos diretos no Brasil explodiram, sendo que,
na sua grande maioria, tratava-se efetivamente de investimentos de empresas já instaladas no Brasil.
Os planos de estabilidade econômica na América Latina, incluindo o Plano Real, ao atrelar a moeda nacional
ao dólar tornaram-se extremamente dependentes da entrada de dinheiro externo. Isto ocorre devido a uma soma
de déficits (maior quantidade de dinheiro saindo do país
do que entrando) decorrentes:
- do pagamento de juros e do principal da dívida externa;
- da valorização da moeda nacional (conseqüência automática do atrelamento ao dólar) provocando um déficit
na balança comercial, porque subitamente as importações
tornaram-se mais baratas e as exportações mais caras;
- dos gastos com turismo, porque tornou-se mais barato
passar férias no exterior que no próprio país;
- das remessas de lucros.
60
NOVA DINÂMICA DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
A soma desses déficits chegou, em 1996, a 24,3 bilhões de dólares (3,1% do PIB). Em 1997, o país registrou um déficit de 33,8 bilhões de dólares (4,2% do PIB)
em sua conta corrente, sem nenhuma perspectiva de diminuição a curto prazo.
Para cobrir estes buracos é necessário que entre dinheiro
em dólar a partir do exterior. A principal fonte é o capital
sem compromisso com a produção ou distribuição de bens
ou serviços. Outra parte corresponde aos empréstimos e
recursos externos tomados por empresas instaladas no
Brasil, porque os juros são muito mais baixos lá fora do
que aqui. E, por último, há os investimentos externos diretos. No entanto, existe uma diferença substancial entre
as formas de entrada de capital: o dinheiro investido na
bolsa de valores de São Paulo ou em aplicações de renda
fixa pode ser retirado a qualquer hora. Já o dinheiro tomado no exterior deve ser pago em dólar, ou seja, na hora
em que o país, por um motivo ou outro, fizer qualquer tipo
de desvalorização, aumentará automaticamente a dívida.
Supõe-se que o capital investido na produção e/ou distribuição tenha um tipo de compromisso mais a longo
prazo. Por isso fala-se em melhorar a qualidade do investimento. Isso é importante para o governo FHC, que alega que estes investimetos externos diretos irão contribuir
para aumentar a produtividade de tal forma que o país,
rapidamente, será capaz de reverter o quadro de déficit
na balança comercial, exportando mais, com qualidade
melhor e a um custo menor, criando um superávit. A Tabela 4 mostra a entrada dos diferentes tipos de capitais.
TABELA 4
Entrada de Diferentes Tipos de Capitais Externos
Brasil – 1993-97
Em bilhões de dólares
Tipos de Capitais
Investimentos
Externos Diretos
“Portfólio”
Empréstimos e
Recursos Externos
1993
1994
1995
1996
1997
0,8
14,9
2,2
21,6
3,3
22,6
9,5
24,7
17,0
(1)...
11,0
8,7
16,8
28,0
(1)...
Fonte: Gazeta Mercantil, 10/02/1997; Banco Central do Brasil.
(1) Dados não disponíveis.
Segundo dados da Revista Exame, do total das receitas obtidas pelas 500 maiores empresas operando no Brasil (incluindo os estatais), 44,1% eram gerados pelas empresas estrangeiras. Isso significa mais de 10 pontos
percentuais acima da participação das transnacionais em
1995 e um recorde desde a entrada das transnacionais no
Brasil. Em 1984 esta participação foi de apenas 27,2%.
A participação da entrada de capital produtivo de fato
está aumentando. Em 1997, os 17 bilhões de dólares cobriram 48% do total do déficit na conta corrente. Porém,
ao mesmo tempo, verifica-se um aumento brutal das remessas de lucro (Gráfico 2).
Este crescimento nas remessas de lucro foi possibilitado por algumas mudanças na legislação brasileira. Até
então, o governo desestimulava por meio da legislação a
repatriação de capitais. As atuais modificações na legislação fazem parte do processo de desregulamentação, que
GRÁFICO 2
Tendência de Remessas de Lucro no Brasil
Brasil – 1970-96
Em milhões de dólares
Em m ilh õ e s d e d ó la r e s
5.0000
4.5000
3.5000
3.0000
2.5000
2.0000
1.5000
1.0000
5000
Anos
00
1970
1972
1974
1976
1978
1980
1982
Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração Sobeet.
61
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
retira a possibilidade de o governo interferir nos investimentos internacionais. Isso também ocorre em âmbito
mundial sob pressão das transnacionais.
Além disso, as atuais estratégias de produção são internacionalizadas, o que significa que os investimentos
produtivos tendem a incentivar as importações. Ou seja,
uma empresa faz um investimento aqui, mas ao mesmo tempo
importa parte dos insumos de outros países, aumentando as
importações. Dos 40 maiores importadores no país, 30 pertencem ao setor de bens de consumo duráveis (automobilístico e eletroeletrônico), exatamente nos quais se concentram
os investimentos das transnacionais no Brasil.
Simultaneamente, as empresas interessadas no Brasil
estão especificamente interessadas no mercado brasileiro
e do Mercosul e não tanto em utilizar o Brasil como plataforma de exportação (como é o caso nas zonas de livre
exportação na Ásia ou na América Central). Portanto, os
investimentos internacionais contribuirão muito pouco
para diminuir o déficit comercial do país.
sua posição histórica como o país de onde provém o
maior volume de investimentos diretos. O crescimento
dos EUA coincide com o aumento do comércio deste
país com o Brasil e com a tentativa do governo norteamericano de intensificar estas relações através de propostas como a Área de Livre Comércio das Américas
(Alca), que, ao contrário do que o nome sugere, não só
envolve a eliminação das barreiras comerciais, mas também a desregulamentação dos movimentos de capitais
entre os países envolvidos. O volume de investimentos provenientes dos chamados paraísos fiscais (Panamá, Ilhas Cayman, Ilhas Virgens Britânicas, Bahamas,
Bermudas, entre outros) é surpreendente. Trata-se em
parte de investimentos feitos por empresas registradas
nestes países, como é o caso da Santista Alimentos, de
capital argentino, mas registrada nas Bermudas. Outra
parte reflete o retorno de investimentos brasileiros no
exterior em anos anteriores (volta de capital de fuga).
Mercado Atraente
TABELA 5
Origem dos Investimentos Diretos
Brasil – 1996
Várias pesquisas sobre os traços comuns e as disparidades entre os grandes mercados consumidores ajudam a
entender por que a estratégia de globalização das transnacionais retoma o interesse pela América Latina, e particularmente pelo Brasil.
É nesta região que se encontra um mercado de consumo com perspectivas de crescimento e a existência
de uma infra-estrutura que facilita tanto a produção
quanto a distribuição. O relatório anual sobre competitividade de 1997 anunciou os cinco países-chaves para
o futuro nas estratégias de executivos: China, Estados
Unidos, Índia, Indonésia e Brasil. No início de setembro de 1997, a Enterprise Oil, empresa britânica do setor
de petróleo, afirmou que havia colocado o Brasil dentro das suas mais elevadas prioridades de investimento. Ao ser indagado sobre o porquê da escolha do Brasil, o gerente geral da empresa respondeu que este país
possui “características diferentes comparadas com outras oportunidades estratégicas, sendo um dos últimos
países a abrir suas portas ao exterior, mas com uma
infra-estrutura já montada e profissionais de boa qualidade. Isto é uma rara combinação de critérios que
surge em um único lugar” (Gazeta Mercantil, 04/09/97).
Para vários gerentes das transnacionais, entre eles o
presidente da Siemens do Brasil, Hermann Wever, o
principal problema brasileiro seria a taxa cambial, que
dificultaria inserir um projeto de investimento no país
em uma estratégia de exportação.
A Tabela 5 dá um quadro dos investimentos no Brasil a partir dos países de origem. Os EUA mantêm a
País de Origem
% sobre o Total dos Investimentos Diretos
EUA
União Européia
América Latina
Ásia
Outros
Paraísos Fiscais
26
39
3
4
9
19
Fonte: Banco Central do Brasil.
CONCLUSÃO
Mudanças na política do governo brasileiro em relação à regulamentação dos investimentos e do comércio
internacional coincidiram com alterações nas estratégias
das transnacionais. Isso fez com que o Brasil se tornasse
um alvo privilegiado para os investimentos externos diretos e o será por vários anos ainda. Porém, o recorde de
entrada de capitais produtivos não se tornou um catalisador para garantir taxas de crescimento macroeconômico.
A saúde da economia brasileira continua dependendo principalmente da alavancagem dos investimentos internos.
É verdade que a produtividade medida como produção/
trabalhador aumentou 50% entre 1991 e 1996. Neste
mesmo período, cresceu a participação dos investimentos das transnacionais sobre o total bruto de formação de
capital de 1% em 1990 para 6,6% em 1996, com perspectiva de chegar rapidamente a 10%. Entretanto, é importante enfatizar que a taxa de investimento da economia
62
NOVA DINÂMICA DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS
brasileira ainda é muito baixa e não está dando sinais de
crescimento (menos de 17% do PIB). Estima-se que seja
necessário alcançar uma taxa entre 25% a 30% para garantir um desenvolvimento sustentável e equilibrado. Ou
seja, o crescimento dos investimentos externos não demonstra, como alegado pelo governo, a capacidade de
alavancar os investimentos internos.
GAZETA MERCANTIL. São Paulo, 04/09/97.
NUNNENKAMP, P. “Foreign direct investment in Latin America in the era of
globalized production”. Transnationals corporations. New York/Geneva,
Nações Unidas, v.6, n.1, abril 1997, p.51-81.
SOBEET. Carta da Sobeet. São Paulo, n.1-4, 1997.
UNCTAD/Nações Unidas. Transnational corporations, employment and the
workplace. World Investment Report 1994. New York/Geneva,1994.
__________ . Transnational corporations and competitiveness. World
Investment Report 1995. New York/Geneva, 1995.
__________ . Trade and international policy arrangements. World Investment
Report 1996. New York/Geneva, 1996.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
__________ . Transnational corporations, market structure and competition
policy. World Investment Report 1997. New York/Geneva, 1997.
ARRIGHI, G. O longo século XX. Rio de Janeiro, Unesp, 1996.
__________ . Incentives and foreign direct investment. World Investment Report
1995. New York/Geneva, 1996.
63
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
CAPITALISMO
novas dinâmicas, outros conceitos
LADISLAU DOWBOR
Professor da PUC-SP e da Universidade Metodista – SP. Autor de A reprodução social.
comparável. A lógica microeconômica não vai muito
além. A idéia era que o padeiro teria todo interesse em
produzir pão bom, barato e em quantidade, pois assim
ganharia muito dinheiro; e da preocupação do padeiro
consigo mesmo resultaria a fartura de pão para todos.
Nascia a visão utilitarista, que acabaria por tornar-se a
única filosofia realmente existente no chamado liberalismo. A visão do padeiro e a crença na resolução automática das tensões macro que resultam de milhões de decisões microeconômicas tornam-se ridículas num planeta
que enfrenta o impacto dos gigantescos grupos transnacionais, as poderosas redes de comércio de armas, os
monopólios da mídia mundial, a destruição acelerada da
vida nos mares, o aquecimento global, o acúmulo das
chuvas ácidas, a especulação financeira globalizada, o
comércio ilegal de drogas, órgãos humanos e prostitutas
infantis, e tantas outras manifestações de um processo
econômico sobre o qual perdemos o controle. O capitalismo global realmente existente é uma coisa nova e os
conceitos de sua análise ainda estão nas fraldas. Aplicarlhe os velhos conceitos de Smith ou de Ricardo e acreditar no poder mágico de uma coisa hoje complexa e diferenciada, que chamamos abusivamente de mercado, levanos aqui também às fotografias amareladas.
Não é surpreendente nossa dificuldade de repensar o
universo social numa perspectiva nova. Primeiro, porque
as mudanças foram rápidas em termos históricos, ou até
vertiginosas, mas se deram de maneira progressiva, sem
um momento preciso de ruptura. Em conseqüência, fomos “espichando” de certa forma os nossos conceitos, para
cobrir uma realidade cada vez mais diferente. O lumpemproletariado adquiriu forma mais ampla no âmbito da
exclusão social, o proletariado evoluiu para um conceito
mais geral de classes trabalhadoras e assim por diante.
Io non so ben ridir com’io v’entrai
Tant’era pieno di sonno a quel punto
Che la verace via abbandonai
Dante. Divina Comédia1
S
empre fomos um pouco propensos a representar a
verace via. Saber o caminho é ótimo. Permite um
olhar confiante para o futuro e um caminhar que
ignora os sacrifícios. Esta confiança está sendo abalada
por transformações profundas, que nos deixam perplexos.
A verace via consistia em economias nacionais, centradas na produção industrial e dirigidas por burguesias
que tinham esgotado seu papel histórico, devendo dar lugar à nova classe trabalhadora que assumiria o leme mediante a socialização dos meios de produção. A transformação se daria através do controle do Estado. Uma fria
comparação com o mundo em que vivemos nos dá a dimensão da mudança de parâmetros. Considerar esta versão da diritta via produz em nós a mesma sensação que
experimentamos ao olhar as antigas fotos amareladas de
um álbum de família. A mudança é qualitativa, com todo
o peso que isto tem para as nossas visões teóricas.
A verace via consistia na especialização de cada nação na área onde tivesse vantagens comparativas e no livre fluxo de decisões microeconômicas, guiadas pelo
simples interesse pessoal. O que resta das vantagens comparadas quando 3,5 bilhões de habitantes dos países de
baixa renda somam um PIB de um trilhão de dólares, enquanto o grupo de países ricos soma 17 trilhões, 78% do
PIB mundial, apesar de ter menos de 15% da população?
Vantagens econômicas comparadas só podem existir se o
poder político e econômico dos atores for minimamente
64
CAPITALISMO:
Chamar de mercado o sistema de poder articulado de cerca
de 500 empresas transnacionais, ou as transações intraempresariais a preços administrativos que hoje envolvem
35% do comércio mundial, tornou-se insustentável, levando ao surgimento de curiosos remendos como managed
market. Quando a criança cresce, pode-se encompridar
as mangas da camisa. Chega um momento, no entanto,
em que se torna necessário buscar outra camisa.
Segundo, porque os objetivos de uma sociedade justa e
solidária, no quadro de uma ampla liberdade individual,
continuam prementes nas nossas motivações; hesitamos em
avançar para conceitos novos quando os antigos, bem ou mal,
constituem um instrumento razoável de resistência contra a
barbárie tecnológica que gradualmente se instala. Agarramonos às soluções simplificadoras de outros tempos, estatização para uns, mercado para outros, mais na linha da resistência e do temor em face das transformações em curso, do
que propriamente por acreditar no poder ilimitado destes
instrumentos. E a resistência é natural: nenhuma pessoa normalmente dotada de ética e bom senso olha com tranqüilidade para este mundo novo. E a preocupação não se resume
à esquerda. O empresário efetivamente produtivo – não o
controlador dos cassinos globais – ainda acredita que está
defendendo a liberdade de iniciativa, embora cada empresa
que fecha ou que segue o caminho da Metal Leve o deixe
com mais dúvidas. O ativista social defende o Estado como
trincheira contra o vale-tudo das transnacionais. Somos um
pouco como o alpinista que busca novos pontos de apoio.
Nesta frágil luta contra um poder global e avassalador, já
entendemos que os pontos de apoio que nos sustentam têm
de mudar, porque a médio prazo são insustentáveis, mas
hesitamos em abandoná-los antes que surjam alternativas
mais claras. Aqui também, o “salto” exige coragem, já que
ninguém quer se lançar no vazio.
Nosso estômago, sem dúvida, ainda alimenta nossas
polarizações emocionais em torno do grande duelo entre
empresa e Estado, que caracterizou o século XX. Mas em
nossas cabeças começa gradualmente a surgir a compreensão de que precisamos repensar os caminhos. Não é mais
uma simples polarização esquerda-direita que aflora na
preocupação tão bem resumida por Ignacio Ramonet: “Nos
dez próximos anos, duas dinâmicas contrárias vão provavelmente jogar no planeta um papel determinante. Por um
lado, os interesses das grandes empresas mundializadas,
movidas por interesses financeiros, que se servem da
tecnociência com um espírito exclusivo de lucro. Por outra parte, uma aspiração à ética, à responsabilidade e a
um desenvolvimento mais justo que leve em conta as exigências do meio ambiente sem dúvida vitais para o futuro da humanidade” (Ramonet, 1998).
É um caminho precário, repleto de fragilidades. Mas
tem de ser trilhado, pois os nossos tradicionais e inex-
NOVAS DINÂMICAS, OUTROS CONCEITOS
pugnáveis bunkers intelectuais, que se tornaram confortáveis na medida em que os recheamos de verdades definitivas, já não se sustentam. A guerra mudou de rumo,
ou, como diz Octavio Ianni, a política mudou de lugar
(Ianni, 1998).
Mais do que buscar novas sínteses teóricas, talvez seja
útil, nesta fase, sistematizar as mudanças em curso e identificar novas tendências. Não se trata aqui, portanto, de
discutir alguma macroteoria alternativa, e sim de colocar
na mesa algumas das novas cartas com as quais temos de
jogar.
Do grande relógio à sociedade complexa – Uma coisa é
aguardar o gênio teórico que colocará ordem nas coisas.
Outra é perguntar-se se há alguma ordem nas coisas. Em
outros termos, existe de fato um mecanismo globalmente
inteligível, ou somos mesmo este emaranhado de interesses que se cruzam e se cruzarão de maneira caótica e imprevisível? Na realidade, a partir de um determinado número de variáveis e dinâmicas, a previsibilidade se torna
limitada. Há alguns anos, me perguntaram para onde eu
achava que ia a Nicarágua. Como assessor na área de planejamento no núcleo de governo, eu deveria ter alguma
idéia. Na realidade, não é questão de se ter as informações e a teoria adequada de interpretação: trata-se do fato
de que as inúmeras variáveis – envolvendo desde a corrupção da contra até os momentos eleitorais dos Estados
Unidos e brigas internas das oligarquias nicaraguenses,
além das possíveis erupções vulcânicas – nos obrigam a
uma modéstia radical em termos de análise e à busca de
uma avaliação científica da própria compreensibilidade
das situações que emergem. Precisamos, de certa maneira, de um choque de modéstia interpretativa.
Da grande visão às alternativas viáveis – Isto não implica inação ou impotência social, e sim uma mudança de
enfoque. De certa forma, não se trata mais de definir a
sociedade ideal, a grande utopia, e batalhar o espaço político de sua realização. Gradualmente, passamos a buscar as ações evidentemente úteis, como a distribuição da
renda, a melhoria da educação e outras iniciativas que correspondem a valores relativamente óbvios de dignidade e
de qualidade de vida. Por outro lado, à medida que identificamos tendências críticas da sociedade – o aquecimento
global, a destruição dos mares, a exclusão social de segmentos mais frágeis da sociedade – buscamos gerar as
contratendências. Este enfoque não é necessariamente
“pequeno”. Ao contrário, abre possibilidades de ação para
qualquer cidadão, através de iniciativas individuais, de
grupos, vizinhanças ou associações, buscando o chamado bem público. Ao evidenciar resistências à mudança,
torna as opções políticas e as mudanças estruturais mais
claras. É uma condição não suficiente, mas necessária,
da construção da política mais ampla.
65
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
A articulação dos objetivos econômicos, sociais e ambientais – Centrar-se no crescimento econômico e esperar que o resto decorra daí, através do mágico processo
de trickling down, não é realista e faz parte da utopia dos
equilíbrios naturais, versão liberal das ilusões sociais. A
compreensão do bem público está se tornando razoavelmente consensual. Centrar as atividades nos objetivos
econômicos e esperar que a justiça social e o respeito ao
meio ambiente surjam como subproduto da riqueza gerada é hoje tão absurdo como tentar centrar tudo na justiça
social sem assegurar os recursos econômicos dos investimentos sociais; e nenhuma destas atividades terá sentido
se continuarmos a destruir o planeta. O objetivo geral resume-se na fórmula bastante simples que hoje se encontra nos manuais das Nações Unidas: precisamos de um
desenvolvimento economicamente viável, socialmente
justo e sustentável em termos ambientais. Atingir um dos
objetivos sem atentar aos outros não resolve a questão. E
não basta dizer que o sistema vigente é menos ruim do
que todos outros: é como a alternativa entre cair do vigésimo ou do décimo andar.
A articulação do Estado, empresas e sociedade civil –
A articulação destes objetivos não se fará milagrosamente
através da boa vontade das empresas, hoje centradas no
lucro a qualquer custo, ou de alguma milagrosa recuperação da capacidade de ação do Estado, ou ainda através das
ainda muito frágeis organizações da sociedade civil. A
irrupção da sociedade civil organizada na arena política
deve-se, sem dúvida, ao sentimento cada vez mais generalizado de que nem as macroestruturas do poder estatal,
nem as macroestruturas do poder privado, responderão às
necessidades prosaicas da sociedade quanto a qualidade
de vida, respeito ao meio ambiente, geração de um clima
de segurança, preservação do espaço de liberdade e criatividade individuais e sociais. Na elegante formulação de
Claus Offe, já nos digladiamos demasiado entre os que querem todo o poder ao Estado, uma privatização generalizada com poder irrestrito às empresas, e os que apregoam
um poético small is beautiful generalizado, repleto de comunidades e tecnologias alternativas (Offe, 1998). O primeiro nos deu o encalacramento comunista; o segundo, as
tragédias sociais do liberalismo – e a própria base política
da alternativa comunista –; e o terceiro é ótimo, se não
nos levar à revivência de um tribalismo opressivo, além
de constituir um elemento necessário, mas não suficiente,
dos equilíbrios políticos necessários à sociedade. A palavra-chave, aqui, é evidentemente a articulação dos três elementos do triângulo. Somos condenados a articular de maneira razoavelmente equilibrada os poderes do Estado, das
empresas privadas e das organizações da sociedade civil. A
visão das soluções políticas centradas na privatização ou no
estatismo constituem simplificações hoje insustentáveis.2
Objetivos sociais e direitos democráticos: da assistência à participação – Não é suficiente atingir os objetivos
sociais assim definidos: é preciso atingi-los de maneira
democrática. Em outros termos, a articulação de Estado,
mercado e sociedade civil em torno dos grandes objetivos não constitui uma simples opção de eficiência técnica. Ao deixar de lado a visão da utopia acabada, preferindo a construção e reconstrução permanente dos objetivos
sociais, optamos pelos meios democráticos de tomada de
decisão como elemento central da construção dos objetivos. Não basta que uma empresa, ou o Estado, faça algo
que seja bom para as populações. Trata-se de compreender que o direito de construir o próprio caminho, e não
apenas o de receber coisas úteis sob forma de favor, seja
do Estado ou de empresas, constitui uma parte essencial
dos nossos direitos. Nenhum ator político ou econômico
tem o direito de impor-me algo, sob a justificativa de que
é para o meu bem, sem dar-me os instrumentos institucionais de me informar, de manifestar minha opinião e
de participar do processo decisão. Neste sentido, inclusive, a realidade é que as formas atuais de tomada de decisão do Estado e das grandes empresas privadas são muito
semelhantes: ambas transformam o cidadão em um sujeito passivo e manipulado. O eixo da cidadania desponta como
uma questão essencial das transformações atuais.
