Sumário/Editorial/Destaque
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Sumário/Editorial/Destaque
Revista do Portal das Poéticas Visuais Um nordestino a cavalo Marcos oliveira 2005 Acrílica sobre tela 1m x 80 cm Acervo de Artes Visuais da Faac-Bauru Revista do Portal das Poéticas Visuais Coordenação Técnico-Científica Núcleo de Pesquisa em Multimeios Mídia Press UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” Vice-Reitor em exercício Julio Cezar Durigan Pró-reitora de Pós-Graduação Marilza Vieira Cunha Rudge Diretor FAAC Roberto Deganutti Vice - Diretor Nilson Guirardello Editor Assistente/Projeto Gráfico Editorial Felipe Oliveira Cavalieri Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil Webdesign Lucas Trentim Navarro de Almeida Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil Edição e preparo de originais/Tradutor das versões impressa e on-line: Ivan Abdo Aguilar Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil Edição de Imagens e Capa Milena Rosa Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil Conselho Científico: Diana Domingues Universidade de Brasília (UnB) - Brasília, Distrito Federal, Brasil Derrick de Kerckhove Universidade de Toronto (UofT) - Toronto, Ontário Canadá Massimo de Felice Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil Poéticas Visuais/Impresso no Brasil ISSN: 2177-5745 versão impressa - ISSN: 2317-4935 versão on-line Classificação CAPES Qualis B3 em Artes/Núsica, B2 em Interdisciplinar e B5 em Ciências Sociais Aplicadas Editores Científicos Ricardo Nicola e Nelyse Salzedas Editora Executiva Rosa Maria Araújo Simões Comissão de Relações Internacionais Maria Luiza C. Costa e Rosa Maria Araújo Simões Coordenação Editorial: Maria Antonia Benutti, João Eduardo Hidalgo, Maria do Carmo Jampaulo Plácido Palhaci, Milton Koji Nakata, Dorival Rossi, Luiz Antonio Vasques Hellmeister, Roberto Deganutti, Adenil Alfeu Domingos, Sônia de Brito, Guiomar Biondo, Elaine Patrícia Grandini Serrano, Maria Luiza Calim de Carvalho Costa, Joedy Luciana Barros Marins Bamonte, Rosa Maria Araújo Simões, José Marcos Romão da Silva, Célia Maria Retz Godoy dos Santos, Solange Maria Bigal, Solange Maria Leão Gonçalves, Ricardo Nicola e Nelyse Apparecida Salzedas. João Carlos Correia Universidade da Beira do Interior - Covilhã, Portugal Andreia Célia Molfetta Universidad de Buenos Aires - Buenos Aires, Argentina Dana Lee Ryerson University - Toronto, Ontário, Canadá Emilio Garcia Fernandez Universidad Complutense de Madrid - Madrid, Espanha George Michael Klimis Panteion University - Atenas, Grécia Francisco Cabezuelo Lorenzo Universidad de San Pablo - Barcelona, Espanha Ana Mae Tavares Barbosa Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil Anamélia Bueno Buoro Centro Universitário Senac - Santo Amaro, São Paulo, Brasil Maria Cristina Castilho Costa Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil Irene Gilberto Simões Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil Mario Pireddu Università degli Studi Roma TRE - Roma, Itália Massimo Canevacci Università de Roma - La Sapienza - Roma, Itália Eduardo Peñuela Canizal Universidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil Antonio Manuel dos Santos Silva Universidade Estadual Paulista (Unesp) - Bauru, São Paulo, Brasil Duda Penteado, Artista Plástico New Jersey City University - New Jersey City, NJ, EUA Elza Ajzenberg Museu de Arte Contemporânea (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil Edson Leite Universidade de São Paulo (EACH USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil Jesús González Requena Universidad Complutense de Madrid - Madrid, Espanha Genaro Talens Université de Genève (UNIGE) - Geneva, Suíça Julio Pérez Perucha Presidente de La Asociación Española de Historiadores del Cine, Madrid - Madrid, Espanha S umário EDITORIAL P. 9 Voume 2 N° 2 2011 www.poeticasvisuais.com copywrite. Revista Poéticas Visuais, Faac/Unesp/2011 EM DESTAQUE LIÇÕES DO MODERNISMO:Francisco Rebolo Gonzales Lessons of the modernist of Francisco Rebolo Gonzales Elza AJZENBERG p. 11 Revista do Portal das Poéticas Visuais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Av. Luiz Edmundo Carrijo Coube n° 14-01 CEP 17033-360 Bauru - São Paulo - Brasil PABX (14) 3103-6068 E-mail: [email protected] As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Todo material incluído nesta revista tem autorização expressa dos autores ou de seus representantes legais. O Anjo de Dürer e os Herdeiros de Saturno The Angel of Dürer and the Heirs of Saturn Paulo Roberto Amaral Barbosa p. 22 Aprendendo a aprender - comece pela capa Learning to learn - Start by its cover. Sonia de BRITO & Guiomar Josefina BIONDO p. 30 Relações de texto e imagem em vídeo-música de Arnaldo Antunes Relationship of text and image in music video Arnaldo Antunes. Rivaldo Alfredo PACCOLA p. 36 A CONSTRUÇÃO DO HERÓI VITORIANO SOB A ÓTICA DO ENUNCIADOR DO SÉCULO XXI: IDEOLOGIA E SIMBOLOGIA The construction of victorian heroe by the enunciator vision from the XXI century: Ideology and simbology Maria Angélica Seabra Rodrigues MARTINS p. 41 Arte, Narrativas e Memórias Art, histories and memories Alecsandra Matias de OLIVEIRA p. 59 Performance “Carimbada”: Uma proposta poética de desterritorialização do corpo feminino brasileiro em terras lusitanas. Performance “Stamped” A proposal poetic deterritorialization of the bady brazilian women in lusitanian lands. Janaina Teles BARBOSA EDI TORI A L p. 67 As regras do génio Notas sobre os quadros sociais da criatividade artística The rules of genius Grade about que social pictures with the artistic creative. Pierfranco Malizia p. 79 O CORPUS DO PS PERFORMANCE ALÉM DA LINHA DO HORIZONTE The computer corpus Unbeleaveble performance. Niura Borges, Patricia Soso & Rosemary Brum p. 90 Portinari, leitor de Quixote Portinari is a Don Quixote reader Célia Navarro Flores p. 101 WE ARE YOU, US Latinization’s Next Wave: ESTABLISHING A “NEW” DIRECTION FOR 21st CENTURYLATINO ART IN THE USA: p. 136 NORMAS PARA COLABORADORES (The Ground-breaking Emergence of the We Are You Project’s WAY IT’S Art Exhibition) ARTIGOS A pós dois textos referentes a nossa revista e ao grupo que a compõem, cedo a minha voz a João Cabral de Melo Neto (Re- cife, 1929-Rio de Janeiro,1999) que em seu poema “Rios sem discurso” (Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1995) constrói, em uma sintaxe o dire n´est pas dire: “um rio precisa de muita água em fio para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um poço para outro poço, em frases curtas, então frase a frase, até a sentença rio do discurso único em que se tem voz. A seca combate”. Assim começamos, pouco a pouco, enfrasando, juntando artigos, pesquisas, propostas, até que como diz João Cabral de Melo Neto, “em que se tem voz, a seca combate”. José Manuel Rodeiro p. 114 Que se faz quando se olha uma pintura? What to do when looking at a painting? Nelyse Aparecida Melro Salzedas p. 134 RESENHAS Nelyse Apparecida Melro Salzedas Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq “Texto e Imagem” Unesp-Bauru Um olhar sobre o corpo e as relações transdisciplinares entre arte e tecnologia A look at the body and the relationship between trans-art and technology Ricardo Nicola p. 135 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2 9 LIÇÕES DO MODERNISMO Francisco Rebolo Gonzales Lessons of the modernist of Francisco Rebolo Gonzales Elza AJZENBERG Professora Titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil. Coordenadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes. O artigo discute a segunda fase do modernismo brasileiro, caracterizado pelas ações de grupos de artistas. Em particular, a formação e atuação do grupo Santa Elena, a cidade cultural de São Paulo. É dedicado também à rota estética de Francisco Rebolo Gonzales, o artesão da cor. Palavras-chave: Modernismo, Francisco Rebolo Gonzales, Grupo Santa Elena The article discusses the second phase of Brazilian modernism, characterized by the actions of groups of artists, in particular the formation and performance of the Santa Helena Group, the cultural city of São Paulo. It is dedicated also to the aesthetic route Francisco Rebolo Gonzales, the artisan of color. Keywords: Modernism, Francisco Rebolo Gonzales, Santa Elena Group Rebolo Gonsales, Francisco (São Paulo, SP, Brasil, 1902- São Paulo, SP, Brasil, 1980). Filho de imigrantes espanhóis e de origem proletária, Rebolo aos 12 anos de idade, trabalhava como aprendiz de decorador. Essa formação foi adquirida na Escola Profissional Masculina do Brás e, a partir daí, trabalhou nos murais das igrejas Santa Ifigênia e Santa Cecília, em São Paulo. Em 1917, exerceu o ofício de decorador, simultaneamente ao de jogador de futebol no São Bento e, em seguida, no Corinthians. Em meados de 1930, os pintores de parede costumavam fazer ponto na praça da Sé e em suas imediações. Um desses pintores, Rebolo Gonsales, recém-saído do futebol profissional, abriu seu escritório na sala 231 do Palacete Santa Helena, na antiga praça da Sé, n. 43 (posteriormente, n. 247). Logo depois outro artesão, Mário Zanini, imitou-lhe o gesto, instalando-se na sala 232. Um e outro eram, nas horas vagas, artistas amadores, freqüentando, à noite, um curso livre de desenho na Escola Paulista de Belas-Artes. No curso, orientado por Lopes de Leão, conheceram outros artesãos-artistas, como Volpi, Graciano e Manoel Martins. Logo em seguida, esses pintores e alguns outros passaram a reunir-se, periodicamente, no Palacete Santa Helena, para desenhar ou trocar idéias sobre arte. Nasceu, desse modo, o denominado Grupo Santa Helena, constituído por Rebolo Gonsales, Mário Zanini, Fulvio Pennacchi, Aldo Bonadei, Alfredo Volpi, Humberto Rosa, Clóvis Graciano, Manoel Martins e Alfredo Rullo Rizzotti. De 1936 em diante, Rebolo expôs coletivamente no Salão de Maio (1937, 1938 e 1939), na Família Artística Paulista (1937, 1939, 1940) e no Sindicato de Artistas Plásticos. A primeira mostra individual aconteceu em 1944 e, dez anos mais tarde, recebeu o Prêmio Viagem à Europa, no Salão Nacional de Arte Moderna. Durante sua carreira, o artista realizou diversas exposições individuais e integrou inúmeras coletivas. 10 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. 11 A Revolução de 1930 impulsionou visão crítica na maneira de pensar e pontuou o contexto cultural e estético dos anos seguintes. O ano de 1933 foi decisivo nesse sentido. Foi o ano de publicações que marcaram as gerações intelectuais posteriores: “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, e “Evolução Política do Brasil”, de Caio Prado Júnior. Essas obras – juntamente com “Raízes do Brasil” (1936), de Sérgio Buarque de Holanda – motivaram um momento de redescoberta do Brasil. Impulsionaram debates à luz de premissas diametralmente opostas. Intelectuais e artistas polarizaram idéias políticas: mais à esquerda ou à direita. Com o tempo, temáticas nacionalistas, que procuraram recuperar raízes históricas, como o negro, o índio, o caipira, a paisagem, canaviais nordestinos ou cafezais do sul, foram ganhando espaço. Nos anos de 1930, os temas delineados na década anterior foram se consubstanciando numa busca de solução para o impasse do Modernismo. O fascínio pelas lendas indígenas e o nacionalismo – que permearam as criações modernistas desde o poema Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, resultaram, em obras como “Macunaíma” (1928), de Mário de Andrade, “Martim Cererê” (1928), de Cassiano Ricardo, “Cobra Norato” (1931), de Raul Bopp e na música de Vila Lobos. Os artistas preocuparam-se em desvendar o Brasil, voltando-se para o regionalismo e para a crítica social. Naquele momento, Tarsila do Amaral, por exemplo, expressou questões sociais em obras como “Operários” e “2ª Classe” (1933), substituindo os rosas e azuis festivos por tons sombrios. Nesse período São Paulo viveu grandes mudanças socioeconômicas, significativo progresso no setor das comunicações e impasses políticos. Em 1932, ano da Revolução Constitucionalista, São Paulo comemorou o aniversário da cidade com um comício de cerca de cem mil pessoas. Na ocasião, pedia-se a devolução da autonomia do Estado. Vale lembrar que a cidade cresceu e modernizou-se com a expansão cafeeira e, depois, com a industrialização e o desenvolvimento do setor bancário e financeiro. Trens, bondes, luz elétrica, automóvel, calçamento, praças, viadutos, parques e os primeiros arranha-céus, transformaram a fisionomia