Sumário/Editorial/Destaque

Transcrição

Sumário/Editorial/Destaque
Revista do Portal das Poéticas Visuais
Um nordestino a cavalo
Marcos oliveira
2005
Acrílica sobre tela
1m x 80 cm
Acervo de Artes Visuais da Faac-Bauru
Revista do Portal das Poéticas Visuais
Coordenação Técnico-Científica
Núcleo de Pesquisa em Multimeios Mídia Press
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JULIO DE MESQUITA FILHO”
Vice-Reitor em exercício
Julio Cezar Durigan
Pró-reitora de Pós-Graduação
Marilza Vieira Cunha Rudge
Diretor FAAC
Roberto Deganutti
Vice - Diretor
Nilson Guirardello
Editor Assistente/Projeto Gráfico Editorial
Felipe Oliveira Cavalieri
Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil
Webdesign
Lucas Trentim Navarro de Almeida
Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil
Edição e preparo de originais/Tradutor das
versões impressa e on-line:
Ivan Abdo Aguilar
Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil
Edição de Imagens e Capa
Milena Rosa
Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil
Conselho Científico:
Diana Domingues
Universidade de Brasília (UnB) - Brasília, Distrito Federal, Brasil
Derrick de Kerckhove
Universidade de Toronto (UofT) - Toronto, Ontário Canadá
Massimo de Felice
Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil
Poéticas Visuais/Impresso no Brasil
ISSN: 2177-5745 versão impressa - ISSN: 2317-4935 versão on-line
Classificação CAPES Qualis B3 em Artes/Núsica, B2 em Interdisciplinar e B5 em Ciências Sociais Aplicadas
Editores Científicos
Ricardo Nicola e Nelyse Salzedas
Editora Executiva
Rosa Maria Araújo Simões
Comissão de Relações Internacionais
Maria Luiza C. Costa e Rosa Maria Araújo Simões
Coordenação Editorial:
Maria Antonia Benutti, João Eduardo Hidalgo, Maria do
Carmo Jampaulo Plácido Palhaci, Milton Koji Nakata,
Dorival Rossi, Luiz Antonio Vasques Hellmeister, Roberto
Deganutti, Adenil Alfeu Domingos, Sônia de Brito, Guiomar Biondo, Elaine Patrícia Grandini Serrano, Maria Luiza
Calim de Carvalho Costa, Joedy Luciana Barros Marins
Bamonte, Rosa Maria Araújo Simões, José Marcos Romão
da Silva, Célia Maria Retz Godoy dos Santos, Solange Maria Bigal, Solange Maria Leão Gonçalves, Ricardo Nicola e
Nelyse Apparecida Salzedas.
João Carlos Correia
Universidade da Beira do Interior - Covilhã, Portugal
Andreia Célia Molfetta
Universidad de Buenos Aires - Buenos Aires, Argentina
Dana Lee
Ryerson University - Toronto, Ontário, Canadá
Emilio Garcia Fernandez
Universidad Complutense de Madrid - Madrid, Espanha
George Michael Klimis
Panteion University - Atenas, Grécia
Francisco Cabezuelo Lorenzo
Universidad de San Pablo - Barcelona, Espanha
Ana Mae Tavares Barbosa
Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil
Anamélia Bueno Buoro
Centro Universitário Senac - Santo Amaro, São Paulo, Brasil
Maria Cristina Castilho Costa
Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil
Irene Gilberto Simões
Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil
Mario Pireddu
Università degli Studi Roma TRE - Roma, Itália
Massimo Canevacci
Università de Roma - La Sapienza - Roma, Itália
Eduardo Peñuela Canizal
Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil
Antonio Manuel dos Santos Silva
Universidade Estadual Paulista (Unesp) - Bauru, São Paulo, Brasil
Duda Penteado, Artista Plástico
New Jersey City University - New Jersey City, NJ, EUA
Elza Ajzenberg
Museu de Arte Contemporânea (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil
Edson Leite
Universidade de São Paulo (EACH USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil
Jesús González Requena
Universidad Complutense de Madrid - Madrid, Espanha
Genaro Talens
Université de Genève (UNIGE) - Geneva, Suíça
Julio Pérez Perucha
Presidente de La Asociación Española de Historiadores del Cine, Madrid
- Madrid, Espanha
S
umário
EDITORIAL
P. 9
Voume 2 N° 2 2011
www.poeticasvisuais.com
copywrite.
Revista Poéticas Visuais, Faac/Unesp/2011
EM DESTAQUE
LIÇÕES DO MODERNISMO:Francisco Rebolo Gonzales
Lessons of the modernist of Francisco Rebolo Gonzales
Elza AJZENBERG
p. 11
Revista do Portal das Poéticas Visuais da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho”
Av. Luiz Edmundo Carrijo Coube n° 14-01
CEP 17033-360 Bauru - São Paulo - Brasil
PABX (14) 3103-6068
E-mail: [email protected]
As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
Todo material incluído nesta revista tem autorização expressa dos autores ou de seus representantes legais.
O Anjo de Dürer e os Herdeiros de Saturno
The Angel of Dürer and the Heirs of Saturn
Paulo Roberto Amaral Barbosa
p. 22
Aprendendo a aprender - comece pela capa
Learning to learn - Start by its cover.
Sonia de BRITO & Guiomar Josefina BIONDO
p. 30
Relações de texto e imagem em vídeo-música
de Arnaldo Antunes
Relationship of text and image in music video Arnaldo Antunes.
Rivaldo Alfredo PACCOLA
p. 36
A CONSTRUÇÃO DO HERÓI VITORIANO SOB A ÓTICA DO
ENUNCIADOR DO SÉCULO XXI: IDEOLOGIA E SIMBOLOGIA
The construction of victorian heroe by the enunciator vision from the XXI century:
Ideology and simbology
Maria Angélica Seabra Rodrigues MARTINS
p. 41
Arte, Narrativas e Memórias
Art, histories and memories
Alecsandra Matias de OLIVEIRA
p. 59
Performance “Carimbada”:
Uma proposta poética de desterritorialização do corpo
feminino brasileiro em terras lusitanas.
Performance “Stamped”
A proposal poetic deterritorialization of the bady brazilian women in lusitanian lands.
Janaina Teles BARBOSA
EDI TORI A L
p. 67
As regras do génio
Notas sobre os quadros sociais da criatividade artística
The rules of genius
Grade about que social pictures with the artistic creative.
Pierfranco Malizia
p. 79
O CORPUS DO PS
PERFORMANCE ALÉM DA LINHA DO HORIZONTE
The computer corpus
Unbeleaveble performance.
Niura Borges, Patricia Soso & Rosemary Brum
p. 90
Portinari, leitor de Quixote
Portinari is a Don Quixote reader
Célia Navarro Flores
p. 101
WE ARE YOU, US Latinization’s Next Wave:
ESTABLISHING A “NEW” DIRECTION
FOR 21st CENTURYLATINO ART IN THE USA:
p. 136
NORMAS PARA COLABORADORES
(The Ground-breaking Emergence of the We Are You
Project’s WAY IT’S Art Exhibition)
ARTIGOS
A
pós dois textos referentes a
nossa revista e ao grupo que a
compõem, cedo a minha voz a
João Cabral de Melo Neto (Re-
cife, 1929-Rio de Janeiro,1999) que em seu
poema “Rios sem discurso” (Obra completa.
Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1995) constrói,
em uma sintaxe o dire n´est pas dire: “um rio
precisa de muita água em fio para que todos os
poços se enfrasem: se reatando, de um poço
para outro poço, em frases curtas, então frase
a frase, até a sentença rio do discurso único em
que se tem voz. A seca combate”.
Assim começamos, pouco a pouco, enfrasando, juntando artigos, pesquisas, propostas, até
que como diz João Cabral de Melo Neto, “em
que se tem voz, a seca combate”.
José Manuel Rodeiro
p. 114
Que se faz quando
se olha uma pintura?
What to do when looking at a painting?
Nelyse Aparecida Melro Salzedas
p. 134
RESENHAS
Nelyse Apparecida Melro Salzedas
Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq
“Texto e Imagem”
Unesp-Bauru
Um olhar sobre o corpo
e as relações transdisciplinares entre
arte e tecnologia
A look at the body and the relationship between trans-art
and technology
Ricardo Nicola
p. 135
Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2
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LIÇÕES DO MODERNISMO
Francisco Rebolo Gonzales
Lessons of the modernist of Francisco Rebolo Gonzales
Elza AJZENBERG
Professora Titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo,
SP, Brasil. Coordenadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes.
O artigo discute a segunda fase do modernismo brasileiro, caracterizado pelas ações de grupos
de artistas. Em particular, a formação e atuação do grupo Santa Elena, a cidade cultural de São
Paulo. É dedicado também à rota estética de Francisco Rebolo Gonzales, o artesão da cor.
Palavras-chave: Modernismo, Francisco Rebolo Gonzales, Grupo Santa Elena
The article discusses the second phase of Brazilian modernism, characterized by the actions
of groups of artists, in particular the formation and performance of the Santa Helena Group, the
cultural city of São Paulo. It is dedicated also to the aesthetic route Francisco Rebolo Gonzales, the
artisan of color.
Keywords: Modernism, Francisco Rebolo Gonzales, Santa Elena Group
Rebolo Gonsales, Francisco (São Paulo, SP, Brasil, 1902- São Paulo, SP, Brasil, 1980).
Filho de imigrantes espanhóis e de origem proletária, Rebolo aos 12 anos de idade, trabalhava como aprendiz
de decorador. Essa formação foi adquirida na Escola Profissional Masculina do Brás e, a partir daí, trabalhou nos
murais das igrejas Santa Ifigênia e Santa Cecília, em São Paulo. Em 1917, exerceu o ofício de decorador, simultaneamente ao de jogador de futebol no São Bento e, em seguida, no Corinthians. Em meados de 1930, os pintores
de parede costumavam fazer ponto na praça da Sé e em suas imediações. Um desses pintores, Rebolo Gonsales,
recém-saído do futebol profissional, abriu seu escritório na sala 231 do Palacete Santa Helena, na antiga praça da
Sé, n. 43 (posteriormente, n. 247). Logo depois outro artesão, Mário Zanini, imitou-lhe o gesto, instalando-se na
sala 232. Um e outro eram, nas horas vagas, artistas amadores, freqüentando, à noite, um curso livre de desenho
na Escola Paulista de Belas-Artes. No curso, orientado por Lopes de Leão, conheceram outros artesãos-artistas,
como Volpi, Graciano e Manoel Martins. Logo em seguida, esses pintores e alguns outros passaram a reunir-se,
periodicamente, no Palacete Santa Helena, para desenhar ou trocar idéias sobre arte. Nasceu, desse modo, o denominado Grupo Santa Helena, constituído por Rebolo Gonsales, Mário Zanini, Fulvio Pennacchi, Aldo Bonadei,
Alfredo Volpi, Humberto Rosa, Clóvis Graciano, Manoel Martins e Alfredo Rullo Rizzotti. De 1936 em diante,
Rebolo expôs coletivamente no Salão de Maio (1937, 1938 e 1939), na Família Artística Paulista (1937, 1939,
1940) e no Sindicato de Artistas Plásticos. A primeira mostra individual aconteceu em 1944 e, dez anos mais
tarde, recebeu o Prêmio Viagem à Europa, no Salão Nacional de Arte Moderna. Durante sua carreira, o artista
realizou diversas exposições individuais e integrou inúmeras coletivas.
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2
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A
Revolução de 1930 impulsionou visão crítica na maneira de pensar e pontuou o contexto cultural
e estético dos anos seguintes. O ano de 1933 foi decisivo nesse sentido. Foi o ano de publicações
que marcaram as gerações intelectuais posteriores: “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre,
e “Evolução Política do Brasil”, de Caio Prado Júnior. Essas obras – juntamente com “Raízes do Brasil” (1936),
de Sérgio Buarque de Holanda – motivaram um momento de redescoberta do Brasil. Impulsionaram debates à
luz de premissas diametralmente opostas. Intelectuais e artistas polarizaram idéias políticas: mais à esquerda ou
à direita.
Com o tempo, temáticas nacionalistas, que procuraram recuperar raízes históricas, como o negro, o índio,
o caipira, a paisagem, canaviais nordestinos ou cafezais do sul, foram ganhando espaço. Nos anos de 1930, os
temas delineados na década anterior foram se consubstanciando numa busca de solução para o impasse do Modernismo. O fascínio pelas lendas indígenas e o nacionalismo – que permearam as criações modernistas desde
o poema Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, resultaram, em obras como “Macunaíma” (1928), de Mário de Andrade, “Martim Cererê” (1928), de Cassiano Ricardo, “Cobra Norato” (1931), de Raul Bopp e na música de Vila
Lobos. Os artistas preocuparam-se em desvendar o Brasil, voltando-se para o regionalismo e para a crítica social.
Naquele momento, Tarsila do Amaral, por exemplo, expressou questões sociais em obras como “Operários” e “2ª
Classe” (1933), substituindo os rosas e azuis festivos por tons sombrios.
Nesse período São Paulo viveu grandes mudanças socioeconômicas, significativo progresso no setor das
comunicações e impasses políticos. Em 1932, ano da Revolução Constitucionalista, São Paulo comemorou o
aniversário da cidade com um comício de cerca de cem mil pessoas. Na ocasião, pedia-se a devolução da autonomia do Estado. Vale lembrar que a cidade cresceu e modernizou-se com a expansão cafeeira e, depois, com a
industrialização e o desenvolvimento do setor bancário e financeiro. Trens, bondes, luz elétrica, automóvel, calçamento, praças, viadutos, parques e os primeiros arranha-céus, transformaram a fisionomia da capital paulista.
Esse contexto apresentou-se favorável à organização de agremiações e grupos artísticos.
Sociedade Pró-Arte Moderna – SPAM e Clube dos Artistas Modernos – CAM,
Família Artística Paulista, Salão de Maio e Osirarte
A 23 de novembro de 1932, na casa do arquiteto Gregori Warchavchik, um grupo de artistas e intelectuais
reuniu-se para fundar a Sociedade Pró-Arte Moderna de São Paulo – a SPAM, como se tornou conhecida. Lasar
Segall, Paulo Rossi Osir, John Graz, Vittorio Gobbis, José Wasth Rodrigues, Arnaldo Barbosa, Antonio Gomide,
Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Regina Graz Gomide eram alguns dos artistas participantes. Em reuniões
posteriores estiveram presentes Brecheret e Hugo Adami, entre outros.
Com a finalidade de angariar fundos para os cofres da Sociedade, organizou-se no carnaval de 1933 um grande baile – “Carnaval na Cidade de SPAM” – em recinto decorado por uma equipe de artistas sob a direção de Segall. A “Cidade” possuía suas próprias autoridades, hino (o “Spamtriótico”), com música de Camargo Guarnieri,
moeda própria (o Spamote, dividido em Spamins) e mesmo um jornal - “A Vida de Spim”, dirigido por Mário de
Andrade, Antônio Alcântara Machado e Sérgio Milliet. Centenas de metros quadrados foram pintadas formando
numa gigantesca obra de arte coletiva de alguns dos mais importantes pintores da época.
O sucesso da mostra repetiu-se na segunda Exposição da SPAM, realizada em fins de 1933, tendo como novidade a participação de diversos artistas cariocas ou radicados no Rio de Janeiro, como Portinari, Di Cavalcanti
e Guignard.
Novo baile carnavalesco – intitulado “Expedição às Matas Virgens da Spamolândia”, foi organizado em 1934,
sob a supervisão de Segall. Na decoração colaboraram, entre outros, Anita Malfatti, Rossi Osir, Gastão Worms,
Balloni, Arnaldo Barbosa e Jenny Klabin Segall.
Um dia após a fundação da SPAM, surgiu, a 24 de novembro de 1932, o Clube dos Artistas Modernos – o
CAM – iniciativa de Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti, Carlos Prado e Antônio Gomide. O CAM ocupou salão
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espaçoso no mesmo prédio da SPAM, Pavilhão de D. Olívia Guedes Penteado. Organizou exposições pioneiras –
com desenhos de crianças e de doentes mentais - , concertos, debates e conferências – entre as quais, a de Tarsila
do Amaral, sobre “Arte Proletária” e a do pintor mexicano Siqueiros.
No andar térreo, Flávio de Carvalho instalou seu Teatro da Experiência, com a participação de Camargo Guarnieri. Alvo da suspeição policial, esse teatro, pouco depois, cerrava as portas. Como escreveu um dos antigos
participantes e historiador, Paulo Mendes de Almeida, assim terminava “um grande e vibrante movimento de arte
e de inteligência, que dificilmente se repetirá”.
Contudo, a polícia ainda não estava satisfeita: mais uma vez, alegando ofensa ao decoro, cerrou em junho de
1934 uma exposição de Flávio de Carvalho, apreendendo cinco obras e colocando guardas na porta.
Os santelenistas correspondiam à situação sociocultural de uma metrópole em rápida expansão, com grande
envolvimento de imigrantes, especialmente de italianos. A maioria de seus membros pertencia à grande colônia
que se estabeleceu no Estado. Volpi e Pennacchi eram italianos, enquanto Bonadei, Graciano, Rosa, Rizzotti e
Zanini eram filhos desses imigrantes; Rebolo era descendente de espanhóis e Manoel Martins, de portugueses.
Quase todos exerciam profissões que os mantinham no seu dia-a-dia. Volpi, Rebolo e Zanini eram pintores de
parede; Rizzotti, torneiro; Bonadei, bordador; Pennacchi, açougueiro; Graciano, ex-ferroviário e ex-ferreiro, e
Manoel Martins, aprendiz de ourives. Volpi e Zanini conheciam-se antes da aproximação no Santa Helena. Zanini
e Rebolo já eram próximos desde o início dos anos de 1930. Pennacchi e Rebolo fizeram amizade por ocasião do
III Salão Paulista de Belas Artes (1936).
Os artistas exerciam a pintura decorativa de residências, entre outras tarefas, e esse vínculo profissional tornou-se fator decisivo para a sua aproximação, que perdurou com mais força até o início dos anos de 1940. Sem
idéias preconcebidas, deram forma a uma existência comunitária. Mostravam-se ciosos da necessidade de conhecimento dos materiais e das técnicas de arte. Tiveram o mérito de contribuir para o amadurecimento de um tipo de
expressão artística mais preocupado com os aspectos puramente técnicos ou com o métier – aspecto nem sempre
valorizado pelos pintores vanguardistas.
É importante salientar que os artistas do Grupo Santa Helena nunca fizeram uma exposição conjunta de suas
obras. Porém, participaram das três mostras da Família Artística Paulista, realizadas, respectivamente, no Grillroom do Hotel Esplanada, em novembro de 1937; no Automóvel Clube, à rua Líbero Badaró, em maio-junho de
1939; e no Palace Hotel do Rio – a convite da Associação dos Artistas Brasileiros e com o patrocínio da revista
Aspectos – em agosto-setembro de 1940.
A primeira exposição da Família Artística Paulista não alcançou a repercussão desejável. No catálogo da exposição, Paulo Mendes de Almeida destacou o repúdio do Grupo ao academicismo, o fato de não se inserir nas
“correntes mais avançadas”, mas de estar integrado nas “legítimas tradições da pintura”.
O Salão de Maio foi organizado pelos críticos de arte Quirino da Silva, Geraldo Ferraz e Flávio de Carvalho.
A primeira edição ocorreu em 1937 na Esplanada do Hotel de São Paulo, com o comparecimento de artistas de
São Paulo e do Rio de Janeiro: Tarsila, Brecheret, Flávio de Carvalho, Guignard, Cícero Dias, Gomide, Portinari,
Segall, Santa Rosa, Ernesto de Fiori e Waldemar da Costa. O catálogo de abertura expressava os objetivos da
promoção: a produção de pintores e escultores capazes de absorver o sentido da história da arte de seu tempo, os
progressos técnicos e o “conteúdo sentimental, ideológico e poético
O segundo Salão ocorreu, em 27 de junho de 1938, no mesmo local. Trazia como novidade um grupo de artistas estrangeiros, entre os quais Ben Nicholson, Alexander Calder, Joseph Albers e Alberto Magnelli e numerosa
participação de brasileiros.
O terceiro e último Salão de Maio realizou-se na Galeria Ita sobre a liderança de Flávio de Carvalho, com a
presença de 39 expositores. Na oportunidade, Alexander Calder pela primeira vez mostrou seus móbiles ao público brasileiro. Palestras, debates e um espetáculo de bailado japonês completaram esse salão.
Paulo Rossi Osir, além da iniciativa de realizar as exposições da Família Artística Paulista, fundou em 1940
a firma Osirarte, que teve por objetivo reviver no Brasil a arte do azulejo. Desta pequena indústria – “Atelier de
Azulejos Osirarte” – surgiram azulejos artísticos. No início a produção estava voltada para a atender à demanda
do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Rossi Osir, conhecido pela sua cultura e gosto literário, realizou
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pesquisas de cores e condições técnicas que permitiram cumprir as exigências do pedido e o projeto de Cândido
Portinari, responsável pelo desenho da fachada do Ministério. Seguiu-se a série para a Igreja da Pampulha, Minas
Gerais, novamente com desenhos de Portinari.
Dessa experiência, surgiu a idéia de ampliar a indústria e a realização de painéis. Para tanto, Rossi Osir soube
cercar-se de um grupo de artistas como Vittorio Gobbis, Hilde Weber e artistas do Grupo Santa Helena como
Alfredo Volpi e Mário Zanini. Voltada para temas nacionais, a Osirarte funcionou até 1959.
No decorrer dos anos de 1930 e 1940, além do envolvimento destes grupos em São Paulo, desdobramentos
modernistas e associativos ocorreram em outros estados. Em 1931, realizou-se, no Rio de Janeiro, o “Salão
Revolucionário”, expondo os modernistas. Nesse mesmo ano, formou-se o Núcleo Bernadelli, nas dependências
da Escola Nacional de Belas Artes. O nome foi uma homenagem aos irmãos Rodolfo e Henrique Bernadelli, que
se empenharam na renovação das artes brasileiras, opondo-se ao academicismo.
Esta geração pode ser inserida no contexto da autocrítica sinalizada por Mário de Andrade: “Nós éramos os
filhos finais de uma civilização que se acabou”, ao mesmo tempo que aponta desdobramentos deixados pela
Semana de 1922: “a conquista do direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística
brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”. Tanto Mário como outros críticos assinalaram
que apesar desta geração não ter atingido o experimentalismo e vanguardismo da primeira fase modernista, amadureceram um claro “domínio do fazer artístico” ou do métier. Esclarecia ainda Mário que, no eixo de suas lutas
e sonhos do dia-a-dia, o que os aproximava era uma afinidade no interpretar, perceber e realizar a arte.
O Grupo Santa Helena
Distante das ousadias da fase pioneira do Modernismo, a arte, pouco teórica e bastante prática, desenvolvese amplamente no Brasil desde 1930. Calcada na visão direta do ambiente natural, humano e social, essa arte
pertence a um quadro histórico e a uma política desfavorável à liberdade cultural. Entretanto, tem ganhos no processo de renovação plástica do país e nas buscas sociais. Essa afirmação apóia-se no espírito de união dos artistas.
Por eles foram criados vários grupos relevantes para a trajetória da arte moderna, que enfrentava a oposição das
tendências acadêmicas. Entre os grupos, um dos mais consistentes é o Santa Helena.
O Grupo Santa Helena surgiu em meio às transformações sociopolíticas da Revolução de 1930. Os decênios
de 1930 e 1940 pontuaram a trajetória histórico-artística dos artistas desse grupo. Nesse período, São Paulo
cresceu e modernizou-se com a expansão cafeeira e, depois, com a industrialização e o desenvolvimento do setor
bancário e financeiro. Trens, bondes, luz elétrica, automóvel, calçamento, praças, viadutos, parques e os primeiros arranha-céus, transformaram sua fisionomia.
A partir de 1934, em diferentes momentos, foram eles chegando ao Palacete Santa Helena, na antiga Praça
da Sé, n. 43 (posteriormente, n. 247), convivendo, até o final da década, em salas transformadas em ateliês. Não
existia nenhuma intenção que os movesse no sentido de organizar um movimento. Aproximaram-se espontaneamente uns do outros, identificados pela origem social, por vivências artísticas ou artesanais.
No Palacete Santa Helena, uniram-se artistas ligados a trabalhos de simples pintura de paredes ou de decoração de residências e, principalmente, pela própria necessidade de uma união que lhes permitisse enriquecer
conhecimentos e práticas. Dedicavam-se ao desenho com modelo vivo – exercício que teve continuidade nos
próprios ateliês do Santa Helena - , comparecendo ao curso livre da Sociedade Paulista de Belas Artes (SPBA).
Ali se firmavam amizades. O que predominou nesses artistas foi indiscutivelmente o esforço pessoal de aprimoramento, somado, a partir da existência do Grupo, aos ganhos da atividade conjunta.
Nesse contexto, é possível observar os pintores de parede que costumavam fazer ponto na Praça da Sé e em
suas imediações. Um desses pintores, Rebolo Gonsales, recém-saído do futebol profissional, abriu seu escritório
na sala 231 do Santa Helena. Logo depois outro artesão, Mário Zanini, imitou-lhe o gesto, instalando-se na sala
232.
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Um e outro eram, nas horas vagas, artistas amadores, freqüentando à noite um curso livre de desenho na
Escola Paulista de Belas-Artes. No curso, orientado por Lopes Leão, conheceram outros artesãos-artistas, como
Volpi, Graciano e Manoel Martins. Logo em seguida, esses pintores e alguns outros passaram a reunir-se periodicamente no Palacete Santa Helena, para desenhar ou trocar idéias sobre arte. Nasceu, desse modo, o denominado Grupo Santa Helena, constituído por Rebolo Gonsales (1902-1980), Mário Zanini (1907-1971), Fulvio
Pennacchi (1905-1992), Aldo Bonadei (1906-1974), Alfredo Volpi (1896-1988), Humberto Rosa (1908-1948),
Clóvis Graciano (1907-1988), Manoel Martins (1911-1979) e Alfredo Rullo Rizzotti (1909-1972). O próprio
Rebolo explicaria, anos mais tarde, as origens do Grupo: “O Santa Helena não começou como um movimento:
foi transformado em movimento pelos intelectuais”. Um grupo formado por meia dúzia de amigos, cujo traço
comum era não gostar de acadêmicos e querer a “pintura verdadeira” que não fosse anedótica ou narrativa. “A
pintura pela pintura”.
Na base da formação desse Grupo estava a contribuição do imigrante e seus filhos. Para Flávio Motta, por
exemplo, o trabalho do imigrante contribuiu no aprimoramento de relações de trabalho e de produção dentro da
vida brasileira, com “implicações referentes à história da pintura, arquitetura, etc.”
Os santelenistas corresponderam à situação sociocultural de uma metrópole em rápida expansão, com forte
presença italiana. A maioria de seus membros pertencia à grande colônia que se estabelecera no Estado. Volpi e
Pennacchi eram italianos, enquanto Bonadei, Graciano, Rosa, Rizzotti e Zanini eram filhos desses imigrantes;
Rebolo era descendente de espanhóis e Manoel Martins, de portugueses. Quase todos exerciam profissões que os
mantinham no seu dia-a-dia. Volpi, Rebolo e Zanini eram pintores de parede; Rizzotti, torneiro; Bonadei, bordador; Pennacchi, açougueiro; Graciano, ex-ferroviário e ex-ferreiro; e Manoel Martins, aprendiz de ourives.
Os componentes do Santa Helena, além da origem imigrante e humilde, possuíam certas especificidades na
formação: alguns chegaram a estudar no exterior, outros realizaram aprendizados na Escola Paulista de Belas-Artes e havia os autodidatas. Entretanto, o que predominou nesses artistas foi, indiscutivelmente, o esforço pessoal
de aprimoramento.
O companheirismo que cultivavam constituía grande aliado. Volpi e Zanini conheciam-se antes da aproximação no Santa Helena. Zanini e Rebolo já eram próximos desde o início dos anos de 1930. Pennacchi e Rebolo
fizeram amizade por ocasião do III Salão Paulista de Belas Artes (1936).
Os artistas exerciam a pintura decorativa de residências, entre outras tarefas, e esse vínculo profissional tornou-se fator decisivo para a sua aproximação, que perdurou com mais força até o início dos anos de 1940. Sem
idéias preconcebidas, deram forma a uma existência comunitária. Mostravam-se ciosos da necessidade do conhecimento dos materiais e das técnicas da arte. Do ponto de vista estético, é possível observar em suas obras
releituras espontâneas ou indiretas do Impressionismo, das formas construídas de Cézanne ou traços incisivos
de Van Gogh.
Esse aprendizado não se compara com a experiência internacional dos primeiros modernistas, residentes em
Paris e outras cidades ou freqüentadores assíduos do ambiente artístico europeu. A formação desses “operários
da pintura” realizou-se no próprio ambiente paulistano, com absorção, principalmente, das culturas italiana e
francesa.
Recolhidos em busca de aperfeiçoamentos técnicos, sem reconhecimento crítico, não estavam próximos das
manifestações vanguardistas que os membros da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) e do Clube de Artistas
Modernos (CAM) tinham promovido em 1932 e 1934. Possuíam, contudo, vocação de artistas e eram guiados
por um instinto criador que os conduziria afinal à profissionalização e, posteriormente, ao resgate pela crítica de
arte.