O controle empresarial: do poder difuso ao poder hierarquizado – O momento que vivemos é de uma formidável predominância dos interesses empresariais. Estes
constituem a única força articulada em âmbito mundial,
tendo se apropriado de grande parte dos mecanismos de
decisão dos Estados nacionais, e construindo uma imagem positiva de si mesmos através do monopólio que exercem sobre os sistemas de comunicação. Durante um tempo, a multiplicidade das empresas assegurava que a
influência preponderante do setor privado nas decisões
políticas da sociedade mantivesse uma certa democracia,
ao dispersar de certa forma o poder. Hoje, alguns megaatores econômicos, os Gates, Turner, Murdoch e tantos
outros, navegam como donos do planeta, gerando um tipo
de “grupo social transnacional”, para usar a fórmula de
Leon Pomer, diante do qual nada resta ao comum dos
mortais senão a frágil cidadania, que produz impotência
e desânimo políticos, ou a simples exclusão social, no caso
dos cerca de 3,5 bilhões de miseráveis que compõem dois
terços da população do planeta. Claramente, na articulação Estado-mercado-sociedade civil, hoje há um segmento
que desequilibra completamente o processo de desenvolvimento social.
A fragilização do Estado – Nestas condições, não é surpreendente o rápido desgaste das formas tradicionais de
política junto às populações. Nos Estados Unidos, um
presidente é eleito com menos de um quarto dos votos do
66
CAPITALISMO:
país, e mesmo estes são em grande parte obtidos através
de financiamentos milionários de empresas privadas, do
chamado “mercado”. A tão pouco subversiva Business
Week comenta que o apoio de Murdoch para a preservação dos conservadores no poder durante duas décadas na
Inglaterra foi“instrumental”. Murdoch foi eleito? O próprio fato de muitos processos econômicos terem-se deslocado para a arena internacional, no quadro da chamada
globalização, torna o Estado impotente em face dos grandes movimentos mundiais de especulação financeira, de
concentração de renda, de destruição ambiental. Ademais,
o essencial para a sobrevivência de um governo eleito é
estar bem com os grandes grupos econômicos. Para isso,
deve jogar o jogo destes, sob pena de se ver privado dos
investimentos ou de se tornar alvo de ataques financeiros
especulativos e da opinião dos grandes meios mundiais
de comunicação. Uma fusão recente de bancos gerou um
grupo financeiro com 700 bilhões de dólares de capital.
As transferências especulativas atingem a ordem de 1,3
trilhão de dólares por dia. Meia dúzia de grandes países
consegue ultrapassar um trilhão de dólares de produção
de bens e serviços por ano. Na instigante expressão de
Kurtzman (1993), hoje é o rabo que abana o cachorro.
Assim, o Estado se vê cooptado e perde a sua capacidade
de exercer um contrapeso político, e de equilibrar os objetivos econômicos, sociais e ambientais. As grandes corporações, na euforia do pós-comunismo, geraram um
amplo movimento privatista, culpando o Estado por todos
os males. Esta tendência vem sendo vista como perigosa para
o conjunto do processo de reprodução social, já não só pela
esquerda, mas também por um grupo crescente de atores
sociais de um espectro político mais amplo.
O contrapeso da sociedade civil – Talvez a mudança mais
significativa na visão dos novos rumos seja a compreensão do papel da sociedade civil organizada ou das “organizações da sociedade civil”, como são chamadas hoje
pelas Nações Unidas as incontáveis ONGs – Organizações Não-Governamentais, OBCs – Organizações de Base
Comunitária e semelhantes. Como muitos ainda olham
com descrença para as organizações da sociedade civil
(OSC), é útil lembrar que nos Estados Unidos, onde é
chamado de non-profit sector, este setor emprega 15 milhões de pessoas; em 1995 cerca de 80% dos americanos
pertenciam a algum tipo de associação e mais de 100 milhões de pessoas informaram já ter prestado algum tipo
de trabalho voluntário. Em termos estritamente econômicos, estamos falando de uma contribuição para o PIB
americano da ordem de 800 bilhões de dólares, o que
equivale a um PIB do Brasil, só neste setor. O governo
americano contribui com cerca de 200 bilhões de dólares
por ano, assegurando um sem-número de atividades sociais, contribuindo para a solidariedade e a coerência do
NOVAS DINÂMICAS, OUTROS CONCEITOS
tecido social e para a produtividade econômica (Dulany,
1998 e Salamon, 1997). No conjunto, este setor é relativamente forte e presente nos países desenvolvidos e fraco nos países pobres, onde a política se resume ao tradicional dueto de gabinete entre oligarquia privada e oligarquia
estatal. Com as novas tecnologias que facilitam a conectividade e a urbanização que favorece a organização local,
abre-se um grande espaço de modernização da gestão
social.
Do tripé estatal ao tripé social – Situar a discussão neste plano significa um avanço. Estamos acostumados, no
Brasil, a colocar o problema em termos dos três poderes,
com discussões sobre presidencialismo (mais executivo)
ou parlamentarismo (mais legislativo), ou ainda sobre o
controle do judiciário pelos outros poderes. A sociedade
civil entra normalmente pela portinha dos partidos políticos. Busca-se a legitimidade política perdida no voto distrital, na moralização do financiamento das campanhas e
assim por diante. E se não temos políticos adequados, é
porque não sabemos votar. O setor privado oculta seu
poder político organizado e aparece apenas com contribuições (poderosas ainda que discretas) para as campanhas, além dos lobbies, como educadamente se chama no
Brasil a corrupção sistêmica. O tripé social nos coloca em
outro nível. Trata-se de reconhecer formalmente o poder
político (real) das empresas e o poder político (necessário) da sociedade civil organizada; de resgatar a capacidade do Estado de organizar o novo pacto social, que o
país precisa, reforçando-o; de tirar as grandes empresas
de dentro dos ministérios, do Congresso e do Judiciário,
desprivatizando o Estado; finalmente, de dinamizar a organização da sociedade civil para poder exercer efetivamente seu papel de controle do Estado, de contenção ou
compensação dos abusos do setor privado e de recuperação de um mínimo de cultura de solidariedade social, sem
a qual nem a economia nem a sociedade serão viáveis.
Com isto, o debate se desloca da discussão obsessiva sobre se será melhor o poder nas mãos das oligarquias empresariais ou das oligarquias políticas, situando o problema no âmbito da relação entre poder econômico, poder
político e sociedade civil.
Da sociedade manipulada à sociedade informada –
Chamar de democracia a situação que vivenciamos constitui, sem dúvida, um ato de bondade. Visto que nossa
história é permeada de longas fases de ditadura, reagimos como o pobre que foi obrigado a colocar um bode
dentro do barraco: quando se tira o bode, o alívio é imenso. Só que o pobre continua pobre e a casa continua sendo um barraco. Para passarmos da política do bode para
uma política de progresso social organizado, assegurando um mínimo de equilíbrio entre Estado, mercado e sociedade civil, é preciso que esta seja devidamente infor-
67
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
mada – o que implica a democratização do controle sobre
os meios públicos de comunicação, a mídia. Para isto, é
importante reconhecer a centralidade dos processos culturais e de comunicação particularmente a esquerda, que
tende a centrar a discussão nas alternativas econômicas.
Os pilares tradicionais do poder das oligarquias – as armas e os recursos econômicos, tornaram-se relativamente menos importantes do que a nova possibilidade, para
os que controlam a mídia, de entrar em cada domicílio,
em cada sala de espera, em cada dormitório, sempre com
uma mensagem sobre o que se deve pensar de cada coisa,
sobre como vencer na vida correndo e dominando os outros. Orientam-se assim, geralmente de forma implícita,
os rumos e valores da imensa maioria da população, formando um tipo de inércia intelectual que pesará como um
molusco gigantesco e informe sobre qualquer idéia nova,
qualquer impulso de generosidade, qualquer pensar diferente. Passamos a querer aquilo que se espera de nós. Hoje,
muito mais importante do que discutir o controle de uma
siderúrgica e os monopólios do Estado é pensar em como
reduzir o monopólio sobre os meios de comunicação. Não
se trata, evidentemente, de estatizar a mídia, substituindo
um monopólio por outro, mas de assegurar uma multiplicidade e riqueza de fontes diversificadas e descentralizadas de informação, na linha das redes em que a Internet
já nos aponta para paradigmas renovados de organização
social. A informação, a comunicação e a transparência,
que ambas tornam possível, constituem os instrumentos
por excelência da presença da sociedade civil no processo político e o elemento essencial da coerência do conjunto.
Da filosofia da pirâmide à filosofia da rede – Nossa visão
da organização social continua centrada na pirâmide, no
sistema que herdamos do Vaticano ou das legiões romanas, em que um manda em dois, que, por sua vez, mandam em quatro e assim por diante, sendo a complexidade
crescente enfrentada com a multiplicação de níveis. Sabemos que a partir de um certo número de níveis hierárquicos o topo da pirâmide passa a viver de ilusões sobre
o que decide e a base passa a viver de ilusões de que alguém manda racionalmente no processo. Na realidade,
nada funciona. Fazer funcionar a saúde, que é um serviço
capilar e, portanto, tem de chegar a cada cidadão nos quatro cantos do país, a partir de um comando centralizado
em Brasília, com dezenas de níveis e os meandros correspondentes, constitui simplesmente uma impossibilidade
administrativa. Temos a oligarquia que temos não porque o povo não sabe votar ou porque somos mais corruptos. A complexidade, o ritmo de mudança e a diversidade
de situações de uma sociedade moderna tornam a velha
verticalidade romana ou prussiana inviável. Por outro lado,
o fato de a população ter-se urbanizado, formando espaços articulados e organizáveis na base da sociedade, abre
perspectivas para uma descentralização e uma democratização radicais das formas como nos gerimos. Em outra
época, isto poderia levar a uma desarticulação do sistema
político mais amplo. Hoje, os novos sistemas de informação e de comunicação permitem que o sistema seja descentralizado e funcione em rede, substituindo, em grande
parte, a hierarquia de mando pela coordenação horizontal. Trata-se de uma mudança de paradigma que já penetrou em uma série de áreas empresariais e constitui a filosofia de trabalho de muitas organizações da sociedade
civil, enquanto dá apenas os primeiros passos na nossa
visão da organização do Estado.
A diversidade das soluções institucionais – Uma sociedade organizada em rede e vivendo em ambiente rico em
informação busca, de forma flexível, soluções institucionais sempre renovadas. É natural que a área produtiva se
organize em função do mercado, ainda que seja essencial
o controle sobre as atividades produtivas que afetam bens
naturais passíveis de esgotamento e outras áreas. A área
das infra-estruturas, em particular de energia, água e transportes, exige forte participação estatal – pois se trata de
grandes investimentos, com retorno de longo prazo e de
efeitos econômicos difusos –, como também planejamento
para assegurar coerência de longo prazo. A área social,
que compreende educação, saúde, cultura, comunicação,
esportes e outros, funciona mal com a burocracia tradicional de Estado, mas pior ainda com a comercialização
e a burocratização privada: basta ver a catástrofe que representam as intermédicas privadas, a explosão da medicina curativa em detrimento da prevenção e de outras tendências que afetam diretamente nossa qualidade de vida.
Nesta área, não é nem a burocracia estatal nem o lucro
privado que pode assegurar o funcionamento adequado,
mas uma forte presença da comunidade organizada. O
problema, portanto, não consiste em escolher entre a estatização e privatização, segundo as opções ideológicas,
mas em construir as articulações adequadas entre Estado,
mercado e comunidade, por um lado, e os diversos níveis
de Estado – poder central, estadual e municipal –, por
outro. A isso se acrescenta o fato que não basta privatizar
ou estatizar, pois um hospital pode ser de propriedade
privada, com a gestão de uma organização comunitária
sem fins lucrativos, o controle de um conselho de cidadãos e a regulamentação do governo do Estado. Ou pode
ser um hospital do Estado, gerido por um grupo privado,
sob controle de um conselho municipal. Este tipo de articulação não cabe, naturalmente, nas nossas simplificações
ideológicas, mas é neste sentido que, com certeza, teremos de evoluir para resgatar a utilidade social de nossos
esforços. Se há um potencial que as novas tecnologias nos
oferecem, é justamente a possibilidade de uma gestão muito mais flexível e adaptada a condições diferenciadas.
68
CAPITALISMO:
A dimensão espacial dos objetivos sociais – Se as soluções são diversificadas e a realidade moderna mais complexa, além de fluida, pelo próprio ritmo das transformações que vivemos, em algum nível as diferentes iniciativas
devem se articular em função do que se tem chamado de
qualidade de vida – objetivo que constitui, em última instância, a razão de todos esses esforços. A cidade, que,
queiramos ou não, transformou-se na célula básica da
estrutura institucional e da nossa vida social, precisa assumir sua função de integradora das diversas iniciativas,
sejam privadas, estatais ou de organizações da sociedade
civil. Não tem sentido o Estado arborizar as ruas, embelezar a cidade e desassorear os rios enquanto as indústrias jogam resíduos químicos e as incorporadoras ocupam várzeas e desmatam encostas. Iniciativas conjuntas
de instituições que obedecem a objetivos totalmente diferentes não contribuirão para a construção sinérgica
de objetivos sociais, a não ser através da mediação de
instituições que promovam as convergências. Uma empresa privada na área produtiva atinge, ainda que no âmbito microeconômico, uma grande eficiência, porque se
não for eficiente fecha: de certa forma, tem de se adaptar
a um controle externo que é a sanção do lucro. Uma cidade, por sua vez, tem de buscar um mínimo de eficiência,
que poderíamos qualificar de “produtividade social”, para
evitar, por exemplo, o absurdo de uma cidade como São
Paulo se ver paralisada… por excesso de meios de transporte. Chegar à modernidade para andar a 14 quilômetros/hora em média, a bordo de máquinas que custam
dezenas de milhares de dólares e foram construídas para
rodar a mais de 150/hora – isto quando todos conhecem
as soluções técnicas adequadas para resolver o problema –,
obriga-nos a repensar a forma como nos gerimos. Pondo
de lado monstros do tamanho de São Paulo, que constituem uma realidade à parte, o fato é que a cidade constitui a unidade básica em que a economia privada, as políticas sociais do Estado em seus diversos níveis ou da
sociedade civil, os objetivos ambientais, as redes de resgate da pobreza crítica e outros objetivos podem se articular em torno de uma proposta que tenha pé e cabeça.
Entendemos cada vez melhor que, à medida que o mundo
entra na órbita surrealista da chamada economia global,
precisamos reforçar a âncora que nos serve de apoio.
A desintermediação do Estado – A África do Sul, país
que acumulou problemas econômicos e sociais extremamente parecidos com os nossos, vem ensaiando uma experiência interessante. A dinâmica se revela com clareza
no funcionamento do principal fórum de negociação de
consensos do país, o National Economic Development and
Labor Council – Nedlac. O conselho reúne os grandes do
movimento sindical, das empresas, das finanças, do movimento comunitário, para discutir soluções concretas para
NOVAS DINÂMICAS, OUTROS CONCEITOS
problemas-chave do país. Uma vez que se chegou a um
acordo e a compromissos formais por parte dos atores que
efetivamente movem a máquina econômica e social do
país, as decisões são enviadas ao Congresso para a elaboração da legislação correspondente. De certa forma, ao
invés de fazer a política através de terceiros, as decisões
são tomadas diretamente junto aos interessados; os parlamentares, cuja função é legislar, legislam. O que o governo Mandela está fazendo, na realidade, é enriquecer o
tecido de controle da sociedade civil sobre o Estado e a
própria área econômica, ultrapassando a absurda alternativa que nos é oferecida de sermos controlados ou por
monopólios públicos ou por monopólios privados. Ove
Pedersen analisa o que qualifica de “economia negociada” no sistema que emerge nos países escandinavos: “O
sistema de cooperação política generalizada é muito mais
do que um instrumento de tomada de decisão e de coordenação de um conjunto policêntrico e de vários níveis
de instituições. O sistema no seu conjunto pode ser visto
como um pré-requisito institucional para uma economia
negociada. Uma economia negociada, portanto, pode ser
definida como um instrumento de estruturação da sociedade, onde uma parte essencial da alocação dos recursos
é conduzida através de um sistema generalizado de cooperação política entre centros independentes de tomada
de decisão no Estado, nas organizações e nas instituições
financeiras” (Nielsen e Pedersen, 1991).3 Já tivemos alguns ensaios, com as câmaras setoriais, e já temos excelentes resultados institucionalizados, como na prefeitura
de Porto Alegre e outras, com os orçamentos participativos. As resistências, dada a composição e o atraso das
oligarquias privadas e estatais no Brasil, são compreensíveis. No entanto, vem emergindo gradualmente uma nova
cultura político-administrativa, uma nova compreensão de
cidadania e da própria função da política, que provavelmente pouco terá a ver com os modelos puros de visão estatista
ou liberal. Não se trata mais de “vitória” de um sobre o outro, e sim do surgimento de uma resultante que tira um pouco de cada um, mas constrói algo novo. A realidade é que a
área das grandes empresas privadas, de tanto se proclamar
vitoriosa em face da situação cada vez mais caótica em termos econômicos, sociais e ambientais, arrisca-se, se não a
participar ativamente de uma construção política mais equilibrada, a ser a primeira a sofrer a ressaca do processo.
Das classes redentoras à visão de atores sociais e de
cidadania – Esta visão implica, por sua vez, a revisão
dos conceitos que utilizamos para definir os atores sociais.
Curto ou longo, nosso século é marcado por uma visão
messiânica de classes redentoras, burguesa na visão capitalista, proletária na visão socialista. Como a condição
de cada classe depende de sua inserção nos processos produtivos, tudo se centra, de certa maneira, na oposição entre
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
quem é dono da fábrica e quem a faz produzir, quem tem
lucro e quem recebe salário. A centralidade da fábrica nos
processos produtivos está se esvanecendo com extrema
rapidez, seguindo a transformação do peso específico da
agricultura, com algumas décadas de distância. A complexidade dos subsistemas econômicos que se formaram
na economia realmente existente é tal que falar em macrocategorias deste tipo se torna demasiado simplificador.
A forma de inserção nos processos produtivos não deixa
de ser importante para informar as posições políticas, mas
já não tem a centralidade que teve. Hoje eles se cruzam
com mais riqueza e maior complexidade, com divisões
de classe tradicionais cujas atitudes resultam de corporativismos profissionais mais ou menos estreitos, com raízes regionais (pertencer a um bairro, a uma comunidade,
a uma cidade, a uma minoria lingüística ou outras influências que resultam já não do espaço de trabalho, mas do
espaço de residência, no quadro do que John Friedmann
chamou de life-space), com outros elementos de definição ideológica, que nos levam freqüentemente à incômoda sensação de que não basta nos definirmos como esquerda ou direita, pois as diversas instâncias de definição
ideológica se entrelaçam de diversas maneiras. Tende a
emergir com força, mais uma vez, o conceito de cidadania, de universalidade de direitos humanos articulada com
expressões individuais ou sociais diferenciadas.
“Nós” e “eles”: a nova importância do corte ético –
Estes novos cortes nos obrigam naturalmente a um exercício ambíguo de definição dos grupos com os quais nos
identificamos. Ao falarmos de uma sociedade que deverá
se gerir articulando cruzamentos mais complexos de inserção social, atores sociais diferenciados e direitos universais, ficamos racionalmente convencidos da nova complexidade. No entanto, quando abrimos o jornal e vemos
um retrato de Collor, o sorriso estilo ACM ou Maluf, sabemos perfeitamente onde não estamos, a visão de mundo com a qual não nos identificamos. O mundo, de certa
forma, se torna novamente simples. Onde passa esta fronteira que não representa rigorosamente uma compreensão racional de classes diferenciadas, mas que corresponde
rigorosamente a uma gestalt intuitiva que nos diz que sabemos de que lado estamos? Jordi Borja define de maneira bastante clara este divisor de águas: há políticos, empresários, jornalistas, chefes das mais variadas igrejas,
animadores de programas de televisão, juristas, cuja força política resulta de um apelo organizado que joga um
ser humano contra outro, como a competição desenfreada, o racismo, a justiça exercida como vingança, a xenofobia, o machismo, a arrogância da riqueza, a gozação e
o desprezo pelo mais frágil e assim por diante; e há projetos políticos que buscam valorizar o que o ser humano
tem de mais generoso, fundamentando seu discurso na
solidariedade, na tolerância, no respeito e valorização das
diferenças, na justiça social. Em geral, verdade seja dita,
a primeira opção, ao “jogar” com o que o ser humano tem
de mais frágil, tende a ser a maneira mais fácil de fazer
política, de articular forças sociais. As pessoas podem se
sentir valorizadas ao ver valorizado o que têm de mais
escuro. É a política, a economia, a mídia, a cultura pelo
lado do estômago. As novas tecnologias – veja-se o sucesso do bispo Macedo, de Le Pen, de Gingritch, do próprio Collor – tornam estas propostas extremamente
poderosoas. Li uma vez no Sunday Times um artigo cheio
de falsidades aberrantes sobre um país africano, que por
acaso conheço bem: fiquei impressionado com o número
de pessoas extasiadas, que repetiam com satisfação o
tradicional “é isso mesmo”. Confirmar as pessoas nos seus
preconceitos faz um jornalista ser visto como bom jornalista, muito mais do que colocar no papel as problemáticas realidades. O essencial, para nós, é que este divisor
de águas pode ser complexo, atravessar e dividir sindicatos, partidos, associações, redações de jornais e, em todo
caso, não se resume no tradicional corte entre esquerda e
direita, entre uma e outra classe. E compreender esta divisão tornou-se essencial, na medida em que questões, que
vão desde a sobrevivência do planeta até o prosaico sentimento de felicidade no nosso cotidiano, exigem uma
nova ética social. Esta, por sua vez, não poderá materializar-se sem uma aproximação dos atores sociais capazes
de sustentá-la.
Projeto político e espaço global – Por bonita que seja, a
visão que articula Estado, empresas e sociedade civil,
buscando uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável, choca-se com
o fato evidente de a economia ter-se tornado em grande
parte global, enquanto os instrumentos políticos continuam nacionais. E os governos, conforme vimos, ainda
que tenham sido eleitos por partidos de orientações diferentes, têm hoje como proposta central alinhar-se nas exigências do sistema financeiro mundial, pela simples necessidade de sobreviver, de não se verem quebrados pelo
sistema global. É estranho ver a que ponto está confusa a
divisão entre pessoas e atores sociais que defendem posições mais nacionalistas e os que se extasiam com a globalização. Aqui também encontram-se na defesa de argumentos semelhantes pessoas que nunca sentariam uma
ao lado da outra. E não se pode deixar de lembrar este
paradoxo de uma esquerda que foi acusada de internacionalista, materialista, ateísta, contrária aos valores morais
e familiares, e que vê estes pretensos objetivos sendo vigorosamente construídos pelas forças econômicas e culturais dominantes, em nome dos ideais inversos. O problema essencial, na realidade, consiste em dimensionar o
espaço viável de construção de projetos políticos nacio-
70
CAPITALISMO:
nais, regionais e locais, dentro de um quadro econômico
e político manejado por atores que trabalham em níveis
diferentes. Um projeto nacional é viável? Sem dúvida. Mas
ter um projeto nacional passa antes pela construção da
legitimidade interna do que pelo domínio, em cada país,
de sua própria indústria automobilística.