da capital paulista. Esse contexto apresentou-se favorável à organização de agremiações e grupos artísticos. Sociedade Pró-Arte Moderna – SPAM e Clube dos Artistas Modernos – CAM, Família Artística Paulista, Salão de Maio e Osirarte A 23 de novembro de 1932, na casa do arquiteto Gregori Warchavchik, um grupo de artistas e intelectuais reuniu-se para fundar a Sociedade Pró-Arte Moderna de São Paulo – a SPAM, como se tornou conhecida. Lasar Segall, Paulo Rossi Osir, John Graz, Vittorio Gobbis, José Wasth Rodrigues, Arnaldo Barbosa, Antonio Gomide, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Regina Graz Gomide eram alguns dos artistas participantes. Em reuniões posteriores estiveram presentes Brecheret e Hugo Adami, entre outros. Com a finalidade de angariar fundos para os cofres da Sociedade, organizou-se no carnaval de 1933 um grande baile – “Carnaval na Cidade de SPAM” – em recinto decorado por uma equipe de artistas sob a direção de Segall. A “Cidade” possuía suas próprias autoridades, hino (o “Spamtriótico”), com música de Camargo Guarnieri, moeda própria (o Spamote, dividido em Spamins) e mesmo um jornal - “A Vida de Spim”, dirigido por Mário de Andrade, Antônio Alcântara Machado e Sérgio Milliet. Centenas de metros quadrados foram pintadas formando numa gigantesca obra de arte coletiva de alguns dos mais importantes pintores da época. O sucesso da mostra repetiu-se na segunda Exposição da SPAM, realizada em fins de 1933, tendo como novidade a participação de diversos artistas cariocas ou radicados no Rio de Janeiro, como Portinari, Di Cavalcanti e Guignard. Novo baile carnavalesco – intitulado “Expedição às Matas Virgens da Spamolândia”, foi organizado em 1934, sob a supervisão de Segall. Na decoração colaboraram, entre outros, Anita Malfatti, Rossi Osir, Gastão Worms, Balloni, Arnaldo Barbosa e Jenny Klabin Segall. Um dia após a fundação da SPAM, surgiu, a 24 de novembro de 1932, o Clube dos Artistas Modernos – o CAM – iniciativa de Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti, Carlos Prado e Antônio Gomide. O CAM ocupou salão 12 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. espaçoso no mesmo prédio da SPAM, Pavilhão de D. Olívia Guedes Penteado. Organizou exposições pioneiras – com desenhos de crianças e de doentes mentais - , concertos, debates e conferências – entre as quais, a de Tarsila do Amaral, sobre “Arte Proletária” e a do pintor mexicano Siqueiros. No andar térreo, Flávio de Carvalho instalou seu Teatro da Experiência, com a participação de Camargo Guarnieri. Alvo da suspeição policial, esse teatro, pouco depois, cerrava as portas. Como escreveu um dos antigos participantes e historiador, Paulo Mendes de Almeida, assim terminava “um grande e vibrante movimento de arte e de inteligência, que dificilmente se repetirá”. Contudo, a polícia ainda não estava satisfeita: mais uma vez, alegando ofensa ao decoro, cerrou em junho de 1934 uma exposição de Flávio de Carvalho, apreendendo cinco obras e colocando guardas na porta. Os santelenistas correspondiam à situação sociocultural de uma metrópole em rápida expansão, com grande envolvimento de imigrantes, especialmente de italianos. A maioria de seus membros pertencia à grande colônia que se estabeleceu no Estado. Volpi e Pennacchi eram italianos, enquanto Bonadei, Graciano, Rosa, Rizzotti e Zanini eram filhos desses imigrantes; Rebolo era descendente de espanhóis e Manoel Martins, de portugueses. Quase todos exerciam profissões que os mantinham no seu dia-a-dia. Volpi, Rebolo e Zanini eram pintores de parede; Rizzotti, torneiro; Bonadei, bordador; Pennacchi, açougueiro; Graciano, ex-ferroviário e ex-ferreiro, e Manoel Martins, aprendiz de ourives. Volpi e Zanini conheciam-se antes da aproximação no Santa Helena. Zanini e Rebolo já eram próximos desde o início dos anos de 1930. Pennacchi e Rebolo fizeram amizade por ocasião do III Salão Paulista de Belas Artes (1936). Os artistas exerciam a pintura decorativa de residências, entre outras tarefas, e esse vínculo profissional tornou-se fator decisivo para a sua aproximação, que perdurou com mais força até o início dos anos de 1940. Sem idéias preconcebidas, deram forma a uma existência comunitária. Mostravam-se ciosos da necessidade de conhecimento dos materiais e das técnicas de arte. Tiveram o mérito de contribuir para o amadurecimento de um tipo de expressão artística mais preocupado com os aspectos puramente técnicos ou com o métier – aspecto nem sempre valorizado pelos pintores vanguardistas. É importante salientar que os artistas do Grupo Santa Helena nunca fizeram uma exposição conjunta de suas obras. Porém, participaram das três mostras da Família Artística Paulista, realizadas, respectivamente, no Grillroom do Hotel Esplanada, em novembro de 1937; no Automóvel Clube, à rua Líbero Badaró, em maio-junho de 1939; e no Palace Hotel do Rio – a convite da Associação dos Artistas Brasileiros e com o patrocínio da revista Aspectos – em agosto-setembro de 1940. A primeira exposição da Família Artística Paulista não alcançou a repercussão desejável. No catálogo da exposição, Paulo Mendes de Almeida destacou o repúdio do Grupo ao academicismo, o fato de não se inserir nas “correntes mais avançadas”, mas de estar integrado nas “legítimas tradições da pintura”. O Salão de Maio foi organizado pelos críticos de arte Quirino da Silva, Geraldo Ferraz e Flávio de Carvalho. A primeira edição ocorreu em 1937 na Esplanada do Hotel de São Paulo, com o comparecimento de artistas de São Paulo e do Rio de Janeiro: Tarsila, Brecheret, Flávio de Carvalho, Guignard, Cícero Dias, Gomide, Portinari, Segall, Santa Rosa, Ernesto de Fiori e Waldemar da Costa. O catálogo de abertura expressava os objetivos da promoção: a produção de pintores e escultores capazes de absorver o sentido da história da arte de seu tempo, os progressos técnicos e o “conteúdo sentimental, ideológico e poético O segundo Salão ocorreu, em 27 de junho de 1938, no mesmo local. Trazia como novidade um grupo de artistas estrangeiros, entre os quais Ben Nicholson, Alexander Calder, Joseph Albers e Alberto Magnelli e numerosa participação de brasileiros. O terceiro e último Salão de Maio realizou-se na Galeria Ita sobre a liderança de Flávio de Carvalho, com a presença de 39 expositores. Na oportunidade, Alexander Calder pela primeira vez mostrou seus móbiles ao público brasileiro. Palestras, debates e um espetáculo de bailado japonês completaram esse salão. Paulo Rossi Osir, além da iniciativa de realizar as exposições da Família Artística Paulista, fundou em 1940 a firma Osirarte, que teve por objetivo reviver no Brasil a arte do azulejo. Desta pequena indústria – “Atelier de Azulejos Osirarte” – surgiram azulejos artísticos. No início a produção estava voltada para a atender à demanda do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Rossi Osir, conhecido pela sua cultura e gosto literário, realizou Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. 13 pesquisas de cores e condições técnicas que permitiram cumprir as exigências do pedido e o projeto de Cândido Portinari, responsável pelo desenho da fachada do Ministério. Seguiu-se a série para a Igreja da Pampulha, Minas Gerais, novamente com desenhos de Portinari. Dessa experiência, surgiu a idéia de ampliar a indústria e a realização de painéis. Para tanto, Rossi Osir soube cercar-se de um grupo de artistas como Vittorio Gobbis, Hilde Weber e artistas do Grupo Santa Helena como Alfredo Volpi e Mário Zanini. Voltada para temas nacionais, a Osirarte funcionou até 1959. No decorrer dos anos de 1930 e 1940, além do envolvimento destes grupos em São Paulo, desdobramentos modernistas e associativos ocorreram em outros estados. Em 1931, realizou-se, no Rio de Janeiro, o “Salão Revolucionário”, expondo os modernistas. Nesse mesmo ano, formou-se o Núcleo Bernadelli, nas dependências da Escola Nacional de Belas Artes. O nome foi uma homenagem aos irmãos Rodolfo e Henrique Bernadelli, que se empenharam na renovação das artes brasileiras, opondo-se ao academicismo. Esta geração pode ser inserida no contexto da autocrítica sinalizada por Mário de Andrade: “Nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou”, ao mesmo tempo que aponta desdobramentos deixados pela Semana de 1922: “a conquista do direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”. Tanto Mário como outros críticos assinalaram que apesar desta geração não ter atingido o experimentalismo e vanguardismo da primeira fase modernista, amadureceram um claro “domínio do fazer artístico” ou do métier. Esclarecia ainda Mário que, no eixo de suas lutas e sonhos do dia-a-dia, o que os aproximava era uma afinidade no interpretar, perceber e realizar a arte. O Grupo Santa Helena Distante das ousadias da fase pioneira do Modernismo, a arte, pouco teórica e bastante prática, desenvolvese amplamente no Brasil desde 1930. Calcada na visão direta do ambiente natural, humano e social, essa arte pertence a um quadro histórico e a uma política desfavorável à liberdade cultural. Entretanto, tem ganhos no processo de renovação plástica do país e nas buscas sociais. Essa afirmação apóia-se no espírito de união dos artistas. Por eles foram criados vários grupos relevantes para a trajetória da arte moderna, que enfrentava a oposição das tendências acadêmicas. Entre os grupos, um dos mais consistentes é o Santa Helena. O Grupo Santa Helena surgiu em meio às transformações sociopolíticas da Revolução de 1930. Os decênios de 1930 e 1940 pontuaram a trajetória histórico-artística dos artistas desse grupo. Nesse período, São Paulo cresceu e modernizou-se com a expansão cafeeira e, depois, com a industrialização e o desenvolvimento do setor bancário e financeiro. Trens, bondes, luz elétrica, automóvel, calçamento, praças, viadutos, parques e os primeiros arranha-céus, transformaram sua fisionomia. A partir de 1934, em diferentes momentos, foram eles chegando ao Palacete Santa Helena, na antiga Praça da Sé, n. 43 (posteriormente, n. 247), convivendo, até o final da década, em salas transformadas em ateliês. Não existia nenhuma intenção que os movesse no sentido de organizar um movimento. Aproximaram-se espontaneamente uns do outros, identificados pela origem social, por vivências artísticas ou artesanais. No Palacete Santa Helena, uniram-se artistas ligados a trabalhos de simples pintura de paredes ou de decoração de residências e, principalmente, pela própria necessidade de uma união que lhes permitisse enriquecer conhecimentos e práticas. Dedicavam-se ao desenho com modelo vivo – exercício que teve continuidade nos próprios ateliês do Santa Helena - , comparecendo ao curso livre da Sociedade Paulista de Belas Artes (SPBA). Ali se firmavam amizades. O que predominou nesses artistas foi indiscutivelmente o esforço pessoal de aprimoramento, somado, a partir da existência do Grupo, aos ganhos da atividade conjunta. Nesse contexto, é possível observar os pintores de parede que costumavam fazer ponto na Praça da Sé e em suas imediações. Um desses pintores, Rebolo Gonsales, recém-saído do futebol profissional, abriu seu escritório na sala 231 do Santa Helena. Logo depois outro artesão, Mário Zanini, imitou-lhe o gesto, instalando-se na sala 232. 