Nessa direção coloca-se o termo “artista operário” pelo crítico Mário de Andrade. Esses artistas voltados ao
seu ofício, à necessidade associativa, com o objetivo comum de “fazer pintura” ou, na palavra de Rebolo, “fazer
pintura pura” e, com o desdobramento lírico do fato desses operários sobreviverem da pintura, portanto serem
também “operários da pintura”. Ao lado da discussão sobre a visão de artistas, que, para sobreviverem, ousaram
partir de um aprendizado básico através de “lições de ateliê”, está o esforço concentrado de cada participante,
qual seja, somaram limites econômicos-profissionais e optaram pela “pintura pura” e por meio dela sobreviveram
como operários da própria arte.
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011.
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Em sua trajetória, o Grupo Santa Helena sentiu os efeitos do desenvolvimento das artes aplicadas. Nessa segunda fase do Modernismo, não se difundira o gosto de conviver com o novo. Raros eram os artistas modernos
que se sustentavam através do próprio trabalho. Eram poucos os interessados em divulgar a arte, e na época não
se possuía institutos ou museus voltados a estes propósitos. Conseqüentemente, faltava tanto aos artistas como
ao público, o apoio de uma infra-estrutura cultural. Vários artistas exerciam funções paralelas para sobreviverem.
Hoje, pode-se retomar ou mesmo acrescentar debates à sinalização ou à terminologia desse crítico de arte.
Porém, é incontestável a marca do contexto social na visão do grupo. Prevalecem em suas representações as
excursões ao “ar livre”, as paisagens humildes, despojadas, os arrabaldes operários anônimos, o litoral, as naturezas-mortas, a figura humana popular, os temas religiosos e alguns outros motivos e registros do modo de vida
dos componentes do grupo.
Tiveram, porém, o mérito de contribuir para o amadurecimento de um tipo de expressão artística mais preocupado com os aspectos puramente técnicos ou com o métier – aspecto nem sempre valorizado pelos pintores
vanguardistas. Ou, como escreveu Sérgio Milliet, a atuação desse grupo representou “uma reação da pintura de
matizes e atmosfera contra as correntes mais avançadas, mas menos artesanais”.
Esta geração pode ser inserida no contexto da autocrítica sinalizada por Mário de Andrade: “Nós éramos os
filhos finais de uma civilização que se acabou”, ao mesmo tempo que aponta desdobramentos deixados pela
Semana de 1922: “a conquista do direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística
brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”. Tanto Mário como outros críticos assinalaram
que apesar desta geração não ter atingido o experimentalismo e vanguardismo da primeira fase modernista, amadureceram um claro “domínio do fazer artístico” ou do métier. Esclarecia ainda Mário que, no eixo de suas lutas
e sonhos do dia-a-dia, o que os aproximava era uma afinidade no interpretar, perceber e realizar a arte.
É importante salientar que os artistas do Grupo Santa Helena nunca fizeram uma exposição conjunta de suas
obras. Porém, participaram das três mostras da Família Artística Paulista , realizadas, respectivamente, no Grillroom do Hotel Esplanada, em novembro de 1937; no Automóvel Clube, à rua Líbero Badaró, em maio-junho de
1939; e no Palace Hotel do Rio – a convite da Associação dos Artistas Brasileiros e com o patrocínio da revista
Aspectos – em agosto-setembro de 1940.
A primeira exposição da Família Artística Paulista não alcançou a repercussão desejável. No catálogo da
exposição, Paulo Mendes de Almeida destacou o repúdio do Grupo ao academicismo, o fato de não se inserir nas
“correntes mais avançadas” , mas de estar integrado nas “legítimas tradições da pintura”. Na segunda apresentação, o artigo de Mário de Andrade, de 1939, Esta Paulista Família, foi mais ressonante. E, na última versão da
Família Artística, encerrada em setembro de 1940, os santelenistas já haviam se dispersado. Alguns artistas do
Santa Helena reencontram-se nas atividades da Osirarte.
Na Osirarte destacaram-se duas influências nem sempre reconhecidas: Paulo Rossi Osir (1890-1959) e Vittorio Gobbis (1984-1968). Esse último, originário da Itália, transferiu-se para o Brasil ainda nos anos de 1920,
trazendo domínio dos procedimentos da pintura figurativa pouco renovada. Há na obra de Rossi Osir, aguda
meticularidade realista fortemente vinculada à visualidade italiana, que manteve imperturbável qualidade e coerência estilísticas. Sua formação artística foi feita em vários países europeus, entre 1908 e 1927.
Rossi Osir, além da iniciativa de realizar as exposições da Família Artística Paulista, fundou em 1940 a firma
Osirarte, que teve por objetivo reviver no Brasil a arte do azulejo. Sua primeira encomenda foi a decoração de
paredes externas do Ministério da Educação, para a qual Portinari forneceu seus cartões. Voltada para temas
nacionais, a Osirarte funcionou até 1959, tendo participações de artistas do Santa Helena, como Alfredo Volpi e
Mário Zanini.
Em síntese, sobre as contribuições dos artistas do Grupo Santa Helena e de seu contexto, pode-se valorizar
como ponto de partida as questões econômicas e culturais enfatizadas por Mário de Andrade.
A origem social e as afinidades profissionais e artesanais motivaram a denominação de “artistas proletários”
por Mário de Andrade. O autor lembra ainda que é no início dos anos de 1940 que o conhecido edifício eclético-tardio , da antiga Praça da Sé, passou a designar o Grupo Santa Helena. Registraram, conforme assinalou
também Mário de Andrade, conteúdos de vida, “uma dor muda” ; acima de tudo realizaram uma obra pictórica
de alta sensibilidade, disciplinada pelo métier rigoroso.
Ao comentar o papel dos “representantes novos” da Família Artística Paulista, Mário de Andrade enfatizou a
característica mais divulgada desses artistas: a sua condição social. Citava-os como todos do povo, senão “diretamente proletários”, “pelo menos vindos de operários ou de gente de pequenos recursos econômicos e culturais”.
Essa condição foi determinante em suas carreiras. Esse fator correspondia a aspectos recentes de uma sociedade
em que se registra “progressiva influência da classe média e da proletária”, acrescentando-se a estas influências
a participação de artistas imigrantes ou de seus descendentes.
É relevante a influência que recebiam da pintura italiana – à qual se ligavam naturalmente pelas origens. Sem
as ousadias da vanguarda modernista, mas ao mesmo tempo guardando distâncias das regras acadêmicas, quase
sempre através de pequenas telas ou de “janelas para a pintura pura”, escolheram um Modernismo contido. As
obras dos santelenistas refletiram em primeiro lugar o estrato social a que pertenciam. Essa vertente é visível, no
seu “proletarismo”, assinalando, novamente, o termo utilizado por Mário.
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Rebolo, o Artesão da Cor
(...) na arte deve-se fazer coisas espontâneas, com a marca do amor e entusiasmo, para poder se
emocionar e emocionar outras pessoas” (Rebolo)
Para Rebolo (1902-1980), da convivência com os companheiros do Santa Helena, ficam lições definitivas:
as discussões, a permuta de experiências, livros e revistas, a luta pela sobrevivência e a paixão pela pintura. Na
busca de informações novas, o que importa assimilar, em primeiro lugar, é a técnica artesanal, o uso de ferramentas – o que lhe facilitará captar as nuanças da natureza que tanto ama e concentrar-se na estrutura de suas
composições. Ficam, das lições no atelier, o desenho do modelo vivo e o estudo das naturezas-mortas. Porém, o
mais importante é o registro da vivência paulistana de sua época – a busca de temática pictórica própria, dentro
da realidade atualizada.
Ficam lições de domingo, com prática da pintura ao ar livre e a descoberta de que as coisas estão vivas, mergulhadas na luz, vibrando, lembrando a visão dos impressionistas. Todavia, Rebolo não persegue as propostas dos
artistas franceses na pesquisa dos efeitos da luz sobre o motivo e a percepção do transitório. É mais provável que,
próximo às experiências de Rebolo e de seus companheiros, tenham tido mais efeito as pesquisas do movimento
italiano Macchiaioli , considerado a fonte do movimento novecentista chega ao Brasil através de Hugo Adami,
depois de uma viagem de estudos à Europa, entre 1927-1928.
Os seguidores do Macchiaioli têm em comum com os impressionistas franceses a prática da pintura ao ar livre
e o uso de manchas. Mário Zanini, por exemplo, explora muito o efeito das manchas enquanto Rebolo, com evolução de sua pintura, passa a transformar as manchas em zonas coloridas, aproximando-se da técnica de alguns
pós-impressionistas. Ao contrário dos impressionistas, que compõem o espaço com manchas coloridas, Rebolo
tende a ordenar o espaço sem dissolver os contornos. No início da carreira, na obra Fazenda do Prada (1935),
as manchas coloridas tendem à diluição dos contornos das árvores, nuvens e outros elementos. Mais tarde, os
contornos e as zonas coloridas serão cada vez mais definidos. Na obra Marinha (1973), demonstra nitidamente a
vontade de reduzir a natureza a zonas coloridas.
O registro do cotidiano realizado por Rebolo tem o caráter de um diário íntimo que se abre ao leitor para ser
completado e manter o diálogo: “homem e o mundo ao redor” ou “homem-natureza”. Os registros procurados
são os mais simples e prosaicos. Procura documentar a própria vivência, de uma maneira pessoal. É desta forma
que registra, da janela do seu atelier no Santa Helena, São Paulo que começa a crescer, produzindo documentos
preciosos de um período de transição da paisagem urbana, como nas obras Rua do Carmo (1936), e Praça Clóvis
(1944) – observação direta e simples de pessoas pacatas e de uma cidade que se transforma.
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De meados dos anos de 1930 até fins dos anos de 1940, tem preferência pela realização de paisagens ao ar livre. A opção é por pintura de cidades do interior do Estado ou do litoral e, de preferência, das regiões suburbanas
de São Paulo, como Cambuci, Sumaré ou Tremembé. Essa última região é retratada na obra Tremembé (1937)
– hoje é impossível reconhecer através dessa tela o bairro do Tremembé. No quadro há, no centro, um morro que
começa a ser alcançado por casinhas; em baixo, os tapetes de hortaliças, resolvidos em vários tons, são tratados
por lavradores. Aqui as tonalidades ocres e verdes, que marcam a paleta de Rebolo, já estão definidas, assim
como os aspectos construtivos da obra. Há com freqüência tonalidade cinza envolvendo tudo; ele mesmo explica
o porquê de sua visão cromática:
“(...) eu pintava a cidade de São Paulo, principalmente os subúrbios que já são cinza de natureza. A cidade
crescia, se industrializava. Naquele tempo, não tinha os ares modernos, bonitos, limpos e elegantes de agora; era
uma cidade suja com as primeiras tintas da industrialização. Eu encontrei profunda poesia naquela tristeza cinza.
A paisagem suburbana, que me agradava tanto, não conseguia despertar a sensibilidade dos acadêmicos”.
A estrutura unitária da composição e o interesse pelos elementos arquitetônicos surgem com freqüência nesse
período, revelando necessidade construtiva. Na Paisagem com Casas (1940), a arquitetura é um componente
essencial da paisagem; não só alude à unidade inseparável da São Paulo que cresce, bem como as pequenas
casas, com os seus planos nitidamente cortados, que constituem um núcleo sólido no qual se condensa a luz da
paisagem, assumindo uma função construtiva. Rebolo usa constantemente esse tipo de arquitetura singela, plantada em forma de “ninho”, ou no meio de morros, ou no topo. O importante não é revelar objetos pictoricamente
interessantes (a bela casa, o edifício que cresce), mas definir um espaço plástico unitário ao qual nem um único
elemento se impõe, nem subordina os demais. Desse modo, a paisagem se oferece ao artista como motivo a ser
experimentado ou ouvido, como um espaço unitário no qual não é possível nenhuma graduação, senão perfeita
confrontação de todos os valores.
Com o tempo, deixa cada vez mais claro o que pretende com a sua pintura ou com a sua visão poética: a comunicação da realidade interior com a realidade exterior. Isto é, o que deseja é expressar compreensão profunda
e união constante com a natureza. É esse desejo, sem dúvida, que o levará a viver no sítio do Morumbi, mais próximo do verde e da sua procura. Para ele, a emoção e o entusiasmo diante da natureza não passam pela impulso
passional próprio dos paisagistas românticos. O mundo não é um espetáculo para ser simplesmente contemplado
ou exaltado, senão uma experiência, e a pintura é um modo de vivê-la. A natureza para Rebolo não é objeto e
sim motivo, estímulo para a criatividade. Intui que a profunda unidade do homem e da natureza, que em outro
tempo fora espontânea, ameaça desfazer-se, porque a sociedade contemporânea, orgulhosa de seu cientificismo
quer conhecer e não sentir a natureza ou reter o seu lirismo. Mas senti-la e captá-la sob formas líricas também
não é autêntico modo de conhecê-la?
A esta questão Rebolo responde afirmativamente, e esclarece algumas atitudes do homem contemporâneo
diante do seu ambiente. Sempre observando a natureza com olhos atentos, chega a síntese que equivale a uma
marca registrada e destaca a possibilidade do sujeito reconhecer no espaço pictural seu próprio ambiente de vida:
um lugar que pode ser aconchegante ou hostil, com o qual se pode estabelecer uma relação ativa, não distinta da
qual liga o homem à sociedade.
Nos anos seguintes muda com freqüência de técnica, mas sem perder de vista o traço de união “homem-natureza”, mesmo quando se ocupa de uma obra mais estruturada. Dos fins dos anos de 1940 até a década de 1950,
passa aos poucos para a produção em atelier. Prefere um esquema visual livre e intuitivo, e não matemático.
Apesar disso, constatam-se nas suas composições a segurança estrutural e a tendência de retomar soluções semelhantes. Desde os primeiros trabalhos até a última fase, Rebolo mostra aguda sensibilidade na composição de
suas obras, equilibradas como se seguissem um esquema secreto, preconcebido. São constantes, desde o começo
de sua carreira, o esquema triangular e o aparecimento de três elementos em destaque, como um conjunto de
árvores, uma estrada, um morro ou árvores, pessoas ou animais. Na obra Bois e Coqueiros, de fase posterior, de
1967, o aparecimento do conjunto de três elementos – casas, bois e coqueiros – é tão enfático que compete com
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os demais elementos da composição.
A tendência de estruturar e organizar geometricamente chega a competir, em certas ocasiões, com a espontaneidade que caracteriza o seu temperamento. Essa tendência faz com que Sérgio Milliet pergunte pela influência
de Cézanne, ao que Rebolo responde: “ “ – onde mora esse pintor?” A tela Socorro (1938), já demonstra, como
outras da mesma década, a tendência à estruturação; mais tarde, na paisagem Morumbi (1944), é clara a síntese
das formas, lembrando Cézanne. Anos depois, como na obra Lenhadores (1950), equilibra-se entre o peso de uma
pintura racionalmente construída e o lirismo. Expressa a preocupação com alguns dados cubistas na organização
das casas, árvores e esquematização dos corpos. Mas o ambiente poético criado pela luminosidade e os tons suaves levam o espectador a meditar sobre o sentido das formas líricas do pintor, cuja ênfase recai nos lenhadores
que se arcam em limites imprecisos entre o trabalho e o sonho.
Neste período em que as suas paisagens passam a ser mais sínteses mentais, associadas à memória visual, está
convencido de que a força da pintura reside na própria pintura e não no tema. O desenvolvimento de pequenas
verdades, que o afirmam em sua busca, recompensa-o do cansaço cotidiano. Não aceita a pintura puramente
visual, quer ser poeta. Porém a sua poesia pretende faze-la como pintor, não traduzindo temas em figuras, senão
construindo imagens com materiais de pintura, provando que é ao mesmo tempo poeta e artesão da cor.
Às vezes cai em certas tendências naturalistas, passando, através de seus matizes discretos, certa fidelidade à
atmosfera característica de São Paulo, em certas épocas, com o céu encoberto. Ou chega a observar a natureza,
seus acidentes geográficos, os verdes, o oxigênio respirado, como no vôo de pássaro com que descreve Campos
do Jordão, obra de 1943. Ou, ainda, afastando-se da fidelidade atmosférica, escolhe tons de uma terra mais avermelhada, extensa, como na obra Colheita (1946).
A paisagem é sempre o seu assunto predileto. É um verdadeiro ecologista, preocupado com a preservação.
A figura humana, quando surge, é envolvida, geralmente, pela imensidão da terra e dos verdes. A paisagem em
Rebolo não é um elemento decorativo, uma “moldura”: impõe-se como uma necessidade, como oxigênio para a
vida. A natureza aparece em vários tons de verde, sugerindo a presença do ar – a atmosfera vital do homem. Em
alguns trabalhos os verdes cobrem todo o espaço, como numa das obras de sua última fase: Arvoredos (1975). A
natureza pode apresentar-se generosa e florida, como nas obras de 1972 Caminho e Primavera. Outras vezes, a
natureza é atacada pela poluição, como na representação de troncos ressecados, tendo atrás o Rio Guaíba – Paisagens (1977).
Além das figuras humanas integradas à paisagem, ele as destaca no estudo de retratos. São numerosos quadros
de tamanho pequeno, em que procura os seus próprios traços ou que transmite a sua capacidade de captar características essenciais; atento ao olhar penetrante, buscando aspectos psicológicos, como nos retratos do amigo
Osório César (1939), e de sua mulher, Lisbeth (1942). No início da carreira fica clara a importância da figura
humana, realizando vários desenhos de modelo vivo e óleos, como o estudo de Nu (1934). Os trabalhos com
a temática feminina aparecem freqüentemente. Em geral, não são retratos, todavia lembram Lisbeth, ou ainda
são moças em posição simples, prosaicas. Ora são diálogos líricos, de composição singela, tonalidades suaves,
revelados na encantadora Moça no Jardim, na obra Mulheres no terraço (1943), ou em Esperando – registrando
Lisbeth em 1946, que já espera Suzy, num momento de concentração e tranqüilidade. Em todos esses trabalhos,
coloca o despojamento do ambiente, os gestos suaves e uma certa datação, revelada nos tipos e nos trajes.
O amadurecimento de suas obras é marcado por vários estímulos e algumas conquistas. No início está muito
envolvido com os companheiros do Santa Helena. As primeiras conquistas surgem com as oportunidades nas
mostras da Família Artística Paulista. Em 1944 expõe individualmente. A sua atuação é importante no Sindicato
dos Artistas Plásticos e na organização da vida artística de São Paulo. Em 1945, participa da fundação do Clube
dos Artistas e Amigos da Arte – o “Clubinho” – do qual será diretor anos seguidos; esse clube tem grande importância para a divulgação artística dos paulistas.
Sempre trabalhando em ritmo acelerado, em 1954 o pintor tem a consagração merecida, com a obtenção do
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“Prêmio de Viagem ao Exterior”, no 3º Salão de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Este salão tem um episódio
singular. Os pintores participantes apresentam-se com telas apenas em branco e preto, como sinal de luto às taxas
das tintas importadas, tão caras como os perfumes. Ironicamente, Rebolo – o famoso artesão da cor – expõe o
quadro Casas da Praia Grande, em preto e branco.
REFERÊNCIAS
Depois de uma grande despedida no “Clubinho”, parte com a família, por dois anos, para a Europa. Com a
viagem vêm as visitas aos museus, ateliers e a execução de novas obras. A arquitetura italiana motiva-o a realizar
obras de maior rigor. A própria força da arquitetura renascentista orienta a construção de fachadas bem estruturadas e que acompanham as tonalidades típicas da arquitetura romana: ocres e terras. A obra Roma (1956),
assegura a disciplina do olhar e o lirismo da “cidade eterna”. Da visita a Pompéia fica a marca do famoso vermelho pompeano que aparece em várias paisagens européias como, por exemplo, Ravena (1956), que se afasta de
uma construção rígida e aproxima-se de uma composição “fauve”. Na volta, em agosto de 1957, expõe as telas
pintadas na Europa no Museu de Arte Moderna. Comenta que se renovou, como se tivesse tomado um banho de
juventude. Na obra Suzy (1959), indica que mantém recordações do período europeu, associando o rigor formal
a variantes do vermelho pompeano na visão poética da filha que toca flautinha.
ALMEIDA, Paulo Mendes de. Anita ao Museu. São Paulo: Perspectiva, 1976.
Aos 60 anos de idade, é temporariamente obrigado a afastar-se da pintura, depois de ter sofrido um infarto.
Deixa de lado as tintas e passa a desenhar. Recuperado, nos anos de 1960 a pesquisa da matéria é sua marca
fundamental. Diante da insistência de Marcelo Grassmann, elabora uma série de gravuras, à procura de novos
desdobramentos. De 1960 a 1965, a influência da gravura se traduz por um leve “farfalhar” das cores. Mas a
inspiração para esse tipo de pintura, assinala Rebolo, vem da contemplação de pinturas etruscas, marcadas pela
história: com partes intactas ao lado das formas corroídas pelo tempo. Para o pintor, as partes descascadas desta
pintura sugerem novas formas e constituem fonte para novas concepções.
Passa a buscar, na experiência com xilogravura, recursos plásticos para associar e retomar os efeitos da textura dessas pinturas etruscas. Na gravura, aprende a desbastar uma camada para revelar o interior da madeira; e,
quase naturalmente, começa a agir da mesma maneira em relação à sua nova pintura. Surge uma técnica na qual
coloca uma base de tinta preta, depois aplica as cores, tendo o cuidado de, em seguida, retirar com papel absorvente, o excesso de tinta. Por fim, aparece uma textura de colorido discreto. Esta experiência deixa como saldo
uma série de quadros, tais como: Menina flaustista (1964), e do mesmo ano, Quiriri, onde os efeitos da textura
sugerem a água em movimento.
No final dos anos de 1960 elimina o preto, deixando reaparecer as cores claras. Nos anos de 1970 retoma as
linhas de estrutura e diminui a textura, chegando até as cores chapadas. Promove um retorno ao toque mágico
dos primeiros tempos – um anel lírico, marcado pela fidelidade e inquietação, em que pontos de chegada se aproximam do ponto de partida. Nos últimos anos viaja por diversos estados brasileiros, registrando lugares típicos
e a luminosidade que distingue esses lugares. É desse modo que é vista, da parte alta da cidade, a Olinda (1974).
Deixa surgir o mar verde, típico do nordeste, e as cores alegres que Franz Post, nos seus magníficos trabalhos
sobre essa região, não pôde traduzir, porque os seus olhos e a sua paleta traziam a luminosidade e o estilo de
cores sombrias de um outro país.
Valoriza neste período, a realização de um espaço muito especial – onde coloca formas que, apreendidas pelo
observador, levam-no a uma reflexão sobre a existência e o mundo que o envolve. Propõe uma pintura de adesão
à vida, de volta à natureza: uma necessidade de rever o modo de vida contemporâneo. Na Paisagem (1979),
esta idéia torna-se clara: nos primeiros planos as árvores, verde, muitos tons de verde; deixa para trás a cidade.
Não se trata de se afastar da sociedade urbana, mas de repensa-la. Ao propor esta volta lírica, quase romântica,
revela uma atitude do homem contemporâneo diante da natureza, empenhando-se em salvá-la e proclamando-a
insubstituível.
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Recebido em 12 de Julho de 2011.
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Aprovado para publicação em 14 de Agosto de 2011
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O Anjo de Dürer e
os Herdeiros de Saturno
The Angel of Dürer and the Heirs of Saturn
No reconhecido estudo de Saxl e Panofsky, Dürer ‘Melancolia I’, os autores examinam iconograficamente
a gravura e referem-se ao texto de Agrippa, considerando-o orientador da obra e chamam a atenção para o fato
da gravura trazer em seu título o número I, reforçando a descrição de Agrippa de três níveis da melancolia. Isto
porque Melancolia I está visivelmente dedicada às artes manuais. Contudo, outros autores questionam: onde estão Melancolia II e III? Logo depois de Melancolia I, Dürer pinta São Jerônimo em seu Estudo. Saxl e Panofsky
julgam essa obra um contraponto e um contradito a Melancolia I. Para os autores, São Jerônimo em seu Estudo
Paulo Roberto Amaral Barbosa
Doutor em História da Arte pelo Programa de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil e chefe da Divisão Técnico-Científica de
Acervo do MAC/USP.
Durante a Idade Média surge um novo termo para designar o “estado melancólico”: acedia ou
acídia (do grego akedia, indiferença). Hoje, essa palavra teria o significado de abatimento do corpo
e do espírito, enfraquecimento da vontade, inércia, tibieza, moleza, frouxidão ou ainda melancolia
profunda. De acordo com João Cassiano , acedia era um sentimento predominantemente dos solitários – criado em mosteiro cristão na antiga Palestina, Cassiano adquire grande experiência sobre o
tema. Para o autor, acedia liga-se a um espírito maligno, o chamado “demônio do meio-dia”. Esse
demônio está associado à tentação da carne, ao pecado e à solidão.
Palavras-chave: Anjo de Durer, Herdeiros de Saturno, melancolia renascentista
During the Middle Ages a new term for the “dismal state”: akedia (indifference from the Greek).
Today, this word would have a significance of abating of the body and spirit, weakness of will, inertia,
coldness, weakness, softness or even deep melancholy. According to João Cassiano, acedia was a
predominant feeling of the lonely - created in ancient Christian monastery in Palestine, Cassiano
acquired extensive experience on the subject. For the author, acedia binds to an evil spirit, the so
called “noon demon.” This demon is associated with the temptation of the flesh, sin and loneliness.
Keywords: Angel of Dürer, Heirs of Saturn, renascentist melancholy
O
s monges, acometidos por esse mal, se mostram desgostos com a vida, inquietos, sem desejo pelo
trabalho e a estes se recomenda, como tratamento, o exaustivo trabalho físico. Caso o esforço físico não dê resultado, o clérigo deve ser abandonado por sua ordem religiosa à sua própria sorte. Isto
porque, durante o período medieval, acedia é um pecado grave equiparado à gula, à fornicação, à
inveja e à raiva. A melancolia, vista como um fato de ordem religiosa, ao se transformar em acedia, marca a desesperança da salvação, que torna a alma indolente e desleixada, lançando o indivíduo à inércia. A vida dedicada
ao louvor, à santidade deveria ser alegre, nesse caso, a melancolia é vista como o “abandono de Deus”.
Já na visão renascentista, acedia não integra mais a lista dos pecados capitais e passa a ser vista com maior
tolerância, transformando-se em tristitia (tristeza), dotada de dois significados diferentes: 1) tristeza mundana
(talvez, ocasionada pela perda de bens materiais), na qual a alma se curva frente aos valores terrenos – de conotação pecaminosa e, 2) tristeza virtuosa, inspirada por Deus, que conduz à salvação – algo que atinge os grandes
homens.
Albert Dürer,
Melacolia I,
gravura
(31 x 26 xm),
1514. Alemanha
O texto de Agrippa, De La Philosophie Occulte, articula o humor melancólico às faculdades da alma e a uma
hierarquia na ordem da ação e do conhecimento. Na visão do autor, o primeiro grau da melancolia ou a imaginação é o temperamento dos pintores, arquitetos, escultores e mestres de várias artes manuais; o segundo, ou
razão, é o temperamento dos físicos, oradores e filósofos; o terceiro, ou intelecto, dos místicos e santos. Nessa
direção, segundo, a leitura de Luciana Chauí Berlinck, em seu livro Melancolia – Rastros de dor e perda, se
Ficino orienta a realização da Primavera, Agrippa é o pressuposto teórico para duas obras de Dürer: Melancolia
I e São Jerônimo.
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 22-29, 2011.
Poéticas Visuais, Bauru, v 2, n. 2, pág 22-29, 2011.
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seria a Melancolia III, ou a inspiração intelectual daquele que conhece os segredos divinos. Dürer dissera que as
duas representações deveriam ser vistas juntas ou simultaneamente. Todavia, informações indicam que a Melancolia II, que transmitiria a inspiração filosófico-profética, não é realizada, ou ainda, seja a gravura O Cavaleiro,
a Morte e o Diabo, de 1513.
De fato, a “melancolia renascentista” influencia muitos artistas do período e o exemplo, Albert Dürer, em Melancolia I, 1514, traz o sentimento não mais com uma conotação médica (doença ou sanidade), porém, torna-se
aborrecida e contrariada, manuseando com displicência a ponta do compasso que tem nas mãos e com o qual
poderia “redesenhar” o espaço que o rodeia, é a própria imagem da confusão de alma que é preciso sublimar,
encontrando um caminho. A desarrumação dos objetos à volta de um Anjo, que mais poderia ser uma “dona de
casa”, incapaz de pôr ordem em suas coisas, é outro dos sinais que o artista fornece. A confusão do exterior torna-se reflexo da íntima confusão, enquanto se aguarda algum sinal ou que alguma coisa de repente mude, ainda
que por acaso, mais do que por intervenção própria. A figura feminina também está atrelada à representação da
peste – o flagelo cuja epidemia devastara diversas regiões da Alemanha.
A esfera pequena, no canto inferior da gravura, à esquerda, será marca de perfeição, tal como o possível arco-íris em que a palavra melancolia se inscreve também pode significar uma transformação positiva e luminosa.