Entre o capitalismo global e a legitimidade interna –
Ao mesmo tempo que os objetivos se tornam mais claros,
portanto, torna-se mais clara a fragilidade de sua construção. Para os países desenvolvidos, o problema colocase de maneira diferente, na medida em que estes auferem
as vantagens econômicas de uma divisão mundial desequilibrada. Nos países ditos em desenvolvimento, no entanto, acumula-se uma dupla fragilidade: são demasiado
fracos, em termos econômicos, para influir de alguma
maneira sobre os rumos da economia global, ou mesmo
para ter um pouco de espaço de manobra; por outro lado,
tratando-se de oligarquias privilegiadas num mar de miséria, têm uma legitimidade interna muito limitada. O elemento essencial das limitações não se situa, portanto, em
pessoas, mas em uma situação em que os governos não
podem enfrentar simultaneamente a tensão interna – diretamente vinculada ao apartheid social em que se baseia o seu poder – e os enfrentamentos externos, indispensáveis para uma negociação firme do seu espaço
político na economia global, onde a coesão interna da
nação e a legitimidade de um governo constituem fatores
fundamentais. Chega-se, assim, a uma situação na qual a
única forma de um governo recuperar a capacidade de
manobra dentro da economia global é enfrentar efetivamente o apartheid social interno. Contrariamente aos
dogmas liberais, fazer boa política social hoje, significa
fazer boa política econômica.4 O desagradável, naturalmente, é que propostas nesta linha já são defendidas à
nossa esquerda, pelo BID e pelo Banco Mundial.
Da exploração do trabalho à miséria global – Os problemas se avolumaram de tal forma, neste final de século, que uma sólida opção (e não mais retórica) por um
equilíbrio social pode, inclusive, ampliar a hoje cada vez
mais importante legitimidade internacional. Do processo
econômico, esperamos que gere bens e serviços, ou seja,
produto, mas também renda para os diversos participantes, de modo que possam comprá-lo, e trabalho para todos, porque sem trabalho não há renda nem cidadania.
No centro do debate político continua a fragilidade central do capitalismo: é um ótimo organizador de produção,
particularmente se a empresa é livre de se organizar sem
entraves burocráticos, mas é um péssimo distribuidor de
renda, e hoje medíocre gerador de empregos. Como o ciclo de reprodução envolve tanto a produção como a distribuição, sob pena de o conjunto não funcionar, o capitalismo é estruturalmente incompleto. Abolir a organização
NOVAS DINÂMICAS, OUTROS CONCEITOS
empresarial consiste em jogar o bebê junto com a água
do banho. Não enfrentar de forma institucionalmente organizada o problema da renda e do emprego é uma irresponsabilidade. Discursos cosméticos à parte, a realidade
é que estamos atingindo os limites econômicos e políticos da estabilidade social. O Banco Mundial classifica
cerca de 3,5 bilhões de habitantes deste planeta, cerca de
dois terços do total, na faixa de renda média de 350 dólares per capita. Mais de 150 milhões de crianças passam
fome no mundo. Os analfabetos são mais de 800 milhões,
e o número continua crescendo. O mundo produz hoje mais
de quatro mil dólares de bens e serviços por habitante, o
suficiente para todos viverem com conforto e dignidade.
Em face dos imensos meios econômicos e tecnológicos
de que dispomos, esta situação se reveste do mesmo absurdo e anacronismo histórico que a escravidão e o colonialismo. Um relatório das Nações Unidas (1995) resume
bem a questão: “No longer inevitable, poverty should be
relegated to history – along with slavery, colonialism and
nuclear warfare.” A compreensão deste drama está deixando de ser privilégio das esquerdas, aproximando gente das
mais variadas áreas sociais e políticas.
Do crescimento ilimitado aos recursos finitos – Este
início de refluxo dos valores do vale-tudo liberal é também fortalecido pelas dinâmicas ambientais. O caso dos
mares pode servir aqui de exemplo: com o GPS (posicionamento global por satélite), sistemas modernos de sonar
e a parafernália constituída por gigantescas redes, harpões
de choque elétrico e outras tecnologias dos navios de pesca
industrial, pescar é hoje mais uma atividade de matadouro do que propriamente de pesca. Com o aumento do volume de pesca, poder-se-ia acreditar em uma queda de
preços e conseqüente redução de volume de capturas,
reequilibrando o processo. Esta é a dinâmica antiga. Hoje,
como o volume global de capturas está reduzindo rapidamente a biomassa, a oferta vem baixando rapidamente,
desde 1990, elevando os preços, isto é, o custo de captura
baixa por causa das novas tecnologias, mas os preços de
venda aumentam pela escassez crescente do produto. Com
isto, a margem sobe, e em vez de se restringir a pesca
para assegurar a sobrevivência da matéria- prima, as grandes empresas lançam ao mar tudo que têm de equipamento. O argumento de que estão destruindo o seu próprio
futuro encontra uma resposta lacônica: “Se não for eu,
serão outros.” Em outros termos, as tradicionais curvas
de oferta e procura nunca se encontram, até se destruírem
as reservas. O mecanismo de mercado nas áreas que não
produzem propriamente, mas exploram as reservas acumuladas pela natureza, constitui, com as novas tecnologias, um simples suicídio. Segundo a mesma lógica, que
já eliminou o bisonte das planícies norte-americanas, estão sendo eliminados, com avionetas, helicópteros, vene-
71
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
no e metralhadoras, os milhões de animais da Sibéria, basicamente para produzir ração para cachorros nos países
desenvolvidos. Obedecem lógica semelhante as chamadas “externalidades”, pelas quais sai mais barato produzir em termos de mercado, jogando resíduos tóxicos nos
rios – destruindo, assim, as limitadas reservas do que já
está se chamando de “ouro azul” – do que arcar com as
despesas de reciclagem ou de sistemas de produção menos agressivos. Os dramas que se avolumam representam
uma tal de ameaça que o leque de atores sociais dispostos
a colocar freios no processo aumenta rapidamente, ampliando aqui também os espaços de articulação de novas
propostas. Não se trata de um wishful thinking. Há dez
anos ambientalistas eram vistos com curiosidade, como
gente que gosta de tartarugas e de baleias. Hoje a preocupação se generalizou.
Das relações de produção ao conteúdo da produção –
As relações de produção indignavam pelas injustiças sociais criadas. Hoje, ganha-se dinheiro vendendo armas
para qualquer parte do planeta, “lavando”, em bancos
muito respeitados, o dinheiro de drogas, comercializando
órgãos humanos, organizando turismo de prostituição
infantil, vendendo mercúrio para envenenar rios, inundando fazendeiros inexperientes, ou demasiado experientes,
com defensivos agrícolas, praticando a sobrepesca que
destrói os mares, queimando florestas milenares para expandir pastos, explorando as facetas mais sórdidas do
sofrimento humano em programas de mídia, sobrefaturando obras públicas através de empreiteiras cuja habilidade econômica maior consiste em comprar espaço político, vendendo como serviços de segurança os mesmos
agentes que praticam os crimes, fornecendo serviços militares privados a governos fragilizados, e assim por diante.
Um levantamento preliminar de empresas que produzem
equipamentos de tortura identificou 42 empresas nos Estados Unidos, 13 na Alemanha, 7 na França, 6 em Taiwan
e 5 em Israel, entre outros (Beaugé, 1998:59). Hoje não
basta saber se a empresa paga bem ou mal, se respeita as
leis trabalhistas, se está criando ou não empregos, se as
formas legais de organização empresarial estão sendo respeitadas. Tornou-se indispensável divulgar e discutir, através da mídia, dos sindicatos, de partidos, de ONGs, os
objetivos sociais dos processos produtivos. As empresas
ligadas a atividades socialmente úteis serão as primeiras
a pagar a solidariedade passiva que as liga – como colegas de classe, por assim dizer – aos que, de cara limpa, se
aproveitam de fragilidades jurídicas, políticas ou sociais.
Que legitimidade têm os Estados Unidos para protestar
contra os produtores de droga na Colômbia, se multiplicaram por quatro, em poucos anos, a exportação de armas para países africanos? Inundar os pobres países africanos de armas é mais ético?
Da qualidade total à hierarquização do trabalho – Todas as publicações modernas sobre gestão tratam dos
show cases. De ler os novos manuais de administração,
ou as revistas correspondentes, o mundo empresarial estaria sendo invadido por uma onda de humanização interna, com redução de leque hierárquico, promoção da
knowledge organization, retreinamento, qualidade total,
reengenharia, Kanban, Kaizen e outras propostas da nova
sopa de letrinhas global. No conjunto, estas propostas são
positivas. No entanto, são o apanágio de um grupo de
empresas modernas. É essencial lembrar que as transnacionais empregam 12 milhões de pessoas no conjunto do
Terceiro Mundo. A OIT, que apresenta estas cifras, considera que um emprego direto gera outro indireto, com o
que chegaríamos a 24 milhões, cerca de 1% da população
economicamente ativa do mundo subdesenvolvido. Mas
esta dinâmica ocupa quase 100% do espaço das nossas
publicações científicas. Na realidade, o setor minoritário
de ponta gera, sim, uma massa razoável de empregos precários (os precarious jobs, nos estudos americanos): a Nike
emprega 8 mil pessoas nos Estados Unidos como “organizadores”, na linha dos produtos “intangíveis” que caracterizam a economia moderna, enquanto os tênis reais
serão produzidos através de sistemas de terceirização em
países asiáticos, com os famosos 15 ou 20 centavos por
hora, gerando empregos, mas também gerando desempregos, por exemplo, em Franca, no interior de São Paulo.
Como as limitações de geração de emprego deste setor
são cada vez maiores, gera-se gradualmente um imenso
setor informal, onde as pessoas buscam a sobrevivência
por meio de microatividades industriais de fundo de quintal, de pequeno comércio e assim por diante. Finalmente,
gera-se um setor ilegal que cresce rapidamente: comercialização de carros roubados e de peças maquiladas, contrabando, tráfico de drogas, desmatamento e pesca ilegais,
tráfico de órgãos, comércio de sangue, etc. Assim, o nosso mundo do trabalho vai se dividindo gradualmente em
subsistemas socioeconômicos, com o setor de ponta próspero e “moderno”, os seus carregadores de piano no setor
precário, o setor informal e o setor ilegal, hierarquia que
pode ser encontrada na indústria, na agricultura, no comércio ou em qualquer outra área. O que não podemos é
nos deixar hipnotizar pelos avanços de Bill Gates ou
da General Motors, esquecendo a imensa desarticulação dos sistemas de inserção no trabalho da ampla
maioria da população mundial. Neste sentido, o reequilíbrio do caos gerado por uma situação de dominância
esmagadora das grandes empresas, de fragilização generalizada do Estado e de uma sociedade civil que ainda é o sócio menor do processo, depende de uma busca
sistemática do reforço da densidade organizacional da
sociedade.
72
CAPITALISMO:
Do grande irmão estatal, à macroestrutura de poder –
Tem suas razões a direita em se insurgir contra um Estado parternalista que faz as coisas para e por nós. Do ponto de vista do nosso direito de construir nossas vidas como
quisermos, o argumento é forte. No entanto, quem já esteve nas mãos de uma intermédica privada, ou diante de
qualquer megaempresa (transnacional ou não), já se deu
conta de que a alternativa que nos oferecem não é entre a
iniciativa individual e o “Grande Irmão”, e sim entre o
“grande irmão” estatal e o “grande irmão” privado. Na
macroestrutura de poder, tornou-se inextricável a mistura de interesses de grandes grupos privados e da burocracia estatal. É muito diferente a televisão nas mãos do Estado (que temos) ou de Antônio Carlos Magalhães? De
Antônio Carlos Magalhães ou Roberto Marinho? Do
Roberto Marinho ou do bispo Macedo? É comovente que
um artigo da Time, em pleno 1998, se dê ao trabalho de
assegurar ao leitor que a força dos grupos privados na
mídia nos põe a salvo de qualquer monopólio estatal. Só
que a ameaça, evidentemente, não é mais o monopólio
estatal, e a alternativa não é simplesmente privatizar ou
estatizar. Trata-se de resgatar, sim, o papel do indivíduo
na sociedade e evoluir do conceito de poder que se delega – à empresa ou ao Estado – para o conceito de cidadania que se exerce. Gradualmente, tomamos consciência
da semelhança da proposta do estatismo e do liberalismo,
de um “grande irmão” que cuida (dentro dos limites dos
seus interesses) de um cidadão passivo e alienado. Isto
não elimina, naturalmente, nossa luta por um Estado efetivamente representativo, menos corrupto, menos privatizado e mais vinculado ao bem público e a uma visão
social de longo prazo. Mas nos obriga a um certo realismo quanto a linhas de trabalho.
Da fábrica à produção de intangíveis – A revolução
tecnológica tornou viável a gestão a distância, através de
gigantescos sistemas que articulam milhares de unidades
produtivas. Ou seja, a atividade produtiva ainda é central, mas o poder sobre os sistemas produtivos se deslocou para formas articuladas de organização do financiamento, distribuição, publicidade, pressão política e outros
elementos do conjunto de “intangíveis” que hoje representam como ordem de grandeza 75% do preço que pagamos por um produto. Este poder deslocou-se, em particular, para a área transnacional, navegando entre a
segmentação das políticas nacionais, formando por meio
de gigantescas campanhas a visão popular, a imagem de
uma empresa, de um produto, de um grupo econômico.
Uma empresa poderosa, hoje, freqüentemente não produz nada, mas controla, regulamenta, cria pedágios que
lhe conferem um imenso poder de intermediação. Isto tem
lados bons e maus, mas sobretudo altera os dados da transformação social. Em particular, o amplo poder da grande
NOVAS DINÂMICAS, OUTROS CONCEITOS
empresa não se exerce num espaço concreto de uma fábrica, no bairro onde moram os seus trabalhadores, no
sistema tradicional que gerou boa parte do nosso tecido
urbano. A grande empresa é hoje um nome que martela
diariamente a sua imagem através de todos os meios de
comunicação, mas cuja existência concreta reconhecemos
apenas nas prateleiras de um supermercado. Tornou-se,
no pleno sentido, uma sociedade anônima.
Da produção fabril aos serviços sociais – Uma área de
grande potencial organizador da sociedade civil são os
serviços sociais. Algumas das mudanças mais óbvias se
referem ao deslocamento dos grandes eixos de atividades
econômicas para esta área. É um choque para muitos, ainda, o fato de o maior setor econômico hoje nos Estados
Unidos não ser a indústria automobilística ou o complexo militar, mas a saúde, que hoje representa 14% do PIB
norte-americano, mais do que o PIB do Brasil. Outro gigante que ultrapassou as grandes áreas industriais é o que
os americanos chamam de indústria do entretenimento.
No entanto, quando nos referimos a modelos de gestão,
ainda falamos em taylorismo, fordismo, toyotismo. Toda
nossa visão de organização econômica continua centrada
no automóvel. Como se faz just in time no hospital, na
escola? Os novos grandes setores oscilam entre o burocratismo estatal e os impressionantes abusos que o setor
privado comete quando se apropria de áreas sociais. Os
milhares de jovens que ostentam as profundas cicatrizes
de rins extraídos, na Índia, ou os 52% de partos com cesariana no Estado de São Paulo nos lembram com que à
vontade as empresas brincam com o objetivo maior, o
lucro. Que liberdade de escolher tem um cidadão quando um médico lhe recomenda que o filho seja operado
por alguém de sua confiança, por fora do seguro? Que
mercado é este? As áreas mais significativas do nosso desenvolvimento são constituídas por setores onde não se aplica
nem o paradigma burocrático estatal, nem os paradigmas da
organização fabril. Uma análise das organizações da sociedade civil nos Estados Unidos mostra que cerca de 50% das
atividades se formaram em torno da problemática da saúde.
Os 200 bilhões de dólares que o governo norte-americano
gasta com o terceiro setor não resultam de subvenções assistenciais, mas de concorrências que as organizações nãogovernamentais e não empresariais ganham porque são simplesmente mais eficientes. Uma formação nova – as empresas
sociais – é mais estudada na Itália, mas está progredindo por
toda parte. Quem disse que organizar-se para ser criativo só
pode ser realizado no quadro do vale-tudo capitalista? A
realidade é que o essencial das atividades humanas está se
deslocando para áreas em que a macroburocracia estatal e o
poder empresarial funcionam mal, abrindo uma imensa avenida de organização capilar da sociedade em torno dos novos grandes setores econômicos.
73
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
Do espaço global aos espaços locais – Esses serviços,
por sua vez, têm uma esfera privilegiada de ação, que é o
espaço local. Assim, se, no conjunto, o equilíbrio a ser
construído entre mercado, Estado e sociedade civil deve
buscar um reforço dos pólos enfraquecidos – Estado e
sociedade civil –, assume um papel importante o município, o poder local, onde a articulação entre a administração pública e as organizações da sociedade civil pode ser
mais facilmente organizada. É no plano local que as políticas de saúde, educação, esportes, cultura e outras podem ser articuladas em dinâmicas sinérgicas em torno da
qualidade de vida do cidadão. É no plano local que podem ser cruzados o cadastro de desempregados e os estudos sobre recursos subutilizados para criar políticas de
emprego. É também no plano local, onde os diversos atores sociais se conhecem, que as parcerias podem ser organizadas da maneira mais flexível. Não insistiremos sobre este ponto, que estudamos em outros textos (Dowbor,
1996 e 1998).5 O importante é lembrar que se trata de uma
dinâmica que já deu as suas provas em numerosos países,
em particular o grupo de escandinavos – Canadá, Holanda
e outros –, onde se deu uma decisiva evolução da democracia representativa centralizada para uma democracia
participativa muito mais próxima do cidadão. Basta lembrar que, nos países desenvolvidos, as administrações
locais gerem entre 40% e 60% dos recursos públicos, enquanto nos países subdesenvolvidos esta porcentagem se
situa normalmente abaixo de 10%. Na Suécia, são 72%,
no Brasil provavelmente algo como 13%. De certa forma, trata-se de aproximar o Estado do nível onde sua articulação com as necessidades sociais e com as organizações da sociedade civil é mais forte. Não se trata de visões
milagrosas. A política brasileira sendo o que é, em boa
parte a descentralização de recursos pode simplesmente
reforçar o caciquismo. Mas, no conjunto, é muito mais
fácil, para as grandes empresas, desviar algumas dezenas
de bilhões de dólares dos lobbies ministeriais de Brasília
do que enfrentar a pressão social por realizações concretas nos cinco mil municípios do país.
Poder empresarial e poder do cidadão – O projeto de
restagar relações sociais mais democráticas e equilibradas sempre foi estudado pelo lado da democratização do
controle da empresa, envolvendo desde a visão da socialização pura e simples dos meios de produção, até a visão
do contrapeso sindical nas unidades de produção. A primeira solução tem limites evidentes, a segunda continua
sendo um objetivo de grande importância. Mas, surge com
força a alternativa do cidadão votar com o bolso, por assim dizer, ao recusar produtos que são prejudiciais ao meio
ambiente, que utilizam trabalho infantil, ao penalizar
empresas de comportamento social inaceitável. Em outros termos, a influência sobre os processos produtivos
pode dar-se em diversos pontos do ciclo, de forma mais
complexa do que a visão simplificada da transformação
das relações de propriedade. O desmoronamento das vendas da Shell, na Alemanha, depois da denúncia de um
comportamento ambiental negativo, é um dado muito significativo. Mais uma vez, uma implicação evidente é a
necessidade de se democratizar os meios de divulgação,
para que a população tenha acesso a informações sobre o
comportamento empresarial.
A nova dimensão do tempo social – Finalmente, um
ponto importante a frisar é a dramática aceleração das
transformações no planeta, que nos obriga a repensar o
conceito de tempo. Consideramos promissora a evolução
de um conjunto de empresas para a gestão de qualidade,
redução do leque hierárquico, maior democracia interna
e assim por diante. Mas, como fica a clivagem com o resto da sociedade, que evolui em outro ritmo? Este tipo de
empresa representa, quando muito, 5% do emprego mundial, pouco mais de 1% nos países do terceiro mundo. Metade da população mundial ainda cozinha com lenha.
Como ficam os dois terços da população excluídos da
modernidade, num planeta de dimensões cada vez menores? O problema que se pretende colocar aqui é que não
basta pensar que, possivelmente, a ponta moderna do processo irá gradualmente transformando o conjunto dos
processos sociais: os desequilíbrios sociais e ambientais
se avolumam e a janela de tempo que temos para restabelecer certos equilíbrios estruturais é limitada. As assincronias ou disritmias dos processos de mudança – que
atingem em ritmos diferentes o tempo tecnológico, o tempo cultural, o tempo institucional e o tempo jurídico, para
mencionar algumas instâncias básicas – são tão profundas que a ameaça de desarticulações desastrosas, na linha
do que tem sido chamado de slow motion catastrophy, ou
catástrofe em câmara lenta, se torna cada vez mais palpável. Exemplificando esta tensão, que se dá em diversos
níveis: em São Paulo, aumentou o número de empresas
que ostentam as certificações ISO-9000, ISO-14000 e
outros diplomas de modernidade nesta era das medalhas
tecnológicas, ao mesmo tempo que temos 30 assassinatos por dia e o número de carros roubados já atinge 420
por dia, marcando o rápido crescimento de uma economia ilegal já não como manifestação esporádica de marginalidade social, mas como setor econômico e processo
sistêmico de desarticulação social pela base. As novas
tendências da “modernidade” ocupam todas as nossas
atenções e a quase totalidade das publicações científicas.
Ficamos felizes, sem dúvida, com o fato de que pequenas
empresas fazem grandes negócios. No entanto, se o tempo de rearticulação da sociedade em torno das novas atividades não acompanha o ritmo de desagregação social
pela base, o resultado será a barbárie. O tempo que temos
74
CAPITALISMO:
pela frente, para uma sólida rearticulação e reequilíbrio
da sociedade, é cada vez mais curto.