14 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. Um e outro eram, nas horas vagas, artistas amadores, freqüentando à noite um curso livre de desenho na Escola Paulista de Belas-Artes. No curso, orientado por Lopes Leão, conheceram outros artesãos-artistas, como Volpi, Graciano e Manoel Martins. Logo em seguida, esses pintores e alguns outros passaram a reunir-se periodicamente no Palacete Santa Helena, para desenhar ou trocar idéias sobre arte. Nasceu, desse modo, o denominado Grupo Santa Helena, constituído por Rebolo Gonsales (1902-1980), Mário Zanini (1907-1971), Fulvio Pennacchi (1905-1992), Aldo Bonadei (1906-1974), Alfredo Volpi (1896-1988), Humberto Rosa (1908-1948), Clóvis Graciano (1907-1988), Manoel Martins (1911-1979) e Alfredo Rullo Rizzotti (1909-1972). O próprio Rebolo explicaria, anos mais tarde, as origens do Grupo: “O Santa Helena não começou como um movimento: foi transformado em movimento pelos intelectuais”. Um grupo formado por meia dúzia de amigos, cujo traço comum era não gostar de acadêmicos e querer a “pintura verdadeira” que não fosse anedótica ou narrativa. “A pintura pela pintura”. Na base da formação desse Grupo estava a contribuição do imigrante e seus filhos. Para Flávio Motta, por exemplo, o trabalho do imigrante contribuiu no aprimoramento de relações de trabalho e de produção dentro da vida brasileira, com “implicações referentes à história da pintura, arquitetura, etc.” Os santelenistas corresponderam à situação sociocultural de uma metrópole em rápida expansão, com forte presença italiana. A maioria de seus membros pertencia à grande colônia que se estabelecera no Estado. Volpi e Pennacchi eram italianos, enquanto Bonadei, Graciano, Rosa, Rizzotti e Zanini eram filhos desses imigrantes; Rebolo era descendente de espanhóis e Manoel Martins, de portugueses. Quase todos exerciam profissões que os mantinham no seu dia-a-dia. Volpi, Rebolo e Zanini eram pintores de parede; Rizzotti, torneiro; Bonadei, bordador; Pennacchi, açougueiro; Graciano, ex-ferroviário e ex-ferreiro; e Manoel Martins, aprendiz de ourives. Os componentes do Santa Helena, além da origem imigrante e humilde, possuíam certas especificidades na formação: alguns chegaram a estudar no exterior, outros realizaram aprendizados na Escola Paulista de Belas-Artes e havia os autodidatas. Entretanto, o que predominou nesses artistas foi, indiscutivelmente, o esforço pessoal de aprimoramento. O companheirismo que cultivavam constituía grande aliado. Volpi e Zanini conheciam-se antes da aproximação no Santa Helena. Zanini e Rebolo já eram próximos desde o início dos anos de 1930. Pennacchi e Rebolo fizeram amizade por ocasião do III Salão Paulista de Belas Artes (1936). Os artistas exerciam a pintura decorativa de residências, entre outras tarefas, e esse vínculo profissional tornou-se fator decisivo para a sua aproximação, que perdurou com mais força até o início dos anos de 1940. Sem idéias preconcebidas, deram forma a uma existência comunitária. Mostravam-se ciosos da necessidade do conhecimento dos materiais e das técnicas da arte. Do ponto de vista estético, é possível observar em suas obras releituras espontâneas ou indiretas do Impressionismo, das formas construídas de Cézanne ou traços incisivos de Van Gogh. Esse aprendizado não se compara com a experiência internacional dos primeiros modernistas, residentes em Paris e outras cidades ou freqüentadores assíduos do ambiente artístico europeu. A formação desses “operários da pintura” realizou-se no próprio ambiente paulistano, com absorção, principalmente, das culturas italiana e francesa. Recolhidos em busca de aperfeiçoamentos técnicos, sem reconhecimento crítico, não estavam próximos das manifestações vanguardistas que os membros da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) e do Clube de Artistas Modernos (CAM) tinham promovido em 1932 e 1934. Possuíam, contudo, vocação de artistas e eram guiados por um instinto criador que os conduziria afinal à profissionalização e, posteriormente, ao resgate pela crítica de arte. Nessa direção coloca-se o termo “artista operário” pelo crítico Mário de Andrade. Esses artistas voltados ao seu ofício, à necessidade associativa, com o objetivo comum de “fazer pintura” ou, na palavra de Rebolo, “fazer pintura pura” e, com o desdobramento lírico do fato desses operários sobreviverem da pintura, portanto serem também “operários da pintura”. Ao lado da discussão sobre a visão de artistas, que, para sobreviverem, ousaram partir de um aprendizado básico através de “lições de ateliê”, está o esforço concentrado de cada participante, qual seja, somaram limites econômicos-profissionais e optaram pela “pintura pura” e por meio dela sobreviveram como operários da própria arte. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. 15 Em sua trajetória, o Grupo Santa Helena sentiu os efeitos do desenvolvimento das artes aplicadas. Nessa segunda fase do Modernismo, não se difundira o gosto de conviver com o novo. Raros eram os artistas modernos que se sustentavam através do próprio trabalho. Eram poucos os interessados em divulgar a arte, e na época não se possuía institutos ou museus voltados a estes propósitos. Conseqüentemente, faltava tanto aos artistas como ao público, o apoio de uma infra-estrutura cultural. Vários artistas exerciam funções paralelas para sobreviverem. Hoje, pode-se retomar ou mesmo acrescentar debates à sinalização ou à terminologia desse crítico de arte. Porém, é incontestável a marca do contexto social na visão do grupo. Prevalecem em suas representações as excursões ao “ar livre”, as paisagens humildes, despojadas, os arrabaldes operários anônimos, o litoral, as naturezas-mortas, a figura humana popular, os temas religiosos e alguns outros motivos e registros do modo de vida dos componentes do grupo. Tiveram, porém, o mérito de contribuir para o amadurecimento de um tipo de expressão artística mais preocupado com os aspectos puramente técnicos ou com o métier – aspecto nem sempre valorizado pelos pintores vanguardistas. Ou, como escreveu Sérgio Milliet, a atuação desse grupo representou “uma reação da pintura de matizes e atmosfera contra as correntes mais avançadas, mas menos artesanais”. Esta geração pode ser inserida no contexto da autocrítica sinalizada por Mário de Andrade: “Nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou”, ao mesmo tempo que aponta desdobramentos deixados pela Semana de 1922: “a conquista do direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”. Tanto Mário como outros críticos assinalaram que apesar desta geração não ter atingido o experimentalismo e vanguardismo da primeira fase modernista, amadureceram um claro “domínio do fazer artístico” ou do métier. Esclarecia ainda Mário que, no eixo de suas lutas e sonhos do dia-a-dia, o que os aproximava era uma afinidade no interpretar, perceber e realizar a arte. É importante salientar que os artistas do Grupo Santa Helena nunca fizeram uma exposição conjunta de suas obras. Porém, participaram das três mostras da Família Artística Paulista , realizadas, respectivamente, no Grillroom do Hotel Esplanada, em novembro de 1937; no Automóvel Clube, à rua Líbero Badaró, em maio-junho de 1939; e no Palace Hotel do Rio – a convite da Associação dos Artistas Brasileiros e com o patrocínio da revista Aspectos – em agosto-setembro de 1940. A primeira exposição da Família Artística Paulista não alcançou a repercussão desejável. No catálogo da exposição, Paulo Mendes de Almeida destacou o repúdio do Grupo ao academicismo, o fato de não se inserir nas “correntes mais avançadas” , mas de estar integrado nas “legítimas tradições da pintura”. Na segunda apresentação, o artigo de Mário de Andrade, de 1939, Esta Paulista Família, foi mais ressonante. E, na última versão da Família Artística, encerrada em setembro de 1940, os santelenistas já haviam se dispersado. Alguns artistas do Santa Helena reencontram-se nas atividades da Osirarte. Na Osirarte destacaram-se duas influências nem sempre reconhecidas: Paulo Rossi Osir (1890-1959) e Vittorio Gobbis (1984-1968). Esse último, originário da Itália, transferiu-se para o Brasil ainda nos anos de 1920, trazendo domínio dos procedimentos da pintura figurativa pouco renovada. Há na obra de Rossi Osir, aguda meticularidade realista fortemente vinculada à visualidade italiana, que manteve imperturbável qualidade e coerência estilísticas. Sua formação artística foi feita em vários países europeus, entre 1908 e 1927. Rossi Osir, além da iniciativa de realizar as exposições da Família Artística Paulista, fundou em 1940 a firma Osirarte, que teve por objetivo reviver no Brasil a arte do azulejo. Sua primeira encomenda foi a decoração de paredes externas do Ministério da Educação, para a qual Portinari forneceu seus cartões. Voltada para temas nacionais, a Osirarte funcionou até 1959, tendo participações de artistas do Santa Helena, como Alfredo Volpi e Mário Zanini. Em síntese, sobre as contribuições dos artistas do Grupo Santa Helena e de seu contexto, pode-se valorizar como ponto de partida as questões econômicas e culturais enfatizadas por Mário de Andrade. A origem social e as afinidades profissionais e artesanais motivaram a denominação de “artistas proletários” por Mário de Andrade. O autor lembra ainda que é no início dos anos de 1940 que o conhecido edifício eclético-tardio , da antiga Praça da Sé, passou a designar o Grupo Santa Helena. Registraram, conforme assinalou também Mário de Andrade, conteúdos de vida, “uma dor muda” ; acima de tudo realizaram uma obra pictórica de alta sensibilidade, disciplinada pelo métier rigoroso. Ao comentar o papel dos “representantes novos” da Família Artística Paulista, Mário de Andrade enfatizou a característica mais divulgada desses artistas: a sua condição social. Citava-os como todos do povo, senão “diretamente proletários”, “pelo menos vindos de operários ou de gente de pequenos recursos econômicos e culturais”. Essa condição foi determinante em suas carreiras. Esse fator correspondia a aspectos recentes de uma sociedade em que se registra “progressiva influência da classe média e da proletária”, acrescentando-se a estas influências a participação de artistas imigrantes ou de seus descendentes. É relevante a influência que recebiam da pintura italiana – à qual se ligavam naturalmente pelas origens. Sem as ousadias da vanguarda modernista, mas ao mesmo tempo guardando distâncias das regras acadêmicas, quase sempre através de pequenas telas ou de “janelas para a pintura pura”, escolheram um Modernismo contido. As obras dos santelenistas refletiram em primeiro lugar o estrato social a que pertenciam. Essa vertente é visível, no seu “proletarismo”, assinalando, novamente, o termo utilizado por Mário. 16 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. Rebolo, o Artesão da Cor (...) na arte deve-se fazer coisas espontâneas, com a marca do amor e entusiasmo, para poder se emocionar e emocionar outras pessoas” (Rebolo) Para Rebolo (1902-1980), da convivência com os companheiros do Santa Helena, ficam lições definitivas: as discussões, a permuta de experiências, livros e revistas, a luta pela sobrevivência e a paixão pela pintura. Na busca de informações novas, o que importa assimilar, em primeiro lugar, é a técnica artesanal, o uso de ferramentas – o que lhe facilitará captar as nuanças da natureza que tanto ama e concentrar-se na estrutura de suas composições. Ficam, das lições no atelier, o desenho do modelo vivo e o estudo das naturezas-mortas. Porém, o mais importante é o registro da vivência paulistana de sua época – a busca de temática pictórica própria, dentro da realidade atualizada. Ficam lições de domingo, com prática da pintura ao ar livre e a descoberta de que as coisas estão vivas, mergulhadas na luz, vibrando, lembrando a visão dos impressionistas. Todavia, Rebolo não persegue as propostas dos artistas franceses na pesquisa dos efeitos da luz sobre o motivo e a percepção do transitório. É mais provável que, próximo às experiências de Rebolo e de seus companheiros, tenham tido mais efeito as pesquisas do movimento italiano Macchiaioli , considerado a fonte do movimento novecentista chega ao Brasil através de Hugo Adami, depois de uma viagem de estudos à Europa, entre 1927-1928. Os seguidores do Macchiaioli têm em comum com os impressionistas franceses a prática da pintura ao ar livre e o uso de manchas. Mário Zanini, por exemplo, explora muito o efeito das manchas enquanto Rebolo, com evolução de sua pintura, passa a transformar as manchas em zonas coloridas, aproximando-se da técnica de alguns pós-impressionistas. Ao contrário dos impressionistas, que compõem o espaço com manchas coloridas, Rebolo tende a ordenar o espaço sem dissolver os contornos. No início da carreira, na obra Fazenda do Prada (1935), as manchas coloridas tendem à diluição dos contornos das árvores, nuvens e outros elementos. Mais tarde, os contornos e as zonas coloridas serão cada vez mais definidos. Na obra Marinha (1973), demonstra nitidamente a vontade de reduzir a natureza a zonas coloridas. O registro do cotidiano realizado por Rebolo tem o caráter de um diário íntimo que se abre ao leitor para ser completado e manter o diálogo: “homem e o mundo ao redor” ou “homem-natureza”. Os registros procurados são os mais simples e prosaicos. Procura documentar a própria vivência, de uma maneira pessoal. É desta forma que registra, da janela do seu atelier no Santa Helena, São Paulo que começa a crescer, produzindo documentos preciosos de um período de transição da paisagem urbana, como nas obras Rua do Carmo (1936), e Praça Clóvis (1944) – observação direta e simples de pessoas pacatas e de uma cidade que se transforma. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. 