Quase tão destacado quanto o Anjo, está, sempre do lado esquerdo, um poliedro encostado a uma escada que
tem por trás um anjo menor, um “putto”, semi-adormecido. Walter Benjamin chama a atenção para a pedra, ou
ainda, o poliedro que seria um cubo, desenhado de modo peculiar para que não se tenha, desde logo, a noção do
equilíbrio das faces. O que faz todo o sentido: os alquimistas falam da pedra cúbica, e da pedra polida, quando
Albert Dürer,
O Cavaleiro, a Morte e o
Diabo, gravura,
(31 x 26 xm), 1513,
Museum Boijmans van
Beuningen. Holanda
Albert Dürer, São
Jerônimo em seu
estudo, gravura,
(31 x 26 xm),
1514. Alemanha
metáfora. Na gravura, a melancolia é representada como uma mulher de asas (ou um anjo), potencialmente capaz
de grandes voos intelectuais. Mas a Melancolia não está voando, está sentada, imóvel, na clássica posição dos
melancólicos, com o rosto apoiado em uma das mãos. A cabeça lhe pesa, cheia de mórbidas fantasias. Às voltas
com seus demônios internos, a Melancolia permanece imóvel, como se lhe faltasse ânimo para movimentar-se.
Erwin Panofsky sublinha a melancolia imaginativa como faceta principal da gravura, Melancolia I, de Albert
Dürer – o que permite lê-la como produto do imaginário alquímico do período. O Anjo sentado, de fisionomia
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desejam referir-se à perfeição que é necessário atingir.
Na gravura, a alma está adormecida e o mesmo sinal é dado pelo cão enrolado que está dormindo aos pés
do Anjo. O cão adormecido, fiel companheiro do artista em muitas das gravuras com referências alquímicas
conhecidas, é outra alusão à melancolia. O organismo canino, no período, está ligado à figura do baço. À época,
cães com face melancólica seriam os melhores: um cão alegre e amistoso não seria confiável para a guarda da
propriedade. No sentido metafórico, a figura do cão negro é remetida à memória. Como o cão, a memória é um
fiel acompanhante do homem. Memória às vezes sombria, como algo evidenciado pela própria cor escura do
animal, corresponde à obsessão renascentista de evocar, lembrar. O melancólico lembra, porém, o que recorda
é triste. O cão adormecido representa a memória desligada, imersa em profundo sono. O mar no horizonte da
gravura relembra a inclinação dos melancólicos para as longas viagens, remetendo-se à transitoriedade do mundo
frente à inércia do humano.
signos cabalísticos. De igual formato, elas mergulham no claro-escuro oriundo da segunda viagem de Dürer à
Veneza e permitem a divisão da luz em espaços variados. A presença da morte, o inexorável escoamento do tempo e a centralidade das personagens (o Cavaleiro, São Jerônimo e a Melancolia) definem o conjunto de gravuras.
O conjunto expressa a “face negra” da melancolia, na tradição antiga que relembra o gênio da morte que cerca o
humano. Ao retomar as interpretações de Panofsky, o Cavaleiro representaria a vida do cristão no mundo material
da ação e da decisão; São Jerônimo, o santo no mundo espiritual da contemplação sagrada e a Melancolia, aquela
do gênio secular presente no mundo racional e imaginativo das ciências e das artes.
O Anjo traz chaves em sua cintura. Para o artista tais “chaves” são indispensáveis, pois todo o processo é
cifrado, é secreto e não é dado a qualquer um. No chão, uma bolsa. Não por acaso, nos desenhos preparatórios
da gravura, Dürer escreve que as chaves significam poder e a bolsa, riqueza. Metáforas: “quem tem chaves pode
abrir portas, inclusive, as do céu”; “a bolsa remete a uma característica tradicionalmente atribuída aos melancólicos, avareza”. Deve-se mencionar, ainda, que Saturno é frequentemente representado com bolsa e chaves,
a divindade é vista como responsável pelo processo de cunhagem de moedas. A profusão de objetos na obra
de Dürer é relevante para o presente estudo – chama-se atenção que na produção de De Chirico, os objetos tem
grande peso e importância, como se verá proximamente neste estudo.
Em Dürer, os objetos são os utilizados cotidianamente, em vários ofícios, na ciência: uma balança, uma
ampulheta, uma sineta, martelo, serrote, pregos. Aparentemente são ferramentas que não estão ali para serem
usadas; ao contrário, os elementos sugerem a imobilidade, expressa em ponto culminante nas imagens do Anjo e
do cão. A ampulheta mostra o tempo congelado: os dois compartimentos contêm a mesma quantidade de areia.
Há ainda uma tábua numérica, uma clara alusão à geometria, à época, valorizada como verdadeira fonte do conhecimento, excluindo-se a visão teórica e enfatizando-se os aspectos práticos. A tábua numérica apresenta-se ao
lado de instrumentos humildes como o martelo e o serrote, emprestando à geometria um caráter essencialmente
humano. Benjamin afirma que a transição entre o melancólico e o mundo se faz por intermédio das coisas, não
das pessoas. Acumular – riqueza, roupas, obras de arte, propriedades – é o imperativo dessa época, mesmo que
depois os objetos fiquem sem utilidade, como acontece na gravura.
A gravura de Dürer é alegórica, o que não deixa de ser apropriado – em se tratando de melancolia, como se
percebe, alegorias não são raras. O anjo ou a mulher de Melancolia I poderia representar, para alguns autores, a
peste negra que assola a Europa à época e aproxima os sentimentos de morte e dor aos melancólicos. Nesse caso,
a melancolia é interpretada como uma espécie de “psicose da peste”. Aos 34 anos de idade, Dürer vive a peste em
Nuremberg e expressa em suas gravuras as experiências vividas. A Melancolia poderia ser o que autores chamam
de “fantasia” que, apesar de ser versada no decifrar dos símbolos, não apaga a iconografia própria à genialidade
melancólica do período.
contexto renascentista. Como diz Panofsky, “a teoria e a prática não se conjugam bem, é o que mostra a composi-
Ao se considerar as três gravuras designadas por Dürer como “Meisterstiche” , (O Cavaleiro, a Morte e o
ção de Dürer; e o resultado é a incapacidade de agir e o humor sombrio”. Doença, causada pelo pensar excessivo,
Diabo, 1513, São Jerônimo em seu Estudo, 1514 e a Melancolia I, 1514), pode-se notar que elas encerram, entre
outros símbolos, o crânio humano, a ampulheta, o cão (além do leão de São Jerônimo), animais fantásticos e
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Candido Portinari, Dom Quixote
de Cócoras com Ideias Delirantes,
lápis sobre papel, (37 x 24,6 cm),
1956, Museus Castro y Maia, Rio
de Janeiro. Brasil
Ao completar o sentido alegórico, o anjo é apresentado com o rosto na sombra, olhar perdido ao longe e a
cabeça apoiada numa das mãos, em posição semelhante ao Pensador de Michelângelo – nessa ilustração e, em
diversas outras, desenhadas e talhadas por Dürer, há referências a essa obra-prima. Também, nessa direção, o
pequeno “putto”, que lê uma inscrição segurando um sextante nas mãos, representaria o “gênio da história”, que
tenta classificar os acontecimentos em ordem cronológica ou, então, o “gênio da astrologia”, que se dedica à
previsão do mundo futuro. Assinala-se, aqui, que fazer da melancolia uma alegoria é não mais considerá-la como
um humor passageiro, submetido à existência humana, mas atribui-la as qualidades de uma divindade é índice
de um projeto estético construído sobre os processos da melancolia, que visa submeter os elementos do meio a
uma arte da composição.
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Contudo, a “elevação intelectual”, contida na alegoria de Melancolia I, apresenta dissonâncias inerentes ao
a melancolia é também a enfermidade que mais leva a pensar, em outros termos, alimenta a reflexão filosófica
e a criação poética. Para os homens de “elevada intelectualidade”, o preço a pagar seria o isolamento, como no
caso de Montaigne, que se retira da vida pública para, em seu castelo, refletir sobre a clássica questão: “Que sei
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eu?” Montaigne não é propriamente um eremita porque continua atento aos problemas de seu tempo, mas é “o
humor com o sentimento, da alma com o corpo e, o filosófico-moralista que se dedica à doença da alma ligada
melancólico em sua torre solitária”, segundo seu amigo e poeta John Milton (1608 – 1674), em Il penseroso (O
intrinsecamente ao desgosto pela vida. Os “herdeiros de saturno” (Dürer, Cervantes, Shakespeare, entre outros)
pensativo), publicado em 1654. O poema é uma alusão aos tempos sombrios e meditativos cercados pela peste
transformam o humor e o mal-estar em alegoria, metáfora e, depois, pode-se dizer, criam uma “estética da me-
negra. Nele o poeta saúda a “boa” melancolia que leva ao amor de Deus e que seria própria dos intelectuais
lancolia” que passa pelo ideário medieval (como um pecado capital), adentra o Renascimento (às vezes como
inconformados com a existência humana.
doença; outras vezes como traço de genialidade – retomando às ideias aristotélicas), ressurge no Barroco (como o
Nesse sentido, poderia se considerar, como “a torre solitária – o templo da melancolia”, a biblioteca – o
mundo cercado pelos livros que refletem algo limitado e, de certa forma, controlado em oposição às descobertas
do “novo mundo”, no período renascentista. Cervantes, em diversas passagens de seu romance, mostra a figura
medo inexorável frente à morte), no Rococó (passa a ser a “doce melancolia”) e, finalmente, será base primordial
do Romantismo – as fontes românticas nutrem a poética de Giorgio De Chirico e o transformam em um “herdeiro
de saturno”.
desgastada e “fora de seu tempo” do cavalheiro andante. A personagem Sancho Pança seria considerada sua antí-
As percepções românticas sobre a melancolia varrem a Europa e adquirem status social. Na Itália, por exem-
tese e, por sua vez, mais adaptada às novas demandas. Desprovido de pudores e com um profundo senso prático,
plo, todos aqueles que acreditam serem gênios esperam ser melancólicos. Ingleses, que viajam para as terras
Sancho Pança vive de acordo com as solicitudes do período, ao contrário do seu senhor, que almeja as honrarias
italianas e lá convivem por certo tempo, regressam para casa gabando-se da sofisticação adquirida e expressa em
de uma vida cavaleresca que não existe mais. Dom Quixote é levado à loucura pelos livros – melancolia e loucura
seus atributos melancólicos – uma vez que somente ricos podem arcar com os custos das viagens, a melancolia
têm suas ligações (às vezes se complementam, às vezes se contradizem) – uma tênue linha as divide. O Cavalhei-
torna-se uma doença aristocrática inglesa. Porém, é na França que o humor configura-se em “doce melancolia”
ro da Triste Figura é limítrofe, reflete a melancolia dos fidalgos que vivem a aventura mítica de um passado sem
que, mais tarde, é o sustentáculo do ideário romântico.
retorno. Ao longo do período renascentista, o progresso e o predomínio do comércio impelem a novos comportamentos econômicos e sociais que são rejeitados pelo feudal Dom Quixote: “(...) de pouco dormir e muito ler lhe
resseca o cérebro” – sua “triste figura” pode ser tomada como a projeção corporal de seu temperamento: seco por
Referencias
dentro, seco – magro – por fora (isto é, a condição física dos melancólicos).
A ideia do fidalgo, do príncipe ou do “monarca melancólico” é recorrente à época e é transmitida em inúmeras
manifestações artísticas. No teatro, por exemplo, Shakespeare cria Hamlet, um personagem desiludido com o
mundo; incapaz de vingar a morte do pai e dono de uma imaginação superior que adota a melancolia como uma
resposta ao mundo doente no qual vive. Shakespeare aborda o mal-estar com transparência, empatia e complexidade. Dá ao seu personagem astúcia e sentimentos de autodestruição. No momento em que Hamlet é encenado,
a melancolia é tanto um elogio quanto uma doença – aos menos privilegiados social e economicamente, a melancolia é vista como um mal a ser extirpado (um melancólico é candidato, assim como a escória da sociedade,
a integrar a Nau dos Insensatos). Para os mais abastados, o humor é o que daria o tom de sua genialidade – a
retomada da tradição clássica fornece os sustentáculos para esse pensamento.
No drama barroco é frequente a figura do “príncipe melancólico”. No período da reforma e contra-reforma,
crescem as obras que tratam da moralidade do cotidiano e da honestidade das pequenas coisas. Para os intelectuais, o “absurdo da existência” os aproxima do terror da morte, do mundo enlutado. No mundo protestante, a
intervenção divina adquire novos aspectos: nele as ações humanas, baseadas na moral e na racionalidade, trazem
consequências divinas. Para Walter Benjamin, o príncipe melancólico barroco é aquele que, dotado de poderes
absolutos, sabe que não pode mais contar somente com a intervenção divina em relação ao mundo. Daí, o caráter
AGRIPPA VON NETTESHEIM, Heinrich Cornelius. De La Philosophie Occulte. Paris: Armand Collin, 1922,
p. 125.
SCLIAR, Moacyr. Saturno nos Trópicos ... op. cit., p. 75.
João Cassiano (c. 370- 435) foi um teólogo cristão, do período patrística, monge de Marselha, na atual França.
SOLOMON, Andrew. O Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002,
p. 264 e seguintes.
BERLINCK, Luciana Chauí. Melancolia: Rastros de Dor e de Perda...op. cit.,p. 30.
PANOFSKY, Erwin.Saturn and Melancholy, ed. by H.W. Janson, 1964.
BENJAMIN, Walter. Origine du Drame Barroque Allemand. Paris: Flammarion, 1985.
LAMBOTTE, Marie-Claude. Estética da Melancolia...op.cit., p.19.
PIGEAU, Jackie. Metáfora e Melancolia: ensaios médico-filosóficos. Rio de Janeiro: PUC Rio/Contraponto,
2009, p. 119.
dramático da qual a alegoria barroca não pode prescindir. O homem barroco retoma a natureza como objeto da
ciência, no sentido de dominá-la, mas nesse processo, se afasta de seu potencial simbólico. Do mesmo modo, a
melancolia barroca possui implicações expressivas de um mesmo sentimento: o medo, a necessidade de domínio
Recebido em 15 de Maio de 2011.
Aprovado para publicação em 17 de Setembro de 2011
daquilo que aparece como contraditório e externo à consciência.
No histórico sobre as diversas concepções relativas ao sentimento melancólico se percebe a proliferação de
discursos que variam entre: o médico que encerra na fisiologia seus sintomas e a interpreta como doença física
com incidências psíquicas secundárias; o médico-filosófico que reflete sobre sua tipologia e sobre a relação do
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Aprendendo a aprender
comece pela capa
Learning to learn - Start by its cover.
Sonia de BRITO
Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista e Professora Assistente Doutora da
UNESP de Bauru, São Paulo, Brasil.
& Guiomar Josefina BIONDO
Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista e Professora Assistente Doutora da
UNESP de Bauru, São Paulo, Brasil.
Do livro de Newton Duarte (2000) Vigotysky e “Learning to Learn”, Pode-se ter uma profunta
reflexão a respeito da capa, uma obra-prima do artista Max Ernst, “Birds, too: Bird-Snake and
Scarecrow” by 1921 (in Bischoff, 1993) and the phrase “Learning to Learn”.
Compare e interprete o tema de Vygotsky com a imagem é nosso propósito, por que apenas olhar
na figura de uma capa não tem sentido. É necessário enxergar um mecanismo duplo de percepção
visual do que ela representa. É uma metáfora. Uma representação explícita e, por analogia, implicitamente sintetiza o interior de um slogan que ten se tornado um símbolo de posições de ensino
inovadoras.
Palavras-chave: Max Ernst, Interpretação das capas, aprendendo a aprender
A
From the book of Newton Duarte (2000) Vigotysky and “Learning to Learn”, you can make a
compelling reflection of the cover, a masterpiece of the artist Max Ernst, “Birds, too: Bird-Snake and
Scarecrow” by 1921 (in Bischoff, 1993) and the phrase “Learning to Learn”.
Compare and interpret the theme of Vygotsky with the picture is our purpose, because look at the
painting on the surface of the cover is meaningless by itself, is necessary to seek a dual mechanism
of visual perception on what it represents. It is a metaphor. Such explicit representation abroad and,
by analogy, implicitly synthesizes the inside of a slogan that has become a symbol of the innovative
teaching positions.
Keywords: Max Ernst, cover interpretation, learning to learn
função principal da capa de um livro é anunciar um contexto, além de atrair, provocar e despertar o
interesse do leitor. A capa foi criada para proteger o livro, porém, sua evolução técnica acabou reunindo outras finalidades: estética, identificação do conteúdo, promover e embelezar etc. Como objeto de
comunicação, age como um cartaz legível e despojado.
No Brasil, foi a partir da década de 40, com a evolução da propaganda e dos novos meios de comunicação que
a ilustração saiu dos limites do desenho para recorrer à pintura e à fotografia. São vários os artistas convidados
para compor capas de livros, entre eles podemos citar: Ismael Nery, Iberê Camargo, Siron Franco, Portinari, Di
Cavalcanti.
Pressupõe-se que não foi ao acaso que Milton José de Almeida, criador do leiaute, escolheu a obra de Max Ernst
para ilustrar a capa do livro de Newton Duarte. Ernst costuma usar materiais diversos para compor as suas obras,
o que constitui a identidade estilista das suas composições, as quais têm como base teórica a psicanálise, a psicologia, a anatomia, a paleontologia, a literatura, a poesia não ortodoxa, a história natural e a história da arte, que
fazem parte do inconsciente coletivo: “A consciência sendo censura dita normas que sistematizam, assim romper
com a consciência é romper com a sintaxe, rompe com a organização da forma”. (BISCHOFF, 2002).
Dono de uma cultura extraordinariamente variada, Max Ernst incorporou as estéticas: surrealista, dadaísta e
metafísica. Apreciava manuais científicos ultrapassados, à procura de possibilidades técnicas não tradicionais,
evitando o uso de tintas diretamente na tela.
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Ilustração 1
Capa do livro
Vigotsky e o
“Aprender a
Aprender”
A colagem, a frotagem e a grattagem são as técnicas empregadas e o uso de objetos retirados do cotidiano transformou-se em fontes pictóricas sem relação entre si, mas sugestivos e com possibilidade de várias leituras, uma
vez que as interpretações determinam o valor das representações. É assim com o emprego de diversos símbolos
culturais, combinando-os com a realidade que se pode encontrar o jogo do inconsciente.
Por outro lado, sabe-se que Vigotsky se interessava pelas questões psicológicas relacionadas com a criação,
com a literatura e com a arte. Em seus estudos sobre Psicologia, ele confronta dois fatores que movem a criação
humana: o intelectual e o emocional. Faz uma análise da estrutura da obra, afirmando que o conteúdo não se
introduz de fora da obra, mas o artista o cria nela. Tem por aspiração compreender a função da arte na vida do
homem como um ser sócio-histórico.
Ao analisar o texto, pode-se constatar a polêmica que existe no lema criado por Vigotsky “Aprender a Aprender”, pois mais do que um lema, é uma verdadeira posição pedagógica que tomou conta da comunidade educacional do novo milênio.
Contrapondo essa questão e defendendo a necessidade de uma reflexão crítica e histórica, além de uma análise
minuciosa da psicologia vigotskiana, Duarte aponta para o papel ideológico desempenhado por esse tipo de apropriação das idéias de Vigotsky, ou seja, o papel de manutenção da hegemonia burguesa no campo educacional.
Ainda segundo Newton Duarte (2000), uma pedagogia crítica só seria constituída com educadores que se rebelassem contra essa forma de alienação, caso contrário, não passaria de ações humanizadoras ingênuas. Defende
a tese de que o trabalho educativo deve desempenhar o papel de mediador entre a vida cotidiana e as esferas
não-cotidianas da atividade social.
É olhando pela fresta da superfície raspada, pondo a estrutura em evidência como fez Max Ernst que conseguimos enxergar no papel das relações entre a palavra e a pintura, as possíveis associações de sentido, que constituem a singularidade dessa obra: o resultado da ambiguidade da representação. Fugindo do dogmatismo e da
rigidez dos métodos tradicionais, não se ateve a nenhum outro método que revelasse o inconsciente sem a censura
da razão, colocando à disposição do mundo inteiro maneiras de invenção de quadros. Foram essas técnicas novas
que permitiram ao artista permanecer “além da pintura”.
Nascido em família burguesa, Max Ernst vê inicialmente a cultura e a arte como passatempo de feriado ou
como matéria aborrecida nas mãos de professores de História da Arte. Mais tarde, libertando-se desse espírito
burguês, busca novas descobertas e reconquista a arte viva. A partir de uma ruptura na composição com o uso
de objetos estranhos, retirados de catálogos de mercadorias, anuncia uma arte desarrumada, mas que reflete o
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cotidiano. O caráter mecânico substitui o orgânico, a montagem ocupa o lugar da composição harmônica e a
colagem vai ao encontro da destreza inventando, assim, a técnica de libertação. Portanto, ao usar o acaso, o inconsciente e as metáforas, o artista consegue construir os pilares (que podem ser de evasão, de desconstrução, de
reconstrução) da sua arte, além de ter modificado o sujeito-artista que nele habitava. Foi ao acaso, também, que
percebemos o dialogismo entre a pintura e o lema.
Na obra “Pássaros; também Pássaro-Serpente e Espantalho”, tudo é figurativo, o fazer artístico não rompe a
forma, mas a organização. Cria outro espaço para o objeto: o estranhamento, o qual o observador poderá, através
da sua interpretação, fazer relações e associações entre o visível e o legível, a partir de seu horizonte de expectativa.
Decodificando a capa, a figura do espantalho, com duas cabeças de pássaros de perfil, representa o elemento
simbólico transformador, um fantasma pós-moderno, navegando entre a sociedade de consumo e a educação,
tentando seduzir o sujeito pela informação. Essa é a maneira encontrada pelo artista para abordar o sujeito. Mas,
quem é esse sujeito? Um sujeito dentro de um barco, tendo ao fundo o céu de cor cinza mecanizado. Seria ele
o Professor? O sujeito que dá um tratamento mecanizado ao conhecimento e à informação? Entre o parecer e o
ser, o professor é aquele que tem nas mãos o leme, a direção, que conduz o aluno de um lado a outro, no barco
do conhecimento formal. O sujeito é a própria linguagem, a palavra, o desenho, a escrita, feitos com signos na
forma de códigos que geram mensagens e produzem efeitos.
Por outro lado, o barco pode ser visto como fonte da vida, útero que gera, cresce e faz nascer, acolhe pessoas,
guarda e traz à memória o símbolo fálico; a serpente, a sedução, a fecundação, o reviver do passado através do
nascimento. Resgata, assim, uma história, pois cada lugar é único, cultural, aberto a possibilidades de aprendizagem. Isso tudo faz o leitor interessado procurar sentido e interpretação da obra, fazendo uma viagem interior
e exterior.
O elemento barco projetado na tela pode ser visto como veículo transportador de pessoas e de mensagens de um
lado para o outro. Logo, a água é o elemento que sustenta e transporta o barco de uma margem a outra. Assim, é
possível fazer analogias entre elementos aparentemente isolados com o processo comunicacional. Sem o canal, o
lema “Aprender a Aprender” é só um lema, palavras em estado dicionário, mas que podem ser postas em ação e
interação com o outro, construir, desconstruir, juntar elementos diferentes para encontrar novos caminhos.
O inusitado como as pernas do espantalho ou a serpente em estado de harmonia, pode abrir espaço para novas
descobertas, o que é experimental pode dar certo, além do possível encontro com novas teorias, novas técnicas,
críticas, elogios, ideologias... Articular, misturar tendências, estilos, transitando entre canais naturais, artificiais,
pictóricos, resulta em ecletismo definido como pós-moderno. Nesse sentido, a água traduz um campo semântico
simbólico de origem primitiva de tudo, mas segundo a psicanálise é fonte de renovação das potencialidades do
inconsciente. No espaço da tela, a água parece diluída na fonte vazia. Esse é um comportamento pós-moderno
de desfazer princípios, regras, valores, práticas, realidades, a própria des-referencialização do real, do sujeito.
(Santos, 1991).
Há ambiguidade nas figuras antitéticas: o espantalho com o corpo dividido em dois, o masculino e o feminino: o
da direita do observador, na figura do marinheiro como condutor; o da esquerda, a criança como aprendiz. Ambos
têm as pernas representadas por duas colunas significando o poder estético enquanto decoração cênica, imóvel na
sua verticalidade, mas que simbolizam o sustentáculo do conhecimento científico, do ensino formal, das verdades eternas. Que pilares são esses? O da Ciência e o da Arte? Representam o sujeito que aprende e o sujeito que
aprende ensinando? Interagindo, assim, na via de mão dupla do processo comunicacional, que o emissor se torna
receptor e o receptor se torna emissor do ensino/aprendizagem.
Seguindo essa linha de pensamento, para a formação do indivíduo, Vigotsky (In Duarte, 2000) fala sobre os
quatro pilares da Educação: aprender a conhecer para compreender; aprender a fazer para agir sobre o meio;
aprender a viver junto está relacionado com a participação e cooperação humana e aprender a ser é essencial e
integram os pilares anteriores na relação Eu versus Eu, Eu com o outro e o Eu no mundo.
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O marinheiro atento a todas as direções (olhar 180°), com a cabeça de pássaro, com o bico aberto para a
comunicação eloquente e a língua ereta, em tensão, parece fisgar o desejo e a fantasia, sem separar o real e o
imaginário, o signo e a coisa (Santos, 1991), seduzindo o indivíduo física e intelectualmente. Nesse sentido, o
peixe representa o alimento físico, e a vaca no plano inferior, mais atrás, símbolo da fertilidade. Como se pode
observar há mudança do campo semântico desses objetos figurativos, uma vez que o sentido do verbo alimentar
e da sua derivação está ligado à degustação, à saúde, à preservação e à sobrevivência da espécie. O elemento
erótico, bíblico, alimenta o intelecto, a alma, as emoções. Um está no plano concreto; o outro, da abstração, da
subjetividade. Logo, “Aprender a Aprender” está no plano do intelecto, do conhecimento, que é cumulativo e
transformador.
A criança do lado esquerdo pode ser o aprendiz, com a veste mais clara, tem a seu lado a figura feminina, a
boneca ou mãe com cabeça disforme, com rosto esboçado, como máscaras ancestrais, um manequim com formas
irreconhecíveis, abalando a segurança que se pensa encontrar num mundo previsível. Pode ser o consumista devotado que cultiva o narcisismo. É o ridículo, o irônico, decadente que perde a identidade e deixa para os outros
assumirem o que deveria ser a sua função. Porém, se a cabeça é disforme, indiciam que ela pode ser moldada a
partir de interesses, fatos, teorias, comportamentos, educação. A figura da boneca articulada, imóvel, por associação lembra o tempo mitológico da deusa da fortuna cega (BISCHOFF, 1993). A fortuna cega está mais para
emoção, religião, moral, tradição, enquanto o professor é conhecimento científico, ideológico, formal, institucionalizado, político, crítico...
No mundo humano, está contido o balão, um dirigível, que se instaura no mundo da fantasia, ligado ao bico
do pássaro pelo fio da história, os discursos globais totalizantes perderam força e o passado se liga ao presente,
fazendo pensar na história do indivíduo e investigar o seu próprio discurso. As viagens revelam o navegador pelo
sonho, são alimentos para as fantasias. Nessa linha de pensamento, o lema “Aprender a Aprender” pode ser o fio
condutor para interpretar Vigotsky e, consequentemente, Newton Duarte.
O braço estendido, símbolo daquele que tem o compromisso de ampliar o repertório cultural da humanidade,
tem uma parte do braço escondido pela enorme bolsa do capitalismo. Observa-se também uma ligação entre o
braço feminino e a serpente: gestos de fantasias infantis, que revelam as brincadeiras, as surpresas, o lúdico,
pois este está ligado à serpente, símbolo da tentação, mas que também pode ser visto como objeto de castigo. A
educação maniqueísta recompensa os bons alunos e castiga os maus. A mão escondida indica que alguma coisa
pode sair de lá e surpreender, como o artista/mágico que tira da cartola o inusitado, a inspiração e a técnica de
seus quadros, de seus conteúdos programáticos.
As roupas parecem peças que podem ser trocadas ou retiradas como a manga da camisa ou a perna da calca.
Segundo McLuhan (1969), a roupa é o prolongamento da pele, mas não há pele, há a simbolização da roupa:
proteção, sensualidade, poder, sexo, revelando também o tempo vivido, cenas retiradas do inconsciente, numa
superposição temporal, tentando recuperar o tempo anterior, interior da infância: a criança e o adulto. Essas trocas podem indicar brincadeiras nas quais as crianças vestem e desvestem bonecos de papelão, mas são também
indicadores de novos conhecimentos que sofrem mudanças e transformações.
No vestuário da tela, o casaco vermelho demasiado grande, símbolo mundano, de um vermelho erótico, demonstra a roupa que não vestiu, demonstra ainda um viver arrumado, descompromissado com a realidade e com
o desafio da desconstrução que leva a aprender com os desafios, com as antíteses ordem/desordem. Por outro
lado, se o casaco é grande, não tem um referencial de corpo, serve para qualquer um. Desafiando o olhar, a calça
parece uma saia dobrada sobre o braço em formato de bolsa que tudo esconde e guarda, ou o mágico que retira o
segredo da cartola, depende da imaginação.
Observa-se na parte superior da tela, uma garrafa que esfumaça transformando a matéria em imagem. É a degradação do sujeito fazendo-o sentir-se vazio. Por outro lado ao ser lida como signo tem-se a visão de uma bomba
que vai explodir e a fumaça vai envolver o espectador/ leitor no fluido, o ópio da comunicação, ou ainda o pó
mágico, ingrediente indispensável e poderoso da Literatura e, aqui, das Artes Plásticas. São o sonho e a realidade,
pureza e erotismo, uma verdadeira experiência do caos como elemento fundamental e transformador, trazendo
mudanças na forma de apreensão dos sentidos.
Confrontando o espaço visual e verbal, obtém-se um olhar em forma de gráfico:
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 30-35, 2011.