Voltemos ao início. Uma enfoque que nos parece essencial é que, em boa medida, estamos jogando um jogo
novo, com regras que têm de ser reinventadas. Repetir
mais alto os slogans que já deram certo em outra época
não vai resolver. É preciso reconstruir os conceitos. Entre as cartas que compõem o novo jogo, privilegiamos
algumas. É uma visão que ultrapassa o enfoque dual estatização/privatização para se concentrar na articulação
equilibrada Estado/empresa/sociedade civil; que busca
ultrapassar a priorização do econômico, segundo a visão
liberal de que o lucro dos ricos reverterá, pela mágica do
trickling down, em benefícios sociais e ambientais para o
conjunto da sociedade: o próprio processo de reprodução
social deve ser uma permanente articulação dos objetivos econômicos, sociais e ambientais. Este enfoque de
“sociedade organizada” torna-se particularmente premente
frente a um capitalismo de grandes grupos de peso global, que hoje escapam a qualquer controle nacional, pela
fragilização dos instrumentos de política econômica do
Estado, enquanto os controles globais ainda não se constituíram. Este “capitalismo total” exerce hoje um poder
imenso sobre a área política, além de controlar a mídia, o
que lhe possibilita a difusão permanente de uma imagem
positiva sobre si mesmo. Como o sistema financeiro global também passou a escapar em grande parte dos controles nacionais, gera-se um desequilíbrio extremamente
profundo entre Estado, mercado e sociedade civil. Coloca-se, portanto, no centro o problema do resgate da função reguladora do Estado, e do reforço da organização da
sociedade civil.
A simples esperança de que as coisas encontrarão “naturalmente” a sua lógica não basta. A maré capitalista levanta os grandes iates, não levanta todos os barcos. É
curioso, e significativo, ver o Banco Mundial (1997), que
não é um organismo subversivo, ser o primeiro a torpedear a ilusão:“There is no world-wide trend toward
convergence between rich and poor workers. Indeed, there
are risks that workers in poorer countries will fall further
behind.” A capacidade de geração de empregos está mudando rapidamente no setor de ponta da economia. Centrar a visão do desenvolvimento na “atração” de investimentos, com países e regiões competindo para ver quem
se curva mais baixo, quem dá condições mais atraentes, no que as Nações Unidas chamam hoje de “race to
the bottom”, em troca de algumas centenas de empregos,
não resolve grande coisa. Na realidade, o que funciona é
o processo inverso, a promoção dos equilíbrios internos,
a dinamização dos empregos em torno das necessidades
básicas de saneamento, habitação, alimentação e outros,
a redistribuição da terra produtiva, o acesso mais demo-
NOVAS DINÂMICAS, OUTROS CONCEITOS
crático à renda. Com meio século de atraso em relação
aos países desenvolvidos, cabe-nos hoje centrar as políticas no reequilibramento social.
A formação de um megapoder das 500 a 600 corporações transnacionais deslocou os espaços políticos. O próprio empresariado, particularmente na área da pequena e
média empresas, que não tem escala suficiente para controlar segmentos da esfera política e não participa do cassino global, vê com perplexidade crescente um sistema
no qual produzir bem não assegura nenhuma vantagem
em relação a quem faz especulação financeira, manipula
o Estado ou coloca pedágios comerciais sobre as mais variadas atividades. Por outro lado, a urbanização generalizada que progrediu no planeta e, em particular, no Brasil
das últimas décadas, abre novas perspectivas para a reconstrução da articulação Estado/sociedade civil a partir
do espaço da cidade, buscando assegurar uma âncora econômica e social tanto mais necessária quanto mais avança a globalização.
O grande dilema, entre tantos outros, continua sendo
esta estrutura estranha que chamamos de classe dirigente. Sua adaptação ideológica à era da globalização é relativamente simples, na medida em que sempre que buscou
maximizar seus interesses intermediando interesses externos, fossem eles coloniais, ingleses, americanos ou
globais. Fomos o último país a abolir a escravidão, somos hoje o país que ostenta a maior distância entre ricos
e pobres. Um dos últimos textos de Darcy Ribeiro é, neste sentido, eloqüente: “Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do
que essa classe dirigente exógena e infiel a seu povo…
Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só
ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável hegemonia… Não alcançam, aqui,
nem mesmo a façanha menor de gerar uma prosperidade
generalizável à massa trabalhadora, tal como se conseguiu, sob os mesmos regimes, em outras áreas. Menos
êxito teve, ainda, em seus esforços por integrar-se na civilização industrial. Hoje, seu desígnio é forçar-nos à
marginalidade na civilização que está emergindo” (Ribeiro, 1997:68). Imaginar desígnios tão perversos constitui,
provavelmente, um exagero. Mas a realidade é que, frente aos imensos avanços das tecnologias e à amplitude das
mudanças em todas as áreas, nossos bancos pendurados
nos financiamentos estatais e juros surrealistas, os usineiros e latifundiários que se concentram mais no que consideram ser política – buscar subsídios através dos processos mais escusos de pressão, além de imobilizar terra que
nem cultivam nem deixam cultivar –, as empreiteiras que
seguem se equilibrando no apoio a políticos corruptos em
troca de contratos públicos, as famílias da mídia que seguem fielmente as tradições truculentas do Chatô, as pró-
75
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
5. Ver, também, numerosos estudos setoriais disponíveis na homepage
HYPERLINK http://ppbr.com/ld
prias formas clânicas de fazer política ao estilo de clãs, constituem hoje uma superestrutura medieval, mal disfarçada
pelos celulares, computadores e carros de luxo que utilizam.
O capitalismo brasileiro, neste ponto, consegue uma proeza
impressionante: não mudou nada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BEAUGÉ, F. “Instruments de torture en vente libre”. Le Monde Diplomatique.
Manière de Voir n. 38, Mars-Avril 1998, p.59.
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__________ .“Governabilidade e descentralização”. São Paulo em Perspectiva,
jul/set. 1996.
__________ . A reprodução social. Editora Vozes, Petrópolis, 1998.
DULANY, P. The experience of the nonprofit sector in the United States, 1998.
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1997.
NOTAS
E-mail do autor: [email protected]
1. O início do Inferno é…“Da nossa vida, em meio da jornada, achei-me numa
selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada… Contar não posso como
tinha entrado, tanto o sono os sentidos me tomara, quando hei o bom caminho
abandonado” (tradução de Xavier Pinheiro).
2. O potencial desta “triangulação” é estudado em detalhe em Dowbor (1989 e 1998).
3. Ver texto de Pedersen disponível em HYPERLINK http://mare.gov.br: “It is
my assertion that the Scandinavian countries are increasingly assuming the
character of a negotiated economy. An essential and even a growing part of the
allocation of the productive ressources as well as the (re)distribution of the output
is determined neither on the market, nor through autonomous decision making
by public authorities. Instead, the decision-making process is conducted via
institutionalized negotiations between the relevant interested agents, who reach
binding decisions typically based on discursive, political or moral imperatives
rather than on threats and economic incentives.” The Negotiated Economy, Ove
K. Pedersen, Department of Political Science, Copenhagen University,
Copenhagen, e-mail [email protected] or [email protected]
4. Adam Przeworski apresenta uma perspectiva pouco otimista deste dilema:
quanto mais desigualdade social, mais o Estado é fraco; quanto mais fraco o
Estado, menos capacidade tem de controlar os ricos e de cobrar impostos; quanto menos impostos cobra, menor a sua capacidade de remediar às injustiças sociais: é o que ele chama de “low level trap”, da armadilha de baixo nível que
bloqueia as transformações sociais e econômicas.
76
SUJEITOS E UTOPIAS NO CAPITALISMO TARDIO
SUJEITOS E UTOPIAS NO
CAPITALISMO TARDIO
JOSÉ CORRÊA LEITE
Cientista político, Editor do jornal Em Tempo
A
s últimas décadas evidenciam a radicalização de
uma tendência constitutiva da modernidade, o
florescimento da subjetividade. Desenvolvemse múltiplos sujeitos: mulheres, negros, povos indígenas,
homossexuais, nacionalidades oprimidas, imigrantes, estudantes, jovens, idosos, grupos ecológicos, grupos culturais, populações sem terra e sem teto e muitos outros
setores reivindicam sua autonomia e, por todo o planeta,
apoiando-se nos exemplos uns dos outros, afirmam suas
aspirações. O rótulo de “movimentos sociais” é freqüentemente utilizado para dar conta desta miríade de sujeitos, antigos e novos.
Ao mesmo tempo, refluem os dois grandes sujeitos em
torno dos quais se organizou a política a partir do século
XIX: de um lado, os movimentos nacionais que buscavam conformar a nação em Estado (ou afirmá-la em face
de outras nações); de outro, o movimento socialista que
se identificava com a organização de classe dos trabalhadores assalariados. A globalização deslocou o lugar ocupado pela maioria dos Estados nacionais – as exceções
são os Estados Unidos e os demais países metropolitanos,
que todavia tiveram seu papel interno redefinido, ganhando
um caráter mais oligárquico (além do caso muito particular da China).1 O colapso do sistema de Estados burocráticos nucleado pela União Soviética eliminou um elemento
que limitava a ação do mercado capitalista; o deslocamento
da correlação de forças que sustentava o welfare state
questionou outro. Nenhuma instituição política parece em
condições de conter as forças estruturantes do mercado
mundial e de atenuar o peso da hierarquia de poder internacional nucleada em torno dos Estados Unidos e da rede
das grandes corporações multinacionais. Os movimentos
nacionalistas e antiimperialistas são esvaziados. Já a crise do movimento socialista expressa não só as mudanças
na configuração de forças políticas no terreno mundial,
mas é também o resultado de uma crise do projeto e do
discurso constitutivo do próprio movimento. A recomposição social do proletariado contribui para desarticular
sua antiga organização de classe. O sindicalismo perde o
lugar de destaque que tinha alcançado e tende a ser visto
por muitos como mais um movimento social. O movimento socialista encontra, por toda parte, enormes dificuldades para aplicar uma política anticapitalista.
Mas o mundo globalizado está muito distante da realização da utopia liberal clássica, que deveria permitir o
pleno desenvolvimento do indivíduo. A produção do indivíduo liberto das amarras que o prendiam às coletividades tradicionais é potencializada pela expansão do
mercado, que dissolve todas as formas de comunidades e
os laços de solidariedade que as constituem. Todavia, o
novo cenário histórico solapa as condições de exercício
da cidadania, como a participação em uma esfera pública
vigorosa. O indivíduo transforma-se no homo economicus,
reduzido a uma figura fantasiosa de pura racionalidade
possessiva. Os indivíduos atomizados – incapazes de livremente forjar coletivos fortes o suficiente para direcionarem as instituições políticas centrais – são transformados em simples consumidores e engrenagens dos
mecanismos de poder estabelecidos, prisioneiros de processos que escapam a qualquer controle democrático.2 O
reencantamento instrumental do mundo pela indústria
cultural amplifica a crise da subjetividade autônoma, reforçando o que tem sido caracterizado como personalidade narcisista e estendendo a alienação mercantil para
esferas que antes ofereciam resistência a ela.
Dessa forma, quando quase todos os agenciamentos
parecem possíveis e uma infinidade de sujeitos emerge,
nenhum agenciamento parece estratégico e nenhum su-
77
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
jeito eficaz para questionar os fundamentos da estrutura
social estabelecida ou conquistar uma autonomia real em
face do poder. Vivemos uma paradoxal situação de multiplicação e simultânea crise dos sujeitos.
Temos, paralelamente, a multiplicação e a crise das
utopias. Aspirações utópicas eclodem por toda parte no
século XX: promessas de riqueza e bem-estar geral, de
igualdade de gêneros, de reconhecimento das diferentes
culturas, do gozo da sexualidade, da saúde perfeita, de
comunicação total, de uma sociedade reconciliada com a
natureza, da conquista do espaço, etc. Ao mesmo tempo,
a sociedade ideal parece mais distante do que nunca. As
promessas das utopias socialistas são solapadas e desacreditadas pelo colapso das experiências burocráticas e
despóticas; as tentativas social-democratas de socialização compatíveis com a manutenção do capitalismo retrocedem até perder seu sentido democratizador; a idéia da
revolução social é deslocada do horizonte. Mesmo a nação perde seu conteúdo emancipador, segundo o ideal
republicano, deixando de se apresentar como uma comunidade imaginária baseada na fraternidade entre seus
membros, para se transformar apenas em base de nacionalismos excludentes e xenófobos. Expressões cruas de barbárie e enormes riscos para a humanidade se avolumam sem
que se apresente a perspectiva de sua eliminação.
nária das massas, se propunham como sujeitos, adotando
orientações vanguardistas e substituindo, ou pelo menos tentando catalisar, um descontentamento geral contra a ordem.
Mas estas críticas não foram capazes de abalar as bases do movimento socialista construído ao longo de um
século, suas organizações partidárias e sindicais, a cultura operária em que se apoiavam, sua relação seja com o
welfare state, seja com o bloco de regimes burocráticos.
E tampouco questionaram a aspiração à independência
nacional. Ainda em 1979-80, os grandes enfrentamentos
políticos e sociais seguiam o padrão que prevalecia desde o início do século. Pouco depois da vitória sandinista
na Nicarágua, um movimento antiimperialista derrubava
o regime do xá do Irã e guerrilhas revolucionárias marxistas chegaram perto de tomar o poder em El Salvador;
no Brasil e na Polônia, vagas de greves operárias davam
origem a vastos processos de auto-organização de massas e movimentos políticos em que a classe operária
catalisava as aspirações de mudança social e política.
Assim, a multiplicação de novos sujeitos parecia apontar
para uma relativização, mas não para a supressão do papel articulador e totalizador, particularmente na disputa
política geral, dos movimentos dos trabalhadores de inspiração socialista e/ou dos movimentos nacionalistas que
com eles rivalizavam ou a eles se aliavam.
Podemos hoje localizar com precisão como, quando e
por que isto se altera e leva à crise geral do movimento
socialista e dos projetos de autonomia nacional. Para grande parte dos analistas, o momento de precipitação dos
processos é o início da reestruturação do capitalismo,
conduzida pelas políticas neoliberais, a partir da recessão de 1980-82, dos governos Reagan e Thatcher. Outro
indicador importante é que 1981 é também o momento
em que o governo Mitterrand abandona o amplo programa de nacionalizações da Frente Comum, com o qual tinha sido eleito um ano e meio antes, por um programa de
austeridade em sintonia com a nova tendência. Embora
aspectos da reestruturação possam ser localizados antes
disso, foi só então que ela ganhou impulso e passou a promover uma vasta recomposição das relações de classe,
reduzindo o peso relativo do proletariado industrial e deslocando seu lugar na sociedade. A reestruturação, impulsionada como resposta à redução do dinamismo da economia capitalista, ganha dinâmica própria e potencializa
a sua internacionalização, já acelerada desde 1973.3 Estas mudanças alteram as relações de forças em favor dos
setores mais dinâmicos e poderosos do capital e em detrimento do conjunto das forças que contra ele se chocavam
(ou que buscavam escapar de sua ação). A queda do Muro
de Berlim, em 1989, a derrota sandinista na Nicarágua,
em 1990, e o colapso da URSS, no ano seguinte, tornaram o deslocamento de forças avassalador e deram au-
MULTIPLICAÇÃO E CRISE DOS SUJEITOS
A explosão de novos sujeitos é anterior à crise do socialismo e do nacionalismo progressista. Eles emergiram,
nos anos 60, muitas vezes considerando-se parte de um
movimento socialista mais amplo, com a integração de
correntes do feminismo, da juventude, dos ativistas das
liberdades civis ou do ambientalismo ao lado dos trabalhadores. O proletariado continuava sendo considerado o
sujeito revolucionário capaz de estabelecer uma sociedade sem exploração nem opressão.
Simultaneamente, podemos localizar, no debate teórico socialista, críticas implícitas e explícitas ao caráter
abstrato e unilateral da idéia do proletariado como sujeito universal da emancipação humana. Nos anos 50, Sartre
já deslocava a ênfase na política da ação revolucionária
do proletariado para o indivíduo crítico que decide pelo
engajamento militante. Nos anos 60, Adorno apontava os
limites da lógica da identidade que presidia a constituição das formas universais. Em face do reformismo do
proletariado, Marcuse sustenta o potencial crítico dos
excluídos pelo sistema. E, na América Latina e na Ásia,
intelectuais e movimentos políticos apresentavam o povo
(e não só os assalariados explorados) como sujeito revolucionário; no terreno político, os grupos radicais dos anos
60, impacientes com a ausência de atividade revolucio-
78
SUJEITOS E UTOPIAS NO CAPITALISMO TARDIO
diência ao discurso sobre o fim da sociedade do trabalho,
fim das utopias, fim da história.4
É, portanto, ao longo dos anos 80, que a idéia do proletariado como força revolucionária, estruturadora do discurso socialista dominante, é colocada em xeque. Não por
acaso esse é o momento em que o debate teórico se desloca e o pós-modernismo busca empreender um ataque
em regra às pretensões das grandes narrativas.
Mas a política pós-moderna se coloca muito longe das
ambições do seu discurso filosófico; ela não consegue
avançar para além das críticas aos limites do universalismo abstrato ou da exaltação da atuação particular dos
múltiplos sujeitos em luta por seus interesses. De fato, a
ausência ou fragilidade das referências de sujeito revolucionário global e de horizonte utópico totalizador tem
contribuído para fragilizar e esvaziar o potencial de contestação e emancipação das lutas dos novos sujeitos que
emergiram desde os anos 60 – em geral propiciando sua
integração à institucionalidade estabelecida.
comum entre os membros de um grupo, a consciência de
seus interesses e perspectivas próprias, uma explicação
compartilhada para o que vivem, etc. O discurso socialista e classista, o feminista, o discurso da negritude, o nacionalismo, etc. circunscrevem problemáticas, estabelecem
objetivos, propõem lutas, definem inimigos, etc. São formas de discursos políticos que constituem sujeitos na
medida em que conquistam espaço próprio no imaginário da sociedade. E que têm, permanentemente, de enfrentar os riscos de sua absorção pelos poderes estabelecidos
e pelos movimentos políticos de vocação universal, os
riscos de que sua difusão e assimilação pela sociedade
leve à diluição dos sujeitos que ajudam a estabelecer
(Aresti et alii, 1994).
De outro lado, essa passagem é produto também de um
agenciamento organizativo. Um sujeito coletivo é o resultado do movimento de pessoas que disputam posições,
que se articulam e se organizam para diferentes graus de
participação social e política. Uma entidade sindical, uma
ONG, um jornal, um grupo militar ou um partido político
são instituições que organizam força (social, política, ideológica, militar) para disputar distintas formas de poder na
sociedade. E sujeitos que se propõem a transformar a sociedade com uma ampla participação direta da população
têm que de estabelecer as formas de organizar esta participação – e onde existem mecanismos de representação,
evitar que ela seja canalizada, diluída e dispersa nas instituições estatais de representação política.
Um terceiro agenciamento se coloca, no caso daqueles que pretendem mudar a realidade – o utópico. A referência a um futuro imaginário, mas concebido como possível, onde aquilo por que se luta teria sido obtido, tem
um papel articulador decisivo tanto do discurso explícito
quando das imagens e elementos afetivos e inconscientes. A mudança da sociedade é fruto de um tipo de engajamento político que exige ampla mobilização de energias psíquicas. Ele não diz respeito, portanto, apenas às
escolhas racionais, mas também à aposta em um futuro
melhor, mesmo quando ele parece improvável. O agenciamento utópico dá forma e potencializa, na modernidade, o “princípio esperança” (Bloch, 1977).
O AGENCIAMENTO UTÓPICO DOS SUJEITOS
A constituição de sujeitos políticos é fruto de um processo complexo. Ela pressupõe sempre o despertar do
indivíduo para alguma forma de participação coletiva ou
de consciência cidadã. Ele passa a se identificar com alguma forma de coletivo, seja com aquele que luta pelos
interesses que lhe dizem respeito mais de perto, seja com
algum projeto de vocação universalista, seja com ambos.
Mas os sujeitos coletivos não se formam pela mera
agrupação dos indivíduos em função de seus interesses,
afinidades ou crenças. Os trabalhadores, as mulheres, os
membros de uma nacionalidade oprimida ou os homossexuais não conformam, enquanto puras categorias sociais
(como classe, gênero, nacionalidade, opção sexual), coletivos. É quando adquirem consciência de que têm uma
identidade própria, quando vivenciam problemas comuns
e se organizam para lutar em conjunto, que estas categorias sociais se conformam como sujeitos e podem adentrar no terreno da política, disputando a mudança de relações de poder.5 Isso vale ainda mais para os projetos
universalizantes, que têm este caráter exatamente porque
podem ser apresentados como a totalização de distintas
demandas e aspirações específicas, disputando a reorganização do poder no âmbito da sociedade em seu conjunto.
A constituição de sujeitos coletivos parte, pois, de contradições e demandas fundamentalmente sociais (embora
não só), mas se realiza no trato com as relações de poder
e, principalmente, com as várias formas de poder político. A passagem do social para o político é o resultado de
distintos agenciamentos. De um lado, de um agenciamento
discursivo, sem o qual não se estabelece uma identidade
DEBATES CONTEMPORÂNEOS
O lugar do sujeito e da utopia no capitalismo tardio
está sendo redefinido por uma série de transformações de
amplo alcance, que abrem possibilidades econômicas,
sociais, técnicas, científicas e políticas. Muitas dessas
tendências ainda não estão consolidadas. Mas um exame
de alguns debates da teoria social contemporânea nos
permite visualizar como podem ser compreendidas certas mudanças em curso e como elas afetam as possibili-
79
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
dades de florescimento dos sujeitos e das utopias do século XXI.
deixar para trás o trauma do período que vai de Verdum à
Auschwitz e Hiroshima, a grande crise do século XX. E
se hoje a história pode ser concebida como o caminhar
conjunto de progresso e barbárie, isso responde tanto ao
desenvolvimento do debate teórico quanto ao espírito da
época que vivemos – que como nenhum outro momento da
história evidencia a coexistência de riquezas colossais e de
grandes desigualdades e injustiças sociais, com a miséria
marcando a vida da maioria da população do planeta.
Depois do colapso da União Soviética, e quando o neoliberalismo apresenta o futuro como a eterna expansão
do progresso técnico e da economia mercantil, o pensamento crítico empreende um amplo questionamento à
concepção teleológica da história. A idéia de um socialismo que nadaria a favor da corrente da história pode ser
substituída pela de uma história aberta, cujos desenvolvimentos são o resultado do confronto de sujeitos e projetos em disputa, cujo desfecho não pode ser antecipado.
A História Aberta
Nossa compreensão da história foi marcada de forma
decisiva pela idéia de progresso. Desde o Iluminismo, a
modernidade identificava a si mesma como a época que
propiciaria o máximo desenvolvimento humano, opondose nisto às sociedades anteriores, vistas como conservadoras, estáticas, tradicionais. A história como progresso
foi um componente central do pensamento liberal. E mesmo agora, na onda do colapso da União Soviética, surgiram obras, como a de Fukuyama, que teorizam a percepção dominante nos círculos neoliberais – a de que não
existe um horizonte superior à reafirmação do binômio
economia capitalista-democracia parlamentar (Fukuyama,
1992; para sua crítica, Anderson, 1992).
Mas o debate atual presencia também o fortalecimento de um posicionamento crítico à idéia da história como
progresso. Nesta outra concepção, os avanços da humanidade são acompanhados de crescentes riscos e expressões de barbárie (Traverso, 1997; Giddens, 1991). Isso
representa uma ruptura da visão igualmente linear, teleológica e estruturada pela idéia de progresso com que a
esquerda tradicionalmente desafiava as concepções liberais: o socialismo resultaria do choque entre o desenvolvimento incessante das forças produtivas potencializado
pelo capitalismo e as ultrapassadas relações de produção
baseadas na propriedade privada; a marcha da história seria
um processo imanente de socialização crescente das atividades humanas, que continuaria prosperando sob o capitalismo.