17 De meados dos anos de 1930 até fins dos anos de 1940, tem preferência pela realização de paisagens ao ar livre. A opção é por pintura de cidades do interior do Estado ou do litoral e, de preferência, das regiões suburbanas de São Paulo, como Cambuci, Sumaré ou Tremembé. Essa última região é retratada na obra Tremembé (1937) – hoje é impossível reconhecer através dessa tela o bairro do Tremembé. No quadro há, no centro, um morro que começa a ser alcançado por casinhas; em baixo, os tapetes de hortaliças, resolvidos em vários tons, são tratados por lavradores. Aqui as tonalidades ocres e verdes, que marcam a paleta de Rebolo, já estão definidas, assim como os aspectos construtivos da obra. Há com freqüência tonalidade cinza envolvendo tudo; ele mesmo explica o porquê de sua visão cromática: “(...) eu pintava a cidade de São Paulo, principalmente os subúrbios que já são cinza de natureza. A cidade crescia, se industrializava. Naquele tempo, não tinha os ares modernos, bonitos, limpos e elegantes de agora; era uma cidade suja com as primeiras tintas da industrialização. Eu encontrei profunda poesia naquela tristeza cinza. A paisagem suburbana, que me agradava tanto, não conseguia despertar a sensibilidade dos acadêmicos”. A estrutura unitária da composição e o interesse pelos elementos arquitetônicos surgem com freqüência nesse período, revelando necessidade construtiva. Na Paisagem com Casas (1940), a arquitetura é um componente essencial da paisagem; não só alude à unidade inseparável da São Paulo que cresce, bem como as pequenas casas, com os seus planos nitidamente cortados, que constituem um núcleo sólido no qual se condensa a luz da paisagem, assumindo uma função construtiva. Rebolo usa constantemente esse tipo de arquitetura singela, plantada em forma de “ninho”, ou no meio de morros, ou no topo. O importante não é revelar objetos pictoricamente interessantes (a bela casa, o edifício que cresce), mas definir um espaço plástico unitário ao qual nem um único elemento se impõe, nem subordina os demais. Desse modo, a paisagem se oferece ao artista como motivo a ser experimentado ou ouvido, como um espaço unitário no qual não é possível nenhuma graduação, senão perfeita confrontação de todos os valores. Com o tempo, deixa cada vez mais claro o que pretende com a sua pintura ou com a sua visão poética: a comunicação da realidade interior com a realidade exterior. Isto é, o que deseja é expressar compreensão profunda e união constante com a natureza. É esse desejo, sem dúvida, que o levará a viver no sítio do Morumbi, mais próximo do verde e da sua procura. Para ele, a emoção e o entusiasmo diante da natureza não passam pela impulso passional próprio dos paisagistas românticos. O mundo não é um espetáculo para ser simplesmente contemplado ou exaltado, senão uma experiência, e a pintura é um modo de vivê-la. A natureza para Rebolo não é objeto e sim motivo, estímulo para a criatividade. Intui que a profunda unidade do homem e da natureza, que em outro tempo fora espontânea, ameaça desfazer-se, porque a sociedade contemporânea, orgulhosa de seu cientificismo quer conhecer e não sentir a natureza ou reter o seu lirismo. Mas senti-la e captá-la sob formas líricas também não é autêntico modo de conhecê-la? A esta questão Rebolo responde afirmativamente, e esclarece algumas atitudes do homem contemporâneo diante do seu ambiente. Sempre observando a natureza com olhos atentos, chega a síntese que equivale a uma marca registrada e destaca a possibilidade do sujeito reconhecer no espaço pictural seu próprio ambiente de vida: um lugar que pode ser aconchegante ou hostil, com o qual se pode estabelecer uma relação ativa, não distinta da qual liga o homem à sociedade. Nos anos seguintes muda com freqüência de técnica, mas sem perder de vista o traço de união “homem-natureza”, mesmo quando se ocupa de uma obra mais estruturada. Dos fins dos anos de 1940 até a década de 1950, passa aos poucos para a produção em atelier. Prefere um esquema visual livre e intuitivo, e não matemático. Apesar disso, constatam-se nas suas composições a segurança estrutural e a tendência de retomar soluções semelhantes. Desde os primeiros trabalhos até a última fase, Rebolo mostra aguda sensibilidade na composição de suas obras, equilibradas como se seguissem um esquema secreto, preconcebido. São constantes, desde o começo de sua carreira, o esquema triangular e o aparecimento de três elementos em destaque, como um conjunto de árvores, uma estrada, um morro ou árvores, pessoas ou animais. Na obra Bois e Coqueiros, de fase posterior, de 1967, o aparecimento do conjunto de três elementos – casas, bois e coqueiros – é tão enfático que compete com 18 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. os demais elementos da composição. A tendência de estruturar e organizar geometricamente chega a competir, em certas ocasiões, com a espontaneidade que caracteriza o seu temperamento. Essa tendência faz com que Sérgio Milliet pergunte pela influência de Cézanne, ao que Rebolo responde: “ “ – onde mora esse pintor?” A tela Socorro (1938), já demonstra, como outras da mesma década, a tendência à estruturação; mais tarde, na paisagem Morumbi (1944), é clara a síntese das formas, lembrando Cézanne. Anos depois, como na obra Lenhadores (1950), equilibra-se entre o peso de uma pintura racionalmente construída e o lirismo. Expressa a preocupação com alguns dados cubistas na organização das casas, árvores e esquematização dos corpos. Mas o ambiente poético criado pela luminosidade e os tons suaves levam o espectador a meditar sobre o sentido das formas líricas do pintor, cuja ênfase recai nos lenhadores que se arcam em limites imprecisos entre o trabalho e o sonho. Neste período em que as suas paisagens passam a ser mais sínteses mentais, associadas à memória visual, está convencido de que a força da pintura reside na própria pintura e não no tema. O desenvolvimento de pequenas verdades, que o afirmam em sua busca, recompensa-o do cansaço cotidiano. Não aceita a pintura puramente visual, quer ser poeta. Porém a sua poesia pretende faze-la como pintor, não traduzindo temas em figuras, senão construindo imagens com materiais de pintura, provando que é ao mesmo tempo poeta e artesão da cor. Às vezes cai em certas tendências naturalistas, passando, através de seus matizes discretos, certa fidelidade à atmosfera característica de São Paulo, em certas épocas, com o céu encoberto. Ou chega a observar a natureza, seus acidentes geográficos, os verdes, o oxigênio respirado, como no vôo de pássaro com que descreve Campos do Jordão, obra de 1943. Ou, ainda, afastando-se da fidelidade atmosférica, escolhe tons de uma terra mais avermelhada, extensa, como na obra Colheita (1946). A paisagem é sempre o seu assunto predileto. É um verdadeiro ecologista, preocupado com a preservação. A figura humana, quando surge, é envolvida, geralmente, pela imensidão da terra e dos verdes. A paisagem em Rebolo não é um elemento decorativo, uma “moldura”: impõe-se como uma necessidade, como oxigênio para a vida. A natureza aparece em vários tons de verde, sugerindo a presença do ar – a atmosfera vital do homem. Em alguns trabalhos os verdes cobrem todo o espaço, como numa das obras de sua última fase: Arvoredos (1975). A natureza pode apresentar-se generosa e florida, como nas obras de 1972 Caminho e Primavera. Outras vezes, a natureza é atacada pela poluição, como na representação de troncos ressecados, tendo atrás o Rio Guaíba – Paisagens (1977). Além das figuras humanas integradas à paisagem, ele as destaca no estudo de retratos. São numerosos quadros de tamanho pequeno, em que procura os seus próprios traços ou que transmite a sua capacidade de captar características essenciais; atento ao olhar penetrante, buscando aspectos psicológicos, como nos retratos do amigo Osório César (1939), e de sua mulher, Lisbeth (1942). No início da carreira fica clara a importância da figura humana, realizando vários desenhos de modelo vivo e óleos, como o estudo de Nu (1934). Os trabalhos com a temática feminina aparecem freqüentemente. Em geral, não são retratos, todavia lembram Lisbeth, ou ainda são moças em posição simples, prosaicas. Ora são diálogos líricos, de composição singela, tonalidades suaves, revelados na encantadora Moça no Jardim, na obra Mulheres no terraço (1943), ou em Esperando – registrando Lisbeth em 1946, que já espera Suzy, num momento de concentração e tranqüilidade. Em todos esses trabalhos, coloca o despojamento do ambiente, os gestos suaves e uma certa datação, revelada nos tipos e nos trajes. O amadurecimento de suas obras é marcado por vários estímulos e algumas conquistas. No início está muito envolvido com os companheiros do Santa Helena. As primeiras conquistas surgem com as oportunidades nas mostras da Família Artística Paulista. Em 1944 expõe individualmente. A sua atuação é importante no Sindicato dos Artistas Plásticos e na organização da vida artística de São Paulo. Em 1945, participa da fundação do Clube dos Artistas e Amigos da Arte – o “Clubinho” – do qual será diretor anos seguidos; esse clube tem grande importância para a divulgação artística dos paulistas. Sempre trabalhando em ritmo acelerado, em 1954 o pintor tem a consagração merecida, com a obtenção do Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. 19 “Prêmio de Viagem ao Exterior”, no 3º Salão de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Este salão tem um episódio singular. Os pintores participantes apresentam-se com telas apenas em branco e preto, como sinal de luto às taxas das tintas importadas, tão caras como os perfumes. Ironicamente, Rebolo – o famoso artesão da cor – expõe o quadro Casas da Praia Grande, em preto e branco. REFERÊNCIAS Depois de uma grande despedida no “Clubinho”, parte com a família, por dois anos, para a Europa. Com a viagem vêm as visitas aos museus, ateliers e a execução de novas obras. A arquitetura italiana motiva-o a realizar obras de maior rigor. A própria força da arquitetura renascentista orienta a construção de fachadas bem estruturadas e que acompanham as tonalidades típicas da arquitetura romana: ocres e terras. A obra Roma (1956), assegura a disciplina do olhar e o lirismo da “cidade eterna”. Da visita a Pompéia fica a marca do famoso vermelho pompeano que aparece em várias paisagens européias como, por exemplo, Ravena (1956), que se afasta de uma construção rígida e aproxima-se de uma composição “fauve”. Na volta, em agosto de 1957, expõe as telas pintadas na Europa no Museu de Arte Moderna. Comenta que se renovou, como se tivesse tomado um banho de juventude. Na obra Suzy (1959), indica que mantém recordações do período europeu, associando o rigor formal a variantes do vermelho pompeano na visão poética da filha que toca flautinha. ALMEIDA, Paulo Mendes de. Anita ao Museu. São Paulo: Perspectiva, 1976. Aos 60 anos de idade, é temporariamente obrigado a afastar-se da pintura, depois de ter sofrido um infarto. Deixa de lado as tintas e passa a desenhar. Recuperado, nos anos de 1960 a pesquisa da matéria é sua marca fundamental. Diante da insistência de Marcelo Grassmann, elabora uma série de gravuras, à procura de novos desdobramentos. De 1960 a 1965, a influência da gravura se traduz por um leve “farfalhar” das cores. Mas a inspiração para esse tipo de pintura, assinala Rebolo, vem da contemplação de pinturas etruscas, marcadas pela história: com partes intactas ao lado das formas corroídas pelo tempo. Para o pintor, as partes descascadas desta pintura sugerem novas formas e constituem fonte para novas concepções. Passa a buscar, na experiência com xilogravura, recursos plásticos para associar e retomar os efeitos da textura dessas pinturas etruscas. Na gravura, aprende a desbastar uma camada para revelar o interior da madeira; e, quase naturalmente, começa a agir da mesma maneira em relação à sua nova pintura. Surge uma técnica na qual coloca uma base de tinta preta, depois aplica as cores, tendo o cuidado de, em seguida, retirar com papel absorvente, o excesso de tinta. Por fim, aparece uma textura de colorido discreto. Esta experiência deixa como saldo uma série de quadros, tais como: Menina flaustista (1964), e do mesmo ano, Quiriri, onde os efeitos da textura sugerem a água em movimento. No final dos anos de 1960 elimina o preto, deixando reaparecer as cores claras. Nos anos de 1970 retoma as linhas de estrutura e diminui a textura, chegando até as cores chapadas. Promove um retorno ao toque mágico dos primeiros tempos – um anel lírico, marcado pela fidelidade e inquietação, em que pontos de chegada se aproximam do ponto de partida. Nos últimos anos viaja por diversos estados brasileiros, registrando lugares típicos e a luminosidade que distingue esses lugares. É desse modo que é vista, da parte alta da cidade, a Olinda (1974). Deixa surgir o mar verde, típico do nordeste, e as cores alegres que Franz Post, nos seus magníficos trabalhos sobre essa região, não pôde traduzir, porque os seus olhos e a sua paleta traziam a luminosidade e o estilo de cores sombrias de um outro país. Valoriza neste período, a realização de um espaço muito especial – onde coloca formas que, apreendidas pelo observador, levam-no a uma reflexão sobre a existência e o mundo que o envolve. Propõe uma pintura de adesão à vida, de volta à natureza: uma necessidade de rever o modo de vida contemporâneo. Na Paisagem (1979), esta idéia torna-se clara: nos primeiros planos as árvores, verde, muitos tons de verde; deixa para trás a cidade. Não se trata de se afastar da sociedade urbana, mas de repensa-la. Ao propor esta volta lírica, quase romântica, revela uma atitude do homem contemporâneo diante da natureza, empenhando-se em salvá-la e proclamando-a insubstituível. AJZENBERG, Elza. Rebolo. São Paulo: MWM,1986. AMARAL, Aracy. Tarsila, sua Obra e seu Tempo, São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1975. ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre Clóvis Graciano, 1944. Transcrito em MOTTA, Flávio, A Família Artística Paulista, separata da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, (10): 157,1971. ANDRADE, Mário. Esta Paulista Família. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 2 jul. 1939. BRILL, Alice. Mário Zanini e seu tempo, São Paulo: Perspectiva, 1984. BRUNO, Ernani Silva. 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Aprovado para publicação em 14 de Agosto de 2011 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. 21 O Anjo de Dürer e os Herdeiros de Saturno The Angel of Dürer and the Heirs of Saturn No reconhecido estudo de Saxl e Panofsky, Dürer ‘Melancolia I’, os autores examinam iconograficamente a gravura e referem-se ao texto de Agrippa, considerando-o orientador da obra e chamam a atenção para o fato da gravura trazer em seu título o número I, reforçando a descrição de Agrippa de três níveis da melancolia. Isto porque Melancolia I está visivelmente dedicada às artes manuais. Contudo, outros autores questionam: onde estão Melancolia II e III? Logo depois de Melancolia I, Dürer pinta São Jerônimo em seu Estudo. Saxl e Panofsky julgam essa obra um contraponto e um contradito a Melancolia I. Para os autores, São Jerônimo em seu Estudo Paulo Roberto Amaral Barbosa Doutor em História da Arte pelo Programa de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil e chefe da Divisão Técnico-Científica de Acervo do MAC/USP. Durante a Idade Média surge um novo termo para designar o “estado melancólico”: acedia ou acídia (do grego akedia, indiferença). Hoje, essa palavra teria o significado de abatimento do corpo e do espírito, enfraquecimento da vontade, inércia, tibieza, moleza, frouxidão ou ainda melancolia profunda. De acordo com João Cassiano , acedia era um sentimento predominantemente dos solitários – criado em mosteiro cristão na antiga Palestina, Cassiano adquire grande experiência sobre o tema. Para o autor, acedia liga-se a um espírito maligno, o chamado “demônio do meio-dia”. Esse demônio está associado à tentação da carne, ao pecado e à solidão. Palavras-chave: Anjo de Durer, Herdeiros de Saturno, melancolia renascentista During the Middle Ages a new term for the “dismal state”: akedia (indifference from the Greek). Today, this word would have a significance of abating of the body and spirit, weakness of will, inertia, coldness, weakness, softness or even deep melancholy. According to João Cassiano, acedia was a predominant feeling of the lonely - created in ancient Christian monastery in Palestine, Cassiano acquired extensive experience on the subject. For the author, acedia binds to an evil spirit, the so called “noon demon.” This demon is associated with the temptation of the flesh, sin and loneliness. Keywords: Angel of Dürer, Heirs of Saturn, renascentist melancholy O s monges, acometidos por esse mal, se mostram desgostos com a vida, inquietos, sem desejo pelo trabalho e a estes se recomenda, como tratamento, o exaustivo trabalho físico. Caso o esforço físico não dê resultado, o clérigo deve ser abandonado por sua ordem religiosa à sua própria sorte. Isto porque, durante o período medieval, acedia é um pecado grave equiparado à gula, à fornicação, à inveja e à raiva. A melancolia, vista como um fato de ordem religiosa, ao se transformar em acedia, marca a desesperança da salvação, que torna a alma indolente e desleixada, lançando o indivíduo à inércia. A vida dedicada ao louvor, à santidade deveria ser alegre, nesse caso, a melancolia é vista como o “abandono de Deus”. Já na visão renascentista, acedia não integra mais a lista dos pecados capitais e passa a ser vista com maior tolerância, transformando-se em tristitia (tristeza), dotada de dois significados diferentes: 1) tristeza mundana (talvez, ocasionada pela perda de bens materiais), na qual a alma se curva frente aos valores terrenos – de conotação pecaminosa e, 2) tristeza virtuosa, inspirada por Deus, que conduz à salvação – algo que atinge os grandes homens. Albert Dürer, Melacolia I, gravura (31 x 26 xm), 1514. Alemanha O texto de Agrippa, De La Philosophie Occulte, articula o humor melancólico às faculdades da alma e a uma hierarquia na ordem da ação e do conhecimento. Na visão do autor, o primeiro grau da melancolia ou a imaginação é o temperamento dos pintores, arquitetos, escultores e mestres de várias artes manuais; o segundo, ou razão, é o temperamento dos físicos, oradores e filósofos; o terceiro, ou intelecto, dos místicos e santos. Nessa direção, segundo, a leitura de Luciana Chauí Berlinck, em seu livro Melancolia – Rastros de dor e perda, se Ficino orienta a realização da Primavera, Agrippa é o pressuposto teórico para duas obras de Dürer: Melancolia I e São Jerônimo. 22 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 22-29, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v 2, n. 2, pág 22-29, 2011. 23 seria a Melancolia III, ou a inspiração intelectual daquele que conhece os segredos divinos. Dürer dissera que as duas representações deveriam ser vistas juntas ou simultaneamente. Todavia, informações indicam que a Melancolia II, que transmitiria a inspiração filosófico-profética, não é realizada, ou ainda, seja a gravura O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, de 1513. De fato, a “melancolia renascentista” influencia muitos artistas do período e o exemplo, Albert Dürer, em Melancolia I, 1514, traz o sentimento não mais com uma conotação médica (doença ou sanidade), porém, torna-se aborrecida e contrariada, manuseando com displicência a ponta do compasso que tem nas mãos e com o qual poderia “redesenhar” o espaço que o rodeia, é a própria imagem da confusão de alma que é preciso sublimar, encontrando um caminho. A desarrumação dos objetos à volta de um Anjo, que mais poderia ser uma “dona de casa”, incapaz de pôr ordem em suas coisas, é outro dos sinais que o artista fornece. A confusão do exterior torna-se reflexo da íntima confusão, enquanto se aguarda algum sinal ou que alguma coisa de repente mude, ainda que por acaso, mais do que por intervenção própria. A figura feminina também está atrelada à representação da peste – o flagelo cuja epidemia devastara diversas regiões da Alemanha. A esfera pequena, no canto inferior da gravura, à esquerda, será marca de perfeição, tal como o possível arco-íris em que a palavra melancolia se inscreve também pode significar uma transformação positiva e luminosa. Quase tão destacado quanto o Anjo, está, sempre do lado esquerdo, um poliedro encostado a uma escada que tem por trás um anjo menor, um “putto”, semi-adormecido. Walter Benjamin chama a atenção para a pedra, ou ainda, o poliedro que seria um cubo, desenhado de modo peculiar para que não se tenha, desde logo, a noção do equilíbrio das faces. O que faz todo o sentido: os alquimistas falam da pedra cúbica, e da pedra polida, quando Albert Dürer, O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, gravura, (31 x 26 xm), 1513, Museum Boijmans van Beuningen. Holanda Albert Dürer, São Jerônimo em seu estudo, gravura, (31 x 26 xm), 1514. Alemanha metáfora. Na gravura, a melancolia é representada como uma mulher de asas (ou um anjo), potencialmente capaz de grandes voos intelectuais. Mas a Melancolia não está voando, está sentada, imóvel, na clássica posição dos melancólicos, com o rosto apoiado em uma das mãos. A cabeça lhe pesa, cheia de mórbidas fantasias. Às voltas com seus demônios internos, a Melancolia permanece imóvel, como se lhe faltasse ânimo para movimentar-se. Erwin Panofsky sublinha a melancolia imaginativa como faceta principal da gravura, Melancolia I, de Albert Dürer – o que permite lê-la como produto do imaginário alquímico do período. O Anjo sentado, de fisionomia 24 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 22-29, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v 2, n. 2, pág 22-29, 2011. 25 desejam referir-se à perfeição que é necessário atingir. Na gravura, a alma está adormecida e o mesmo sinal é dado pelo cão enrolado que está dormindo aos pés do Anjo. O cão adormecido, fiel companheiro do artista em muitas das gravuras com referências alquímicas conhecidas, é outra alusão à melancolia. O organismo canino, no período, está ligado à figura do baço. À época, cães com face melancólica seriam os melhores: um cão alegre e amistoso não seria confiável para a guarda da propriedade. No sentido metafórico, a figura do cão negro é remetida à memória. Como o cão, a memória é um fiel acompanhante do homem. Memória às vezes sombria, como algo evidenciado pela própria cor escura do animal, corresponde à obsessão renascentista de evocar, lembrar. O melancólico lembra, porém, o que recorda é triste. O cão adormecido representa a memória desligada, imersa em profundo sono. O mar no horizonte da gravura relembra a inclinação dos melancólicos para as longas viagens, remetendo-se à transitoriedade do mundo frente à inércia do humano. signos cabalísticos. De igual formato, elas mergulham no claro-escuro oriundo da segunda viagem de Dürer à Veneza e permitem a divisão da luz em espaços variados. A presença da morte, o inexorável escoamento do tempo e a centralidade das personagens (o Cavaleiro, São Jerônimo e a Melancolia) definem o conjunto de gravuras. O conjunto expressa a “face negra” da melancolia, na tradição antiga que relembra o gênio da morte que cerca o humano. Ao retomar as interpretações de Panofsky, o Cavaleiro representaria a vida do cristão no mundo material da ação e da decisão; São Jerônimo, o santo no mundo espiritual da contemplação sagrada e a Melancolia, aquela do gênio secular presente no mundo racional e imaginativo das ciências e das artes. O Anjo traz chaves em sua cintura. Para o artista tais “chaves” são indispensáveis, pois todo o processo é cifrado, é secreto e não é dado a qualquer um. No chão, uma bolsa. Não por acaso, nos desenhos preparatórios da gravura, Dürer escreve que as chaves significam poder e a bolsa, riqueza. Metáforas: “quem tem chaves pode abrir portas, inclusive, as do céu”; “a bolsa remete a uma característica tradicionalmente atribuída aos melancólicos, avareza”. Deve-se mencionar, ainda, que Saturno é frequentemente representado com bolsa e chaves, a divindade é vista como responsável pelo processo de cunhagem de moedas. A profusão de objetos na obra de Dürer é relevante para o presente estudo – chama-se atenção que na produção de De Chirico, os objetos tem grande peso e importância, como se verá proximamente neste estudo. Em Dürer, os objetos são os utilizados cotidianamente, em vários ofícios, na ciência: uma balança, uma ampulheta, uma sineta, martelo, serrote, pregos. Aparentemente são ferramentas que não estão ali para serem usadas; ao contrário, os elementos sugerem a imobilidade, expressa em ponto culminante nas imagens do Anjo e do cão. A ampulheta mostra o tempo congelado: os dois compartimentos contêm a mesma quantidade de areia. Há ainda uma tábua numérica, uma clara alusão à geometria, à época, valorizada