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será possível desvendar a esfinge ideológica que mata aquele que não decifra o enigma da imagem plural.
Ilustração 2
- Organização do
espaço visual.
Do mesmo modo que a tela, o lema analisado por Duarte é uma provocação, ou seja, provoca o leitor para
mudar, pesquisar, interpretar, romper estruturas e barreiras para juntar os novos sentidos, pois só mudando será
possível ler-se, ler o outro e ler o mundo, ou seja, sair do diletantismo para aprofundar-se no conhecimento.
Par interpretar Ernst e Vigotsky foi preciso atentar para a convergência entre eles: o rompimento da convencionalidade. Nesse sentido, procuramos aproximar as interrelações do aspecto subjetivo tanto da tela como do lema.
Desse interacionismo simbólico, a ênfase recaiu nos aspectos encobertos, implícitos, tornando-os explícitos,
através da re-leitura resultante do ato perlocucional.
Logo, a nossa inspiração de leitura foi espiralada: a obra de arte porque inicia a obra paradidática, que analisa
Vigotsky, que gerou o tema que critica o neoliberalismo, o capitalismo, e os educadores que se esforçam e reforçam o lema “Aprender a Aprender” sempre para virar apreender...
Referências
O gráfico acima nos oferece a idéia de como o espaço da tela se acha estruturado. A tela pode ser dividida
formalmente em espaço inferior, superior, direito e esquerdo, revelando na sua estrutura, a gramática plástica
de uma organização composicional que contém os sentidos denotadores e conotadores da interpretação textual.
Assim, a obra de arte sendo um texto, pode ser lida nas suas linhas, formas e cores.
BERGER, René. El Conocimiento de la pintura. Barcelona: Editora Noguer, S. A., 1976.
A linha horizontal serve de base e sustentação, pode ser percebida por seus planos em profundidade que vão
desde a caixa verde no primeiro plano, a fonte da vida (nascimento), o barco (útero), até o horizonte, demonstrando o tempo do desenvolvimento humano em harmonia com a natureza.
Tradução Jorge Arnaldo Fontes. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
A linha vertical, mais para a direita do observador, provoca certa tensão em relação ao marinheiro, ou seja, um
deslocamento do olhar para as fantasias infantis em relação às realizações do adulto. Uma diagonal atravessa
o espaço da tela ocupado pela bolsa no primeiro plano, traduz uma visão contemporânea da ideologia política
dominante que representa o capitalismo, a ambição. Essa transversalidade mostrada na tela, deve ser a do leitor,
com seu olhar questionador, inquieto, reflexivo e crítico, daquele que não se apropria das idéias e das imagens
sem antes questioná-las ou aplicá-las na sua realidade para só assim tê-las como conhecimento produtivo e real,
podendo assim comprovar resultados.
A garrafa na parte superior da tela também é um sinal provocador, pois ao atravessar a tela solta a fumaça do
gênio criador ou como uma névoa é capaz de impedir o domínio e a transformação do leitor. A comunicação
provoca mudança. Ao deslocar o olhar para um caminho diferente do tradicional, torna-se capaz de transcender a
técnica e a construção lexical, refletindo sobre verdades, vivências, conteúdos e intertextualidades.
Concluindo, não foi nossa intenção analisar Vigotsky, como fez tão bem Newton Duarte, nem tão pouco questionar o conteúdo do livro. A nossa intenção foi provocar o leitor para ler as imagens, as obras de arte, as capas,
pois elas além de auxiliar a leitura do texto verbal, oferecem elementos para novas interpretações, tornando-o
um leitor privilegiado e crítico.
Vigotsky propôs uma teoria, Duarte faz críticas àqueles que se apropriam do conhecimento sem questionar, sem
ler com a devida atenção e profundidade o lema “Aprender a Aprender”. A capa, por sua vez, como obra de arte,
tem o poder de revelar aquilo que o olho sozinho não consegue enxergar, mas com a alfabetização da imagem
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 30-35, 2011.
BERLO, David K. O processo da comunicação: introdução à teoria e à prática.
BERNARD, Roncillac. Pintura é uma linguagem. Paris: Bordas, 1995.
BISCHOFF, Ulrith. Max Ernst. São Paulo: Editora Taschen, 1993.
CHARTIER, Roger (org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Ed. Liberdade, 2000.
DUARTE, Newton. Vigotsky e o “Aprender a Aprender”. Campinas: Editora Autores Associados, 2000.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vigotsky e Bakhtin. Psicologia e Educação: um intertexto. São Paulo:
Ática, 1996.
JANSON, H. W. História da Arte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Tradução Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1996.
MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2001.
McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 1969
SANTAELLA, Lúcia e NÖTH, W. Imagem. Cognição, Semiótica, Mídias. São Paulo: Iluminuras, 2001.
VIGOTSKY, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Recebido em 14 de Março de 2011.
Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2011
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 30-35, 2011.
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Relações de texto e imagem
em vídeo-música de Arnaldo Antunes
b) a escuridão, concebida como uma aglomeração de corpúsculos, produz a matéria negra que é vista, na superfície fenomênica, como um objeto estético. A ausência de cor que é o negro oculta uma presença multicor
explosiva;
Relationship of text and image in music video Arnaldo Antunes.
c) o sujeito, a ponto de dissolver-se num mundo excessivo, repele a visão do demasiadamente cheio e do demasiadamente próximo, utilizando a expressão: “e, com pesar, pestanejo”. Repele de modo inconsciente, reflexo
de autodefesa ante o insuportável. Não seria horror do sagrado?
Rivaldo Alfredo PACCOLA
Mestre em Comunicação pela UNESP/Bauru, São Paulo, Brasil e especialista em Gestão Escolar
pela UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil.
Neste trabalho, pretendemos analisar a música Campo, com animação de vídeo, do poeta-cantor Arnaldo
Antunes, buscando as significações produzidas pelo compartilhamento do verbal, do visual, do audível e do tátil,
Palavras-chave: Arnaldo Antunes, Campo, imagem na música
In this paper we analyze the music video animation of the poet-singer Arnaldo Antunes, entitled “Field”,
seeking the meanings produced by the sharing of verbal, visual, audible and the tactile.
Keywords: Arnaldo Antunes, Field, image on music
S
elecionamos a faixa 15, Campo, do vídeo-home acompanhado de texto escrito, chamado “Nome”,
porque permite um enfoque na linha da semiótica do sensível, inaugurada em 1987, com a publicação
De l’imperfection, por Greimas, quando o corpo ganha estatuto dentro da semiótica dita narratológica.
Foi ali que GREIMAS (1987) fincou novas balizas para a captura estética que um texto poético pode apresentar.
Divide a referida obra em duas partes: a fratura e as escapatórias. A primeira parte  a fratura  é composta por
um conjunto de cinco textos literários, que têm em comum, em algum momento do discurso, o fugidio instante
do resplendor da beleza, que possibilita instalar-se a pergunta pela experiência estética. Já na segunda parte  as
escapatórias  estende-se em observações sobre a estética da vida cotidiana incorporadas a uma reflexão que reúne
a semiótica com a estética e até aspira ser uma axiologia.
Destacamos o capítulo IV da primeira parte  A cor da obscuridade, enfocando a obra “Elogio da sombra”, de
Junichiro Tanizaki , no qual Greimas faz, dentre outras, as seguintes constatações:
a) há uma completa inversão das funções sujeito/objeto: enquanto nos textos dos autores europeus é o sujeito
que tem papel ativo, empreendedor, e o objeto solicitado se apresenta diante dele, para o escritor japonês o objeto
é o “pregnante”; mais ainda: é o objeto que exala a energia do mundo, e feliz é o sujeito, quando tem ocasião de
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encontrá-lo em seu caminho;
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2 p. 36-40, 2011.
O que sobressai nesta análise é a idéia do velamento. Para ver o real, que está por detrás do real aparente, é
preciso velar. Através do velamento, claro e escuro permanecem ligados.
Na segunda parte, no capítulo VI  Imanência do sensível , Greimas discute questões de método que a semiótica
apresenta sem cessar e que vive com lucidez. A busca de interpretações cognitivas é inviável, mas as fraturas
permitem a fusão entre sujeito e objeto, na qual podemos sentir a satisfação da imperfeição.
As sensações possibilitam sinestesias de todas as ordens sensoriais, que são relatadas em De l’imperfection: a
visão (o mais superficial dos sentidos) de um seio nu; o olfato (sentido profundo, de comunicação com o sagrado)
sente o cheiro de jasmim; o paladar (o sapere latino, ter sabor) converte-se em saber; a audição (desde a época
romântica), fechando os olhos, a monoisotopia desse sentido aumenta a eficácia da sonoridade, quando uma gota
produz som caindo sobre a bacia de cobre.
O quiasma entre o sincretismo e o exclusivismo sensorial produz, por exemplo, na cerimônia japonesa do chá
ou na cozinha francesa, uma tensividade do sujeito em relação ao objeto, de ordem visual e olfativa, que se constitui num verdadeiro introïbo, uma espera exaltante e retardadora do consumo.
Tais tensões quiasmáticas ocorrem no plano das gestalten, em uma “deformação coerente” do sensível que
permitiria encontrar correspondências “normalmente” invisíveis e outras formas mais ou menos desfiguradas,
as quais uma leitura mais profunda se apressaria em atribuir novas significações, numa função metalinguística.
No capítulo em que trata dO Entrelaçamento  o Quiasma, MERLEAU-PONTY (1964) vê o mundo como
cruzamento de duas negações; o resultado desse entrelaçamento “o próprio olhar é incorporação do vidente no
visível, busca dele próprio, que lá está no visível”; o entrelaçar conflita os percursos, então o filósofo menciona
que a relação entre perceber e sentir um vermelho fóssil é trazer de volta, do fundo de mundos imaginários. Não
há um sentido único.
Nesse sentido, interessa a intersemioticidade do texto e não a intertextualidade. Na tensão entre o vivo e o fóssil,
o texto é sentido e relido no nível do imaginário. O imaginário constitui-se das tensões, percepções sensíveis,
texturas, atuando num micro-universo que é o texto.
Merleau-Ponty está interessado naquilo que é tensão, possibilidade da coisa, mas ainda não é a coisa; porque,
entre o objeto e a percepção existe o imaginário, de modo que, enriquecendo o imaginário, se enriquece a percepção.
Na tentativa de aplicar alguns conceitos de uma semiótica que busca diminuir a distância entre o inteligível e
o sensível, passamos a abordar alguns aspectos da obra “Nome” (vídeo-home e livro) do poeta-cantor Arnaldo
Antunes (1993).
Pretendemos enfocar — e tentar entender que impacto o texto sofre sob a postura da semiótica do sensível — a
música com animação de vídeo e texto impresso, cujo título é Campo e tem a seguinte letra:
CAMPO
Um campo tem terra.
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 36-40, 2011.
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E coisas plantadas nela.
A terra pode ser chamada chão.
É tudo que se vê.
Se o campo for um campo de visão.
ANTUNES (1993) apresenta-o da seguinte forma gráfica:
À medida que as palavras se sucedem no campo, a sonoridade da música as faz vibrar. As palavras vibram como
as cordas de uma guitarra, produzindo um efeito estésico de espessamento-despojamento. Por isso, a visibilidade
não é pura, é permeada pela tatilidade, pela audibilidade, enfim, pelos sentidos.
Então, pode-se dizer que a semiótica, aqui presente, visual, não é uma semiologia da comunicação, do signo,
mas é uma semiótica que quer ser uma semiologia da significação.
Portanto, estamos diante de uma semiótica do espetáculo, daquilo que é visual, é imanentista.
Estudar a significação pela visualidade é procurar ver o texto como um produto produtor, de forma que se
verifica:
1)Preponderância da relação sobre os termos:
campo — terra
terra — chão
Como mencionamos, por se tratar de
uma música com animação de vídeo e
texto impresso, Antunes trabalha com o
compartilhamento do verbal, do visual,
do audível e do tátil. Estas quatro formas
de sentir, sinergicamente, colaboram
para a construção da poética.
campo — visão
Nesta relação triádica, identificamos:
→ terra = significado
→ chão = significante
→ campo = objeto extralinguístico capturado da realidade
O campo de visão é a percepção do real, segundo o ponto de vista greimasiano.
O poema é, pois, a percepção da realidade, a proto-forma do objeto, o figural.
2)Recusa de um enfoque genético em benefício de um enfoque gerativo-transformacional
O título do poema é apresentado como luz na escuridão, na disposição do n.º 5 em um dado de jogo:
Primeiramente, verificam-se tensões de
diversas ordens:
—escuro (ausência de cor) / claro (letras
translúcidas)
—espaço vazio / espaço preenchido
—largo / estreito
—espessamento / despojamento
—chão (palpável) / visão (abstrata)
C
M
A
P
O
A tensão aqui gerada evoca o texto de Junichiro Tanizaki, analisado por GREIMAS (1987) em A cor da obscuridade, cujo velamento leva-nos à seguinte constatação: - para ver o real que está por detrás do real, é preciso
velar - através do velamento, claro e escuro permanecem ligados.
Ou, segundo HUYGHE (1960, p.61): “Se é um lugar-comum dizer que não haveria coisa visível sem a luz, logo
se lhe acrescenta um paradoxo, a saber, que a luz pode igualmente permitir a expressão, o fazer ver aos olhos do
espírito aquilo que escapa aos olhos do corpo.”
3)Enfoque imanente do texto — texto versus contexto, via enunciação
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Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2 p. 36-40, 2011.
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 36-40, 2011.
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O projeto da semiótica visual quer surpreender os caminhos da semiotização de substância plástica, surpreender nos espaços entre as linguagens.
No vídeo, as palavras estão em movimento, em contraste:
/ terra - chão /
A CONSTRUÇÃO DO HERÓI VITORIANO
SOB A ÓTICA DO ENUNCIADOR DO
SÉCULO XXI: IDEOLOGIA E SIMBOLOGIA
/ vê - chão /
/ visão /
The construction of victorian heroe by the enunciator vision from the XXI century:
Ideology and simbology
/ campo de visão /
Assim, produzem a sinergia, pois essas palavras vibram como cordas feridas de uma guitarra, gerando efeitos
musicais dinâmicos e interferindo na percepção. Torna, pois, o estésico em estético.
Maria Angélica Seabra Rodrigues MARTINS
Neste artigo a figura de Alice, do livro Alice na Terra das Maravilhas (1865) por Lewis Carroll será analisada do ponto de vista de Tim Burton, em sua adaptação para os filmes (2010). Levando em conta sua analise de
um ponto de vista Vitoriano e sua ênfase na construção de uma heroína com uma caracterização feminina moderna, considerando as estruturas do inconsciente que permitiram o personagem a obter a sabedoria, coragem
e capacidade de decidir seu próprio destino.
4)Preponderância da forma sobre a substância:
- tensão entre o que é da forma e
- o que é da substância
Palavras-chave: Tim Burton, Alice no País das Maravilhas
A plasticidade da poesia impressa apresenta-se em letras estreitas e compridas, com predominância da isotopia
da obliquidade em relação à verticalidade; olhando-se verticalmente, se veem pontilhados (chão); entretanto,
olhando-se horizontalmente, se lê com nitidez (visão).
Portanto, produzem-se tensões de diversas ordens: verticalidade, horizontalidade, obliquidade.
Observa-se uma trans — form — ação → metamorfose, no encontro mítico–mágico: matéria/sentido.
Produzir sentido é exercitar metamorfoses, transformar um estado de coisas em um estado de signos.
Constata-se, no texto, a poética do despojamento, do que seria o figural:
In this paper the figure of Alice from the book Alice in Wonderland (1865) by Lewis Carroll will be analyzed
from Tim Burton’s sight in the adaptation for the movies (2010), noticing his analysis of a Victorian argument
and his emphasis to a construction of a heroine with a characterization in the female pattern at the present time,
considering the structures of the unconsciousness that allowed the character to obtain the wisdom, courage and
the capacity to decide its own destiny.
A
Keywords: Tim Burton, Alice in Wonderland
figura do herói é inerente a todas as culturas humanas.
Seus feitos são transmitidos aos jovens nos ritos de
iniciação pelos anciãos das tribos, a fim de que adqui-
ram as responsabilidades relativas a seu papel na sociedade em que
— no visual, mostra-se a proto-forma do objeto, plástico e dinâmico (em constante mutação);
— no verbal: → a palavra “campo”, enquanto chão, é significado;
→ a palavra “campo”, enquanto visão, é percepção.
estão inseridos. Muitas das estórias folclóricas relatam os feitos de
determinado herói, que levaram a modificações em comportamentos ou que solucionaram conflitos em determinadas tribos, muitas
vezes expondo-se a perigos que poderiam lhes custar a própria
vida, mas que se mostraram capazes de conduzir a uma evolução
As tensões apontadas colaboram para a construção da poética, através da qual percebemos o mundo pelas suas
qualidades, pelas estesias que, pouco a pouco, vão se transformando em estética.
pazes de auxiliar o indivíduo em formação a entender as pressões
acordo com os requisitos de sua mente consciente (ego) ou incons-
ANTUNES, Arnaldo. Campo 64978192 in “Nome”  music video. São Paulo: BMG Ariola vídeo-home, acompanhado de texto impresso homônimo, 1993.
GREIMAS, Algirdas-Julien. De l’imperfection. Paris-França: Pierre Fanlac Éditeur, Périgueux, 1987.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Visível e Invisível. São Paulo: Perspectiva, 1964.
HUYGHE, René. A Arte e a Alma. Lisboa-Portugal: Bertrand, 1960.
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À medida que a narrativa se desenvolve, surgem elementos cado id (mente pré-consciente), oferecendo possíveis soluções, de
Referências
Recebido em 18 de Março de 2011.
humana e moral desse indivíduo e do povo por ele representado.
ciente (superego), temporárias ou permanentes, para problemas
que o perturbam. Ao enfocar problemas humanos universais, as
narrativas folclóricas (e os contos de fadas) auxiliam a abordagem
de problemas existenciais como morte, envelhecimento, limites da
vida, segundo Bettelheim (1987), que devem ser enfrentados, como
Aprovado para publicação em 17 de Novembro de 2011
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2 p. 36-40, 2011.
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
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a questão do mal, tão presente quanto a virtude e que estão figurativizados nas propensões desenvolvidas por
nova versão do herói, feminina, adulta, e que marca o alvorecer de
todo ser humano, as quais devem ser enfrentadas e os problemas morais solucionados de forma a promoverem a
um novo século, em que mudanças significativas irão determinar o
integração do indivíduo ao meio social, de forma equilibrada.
novo papel da mulher na sociedade. Alice é aquela que ousa romper
Ao fornecer a problemas cotidianos uma roupagem que aborde temáticas apresentadas de forma figurativizada, tais estórias propiciam que situações complexas sejam vivenciadas em um mundo de fantasia, o “lá-então”,
limites, opondo-se aos ditames da restritiva sociedade vitoriana e
decidir seu próprio destino como mulher.
em que tudo é possível. Ao observar as lutas e bravatas do herói (ou heroína) da estória, enfrentando monstros,
Dependendo do contexto em que estiver inserido, o herói tanto
bruxas, florestas encantadas, o ego em formação se identifica com esse herói e compreende que também é capaz
poderá representar a complexidade psicológica e ética da condição
de se libertar de suas dificuldades, caso atue de maneira correta e seja persistente. A necessidade da fantasia
humana, quanto transcender essa mesma condição, ao assumir vir-
estaria relacionada ao fato de a criança possuir um ego frágil, em processo de construção; dessa forma, deve
tudes que o ser humano comum dificilmente consegue atingir, como
visualizar em um contexto exterior a ele os desejos que não consegue dominar, a fim de que possa obter algum
a fé, a coragem, a determinação e a paciência. Dessa forma, ousa ir
tipo de controle sobre os mesmos. (BETTELHEIM, 1980, p.71)
além, destacando-se do comum dos mortais e, por isso mesmo, é
A personagem Alice será analisada neste artigo, a partir do filme de Tim Burton (2010), observando-se a
por eles amado (ou odiado). A Alice de Tim Burton será observa-
interpretação do diretor das obras de Lewis Carrol (Alice no País das Maravilhas, de 1865, e Alice através do
da como a que representa as mudanças de uma era, um reflexo do
espelho o que ela encontrou por lá, de 1871) e considerando-se o encaminhamento dado pelo cineasta a um
super-homem de Nietzsche, liberto de todas as amarras impostas
argumento vitoriano, cuja ênfase na construção da heroína aproxima-se dos moldes femininos atuais, em que as
pela época, sem arrependimentos e sem falsos moralismos.
estruturas do inconsciente levam a personagem a adquirir sabedoria e a desenvolver a coragem e a capacidade de
O conceito de herói remete ao herói clássico grego, que fornecia
decidir seu próprio destino. A simbologia dos elementos apresentados será observada à luz da antropologia e da
o modelo de conduta para a sociedade de sua época e era guiado por
psicologia (individuação junguiana), utilizando como instrumental teórico metodológico as teorias do discurso, a
ideais nobres e altruístas como liberdade, fraternidade, sacrifício,
partir das relações envolvendo os sujeitos enunciadores, a intertextualidade e a carga ideológica que se manifesta
coragem, justiça, moral, paz. Seu périplo em direção à heroicidade
no contexto dessa nova versão.
envolvia adquirir a sophrosyne ou temperança, marca característica
do verdadeiro herói. Héracles e Ulisses despenderam longo tempo e
Alice: a heroína no limiar de uma nova era
muitas ações para a alcançarem, e, no caso do primeiro, também o
direito à divindade, por meio do martírio pelo fogo; no caso do na-
A estória de Alice no País das Maravilhas, na versão cinematográfica de Tim Burton (2010) apresenta uma
Fig. 3 Alice na versão de Lewis Carroll
vegador, as muitas peripécias para domar sua prepotência e obter de (século XIX)
Poseidon, a quem ofendera, a permissão para voltar para seu oikos,
seu lar, o que somente ocorre com a interferência de Zeus.
No caso de Alice, os acontecimentos que envolveram o século XIX e que surgem na obra de Lewis Carroll,
por meio das marcas deixadas no discurso pelo enunciador, serão retomadas no intertexto estabelecido por Tim
Burton, a partir de Alice no País das Maravilhas (1865) e Através do espelho e o que encontrou por lá (1871),
enfatizando aspectos que o enunciador considera pertinentes, a partir da visão que o homem do século XXI tem
das transformações vividas pela mulher, em decorrência dos acontecimentos que pontuaram a segunda metade
do século XIX, e o século XX. Se a visão do primeiro escritor está contextualizada no universo vitoriano, a do
diretor perpassa uma visão abrangente dos acontecimentos, produzindo um modelo de heroína com características marcadamente feministas.
Se o herói grego constituía um reflexo da sociedade de seu tempo, a Alice de Tim Burton é aquela que evidencia mudanças significativas no universo feminino, a partir da visão de um indivíduo de época posterior ao
ocorrido e que imprime sua marca a seu discurso. Dessa forma, se revela ao receptor elementos que remetem
ao contexto de época em que esse discurso foi escrito, de certa forma à revelia do autor, também não deixa de
apresentar a interpretação do diretor acerca desses fatos, o que remete a Bakhtin, quando afirma que existe na
Fig. 2
Alice – Tim Burton
linguagem “vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no
romance em um sistema estilístico harmonioso (...)”(BAKHTIN, 1988, p. 106) o que leva a identificar a língua
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Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
43
como “uma opinião plurilíngue concreta sobre o mundo”(IDEM). Existe, portanto, a inter-relação entre dois
vitoriana reagir contra os reguladores sociais da época, o que seria
enunciados: o do contexto de época pesquisado e o transformado pelo roteirista e recriado pelo diretor, em dis-
inadmissível, naquele contexto histórico-social, mas que constitui
cursos que dialogam entre si, produzindo efeitos de sentido que, ao mesmo tempo em que contam uma estória,
um eco da modernidade do século XXI, estabelecendo uma relei-
também a contam com a marca do enunciador/diretor, construindo uma visão plurilíngue do mundo, no conceito
tura da obra de Lewis Carroll, em que a garota que cai na toca do
bakhtiniano:
coelho pode apenas sonhar com um mundo diferente de fantasias.
Com base nas transformações sociais e históricas que perpassam os
O diálogo das linguagens não é somente o diálogo das forças sociais na estática de suas coexis-
séculos XIX e XX, modificadoras do papel da mulher, levando-a a
tências, mas é também o diálogo dos tempos, das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce;
assumir sua participação enquanto sujeito, em um novo mundo em
aqui a coexistência e a evolução se fundem conjuntamente na unidade concreta e indissolúvel de
que o feminismo se impõe, o intertexto apresenta a Alice Kingslei-
uma diversidade contraditória e de linguagens diversas. (BAKHTIN, 1988, p.159)
gh atual manifestando rebeldia, traços de reação ao sistema em que
a história está inserida, evidenciando que não aceita as imposições,
Dessa forma, segundo a teoria bakhtianiana, o discurso seria observado como mecanismo dinâmico, em que
desde o não uso do corpete e das meias em uma ocasião especial,
“todos os termos de um texto vêm inseridos em múltiplas situações, em diferentes contextos linguísticos, históri-
até a não aceitação imediata do casamento com um lorde, ambição
cos e culturais”, segundo Lopes (2003, p.70), o que leva à pluralidade de sentidos em um texto, a sua construção
máxima das donzelas da sociedade de seu tempo. Tim Burton man-
dialógica. Kristeva ao retomar Bakhtin e considerar no texto a noção de sujeito, do destinatário e dos textos
tém o corpus básico de Carroll, ambientando sua estória em um
externos, observa que essas três dimensões realocam em dois eixos as relações entre o sujeito e o destinatário
suposto futuro da Alice original, com traços de contemporaneidade,
(horizontal) e o espaço onde as palavras se manifestam em direção ao corpus literário (vertical), encontrando
o que Lopes (2003) denominaria “visceralmente ideológico”.
outra esfera de existência, isto é, tornando-se discurso.
O dialogismo entre o texto literário de Carroll e o de Burton
Por meio da leitura ocorre a apropriação de um texto por outro, em que se cria uma nova significação; dessa
perpassa a retomada do tema do primeiro, revestindo-o de um novo
forma, “toda sequência está duplamente orientada: para o ato de reminiscência (evocação de uma outra escrita) e
investimento ideológico, possível para o homem do século XXI,
para o ato de intimação (a transformação dessa escritura)” (KRISTEVA, 1978, p.121). Nesse processo Kristeva
que pode retomar a obra original, apresentando na ficção um sal-
retoma o dialogismo bakhtiano, analisando-o tanto sob a ótica da subjetividade, quanto da comunicatividade,
to de apenas treze anos, quando na realidade sua Alice transporia
substituindo a noção de intersubjetividade pela de intertextualidade (cf. LOPES, 2003, p.71), conceito por ela
mais de um século, o que justifica também a “muiteza” (coragem,
criado em 1969. Com base nesse direcionamento, a noção de “pessoa-sujeito da escritura” cede espaço à da “am-
ousadia, na colocação do Chapeleiro Maluco) de que se investirá a
bivalência da escritura” (KRISTEVA, 1978, p.121). Dessa forma, um texto dialoga com outros textos, embora
personagem ao longo da estória.
Fig. 5 -Alice - Tim Burton
também reflita as vozes de seu tempo, os hábitos, os valores, as crenças e a história de um grupo social, seus
anseios e temores.[ ] Retomando Eichembaum (1970):
Nessa releitura da Alice de
Lewis Carroll (Fig. 3), observa-
A obra de arte é percebida em relação com as outras obras artísticas, e com ajuda de associa-
-se a carnavalização bakhtiniana,
ções que são feitas com elas. Não apenas o pastiche, mas toda obra de arte é criada paralelamente
que se manifesta em um “mundo
e em oposição a um modelo qualquer. A nova forma não aparece para exprimir um conteúdo novo,
de ponta-cabeça, em que se sus-
aparece para substituir a velha forma que perdeu seu caráter estético. (cf. LOPES, 2003, p.73)
pendem todas as regras, as ordens
e proibições que regem as horas
Segundo Zani (2003), como o conceito de dialogismo extrapola a literatura e a história de suas fontes, mani-
do tempo de trabalho na ‘vida
festando-se no interior de produções artísticas e culturais variadas (pintura, cinema, música, literatura), em uma
normal’, segundo Lopes (2003,
polifonia “onde vozes subexistem, como uma relação intertextual” (p.126), capaz de se estender por vários meios
p.77), “quando a ordem, o bom
e períodos, refletindo a intertextualidade tanto desempenhos anteriores do próprio autor, quanto as influências de
senso, as leis e as hierarquias que
outros autores, o que se manifesta por meio da projeção da enunciação no enunciado, e que faz da comunicação
organizam nosso mundo cotidia-
um “exercício dialógico” (LOPES, 2003, p.73), polifônico e “visceralmente ideológico” (IDEM), à medida que
no são virados para o avesso, e as
o enunciador imprime seu direcionamento ao constructo de seu texto-discurso.
distâncias firmemente estabeleci-
Dessa forma, observa-se que Tim Burton imprime a sua versão de Alice à possibilidade de o sujeito/mulher
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Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
Fig. 4 Chapeleiro Maluco - Tim Burton
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das pelas convenções são abolidas” (IDEM), impondo-se um novo modo de relações humanas, que surge em
por exemplo).
oposição às relações sociais: “A conduta, o gesto e a palavra do homem se libertam da dominação das situações
A polifonia surge nesse mundo em tons pastéis
hierarquizadas (camadas sociais, graus, idades, fortunas) que as determinam inteiramente fora do Carnaval e se
onde tudo aparentemente é perfeito, como marca
tornam excêntricas, deslocadas do ponto de vista da lógica da vida habitual”. (BAKHTIN, 1970, p.170)
das situações contraditórias: uma irmã feliz se-
A sugestão de que o modus operandi dessa nova Alice será diferente é apresentado logo no início, quando,
gundo as convenções, mas traída pelo marido; um
ao invés de meninas brincando no jardim, como na obra de Carroll, surge uma reunião de homens de negócios
noivo lorde, expectativa de toda donzela, mas em
e uma Alice criança que, acordando após um pesadelo, surpreende a conversa dos adultos e a fala emblemática
um noivado arranjado, sem relações afetivas; uma
do pai que marcará seu percurso ao longo da estória: “A única forma de alcançar o impossível é acreditar que
moça de dezenove anos que foge de um pedido de
é possível”. O diálogo com o pai acerca do medo da loucura, ao lhe contar o sonho com o coelho de paletó, a
casamento, quando o maior risco para toda moça
lagarta azul e o pássaro dodô evidencia um “exercício polifônico” em uma visão diferenciada do mundo, pois
da época era não encontrar um noivo... Mas, como
em um contexto onde não seria adequado incentivar-se a fantasia nas crianças, uma vez que a própria infância
afirma Bakhtin, todo discurso ideológico que repre-
não deveria ser estimulada, mas rapidamente transposta, segundo Ariès (1981), o pai diz a Alice não se preocupar
senta o lado pretensamente sério da vida é manipu-
com o inadequado, pois entre as pessoas que conhecera as malucas eram as mais interessantes:
latório, o discurso que se constrói entre o lado de
fora e o de dentro da toca do coelho objetivam ma-
ALICE: -- Será que estou louca?