Uma crítica à idéia da história como progresso tinha
sido formulada, na cultura alemã da virada do século XIX,
pelo romantismo conservador: a modernidade seria a decadência da alta cultura e dos valores aristocráticos a ela
associados (Spengler, 1967; para a análise do processo,
Mayer, 1987). Mas, após 1914, 30 anos de catástrofes,
crises e guerras deram origem também a uma crítica socialista da barbárie, concebida não mais como retrocesso
a uma barbárie anterior à modernidade, mas como um fenômeno moderno (Herf, 1993). Essa concepção de uma
barbárie moderna foi sistematizada em 1940 por Walter
Benjamin (1985) e era incompatível com a visão do futuro com progresso garantido.6
Se a idéia de progresso foi revalorizada no período
seguinte, isso se deveu tanto ao quadro de prosperidade
que se seguiu à Segunda Guerra Mundial (os 30 anos gloriosos do capitalismo, mas também do desenvolvimentismo no Terceiro Mundo e da modernização das sociedades sob domínio burocrático), quanto ao esforço de
O Reposicionamento do Trabalho
Uma indagação lançada por Claus Offe tornou-se, há
alguns anos, uma referência importante para o debate sobre
a questão do trabalho. Ele perguntava: o trabalho ainda
continua sendo a categoria sociológica-chave na sociedade atual? (Offe, 1989). E respondia pela negativa, destacando tanto o aumento da heterogeneidade da classe
trabalhadora como o fim da “sociedade do trabalho”, decorrente da afluência nos países centrais.
Mas uma resposta diferente é que assistimos a um
reposicionamento do trabalho: o que está ocorrendo é um
deslocamento da centralidade do trabalho manual para o
trabalho intelectual e não o fim do papel do trabalho na
sociedade moderna (Motta e Albuquerque, 1996). O capitalismo contemporâneo integra a invenção ao processo
de produção e o trabalho criativo torna-se elemento-chave na dinâmica da acumulação de capital. Ele também é
próprio da indústria cultural, ramo de atividade em crescente expansão e atualmente decisivo para a legitimação
do sistema.
Temos, assim, três dinâmicas articuladas pelo padrão
atual de estruturação do capitalismo: a expansão crescente
do papel do trabalho intelectual, desenvolvido por um setor
pequeno mas decisivo da sociedade; a expansão do assalariamento na economia mundial, com base no trabalho
manual, concentrando-se principalmente no terciário (já
que a indústria vem reduzindo o pessoal operário empregado); a consolidação de um setor de marginalizados permanentes, para os quais não existe mais a possibilidade
de retorno às formas de produção pré-capitalistas, já desagregadas. Em que medida esses três setores sociais conformam segmentos de uma classe trabalhadora em expan-
80
SUJEITOS E UTOPIAS NO CAPITALISMO TARDIO
são ou estão se constituindo como classes distintas é um
tema para debate (Haddad, 1997).
Mas a discussão sobre as classes sociais foi, em boa
medida, redefinida a partir da obra de Thompson (1987).
A ênfase foi deslocada da análise das contradições objetivas que definiriam as classes (pelo lugar que ocupam
no processo de produção) para seu processo histórico e
“subjetivo” de constituição. A classe é uma relação com
outras classes e uma experiência prática; ela se conforma
como classe na luta de classes. Nessa trilha, a análise de
Michael Mann (1993) da classe operária inglesa no século XIX é elucidativa de muitos problemas atuais. Ela
mostra como a classe operária contestadora do capitalismo, revolucionária – que serviu de modelo para Marx formular sua teoria do proletariado como classe universal,
que seria a coveira do capitalismo –, não era a classe operária da grande indústria formada a partir de meados do
século, mas sim a do período anterior, muito mais heterogênea e ainda mesclada com artesãos e trabalhadores das
manufaturas – classe trabalhadora que se organizou no
cartismo e, por duas décadas, confrontou-se abertamente
com a burguesia inglesa.
O papel dos trabalhadores na sociedade capitalista é
sempre o resultado da combinação das possibilidades de
ação estabelecidas pela contradição entre o trabalho e o
capital com o processo concreto de agenciamento (discursivo, organizativo, utópico), que pode possibilitar sua
conformação como sujeito político. O proletariado como
força revolucionária tem sido, depois de sua formação na
Inglaterra no início do século XIX, a recriação permanente de um movimento político socialista capaz de articular esses agenciamentos com a busca da realização das
aspirações que advêm da inserção social dos trabalhadores assalariados explorados pelo capital.
A centralidade política do papel cumprido pelos trabalhadores na sociedade não está dada para o futuro, mas
pode ser construída, como o foi em certos momentos do
passado. E é importante que o seja, porque sem isso é
muito difícil que exista perspectiva de superação positiva do capitalismo atual. Mas, sua unificação como classe, isto é, a própria formação da classe trabalhadora como
classe, se ocorrer, se dará à luz do processo de reposicionamento do trabalho em curso, sob bases muito distintas
daquela que se vertebrava no operariado da grande indústria.
ambígua e contraditória como a própria sociedade, criando novos riscos.7 De Galileu e Bacon até o século XIX, o
desenvolvimento da ciência positiva representou um componente fundamental do movimento de emancipação humana dos laços seculares de dominação e opressão. A
crítica do discurso científico tinha então, quase sempre,
um caráter obscurantista, de defesa de privilégios tradicionais. Mas a racionalidade científica podia ser e seria
reificada com o desenvolvimento do mundo burguês. No
final do século XIX, a razão era criticada como expressão da vontade de poder. E, depois das catástrofes do século XX, a dialética do Iluminismo ficava evidente: o
desenvolvimento da racionalidade instrumental característica da visão positivista de ciência, que carregava a
promessa de emancipação humana, terminara por reforçar a dominação dos seres humanos por um sistema desumano (Adorno e Horkheimer, 1985; Habermas, 1975).
A crítica da ciência, que incorpora a compreensão de
seus limites, tende a perder o conteúdo obscurantista que
tinha no passado. Ela não é mais empreendida a partir da
afirmação de que existiriam áreas de conhecimento não
permeáveis ao discurso científico, mas da compreensão
de que há distintas percepções do que é e pode ser a ciência, de seu caráter social e histórico e de sua relação com
os valores humanos.
Essa crítica da visão positivista de ciência resulta de
pelo menos três processos. Em primeiro lugar, de um desenvolvimento interno das próprias ciências naturais, que
vai da física à química e à biologia: a concepção de ciência tem, no século XX, de dar conta de uma série de fenômenos nos quais o determinismo caminha lado a lado com
a imprevisibilidade e o caótico, o projeto atomista não dá
mais frutos e a dualidade sujeito-objeto tem de ser rejeitada (Prigogine e Stengers, 1984; Pessis-Pasternak, 1993).
Em segundo lugar, emerge da tradição filosófica alemã uma concepção da ciência como crítica, inclusive crítica da própria ciência. Embora o marxismo fosse fortemente tensionado pela visão positiva das ciências naturais,
foi também moldado por essa concepção (era “crítica da
economia política”), que transmitiu a uma corrente da teoria social do século XX (Adorno, 1975b; Habermas, 1987).
Em terceiro lugar, uma série de correntes de pensamento e disciplinas – a sociologia da cultura, a filosofia das
ciências de tradição analítica (a culminar na obra de Kuhn),
os estudos geneológicos sobre a formação das ciências
humanas e a do poder disciplinar, a crítica desconstrutivista da ciência – estabeleceram as raízes históricas e
sociais do discurso científico e desnudaram seus pressupostos. Ainda que isso algumas vezes seja feito, particularmente no pensamento pós-moderno, a partir da afirmação metafísica de algum “outro” da razão, estas elaborações
contribuíram para desmistificar as ciências.
A Crítica das Ciências
Vivemos no mundo criado pelas ciências. Nele, a crítica da ciência se torna premissa para o conhecimento
efetivo do mundo existente. Porque na medida em que a
ciência passa a ser constitutiva da sociedade, torna-se tão
81
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
Tais processos evidenciaram que as ciências tanto podem contribuir para a emancipação humana como para o
fortalecimento dos poderes mais despóticos, para a democratização da sociedade como para manifestações
monstruosas de barbárie. A ciência não elimina os problemas axiológicos, torna-os, ao contrário, mais agudos
do que nunca, porque coloca em jogo a sobrevivência da
espécie humana e da vida no planeta.
A ciência é onipresente no capitalismo tardio. Da mesma forma, a apreciação crítica e realista das suas possibilidades e limites tem de ser incorporada em todas as dimensões da ação social e dos esforços de mudança do
mundo. Umberto Cerroni diz que “o estudo da política
tornou-se ele mesmo atividade política, ao passo que a
atividade política procurou tornar-se também e cada vez
mais atividade teórica” (Cerroni, 1993:18). Ora, na modernidade marcada pela reflexividade do conhecimento,
que sempre retorna como input para as práticas sociais,
isso vale para todo tipo de atividade (Giddens, 1991; Beck,
Giddens e Lash, 1997). Inclusive para os agenciamentos
constitutivos dos sujeitos e para o esforço de restabelecimento de um horizonte utópico totalizador, necessários à
conformação de um sujeito voltado para a reorganização
global da sociedade.
tes na organização da produção capitalista e, em conjunto, estão acelerando a velocidade das relações sociais, em
uma nova onda de compressão do tempo-espaço (Harvey,
1992). A circulação de informações em tempo real por
todo o planeta, as enormes capacidades de armazenamento
e transmissão de dados e o desenvolvimento de tecnologias digitais, a generalização da utilização da informática, embora hoje acessíveis apenas para uma pequena parte da humanidade, afetam a vida de todos. Abrem uma
nova esfera de valorização do capital, em que o trabalho
intelectual e criativo tem um lugar de destaque, além de
potencializar a expansão da indústria cultural e torná-la
mais cosmopolita.
As mudanças que advêm deste processo são grandes.
Mas tendem a ficar distantes das promessas de uma utopia comunicacional hoje bastante propagada.9 A informática é introduzida dentro de uma dinâmica social profundamente excludente. Seu potencial democratizador, inclusive
para o processo de subjetivação, permanecerá só como potencial se as forças políticas e sociais de oposição ao sistema que podem estabelecer outras configurações de poder não obtiverem vitórias decisivas. Além disso, os fatos
não falam por si mesmos: em face da saturação de informações, torna-se ainda mais decisivo sua seleção e análise. De qualquer forma, atualmente é bastante especulativo procurar traçar o perfil da sociedade capitalista que
resultará das mudanças em curso no modo de comunicação – inclusive porque outros processos também determinarão seus resultados. Neste sentido, os novos modos
de comunicação são, antes de tudo, um importante tema
de disputa política entre forças conservadoras e democratizadoras da sociedade.
Os Novos Modos de Comunicação
As transformações no tratamento, armazenamento, divulgação e utilização de informações afetam a forma como
compreendemos a realidade. Ao oferecerem novos instrumentos e estabelecerem novos canais pelos quais circulam as informações, as transformações nos modos de
comunicação têm tido amplo alcance civilizacional. Foi
assim com o emprego da escrita pelas primeiras civilizações históricas (contribuindo para consolidar impérios e
burocracias), a difusão do alfabeto na Grécia (que contribuiu para o florescimento da sua cultura), a invenção da
imprensa no século XV (e seu impacto sobre o renascimento em curso, a reforma protestante e a posterior formação da ciência moderna) e o surgimento da mídia de
massa no início do século XX, dimensão vital da experiência moderna (Goody, 1988, 1990, 1994; Havelock,
1982; Eisenstein, 1998). Estas grandes alterações no modo
de comunicação em geral caminham junto com mudanças importantes no modo de produção. Se, de um lado,
ampliam horizontes, de outro também reorganizam posições de poder e redefinem fronteiras, estabelecendo novos ganhadores e perdedores na sociedade.
As transformações associadas ao desenvolvimento da
informática que estão se sucedendo correspondem a uma
importante revolução no modo de comunicação. 8 Elas
estão igualmente associadas a transformações importan-
A Simbiose entre Sociedade e Natureza
A ecologia representou um importante avanço intelectual, desvendando as relações entre sociedade e natureza.
Seu surgimento resultou da aplicação ao estudo dos ecossistemas de uma abordagem positiva da ciência moderna.
Mas ela amadurece sob uma dupla dinâmica (Acot, 1990).
De um lado, interna ao seu próprio discurso: a compreensão dos ecossistemas sobre os quais os seres humanos têm
um papel decisivo exclui a dicotomia positivista sujeitoobjeto e remete para o terreno da “complexidade”. De
outro, externa: sociedades do passado já sofreram crises e
mesmo colapsos ecológicos, mas a dimensão global da crise
ecológica em desenvolvimento sob o capitalismo mundializado é de uma gravidade superior a todas aquelas conhecidas pela tradição histórica ocidental.
O impacto das atividades humanas afeta hoje o conjunto da biosfera e cria problemas planetários. Além do
risco de uma apocalíptica guerra nuclear, somam-se ou-
82
SUJEITOS E UTOPIAS NO CAPITALISMO TARDIO
tros como o efeito estufa, a diminuição da camada de ozônio, a redução da biodiversidade, o risco de acidentes
químicos ou nucleares. Nações inteiras podem desaparecer pelo aquecimento global e a elevação do nível dos
mares. Nenhum destes problemas pode ser solucionado
no âmbito nacional, apenas por um grupo de países ou
pela ação das forças estruturantes do mercado mundial.
Como afirma Jean Paul Deléage, “as selvas devastadas, as terras desertificadas, os rios poluídos e a atmosfera transformada em escala planetária: as inumeráveis crises locais convergem numa crise global do meio ambiente,
que toma hoje a dimensão de uma verdadeira crise de civilização. A constituição de um espaço produtivo mundial conduz em si à unificação ecológica do mundo. Esta
situação crítica nada tem de passageira, mesmo que, em
alguns casos, possa-se observar o restabelecimento de um
meio ambiente um pouco menos poluído e, convém sublinhar, isto ocorre unicamente nas sociedades ricas do
Ocidente industrializado. Para falar a verdade, estas degradações, destacadas por espetaculares acidentes, inscreve-se numa deterioração de longo prazo dos fundamentos ecológicos da sociedade e da economia mundiais”
(Deléage, 1993:66).
A ecologia está repercutindo não só nos discursos científicos, mas também políticos, jurídicos, filosóficos, etc.
Como a expressão talvez mais importante da visão de
mundo romântica nos dias de hoje, a ecologia está na raiz
de projetos políticos muito distintos, alguns abertamente
reacionários, outros de alcance revolucionário. Nesta linha, importantes correntes ambientalistas e eco-socialistas desenvolveram uma crítica contundente das conseqüências ambientais desastrosas produzidas pela economia
mercantil e pela lógica do mercado, que opera sempre no
curto prazo e não é capaz de respeitar a temporalidade
ecológica (Passet, 1996; Alier e Schlüpmann, 1991).
Mas a questão ecológica aparece também estreitamente
imbricada com o problema do desenvolvimento econômico e social e das desigualdades entre nações. Colocase no centro da contenda “norte-sul”, da relação centroperiferia do sistema capitalista internacional. Qualquer
alternativa de organização social e econômica ao capitalismo deve ser pensada hoje também a partir de paradigmas ecológicos.
debate científico. Porém, um conhecimento clivado entre
as ciências sociais e as naturais, sem que se tenham efetivamente construído pontes entre elas: há uma influência
do modelo da física newtoniana, expresso no positivismo,
sobre as ciências humanas, mas isso sempre foi mais um
defeito do que uma virtude, alimentando a ilusão de uma
neutralidade axiológica. O corpo de conhecimentos substantivos capazes de articular natureza e sociedade era
muito reduzido. As tentativas neste sentido levaram à
naturalização da ação humana, numa trajetória desastrosa, que vai do social-darwinismo do século XIX à sociobiologia de hoje (que tende a reduzir o comportamento
dos seres humanos a uma programação genética).10
Mas trilhas ligando os dois territórios começam lentamente a emergir das brumas. São ainda pequenos caminhos, que não justificam o ambicioso e abstrato discurso
metodológico sobre a inter-relação entre a vida e a inteligência que emergiu na antropologia com a crise do estruturalismo (Morin, s.d.). Mas são pontes efetivas, laboriosamente construídas por longos debates e pesquisas
empíricas. E duas delas – além da ecologia e de sua constatação dos limites ecológicos da existência social – já
podem ser trilhadas com alguma segurança, cobrando daqueles que as percorrem que retirem conseqüências políticas de suas caminhadas.
De um lado, as pesquisas neurológicas tornam obsoleta grande parte das especulações da filosofia da mente
estruturada sobre dualismos de corpo e mente (ou alma)
e razão e emoção. Os estudos sobre a consciência mostraram que não existe uma “razão pura”; a razão está
indissoluvelmente ligada às emoções e ambas ao corpo
(Damásio, 1996). As emoções e sentimentos estabelecem
o elo indispensável entre o corpo e a consciência, possibilitando o processo de tomada de decisões e uma abordagem eficaz do mundo – e, portanto, a práxis. As instituições e estruturas éticas mais elaboradas, embora tenham
surgido e sido transmitidas de forma cultural, deitam raízes nas estruturas mentais humanas.
De outro lado, com um caráter complementar, temos
uma reinterpretação da obra de Darwin, em que a descendência com modificações (Darwin evita o uso da palavra evolução) que deu origem ao ser humano conhece
uma ruptura decisiva.11 Há um “efeito reversivo da evolução”, já que a evolução, regida pela lei da seleção, produz a sociedade que, por sua vez, desenvolve os instintos
sociais e exclui, cada vez mais, os comportamentos eliminatórios e seletivos, através da ética e das instituições
(Tort, 1983, 1985 e 1996). A sociabilidade e a ética por
ela requerida passam, assim, a se enraizar na própria condição de existência do ser humano.
Os termos do debate milenar tradicional sobre a natureza humana – intrinsecamente boa, intrinsecamente
A Especificidade do Humano
A ecologia coloca em foco um problema metodológico maior. A compreensão da especificidade do humano
tem sido sempre tributária do patamar de conhecimentos
acumulados pela sociedade e do horizonte epistemológico de cada época. E, desde o Iluminismo, a apreensão da
natureza humana tem sido cada vez mais marcada pelo
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
egoísta ou uma construção histórica sem relação claramente estabelecida com o substrato biológico do ser humano – podem ser agora bastante circunscritos, embora
ainda sejam muito amplos. O crescente avanço das ciências biológicas introduz enormes saltos nos nossos conhecimentos, bem como problemas cada vez mais complexos e questões éticas desafiadoras, que a cada momento
colocam em foco os limites da condição humana. O estágio atual de nossos conhecimentos ainda não oferece um
panorama acabado do que é próprio de nossa espécie, nem
permite afirmarmos a exeqüibilidade do projeto de uma
metaciência, que integraria as ciências humanas e naturais. Mas as ciências já apontam para uma fundamentação materialista da ética, bem como constatam que a liberdade é atributo inalienável do ser humano na medida
em que ele se torna sujeito.
dagem mecanicista do determinismo, que marcou muitos
teóricos socialistas. A causalidade social é complexa, fruto
de interações que tornam suas conseqüências imprevisíveis, tendo de incorporar a ação de agentes conscientes e
da disputa que travam. Partindo deste pressuposto, é notável o avanço que representa o corpo de conhecimentos
acumulados pelo debate atual. As relações e redes de poder econômico, político, militar, científico e ideológico
responsáveis pela reprodução da sociedade vêm sendo
esmiuçadas, revelando a trama de suas determinações recíprocas e possibilitando uma compreensão mais acurada da sociabilidade capitalista.
As repercussões são imediatas: a atividade política não
é uma ciência (e muito menos uma ciência exata), não
opera apenas a partir de tendências históricas. A analogia
que permite melhor captar suas características é aquela
das formas de arte que empregam o conhecimento científico para obter o resultado artístico desejado. Os projetos
políticos são sempre aplicados em cenários específicos e
o conhecimento das tendências estruturantes do social tem
que se combinar com o conhecimento da realidade concreta para que as propostas políticas sejam efetivas. Nesta medida, o reconhecimento e a compreensão das implicações da diversidade de fontes do poder social enriquece
o entendimento das condições da atuação política dos
sujeitos que se formam para alterar o status quo.
A Diversidade das Fontes de Poder Social
O marxismo deixou uma marca indelével na teoria
social. As temáticas por ele colocadas e a ambição de
apresentar uma narrativa coerente da evolução histórica,
seu espírito de síntese, não podiam ser ignoradas e acabaram norteando boa parte do debate das ciências humanas. Se a questão da luta de classes recebeu um forte
rechaço do pensamento conservador, o tema do determinismo e do papel do econômico provocou um outro tipo
de incômodo, parecendo restringir em demasia a constituição e a margem de manobra dos sujeitos. Foi neste
espaço que a idéia de sujeito auto-instituído formulada por
Weber cresceu como alternativa teórica ao marxismo.
Mas seja como desenvolvimento ao projeto marxista,
seja como crítica a ele, o debate sociológico atual parece
ter retomado o espírito desse programa de pesquisa sistematizador – numa negação direta das propostas metodológicas pós-modernas e seu rechaço das metanarrativas.
Tendo como referência principalmente as obras de Marx
e Weber, autores tão diversos como Giddens, Mann,
Runciman, Gellner, Bourdieu e Habermas têm se voltado
para o estudo dos padrões fundamentais da evolução social e a articulação de suas determinações estruturais. A
ambição de formular uma “ciência da história” ecoa hoje,
mesmo nas obras elaboradas, para refutar a preponderância do econômico na determinação do social.
Este debate pode ser apresentado como um esforço para
salientar a diversidade das fontes de poder social e, em
conseqüência, a existência de maiores espaços para a ação
autônoma dos seres humanos. Se hoje parece evidente que
a análise do capitalismo empreendida por Marx é mais
atual do que nunca e que a formação dos sujeitos políticos articula-se com determinações estruturais do social,
também emergem com clareza os equívocos de uma abor-
IDENTIDADES, DIFERENÇAS E SUJEITOS
Uma síntese das implicações políticas destes debates
pode ser encontrada na discussão em torno da questão de
identidade e diferença. As correntes pós-modernas estabeleceram uma sólida ligação entre razão e poder e fizeram das pretensões de universalidade do conhecimento
expressões dos interesses particulares de setores e de categorias sociais. As manifestações da razão universal no
terreno social visariam sempre perpetuar o controle daqueles em posições de domínio sobre os dominados (seja
da burguesia sobre os trabalhadores, dos homens sobre
as mulheres, dos brancos sobre os negros, dos heterossexuais sobre os homossexuais, dos médicos sobre os pacientes, etc.). A razão seria intrinsecamente dominadora, totalitária, e levaria sempre à dominação do “outro” – daí a
necessidade de uma política da particularidade, da afirmação da diferença, da alteridade (um panorama deste
debate pode ser encontrado em Rajchman, 1995 e Hollanda, 1991). Um relativismo extremado termina por conduzir, no terreno epistemológico, ao questionamento da própria idéia de verdade (ver, por exemplo, para o caso do
feminismo, Flax, 1991).