como verdadeira fonte do conhecimento, excluindo-se a visão teórica e enfatizando-se os aspectos práticos. A tábua numérica apresenta-se ao lado de instrumentos humildes como o martelo e o serrote, emprestando à geometria um caráter essencialmente humano. Benjamin afirma que a transição entre o melancólico e o mundo se faz por intermédio das coisas, não das pessoas. Acumular – riqueza, roupas, obras de arte, propriedades – é o imperativo dessa época, mesmo que depois os objetos fiquem sem utilidade, como acontece na gravura. A gravura de Dürer é alegórica, o que não deixa de ser apropriado – em se tratando de melancolia, como se percebe, alegorias não são raras. O anjo ou a mulher de Melancolia I poderia representar, para alguns autores, a peste negra que assola a Europa à época e aproxima os sentimentos de morte e dor aos melancólicos. Nesse caso, a melancolia é interpretada como uma espécie de “psicose da peste”. Aos 34 anos de idade, Dürer vive a peste em Nuremberg e expressa em suas gravuras as experiências vividas. A Melancolia poderia ser o que autores chamam de “fantasia” que, apesar de ser versada no decifrar dos símbolos, não apaga a iconografia própria à genialidade melancólica do período. contexto renascentista. Como diz Panofsky, “a teoria e a prática não se conjugam bem, é o que mostra a composi- Ao se considerar as três gravuras designadas por Dürer como “Meisterstiche” , (O Cavaleiro, a Morte e o ção de Dürer; e o resultado é a incapacidade de agir e o humor sombrio”. Doença, causada pelo pensar excessivo, Diabo, 1513, São Jerônimo em seu Estudo, 1514 e a Melancolia I, 1514), pode-se notar que elas encerram, entre outros símbolos, o crânio humano, a ampulheta, o cão (além do leão de São Jerônimo), animais fantásticos e 26 Candido Portinari, Dom Quixote de Cócoras com Ideias Delirantes, lápis sobre papel, (37 x 24,6 cm), 1956, Museus Castro y Maia, Rio de Janeiro. Brasil Ao completar o sentido alegórico, o anjo é apresentado com o rosto na sombra, olhar perdido ao longe e a cabeça apoiada numa das mãos, em posição semelhante ao Pensador de Michelângelo – nessa ilustração e, em diversas outras, desenhadas e talhadas por Dürer, há referências a essa obra-prima. Também, nessa direção, o pequeno “putto”, que lê uma inscrição segurando um sextante nas mãos, representaria o “gênio da história”, que tenta classificar os acontecimentos em ordem cronológica ou, então, o “gênio da astrologia”, que se dedica à previsão do mundo futuro. Assinala-se, aqui, que fazer da melancolia uma alegoria é não mais considerá-la como um humor passageiro, submetido à existência humana, mas atribui-la as qualidades de uma divindade é índice de um projeto estético construído sobre os processos da melancolia, que visa submeter os elementos do meio a uma arte da composição. Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 22-29, 2011. Contudo, a “elevação intelectual”, contida na alegoria de Melancolia I, apresenta dissonâncias inerentes ao a melancolia é também a enfermidade que mais leva a pensar, em outros termos, alimenta a reflexão filosófica e a criação poética. Para os homens de “elevada intelectualidade”, o preço a pagar seria o isolamento, como no caso de Montaigne, que se retira da vida pública para, em seu castelo, refletir sobre a clássica questão: “Que sei Poéticas Visuais, Bauru, v 2, n. 2, pág 22-29, 2011. 27 eu?” Montaigne não é propriamente um eremita porque continua atento aos problemas de seu tempo, mas é “o humor com o sentimento, da alma com o corpo e, o filosófico-moralista que se dedica à doença da alma ligada melancólico em sua torre solitária”, segundo seu amigo e poeta John Milton (1608 – 1674), em Il penseroso (O intrinsecamente ao desgosto pela vida. Os “herdeiros de saturno” (Dürer, Cervantes, Shakespeare, entre outros) pensativo), publicado em 1654. O poema é uma alusão aos tempos sombrios e meditativos cercados pela peste transformam o humor e o mal-estar em alegoria, metáfora e, depois, pode-se dizer, criam uma “estética da me- negra. Nele o poeta saúda a “boa” melancolia que leva ao amor de Deus e que seria própria dos intelectuais lancolia” que passa pelo ideário medieval (como um pecado capital), adentra o Renascimento (às vezes como inconformados com a existência humana. doença; outras vezes como traço de genialidade – retomando às ideias aristotélicas), ressurge no Barroco (como o Nesse sentido, poderia se considerar, como “a torre solitária – o templo da melancolia”, a biblioteca – o mundo cercado pelos livros que refletem algo limitado e, de certa forma, controlado em oposição às descobertas do “novo mundo”, no período renascentista. Cervantes, em diversas passagens de seu romance, mostra a figura medo inexorável frente à morte), no Rococó (passa a ser a “doce melancolia”) e, finalmente, será base primordial do Romantismo – as fontes românticas nutrem a poética de Giorgio De Chirico e o transformam em um “herdeiro de saturno”. desgastada e “fora de seu tempo” do cavalheiro andante. A personagem Sancho Pança seria considerada sua antí- As percepções românticas sobre a melancolia varrem a Europa e adquirem status social. Na Itália, por exem- tese e, por sua vez, mais adaptada às novas demandas. Desprovido de pudores e com um profundo senso prático, plo, todos aqueles que acreditam serem gênios esperam ser melancólicos. Ingleses, que viajam para as terras Sancho Pança vive de acordo com as solicitudes do período, ao contrário do seu senhor, que almeja as honrarias italianas e lá convivem por certo tempo, regressam para casa gabando-se da sofisticação adquirida e expressa em de uma vida cavaleresca que não existe mais. Dom Quixote é levado à loucura pelos livros – melancolia e loucura seus atributos melancólicos – uma vez que somente ricos podem arcar com os custos das viagens, a melancolia têm suas ligações (às vezes se complementam, às vezes se contradizem) – uma tênue linha as divide. O Cavalhei- torna-se uma doença aristocrática inglesa. Porém, é na França que o humor configura-se em “doce melancolia” ro da Triste Figura é limítrofe, reflete a melancolia dos fidalgos que vivem a aventura mítica de um passado sem que, mais tarde, é o sustentáculo do ideário romântico. retorno. Ao longo do período renascentista, o progresso e o predomínio do comércio impelem a novos comportamentos econômicos e sociais que são rejeitados pelo feudal Dom Quixote: “(...) de pouco dormir e muito ler lhe resseca o cérebro” – sua “triste figura” pode ser tomada como a projeção corporal de seu temperamento: seco por Referencias dentro, seco – magro – por fora (isto é, a condição física dos melancólicos). A ideia do fidalgo, do príncipe ou do “monarca melancólico” é recorrente à época e é transmitida em inúmeras manifestações artísticas. No teatro, por exemplo, Shakespeare cria Hamlet, um personagem desiludido com o mundo; incapaz de vingar a morte do pai e dono de uma imaginação superior que adota a melancolia como uma resposta ao mundo doente no qual vive. Shakespeare aborda o mal-estar com transparência, empatia e complexidade. Dá ao seu personagem astúcia e sentimentos de autodestruição. No momento em que Hamlet é encenado, a melancolia é tanto um elogio quanto uma doença – aos menos privilegiados social e economicamente, a melancolia é vista como um mal a ser extirpado (um melancólico é candidato, assim como a escória da sociedade, a integrar a Nau dos Insensatos). Para os mais abastados, o humor é o que daria o tom de sua genialidade – a retomada da tradição clássica fornece os sustentáculos para esse pensamento. No drama barroco é frequente a figura do “príncipe melancólico”. No período da reforma e contra-reforma, crescem as obras que tratam da moralidade do cotidiano e da honestidade das pequenas coisas. Para os intelectuais, o “absurdo da existência” os aproxima do terror da morte, do mundo enlutado. No mundo protestante, a intervenção divina adquire novos aspectos: nele as ações humanas, baseadas na moral e na racionalidade, trazem consequências divinas. Para Walter Benjamin, o príncipe melancólico barroco é aquele que, dotado de poderes absolutos, sabe que não pode mais contar somente com a intervenção divina em relação ao mundo. Daí, o caráter AGRIPPA VON NETTESHEIM, Heinrich Cornelius. De La Philosophie Occulte. Paris: Armand Collin, 1922, p. 125. SCLIAR, Moacyr. Saturno nos Trópicos ... op. cit., p. 75. João Cassiano (c. 370- 435) foi um teólogo cristão, do período patrística, monge de Marselha, na atual França. SOLOMON, Andrew. O Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 264 e seguintes. BERLINCK, Luciana Chauí. Melancolia: Rastros de Dor e de Perda...op. cit.,p. 30. PANOFSKY, Erwin.Saturn and Melancholy, ed. by H.W. Janson, 1964. BENJAMIN, Walter. Origine du Drame Barroque Allemand. Paris: Flammarion, 1985. LAMBOTTE, Marie-Claude. Estética da Melancolia...op.cit., p.19. PIGEAU, Jackie. Metáfora e Melancolia: ensaios médico-filosóficos. Rio de Janeiro: PUC Rio/Contraponto, 2009, p. 119. dramático da qual a alegoria barroca não pode prescindir. O homem barroco retoma a natureza como objeto da ciência, no sentido de dominá-la, mas nesse processo, se afasta de seu potencial simbólico. Do mesmo modo, a melancolia barroca possui implicações expressivas de um mesmo sentimento: o medo, a necessidade de domínio Recebido em 15 de Maio de 2011. Aprovado para publicação em 17 de Setembro de 2011 daquilo que aparece como contraditório e externo à consciência. No histórico sobre as diversas concepções relativas ao sentimento melancólico se percebe a proliferação de discursos que variam entre: o médico que encerra na fisiologia seus sintomas e a interpreta como doença física com incidências psíquicas secundárias; o médico-filosófico que reflete sobre sua tipologia e sobre a relação do 28 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 22-29, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v 2, n. 2, pág 22-29, 2011. 29 Aprendendo a aprender comece pela capa Learning to learn - Start by its cover. Sonia de BRITO Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista e Professora Assistente Doutora da UNESP de Bauru, São Paulo, Brasil. & Guiomar Josefina BIONDO Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista e Professora Assistente Doutora da UNESP de Bauru, São Paulo, Brasil. Do livro de Newton Duarte (2000) Vigotysky e “Learning to Learn”, Pode-se ter uma profunta reflexão a respeito da capa, uma obra-prima do artista Max Ernst, “Birds, too: Bird-Snake and Scarecrow” by 1921 (in Bischoff, 1993) and the phrase “Learning to Learn”. Compare e interprete o tema de Vygotsky com a imagem é nosso propósito, por que apenas olhar na figura de uma capa não tem sentido. É necessário enxergar um mecanismo duplo de percepção visual do que ela representa. É uma metáfora. Uma representação explícita e, por analogia, implicitamente sintetiza o interior de um slogan que ten se tornado um símbolo de posições de ensino inovadoras. Palavras-chave: Max Ernst, Interpretação das capas, aprendendo a aprender A From the book of Newton Duarte (2000) Vigotysky and “Learning to Learn”, you can make a compelling reflection of the cover, a masterpiece of the artist Max Ernst, “Birds, too: Bird-Snake and Scarecrow” by 1921 (in Bischoff, 1993) and the phrase “Learning to Learn”. Compare and interpret the theme of Vygotsky with the picture is our purpose, because look at the painting on the surface of the cover is meaningless by itself, is necessary to seek a dual mechanism of visual perception on what it represents. It is a metaphor. Such explicit representation abroad and, by analogy, implicitly synthesizes the inside of a slogan that has become a symbol of the innovative teaching positions. Keywords: Max Ernst, cover interpretation, learning to learn função principal da capa de um livro é anunciar um contexto, além de atrair, provocar e despertar o interesse do leitor. A capa foi criada para proteger o livro, porém, sua evolução técnica acabou reunindo outras finalidades: estética, identificação do conteúdo, promover e embelezar etc. Como objeto de comunicação, age como um cartaz legível e despojado. No Brasil, foi a partir da década de 40, com a evolução da propaganda e dos novos meios de comunicação que a ilustração saiu dos limites do desenho para recorrer à pintura e à fotografia. São vários os artistas convidados para compor capas de livros, entre eles podemos citar: Ismael Nery, Iberê Camargo, Siron Franco, Portinari, Di Cavalcanti. Pressupõe-se