PAI: -- Receio que sim. Você é louquinha. Maluca. Pirada. Mas
vou lhe contar um segredo: as melhores
pessoas o são. (...)
nifestar no sujeito Alice a possibilidade de transfor- Fig. 7 – colorido Mundo Subterrâneo
mar sua capacidade em estado virtual de se rebelar
em atualização, ao transformá-la de inconformada
em heroína, o que ocorrerá em seu percurso no País das Maravilhas para provar a todos que é a “verdadeira”
Treze anos após, o dialogismo se manifesta, no contato com o mundo do futuro noivo, que tenta dominar
sua imaginação:
Alice, ou seja, a que aprendeu, quando criança, a capacidade de ir contra o sistema e de passar de potência ao ato.
Segundo Lopes (2003), a ficção da modernidade “nasce do encontro de vozes diferenciadas que se somam,
se interenunciam, se contradizem, se homologam e se infirmam umas às outras – em síntese, se relativizam mu-
HAMISH: -- Por que gasta seu tempo pensando em coisas impossíveis?
tuamente” (p.76): “o resultado é que a intertextualidade nasce da percepção da disjunção existente entre essas
ALICE: -- Papai dizia que acreditava em seis coisas impossíveis antes do café.
duas vozes, essas duas consciências, esses dois discursos, homólogos narrativos das contradições profundas que
coexistem a cada instante dentro e fora de uma mesma coletividade” (IDEM)
É o choque de dois universos em que
Dessa forma, Tim Burton apresenta um discurso em que dois textos se contradizem, de maneira a que um
o mundo em tons pastel, marcado pelas
surge como uma inversão jocosa, paródica, ridícula do outro, segundo a visão cotidiana do mundo, dentro do que
convenções sociais hierarquizadas do
Bakhtin denominaria carnavalização, a tal ponto que não se sabe qual seria o verdadeiro e qual o falso, ou qual o
noivo irá contrastar vivamente com as
real e qual o imaginário, nos mundos de Alice, o que lhe deixa a opção da escolha.
cores fortes e com o inesperado do País
das Maravilhas (Fig. 6 e 7). Alice foge
do convencional, ao ser inquirida pelo
A competencialização do herói
noivo com um pedido de casamento para
o qual não tem uma resposta, no mo-
Além de Bakhtin, outros estudiosos que se dedicaram à visão funcionalista da língua, os chamados formalis-
mento, e “mergulha na toca do coelho”,
tas russos, também renovaram a metalinguagem crítica, fornecendo novos modelos de análise do texto literário.
um mundo que existia em sua imagina-
Entre eles destacam-se Jakobson, e seus estudos sobre as funções da linguagem, particularmente a relação entre
ção, em que a paisagem é desafiadora,
a emotiva e a poética; Eikhenbaum e Tomachevski, analisando elementos como a entoação e o ritmo no verso e
as cores fortes e as convenções não são
na prosa; Tynianov, com uma metodologia para os estudos literários (LOPES, 2010); e Propp, apresentando um
respeitadas (o Chapeleiro Maluco cami-
estudo da estrutura dos contos fantásticos (ou maravilhosos), por meio da observação das repetições que obser-
nha sobre a mesa posta para o chá para
vou nos mais de 400 contos populares russos analisados:
recebê-la, a rainha descansa seus pés soFig. 6 – pálido mundo exterior
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Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
bre um porco, ao invés de uma almofada,
O fato de que os contos são compostos sempre dos mesmos elementos serve a Propp como prova
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
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de sua origem comum. A Morfologia o leva a vislumbrar o fator social que constitui a protoforma
O percurso que a leva a se tornar heroína é o desenvolvido no
subjacente ao conto: é o caso do ritual de iniciação como fonte arcaica dos motivos do conto mági-
País das Maravilhas, o “lá-então” de que fala Bettelheim (1987).
co. A lei da metamorfose, fundamental na morfologia goethiana, vem completar o paralelismo entre
Alice-adulta tem que se fazer diminuta para entrar nesse reino, em
essas duas manifestações. As duas morfologias - a de Goethe e a de Propp - representam a busca de
que a temática remete à infância e à época de fantasias estimuladas
leis capazes de descrever a repetição dos fenômenos e também a causa da repetição. Longe de um
pelo pai (agora falecido). Observa-se no líquido que a faz enco-
interesse abstrato pela composição literária, a morfologia proppiana fundamenta-se nessa repetição
lher a figurativização do retorno a um tempo em que se alcançava
presente nos contos russos. (LOPES, 2010, p.13)
o impossível, meramente acreditando-se ser possível, por isso ela
toma o conteúdo do frasco onde está escrito “Drink me” e encolhe;
da mesma forma come o pedaço do bolo (Altenstrudel), quando
Propp observou que certas estruturas, principalmente as relativas à natureza oral dos contos, permitia-lhes
precisa crescer para pegar a chave sobre a mesa.
que fossem transmitidos através dos séculos, sem que sua essência desaparecesse, apesar da interferência do
Nesse novo mundo aonde Alice-adulta chega, o tempo-espaço
narrador, podendo alterar certos elementos para adaptá-lo à compreensão de seu público, características do conto
não são marcados como no mundo exterior, por isso o questiona-
que Jolles (1976) denomina “formas simples” e que permitia que fosse compreendido por todos. Ao se isolar as
mento apresentado pelos habitantes do Mundo Subterrâneo quanto
partes elementares de um conto, surgia uma morfologia, ou seja, “uma descrição do conto maravilhoso segundo
a ela ser a mesma que um dia estivera lá. Segundo Pinel (2003), a Fig. 8 – A sábia lagarta Absolem
as partes que o constituem, e as relações destas partes entre si e com o conjunto” (PROPP, 1984, p.25). Por se
trajetória do herói relaciona-se a seu posicionamento diante dos
tratar de uma narrativa breve, objetiva e compacta, em sua estrutura importava saber o que fazem as personagens
acontecimentos do mundo, caminhando do egoísmo para o alocentrismo, ou seja, em sua evolução aprende a ter
(IDEM, p.26), pois o conto maravilhoso atribui ações iguais a personagens diferentes, o que permite o estudo
os outros como seu centro de interesse. Nesse percurso, suas atitudes envolvem adquirir conhecimento sobre os
desses contos “a partir das funções dos personagens” (p.25), entendendo-se por função “o procedimento de um
fatos, motivar-se a ocupar o lugar ou a desempenhar a função esperada, mostrar-se pronto a novos aprendizados
personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação” (p.26)
(com humildade), ser audacioso (ter coragem), e fazer por merecer. Nesse percurso, compreende o sentido da
Propp (1984), também identificou um modelo abstrato presente nas estruturas desses contos, capazes de pro-
vida e o valor do coletivo, o que o motiva a não mais pensar de forma egocêntrica. Dessa forma, ao ser apresen-
duzir o “efeito narrativa”, manifestando-se, em princípio, na inversão da situação inicial: assim, a uma situação
tada a Absolem, o guardião do Oráculo – um pergaminho mágico que revela presente, passado e futuro – quando
inicial de carência, envolvendo o herói, segue-se a liquidação dessa carência; se houver a ruptura de um contrato,
lhe indagam se é a Alice verdadeira, a lagarta, como o arquétipo do velho sábio, responde: “Não totalmente”, ou
termina com o restabelecimento desse contrato, por exemplo. Greimás, na linha estruturalista, retoma os estudos
seja, Alice precisaria, como afirma Pinel, aprender a ter os outros como seu centro de interesse, desenvolver o
de Propp e observa que as sequências propostas estão abrigadas em uma estrutura, cujo padrão marca o percurso
altruísmo, para poder se tornar digna de portar a espada Vorpal e matar o Jaguadarte no Gloriandei.
do herói, em um modelo triádico das provas perfomanciais, que denominou prova qualificante, em que ocorre a
aquisição da competência por parte do sujeito (querer e dever, poder e saber); prova principal, ou perfomance do
sujeito e muitas vezes um lugar de confrontação com um anti-sujeito; e a prova glorificante ou lugar de reconhecimento do sujeito, isto é, a sanção do contrato estabelecido.
Na década de 60, Greimás concluiu que o percurso do sujeito articulava, de forma regular, quatro percursos
encadeados: manipulação, competência, perfomance e sanção. Na manipulação, um destinador (um sujeito que
faz fazer) exerce sobre um destinatário (sujeito operador) um fazer persuasivo, induzindo-o a um querer ou a um
dever fazer, mediante a apresentação do objeto de sua ação e levando-o a um fazer-crer. Dessa forma, estabelece-se entre ambos um contrato fiduciário, que no final do percurso será sancionado pelo destinador como positivo
ou negativo. (BARROS, 1990)
Em Alice no País das Maravilhas (2010) de Tim Burton, o não conformismo de Alice, atuando como destinador, a induz a um querer-fazer/não aceitar o casamento arranjado, o que a leva a empreender a fuga para adquirir
a competência (ou prova qualificante) para, na condição de donzela da era vitoriana, renunciar a seu papel social
de mulher submissa a um casamento como única opção feminina. Dessa forma, a estória introduz um improvável
Fig. 9 - O monstro
Capturandum
argumento – para a época – o da escolha da mulher por uma profissão exclusivamente masculina (dirigente de
uma empresa de navegação), ao invés da vida como mãe de família e dama da sociedade, uma marca deixada no
discurso pelo enunciador Tim Burton.
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Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
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A heroína irá desenvolver seu percurso a partir das provas que
XIX, no filme de Tim Burton, a questão da loucura é abordada com a ruptura da noção de valores espaciais: o
enfrentará para se qualificar até desempenhar sua prova glorifican-
Chapeleiro vem saudar Alice que chega com o gato, atravessando por sobre a mesa vitoriana posta para o chá; da
te, quando realiza o esperado: matar o Jaguadarte e libertar o reino
mesma forma, a lebre despeja o líquido em uma xícara com o fundo quebrado; e Alice, diminuída por um líquido
da Rainha Branca, destruindo a Rainha Vermelha. No terreno do
dado pelo Chapeleiro, para escondê-la dos guardas da Rainha Vermelha, é colocada dentro de um bule de chá.
“aqui–agora”, irá se competencializar para realizar sua performan-
Nesse universo contraditório, cabe ao Chapeleiro revelar a Alice seu papel, recitando-lhe o mito presente no
ce principal: ser capaz de matar o Jaguadarte, seu medo maior, para
oráculo, primeiramente em linguagem cifrada: “Estava briluz e os silvos tovos gireavam e gimbolavam no vabar.
enfrentar o mundo exterior e realizar a sanção positiva, do ponto de
Tão mimíssicos eram os borogovos que os momequis foram transgabar”.
vista do destinador.
A primeira prova é a do confronto com o Capturandum, ani-
que mordem e presas que agarram. Cuidado com o Jaguadarte, filho. E o frumioso Capturandum. Ele empunhou
mal semelhante ao puma, batedor dos guardas da Rainha Vermelha.
sua espada Vorpal: a Lâmina Vorpal que fura quem a encara. Ele o deixou morto, mas com a cabeça. Ele retornou
Alice não acredita ser real o que está passando, mas parte de um
galopando vitorioso.”
sonho, então não se move e se belisca (como o pai a ensinara) para
O Chapeleiro revela a Alice que o mito é sobre ela, mas a futura heroína recua: “Eu não mato. Então tire isso
acordar, mas é ferida pelas garras do animal, o que configura, se-
da mente”, ou seja, o sujeito Alice ainda não desenvolveu a competência do poder-fazer, para conseguir realizar
gundo a análise de Propp (1984, p.35) , o dano, que determina “o
sua performance principal.
nó da intriga”, inserindo Alice no contexto da estória, pois precisa
Como resposta, agindo como destinador de uma ação, o Chapeleiro procura manipular Alice, a partir da inti-
ser auxiliada pela ratinho alfaiate (adjuvante) que arranca um olho
midação, despertando-lhe um dever-fazer: “Mente? Você não mata (jocoso). Tem alguma ideia do que a Rainha
do animal com sua agulha, para que Alice possa fugir. Entretanto,
Vermelha fez?” . Alice procura se defender: “Eu não conseguiria se quisesse”. Então ele retorna à manipulação
esse ferimento também acrescenta um outro aspecto ao conto, pois
por meio da provocação: “Você não é mais a mesma de antes. Você era muito mais... muitais. Perdeu sua muite-
antecipa a função em que o herói é marcado (marca, estigma), que
za”. Ao que ela responde, aceitando a provocação: “Minha muiteza?”. O Chapeleiro responde, apontando-lhe o
lembrará a personagem durante toda a trama, de que não está vi-
peito: “Aí dentro. Falta algo”. Estabelece-se o fazer-crer entre destinador e destinatário, quando Alice pede-lhe
vendo um sonho.
que conte o que a Rainha Vermelha fez, embora ele a advirta não ser uma estória bonita; ela lhe pede que também
Ao fugir, Alice e os gêmeos Tweedledee e Tweedledum
Fig.10 Tweedledee e Tweedledum
Como ela não compreende a linguagem cifrada, continuou: “O jaguadarte com olhos de fogo. Mandíbulas
fale sobre o ataque do Jaguadarte ao reino da Rainha Branca e a destruição.
(Fig.10)– personagens originais de outra obra de Lewis Carroll,
Após a narração dos fatos, chegam os soldados da Rainha Vermelha e, para que Alice escape, o Chapeleiro
Através do espelho e o que Alice encontrou por lá (1871) – chegam
a coloca (ainda diminuta) na aba de sua cartola e a atira na outra margem do lago, dizendo-lhe para fugir para o
a uma encruzilhada em uma cena que traça um intertexto com o
reino da Rainha Branca. Ocorre a terceira prova, pois no dia seguinte, após ter passado a noite escondida sob a
filme O mágico de Oz de 1939, na qual há duas placas com in-
cartola, Alice é encontrada pelo cão Bayard, a serviço da Rainha Vermelha, que se mostra amigável e lhe conta
dicações confusas: Sub sul (SNUD) e Subleste (QUEAST), que
que o Chapeleiro foi pego. Ao invés de se salvar, Alice pede ao cão que a leve ao encontro da inimiga, em Salazen
remetem à confusão da própria mente da futura heroína. Nesse mo-
Grum, para salvar o amigo, ocorrendo nova prova de altruísmo. Alice cavalga o cão como se fosse um corcel de
mento, ocorre a segunda prova, quando os meninos são levados
um herói e desenvolve nova performance secundária.
por um grande pássaro JubJub e Alice fica só, tendo que enfrentar
A prova seguinte a espera na chegada ao castelo, cercado por um fosso onde boiam cabeças dos inimigos,
o medo da solidão em terras desconhecidas. Motivada pelo desejo
justificando o mote (e a crueldade) da Rainha Vermelha: “Cortem-lhe a cabeça!”. Alice deve pisar sobre elas
de ir em auxílio dos gêmeos, Alice embrenha-se em uma floresta
para transpô-lo, municiando-se de coragem, ela vence essa prova e penetra nos jardins do palácio, justamente no
escura, com árvores retorcidas – marca de Tim Burton – quando
instante em que a rainha joga crícket com um ouriço como bola. Alice liberta o animalzinho, em um ato heróico,
surge o Gato de Cheshire (Fig. 11), como adjuvante, que cuida de
realizando performances secundárias, ainda como pequenina, mas que a preparam para o Gloriandei, cujo papel
seu ferimento, apenas para que não infeccione, embora não o faça
principal – o de heroína – ainda não aceita.
desaparecer, e a conduz ao Chapeleiro Maluco e à Lebre de Março.
No jardim, pede ao coelho branco um pedaço do doce que a faz crescer e, como fica muito alta, utiliza-se
desse fato como um ardil, ao ser encontrada pela rainha, dizendo-lhe ser uma fugitiva da terra de Afensa, pois
Fig. 11 – Gato de Cheshire
50
Um aspecto interessante abordado quanto a esse encontro é que
crescera muito e os seus não mais a aceitavam. Dessa forma, enquanto destinador, utiliza a sedução por meio de
se Lewis Carroll trata da questão do tempo, com a discussão à mesa
um saber-fazer sobre a rainha/destinatário e obtém a sanção positiva, pois a tirana se identifica com ela, devido
girando em torno de o relógio do Chapeleiro não estar funcionando
ao tamanho de sua cabeça e a acolhe como “protegida”, estabelecendo-se entre ambas um contrato fiduciário.
direito para marcar o dia, quando deveria marcar a hora, no século
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Nesse episódio há um intertexto a ser considerado com a Odisseia de Homero, pois Ulisses também se utili-
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zou de um ardil semelhante, para entrar nos muros de Troia, dentro de um enorme cavalo. A Alice diminuta ou
Dessa forma, o tema da transformação do indivíduo em heroína está figurativizado no abandono das vesti-
em tamanho normal (reconhecível), não poderia fazê-lo, mas imensa, pode entrar, incógnita (chegada incógni-
mentas femininas, contra as quais ela já esboçara descontentamento no mundo exterior, ao não vestir o corpete
to, na teoria de Propp), o que, o que permite o desencadeamento das outras funções: um falso herói apresenta
e as meias para a festa. No Mundo Subterrâneo não há o regulador social que a impede de assumir, agora, seus
pretensões infundadas (pretensões infundadas), que se traduz pelos planos da Rainha Vermelha e do Valete de
desejos, o que fica evidente no próprio reconhecimento de seu ego, no contato a seguir com Absolem, que tam-
dominarem no Gloriandei e de Alice se tornar a nova protegida da Rainha.
bém está finalizando seu processo de transformação, fechando-se em um casulo:
Na sequência, é proposta à futura heroína uma tarefa difícil (tarefa difícil): Alice deve tomar a espada Vorpal
guardada pelo temível Capturandum; por meio da sedução, o destinador Alice, utilizando-se de um saber-fazer,
ALICE: Absolem? Por que está de cabeça para baixo?
devolve ao animal o olho que lhe fora anteriormente arrancado pelo ratinho e obtém a adesão do destinatário,
ABSOLEM: Cheguei ao fim desta vida.
que por meio de um querer-fazer permite que ela pegue a chave pendurada em sua coleira e abra o baú onde está
ALICE: Você vai morrer?
a Vorpal. A sanção desse percurso do sujeito é, portanto, positiva, e Alice dá mais um passo rumo a sua heroici-
ABSOLEM: Transformar-me.
dade. A tarefa é realizada (realização da tarefa).
ALICE: Não vá. Preciso de sua ajuda. Não sei o que fazer...
O Chapeleiro e o Ratinho são condenados à decapitação pela Rainha Vermelha, mas organizam uma revolu-
ABSOLEM: Não posso ajudá-la se você nem sabe quem é, menina idiota.
ção, no momento da execução da pena, conclamando o povo à luta contra a tirana, no que são atendidos. Alice
ALICE: Eu não sou idiota! Meu nome é Alice. E moro em Londres. Minha mãe se chama Helen
surge na praça montando o Capturandum e, em meio à confusão, o ratinho grita “Fuja, Alice!”, momento em
e minha irmã, Margaret. Meu pai se chamava Charles Kingsleigh. Ele tinha um projeto de viajar ao
que o herói é reconhecido (reconhecimento), também ocorrendo na sequência o desmascaramento do malfeitor,
redor do mundo e nada o deteve. Eu sou filha dele. Eu sou Alice Kingsleigh.
quando o Chapeleiro chama a rainha de Cabeçuda e mostra que toda a corte usava disfarces (narizes, orelhas,
barrigas postiças) para ficarem feios e serem aceitos pela tirana.
ABSOLEM: Alice, finalmente! Você era tão tola quando esteve aqui pela primeira vez. Pelo que
me lembro, chamava de “País das Maravilhas”.
Ao chegar a Marmoreal, Alice executa nova performance, entregando à Rainha Branca a espada Vorpal,
dizendo-lhe que a devolvia a quem ela de fato pertencia. Entretanto, ocorre uma tentativa de manipulação do
Alice então se recorda dos acontecimentos de sua infância no mesmo local, tornando-se um sujeito agora
destinador/rainha sobre Alice, quando afirma que a armadura já estava completa, faltando apenas o campeão
competencializado segundo um poder e um saber-fazer, estando apta a vestir a armadura (Fig.14) e a empunhar
que a vestiria para enfrentar o Jaguadarte e olha significativamente para Alice, o que sugere a provocação se-
a espada Vorpal. Contrariando as expectativas dos amigos, Alice/heroína chega montando o Capturandum, a fim
gundo um saber-fazer, atribuindo ao destinatário/Alice um dever-fazer. Entretanto, como parte de seu processo
de realizar sua performance principal: matar o Jaguadarte. Segundo Resende (2010): “A lagarta é um ser raste-
persuasivo de levar o destinatário primeiramente a crer nas razões do destinador, Mirana dissimula, rapidamente
jante que fica independente na forma de borboleta. Pode-se dizer que Alice “rasteja” em sua vida, ao contrário do
acrescentando que Alice é um pouco mais crescida do que esperava (para usar a armadura). O destinatário/Alice,
dinamismo e brilho que alcança ao final da aventura.”
induzido, em parte, pela manipulação do destinador/rainha, conta que sua altura se devia ao excesso de Altestrudel, então Mirana prepara-lhe uma poção para que retorne ao tamanho normal.
No campo de batalha, con-
A função o herói recebe nova aparência (transfiguração) apresenta-se na roupa com que Alice surge vestida:
frontam-se as irmãs Iracebeth, a
túnica e calças compridas, como um príncipe hindu, em um lugar onde reina a extrema feminilidade nos vestidos,
irascível Rainha Vermelha, tema
nos gestos, na aparência e na voz suave.
da fúria e do descontrole do mal,
Fig. 14 - Alice campeâ da Rainha Branca
figurativizados no nome e na aparência (cabelos vermelhos, testa
larga, roupas de época) em Elizabeth I, rainha da Inglaterra; e
Mirana, nome de provável origem
latina, significando mulher sábia,
admirável, tematizando o Bem, o
que está figurativizado nos gestos
contidos, na fala suave, no temperamento controlado e na presença
do branco e do azul, cores suaves;
Fig. 12 - Alice: tranformação da donzela vitoriana em mulher decidida
52
Fig. 13 – Conversa final com Absolem e redescoberta de si mesma
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
Entretanto, também apresenta ati-
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
53
parada para deixar o Mundo Subterrâneo, pois adquiriu a coragem,
a persistência e a sabedoria necessárias para construir próprio seu
futuro.
Fig. 15 – Alice enfrenta
o Jaguadarte
A grande batalha e o universo junguiano
A temática do Bem e do Mal está figurativizada, no campo de
batalha, tanto nas cores, quanto no aspecto de cada jogo: no de
xadrez, com peças brancas a descoberto, vence o raciocínio, a sabedoria; no de baralho, cartas vermelhas, a trapaça, o que será visível,
quando Iracebeth, ignorando a proposta de paz de Mirana, apresenta sua maior arma, o Jaguadarte.
O excesso de racionalismo da cabeça volumosa, que impede
o controle das emoções (Iracebeth não consegue lidar com o ciúme do relacionamento dos pais com a irmã, por isso faz cobranças
carregadas de ira a seu redor); e o lado extremamente feminino de
Mirana, que precisa de um cavaleiro que vista a armadura, pois é
tudes dissimuladas, a preferência por tratar com seres mortos, batom, unhas e sombrancelhas negras, em um vivo
contraste com o branco predominante no reino marmóreo, sugerindo um outro traço de sua personalidade, trazido
ferreamente sob controle.
O confronto com o Jaguadarte é marcado pelo encorajamento a partir da recordação do pai das seis coisas
impossíveis, que ela atribui a seu próprio percurso no Mundo subterrâneo e vai recitando, enquanto enfrenta o
monstro:
beth e Mirana representam o animus e a anima exacerbada, entre
esses dois arquétipos Alice deve aprender seu próprio autocontrole.
Segundo Resende (2010):
(...) Alice confronta os
dois opostos de si mesma
– Iracebeth e Mirana – e
Seis coisas impossíveis. Conte-as, Alice. Um: há uma poção que faz você encolher. Dois: e um
bolo que faz você crescer [ataca o animal e corta-lhe a língua; ele a joga no chão com a cauda].
Tres: animais podem falar. Quatro, Alice!: Gatos podem desaparecer! Cinco: existe um lugar chamado País das Maravilhas. Seis: eu consigo matar o Jaguadarte.
Retomando Jung, Rezende (2010) esclarece que quanto mais largo o campo da consciência, quanto mais o
indivíduo se conhecer, maior será o livre arbítrio, mais possibilidades se apresentarão e poderão ser concretizadas pelo eu: “O eu possui o livre-arbítrio – como se afirma, mas dentro dos limites do campo da consciência”
(JUNG, 1990a, p. 4, cf, RESENDE, 2010)
Alice, um sujeito devidamente competencializado segundo um poder e um saber-fazer, realiza sua performance principal, mata o Jaguadarte, obtendo a sanção positiva, e devolve o Reino à Rainha Branca. Entretanto,
como a competencialização também envolve adquirir a capacidade de agir por si mesma e de improvisar quando
necessário, contrariando o oráculo, que dizia que ela matara o Jaguadarte mas não lhe cortara a cabeça, Alice
imprime sua marca ao momento presente e, de um salto, pula sobre o pescoço do monstro e com um único golpe
decepa-lhe a cabeça com a Vorpal, o que causa estranhamento aos amigos. Dessa forma, a nova Alice está pre-
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incapaz de matar qualquer ser vivo; sob a ótica junguiana, Irace-
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leva o melhor dos dois,
apesar
deles
acabarem
se separando novamente.
Mas o conhecimento advindo do seu embate ficou
e transformou a personagem. Sua persona acaba
se constituindo como uma
armadura,
que
precisa
usar para saber se impor
aos circundantes e tomar
as rédeas da sua vida. A
ênfase agora recai em Mirana, que passou a reinar
no mundo subterrâneo. (...)
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
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a Rainha Branca fornece uma persona de guerreira e encarna também o feminino. Como símbolo do
exigirá um afastamento dos elementos da “caverna” em que esteve aprisionada, para encontrar a si mesma, sua
Si-mesmo detém os opostos em si, e usa de dons sobrenaturais. Apoia uma mulher em uma época de
força interior e fazer valer sua vontade.
preconceitos, rigidez e pressões, e fornece-lhe os instrumentos interiores para seu sucesso.
Como protagonista da estória, Alice, representa o ego, aquilo que o indivíduo conhece sobre si mesmo ou,
como afirma Jung, o ego “é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa” (1990A, p. 1, cf. RESENDE, 2010).
A simbologia presente nesses dois aspectos torna-se patente na busca de Alice pelos momentos em que es-
Tais atos corresponderiam a ações baseadas no uso da própria vontade e com objetivos bem definidos, por isso
teve com o pai – seu exemplo de animus empreendedor, destemido, audaz – uma vez que no universo vitoriano
é através dele que o indivíduo pode ou não mudar seu destino e também por isso somente Alice pode matar o
em que vivia estava a mulher cercada de normas e regras que impediam o desenvolvimento da racionalidade,
Jaguadarte (IDEM), optando por cortar-lhe a cabeça, o que não estava determinado anteriormente, no oráculo,
pautando seus atos em uma persona marcada por atitudes suaves (porém irreais), similares às da Rainha Branca.
pois seu ego ainda não estava formado.
Já a atitude típica da Rainha Vermelha, no universo junguiano vista como aquela que não consegue desenvolver
Dessa forma, deve desenvolver um percurso rumo à heroicidade, enfrentando diferentes desafios, rumo a sua
a persona, o trato social, geralmente é temida, não desejada. O coelho branco que surge no momento de decisão
individuação. Nesse trajeto, encontra diferentes auxiliares e oponentes que a auxiliam ou instigam em momentos
no mundo real é o símbolo que indica a Alice o momento de resgatar sua capacidade de ação, sua “muiteza”, ou
críticos. Assim, é conduzida por um adjuvante, o sorridente Gato de Cheshire, quando está para errar o caminho;
seja, a capacidade de reagir, de colocar-se contra os ditames da sociedade e seguir seu próprio destino.