Habermas encabeçou, em resposta a estes ataques, a
defesa do Iluminismo (e da modernidade) como projeto
84
SUJEITOS E UTOPIAS NO CAPITALISMO TARDIO
inacabado. Ele não empreendeu a defesa da razão e da
teoria no sentido forte da metafísica, como expressão de
uma legalidade imanente à história e à sociedade, capaz
de oferecer sentido à existência humana. Afirmou, porém,
um universalismo ligado ao potencial humano para a linguagem e a premissa do diálogo que ela carrega, uma razão comunicativa estabelecida pela vida do ser humano
em comunidade (Habermas, 1990a, 1990b). A idéia de
que o discurso formulado por um coletivo e o diálogo que
nele se estabelece são decisivos na constituição de uma
identidade e de um sujeito coletivos emerge com força da
teoria da ação comunicativa. Habermas não é, todavia,
capaz de enfrentar a principal objeção pós-moderna: a
razão e a ciência também podem ser elementos de dominação, cristalizar hierarquias de poder e a crítica a elas
possui um conteúdo emancipador.
Uma posição distinta foi formulada, ainda nos anos 60,
por Adorno e não encontrou então muito eco, embora surja
no estágio atual do debate como a resposta filosófica mais
bem elaborada para este problema. Para ele, o conceito
opera pela lógica da identidade, realizando sempre uma
redução (e empobrecimento) da realidade ao subsumir uma
grande variedade de aspectos em torno de grades abstratas, ao eliminar as particularidades concretas. Ao integrar
a alteridade do mundo na unidade do pensamento, o conceito tende a eliminar não apenas a alteridade mas também o novo.
A riqueza da formulação de Adorno está em ver na
identidade não apenas um problema lógico e epistemológico, mas em explorar sua dimensão subjetiva e histórico-social. De um lado, na Dialética do esclarecimento,
ele e Horkheimer mostram como a identidade psicológica tem de ser mantida, contrapondo-se tanto à repetição
indefinida daquilo que já se conhece, o eu fechado em si
mesmo, temeroso de qualquer surpresa, quanto ao fluxo
de perpétuas mudanças, que ameaça dissolver sujeito e
objeto (Adorno e Horkheimer, 1985). A identidade psicológica é um mecanismo de sobrevivência e de práxis
do ser humano num mundo sobre o qual ele tem de agir.
De outro lado, Adorno destaca, principalmente na Dialética negativa, que a abstração que produz a identidade é
também o resultado de um processo histórico (e econômico) que, na modernidade, vai se materializar na troca,
na equivalência e na generalização da produção de mercadorias. Tomando como modelo a análise de Marx da
mercadoria, que faz abstração de suas qualidades particulares, embora não possa prescindir delas para estabelecer a identidade entre coisas diversas, Adorno concebe a
necessidade de se apreender a identidade e a não-identidade, o elemento de alteridade, da particularidade concreta que a abstração do conceito suprime (Adorno, 1975a;
Jameson, 1997). E a apreensão da alteridade, do outro de
algo, do extrínseco só pode ser feita inserindo-o em uma
totalidade maior, no processo que o constitui e o abarca.
O “sistema” ou totalidade é aqui reintroduzido como libertação da prisão da identidade e não como a camisade-força que aprisiona o real; o sistema, como a história,
é necessariamente aberto.12
Se o universalismo abstrato é sempre estabelecido suprimindo-se as particularidades, a identidade e a diferença só podem ser plenamente estabelecidas nos marcos mais
gerais do sistema (apreendido a partir da dialética). E como
o indivíduo tem de afirmar sua identidade lutando contra
a tentação de fechar-se em si mesmo e de dissolver-se no
fluxo permanente dos acontecimentos, também os sujeitos coletivos têm de afirmar suas identidades lutando nas
duas direções. De um lado, buscando preservar a identidade de seus membros; de outro, universalizando-se, mas
resistindo à violência da abstração das qualidades particulares do concreto.
Esta operação só pode ser realizada no terreno da política, onde as tensões e contradições são permanentemente
administradas, levando ao fortalecimento e ampliação ou
diluição e desagregação dos sujeitos, sempre na relação
com o outro.13 Nesta medida, sujeitos supõem a alteridade e só podem ser históricos; o universal só existe como
concreto. Não há sujeitos imanentes à história ou a qualquer de suas grandes etapas.
VISÕES DE MUNDO, UTOPIAS E
SUJEITO REVOLUCIONÁRIO
As diferentes posturas em face da modernidade capitalista delineiam as visões sociais de mundo fundamentais de nossa época: a sua aceitação por uma posição individualista, liberal e iluminista, que se identifica com a
modernidade e o capitalismo como progresso humano; sua
crítica pelo romantismo em nome dos valores e referências comunitários do passado, perdidos na modernização;
e sua crítica pelo socialismo em nome de um futuro que
combine o melhor do passado e do presente, inclusive a
valorização do indivíduo nos marcos de uma comunidade reconstituída (Leite, 1998; Löwy e Sayre, 1995).
Se a economia política e o positivismo foram as teorias que vertebraram a visão de mundo liberal iluminista,
foi o marxismo que possibilitou a consolidação de uma
visão de mundo socialista e dialética. Ele o fez associando a crítica do capitalismo ao horizonte utópico comunista, que permitiria a plena realização de todas as potencialidades humanas. E apresentando o proletariado como
sujeito revolucionário de uma história quase sempre identificada com o progresso.
Ora, se o proletariado ainda carrega potencialidades
revolucionárias, ele está longe de ser o sujeito imanente
85
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
da história humana, como o marxismo clássico o apresentou. E o comunismo como horizonte de futuro sofreu
uma derrota gigantesca entre 1989 e 1991: por mais que
as sociedades burocráticas estivessem longe de ser socialistas ou comunistas por qualquer definição teórica anterior do termo, elas se apresentavam assim e eram vistas
como tais pela maior parte da população do planeta. A
crítica socialista da modernidade encontra-se, então, fragilizada no terreno político.
Mas a transformação profunda por que passa o capitalismo está, de um lado, demonstrando seu grande dinamismo tecnológico, sua capacidade de gerar riquezas e
de deslocar as fronteiras nacionais e, de outro, impondo
um padrão de acumulação excludente ao extremo, aprofundando as desigualdades e injustiças. Vivemos em um
mundo muito rico, mas injusto o bastante para que milhões de pessoas morram todos os anos de fome e doenças curáveis. Um mundo ameaçado por riscos de alta conseqüência, que a qualquer momento podem ceifar milhares
de vidas. Um mundo onde os benefícios do desenvolvimento estão se concentrando nas mãos de 10% da população mundial. Mesmo aqueles que defendem o capitalismo como a melhor alternativa de organização da sociedade
não podem negar as estatísticas que mostram que os seus
traços sociais mais regressivos vêm sendo aprofundados
nas duas últimas décadas.14
Para alterar esse mundo, faz-se necessária uma perspectiva de futuro, um horizonte utópico, que só pode surgir da síntese entre as perspectivas iluminista e romântica, o mesmo tipo de síntese que permitiu que a teoria
marxista consolidasse, no século passado, uma visão de
mundo socialista e dialética.15 De uma parte, temos hoje
um rico reavivar da crítica romântica da civilização moderna pelo pensamento ecológico, uma reflexão muito
mais contundente nas suas conseqüências para a oposição ao capitalismo e à lógica mercantil do que quase tudo
aquilo que as forças políticas de esquerda produziram. De
outra parte, as realidades e as promessas do progresso
técnico e do avanço das ciências atingiram patamares antes
inimagináveis. Mas a ciência e a técnica só representam
progresso se a organização social em que elas estão inseridas permitir que seus benefícios não se tornem privilégio de uma pequena parcela da população, que seus ganhos sejam difundidos para toda a sociedade. As promessas
do Iluminismo de emancipação da humanidade do obscurantismo ainda estão por ser realizadas para quatro bilhões
de pessoas.
O nacionalismo está em regressão no mundo de hoje,
mas dificilmente será extinto. Tende, todavia, a se manifestar como uma reação de defesa em face do universalismo mercantil do capitalismo globalizado, ganhando um
caráter cada vez mais excludente num mundo crescente-
mente cosmopolita e multicultural. É o socialismo que
pode voltar a produzir o agenciamento utópico capaz de
permitir a formação de um sujeito político totalizador.
O socialismo tendeu a permanecer, seja como projeto
político, seja como horizonte utópico, seja como instituição, prisioneiro de uma visão industrialista e cientificista
da sociedade e da política, atado à idéia linear de progresso. Neste aspecto, ele foi quase sempre polarizado pelo
pensamento liberal e iluminista. Isso favoreceu que ele
pudesse até mesmo se transformar, em muitos países, em
doutrina de modernização social e econômica. O socialismo só poderá recuperar um lugar efetivo na sociedade
se conquistar sua autonomia como postura distintiva em
face da modernidade, radicalizando sua crítica da civilização burguesa, sendo dialético no sentido de superar a
modernidade, preservando suas conquistas, mas simultaneamente rompendo com ela como totalidade histórica
(Anderson, 1986). Miguel Abensour capta um aspecto
essencial da contribuição de Marx quando destaca que,
para ele, o utópico (no sentido pejorativo do termo) era a
defesa de uma revolução parcial, somente política. Apenas uma revolução total seria capaz de vencer o dinamismo avassalador do capitalismo, uma revolução para realizar a emancipação completa da humanidade.16
A utopia da plena emancipação humana tem de ser
estabelecida hoje à luz das experiências históricas do século XX, mas também à luz das aspirações utópicas vividas por pessoas das mais diferentes convicções políticas.
Neste sentido, tanto o Iluminismo como o Romantismo
apreendem dimensões essenciais da modernidade, que têm
de ser integradas em um mesmo projeto de sociedade, em
uma mesma utopia: as promessas da ciência gerando
afluência para todos e um mundo onde exista uma comunhão com a natureza; as conquistas da autonomia, dos
direitos individuais e do respeito às diferenças e o sentido de comunidade; o cosmopolitismo e a diversidade cultural; o dinamismo social e o cuidado, a solidariedade e a
ética nas relações humanas.
Quem pode sustentar praticamente tal perspectiva de
futuro?
Como toda concepção de mundo, a proposta de superação do capitalismo só ganha efetividade associando-se
a determinados segmentos sociais, no caso as vítimas do
sistema que não queiram simplesmente retornar ao passado pré-capitalista. Potencialmente, trata-se não apenas
dos assalariados cuja força de trabalho é explorada, mas
também daqueles cuja capacidade criativa é incorporada
para gerar mais lucros e daqueles que vêm sendo permanentemente marginalizados pelo sistema.
E mais: à luz das conquistas – em termos de constituição de identidades, organizações e autonomia de ação –
dos sujeitos estabelecidos na sociedade, qualquer movi-
86
SUJEITOS E UTOPIAS NO CAPITALISMO TARDIO
mento político de oposição ao capitalismo neoliberal terá
de ser concebido como uma coalizão de interesses diversos, um sujeito revolucionário formado a partir do diálogo, organização e ação conjunta de múltiplos sujeitos. Se
não há sujeito imanente da história, nem por isso o capitalismo deixa de apresentar contradições sistêmicas, estruturais, vividas como tais por vários setores. A miríade
de movimentos sociais que se formaram e continuarão se
formando no século XXI não vão se perfilar de forma
militar atrás dos trabalhadores, por mais decisivo que possa
ser seu peso social (supondo que eles pactuem o que representam suas aspirações como classe – o que ainda está
por ser estabelecido). Mas podem debater e pôr em marcha
ações conjuntas contra um adversário comum e visualizar
uma sociedade em que a miséria, o arbítrio e injustiças, opressões e desigualdades sociais tenham sido eliminados.
dental, todos se consideram democratas. Esse fato representa uma extraordinária mudança com relação à situação predominante há cento e cinqüenta anos. Em parte,
isso se tornou possível graças a uma drástica redução no
elemento de participação popular que havia na concepção original grega de democracia. A disseminação de uma
teoria justificando tal redução contribuiu muito, no campo ideológico, para que ela ocorresse. A teoria elitista,
como é usualmente chamada, sustenta que a democracia
só pode funcionar e sobreviver sob uma oligarquia de facto
de políticos e burocratas profissionais; que a participação popular deve ser restrita a eleições eventuais; que,
em outras palavras, a apatia política do povo é algo bom,
um indício de saúde da sociedade” (Finley, 1988:11).
Além disso, quando a globalização desloca os centros
de decisão para as questões mais importantes da sociedade para as corporações multinacionais, a capacidade das
populações decidirem democraticamente seus destinos é
colocada em questão. David Held lembra que “não muito
abaixo do triunfo da democracia existe um paradoxo
manifesto: enquanto se defende novamente a idéia do
‘governo do povo’, a própria eficácia da democracia como
forma nacional de organização política é colocada em dúvida. As nações estão proclamando a democracia no próprio momento em que as mudanças na ordem internacional estão comprometendo a possibilidade de uma
nação-estado democrática independente. Na medida em
que amplas áreas da atividade humana organizam-se de
forma progressiva em nível internacional, o destino da democracia está carregado de incerteza” (Held, 1991:360-1).
E em sociedades profundamente desiguais, onde uma
ampla miséria coexiste com fortes pólos de poder econômico, regimes representativos se mantêm através de todo
tipo de manipulação dos processos e legislações eleitorais, da aceitação de gritante deformação dos sistemas de
representação e de distintas formas de compra de votos.
O Brasil é um bom exemplo dessa utilização da miséria e
de instituições arcaicas para a manutenção do domínio
político oligárquico.17
Assim, o diagnóstico que emerge do mundo do capitalismo tardio é, sob a forma de uma democracia representativa, o de um esvaziamento da política como atuação
cidadã em detrimento de sua transformação em espetáculo e como tal em manipulação (Lasch, 1984 e 1986;
Sennett, 1988; Debord, 1997). O resultado é uma frustração de parte importante da população com a atividade
política e uma fragilização ainda maior da representação
como expressão democrática da vontade popular (Leite,
1996).
A posição dominante no movimento socialista foi a de
aceitar e reproduzir a mesma falsa contraposição entre
participação e representação do liberalismo – seja entre
SUJEITOS, REPRESENTAÇÃO E
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
Para Jacques Rancière, “a política da emancipação é a
política do eu como um outro, ou em termos gregos, a
heteron. A lógica da emancipação é uma heterologia”
(Rancière, 1995:65). Só há emancipação coletiva e ela
pressupõe a relação de alteridade, como insiste corretamente Lévinas (1993). A atual multiplicação de sujeitos
políticos representa, neste sentido, um grande enriquecimento do potencial emancipador humano.
Ela impõe, todavia, uma lógica própria. Toda a experiência efetiva de constituição destes sujeitos políticos se
dá pela participação e envolvimento direto das pessoas.
Seja em um movimento de bairro, em uma organização
feminista, em um sindicato ou em um partido comprometido com a transformação social, o que determina sua
força são o engajamento e a militância (em sentido cada
vez mais distinto daquele dado pela raiz comum com a
palavra militar). As grandes transformações sociais sustentam-se na participação e na mobilização populares. Só
existe emancipação efetiva como auto-emancipação.
O fim das ditaduras burocráticas no leste europeu e das
ditaduras militares em muitos países da periferia significou um passo importante para a democracia. Mas acirrou
ainda mais a contraposição pelo liberalismo contemporâneo entre participação e representação: a democracia foi
igualada a regimes representativos e a participação taxada de autoritária. As descrições da evolução e do funcionamento do poder político no mundo atual apontam, todavia, para um quadro oposto: o da contraposição entre
as formas estabelecidas de representação política e a democracia na acepção básica de poder do povo.
Moses Finley abre seu livro Democracia antiga e moderna apontando essa contradição: “Hoje, no mundo oci-
87
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
sobre os responsáveis pelas tomadas de decisões fundamentais nesta sociedade
tem sido chamada pelos analistas de “déficit democrático” e torna-se mais grave
na medida em que o processo de unificação avança (Gabriel, 1992).
democracia socialista e democracia burguesa no viés comunista, seja entre ditadura e democracia no viés socialdemocrata. Correntes revolucionárias não foram capazes
de estabelecer regimes democráticos na seqüência de processos revolucionários e terminaram se identificando com
regimes despóticos. Quase todas foram incapazes de empreender uma crítica prática dos limites dos regimes liberais, de se opor ao esvaziamento da esfera pública e de
vincular sua ação política atual a seu projeto mais amplo
de reorganização democrática da sociedade.
Mas a transformação da sociedade só pode se dar através da reabilitação da política como atividade pela qual
os cidadãos coletivamente busquem definir seu destino
comum. E a participação é a única forma de revalorizar a
política, criando as condições para que a própria representação tenha o sentido de compor uma vontade comum
no espírito republicano. A política não voltará a ter credibilidade, legitimidade, nem a ser considerada uma atividade importante, nem tampouco a cidadania política um
sinal positivo se uma esfera pública não for reconstituída
através da participação dos múltiplos sujeitos da atualidade.
A representação jamais poderá ser eliminada, substituída integralmente pela participação. A mobilização popular conhece fluxos e refluxos e mecanismos de representação têm de ser institucionalizados para viabilizarem
a organização democrática do poder político. O mesmo
se aplica à participação. E uma das potencialidades mais
importantes da revolução em curso nos modos de comunicação é que ela pode levar a uma enorme ampliação da
participação popular na condução dos negócios públicos,
a ponto de os eleitores assumirem diretamente a decisão
sobre as questões fundamentais para o rumo da sociedade, deixando ao sistema representativo o seu desdobramento – o que, evidentemente, pressupõe outra estrutura
de poder e outra cultura política (Budge, 1996).
O alcance estratégico da participação é, porém, muito
maior. Só ela propicia a superação da atomização do indivíduo na sociedade moderna através da formação de
sujeitos políticos, que têm de se posicionar coletivamente sobre as questões da sociedade. É a partir deste tipo de
experiência política que serão forjados os sujeitos capazes de lidar democraticamente com a alteridade e o conflito, de construir na diferença projetos comuns e de sonhar com outra sociedade.
2. Os perigos deste quadro, mesmo nos regimes democráticos liberais dos países
centrais, não deixam de preocupar diversos analistas. Assim, o filósofo francês
Jean-Marie Vincent afirma: “Instauram-se dispositivos políticos maquínicos que
manifestam a maior indiferença pela vida e a morte e incitam suas engrenagens
humanas a perpetrar as maiores perversidades de modo burocrático administrativo. O paroxismo do totalitarismo surge, neste sentido, como inseparável de
uma tripla aliança: sociabilidade exterior aos indivíduos, subordinação do poder
de fazer ao poder sobre os homens, desenvolvimento da tecnologia como domínio de coisas graças ao domínio dos homens e de seu trabalho. É por isso que
devemos reconhecer que a era das catástrofes está longe de situar-se atrás de nós
e que os países ocidentais não devem ser vistos como portos definitivamente
seguros, ao abrigo das tempestades que se abatem sobre outras zonas do mundo”
(Vincent, 1987:11-12). Essa observação pode ser melhor medida à luz da cumplicidade francesa no recente genocídio em Ruanda ou a passividade dos países
europeus frente às operações de “limpeza étnica” na Bósnia.
3. “Depois do trauma de 1973, a pressão pela desregulamentação nas finanças
adquiriu impulso nos anos 70 e, por volta de 1986, engolfou todos os centros
financeiros do mundo (as celebradas reformas ‘estrondosas’ de Londres, feitas
naquele ano, deixaram tudo bem claro). A desregulamentação e a inovação financeira – processos longos e complicados – tinham se tornado, na época, um
requisito para a sobrevivência de todo centro financeiro mundial num sistema
global altamente integrado, coordenado pelas telecomunicações instantâneas. A
formação de um mercado de ações global, de mercados futuros de mercadorias
(e até de dívidas) globais, de acordos de compensação recíproca de taxas de juros e moedas, ao lado da acelerada mobilidade geográfica de fundos, significou,
pela primeira vez, a criação de um único mercado mundial de dinheiro e de crédito... Os novos sistemas financeiros implementados a partir de 1972 mudaram
o equilíbrio de forças em ação no capitalismo global, dando muito mais autonomia ao sistema bancário e financeiro em comparação com o financiamento corporativo, estatal e pessoal. A acumulação flexível evidentemente procura o capital financeiro como poder coordenador mais do que o fordismo o fazia. Isso
significa que a potencialidade de formação de crises financeiras e monetárias
autônomas e independentes é muito maior do que antes, apesar do sistema financeiro ter mais condições de minimizar riscos através da diversificação e da rápida transferência de fundos de empresas, regiões e setores em decadência para
empresas, regiões e setores lucrativos. Boa parte da fluidez, da instabilidade e
do frenesi pode ser atribuída diretamente ao aumento da capacidade de dirigir os
fluxos de capital para lá e para cá de maneiras que quase parecem desprezar as
restrições de tempo e de espaço que costumam ter efeito sobre as atividades
materiais de produção e de consumo” (Harvey, 1992:152 e 155). Outras análises
do padrão de acumulação capitalista no período posterior à Segunda Guerra
Mundial (e, portanto, das mudanças a partir dos anos 70) estão em Mandel (1982),
Piore e Sabel (1984), Lash e Urry (1987), Aglieta (1979) e Lipietz (1982). Para
o debate do papel da financeirização no capitalismo atual, ver também Chesnais
(1996) e Husson (1995).
4. “Em 1989 parece haver terminado a guerra civil internacional iniciada em
1917. A queda do muro de Berlim simboliza o fim de um ciclo de lutas de classes, em escala mundial, iniciado emblematicamente com a revolução soviética.
Uma época de revolução e contra-revolução permanentes, envolvendo sociedades industrializadas e agrícolas, dominantes e dependentes, metropolitanas e
coloniais. Realizaram-se experimentos políticos notáveis, em diferentes direções...
Todos revelaram-se experimentos simultaneamente nacionais e internacionais,
por suas diversas versões e influências, assim como pelas reações que provocam” (Ianni, 1992:30). Ou: “A grande mutação se deve à convergência de três
grandes processos inter-relacionados que, no seu conjunto, determinam o fim da
guerra entre os grandes blocos militares: a revolução tecnológica internacional,
a integração da economia mundial e da política européia-ocidental e o fim do
comunismo como sistema” (Castells, 1991: 66). Uma instigante linha de interpretação deste processo é a oferecida por David Harvey: “Vem ocorrendo uma
mudança abissal nas práticas culturais, bem como político-econômicas, desde
mais ou menos 1972. Essa mudança abissal está vinculada à emergência de novas maneiras dominantes pelas quais experimentamos o tempo e o espaço. Embora a simultaneidade nas dimensões mutantes do tempo e do espaço não seja
prova de conexão necessária ou causal, podem-se aduzir bases a priori em favor
da proposição de que há um novo tipo de relação necessária entre a ascensão de
formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação de capital e um novo ciclo de ‘compressão do tempo-espaço’ na organização do capitalismo. Mas essas mudanças, quando confrontadas com as regras
básicas de acumulação capitalista, mostram-se mais como transformações da
aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade
pós-capitalista ou mesmo pós-industrial inteiramente nova” (Harvey, 1992:7).