que não foi ao acaso que Milton José de Almeida, criador do leiaute, escolheu a obra de Max Ernst para ilustrar a capa do livro de Newton Duarte. Ernst costuma usar materiais diversos para compor as suas obras, o que constitui a identidade estilista das suas composições, as quais têm como base teórica a psicanálise, a psicologia, a anatomia, a paleontologia, a literatura, a poesia não ortodoxa, a história natural e a história da arte, que fazem parte do inconsciente coletivo: “A consciência sendo censura dita normas que sistematizam, assim romper com a consciência é romper com a sintaxe, rompe com a organização da forma”. (BISCHOFF, 2002). Dono de uma cultura extraordinariamente variada, Max Ernst incorporou as estéticas: surrealista, dadaísta e metafísica. Apreciava manuais científicos ultrapassados, à procura de possibilidades técnicas não tradicionais, evitando o uso de tintas diretamente na tela. 30 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 30-35, 2011. Ilustração 1 Capa do livro Vigotsky e o “Aprender a Aprender” A colagem, a frotagem e a grattagem são as técnicas empregadas e o uso de objetos retirados do cotidiano transformou-se em fontes pictóricas sem relação entre si, mas sugestivos e com possibilidade de várias leituras, uma vez que as interpretações determinam o valor das representações. É assim com o emprego de diversos símbolos culturais, combinando-os com a realidade que se pode encontrar o jogo do inconsciente. Por outro lado, sabe-se que Vigotsky se interessava pelas questões psicológicas relacionadas com a criação, com a literatura e com a arte. Em seus estudos sobre Psicologia, ele confronta dois fatores que movem a criação humana: o intelectual e o emocional. Faz uma análise da estrutura da obra, afirmando que o conteúdo não se introduz de fora da obra, mas o artista o cria nela. Tem por aspiração compreender a função da arte na vida do homem como um ser sócio-histórico. Ao analisar o texto, pode-se constatar a polêmica que existe no lema criado por Vigotsky “Aprender a Aprender”, pois mais do que um lema, é uma verdadeira posição pedagógica que tomou conta da comunidade educacional do novo milênio. Contrapondo essa questão e defendendo a necessidade de uma reflexão crítica e histórica, além de uma análise minuciosa da psicologia vigotskiana, Duarte aponta para o papel ideológico desempenhado por esse tipo de apropriação das idéias de Vigotsky, ou seja, o papel de manutenção da hegemonia burguesa no campo educacional. Ainda segundo Newton Duarte (2000), uma pedagogia crítica só seria constituída com educadores que se rebelassem contra essa forma de alienação, caso contrário, não passaria de ações humanizadoras ingênuas. Defende a tese de que o trabalho educativo deve desempenhar o papel de mediador entre a vida cotidiana e as esferas não-cotidianas da atividade social. É olhando pela fresta da superfície raspada, pondo a estrutura em evidência como fez Max Ernst que conseguimos enxergar no papel das relações entre a palavra e a pintura, as possíveis associações de sentido, que constituem a singularidade dessa obra: o resultado da ambiguidade da representação. Fugindo do dogmatismo e da rigidez dos métodos tradicionais, não se ateve a nenhum outro método que revelasse o inconsciente sem a censura da razão, colocando à disposição do mundo inteiro maneiras de invenção de quadros. Foram essas técnicas novas que permitiram ao artista permanecer “além da pintura”. Nascido em família burguesa, Max Ernst vê inicialmente a cultura e a arte como passatempo de feriado ou como matéria aborrecida nas mãos de professores de História da Arte. Mais tarde, libertando-se desse espírito burguês, busca novas descobertas e reconquista a arte viva. A partir de uma ruptura na composição com o uso de objetos estranhos, retirados de catálogos de mercadorias, anuncia uma arte desarrumada, mas que reflete o Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 30-35, 2011. 31 cotidiano. O caráter mecânico substitui o orgânico, a montagem ocupa o lugar da composição harmônica e a colagem vai ao encontro da destreza inventando, assim, a técnica de libertação. Portanto, ao usar o acaso, o inconsciente e as metáforas, o artista consegue construir os pilares (que podem ser de evasão, de desconstrução, de reconstrução) da sua arte, além de ter modificado o sujeito-artista que nele habitava. Foi ao acaso, também, que percebemos o dialogismo entre a pintura e o lema. Na obra “Pássaros; também Pássaro-Serpente e Espantalho”, tudo é figurativo, o fazer artístico não rompe a forma, mas a organização. Cria outro espaço para o objeto: o estranhamento, o qual o observador poderá, através da sua interpretação, fazer relações e associações entre o visível e o legível, a partir de seu horizonte de expectativa. Decodificando a capa, a figura do espantalho, com duas cabeças de pássaros de perfil, representa o elemento simbólico transformador, um fantasma pós-moderno, navegando entre a sociedade de consumo e a educação, tentando seduzir o sujeito pela informação. Essa é a maneira encontrada pelo artista para abordar o sujeito. Mas, quem é esse sujeito? Um sujeito dentro de um barco, tendo ao fundo o céu de cor cinza mecanizado. Seria ele o Professor? O sujeito que dá um tratamento mecanizado ao conhecimento e à informação? Entre o parecer e o ser, o professor é aquele que tem nas mãos o leme, a direção, que conduz o aluno de um lado a outro, no barco do conhecimento formal. O sujeito é a própria linguagem, a palavra, o desenho, a escrita, feitos com signos na forma de códigos que geram mensagens e produzem efeitos. Por outro lado, o barco pode ser visto como fonte da vida, útero que gera, cresce e faz nascer, acolhe pessoas, guarda e traz à memória o símbolo fálico; a serpente, a sedução, a fecundação, o reviver do passado através do nascimento. Resgata, assim, uma história, pois cada lugar é único, cultural, aberto a possibilidades de aprendizagem. Isso tudo faz o leitor interessado procurar sentido e interpretação da obra, fazendo uma viagem interior e exterior. O elemento barco projetado na tela pode ser visto como veículo transportador de pessoas e de mensagens de um lado para o outro. Logo, a água é o elemento que sustenta e transporta o barco de uma margem a outra. Assim, é possível fazer analogias entre elementos aparentemente isolados com o processo comunicacional. Sem o canal, o lema “Aprender a Aprender” é só um lema, palavras em estado dicionário, mas que podem ser postas em ação e interação com o outro, construir, desconstruir, juntar elementos diferentes para encontrar novos caminhos. O inusitado como as pernas do espantalho ou a serpente em estado de harmonia, pode abrir espaço para novas descobertas, o que é experimental pode dar certo, além do possível encontro com novas teorias, novas técnicas, críticas, elogios, ideologias... Articular, misturar tendências, estilos, transitando entre canais naturais, artificiais, pictóricos, resulta em ecletismo definido como pós-moderno. Nesse sentido, a água traduz um campo semântico simbólico de origem primitiva de tudo, mas segundo a psicanálise é fonte de renovação das potencialidades do inconsciente. No espaço da tela, a água parece diluída na fonte vazia. Esse é um comportamento pós-moderno de desfazer princípios, regras, valores, práticas, realidades, a própria des-referencialização do real, do sujeito. (Santos, 1991). Há ambiguidade nas figuras antitéticas: o espantalho com o corpo dividido em dois, o masculino e o feminino: o da direita do observador, na figura do marinheiro como condutor; o da esquerda, a criança como aprendiz. Ambos têm as pernas representadas por duas colunas significando o poder estético enquanto decoração cênica, imóvel na sua verticalidade, mas que simbolizam o sustentáculo do conhecimento científico, do ensino formal, das verdades eternas. Que pilares são esses? O da Ciência e o da Arte? Representam o sujeito que aprende e o sujeito que aprende ensinando? Interagindo, assim, na via de mão dupla do processo comunicacional, que o emissor se torna receptor e o receptor se torna emissor do ensino/aprendizagem. Seguindo essa linha de pensamento, para a formação do indivíduo, Vigotsky (In Duarte, 2000) fala sobre os quatro pilares da Educação: aprender a conhecer para compreender; aprender a fazer para agir sobre o meio; aprender a viver junto está relacionado com a participação e cooperação humana e aprender a ser é essencial e integram os pilares anteriores na relação Eu versus Eu, Eu com o outro e o Eu no mundo. 32 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 30-35, 2011. O marinheiro atento a todas as direções (olhar 180°), com a cabeça de pássaro, com o bico aberto para a comunicação eloquente e a língua ereta, em tensão, parece fisgar o desejo e a fantasia, sem separar o real e o imaginário, o signo e a coisa (Santos, 1991), seduzindo o indivíduo física e intelectualmente. Nesse sentido, o peixe representa o alimento físico, e a vaca no plano inferior, mais atrás, símbolo da fertilidade. Como se pode observar há mudança do campo semântico desses objetos figurativos, uma vez que o sentido do verbo alimentar e da sua derivação está ligado à degustação, à saúde, à preservação e à sobrevivência da espécie. O elemento erótico, bíblico, alimenta o intelecto, a alma, as emoções. Um está no plano concreto; o outro, da abstração, da subjetividade. Logo, “Aprender a Aprender” está no plano do intelecto, do conhecimento, que é cumulativo e transformador. A criança do lado esquerdo pode ser o aprendiz, com a veste mais clara, tem a seu lado a figura feminina, a boneca ou mãe com cabeça disforme, com rosto esboçado, como máscaras ancestrais, um manequim com formas irreconhecíveis, abalando a segurança que se pensa encontrar num mundo previsível. Pode ser o consumista devotado que cultiva o narcisismo. É o ridículo, o irônico, decadente que perde a identidade e deixa para os outros assumirem o que deveria ser a sua função. Porém, se a cabeça é disforme, indiciam que ela pode ser moldada a partir de interesses, fatos, teorias, comportamentos, educação. A figura da boneca articulada, imóvel, por associação lembra o tempo mitológico da deusa da fortuna cega (BISCHOFF, 1993). A fortuna cega está mais para emoção, religião, moral, tradição, enquanto o professor é conhecimento científico, ideológico, formal, institucionalizado, político, crítico... No mundo humano, está contido o balão, um dirigível, que se instaura no mundo da fantasia, ligado ao bico do pássaro pelo fio da história, os discursos globais totalizantes perderam força e o passado se liga ao presente, fazendo pensar na história do indivíduo e investigar o seu próprio discurso. As viagens revelam o navegador pelo sonho, são alimentos para as fantasias. Nessa linha de pensamento, o lema “Aprender a Aprender” pode ser o fio condutor para interpretar Vigotsky e, consequentemente, Newton Duarte. O braço estendido, símbolo daquele que tem o compromisso de ampliar o repertório cultural da humanidade, tem uma parte do braço escondido pela enorme bolsa do capitalismo. Observa-se também uma ligação entre o braço feminino e a serpente: gestos de fantasias infantis, que revelam as brincadeiras, as surpresas, o lúdico, pois este está ligado à serpente, símbolo da tentação, mas que também pode ser visto como objeto de castigo. A educação maniqueísta recompensa os bons alunos e castiga os maus. A mão escondida indica que alguma coisa pode sair de lá e surpreender, como o artista/mágico que tira da cartola o inusitado, a inspiração e a técnica de seus quadros, de seus conteúdos programáticos. As roupas parecem peças que podem ser trocadas ou retiradas como a manga da camisa ou a perna da calca. Segundo McLuhan (1969), a roupa é o prolongamento da pele, mas não há pele, há a simbolização da roupa: proteção, sensualidade, poder, sexo, revelando também o tempo vivido, cenas retiradas do inconsciente, numa superposição temporal, tentando recuperar o tempo anterior, interior da infância: a criança e o adulto. Essas trocas podem indicar brincadeiras nas quais as crianças vestem e desvestem bonecos de papelão, mas são também indicadores de novos conhecimentos que sofrem mudanças e transformações. No vestuário da tela, o casaco vermelho demasiado grande, símbolo mundano, de um vermelho erótico, demonstra a roupa que não vestiu, demonstra ainda um viver arrumado, descompromissado com a realidade e com o desafio da desconstrução que leva a aprender com os desafios, com as antíteses ordem/desordem. Por outro lado, se o casaco é grande, não tem um referencial de corpo, serve para qualquer um. Desafiando o olhar, a calça parece uma saia dobrada sobre o braço em formato de bolsa que tudo esconde e guarda, ou o mágico que retira o segredo da cartola, depende da imaginação. Observa-se na parte superior da tela, uma garrafa que esfumaça transformando a matéria em imagem. É a degradação do sujeito fazendo-o sentir-se vazio. Por outro lado ao ser lida como signo tem-se a visão de uma bomba que vai explodir e a fumaça vai envolver o espectador/ leitor no fluido, o ópio da comunicação, ou ainda o pó mágico, ingrediente indispensável e poderoso da Literatura e, aqui, das Artes Plásticas. São o sonho e a realidade, pureza e erotismo, uma verdadeira experiência do caos como elemento fundamental e transformador, trazendo mudanças na forma de apreensão dos sentidos. Confrontando o espaço visual e verbal, obtém-se um olhar em forma de gráfico: Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 30-35, 2011. 