é aconselhada pela lagarta Absolem (arquétipo do velho sábio), que também lhe sinaliza o momento de se trans-
Segundo Jung (2008), quando um arquétipo surge em um sonho, na fantasia ou na vida, ele fornece ao
formar, ao passar de verme a borboleta (símbolo de transformação: morte e vida, liberdade), evidenciando que
indivíduo uma força que gera fascínio ou impele à ação. O ser humano possuiria “uma psique pré-formada de
Alice estaria pronta para aceitar novos desafios no mundo exterior, assumindo sua própria vontade. Tim Burton
acordo com sua espécie, a qual revela também traços nítidos de antecedentes familiares” (JUNG, 2008, p.90)
enfatiza o inconsciente sombrio, com figuras que o marcam como a um pesadelo, como o estranho Valete de
determinada a partir de formas de função denominadas por ele “imagens”, que expressam não apenas a forma
Copas (o protetor da Rainha Vermelha), as árvores ressequidas, o céu enevoado, o contraste entre o branco e o
da atividade a ser exercida, mas também, simultaneamente, a situação típica na qual se desencadeia a atividade:
negro no reino da Rainha Branca, e entre o vermelho e o negro no reino da Rainha Vermelha, uma tirana a quem
faltam emoções adequadamente desenvolvidas.
Tais imagens são “imagens primordiais”, uma vez que são peculiares à espécie, e se alguma vez
O colorido do ambiente e a maquiagem/aparência exacerbadas dos personagens de sonho do País das Mara-
foram ‘criadas’, a sua criação coincide no mínimo com o início da espécie. (...) Uma vez que tudo o
vilhas, como a do Chapeleiro Maluco; a cabeça enorme da Rainha Vermelha; e o negro dos lábios, contrastando
que é psíquico é pré-formado, cada uma de suas funções também o é, especialmente as que derivam
com a palidez cadavérica da Rainha Branca, em nada se parece com os tons pastéis do mundo exterior. Esse
diretamente das disposições inconscientes. A esta pertencem a fantasia criativa. Nos produtos da
conjunto de elementos simboliza os medos mais profundos que essa Alice terá que enfrentar para se tornar adulta
fantasia tornam-se visíveis as ‘imagens primordias’ e é aqui que o conceito de arquétipo encontra
e uma heroína capaz de retornar, enfrentando os ditames da era vitoriana, assumindo não o papel esperado para
sua aplicação específica (IDEM)
uma mulher – casar e ser submissa ao marido – mas se tornar uma dirigente de uma companhia de navegação e
viajar por todo o mundo.
(...) arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens similares, são formas ins-
Se o sangue do Jaguadarte corresponde ao prêmio obtido pela façanha alcançada e o meio pelo qual ela será
tintivas de imaginar. São matrizes arcaicas onde configurações análogas ou semelhantes tomam
transportada ao mundo exterior, e que Alice bebe sem temor, o mesmo não acontece com Iracebeth ao receber a
forma (...) Resultariam do depósito das impressões superpostas deixadas por certas vivências fun-
notícia de seu exílio para o mundo exterior, um mundo que exigia o equilíbrio das emoções, competência que ela
damentais, comuns a todos os humanos, repetidas incontavelmente através dos milênios (SILVEIRA,
não possuía; dessa forma se desespera ao saber que não terá a seu lado o valete, para a proteger dos excessos de
1978, p.77)
sua própria falta de habilidade no trato social.
CONCLUSÃO
As vivências típicas a que se refere Jung estão relacionadas às emoções e fantasias causadas por fenômenos
da natureza, pelas experiências com a mãe, pelos encontros do homem com a mulher (e vice-versa), pelas jor-
Alice desenvolve o percurso do herói, em seu mundo interior, o que a qualifica para desempenhar a rebeldia
nadas difíceis como a travessia de mares e de grandes rios, pela transposição de montanhas etc. Tais vivências
que irá expressar em seu retorno, transformada: não mais a menina medrosa e rebelde, mas a mulher decidida e
constituiriam disposições herdadas que, inerentes à estrutura do sistema nervoso, seriam capazes de construir
compromissada com seu futuro. Dessa forma, deixa o mundo conhecido, os hábitos segundo os quais foi criada
“representações análogas ou semelhantes”, as quais, funcionando como um nódulo de concentração de energia
e em cujos valores sua moral se desenvolveu, para descobrir o sentido da vida que lhe fora transmitido pelo pai,
em estado potencial, atualizam-se na forma de imagens arquetípicas, que muitas vezes se manifestam nos so-
quando criança, por meio da magia e do estímulo à fantasia, em uma época em que o comum era o estímulo ao
nhos, sendo instintivamente reconhecidas nos contos de fadas e nas estórias folclóricas. No caso de Alice, a toca
oposto, ou seja, como a infância não era cultuada, os indivíduos aguardavam a idade adulta para se manifestarem,
do coelho simboliza a fuga dos padrões conhecidos, para que possa entrar em contato com seu rico universo inte-
o que não ocorre com Alice e o pai.
rior, em busca de saídas para a situação de desagrado em que se encontra. Entretanto, a ruptura com tais padrões
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Penetrar na toca do coelho, ao fugir, no momento em que é dada em casamento a um rapaz com quem não
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Arte, Narrativas e Memórias
simpatiza, simboliza o retorno às lembranças de uma época em que tinha o poder de decisão. Dessa forma, as
personagens que encontra no País das Maravilhas representam aspectos de seu universo interior: o Chapeleiro
Art, histories and memories
Maluco, o medo de sua própria loucura, que a desafia; a Lebre maluca, que age de forma totalmente desconexa,
a ruptura com os padrões da época; a Rainha Vermelha, o excesso de racionalidade (animus) e a tirania; a Rainha
Branca (anima), etérea, mas incapaz de tomar atitudes – a própria lady vitoriana – que precisa de Alice para que
seja seu Cavaleiro.
Alecsandra Matias de OLIVEIRA
Observa-se uma luta entre o delicado e vulnerável papel feminino, esperado da mulher da época, e a necessidade de assumir seu lado guerreira para poder modificar seu destino e exercer seu livre arbítrio. Sob a ótica
junguiana, os arquétipos da anima e do animus necessitam entrar em equilíbrio, bem como seu ego, para que
Alice seja um indivíduo completo: sendo feminina, mas capaz de tomar suas próprias decisões. Dessa forma,
Mestre em Comunicações e Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo - Brasil.
a protagonista/sujeito pode, finalmente, adquirir as competências necessárias à obtenção de sua heroicidade:
Este artigo providencia um ponto de vista nas relações entre opinião pública, pesquisa de opinião e o processo de socialização da arte através da internet. Acreditamos que a discussão deste tópico é muito importante para entender os efeitos das reflexões entre a circulação de informações dentre
os artistas e as produções artísticas em sí, já que o processo de redes de informação (promotores de
artistas, museus, doadores e representantes de eventos culturais) é de importância fundamental para
a formação da opinião pública numa sociedade.
sabedoria, comedimento, capacidade de perdoar, humildade, astúcia, recebendo a sanção positiva do destinador
“busca do self” que a motivou a ir à procura de seu mundo interior.
Referências.
Palavras-chave: opinião pública, socialização da arte
BAKHTIN, M. La Poétique de Dostoievski. Paris, Seuil, 1970.
____________ Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1988.
The paper provides an insight into the interrelationships between public opinion, opinion research and the process of socialization of the arts via the Internet. We believe that the discussion of this
topic is very important to understand the effects of reflections between the circulation of information
within the artistic and artistic production itself, since the process of informational network (promoters of artists, museums, donors and representatives of cultural events society) is of fundamental
importance for the formation of public opinion in a society.
BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.
BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Porto Alegre: ArtMed, 1987.
CHEVALIER, J.; GHEEBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991
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JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2008.
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http://revcom2.portcom.intercom.org.br/index.php/revistaemquestao/article/viewFile/3629/3418.
Acesso em 13/02/2011
Recebido em 17 de Novembro de 2010.
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Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2011
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.
Q
Keywords: public opinion, art socialization
uando se define a condição contemporânea como um estado de incredulidade em relação às metanarrativas, estabelece-se também o patamar para uma série de questionamentos sobre os sistemas
narrativos pelos quais a sociedade humana organiza e dá significado, unidade e “universalidade” à sua
experiência. Entre esses sistemas, em franco debate, encontra-se a arte que tem sua função narrativa intrínseca
desde os mais remotos testemunhos. Seja nas representações funerárias no Egito, nos relevos comemorativos nas
construções greco-romanas ou na pintura sacra medieval, uma das funções da arte é contar histórias.
Na antiguidade clássica, arte liga-se ao simulacro, à ideia e à beleza. A arte não se encontra na natureza, mas
no mundo das fantasias e da razão. Nesse sentido, “o simulacro é o intelecto unido ao objeto, e esta adição tem
um valor antropológico, pelo fato de que ela é o próprio homem, sua história, sua situação, sua liberdade e a
resistência que a natureza opõe a seu espírito”. Então, arte é conhecimento. Conhecimento do objeto, quando
apreendido do mundo real e conhecimento, quando o artista constrói o simulacro, utilizando suas capacidades
mnemônicas. É também forma de cognição para o espectador, uma vez que este reconhece, por suas faculdades
mnemônicas, o objeto simulado.
Para os gregos, a ideia de beleza é permeada pela razão, que por sua vez se vale da memória, da proporção
e de regras imutáveis. Nessa concepção, a arte não é cópia fiel da realidade, mas a memória da realidade. Por
ser aparência, representa o intelecto associado ao objeto de arte ou à criatividade do artista, acrescida da forma,
caracterizando a idealização do objeto em sua plena harmonia. “Mesmo quando o herói olímpico recebe o direito
de ter sua imortalidade, através de uma estátua, essa não tem a forma exata do retrato, pois é somente uma idealização do que deve ser uma representação harmônica do corpo e do rosto de um herói”.
A arte é, no seu sentido pragmático, ou seja, enquanto ensinamento ético-político, empregada pelos romanos
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.
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– como meio para a narrativa de acontecimentos históricos com a finalidade de lembrar as vitórias dos generais
A partir das inovações e transformações ocorridas a partir do século XX, a arte como conhecimento não é
e imperadores. Por essa razão, a arte é pensada como “coisa pública”, ou seja, perpetua a memória coletiva de
mais uma concepção unânime e a arte passa a valorizar outras formas de sentir e de expressar o mundo, tais
Roma. Arcos, obeliscos e outros monumentos arquitetônicos romanos são como instrumentos de rememoração
como sonhos , emoções e imagens que não são passíveis de narração, ou pelo menos, não de uma narração line-
– as marcas de uma “história gloriosa.” Quando a arte se torna cristã, nas catacumbas narra o sacrifício dos
ar e totalmente compreensível. As vanguardas históricas (Expressionismo, Dadaísmo, Cubismo, Surrealismo e
mártires e os eventos bíblicos. Através da arte, ocorre a cristianização da memória coletiva, permeada pelos ritos
Abstracionismo) alteram, quebram ou até mesmo dissolvem o aspecto narrativo na arte. Em comum, buscam a
litúrgicos, girando em torno dos cultos dos mortos e dos santos. “Pode-se descrever o judaísmo e o cristianismo,
liberdade e a autonomia para o objeto artístico. Porém, nenhuma das vanguardas exclui a ideia de que a arte é
religiões radicadas histórica e teologicamente na história, como ‘religiões da recordação’”. Através da lingua-
modo de expressão de emoções.
gem artística os registros religiosos mantiveram-se por todo o período medieval e evangelizaram partes remotas
do mundo.
No Renascimento, retorna-se às premissas clássicas, a arte passa a ser considerada “coisa mental”, isto é, arte é
mento. Na arte moderna, as imagens se disseminam excessivamente e necessitam de uma ordenação que não é
a recriação da natureza e se limita ao processo de ordenação matemática e à harmonia: elemento da vida. Através
necessariamente regular ou linear. A proliferação do uso da fotografia, por exemplo, contribui para a formação do
da arte renascentista os temas bíblicos, os mitos e a vida nos reinos espelham o “espírito de uma época”. Na
novo sistema visual, registrando a memória do instante. O registro da memória ganha novas técnicas (especial-
Renascença, a memória está resguardada pelo registro escrito (uma infinidade de tratados, manuais e documen-
mente, através dos veículos de comunicação) que multiplicam sua capacidade de transmissão de imagens – o que
tos) e pelas obras-primas (monumentos arquitetônicos, telas e esculturas) que são a garantia de “imortalidade de
ocorre é certa banalização dos registros e, por consequência, toda e qualquer memória pode ser preservada. As
artistas e mecenas”.
vanguardas históricas e, mas tarde, a arte pós-II Guerra estão envoltas nesse movimento acelerado de proliferação
As teorias clássicas sobre a arte ligam-se, por intermédio da precisão, da regularidade e da sistematização do
de imagens.
conhecimento, às regras e princípios teóricos adotados pelas academias de Belas-Artes. Nas academias francesas
As concepções de documento e monumento seriam substituídas somente pelo conceito de imagens da me-
e italianas predominam os valores relativos à semelhança do real e da beleza. Contudo, o neoclassicismo e o ro-
mória? Não. Mesmo a arte moderna tem seus monumentos comemorativos que exaltam aspectos da renovação
mantismo acrescentam à concepção de arte dinamismo e sentido evolutivo. Os iluministas depositam esperanças
industrial e da ligação homem-máquina. A imagem que constitui a obra de arte deflagra múltiplos elos que, por
nas ciências e na cultura especializada – fatores que poderiam possibilitar o progresso infinito. Para os iluminis-
sua vez, constituíram diversos presentes. A obra de arte revela a memória que traz consigo. Memória essa que
tas, a memória é claramente passível de treinamento, bem como a arte. Técnicas e temas são transmitidos com
continuará, em seu devir, a atravessar outros presentes, uma vez que sempre, diante da imagem, se está diante de
mais intensidade através de recursos mnemônicos. Os gêneros da pintura (retrato, natureza-morta, paisagem e
tempos “(...) olhá-la significa desejar, esperar, estar diante do tempo”.
pintura histórica) florescem rapidamente e mostram a potencialidade do aspecto narrativo da arte, nesse momento. Não é por coincidência que um desses gêneros, a paisagem, abre caminhos para o Impressionismo que em sua
proposta procura aprisionar a luz e o instante – a recordação do momento presente.
É o modernismo que reivindica com mais contundência uma “arte pela arte” que se nega a veicular mensagem
e servir de meio transparente de comunicação. Os artistas de vanguarda aproveitam as conquistas da ciência na
sociedade moderna para a construção de novo sistema visual. Nesse sistema, a memória na arte não reconstitui
somente o visível, mas também os sentidos humanos. O próprio conceito de memória se alarga, especialmente,
com as teorias freudianas e piagetianas. Simultaneamente, o conceito de conhecimento deixa de ser o “enciclopédico” (ou acumulativo) dos iluministas e compreende-se a fragmentação e o processo de especialização do
Saber em saberes.
Os fenômenos mnemônicos na arte moderna podem ser compreendidos, a partir das considerações de Henri
Bérgson, em especial na obra Matéria e Memória. Nessa obra, o filósofo considera central a noção de “imagem”,
na encruzilhada da memória e da percepção. Na ordem espiritual, na lembrança e na memória, está a união da
matéria e do espírito , ou seja, as representações arquitetônicas (monumentos) são agentes transmissores de lembranças. A memória será o elo entre o material e o espiritual.
Bérgson define a matéria como imagem: certa existência que surge imediatamente através do sentido da visão. A
percepção é definida como algo puramente material porque mostra de modo simples a existência da coisa. A percepção é, ainda, a ação da matéria, é o reflexo do material, não pode existir isoladamente. Já a lembrança torna-se
a ação do espírito de recordar e de perceber. Segundo Bérgson, a memória capacita o indivíduo a trabalhar suas
lembranças e a formar objetos materiais. Nesse sentido, a memória é algo que motiva o retorno das lembranças
No entanto, o caráter efêmero da produção de vanguarda e sua ação de destruição para construir o novo tornam-
para que o presente construa novas significações. Essas lembranças organizam o presente e revelam o futuro.
-se processo de esgotamento da arte. A busca pelo novo constitui-se em obsessão do artista: ao encontrá-lo, ele
Logo, a lembrança, assim como a percepção não existe isoladamente. A memória é móvel e criativa, mais do que
logo se transforma em antigo. O artista se vê condenado a encontrar uma nova forma de olhar e por essa razão
isso, a memória possibilita a criação do novo.
transforma-se constantemente, desagrega sua identidade; ao desagregar-se, armazena em sua memória impressões que se transformarão em imagens. A memória manifesta-se, pois, na luta contra o movimento implacável do
tempo. Essa condição leva o artista a questionar a validade da mesma, sobretudo, com a crise que se instala na
Europa no pós I Guerra Mundial. Para Walter Benjamin, os sobreviventes que regressam das trincheiras, voltam
mudos. Por quê? Porque aquilo que vivenciam não podia mais ser assimilado por palavras. A memória da batalha
torna-se dolorosa e difícil de ser transmitida a outrem.
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Nesse ponto, assinala-se que como sistema de organização das emoções, a memória serve como uma busca
pessoal de aprendizado, de repertório para o porvir ou até mesmo uma advertência sobre os perigos do esqueci-
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A perspectiva de Bérgson da memória, de certa forma, influencia os caminhos da literatura como documento
escrito, em particular, porque realça as interações da memória e do espírito. Marcel Proust convence-se, rapidamente, da proximidade entre literatura e memória. Assim, um objeto como, por exemplo, uma flor somente se
transformaria em flor verdadeira como objeto de memória. Proust observa que as mnemotécnicas, geralmente,
baseiam-se no princípio da ação sensorial, ou seja, no estimular os sentidos: visão, audição, olfato, paladar e
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.
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tato. Entre esses, a visão possuiria prioridade sobre os demais sentidos, por essa razão, os conteúdos da memória
pessoal que permeia a produção artística, especialmente, a brasileira de meados dos anos de 1990. Os trabalhos
também são vistos como imagens mnemônicas. A ideia de Proust é destituir a visão dessa posição privilegiada e
apresentam-se, cada vez mais, narrativos, autobiográficos e auto-referenciais. A memória, o corpo e, em alguns
abarcar outros sentidos como portadores da memória. Para tanto, o escritor lida com as memórias involuntárias
casos, a história e a localidade são impressos nos objetos estéticos como forma de especificidade.
e voluntárias. A visão estaria relacionada às atitudes racionais por isso interligada à memória voluntária. Já a
memória involuntária não tem como origem um desejo determinado de manipular o passado com vistas à sua
possível utilização no presente. Pelo contrário, a memória involuntária advém de uma sensibilidade difusa e
inesperada (todos os sentidos em ação confusa) que acomete o homem a qualquer instante, levando-o a reviver
flashes do seu passado, em todo o seu colorido original.
Ao atualizar o passado, a memória (somatória de voluntária e involuntária) recria o tempo (passado, presente
e futuro), fundindo instante e duração num continnum tecido. Para Marcel Proust, a arte conseguiria operar a
síntese entre instante e duração, através da matéria media as relações com o espiritual. Nesse sentido, deve-se
retomar uma das questões principais que auxiliam na constituição da história, como disciplina, no século XIX: a
exclusão da memória involuntária. Na arte essa expulsão nunca ocorre totalmente. O que se dá é a utilização da
memória involuntária com maior ou menor intensidade. A arte pressupõe conhecimento sensível e este depende
das potencialidades da memória involuntária, assim sendo, eliminar os sentidos expostos na memória involuntária seria dirimir o que há de essencial na arte.
Nesse ponto, torna-se importante assinalar que a arte não se inicia na ocasião das primeiras obras de arte – ou
pelo menos aquilo que se denomina arte atualmente – mas quando certos objetos são pensados esteticamente.
Ela também não acaba quando deixam de existir obras de arte (esculturas, pinturas, música ou literatura), a arte
se altera e renova-se de tal maneira que uma história da arte sustentada tão somente em estilos, movimentos,
evolução e progresso artístico não dá conta de sua plenitude. A partir do pensamento estético, conta-se a história
da arte que a princípio é mimética de depois se torna moderna e, agora contemporânea.
A contemporaneidade mostra que as formas artísticas não podem mudar, a menos que as práticas sociais o
façam ou, ainda, a produção artística é construída num contexto social e num sistema de valores vivido. A arte
As buscas destinam-se ao relato de histórias individuais, às particularidades das origens dos artistas, à genuinidade de lugares, ao entendimento do cotidiano urbano e do seu papel na sociedade. Contudo, todos procuram,
através do trabalho artístico, dar sentido à existência, seja a sua própria ou a da coletividade. No mundo atual,
pressionado por uma força de “pasteurização” de valores, surgem propostas de reafirmação da individualidade e
da localidade, utilizando a memória como arma de “resistência”.
Nesse sentido, desvelar memórias pessoais e a configuração de um olhar atento para dentro de si torna-se movimento de resistência contra a apatia e a amnésia - sentimentos gerados por um contexto de excessos, estabelecido
pela cultura da mídia eletrônica e cibernética que produz o máximo de informação contido em um mínimo de
tempo, gerando um estado de ansiedade incessante, focado na tentativa de acompanhar os fatos que são oferecidos a cada instante repetidamente. Muitos artistas contemporâneos põem em debate a comercialização das
memórias através das impressões maquínicas (TV, Internet, jornais entre outros veículos de comunicação). A leitura pessoal das memórias se contrapõe à amnésia e a apatia social que o oferecimento freqüente de informações
acarreta na cultura atual.
O fascínio dos artistas por histórias relaciona-se à atração pela convenção (na permanência ou na ruptura dela),
pela nostalgia e pela memória das narrativas já conhecidas. Esse fascínio transforma a produção dos artistas contemporâneos em obras/textos, cobertas de “narrativas enviesadas” ou abertas para si mesmas:
A arte torna-se comentário sobre o tempo e a vida, que toma o corpo de uma escritura, tão subjetiva
como o próprio alfabeto. É conhecimento flexível mais imprescindível – um conhecimento que se
abre ao observador como um estranho livro, que a narrativa contida se assume de acordo com seu
próprio olhar.
contemporânea justapõe e dá igual valor ao mundo fechado em si mesmo e o mundo aberto para o exterior, da
história e da experiência (nesse âmbito, a memória). Essa “arqueologia emocional” esbarra muitas vezes no co-
A arte como comentário abre espaço para diferentes linguagens e, mais do que isso, para figuras de linguagens,
lecionismo, no qual os objetos servem de apoio. O recordar nas poéticas visuais torna-se amealhar instrumentos
ou, ainda, metáforas (do grego, metaphora = transporte, junção) diversas que narram os acontecimentos e senti-
para próximas ações, analisar as possibilidades à luz das experiências vividas, reviver o prazer de sensações boas
mentos envoltos na contemporaneidade. Através da metáfora, a arte expressa formas de conhecimentos possíveis
e precaver-se com a reincidência das más.
e atuais. Essas metáforas são cada vez mais complexas. Podem estar encravadas nas poéticas visuais ou repre-
Para o artista contemporâneo, o cultivo da memória é, acima de tudo, uma busca de reafirmação do que o
passado significa. Mesmo a memória coletiva que geralmente serve a propósitos políticos ou de orientação de
compositivos na obra ou até mesmo surgirem pela ausência destes.
conduta, sendo imposta ao grupo por uma determinada instância superior (um governo, uma religião ou uma ins-
Nesse contexto, emerge a discussão referente à seriação, repetição, acumulação e citação – elementos compo-
tituição), sofrendo uma série de intervenções e revisões ao logo do tempo, manipulada para servir a determinados
sitivos transmissores de metáforas. Esses elementos têm reminiscências na arte moderna, porém na contempo-
propósitos, na produção artística tem sua afirmação ou negação. Para os artistas a memória pode servir como um
raneidade assumem linhas radicais. Os artistas contemporâneos através da seriação, repetição, acumulação e ci-
propósito cognitivo, um esforço de apreensão de um fato ou momento que remete ao coletivo (artista e público)
tação de elementos na produção estética misturam mitologias públicas e privadas. Jogam, metaforicamente, com
uma reflexão sobre o que foi ou o que poderia ter sido – a suspensão de um momento muitas vezes eternizado no
as memórias pessoais e coletivas. Através desses elementos, a obra de arte não está isolada na sua forma objetual,
espaço expositivo ou na percepção do objeto estético, em uma narrativa fragmentada, indireta e que não permite
mas abrange diferentes variantes: poética do artista, vida, técnica, elementos compositivos, entre outros fatores.
possibilidade de leitura única e linear.
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sentar uma circunstância específica vivenciada pelo o artista e seu público. Podem estar presentes em elementos
A repetição de elementos compositivos apresenta-se como a confirmação do presente que não envelhece que
Na contemporaneidade, a sensação de descontinuidade, desencaixe e fragmentação geram um sentimento de
se condiciona em transe celebrativo. O mesmo elemento se repete obsessivamente durante a trajetória do artista,
pouca “intimidade” com a realidade, o que pode justificar o crescente desejo de expressão e busca de sentido
como por exemplo, as bandeirinhas de Alfredo Volpi. Já a seriação pode ser repetição (e vice-versa). Porém, se
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.
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configura como seriação que assume uma forma sistêmica, articulada pela experiência artística e que desnatu-
continum. A memória, então, decanta o passado de sua exatidão. É ela que humaniza e configura o tempo, en-
raliza o sistema clássico de representação. Na seriação o elemento se transfigura como se ocorresse uma “nova
trelaçando os fatos. Por sua vez, a obra de arte permite sua leitura como montagem de tempos diferentes, o que
variação sobre o mesmo tema”. A acumulação, na modernidade e contemporaneidade, é liberada pela permis-
significa dizer que existem formas diversas de repensar as relações entre o agora e “o não mais agora”. As obras
sividade e pelo desperdício da indústria e da tecnologia, gerado pelo fenômeno de fetichização e patronização
de arte formam um novo modelo de temporalidade, especialmente, as obras contemporâneas que aliam diferentes
da cultura – este procedimento sobrepõe repetição e seriação. A citação advém da necessidade dos artistas em
tempos (o cronológico, o psicológico, o recriado e muitos outros).
usar arquétipos universais e inevitáveis. Estes seriam utilizados de modo articulado e transformados em arte
representacional, ou ainda, serem suprimidos, com o risco de simplesmente dar uma nova roupagem às alegorias
tradicionais , conferindo-lhes certo “ar contemporâneo” e falso, ao invés de propor novas investigações sobre os
temas do passado.
Muitas vezes, na arte contemporânea, as narrativas não se prestam à exaltação de eventos e tão pouco à grandiosidade de um homem envolvido em ações nobres. Inexiste uma moral implícita, as alegorias, nem sempre
identificáveis, tangenciam histórias difusas, possibilitando um labirinto de especulações, muitas vezes utilizadas
sob o pretexto de “retorno à pintura” e ao “exercício do retrato de uma visão particular”. A hierarquia clássica e
o lugar dos acontecimentos desaparecem e são substituídos pela associação enigmática e democrática com ares
antigos. Há uma “presença da ausência”, um “sentimento de que a cultura há muito se foi e de que a festa está
em outro lugar”.
A figura humana retorna ao cenário artístico, porém, apresenta um desequilíbrio perturbador, um aspecto de
fragilidade e cansaço. Na representação contemporânea, em algumas poéticas, a figura humana está recortada e
fora do centro da composição. O homem deixa de ser o centro e a medida de todas as coisas, resta-lhe somente
observar atônito o cotidiano para dar o seu próximo e indeciso passo carregado de obscuridade e melancolia,
mas, paradoxalmente, com certa dose de ironia.
A dúvida e o ceticismo pairam sobre qualquer tentativa de imposição de “grandes verdades”, resta à autoconsciência perceber que a inocência se perde e que será necessário “ir além”, não se prendendo às teorias e às
descobertas científicas. É necessária uma aceitação, sem restrições, às manifestações culturais de outros setores
da sociedade. Essa atitude torna-se contrária ao modernismo que propõe uma elite “avant gard” versus uma
cultura de massa, sem possibilidades de pontos de contato. Os procedimentos de repetição, seriação, citação e
acumulação mimetizam e criticam a racionalidade técnica, utilizando principalmente a memória do artista que
se refere às metáforas envoltas nos procedimentos, mas também a do espectador, responsável por decodificar as
memórias guardadas.
Desse modo, a estreita ligação entre arte e memória decorre de suas implicações narrativas, cognitivas e emotivas. Tal qual a história, a arte debate-se entre romper ou não com a memória. Contudo, as margens desse embate
apresentam-se tênues e subjetivas. Percebe-se que a memória utilizada em arte é a somatória da voluntária e
involuntária. E isso provoca grande diferencial. Se na história tenta-se apartar (sem muito sucesso) os valores
subjetivos da memória involuntária, na arte, a partir do século XX, principalmente, após as vanguardas históricas
e os fenômenos da modernidade, o uso da memória involuntária sobrepõe ao uso da memória cognitiva. A arte seria o revés da história? Não. Nenhum dos sistemas consegue livrar-se totalmente da interação entre as memórias.
E é essa nuance entre as memórias que transforma as relações entre história/memória/arte complexas e próximas.