Ver também Hobsbawn (1996) e Mandel (1990).
NOTAS
5. “Um movimento social não é um movimento de um grupo sociológico. É um
movimento de sujeitos, de pessoas que tentam encontrar ou apreender uma identidade como lutadores através da própria recusa de sua identidade sociológica, a
identidade dada a eles pela ordem social (Rancière, 1995:88).
E-mail do autor: [email protected]
1. Isso é bastante claro no caso da Comunidade Européia, que passou a desempenhar uma série de atribuições antes de responsabilidade dos Estados nacionais, sem que tenham sido estabelecidos mecanismos de controle democrático
sobre a burocracia comunitária, sediada em Bruxelas. Essa ausência de controle
6. São mais conhecidas as passagens das teses 7, em que Benjamin afirma que
“nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento
88
SUJEITOS E UTOPIAS NO CAPITALISMO TARDIO
de barbárie”, e a tese 9, em que o anjo da história contempla o passado como um
amontoado crescente de ruínas, mas não pode reparar os danos, pois é impulsionado para o futuro pela tempestade do progresso (Benjamin, 1985:225-226).
tivação? É a formação de um que não é o eu mas é a relação do eu com o outro”
(Rancière, 1995:65-66).
14. René Dumont analisou a evolução da situação da África Tropical, mostrando
como o desenvolvimento do capitalismo está representando uma regressão em
aspectos fundamentais da vida destes povos. Entre 1900 e 1990, a população
passou de 100 para 500 milhões de habitantes, crescendo à taxa de 3% ao ano,
enquanto a produção agrícola cresceu a uma taxa entre 1,5% e 2% ao ano (Dumont,
1991). E Carles Dolç cita números igualmente impressionantes: “... durante os
anos 80, a renda per capita de quarenta países pobres caiu. A renda dos um bilhão de pessoas mais ricas é 150 vezes superior a dos um bilhão mais pobres,
tendo duplicado este desnível nas últimas três décadas (dados do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, 1992), tendência também presente no
interior dos próprios países ricos. Na atualidade, há um maior número de pobres
no mundo do que em qualquer outro momento da história: diversos informes
coincidem que cerca de 1,2 bilhão de pessoas vivem em plena miséria. O fato
paradoxal é que, ao mesmo tempo, a produção econômica mundial multiplicouse por cinco desde 1950 (informe do Worldwatch Institute de 1991)” (Dolç,
1993:69). E dados impressionantes falam também da evolução do outro extremo, dos Estados Unidos: “...o balanço do liberalismo agressivo de Reagan e Bush
não pode ser escondido. A taxa de mortalidade infantil é, no país, de 10,1 por
mil, o que coloca os EUA na 22 a posição mundial (tinha a 3a melhor taxa em
1950). Claro que se só contarmos com as crianças brancas, a situação é bem
melhor: 12 o lugar. Uma criança em cinco vive numa família abaixo do nível de
pobreza, doze milhões de crianças não têm qualquer assistência médica, seiscentos mil estudantes precisam de óculos que não têm, só 40% das crianças são
vacinadas antes de chegarem à escola e o preço das vacinas decuplicou durante
a década de 80. Registraram-se 2.545 casos de tuberculose em Nova York, contra 1.034 dez anos antes, e este Estado tem 60 mil orfãos de Aids, dos quais 15%
vivem com a doença. Estes são dados oficiais da saúde americana. Uma criança
negra em cada 28 vai morrer violentamente. Comparada com a Europa, a taxa de
homicídios entre 15 e 19 anos é dezenove vezes mais alta. No Harlem, uma pessoa tem 40% de hipotéses de viver até os 65 anos, enquanto que um bengali tem
55% de hipóteses” (Louçã, 1993:8).
7. “Hoje em dia, os mundos social e natural estão totalmente influenciados pelo
conhecimento humano reflexivo; mas isso não conduz a uma situação que nos
permita ser, coletivamente, os donos do nosso destino. Muito ao contrário: o
futuro se parece cada vez menos com o passado e, em alguns aspectos básicos,
tem se tornado muito ameaçador. Como espécie, não temos mais uma sobrevivência garantida, mesmo no curto prazo – e isto é uma conseqüência de nossos
próprios atos, como coletividade humana. Hoje em dia, a noção de ‘risco’ é fundamental para a cultura moderna justamente porque grande parte do nosso pensamento tem de ser do tipo ‘como se’. Em muitos aspectos de nossas vidas, tanto
individual como coletiva, temos que construir regularmente futuros potenciais, sabendo que essa mesma construção pode, na verdade, impedir que eles venham a
acontecer. Novas áreas de imprevisibilidade são muito freqüentemente criadas pelas
próprias tentativas que buscam controlá-las” (Beck, Giddens e Lash, 1997:8-9).
8. “A revolução tecnológica que amadureceu durante a década dos anos 80, a
partir das grandes inovações dos anos 70 (recorde-se: o microprocessador é inventado em 1971, a recombinação do ADN em 1973, o computador pessoal em
1975), representa um salto qualitativo nas nossas capacidades produtivas e de
gestão na medida em que faz penetrar a ciência na criação, tratamento e transmissão da informação, isto é, no processo central da atividade humana. A informação desempenha na atual revolução tecnológica o papel que a energia desempenhou nas duas revoluções industriais. E, tal como a energia, a informação caracteriza-se pelos seus efeitos intersticiais no conjunto da atividade humana: por
isso se trata de uma revolução tecnológica que afeta todo o sistema e não somente o processo produtivo e o mundo do trabalho, embora este seja o seu primeiro
âmbito de desenvolvimento. O fato desta revolução tecnológica se centrar na
informação liga diretamente, pela primeira vez na história, a capacidade cultural
e científica das sociedades com o desenvolvimento das forças produtivas, desde
que se realize realmente esta ligação através de uma organização social, institucional e empresarial que canalize a capacidade de manipulação simbólica para
os processos de produção informacionais” (Castells, 1991:66).
15. É um aspecto constitutivo do marxismo seu tensionamento entre o que Bloch
chamou de corrente fria e corrente quente. “A teoria de Marx e Engels aponta
tanto para a adesão ao projeto da modernidade quanto para a necessidade de sua
superação por outra forma de organização da sociedade. Tem, nesta medida, que
integrar duas tensões contraditórias. De um lado, temos a valorização do progresso e nessa medida do significado histórico progressista do mundo mercantil,
a valorização da ciência positiva, a valorização dos elementos libertadores presentes nas estruturas objetivas que conformam a sociabilidade capitalista. De
outro, temos a rejeição do mundo da alienação e do fetichismo, a defesa de uma
visão de história aberta a rupturas, da crítica ao mundo existente e de uma forma
de conhecimento capaz de incorporar esta crítica, do sujeito e de sua capacidade
de construir um mundo que supere tanto o organicismo opressor das sociedades
pré-capitalistas como o individualismo egoísta do capitalismo. O marxismo tem
que administrar permanentemente uma tensão constitutiva e inescapável entre
determinismo e liberdade, instrumentalidade e utopia, estrutura e sujeito, ciência positiva e dialética, comunidade e indivíduo. Este tensionamento é genético
e estrutural e vai perpassar toda a trajetória de Marx e Engels. Vai também alimentar a ‘pluralidade contraditória de marxismos’, já apontada por muitos analistas – ao ponto de Gouldner falar da existência de dois marxismos” (Leite, 1998:
96). Como destaca Enzo Traverso, “se seria falso reduzir o pensamento de Marx
ao ‘materialismo histórico’ de coloração positivista e evolucionista de Karl
Kautsky e Plekhanov, ou pior, aos dogmas clericais do ‘diamat’ estalinista, seria
também abusivo não ver estritamente nenhuma relação entre os dois. Da mesma
forma, se a utopia de Ernest Bloch e o messianismo libertário de Walter Benjamin não estão diretamente colocados na obra de Marx, não é apenas graças a
uma mistificação que eles se relacionam”. Comentando a obra de Daniel Bensaid,
Marx, L’intempestif (Bensaid, 1995), afirma que este autor “mostra de maneira
convincente que as tentativas de assimilar Marx a Comte não colam, mas ele não
tem nenhuma dificuldade de admitir que tanto Kautsky, com sua bagagem de
darwinismo social e de ciência positiva, quanto Benjamin, com sua abordagem
teológica, se inscrevem legitimamente no caminho aberto pelo autor de O Capital” (Traverso, 1996). Ver também Gouldner, 1983. Uma interpretação iluminista do marxismo bastante difundida no Brasil é a de Berman (1986). O papel
do romantismo na gênese do marxismo foi apontado por Löwy e Sayre (1993 e
1995) e por Löwy (1990). Charles Taylor aponta, em As fontes do self, como o
Iluminismo e o Romantismo estabeleceram a sensibilidade e os valores modernos e são as visões de mundo dominantes até hoje: ver o seu As fontes do self: a
construção da identidade moderna (Taylor, 1997); para suas interconexões com
o marxismo, ver o capítulo final de seu Hegel and modern society (Taylor, 1979).
9. Na verdade, as formulações sobre a sociedade informacional são já antigas e
recuam aos anos 60, bem antes do surgimento da informática, mesclando-se com
as primeiras teorias da sociedade pós-industrial. Eram então formulações de teóricos conservadores, principalmente norte-americanos. Analisando estas teorias
no final da década de 70, Kumar afirma: “... a diversidade de denominações para
esta nova sociedade evidencia tanto variedade como convergência; variedade nas
bases a partir das quais se analisa a mudança assim como na identificação das
principais forças promotoras da mudança; convergência na idéia de que as sociedades industriais estão entrando numa nova fase de sua evolução, falando-se em
uma transição tão decisiva como a que levou há um século as sociedades européias da sociedade agrária à sociedade industrial. Dessa forma, Amitai Etzioni
fala da ‘era pós-moderna’, George Lichtheim da ‘sociedade pós-burguesa’,
Herman Kahn da ‘sociedade pós-econômica’, Murray Bookchin da ‘sociedade
pós-escassez’, Kenneth Boulding da ‘sociedade pós-civilizada’ e Daniel Bell
simplesmente da ‘sociedade pós-industrial’. Outros, colocando ênfases mais precisas, têm falado da ‘sociedade do conhecimento’ (Peter Drucker), da ‘sociedade dos serviços pessoais’ (Paul Halmos), da ‘sociedade classista de serviços’
(Ralph Dahrendorf) ou da ‘era tecnotrônica’ (Zbigniew Brzezinski)” (Kumar,
1978:193). Em 1980, Bell assumiria a tese da sociedade da informação, que seria popularizada em obras como A terceira onda (1981), de Alvin Toffler (que já
tinha difundido a tese da sociedade pós-industrial em O choque do futuro) e
Megatendências (1984), de John Naisbitt (Kumar, 1997:21).
10. A publicação de Sociobiologia, obra de Edward Wilson, um especialista no
estudo da organização “social” dos insetos, recrudesceu as formulações de um
novo “darwinismo social” e desencadeou, depois de 1975, uma intensa polêmica, forçando a rediscussão da herança darwinista. A obra de Patrick Tort sobre
Darwin é por ele concebida como uma “refutação darwiniana da nova direita”.
11. Stephen Gould mostra-nos como Darwin rejeitava a aplicação da idéia de
progresso à sua teoria. A idéia-chave de Darwin é a de “descendência com modificações”. Ele inclusive evitava a palavra “evolução”, utilizando em seu lugar
a palavra evolver, que fecha A origem das espécies. Como diz Gould, Darwin
escolheu-a “porque quis contrastar o fluxo do desenvolvimento orgânico com a
fixidez das leis físicas como a gravidade. Mas era uma palavra por ele usada
muito raramente, já que Darwin rejeitava explicitamente equacionar o que agora
chamamos de evolução com qualquer noção de progresso. Num famoso epigrama,
Darwin faz uma recomendação a si próprio, para não dizer jamais ‘superior’ ou
‘inferior’ ao descrever a estrutura dos organismos – porque, se uma ameba está
tão bem adaptada a seu meio ambiente quanto nós ao nosso, quem pode dizer
que somos nós as criaturas superiores?” (Gould, 1987:27-8).
16. “No próprio movimento de recusa da utopia democrática, da utopia política
– a forma burguesa da emancipação – define-se o ponto de vista crítico. Marx
coloca um ponto final à utopia da burguesia enquanto classe revolucionária; em
resumo, ao projeto do Estado moderno. Ao mesmo tempo enuncia a distinção
cardinal revolução parcial/revolução total. A utopia está do lado da revolução
parcial, a emancipação humana, do lado revolução radical. ‘Não é a revolução
radical, a emancipação humana geral, que é um sonho utópico na Alemanha,
mas antes a revolução parcial, a revolução somente política, que deixe em pé os
alicerces da casa’, afirma Marx. Por aí passa um eixo fundamental da crítica das
12. Marcuse estava então se debatendo com o mesmo problema, chegando a formular uma hipótese diferente: no mundo administrado, a alteridade e o novo teriam de ser introduzidos de fora do sistema, pelos seus excluídos (Marcuse, 1972).
13. Rancière afirma que “o único universal na política é a igualdade... A igualdade não é um valor para o qual se apela; é um universal que deve ser suposto,
verificado e demonstrado em cada caso... A construção destes casos de igualdade não é um ato de uma identidade, nem a demonstração dos valores específicos
de um grupo. É um processo de subjetivação. O que é um processo de subje-
89
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo, Editora Unesp,
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utopias. Essa distinção se aplicará a diferentes objetos, se enriquecerá de múltiplos conteúdos. Ela constitui uma das invariantes da teoria radical. Está aí o lugar do corte original e não o par utopia/ciência. A ciência também pode estar do
lado da revolução parcial e, diz Marx, em primeiro lugar a ciência dos utopistas.
A ciência social arruína, mata a utopia. Em lugar de erigir a utopia como contratipo
de ciência, Marx denuncia essa tara congênita da utopia que é a cientificidade.
Daí vem a oposição entre dois tipos de ciência: a ciência doutrinária e a ciência
revolucionária” (Abensour, 1990:20-1). Sobre a utopia em Marx, ver também a
excelente obra de Henri Maler, Cobiçar o impossível (Maler, 1995).
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repassando toda a legislação aprovada pela Câmara, quer ela trate ou não dos
problemas relativos ao equilíbrio da Federação), de outro, são dois exemplos de
uma distorção completa, no Brasil, da idéia de que o voto de todo cidadão tem o
mesmo peso. Uma teia de instituições construídas ao longo de todo o século, por
diferentes regimes políticos, reproduz uma estrutura de poder oligárquico, apenas parcialmente permeável a ser alterada por processos eleitorais.
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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
ENTRE O FUTURO DO CAPITALISMO E O
CAPITALISMO DO FUTURO
a long and winding road
GEORGE E. M. KORNIS
Economista, Professor Adjunto dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
bem como pelas utopias destinadas a serem convertidas,
ainda que imperfeitamente, em ação; futuro inventado e
conquistado para mais além do passado e do presente
(Kornis, 1994). Trata-se, portanto, de análises voltadas
para a construção de um capitalismo do futuro.
Assim, a bibliografia recente em ciências sociais incorpora, de um lado, análises acerca do futuro do capitalismo e, de outro, aquelas relativas ao capitalismo do futuro. As primeiras, além de muito mais numerosas, são
mais diversificadas, pois percorrem o largo espectro que
vai desde a apologia das transformações recentes de um
capitalismo agora supostamente revitalizado até a apocalítica percepção da desigualdade crescente, da exclusão
social ilimitada e da instabilidade (potencialmente) generalizada. No outro pólo, as análises voltadas para o capitalismo do futuro são menos numerosas porque à ofensiva neoliberal desde fins da década de 70 correspondeu
um triunfo tal da idéia de mercado – uma utopia do século XVIII – que inibiu a ação dos defensores do contrato
como base regulatória da sociedade (Rosanvallon, 1989).
Também são menos diversificadas porque à crise das utopias de transformação social do século XX correspondeu
uma expansão do individualismo predatório com efeitos
claramente devastadores neste final de século, quer sobre
a sociedade quer sobre a natureza. As análises voltadas
para o capitalismo do futuro, vale observar, estão necessariamente comprometidas com processos de transformação social que vão além daquelas passíveis de serem
operadas exclusivamente pelo mercado, o que as torna,
simultaneamente, mais raras e mais (ainda) preciosas.
Expostas as diferenças entre as análises voltadas para
o futuro do capitalismo e para o capitalismo do futuro
cabe agora apontar para uma lacuna que desafia o pensamento social contemporâneo: a construção de uma
Astronauta libertado
Minha vida me ultrapassa
Em qualquer rota que eu faça
Dei um grito no escuro
Sou parceiro do futuro
Na reluzente galáxia
Rita Lee/Tom Zé
A
proximidade do final do século XX estimula um
olhar retrospectivo. Hoje, não por acaso, são
muitas as atividades intelectuais orientadas para
uma reflexão fundada no retrospecto, ou seja, num olhar
centrado no passado. Assim, as reflexões fin-de-siècle estarão voltadas para o passado mesmo quando visam decifrar os enigmas do presente ou atenuar as sombras e incertezas postas no horizonte do futuro.
Na bibliografia recente em ciências sociais, as análises fin-de-siècle, de um modo geral, pautaram-se por exercícios de síntese histórica (Hobsbawn, 1995; Arrighi,
1996) ou pelo exame das profundas e extensas transformações de ordem social estabelecida após a Segunda Guerra Mundial (Boyer, 1993; Thurow, 1997). Portanto, são
análises que, fundadas num olhar retrospectivo mais ou
menos amplo, procuram identificar tendências que tornem menos nebulosas (e ameaçadoras) as linhas que configuram o futuro do capitalismo.
No entanto, existem também aquelas análises (poucas)
que, ao contrário, estão lastreadas num olhar prospectivo
(Groupe de Lisbonne, 1995), ou seja, não estão centradas
no passado, mas sim no futuro. Futuro que se constrói entre
o possível/provável e o desejado/sonhado; futuro que se
configura pela crítica histórica do passado e do presente,
92
ENTRE O FUTURO DO CAPITALISMO E O CAPITALISMO DO FUTURO: A LONG AND...
via de integração – uma long and winding road – para
esses distintos modos de enfrentamento das dificuldades e perplexidades do presente. As análises que procuram integrar as dimensões retrospectiva e prospectiva, embora ainda minoritárias, têm o mérito (e o ônus)
de construir um caminho longo e tortuoso em que, simultaneamente, podem passar possibilidades (limitadas) e utopias (ilimitadas).
O presente texto ambiciona, em seus limites, somar-se
a essa minoria ao procurar integrar dimensões retrospectivas e prospectivas no tratamento não segmentado das
seguintes questões: a globalização e o trabalho como horizonte de futuro. Esse artigo está composto por uma introdução, dois segmentos dedicados a cada uma destas
questões apontadas e, finalmente, por um epílogo.
Deve-se ter em conta que o caráter amplo das questões propostas contrasta, de modo inequívoco, com a dimensão limitada das páginas disponíveis. Esse contraste
acentua o desafio, mas, por outro lado, procura reduzir a
insatisfação quanto ao tratamento dispensado ao futuro
no pensamento social corrente no final do século XX.
Trata-se, portanto, de um texto preliminar voltado para a
análise de elementos cruciais na configuração social do
futuro.
A presença da perplexidade, do medo, da incerteza e
de uma grande transformação que avança no sentido oposto ao concebido por Polanyi (Belluzzo, 1995) gera um contexto extremamente confortável para a emergência de um
conceito que traz mais sombras do que luzes no entendimento desse processo (difícil) de transição: o conceito de
globalização. Nesta perspectiva, globalização é um conceito que responde com certezas às ameaças da esfinge.
Além disso, ele é confortável porque atenua o temor e
obscurece as dificuldades da transição.
Globalização é um conceito que representa, simultaneamente, a origem e o destino de todas as mutações do
capitalismo contemporâneo, de modo a conferir inteligibilidade ao presente e previsibilidade ao futuro. Além
disso, globalização constituiu-se numa retórica que, entre outros fatores, permite não só a isenção de responsabilidades, mas também a incorporação da passividade
como expressão da lucidez diante de forças tão incontroláveis quanto imprecisamente definidas. Afinal, como
observa Paulo Nogueira Batista Jr. (1998), a “globalização” virou pau para toda obra “... é desculpa para tudo e
desfruta, além disso, da imortal popularidade de explicações que economizam esforço de reflexão”.
Nesse mesmo texto, Paulo Nogueira adverte sobre a
extensão da mistificação e para a fragilidade intelectual
presente nas muitas páginas dedicadas ao tema globalização ou de sua variante mundialização. Aqui é preciso
considerar que, embora verdadeira a constatação de uma
elevada carga de mistificação (e de sandices) na literatura específica ou correlata, a retórica da globalização tem
apresentado uma tal fluência no conjunto da sociedade
que seu (falso) estatuto de verdade inquestionável sombreia e escamoteia a fragilidade de sua constituição enquanto produto mental. A sua presença (muitas vezes indevida) na vida cotidiana lhe protege de um olhar crítico
e perfunctório.
Vejamos agora de modo mais atento esse conceito que
“tornou-se um conceito em moda nas ciências sociais, uma
máxima central nas prescrições de gurus da administração, um slogan para jornalistas e políticos de qualquer
linha” (Hirst e Thompson, 1998:13). Esse enorme poder
de sedução está assentado nas seguintes assertivas:
GLOBALIZAÇÃO E O FUTURO:
ENTRE O DESTINO IRREVERSÍVEL E A
DIVERSIDADE DAS CONSTRUÇÕES POSSÍVEIS
As transformações do capitalismo mundial, nos últimos 25 anos, não foram poucas e muito menos insignificantes. Essas transformações tiveram um amplo impacto
sobre a cena mundial que, profundamente alterada, passa
a demandar uma reflexão revitalizada pelos desafios impostos pela necessidade de decifrar o enigma de uma ordem que emergia dos escombros daquela construída a
partir de Bretton Woods (Kornis, 1994 e Rocha, 1997).
No entanto, as transformações do capitalismo não se reduzem a elementos de um enigma a ser decifrado por uma
razão perplexa diante do esgotamento do ciclo expansivo
fordista e, conseqüentemente, de uma crise de hegemonia. As transformações do capitalismo no último terço do
século XX são também portadoras do medo e da incerteza diante das ameaças da esfinge que representa a transição da modernidade para a pós-modernidade (Santos,
1995). A esfinge hoje é a transição paradigmática que se
faz presente no âmbito do sistema produtivo, das instituições e dos padrões valorativos socioculturais entre outras dimensões da sociedade. Portanto, trata-se de uma
transição complexa e, como tal, enigmática e ameaçadora, uma vez que torna o presente ininteligível e o futuro
obscuro.
- a vida social é crescentemente determinada por um processo de globalização econômica capaz de dissolver diferenças não só econômicas mas também sociopolíticas;
- essa dissolução de diferenças é apresentada como um
processo de convergência irreversível para valores modais,
de forma que questões voltadas para a divergência ou para
a especificidade – como por exemplo a questão nacional
– são simplesmente desconsideradas nesse quadro conceitual;
93
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
- as forças do mercado global são autônomas e poderosas, de modo que a economia mundial é sempre tomada
como refém desse ente poderoso e singular;
- o conjunto de evidências (sempre apresentadas como
inquestionáveis) relativas tanto ao grande crescimento dos
fluxos de bens, serviços e capitais quanto ao aumento do
grau de competição externa e à maior integração entre as
economias nacionais enfatiza prioritariamente os determinantes tecnológicos do processo de globalização e, secundariamente, os determinantes institucionais vinculados às iniciativas de liberalização/desregulação. A ênfase
nos determinantes tecnológicos ora subestima ora superestima o peso da ruptura do paradigma na dinâmica da
globalização tal como o faz a ênfase nos determinantes
institucionais. O importante aqui é salientar que entre os
determinantes da globalização pouca ou quase nenhuma
atenção é dispensada à dimensão sistêmica, o que permite lateralizar questões relevantes tais como a insuficiência de demanda agregada no capitalismo;
- a globalização é um processo singular, rápido e recente
que tem, como sujeito social maior, um capital de alta
mobilidade no interior de mercados globais alheios à regulação e ao controle de políticas capazes de produzir
governabilidade nacional e internacional na economia.
Portanto, é um fenômeno que não se presta para análises
exclusivamente retrospectivas, pois propõe-se, simultaneamente, a decifrar o presente e a projetar o futuro.
Na ampla e variada literatura sobre globalização, a crítica às assertivas mencionadas anteriormente se faz presente, embora de modo tímido, diante das dimensões da
adesão apologética a essa retórica. A crítica que retira
qualquer especificidade referente ao processo de globalização, considerando-o apenas uma conjuntura de intensificação do capitalismo em sua característica mundial
(Gorender, 1997), parece menos importante daquela que
se vê como “uma mistura de ceticismo acerca de processos econômicos globais e de otimismo a respeito das possibilidades de controle da economia internacional e da
viabilidade de estratégias políticas nacionais” (Hirst e
Thompson, 1998:14). A maior importância dessa última
crítica mencionada reside nos seguintes pontos:
- detecta o caráter perturbador de reversão – a partir da
crise dos anos 70 – das outrora sólidas expectativas de
sucesso e segurança, bem como da perspectiva de mobilidade social ascendente para as gerações subseqüentes.
Essa reversão está claramente configurada quando o esgotamento do ciclo expansivo do capitalismo fordista
(1945-1973) está associado a uma radical alteração de
consensos: nas décadas de 50 e 60 o consenso era de que
“o futuro pertencia a um capitalismo sem perdedores” enquanto os anos 80 e 90 “são dominados por um consenso
baseado em suposições contrárias, de que os mercados
globais são incontroláveis e de que o único caminho para
evitar tornar-se um perdedor – seja como nação, empresa
ou indivíduo – é ser o mais competitivo possível” (Hirst
e Thompson, 1998:20);
- identifica a conveniência do mito “globalização” num
mundo marcado não só pelo colapso das expectativas
geradas pelo keynesianismo-fordista, mas também por um
extremo rebaixamento das expectativas, por uma grande
desesperança e por um desamparo diante de um hipertrofiado domínio das forças autônomas do mercado mundial;
- observa que à hipertrofia do mercado corresponde uma
hipertrofia tanto da competição quanto do conflito. Todas essas hipertrofias reduzem a base de governabilidade
e alimentam um processo de desregulação que favorece
o capital transnacionalizado em detrimento do trabalho
nacionalmente organizado. Portanto, a hipertrofia do mercado, inerente a uma economia globalizada, introduz a
desigualdade como norma, a hipertrofia da competição
coloca o perdedor como elemento a ser excluído e a hipertrofia do conflito gera a instabilidade permanente.
Ataca, deste modo, um dos fundamentos do mito da globalização: a promessa de um mundo harmônico e integrado que substituiria o vazio da frustração de expectativas produzidas pelo esgotamento do ciclo
keynesiano-fordista.
Em trabalho mais recente, Paul Hirst (1998) avança em
sua crítica à retórica da globalização, assinalando que:
- essa retórica pode liquidar com a vontade política de
buscar meios de manter o produto, o emprego e a eqüidade social em detrimento do desempenho econômico a longo prazo;
- tal como George Soros, ele vê o sistema econômico internacional como altamente instável e contendo no seu
interior os elementos capazes de produzir uma outra catástrofe como a de 1929 (Soros, 1995:45-58). A inconclusa
crise que se inicia em meados de 1997, nos novos países
industrializados do sul e do sudeste da Ásia, parece confirmar tal tendência;
- tal como Paul Krugman, ele considera que a ameaça de
um novo crash reforça as tendências à formação de blocos econômicos e à promoção de uma competição defensiva nas políticas comerciais interblocos (Krugman,
1995:80-94);
- o investimento externo direto (FDI) está fortemente concentrado na Comunidade Européia, nos EUA e no Japão,
reforçando a necessidade de regulá-lo (Krugman, 1996).
Considerando que a distribuição da renda mundial está
tão desigual e concentrada – o que implica pensar que a
maior parte de África, uma boa parte da América Latina
94
ENTRE O FUTURO DO CAPITALISMO E O CAPITALISMO DO FUTURO: A LONG AND...
dessa ideologia que limitam-se à “satanização” da hipertropia da esfera financeira tomada como traço essencial
da atual etapa do processo de internacionalização do capitalismo;
- o processo de globalização é freqüentemente considerado o marco zero de uma nova era do capitalismo, o que
faz com que as análises desse processo estejam impregnadas de conteúdos finalísticos/terminais, como, por
exemplo, o fim do Estado-Nação (Ohmae, 1996) ou mesmo o fim da História (Fukuyama, 1992). Esse processo é
também tomado como simultaneamente origem e resultado de um conjunto de transformações determinadas pelas
forças do mercado mundializado diante das quais se afirma o imperativo da adaptação acrítica e continuada;
- o conceito de globalização apoiado em seu determinante tecnológico projeta para o futuro indeterminado a consolidação de uma sociedade planetária unificada já
afirmada no presente. Portanto, é um conceito que está
fundado num destino único – a integração de diferentes
Estados e Nações –, numa autoridade única – o mercado
– e, finalmente, num pensamento único: a razão liberal –
estabilizar, desregular e privatizar. Trata-se, portanto, de
um conceito que apresenta um futuro de harmonia, de
convergência, de prosperidade e de estabilidade. A promessa desse futuro contrasta com um presente de desintegração competitiva – processo do qual faz parte a integração restrita dos diferentes blocos econômicos que
configuram a multipolaridade capitalista contemporânea
– de desigualdade ampliada e de instabilidade conflitiva
crônica. Esse contraste é sempre tratado como transitório
dada a irreversibilidade do futuro com uma purgação de
males do passado e do presente que habilitaria o capitalismo a ter um futuro. Assim, o conceito de globalização
opera com um futuro para o capitalismo que está privado
de diversidade, autonomia, e contrato social como base
regulatória, mas que está, de fato, pleno de desigualdade,
concentração de recursos e de poderes, regressividade
social (como, por exemplo, precarização do trabalho e
desproteção social) e de conflitos instaurados da rejeição
à unicidade/uniformidade imposta no presente;
- a globalização, enquanto “caminho universal ao paraíso” (Krugman, 1996), não diminui distâncias nem dificuldades – afinal trajetos em desníveis pronunciados são
sempre mais penosos – nem conflitos, sejam estes distributivos, comerciais ou étnico-religiosos (Andrade, 1995).
A globalização, nessa perspectiva, é uma promessa de
futuro para o capitalismo, ou melhor, é a promessa de um
futuro idealizado a partir de um intercâmbio comercial e
informacional ampliado, de uma revolução tecnológicoprodutiva e de uma afirmação do mercado como base institucional e regulatória. A globalização, desse modo, não
e mesmo o sul da Ásia são regiões que permanecem pobres e crescentemente excluídas de uma economia mundial (supostamente) integrada –, cabe lembrar que a ausência de regulação dos fluxos de capital pode gerar tanto
excessos de investimento quanto escassez de capital nos
países em desenvolvimento. Logo, a concentração dos
investimentos externos expressa uma desigualdade que,
na ausência de uma ação regulatória, pode desintegrar a
economia internacional e, sobretudo, ampliar a instabilidade desse sistema;
- tal como Susan Strange, ele considera que a globalização não se reduz a comércio ou a investimento, mas envolve a adoção de práticas e padrões comuns que são
viesados pelo peso da cultura empresarial anglo-americana (Strange, 1996);
-a restrição à adoção de políticas nacionais de corte keynesiano tem menos a ver com o crescimento de mercados
globais do que com mudanças estruturais nas economias
capitalistas avançadas que enfraqueceram os efeitos geradores de emprego a partir de estímulos sobre a demanda;
- sob a retórica de estar respondendo a pressões relativas
à competitividade internacional, os cortes sobre o welfare
system, a redução de salários e a flexibilização do mercado de trabalho podem estar ameaçando a própria prosperidade que, afinal, é um dos fundamentos do capitalismo
em qualquer era, seja ela a da globalização ou não.
Na mesma vertente crítica à retórica da globalização,
vale assinalar o seguinte:
- assim como a crescente proeminência do comércio exterior e a expansão dos fluxos internacionais de capital
não conferem ineditismo e singularidade à chamada globalização, a intensificação da competição e a integração
dos mercados mundiais não são fenômenos recentes e
tampouco elementos de uma tendência linear, monodirecionada e irreversível na dinâmica do capitalismo;
- a força do conceito de globalização não reside na sua
limitada base de definição, mas sim na sua capacidade de
produzir certezas num quadro de desalento e perplexidades próprio a uma complexa transição paradigmática.
Certezas que explicam o presente – afinal tudo ou quase
tudo pode (ilegitimamente ou não) se tornar inteligível
pela retórica da globalização – e que, sobretudo, identificam o futuro como um desdobramento controlado de determinações afirmadas num presente presidido por uma
lógica inexorável: a do mercado global;
- a força da ideologia da globalização reside menos no
seu amplo trânsito e potencial de repetição e mais na comodidade com que pode ser absorvida tanto pelos defensores da desregulação de mercado, da retração do Estado
e da privatização desenfreada quanto pelos adversários
95
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
modernização conservadora”, rompeu com esse processo de homogeneização ao introduzir a desigualdade distributiva e uma relação capital/trabalho agora francamente
desfavorável ao trabalho organizado, mas benéfica ao capital reestruturado sob dominância financeira (Mattoso
apud Oliveira et alii, 1994:522). Assim, a heterogeneidade e a desigualdade no interior das relações de trabalho
vão sustentar um processo de exclusão econômico-social
que, diante do ciclo expansivo do fordismo, assume uma
nítida feição regressiva.
é um processo de invenção de um capitalismo do futuro,
mas apenas a projeção idealizada de tendências que podem ser identificáveis no presente e mesmo no passado.
O TRABALHO E O FUTURO: ENTRE A
FLEXIBILIZAÇÃO COMPULSÓRIA E A
PRECARIZAÇÃO DIFERENCIADA
A reestruturação do capitalismo mundial, que se inicia nos anos 70, deriva da crise do paradigma industrialtecnológico e da ruptura do compromisso econômico,
social e político que sustentou o ciclo expansivo do pósSegunda Guerra Mundial. A crise dos anos 70 é, portanto, o ambiente no qual se processa a emergência da Terceira Revolução Industrial e o processo a partir do qual
se desconstrói a ordem institucional anterior, ou seja, a
ordem de Bretton Woods (Kornis, 1994). No curso da
Terceira Revolução Industrial, desenvolve-se “uma das
questões mais relevantes – se não a mais relevante – para
o futuro das sociedades modernas, qual seja, o da profunda transformação dos processos de trabalho” (Coutinho
apud Mattoso, 1995).
No processo de desestruturação da sociedade de produção e consumo de massas, criado pela Segunda Revolução Industrial, o mundo do trabalho sofre um conjunto
de mudanças qualitativas, a saber:
- esgota-se a capacidade do trinômio crescimento econômico/estabilidade monetária/pleno emprego de sustentar
o ciclo expansivo do fordismo no pós-Segunda Guerra
Mundial;
- desvinculam-se as combinações entre “mecanismos de
mercado e políticos estruturantes com ampliação e diversificação da intervenção estatal, economia internacionalizada e administração de demanda agregada, descentralização das decisões capitalistas e contratação coletiva
crescentemente centralizada, elevação da produtividade
e distribuição da renda” (Mattoso apud Oliveira et alii,
1994:521). Rompem-se, desse modo, as normas de produção, as relações salariais e o padrão de consumo que
no fordismo – sob hegemonia norte-americana definida
desde o fim da Segunda Guerra Mundial – conduziram a
um nítido processo de homogeneização da estrutura produtiva, do mercado de trabalho e do consumo;
- a homogeneidade no mercado de trabalho reduziu ao
mínimo o desemprego, ampliou o poder de compra dos
salários, afirmou a contratação coletiva e produziu a possibilidade de administração da demanda agregada, sendo
que o Estado passou a assumir parte significativa do custo do trabalho. A Terceira Revolução Industrial, “caracterizada por uma verdadeira destruição criadora schumpeteriana realizada na década de 80 sob a forma de
A essas mudanças estruturais somam-se aquelas acentuadas por políticas de corte neoliberal: a flexibilização
do trabalho e a desregulação da proteção social sobretudo de caráter trabalhista. A flexibilização do trabalho seria determinada pela afirmação do novo paradigma de
produção industrial de massa de bens diferenciados e do
sistema integrado de produção flexível que lhe é conseqüente. Além dessa determinação anterior, a flexibilização do trabalho acaba por determinar o advento de um
novo trabalho – polivalente, qualificado, participativo –
e, sobretudo, a sua distinção em face do trabalhador fordista: especializado, parcializado e desqualificado (Boyer,
1986; Coriat, 1990). Trata-se de uma cadeia de determinações que conduz à irreversibilidade de um processo de
desregulação do trabalho entendido perversamente como
um indispensável ajuste nos preços relativos reclamado
pelo acirramento da competição no mercado global.
A fragmentação heterogeneizada e a desestruturação
do trabalho – polarizadas no trabalhador flexível/integrado
e no trabalhador precarizado/marginalizado – produzem
o que Mattoso, acertadamente, denominou “a crescente
insegurança do trabalho” (Mattoso, 1995). Trata-se, na
verdade, de um conjunto de inseguranças – no mercado
de trabalho, no emprego, na renda, na contratação do trabalho e na representação do trabalho – que, além de introduzir um descompasso entre demanda fragilizada e forças produtivas revigoradas, “tem ampliado a fragmentação
e a desestruturação do trabalho, acentuado a paralisia política e o defensivismo estratégico do movimento sindical e reduzido ainda mais a solidariedade e coesão social
que terminam por ampliar as dificuldades de se reconstruir uma nova hegemonia transformadora”(Mattoso,
1995).
Nesta perspectiva de análise, a chamada crise do trabalho está na base tanto de uma instabilidade continuada
do capitalismo contemporâneo quanto de uma cronificação
integrada do conflito, da insegurança e do esgarçamento
dos vínculos de solidariedade e coesão social. As contradições envolvidas nesse processo, certamente, projetam
para o futuro incertezas, violências e uma degradação
acentuada das condições de vida e de trabalho. Assim, o
96
ENTRE O FUTURO DO CAPITALISMO E O CAPITALISMO DO FUTURO: A LONG AND...
bólicos, que controlam as tecnologias e as forças da
produção, e crescente número de trabalhadores permanentemente demitidos que têm poucas esperanças e perspectivas ainda menores de empregos significativos na nova
economia global da alta tecnologia” (Rifkin, 1996:19).
No entanto, esse reconhecimento não conduz a uma cadeia de monodeterminações, pois a Terceira Revolução
Industrial é vista como “uma poderosa força para o bem
e para o mal” de modo que caberá às diferentes estratégias nacionais de administração dos avanços de produtividade mitigar os efeitos das demissões em massa.
A formulação de um novo paradigma pós-mercado é o
desafio maior dessa perspectiva de análise. Afinal, “a idéia
de uma sociedade não baseada no trabalho é tão completamente estranha a qualquer conceito que tenhamos sobre como organizar grandes quantidades de pessoas num
todo social, que nos defronta com a perspectiva de precisar repensar a própria base do contrato social” (Rifkin,
1996:13).
O novo contrato social é que definirá as bases segundo as quais os ganhos de produtividade na chamada “Era
da Informação” serão distribuídos. Da mesma forma que
uma distribuição justa e humanitária dos ganhos de produtividade – fundada na redução da semana de trabalho
e, sobretudo, no esforço dos governos para proporcionar
emprego na economia social – pode produzir a aurora da
era pós-mercado, uma concentração na apropriação pelo
capital dos (imensos) ganhos de produtividade da revolução tecnológica conduzirá a uma crepuscular ampliação do hiato social entre integrados e excluídos que necessariamente “levará a uma revolução social e política
em escala global”(Rifkin, 1996:14).
O novo paradigma – (a era pós-mercado) fundado numa
reengenharia da jornada semanal de trabalho e num novo
contrato social – é definido por sobre o mercado e o governo – e, especialmente, numa economia social constituída como nem pública nem privada. Cabe à economia
social designada por Rifkin como terceiro setor, ou mais
especificamente à globalização da economia social, a
possibilidade de construção de uma terceira via entre uma
sombria flexibilização subordinada do trabalho e uma eufórica adesão a uma competitividade que vê (cinicamente) na crise do trabalho apenas um indispensável ajuste
nos preços relativos.
Assim, a perspectiva analítica de Rifkin contrapõe a
um sombrio futuro do capitalismo à possibilidade de um
capitalismo do futuro fundado num terceiro setor – nem
público nem privado – capaz de se apresentar como força
aglutinante apta a dar coesão a uma sociedade em desintegração diante de incontroladas forças globais de mercado e de uma precarização continuada e extensiva do
trabalho.
futuro defronta-se, de um lado, com a possibilidade de
progresso definida pelo novo paradigma tecnológico-industrial, mas, de outro, está diante de padrões de consumo e relações salariais claramente regressivas, definidas
por um capital reestruturado e triunfante. Esse futuro dilacerado por forças antagônicas associa-se, no limite, à
barbárie que pode emergir da supressão do mundo do trabalho como espaço fundamental da sociabilidade capitalista (Mattoso, 1995).
Sob este aspecto, a crise do mundo do trabalho está
fundada na crise do fordismo, na emergência de um sistema de produção flexível (designado lean-production
system, toyotismo ou mesmo pós-fordismo), na flexibilização subordinada do trabalho às novas normas de produção e distribuição, na desregulamentação também subordinada do trabalho e da proteção social ao trabalhador
e, finalmente, numa fragmentação heterogeneizada e desestruturante do trabalho que conduz ao sindicalismo defensivo e à ruptura dos padrões de solidariedade e coesão
social anteriormente vigentes. Trata-se, portanto, de uma
perspectiva analítica que, partindo da desarticulação de
uma ordem produtivo-institucional, constrói uma cadeia
de determinações que atravessam pela via do mercado o
sistema produtivo, as relações de trabalho, a legislação
trabalhista, o sistema de proteção social e a representação sindical. Essa cadeia de determinações define um futuro do capitalismo pautado por uma retração do emprego industrial, um crescimento restrito do emprego
terciário, por uma forte expansão do trabalho informal e,
sobretudo, por um largo processo de diferenciação intratrabalho – que poderia ser chamado de integração diferenciada – e por um crescente hiato distributivo entre salários e lucros. Nesta perspectiva, o futuro do capitalismo
é sombrio porque é desintegrado e conflituado, não cabendo aqui qualquer utopia em torno de “uma aurora da
era pós-mercado”(Rifkin, 1996).
A vertente analítica formulada por Rifkin – que está
mais voltada para pensar o capitalismo do futuro do que
o futuro do capitalismo – parte da premissa de que a Terceira Revolução Industrial funda uma “Era de Informação”, na qual as tecnologias de software produzirão um
mundo (praticamente) sem trabalhadores. A seguir orienta-se para “repensar o papel a ser desempenhado pelos
seres humanos no processo social (pois) redefinir oportunidades e responsabilidades para milhões de pessoas
numa sociedade sem o emprego de massa formal deverá
ser a questão social mais premente do próximo século”
(Rifkin, 1996:18). O passo seguinte é reconhecer que as
tecnologias de informação e comunicações e as forças de
mercado globais estão “polarizando a população mundial
em duas forças irreconciliáveis e potencialmente antagônicas – uma nova elite cosmopolita de analistas sim-
97
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 12(2) 1998
EPÍLOGO
turo, neste fim de século. No curso dessa longa e tortuosa
estrada outros eixos analíticos hão de se somar. Certamente.
Diante do tema a nova dinâmica do capitalismo, esse
artigo fez opções claras: identificou a idéia de novo não
com as transformações já evidentes no presente e também não recorreu a um olhar retrospectivo para iluminar,
por contraste, o presente e mesmo o futuro; considerou a
idéia de novo como próxima ao porvir, ao tempo que há
de vir, ao futuro; diferenciou o futuro que se afirma como
uma projeção do presente (tido como distinto em maior
ou menor grau do passado) daquele futuro que se constrói como negação de determinações que estendem do hoje
até o amanhã; e diferenciou o futuro do capitalismo do
capitalismo do futuro.
Além disso, esse texto procurou resistir à sedução da
voga fin-de-siècle, fim da História, fim do Estado, fim do
Trabalho entre tantos outros finais que recorrentemente
são equivocadamente identificados com o futuro. Em
contrapartida, o artigo procurou aderir a um exercício
prospectivo – que nada tem em comum com práticas divinatórias –, que se pretendeu articulado com a dimensão
retrospectiva.
Consciente de suas limitações, esse texto é uma primeira aproximação – mas, certamente, não a última –
dos horizontes de futuro do capitalismo contemporâneo. No entanto, esse trabalho não se privou de ousadia ao tentar – ainda que de modo inicial – construir
uma via de integração – a long and winding road – entre
dois planos analíticos que usualmente são pouco convergentes. A ousadia reflete muito mais uma afinidade
com a máxima gramsciana de pessimismo na análise e
otimismo na ação – mesmo que essa seja uma ação no
âmbito da teoria – do que uma ingenuidade que mal
dimensiona a envergadura de tarefa intelectual tão difícil quanto importante.
Os limites físicos das páginas disponíveis aguçaram o
sentido de essencialidade no tratamento de um tema tão
amplo quanto complexo: os horizontes de futuro do capitalismo contemporâneo. Esse sentido de essencialidade
levou a que fossem destacadas, aqui, como eixos analíticos, a globalização – elemento crucial de dinâmica contemporânea do capital – e a crise do trabalho formal, ou
seja, as metamorfoses do trabalho na era da flexibilização e da precarização diferenciada das condições de vida
e de trabalho. Evidentemente, esses não são os únicos eixos analíticos a serem incorporados no tratamento do fu-
NOTA
E-mail do autor: [email protected]
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