Em síntese, tem-se que a memória, em seus efeitos de reconstrução do tempo, é convocada e interrogada pelo
historiador, e não exatamente o passado. Nesse contexto, o tempo passado só existe como fato de memória: seus
aspectos fundantes são retirados por intermédio de um processo de decantação sempre atualizado em presente
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Referências
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BARBOSA, Sylvia Werneck Quartim. De Dentro para Fora: A Memória do Local no Mundo Global. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da
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KERN, Maria Lúcia Bastos. “Tradição Clássica e Artes Plásticas”. In: FÉLIX, Loiva Otero e GOETTEMS,
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LYOTARD, J. F. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
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O fim da Arte. www.cfh.ufsc.br. Acesso em 05 abr. 2007.
MUNARI, Luiz Américo de Souza. Reflexões e Exercícios sobre a História da Arte, São Paulo: FAU USP, 2008
(Livre-Docência).
VALÉRY, Paul. “La Crise de L´Esprit”. In: Nouvelle Revue Française. 71, aout, 1919, p. 325-326.
Recebido em 17 de Novembro de 2010.
Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2011
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.
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Performance “Carimbada”:
Encontre estes e vários outros
artigos em nossa edição online.
Uma proposta poética de desterritorialização do corpo
feminino brasileiro em terras lusitanas.
The art and the sacred in the origin of the topology of the psychic
apparatus
Janaina Teles BARBOSA
Cientista Social e Artista Visual. Mestre em Design da Imagem pela Universidade do Porto-Portugal
Visite o site:
www.poeticasvisuais.com
Este trabalho constrói um discurso poético utilizando-se do corpo como uma expressão artística,
através da performance em espaços públicos, baseado nas experiÊncias conceituais do pesquisador,
assim como estudos artísticos, sociológicos e antropológicos na representação social que cerca a
vida cotidiana das mulheres brasileiras na sociedade Portuguesa.
Palavras-chave: corpo como uma expressão artística, vida cotidiana das mulheres brasileiras
This work builds up a poetic speech, using the body as an artistic expression, through the performance in public space, based on the conceptual experiences of the researcher, as well as artistic
studies, sociological and anthropological on the social representations that surround the daily life of
the Brazilian women in the Portuguese society.
Keywords: body as an artistic expression, daily life of brazilian women
Trabalhos
em
PV - Vol 2
Modernistas contra acadêmicos?
A pintura de Hugo Adami
La
mirada cinematográfica
generacional
Federico Fellini,
entre crítica e nostalgia
E
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muito mais...
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.
Este artigo partiu da minha tese de mestrado em Design da Imagem da Universidade do Porto em Portugal. O estudo tem como fito apresentar uma leitura criativa, através da performance corporal em espaços públicos, acerca
das representações sociais sobre a mulher brasileira construídas no cotidiano da sociedade portuguesa. O estudo
partiu da minha vivência na condição de mulher, de nacionalidade brasileira, artista, designer e pesquisadora,
compartilhando provisoriamente o cotidiano português durante dois anos.
Por meio de uma produção imagética conceitual, ou seja, uma produção artística, procurei construir um discurso
poético sobre a mulher brasileira e suas representações no imaginário português, para assim contribuir na compreensão acerca dos processos de produção dos estereótipos que estes corpos sofrem. Para isto participo de uma
“corpografia” que propõe uma desterritorialização do corpo feminino brasileiro ampliando olhares referencias
que vão além deste universo imaginado que interfere na vida quotidiana de muitas brasileiras que vivem em
Portugal.
Esta produção propõe a utilização das práticas experimentais e criativas como metodologia de pesquisa em áreas
do design e da comunicação, na tentativa de construir olhares mais críticos acerca da produção e consumo de
informações imagéticas na sociedade contemporânea, contribuindo assimpara uma quebra de fronteiras culturais
que geram preconceitos entre Brasil e Portugal, numa perspectiva de compreensão mais ampla acerca dos processos migratórios.
Muitos estudos revelam que dentre a diversidade de imigrantes estrangeiras, a mulher brasileira, na sociedade
européia, carrega muitos estereótipos, os quais interferem diariamente em suas vidas. Tais estereótipos estão relacionados ao fato de sua imagem estar vinculada a objeto sexual. As causas desse fato encontram-se em fatores
históricos e sociológicos que contribuem para a produção deste imaginário coletivo tanto na Europa como no
Brasil.
Entre os latino-americanos residentes em Portugal, o número de brasileiros é relevante, correspondendo a mais
de 90% entre estes imigrantes. Entre 1986 e 2003, o índice de brasileiros cresceu quase nove vezes, passando a
sua percentagem, no total dos estrangeiros regulares, de menos de 9% para aproximadamente 15%. O fenômeno
da migração brasileira em particular, é cada vez mais presente nos meios de comunicação e em debates políticos
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e acadêmicos. Em 2006, calculava-se que viviam em Portugal mais de 100 mil imigrantes brasileiros. Hoje, este
número estar bem mais elevado. (MALHEIROS, 2007)
Os processos migratórios sempre causou conflitos na história da humanidade, na medida em que dois povos,
apesar das ligações históricas, entram em contato, pois as diferenças culturais, muitas vezes, causam estranhamentos e preconceitos. Outro fenômeno que é gerado nesse processo é a produção de estereótipos sobre o outro,
especialmente com relação a mulher.
No caso do Brasil vale remeter-se ao estudo sobre o processo de miscigenação, em que explica-se a mistura de
raças de seu povo. Ao evidenciar o “mito da democracia racial” existente no país, Gilberto Freyre (1992), em
Casa-Grande e Senzala, aborda a influência do escravo na vida sexual e familiar brasileira, através de uma visão
erotizada das escravas. Esse estereótipo foi difundido, sempre relacionando a mulata a sabores exóticos. Assim,
segundo Piscitelli (1996), o que seria atualmente reconhecido como intrínseco à mulata brasileira é sua alegria,
sensualidade, juventude, afetividade, submissão, docilidade, enorme disposição para o sexo e uma certa passividade. Atualmente este processo é intensificado por fatores sociais, como as fortes diferenças econômicas entre as
pessoas, que contribui para que o Brasil apresente um número elevado de turismo sexual.
Diante disto este estudo partiu da premissa de que todo corpo carrega identidades que o mapeia, construindo
referências, memórias e simbologias. No embate com outros universos referenciais, estas identidades afloram,
ganham vida e fortificam-se. Neste processo de tomada de consciência de si mesmos, descobrem-se como se é
visto pelo outro, através dos chamados estereótipos que rotulam as pessoas.
A experiência da alteridade faz com que o ser humano perceba a si mesmo em suas particularidades, abrindo espaço para fortalecimentos de laços identitários. Esse processo pode parecer estável, resumindo-se na constatação
da diferença no processo de reconhecer-se no outro, mas seria apenas a primeira etapa de um processo dialógico,
bastante dinâmico e rico quando há uma troca em que acontece tanto um fortalecimento das identidades, como
uma transformação, causada por influências mútuas. É nesse contexto que percebemos que somos constituídos
de várias identidades em constante mutação e não somente uma. Percebe-se cada vez mais na contemporaneidade um intenso trânsito de informações que promove uma quebra de fronteiras identitárias antes delimitadas por
estados-nações. A sociedade da informação juntamente com fenômeno das migrações traz um novo panorama
nos processos de trocas culturais na contemporaneidade. Apesar disso não podemos perder de vista o forte jogo
de forças ditado pelo poder econômico, que ainda se configura entre blocos de países de todo o mundo e influencia fortemente as trocas culturais.
Neste universo, a imagem simbólica da mulher brasileira em Portugal apresenta-se de uma maneira ainda mais
forte. Quando falamos deste grupo social, o fator sexualidade é apontado como forte integrante das representações sociais, constatamos então uma íntima relação entre as dimensões de gênero e nacionalidade. Nas entrevistas realizadas neste trabalho, revelou-se o constante incômodo das mulheres com a quotidiana associação de
sua nacionalidade a imagens de mulheres sensuais, que sabem sambar e extremamente vulneráveis ao sexo.Estas
imagens são construídas também pelo Brasil como veículo para a construção de uma identidade nacional mercantilizada. Como um negócio, o turismo produz e reproduz estereótipos exotizantes, vendendo dentre imagens
culturais e paisagens, corpos de morenas semi nuas.
Neste processo, corpos mapeados são constantemente desmapeados e novas corpografias são construídas. No
caso específico deste estudo, faço uma tentativa de sair das ruas principais deste grande mapa corporal feminino
brasileiro, e desbravar ruelas, descobrindo atalhos que possam oferecer uma compreensão mais ampla e sensível
destes processos. Desta forma flanei no cotidiano urbano para realizar a parte prática do projeto,dialogando
constantemente com três dimensões de conhecimento que cruzaram-se a todo instante, ou seja, quando coloco-me ao mesmo tempo como pesquisadora ou observadora, pesquisada ou sujeito agente da pesquisa, e criadora
ou artista.
A arte aqui encontra-se como canal de expressão e comunicação, através da qual tento construir este discurso poético através da imagem, objetivando a abertura de brechas na realidade que suscitem questionamentos ou pontos
de partidas para discussões e pensamentos sobre a realidade que me cerca. Desta forma o aspecto contestatório
da ação artística é bastante relevante aqui e nela o papel do artista.
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O crítico de arte Nicolas Bourriaud (1998) aponta atualmente para as “utopias de aproximação”, que são práticas
artísticas que se estendem num vasto território de experimentações sociais e que pretendem agir, gerando novas
percepções e novas relações de afeto, num mundo regulado pela divisão do trabalho, ultra-especialização e pelo
isolamento individual. Para o filósofo francês, a arte contemporânea desenvolve um projeto político, esforçando-se em investigar e problematizar a esfera relacional.
Dentro do campo simbólico que se desenrola o tecido urbano, constituído por percursos humanos programados,
segundo Debord (1997), o habitus artístico pode intervir e talvez invocar sensibilidades adormecidas. É quando
uma frágil barreira pode ser quebrada e num piscar de olhos ou num suspiro, a arte virar vida. Ela não produz responsáveis ou salvadores, apenas suscita aos sujeitos um retorno a uma memória artista ancestral de um tempo em
que indivíduo e arte não se dividiam, quando não existiam fronteiras e tudo fazia parte de uma mesma dimensão.
É em busca disso que trabalho com o “corpo des-mapeado”, um corpo mutante e criativo com sentidos mais
aguçados a tudo que o cerca. Ele tenta fugir da fragmentação que lhe é prometida a todo instante. Um corpo
que estranha-se e brinca com suas vestimentas, usando-as quando acha que é necessário, como também, ao
transmutar-se, deixa-as no caminho para serem vestidas por outros corpos. Este corpo tenta encontrar atalhos
desviando-se dos caminhos ditos principais, mas muitas vezes utiliza-os como ferramenta afim de chegar a algum
lugar onde possa dialogar, vivenciar e inventar novas rotas.
Foi nesta perspectiva que surgi a performance “Carimbada”, realizada no Brasil em agosto de 2010, na cidade de
Fortaleza, e em seguida em Portugal, em maio de 2011 na cidade do Porto.
A ação consistiu em andar por um espaço público e aos poucos auto carimbar-me com o nome “MULHER
BRASILEIRA”. Depois de marcar todo o meu corpo, olhando para um espelho, retiro da bolsa um batom vermelho que passo exacerbadamente nos lábios e nas partes íntimas. O carimbo, objeto que taxa e marca, foi utilizado
como simbologia dos processos de construção de estereótipos dos corpos femininos. O batom vermelho traz
uma simbologia de beleza, sensualidade, mas também de dor. O espelho participa da obra não como objeto que
intensifica a formação do ego deste modelo de mulher construído socialmente, mas como testemunha de um auto
reconhecimento desta mulher marcada e estereotipada, abrindo possibilidades de processos de resignificação de
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.
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identidades.
que só a ação já falava muito, as palavras não faziam parte da obra, meu corpo e o que eu fazia já trazia e oferecia
Na primeira versão ocorrida no Brasil ocorreu interação com público que ocupava aquele mesmo espaço.
Iniciei a ação agindo como uma simples participante do evento e, conversando com amigos, comecei a marcar o
Estas questões tinham a intenção de suscitar reflexões que contribuíssem para o esclarecimento de alguns
meu próprio corpo. Logo depois despedi-me daquele grupo e fui percorrer a praça parando em alguns momentos
conceitos. A primeira pergunta intentou para significados acerca do estereotipo da mulher brasileira. Seria o es-
para marcar mais uma área do meu corpo. Sentei no chão, no meio da praça, e marquei todas as minhas pernas
tereotipo uma máscara? Uma máscara que pode ser manipulada, transformada? Ou uma máscara que esconde as
e braços, pedindo em seguida às pessoas que me carimbassem em lugares que eu não podia ver.Após esta etapa,
particularidades de cada mulher brasileira que vive em Portugal?
levantei a roupa para carimbar as partes íntimas do meu corpo. Percebi que neste momento comecei a chamar
A segunda pergunta pretendia possibilitar a manipulação ou releitura da máscara criada por/para cada pessoa:
mais atenção do público, no entanto, continuei marcando minhas partes íntimas, como também interagi com
Estaria construindo minha própria imagem? Seria uma imagem diferente? Ou seria uma utilização da imagem já
homens que passavam por mim oferecendo-lhes o carimbo para que marcassem o meu corpo.
construída no imaginário coletivo da sociedade portuguesa?
A ação gerou vários tipos de reações, desde olhares desconfiados, até pessoas que parabenizaram o trabalho.
Com estas questões em mente, sentei ao lado de uma senhora, ao pedir para ajudar-me, ela perguntou porque
Um rapaz homossexual pediu que eu o carimbasse suas nádegas, talvez sentiu-se identificado pela ação. Uma
eu fazia aquilo, pois meu rosto estava ficando feio e que assim não conseguiria uma imagem bonita, mesmo as-
moça disse “é isso aí, mulher é só bunda, só carne”, parecia que ironizava, ao mesmo tempo que confirmava a
sim, atendeu ao meu pedido. Seu marido chegou e ele também muito simpático marcou as minhas costas e logo
atitude do rapaz. Outras mulheres
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um discurso.
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depois foram-se os dois.
pediram para ser marcadas com
Continuei aquele ritual sozinha sentada no banco na rua. De repente, um rapaz que tinha saído do meu lado
o carimbo e saíram dizendo “sou
e sentara-se no vaso de plantas ao lado, recusou-se em participar, mas trocou algumas palavras comigo. Ele
sim, muito brasileira”. Homens
comentou que eu não estava nada bonita e que um “sabãozinho e uma água resolveria isso”, sugerindo que eu ca-
também pediam para serem carim-
rimbasse somente os braços. Logo após a esse episódio, passei por um café e pedi ajuda para umas mulheres que
bados. Muitos pediram-me expli-
lá sentavam. Elas mostraram interesse em participar, uma delas escolheu com cuidado uma parte do meu corpo
cação para tudo aquilo, eu ficava
para marcar, as costas. Interagiram rindo. Uma jovem disse que não precisava construir uma imagem melhor, eu
calada na maioria das vezes, sabia
já era bonita.
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Prossegui com minha peregrinação e percebi que cada vez mais chamava atenção. As pessoas das lojas movimentavam seus corpos para matarem a curiosidade. Sentia que alterava o movimento normal da rua. Era um
corpo estranho naquele fluxo com movimentos previsíveis, contatos e objetivos. Havia muitos artistas de rua.
Interagi com suas estéticas.
Mais a frente, depois de cerca de quarenta minutos quando meu corpo já estava bastante marcado, parei no
meio da rua e lavei-me em publico, retirando todas aquelas marcas do meu corpo. Repentinamente, formou-se
um círculo com muitos transeuntes que ali pararam e ficaram a olhar-me. Eu era o alvo daqueles olhares curiosos.
Esperavam provavelmente que eu fizesse algo de espetacular e talvez pensavam que bateriam palmas depois
disso. Mas não fiz nada, só lavei-me, pus a água escura numa garrafa de vidro transparente e depois uma flor
branca. Este ato da performance simbolizava uma ação contra o processo de taxação que meu corpo juntamente
dos outros corpos femininos sofriam. A flor simbolizava vida e renovação quando pode ocorrer a recriação destes
estereótipos ou uma resignificação de identidades. Foi então que levantei-me, pus a garrafa na cabeça e comecei
a caminhar cuidadosamente e lentamente, fazendo todo o trajeto num constante jogo de equilíbrio.
Nesta performance assumi minha estranheza em terras lusitanas. Em Portugal sempre senti-me como um
corpo estranho e deslocado, tenho a sensação que sempre estou sendo observada, vigiada em espaços públicos.
Na performance colocava agora meu corpo estranho a serviço destes olhares. Eu era a agente, permitia agora que
me olhassem. Oferecia códigos, sinais de um discurso, uma idéia, ou talvez um grito, um alerta.
Nestas experimentações meu corpo apresenta-se como um território
que participa como elo de ligação, colocando-se como canal de comunicação com o meio, com o público, e com
os lugares que transito. Nos trabalhos
performáticos o habitus corporal, ou
como chamo aqui, o “corpo des-mapeado”, pode ser visto como capacidade geradora de práticas, disposição
adquirida socialmente, num processo
de construção e desconstrução, pode
conter uma parte de inventividade e
adaptabilidade, que permite uma coexistência entre aspectos de permanência, improvisação e transformação.
(BOURDIEU, 2002)
Desta forma, o corpo em diversas
esferas da vida humana passa por processos de objetivação e a arte é uma
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destas esferas. Numa óptica tradicional da estética artística, conceber o corpo como objeto de arte seria impossí-
indivíduos empreendedores tomarem o papel de realizadores para improvisar uma nova realidade.” (MCCOR-
vel, pois uma vez construída a obra de arte nunca mais é retocada, constituindo um exemplo de idealização deste
MICK, 2010, 52)
corpo. Aí ele é apenas o modelo, uma inspiração para um corpo ideal, intocável, único e místico. Nesta ótica o
corpo é oposto a obra de arte, pois está em constante metamorfose.
Na performance realizada no Porto, um senhor ficou muito curioso com o que estava acontecendo e parou um
instante o seu percurso, perguntando-me qual a minha motivação para aquele ato. Aconteceu um diálogo onde
Nas performances descritas acima essa capacidade de transformação e efemeridade do corpo humano são
foram colocadas impressões sobre a imagem da mulher brasileira. A conversa foi construída de maneira espon-
essências do processo criativo. Esta maneira de conceber o corpo dentro da arte proporciona uma quebra de
tânea e intuitiva. Apesar daquela ação ter uma certa justificativa, a intenção era envolver aquele senhor na ação,
fronteiras entre o corpo utilizado como objeto e este corpo inserido na própria vida quotidiana, relacionando-se
provocá-lo com perguntas. Para ele a imagem da mulher brasileira era boa e que não pode-se generalizar tudo,
com aspectos antropológicos.
como mostra o diálogo abaixo:
Na ótica antropológica podemos conceber que todas as formas de representar o corpo, para nós e sob o olhar
do outro, traduzem uma maneira de ser no mundo, como se o corpo não fosse nada sem o sujeito que o habita.
- Não seria uma imagem comercial?
Cuidar deste corpo não é tratá-lo como objeto, é afinal considerá-lo como sujeito de nossas representações e de
- Eu acho que todas as sociedades são reacionárias em princípio. A mudança é um processo.
nossos pensamentos. (JEUDY, 2002)
- É um processo rico. Leva muitos anos.
Neste processo, um aspecto interessante a colocar aqui é a fuga da morte deste corpo por meio da criação
artística. Na realidade quotidiana o corpo é um território imaginado dentro ou fora do seu território de referencias
- Há alguns anos atrás não a encontrei com uma garrafa na cabeça.
simbólicas. Dentro ou fora do Brasil, o corpo da mulher brasileira, por exemplo, é cercado de estigmas construí-
- Talvez seja a minha tataravó.
dos para satisfazer desejos humanos, sejam femininos ou masculinos. Jeudy (2002) coloca que a todo momento
- Então vens com uma família que tenta um equilíbrio. Gosto da palavra. Espero encontrá-la com
nossos corpos estão propensos a processos de objetivação. Na dimensão do amor, por exemplo, colocamo-nos
a serviço do outro que então é idealizado e utilizado para o prazer de ambos. Esses processos que geram ilusões
o equilíbrio.
de nossos próprios corpos, segundo o autor, são essenciais para dar sentido a eles e assim fugirem da constata-
- Acho que ainda não sou capaz.
ção material de suas existências, ou seja, da morte. Visto como corpos diferentes capazes de agirem diferentes,
- Mas as utopias também são dignas de orientação.
o corpo da mulher brasileira trazem a tona questões de gênero e sexualidade, sendo fruto de um mapeamento
cultural que envolve outras questões além da simples designação de serem diferentes, correndo o risco constante
- Sim, também acho. Elas nos levam a dar mais um passo.
de sofrerem a morte deste corpo vivo e dinâmico.
- Posso assegurar que sim.
Porém essa realidade ilusória pode muitas vezes ser desvendada, utilizada e manipulada, como também trans-
- Obrigada pela conversa.
formada. Esse princípio consagra a idéia de que nosso corpo nos pertence, isso ocorre na medida em que somos
- Adeus.
sujeitos do objeto que ele representa, o que faz persistir uma dúvida acerca da realidade (JEUDY, 2002). Isto
acontece neste trabalho com o processo criativo da performance, em que utilizo-me de meu corpo para questionar-me sobre essa realidade construída sobre mim mesma, gerando dúvidas sobre esta visualidade tratada como
real, na busca de novos sentidos e de novas rotas de fuga da morte de meu próprio corpo.
Agindo como a própria arte, o corpo apresenta-se como ato único, deixando-se de lado a objetivação, construindo assim um discurso diferente do textual. É como na dança em que, segundo Jeudy (2002), muitas vezes
ironiza-se com o peso das palavras ou o ato de interpretação, ao desenhar seu próprio discurso.
Nas ações performáticas meu corpo sofre dois deslocamentos. O primeiro acontece pelo fato ser mulher estrangeira e o segundo deslocamento no próprio ato artístico. No momento em que meu corpo foi deslocado ao
ser posto em espaços públicos, abrindo possibilidades diversas de diálogo, provoca também um deslocamento
no público. Aquele que até então vigiava, agora neste estado de ação criativa, é chamado para diálogo abrindo
possibilidades diversas de ações, falas, desabafos, impressões, dúvidas, questionamentos, angústias etc.
O público apresenta-se não como público tradicional com a função de assistir e aplaudir, como num espaço
no campo artístico de fruição, fechado e institucional. Ele é chamado para aquele “espetáculo” e convidado a
deslocar-se dentro da sua aparente normalidade quotidiana. A rua e tudo que ela oferece são colocadas sobre um
palco ilusório abrindo possibilidades diversas de desvios. “Todo o mundo é um palco, e é apenas um caso de
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As ações misturam-se aos movimentos urbanos na tentativa de expressar-se, de dizer algo e abrir espaços para
falas diversas, na construção coletiva de diálogos poéticos e criativos. Porém, na medida em que algo precisa
ser dito, muitas vezes isso adquire caráter de invasão, gera incômodo. Em “Trespass, história da arte urbana não
encomendada” (2010) autores falam que na arte de rua, quando uma propriedade é violada, o maior tabu que é
rompido é a dimensão psicológica do espaço. Os objetivos da utilização daqueles espaços supostamente coletivos para a criação artística vão além das limitações que dizem o que é arte e o que não é, ou seja, afirmam-se no
próprio ato artístico que aqueles espaços e as pessoas que transitam nele fazem parte daquela arte. Neste percurso
em que ocorrem interações e incômodos, criam-se espaços emocionais que podem ser efêmeros, mas interfere de
alguma forma com aquele fluxo normativo. (MCCORMICK, 2010)
De acordo com a análise de Laura Mulvey (1983), quando discute as relações e significados no cinema narrativo e o lugar da imagem da mulher, existem três olhares associados com o cinema: o da câmara que registra
o acontecimento pró-fílmico, o da platéia, quando assiste ao produto final, e aquele dos personagens dentro da
ilusão da tela. As convenções do filme narrativo rejeitam os dois primeiros, subordinando-os ao terceiro, com o
objetivo consciente de eliminar sempre a presença da câmara intrusa e impedir uma consciência distanciada da
platéia.
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Segundo a autora esta interação complexa de olhares é específica ao cinema, mas ela propõe alternativas de
cada vez maior entre as pessoas de diferentes espaços no mundo, tem perturbado o caráter aparentemente “esta-
quebra desta ilusão. O primeiro golpe é libertar o olhar da câmara em direção à sua materialidade no tempo e no
belecido” de muitas populações e culturas. Em vez de uma mistura o que ocorre neste processo é uma volta as
espaço, e o olhar da platéia em direção á dialética, um afastamento apaixonado. Isto destrói o prazer do especta-
especificidades culturais que recorre a um passado histórico. Porém, segundo Hall (2000), este processo acontece
dor e ilumina o fato do quanto o cinema dependeu dos mecanismos voyeuristas ativo\passivo. (MULVEY, 1983).
na busca não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. “Têm a ver não tanto com as questões
Algo parecido acontece na ação performativa ao lidar com um público que até então encontra-se desavisado,
“quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”,
pois ela invadi a materialidade da realidade social, encontra poética nesta própria materialidade e propõe diálo-
“como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar
gos e construções alternativas com este público.
a nós próprios”.” (HALL, 2000, p.109) Isso tem a ver com uma negociação com a tradição na invenção de novas
rotas, e não uma suposta volta as raízes. Porém neste diálogo persiste uma carga ficcional na formação de novas
Apesar de lidar com o acaso e a espontaneidade como elementos essenciais no processo criativo, no trabalho
identidades.
“Carimbada” certos aspectos precisaram ser programados, como a escolha do espaço. Na teoria da ´Dèrive`,
Todas estas questões foram abordadas no texto corporal da performance “Carimbada”. Na primeira versão,
Debord (1958) afirma que as cidades são sitiadas e os percursos das pessoas são programados através de pon-
realizada no Brasil (p.26), traz uma constatação da problemática através de um reconhecimento territorial do
tos fixos que impedem muitas vezes livres fluxos entre seus espaços. Desta forma, segundo ele, a rua pode ser
meu próprio corpo. Este, depois de vivenciar uma realidade cultural diversa durante aproximadamente um ano,
mapeada e a ´Dèrive` é realizada dentro do domínio das variações psicogeográficas através do cálculo de pos-
volta novamente a sua “origem”, o Brasil, agora com uma identidade negociada, portanto diversa. Posso dizer
sibilidades. Nesta perspectiva, em “Carimbada”, escolhi uma rua comercial onde supostamente os olhares das
que aconteceu nesta fase o que Hall (2000) chama de sutura, em que ocorre um diálogo entre as identidades,
pessoas que por ali passam são guiados por objetivos comerciais. Esta suposição foi relacionada com o fato da
verificando-se a consciência de mim mesma envolvida em estruturas maiores. É então que o meu corpo expressa-
manipulação da imagem da mulher brasileira, a qual é vendida e comprada como produto cultural.
-se no ato de auto-rotular-me em espaço público ao marcar-me e fazer-me marcar inteira com o título “Mulher
Um outro aspecto característico e implícito deste trabalho é a questão de identidade. Pensar neste conceito
Brasileira”, utilizando-me da expressão artística para ironizar com as próprias representações que são impostas a
relaciona-se diretamente com o deslocamento sofrido por mim, do Brasil, meu país de origem, para Portugal.
mim. Ao brincar com o ato de representar e ser representada, talvez a performance remete à questões colocadas
No encontro com o outro abriram-se possibilidades de pensar como sou vista por outrem e como vejo-me a mim
por Hall (2000) neste constante processo de negociação.
mesma. É no diálogo destes dois campos simbólicos que este trabalho nasceu e desenvolveu-se.
Enfim, tais experiências criativas podem ser comparadas um pouco ao que Butler (2010) chama de subversão
Quando pensamos em identidade, corremos muitas vezes o risco de pensá-la como algo fechado, como uma
da identidade, que acontecem no interior das práticas de significação reguladoras. As práticas artísticas podem
caixa embalada que contém uma certa quantidade de símbolos que identificam certo grupo social em um territó-
adquirir este papel de subversão, quebra e deslocamento. “Assim como as superfícies corporais são impostas
rio geográfico específico. Pensar identidade desta forma é perder de vista os aparatos históricos que o sustentam.
como o natural, elas podem tornar-se o lugar de uma performance dissonante e desnaturalizada, que revela o
Esta idéia emerge no interior de um jogo de poderes que marcam a diferença e a exclusão, e é sustentada por
status performativo do próprio natural.” (Butler, 2010, 210)
Estados com diversos objetivos, como por exemplo: assegurar uma suposta essência cultural ou fazer-se como
produto cultural rentável economicamente. (HALL, 2000)
Posso dizer que estas ações performáticas foram concebidos não como obras de arte inovadoras, mas como
experiências, trabalhos experimentais, ações criativas e intervenções artísticas, inspiradas no que eu sinto e penso
Como já referido, existe no imaginário português representações simbólicas sobre o que é Brasil e sobre o
sobre a essência da arte. Uma arte que não dependa dos espaços institucionais mas que utilize-se deles apenas
que é a mulher brasileira. Existe então uma imagem fictícia que é vendida e comprada acerca da mulher brasi-
como mais uma ferramenta, que não procure gênios mas que dissemine sementes, que ajude o ser humano a
leira como a mulata, simpática, que sabe sambar e que é boa para o sexo. É mais um produto cultural mediático
repensar a sociedade e transformá-la. Não falo de uma arte política, mas de uma política e de todas as esferas da
bastante rentável que esconde as tramas de poder entre seres humanos, entre povos e entre sexos. Esta imagem
vida que fossem a própria arte.
estática influencia fortemente no tecido social, configurando-se novas identidades numa costura realizada pelas
próprias agentes.
Na contemporaneidade a arte contemporânea propõe-se a modelar mais que representar, pretende inserir-se e
agir dentro do tecido social mais do que inspirar-se nele. Desse ponto de vista, a obra de arte constitui-se como
um interstício social, um espaço de relações humanas que, ao integrar-se mais ou menos harmoniosa e aberta-
O conceito de processos de “identificação”, remete à noção de identidades como reconhecimento do sujeito
mente no sistema global, sugere outras possibilidades de intercâmbio do que aqueles vigentes nesse sistema.
de características que são partilhadas ou não com outros grupos ou pessoas. É como algo em construção dentro
Dessa forma, a tarefa da arte contemporânea no campo do intercâmbio das representações é criar espaços livres,
de um processo em constante transformação. Segundo Hall, nesta perspectiva, identidades são pontos de ape-
propor temporalidades, cujo ritmo atravesse aqueles que organizam a vida cotidiana; favorecer relacionamentos
go temporário às posições de sujeitos que as práticas discursivas constroem para estes sujeitos, ou seja, o que
interpessoais diferentes daqueles que nos impõem a sociedade da comunicação.
acontece é uma negociação com suas posições ocasionando o que ele chama de pontos de sutura. (HALL, 2000).
Acredito que socialmente estes questionamentos colocados neste estudo podemalargar o campo de atuação
Nesta perspectiva as entrevistas feitas com mulheres brasileiras residentes em Portugal demonstraram o quanto
das mulheres na luta pelos seus direitos na sociedade, contribuindo para a discussão sobre os fluxos migratórios
são modeláveis suas identidades, ponto abordado na leitura corporal da performance deste trabalho.
femininos e suas implicações, ou particularmente da mulher brasileira; como tambémdeixando pistas na utili-
Nos processos de globalização, incluindo o fenômeno da migração pós-colonial, em que ocorre um trânsito
76
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zação de ferramentas metodológicas que dialoguem dentro do campo da arte, do design e das ciências sociais.
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.
77
As regras do génio
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Notas sobre os quadros sociais da criatividade artística
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Grade about que social pictures with the artistic creative.
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DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo e Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Trad. bras. Estela
Catedrático da università de Roma, Itália
Este artigo parte de um tema básico e de uma hipótese: o tema é a idéia de que - sem nada contra o sistema
“competencias - capacidades - geniosidade” que faz um artista, quer dizer, a individualidade, subjetividade
do artista e sua criatividade, etc. - o mesmo artista pensa - age - cria numa sociedade que sofre o processo de
socialização, onde ele vivencia as instituições, a economia, a política, etc., onde ele estabelece relacionamentos
fortes e duradouros.
dos Santos Abreu. Rio de Janeiro-RJ: Contraponto, 1997.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas-SP: Papirus, 1993.
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Palavras chave: geniosidade, criatividade artística, Pierfranco Malizia
This paper starts from a basic theme and from an hypothesis: the theme is the idea that – without anything
against the system “competencies – capacities – geniality” that makes an artist, that means, the individuality,
subjectivity of the artist and his creativity etc. – the same artist thinks – acts – creates in a society that suffers a
process of socialization, where he lives the Institutions, the economy, politics etc., where he establishes strong
and durables relationships.
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, p. 103-131, 2000.
Keyqords: geniality, artistic criativity, Pierfranco Malizia
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rovavelmente, a característica mais significativa dos “criativos” consiste no ser capaz de assimilar
estímulos que frequentemente não concordam entre eles, e com base nisto, produzir “a novidade”. Esta
capacidade combina-se com a tendência a modificar profundamente o existente, esperando de poder,
antes ou depois, obter alguma coisa útil, que leve vantagem: tudo isto, de fato, comporta coragem e esforço não
indiferentes.
A criatividade é alguma coisa dificilmente descritível de forma completa, tanto para quem cria quanto para
quem quiser estudar as dinâmicas e as formas; é claro que isto vale também para um discurso como aquilo que
vamos tentar desenvolver nas (poucas) páginas seguintes, isto é, como o “ser – em - sociedade” dos artistas não
pode não entrar (provavelmente de forma mais substancial de quanto normalmente pensamos) no processo cria-
PONTES, Luciana. Mulheres brasileiras na mídia portuguesa. In Cadernos pagu 23, Campinas, pp.229-256,
julho-dezembro de 2004.
Recebido em 11 de Março de 2010.
78
P
“A criatividade é uma qualidade de definição não simples, que tem a ver com a energia, a inteligência, a agressividade, a ambição, a capacidade de pensar novos problemas e encontrar novas
soluções para problemas antigos, de mudar mentalmente de forma inovadora elementos já dados,
de simular rapidamente o resultado de cursos complexos de acção, de alcançar razoavelmente e
coerentemente objectivos estabelecidos, de sintetizar novas formas com base em elementos (informações) dados, etc. ” (Strassoldo, 2001; p. 94)
Aprovado para publicação em 15 de Setembro de 2011
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.
tivo, e influencia-lo de várias formas.
Vamos tentar, então, de delinear algumas pré-condições estruturais que podem fortemente influenciar (em
alguns casos, talvez determinar) a criatividade artística, porém, sem diminuir as capacidades individuais dos
artistas, isto é, o que podemos romanticamente definir o “génio” artístico, uma lógica absolutamente significativa
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011.
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e que outras ciências (por exemplo, a psicologia cognitiva, cfr. Gardner, 1991) deverão tentar de compreender e
A produção artística
explicar, talvez parcialmente, pela complexidade acima mencionada.
Este trabalho quer simplesmente descrever alguns quadros sociais da criatividade artística, sem ter pretensas
de exaustividade, com o único intento de reflectir ulteriormente sobre a relação “sociedade - actor social”.
Arte e sociedade
“A arte não está percebida (definida) como um problema social, como por exemplo o “desconforto juvenil”,
as relações industriais, a estratificação, a assistência sanitária, ou as dezenas de outros campos de investigação
dos sociólogos. Sobre as razões desta atitude podemos formular outras hipóteses – corolários. Primeiro, a arte,
apesar da sua evidente ubiquidade, é considerada pertencer à esfera do marginal, do supérfluo, do luxo, dos
estratos mais elevados, e portanto evanescentes, da “sobra - estrutura”. Segundo, considera-se que os problemas
eventuais da esfera artística não precisam ser compreendidos e explicados, e portanto solucionados, por meio
das ferramentas da sociologia. Esta atitude parece ser muito difusa entre os operadores de arte (Strassoldo, cit.
Para “arte” entendemos aqui os processos de produção e os produtos reconhecidos como tais (isto é, artísticos)
pela sociedade. O significado destes “produtos” deve ser compreendido no seu contexto de geração, bem como no
contexto da fruição; esta definição portanto compreende âmbitos artísticos fortemente diferenciados, tais como:
-as artes figurativas;
-a literatura;
-a musica;
-o cinema, o teatro, a dança etc.
Como evidencia Zolberg (cit.; cap. I), podemos constantemente encontrar duas concepções de arte que sempre
são fundamentais para a constituição do discurso “arte/sociedade” e que podemos sintetizar assim:
P. 16)”.
Esta citação, como a antecedente (proveniente por um volume que enfrenta exaustivamente as problemáticas
arte/sociedade), enfrenta uma longa serie de dificuldades conceituais e temáticas que esta oportunidade encontra
no debate sociológico. Provavelmente, hoje podemos enxergar uma inversão de tendência (testemunhada por
uma recente produção neste sentido), em particular no âmbito musical; esta inversão de tendência é devida, talvez, ao desabrochar da sociologia da cultura em todos seus componentes temáticos e processuais, em particular,
por quanto concerne os grandes meios de comunicação como “difusores” e/ou “produtores” de objectos cultu-
CONCEPÇÕESSIGNIFICADO PERTINÊNCIA
rais (Griswold, 1997) em diferentes âmbitos, a partir da escola de Birmingham até as mais recentes pesquisas
italianas (Morcellini, 2000), por fim, tentativas sistemáticas de grande interesse (Strassoldo, cit.; Zolberg, 1994;
Crane, 1997).
Porém, quais dificuldades podem continuar obstaculizando uma sociologia da arte? O problema de fundo está
provavelmente na substancial pluri – dimensionalidade da mesma arte (Gallino, 1993; pp. 38-41), e na conse-
EXÓGENA
Arte como produto
de uma genialidade
criativa, unicidade
do acto artístico.
Estética
História da arte
ENDÓGENA
Arte como processo
de criatividade“social”
e de “reconhecimento
social”
Sociologia
quente concentração sobre uma ou outra dimensão: por um lado, a perspectiva “genética”, centrada na produção
artística (tanto material quanto económica) e os factores determinantes no processo produtivo; pelo outro, a
dimensão sintáctica que privilegia a estrutura do discurso artístico e a determinação da apreciação social; ou,
além disto, a dimensão semântica que leva de forma semi – unívoca para a reflexão sobre a correspondência “formas de arte – tipologia de sociedade”, correspondência frequentemente extrema, e que de qualquer forma auto
explica-se, por fim, a dimensão pragmática que desenvolve principalmente o conceito de arte como “ferramenta
ideológica” (idem, p. 40), para hipostasiar uma tal ordem social ou para discuti-lo.
Isto pertence à pluri – dimensionalidade, que pode de fato assumir-se como complexidade substancial para
uma sociologia da arte; mas a arte não é exclusivamente um fenómeno complexo “difícil” de ser interpretado,
assim, talvez o problema de uma sociologia da arte está também no que König escrevia há alguns anos atrás:
“embora a maioria dos contributos e das pesquisas de sociologia da arte assumam o fato social “experiencia
artística” como ponto de partida ou centro da própria analise, isto acontece, digamos assim, intuitivamente:
isto é, considera-se obvio o fato social, sem se preocupar de circunscrevê-lo com precisão, de clarifica-lo ou
especifica-lo. É claro que por um tal caminho ingénuo nascem umas dificuldades, e que para superá-las acaba se
por explorar todos os sectores marginais de pesquisa.” (König, 1967; pg 31).
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É claro que o posicionamento sobre uma ou a outra concepção possibilita ou não a configuração de qualquer
Portanto, cada fase desta dinâmica processual deve ser adequadamente acompanhada e suportada em todos
discurso social ao redor da arte; aceitando a concepção “exógena” muitos tractos de interesse sociológico podem
os níveis, não sendo isto com certeza de fácil realização; pensamos, por exemplo, nas dificuldades e obstáculos
ser delineados, tais como:
não exclusivamente conservadores, mas também de interesse de status, de interesses particulares que podem se
a) a abordagem funcionalista, que sugere varias funções sociais da arte, a partir da função de “idealização”
interpor nas fases de “desenvolvimento” e “aceitação” das ideias criativas – inovadoras. Pensamos também nas
(sublimar os sentimentos) até aquela de “diversão” (ou loisir); além disso “quando considera-se a relação arte/
resistências (psicológicas, estruturais, de interesse) à mudança, individuais ou colectivas, reais ou instrumentais,
sociedade, é preciso ter em mente que a arte pode ter, ao mesmo tempo, uma função de re – envio para uma di-
que de fato irão obstaculizar as fases de “colectivização” e “adopção” das mesmas ideias; além disso, em termos
mensão diferente, outra, daquela social, como fonte constante de criatividade, inovação expressiva e contestação
de cultura organizacional, podemos afirmar que as ideias criativas – inovadoras (a não ser quer exista um habito
das ordens constituídos, e uma função celebrativa que também confirma os valores e as representações social-
tradicionalmente consolidado e que a criatividade seja colectivamente vivenciada como um valor) encontram-
mente partilhadas” (Crespi, 1996; pg. 184).
-se frequentemente “culturalmente recusadas”, enquanto “ameaçadoras” (realmente ou não) da ordem cultural
b) a abordagem estrutural, que considera todos os componentes da produção – fruição artística, o que mostra
uma notável possibilidade de diferentes momentos de estudo, por exemplo:
existente, embora não representem um risco para a sociedade.
A implantação e o desenvolvimento da “criatividade como valor e prática” nos sistemas sociais de forma
difusa representa assim uma dinâmica processual complexa, que diz respeito ao “sistema em si” (que refere-se
-os “artistas” (rol e status, subsistemas culturais, etc.);
globalmente ao sistema organizacional como sistema, onde cada alteração individual e/ou parcial produz uma
-o “mercado” (sistema pergunta/oferta, sistemas de produção, comercialização, venda etc.)
cadeia de alterações globais), à “cultura” (que refere-se à uma potencial alteração de valores, hábitos, tradições,
-o “publico” (consumo artístico, composição sócio – cultural, modalidades/lugares de fruição etc.);
etc., existentes, que, especialmente onde as culturas são fortes quanto ao seu “vivenciado” e compartilhamento,
-as “politicas publicas” (intervenções estaduais na arte, arte e escola, etc.);
irá precisar de um adequado processo de inculturação, ao menos temporalmente, para realizar-se de forma com-
-o “status social” da arte (bipartição “artes maiores/artes minores”, valores sociais de reconheci-
pleta), ao “sistema de decisão” (que comporta uma lógica intencional na actividade de decisão de criar continua-
mento/apreciação, etc.);
-a “industria cultural”.
mente e incondicionadamente suporte para a criatividade, que com certeza não falta de obstáculos e que sempre
precisa de recursos, também, como já consideramos, com certeza não é a – conflitual).
A “criatividade”
Sobre a criatividade artística
A “criatividade” pode ser definida como um valor cultural, e as culturas não podem não considerar a necessidade de estruturar-se com modalidades e filosofias “que encorajem” a criatividade, a inovação; porém, a criatividade, quando favorecida, constitui uma dinâmica específica que, para ser completamente realizada, deverá
A criatividade não pode ser reduzida apenas ao “flash” do génio, mas consiste, também, na resultante de vários
factores:
excluir comportamentos “ante - criativos” como as formas de controlo social, as especializações vivenciadas
a) factores de contexto sócio – cultural;
rigidamente e elevadas a barreiras sociais, o favorecer formalmente as novas ideias sem realiza-las efectivamen-
b) factores ligados aos “círculos sociais – artísticos”;
te, o seguir “sempre e de qualquer forma” as regras e tradições.
c) condicionamentos pelas tradições artísticas;
Esta dinâmica da criatividade pode assim ser evidenciada:
d) influencia da assim chamada “industria cultural”.
Antes de desenvolver brevemente estes pontos, devemos lembrar que esta teorização não diminui de alguma
forma a “capacidade individual” do génio, porém, acrescenta algumas conotações que derivam pelo simples fato
•Estímulos para a criatividade
•Desenvolvimento de ideias
•Aceitação e colectivização das ideias
• Adopção organizada das ideias e dos
relativos processos de mudança
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de cada génio nascer e actuar em uma sociedade, em uma cultura, em uma altura histórica etc.; vamos então
examinar os pontos acima elencados.
Factores de contexto sócio – cultural.
No desenvolvimento das teorias sociológicas, embora em diferentes momentos históricos – sociais e em “escolas de pensamento” distantes, podemos evidenciar dois momentos de elaboração teórica da assim chamada por
Durkheim “efervescência social” (1972), isto é, situações de contexto que, mais que outras, facilitam processos de
inovação, como a “anomia” de Merton (1992) e a “morfogenese” de Archer (1997). Segundo Merton “a anomia
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depende pela falta de integração entre a estrutura social, que define os status e os papéis dos sujeitos que agem, e
Becker (2004) insiste muito sobre a recíproca influencia entre os artistas (independente pela especifica arte
a estrutura cultural, que define os objectivos a ser alcançados pelos membros da sociedade, bem como as regras
praticada individualmente), enquanto comparticipantes de um “círculo artístico”: “ele começa pela interacção
a ser respeitadas para alcançar os objectivos. Acontece que as posições dos sujeitos que agem impeçam – lhe
de alcançar os objectivos indicados pela cultura como as melhores (por exemplo, segundo Merton, o objectivo
da riqueza e do sucesso na sociedade norte-americana) através dos meios indicados pelas normas institucionais.
Porém, quando as primeiras resultam mais importantes que as segundas, temos um comportamento de inovação.”
(Izzo, 1991; p. 291). Segundo Archer (1997) o conceito de “morfogenese” refere-se “aos processos que tendem
microscópica entre os participantes (submundos artísticos, n.d.r.), mudando-se gradualmente para modelos de
associação sempre mais amplos, que compreendem uma variedade de mundos artísticos … os mundos onde os
artistas trabalham existem como culturas mais ou menos institucionalizadas, que normalmente tem pouco a ver as
umas com as outras … Esta análise de subcultura apresenta as artes como elas próprias.” (Zolberg, cit.: p. 138).
Em outras palavras, Becker vê a criação artística como:
a elaborar ou mudar a forma, o estádio do sistema … ao contrário, o termo “morfostasi” refere-se aos processos
das trocas complexas entre o sistema e o ambiente, que tendem a conservar, a manter uma forma … de um sistema” (cit., p.190). “Morfogenese” significa, então, uma situação social complexa que produz transformações e
inovações, e que, por consequência, com um assim chamado “efeito domino”, cria uma realidade complexa onde
-resultante por praticas colectivas geradas nos submundos da arte, claramente sem excluir as qualidades individuais;
-processo influenciado por formas constantes e “intime” de interacção social, cultural em geral e
artística no especifico, entre os artistas que reconhecem-se no mesmo submundo.
o acto criativo possui, potencialmente, muitas possibilidades de se originar e desenvolver de forma completa.
Factores ligados aos “círculos sociais – artísticos”.
Além da noção de contexto em geral, devemos considerar a especifica influencia dos “mundos artísticos” e
dos “mercados artísticos” sobre o mesmo artista; na verdade, na nossa opinião não pode-se negar que as relações
“artistas - artista” (especialmente em subsistemas fechados, com uma forte interacção e com sistemas normativos
– valorais partilhados, isto é, verdadeiras sub – culturas) condicionem as escolhas e os percursos de cada actor,
bem como as pressões do mercado, e mais em geral, as lógicas de atribuição socioeconómicas de valor (latu sensu), nunca irão deixar indiferente o artista. Sintetizando, o processo de criação artística pode ser assim descrito:
Condicionamentos pelas tradições artísticas.
As tradições, cuja interessante etimologia oscila entre “entrega” e “ensino”, assim chamadas “memoria colectiva canonizada” (Jedlovski – Rampazi, 1991), podem ser definidas como “os modelos de crenças, costumes,
valores, comportamentos, conhecimentos e competências que são transmitidas de geração em geração, por meio
do processo de socialização” (Seymour-Smith, 1991, p. 411). Esta palavra vem depois ser utilizada para indicar tanto o produto quanto o processo (Cinese, 1996, p. 96) da produção cultural de transmissão/ensino típico
das mesmas tradições. As tradições constituem uma parte fundamental e um elemento distintivo da identidade
cultural (Di Cristofaro Longo, 1996, p. 96), do pertencimento, e constituem também um ponto de referência importante para a acção social em geral, em particular, suportando uma específica tipologia weberiana de “acção”,
aquela “conforme hábitos adquiridos e que viraram constitutivos do costume; a reacção aos estímulos habituais
em parte absolutamente limitativos; a maioria das acções da vida quotidiana é ditada pelo sentido das tradições.”
CONTEXTO
(Morra, 1994, p. 96). Sendo elementos distintivos da cultura, as tradições tomam valores endógenos (de auto
reconhecimento) e também exógenos (de identificação) para os grupos sociais que referem-se à estes valores.
O sistema das tradições pode ser interpretado como uma verdadeira instituição social, no sentido de “forma
REDES DE INTEGRAÇÃO
MICRO
(mundos artísticos)
ARTISTA
(personalidade, status)
REDES DE INTEGRAÇÃO
MESO
(mercados artísticos)
de crença de acção e de conduta reconhecida, estabelecida e praticada estavelmente” bem como no sentido de
“práticas consolidadas, formas estabelecidas de proceder, características de uma actividade de grupo” (Gallino,
cit., p. 388).
O sistema total das tradições, respeito à uma ideia de continuum cultura – subculturas (locais, profissionais,
de genro etc.) pode depois ser dividido em grandes e pequenas tradições (Seymour-Smith, cit., p. 203), isto é, a
complementaridade, a coexistência, entre
PRODUTO
a) traços ligados com especificas comunidades, participantes de um sistema social mais amplo, traços mais
difundidos, gerais ou comuns;
b) divisões existentes entre culturas oficiais e culturas folk (idem, p. 189); coexistência e complementaridade
que viram substanciais em uma continuidade de reinterpretações, frequentemente constituídas por descobertas,
reavaliações, esquecimentos.
As tradições podem ter um valor mais conservador ou de conservação (Parsone, 1965), isto é, podem ser um
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Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011.
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veículo para as inovações e as mudanças, bem como fornecer um suporte para processos de mudança social não
Influencia da assim chamada “indústria cultural”.
alienados/alienantes: a assim chamada “referência às tradições” pode ter o duplo significado de:
a) entrincheiramento ao passado, de forma total e absolutamente não elástica, preliminar e dominante, contra
Quais são as lógicas, os mecanismos, os actores da industria cultural? Podemos fazer uma hipótese de modelo
explicativo (embora bastante geral) sobre o que acontece hoje, em uma situação caracterizada por fenomenolo-
tudo que apareça (o seja percebido) novo
b) conservar uma especificidade cultural que facilite, em lugar de contrastar, cada input interno/externo de
mudança e consiga homogeneizar seus efeitos com os próprios específicos traços culturais.
gias incertas, onde alguns “objectos” (Griswold, 1997, pp. 26-29) fazem carreira e, sendo “funcionais”, viram
“culturais” nas suas esferas de referência, ou, em uma geral “concepção do mundo”. O assim chamado “modelo
Portanto, onde as tradições artísticas resultam “pesadas”, isto é, influenciam uma criatividade principalmente
de Hirsch” (Griswold, 1997, pp. 102-108; Sciolla, 2002, pp. 216,217, e obviamente Hirsch, 1972) parece colectar
“problem solver”, a criatividade artística em geral será certamente e discretamente condicionada, e as formas
muito consenso. “Hirsch realizou um esquema das relações entre os diferentes subsistemas existentes no sistema,
“problem finder” que poderão manifestar-se serão limitadamente praticadas pelos outsiders (Becker, 1991).
por ele mesmo definido sistema da indústria cultural, que descreve o conjunto de organizações que produzem
Ainda Zolberg (cit.; cap. IV), reflectindo dobre diferentes pesquisas no âmbito da produção artística, faz
artigos culturais de massa, como discos, livros, programas da televisão e da rádio. Neste esquema, os media re-
uma hipótese de dois ideal tipos weberianos de artistas, diferentes quanto à abordagem ao problema. Segundo
presentem um subsistema entre os outros. A organização “de gestão”, por exemplo, para alcançar os mass media
esta hipótese, podemos distinguir artistas “problem solver” e “problem finder”: os primeiros prestam atenção à
fornece informações sobre o produto (filtro 2). Estas notícias são utilizadas pelo sistema institucional nos media
produção artística existente, individuando diferentes modalidades de expressão; os segundos, investigam prin-
(gatekeepers mediais, como disc-jockey, apresentadores de talk-show, revisores de livros e filmes, etc.). Neste
cipalmente novas problemáticas e/ou necessidades artísticas. Ambas as tipologias podem, de qualquer forma,
espaço de intermediação surgem possibilidades de relações pouco transparentes quando não de corrupção. O
trabalhar segundo lógicas mais tradicionais ou inovadoras. Estes “ideal-tipos” podem ser assim representados,
público conhece o novo produto através dos media. Temos, por fim, dois tipos de feedback: o primeiro vem dos
por exemplo, no âmbito das artes visuais:
medias, o segundo dos consumidores, mensurado pelas vendas de bilhetes, discos, livros, etc.” (Sciolla, 2002,
p. 216).
O modelo pode ser assim configurado:
ABORDAGEM
Filtro 1
PROBLEM FINDER
Criação de “arte nova” (es: Duchamp)
PROBLEM SOLVER
Variantes de “arte nova” (es: Wharol)
“INOVAÇÃO”
Filtro 2
Filtro 3
Re – descoberta criativa com
novos significados (es:Picasso)
Seguidores da tradição
(es: os artistas figurativos)
SUBSISTEMA
TÉCNICO
(criadores)
SUBSISTEMA DE GESTÃO
(organizações)
“TRADIÇÃO”
SUBSISTEMA
INSTITUCIONAL
(media)
CONSUMO
(sociedade)
feedback
A figura representa a configuração tradicional do modelo; porém, sendo um “modelo”, não deve ser utilizado
PROBLEM FINDER
Criação de “arte nova” (es: Bossa Nova)
Re – descoberta criativa com novos significados (es:Moacyr Luz)
PROBLEM SOLVER
Variantes de “arte nova” (es: Seu Jorge)
Seguidores da tradição
(es: Paulinho da Viola)
de forma rígida, mas sim como principalmente indicador de um processo complexo. Assistimos hoje por meio e
causa das redes, a já conhecidas alterações deste andamento processual; os clássicos exemplos são aqueles criativos (em particular, das artes visuais, literatura e musica) que entram directamente, através da Web, no sistema
dos media, propondo suas criações e quase “impondo-a” para o publico sem os tradicionais filtros de subsistema;
nos casos de sucesso, estes criativos fazem parte do percurso na hipótese de Hirsch, embora com um andamento
parcialmente diferenciado que pode ser assim configurado:
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I° CONSUMO
(sociedade “em rede)”
SUBSISTEMA
COMUNICACIONAL (web)
Referências
Archer M. (1997), La morfologenesi della società, Milano, Franco Angeli
Becker H. (1991), Outsiders, Torino, Abele
Filtro 1
Becker H. (2004), I mondi dell’arte, Bologna, Il Mulino
Filtro 2
Bourdieu P. (1980), Questions de sociologie, Paris, Minuit
SUBSISTEMA
TÉCNICO
(criadores)
SUBSISTEMA
INSTITUCIONAL
(media)
SUBSISTEMA DE GESTÃO
(organizações)
CONSUMO
(sociedade)
Cirese A.M. (1996), Cultura egemonica e culture subalterne, Palermo, Palumba
Crane D. (1997), La produzione culturale, Bologna, Il Mulino
Crespi F. (1996), Manuale di sociologia della cultura, Bari, Laterza
feedback
Di Cristofaro Longo G. (1996), Identità e cultura, Roma, Studium
Durkheim E. (1972), La scienza sociale e l’azione, Milano, Il Saggiatore
Gallino L. (1993), Dizionario di sociologia, Torino, UTET
Este modelo, como nos lembra Griswold, nasceu para os “produtos culturais de massa tangíveis” e pode ser
aplicado, com as necessárias/oportunas modificas, para qualquer sector da indústria cultural.
Uma reflexão sobre o sistema da industria cultural e da sua influencia sobre os artistas e/ou aspirantes a
virar artistas, pode ser útil, quando enquadrada no complexo discurso de Bourdieu (1980) segundo o qual “a
macroestrutura nas formas cristalizadas do Estado, do sistema de domínio social e do diferente acesso dos membros aos bens de valor, material ou simbólico, constitui uma presença incumbente” (Zolberg, cit.; p. 138); para
compreender de forma completa a produção artística, não pode-se não considerar “a totalidade das relações (as
objectivas e as determinadas na forma de relação) entre o artista e os artistas, e, além destes, a totalidade dos
actores comprometidos na produção do trabalho artístico, ou, ao menos, do valor social do trabalho … o que as
Gardiner H. (1991), Formae Mentis, Milano, Feltrinelli
Hirsch P.M. (1972), Processing fods and fashion, in Annual Journal of Sociology, 77
Izzo A. (1991), Storia del pensiero sociologico, Bologna, Il Mulino
Jedlowski P. – Ramazzi M.(1991), (a cura di), Il senso del passato, Milano, Franco Angeli
König R. (1967) (a cura di), Sociologia, Milano, Feltrinelli
Malizia P. (2007),Configurazioni,Milano,Franco Angeli
pessoas chamam de criação é o conjunto de um habito e de uma tal posição (status) que pode ser já construído
Merton R.K. (1992), Teoria e struttura sociale, Bologna, Il Mulino
ou possível na divisão do trabalho da produção cultural” (Bordieu, cit.; pp. 208-212).
Morcellini M. (2000) (a cura di), Il Medioevo, Roma, Carocci
Conclusões
Morra G. (1994), Propedeutica sociologica, Bologna, Monduzi
Parsone T. (1965), Il sistema sociale, Milano, Comunità
Podemos concluir como tínhamos começado, esperando que quanto argumentado sinteticamente neste trabalho possa ter fornecido uma base para a tese de fundo, isto é, que também a criatividade artística (alguma
coisa pensada como o “agir na sociedade”) não possa identificar-se somente na capacidade e/ou performance
individuais (o “génio artístico”), que de qualquer forma não devem ser excluídas ou subavaliadas, mas possa
ser pesquisada também nos quadros sociais “ocultados” ou “evidentes” que orientam e influenciam os artistas,
açores sociais “imersos” (como todos) na sociedade, e portanto, que pertencem aos sistemas de interacção bem
como de relação.
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Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011.
Sciolla L. (2002), Sociologia dei processi culturali, Bologna, Il Mulino
Seymour-Smith C. (1991), Dizionario di antropologia, Firenze, Sansoni
Strassoldo R. (2001), Forma e funzione, Udine, Forum
Zolberg V. (1994), Sociologia dell’arte, Bologna, Il Mulino
Recebido em 15 de Setembro de 2010.
Aprovado para publicação em 18 de Setembro de 2011
Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011.
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