33 será possível desvendar a esfinge ideológica que mata aquele que não decifra o enigma da imagem plural. Ilustração 2 - Organização do espaço visual. Do mesmo modo que a tela, o lema analisado por Duarte é uma provocação, ou seja, provoca o leitor para mudar, pesquisar, interpretar, romper estruturas e barreiras para juntar os novos sentidos, pois só mudando será possível ler-se, ler o outro e ler o mundo, ou seja, sair do diletantismo para aprofundar-se no conhecimento. Par interpretar Ernst e Vigotsky foi preciso atentar para a convergência entre eles: o rompimento da convencionalidade. Nesse sentido, procuramos aproximar as interrelações do aspecto subjetivo tanto da tela como do lema. Desse interacionismo simbólico, a ênfase recaiu nos aspectos encobertos, implícitos, tornando-os explícitos, através da re-leitura resultante do ato perlocucional. Logo, a nossa inspiração de leitura foi espiralada: a obra de arte porque inicia a obra paradidática, que analisa Vigotsky, que gerou o tema que critica o neoliberalismo, o capitalismo, e os educadores que se esforçam e reforçam o lema “Aprender a Aprender” sempre para virar apreender... Referências O gráfico acima nos oferece a idéia de como o espaço da tela se acha estruturado. A tela pode ser dividida formalmente em espaço inferior, superior, direito e esquerdo, revelando na sua estrutura, a gramática plástica de uma organização composicional que contém os sentidos denotadores e conotadores da interpretação textual. Assim, a obra de arte sendo um texto, pode ser lida nas suas linhas, formas e cores. BERGER, René. El Conocimiento de la pintura. Barcelona: Editora Noguer, S. A., 1976. A linha horizontal serve de base e sustentação, pode ser percebida por seus planos em profundidade que vão desde a caixa verde no primeiro plano, a fonte da vida (nascimento), o barco (útero), até o horizonte, demonstrando o tempo do desenvolvimento humano em harmonia com a natureza. Tradução Jorge Arnaldo Fontes. São Paulo: Martins Fontes, 1999. A linha vertical, mais para a direita do observador, provoca certa tensão em relação ao marinheiro, ou seja, um deslocamento do olhar para as fantasias infantis em relação às realizações do adulto. Uma diagonal atravessa o espaço da tela ocupado pela bolsa no primeiro plano, traduz uma visão contemporânea da ideologia política dominante que representa o capitalismo, a ambição. Essa transversalidade mostrada na tela, deve ser a do leitor, com seu olhar questionador, inquieto, reflexivo e crítico, daquele que não se apropria das idéias e das imagens sem antes questioná-las ou aplicá-las na sua realidade para só assim tê-las como conhecimento produtivo e real, podendo assim comprovar resultados. A garrafa na parte superior da tela também é um sinal provocador, pois ao atravessar a tela solta a fumaça do gênio criador ou como uma névoa é capaz de impedir o domínio e a transformação do leitor. A comunicação provoca mudança. Ao deslocar o olhar para um caminho diferente do tradicional, torna-se capaz de transcender a técnica e a construção lexical, refletindo sobre verdades, vivências, conteúdos e intertextualidades. Concluindo, não foi nossa intenção analisar Vigotsky, como fez tão bem Newton Duarte, nem tão pouco questionar o conteúdo do livro. A nossa intenção foi provocar o leitor para ler as imagens, as obras de arte, as capas, pois elas além de auxiliar a leitura do texto verbal, oferecem elementos para novas interpretações, tornando-o um leitor privilegiado e crítico. Vigotsky propôs uma teoria, Duarte faz críticas àqueles que se apropriam do conhecimento sem questionar, sem ler com a devida atenção e profundidade o lema “Aprender a Aprender”. A capa, por sua vez, como obra de arte, tem o poder de revelar aquilo que o olho sozinho não consegue enxergar, mas com a alfabetização da imagem 34 Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 30-35, 2011. BERLO, David K. O processo da comunicação: introdução à teoria e à prática. BERNARD, Roncillac. Pintura é uma linguagem. Paris: Bordas, 1995. BISCHOFF, Ulrith. Max Ernst. São Paulo: Editora Taschen, 1993. CHARTIER, Roger (org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Ed. Liberdade, 2000. DUARTE, Newton. Vigotsky e o “Aprender a Aprender”. Campinas: Editora Autores Associados, 2000. FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vigotsky e Bakhtin. Psicologia e Educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 1996. JANSON, H. W. História da Arte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Tradução Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1996. MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2001. McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 1969 SANTAELLA, Lúcia e NÖTH, W. Imagem. Cognição, Semiótica, Mídias. São Paulo: Iluminuras, 2001. VIGOTSKY, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Recebido em 14 de Março de 2011. Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2011 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 30-35, 2011. 35 Relações de texto e imagem em vídeo-música de Arnaldo Antunes b) a escuridão, concebida como uma aglomeração de corpúsculos, produz a matéria negra que é vista, na superfície fenomênica, como um objeto estético. A ausência de cor que é o negro oculta uma presença multicor explosiva; Relationship of text and image in music video Arnaldo Antunes. c) o sujeito, a ponto de dissolver-se num mundo excessivo, repele a visão do demasiadamente cheio e do demasiadamente próximo, utilizando a expressão: “e, com pesar, pestanejo”. Repele de modo inconsciente, reflexo de autodefesa ante o insuportável. Não seria horror do sagrado? Rivaldo Alfredo PACCOLA Mestre em Comunicação pela UNESP/Bauru, São Paulo, Brasil e especialista em Gestão Escolar pela UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil. Neste trabalho, pretendemos analisar a música Campo, com animação de vídeo, do poeta-cantor Arnaldo Antunes, buscando as significações produzidas pelo compartilhamento do verbal, do visual, do audível e do tátil, Palavras-chave: Arnaldo Antunes, Campo, imagem na música In this paper we analyze the music video animation of the poet-singer Arnaldo Antunes, entitled “Field”, seeking the meanings produced by the sharing of verbal, visual, audible and the tactile. Keywords: Arnaldo Antunes, Field, image on music S elecionamos a faixa 15, Campo, do vídeo-home acompanhado de texto escrito, chamado “Nome”, porque permite um enfoque na linha da semiótica do sensível, inaugurada em 1987, com a publicação De l’imperfection, por Greimas, quando o corpo ganha estatuto dentro da semiótica dita narratológica. Foi ali que GREIMAS (1987) fincou novas balizas para a captura estética que um texto poético pode apresentar. Divide a referida obra em duas partes: a fratura e as escapatórias. A primeira parte a fratura é composta por um conjunto de cinco textos literários, que têm em comum, em algum momento do discurso, o fugidio instante do resplendor da beleza, que possibilita instalar-se a pergunta pela experiência estética. Já na segunda parte as escapatórias estende-se em observações sobre a estética da vida cotidiana incorporadas a uma reflexão que reúne a semiótica com a estética e até aspira ser uma axiologia. Destacamos o capítulo IV da primeira parte A cor da obscuridade, enfocando a obra “Elogio da sombra”, de Junichiro Tanizaki , no qual Greimas faz, dentre outras, as seguintes constatações: a) há uma completa inversão das funções sujeito/objeto: enquanto nos textos dos autores europeus é o sujeito que tem papel ativo, empreendedor, e o objeto solicitado se apresenta diante dele, para o escritor japonês o objeto é o “pregnante”; mais ainda: é o objeto que exala a energia do mundo, e feliz é o sujeito, quando tem ocasião de 36 encontrá-lo em seu caminho; Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2 p. 36-40, 2011. O que sobressai nesta análise é a idéia do velamento. Para ver o real, que está por detrás do real aparente, é preciso velar. Através do velamento, claro e escuro permanecem ligados. Na segunda parte, no capítulo VI Imanência do sensível , Greimas discute questões de método que a semiótica apresenta sem cessar e que vive com lucidez. A busca de interpretações cognitivas é inviável, mas as fraturas permitem a fusão entre sujeito e objeto, na qual podemos sentir a satisfação da imperfeição. As sensações possibilitam sinestesias de todas as ordens sensoriais, que são relatadas em De l’imperfection: a visão (o mais superficial dos sentidos) de um seio nu; o olfato (sentido profundo, de comunicação com o sagrado) sente o cheiro de jasmim; o paladar (o sapere latino, ter sabor) converte-se em saber; a audição (desde a época romântica), fechando os olhos, a monoisotopia desse sentido aumenta a eficácia da sonoridade, quando uma gota produz som caindo sobre a bacia de cobre. O quiasma entre o sincretismo e o exclusivismo sensorial produz, por exemplo, na cerimônia japonesa do chá ou na cozinha francesa, uma tensividade do sujeito em relação ao objeto, de ordem visual e olfativa, que se constitui num verdadeiro introïbo, uma espera exaltante e retardadora do consumo. Tais tensões quiasmáticas ocorrem no plano das gestalten, em uma “deformação coerente” do sensível que permitiria encontrar correspondências “normalmente” invisíveis e outras formas mais ou menos desfiguradas, as quais uma leitura mais profunda se apressaria em atribuir novas significações, numa função metalinguística. No capítulo em que trata dO Entrelaçamento o Quiasma, MERLEAU-PONTY (1964) vê o mundo como cruzamento de duas negações; o resultado desse entrelaçamento “o próprio olhar é incorporação do vidente no visível, busca dele próprio, que lá está no visível”; o entrelaçar conflita os percursos, então o filósofo menciona que a relação entre perceber e sentir um vermelho fóssil é trazer de volta, do fundo de mundos imaginários. Não há um sentido único. Nesse sentido, interessa a intersemioticidade do texto e não a intertextualidade. Na tensão entre o vivo e o fóssil, o texto é sentido e relido no nível do imaginário. O imaginário constitui-se das tensões, percepções sensíveis, texturas, atuando num micro-universo que é o texto. Merleau-Ponty está interessado naquilo que é tensão, possibilidade da coisa, mas ainda não é a coisa; porque, entre o objeto e a percepção existe o imaginário, de modo que, enriquecendo o imaginário, se enriquece a percepção. Na tentativa de aplicar alguns conceitos de uma semiótica que busca diminuir a distância entre o inteligível e o sensível, passamos a abordar alguns aspectos da obra “Nome” (vídeo-home e livro) do poeta-cantor Arnaldo Antunes (1993). Pretendemos enfocar — e tentar entender que impacto o texto sofre sob a postura da semiótica do sensível — a música com animação de vídeo e texto impresso, cujo título é Campo e tem a seguinte letra: CAMPO Um campo tem terra. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 36-40, 2011. 37 E coisas plantadas nela. A terra pode ser chamada chão. É tudo que se vê. Se o campo for um campo de visão. ANTUNES (1993) apresenta-o da seguinte forma gráfica: À medida que as palavras se sucedem no campo, a sonoridade da música as faz vibrar. As palavras vibram como as cordas de uma guitarra, produzindo um efeito estésico de espessamento-despojamento. Por isso, a visibilidade não é pura, é permeada pela tatilidade, pela audibilidade, enfim, pelos sentidos. Então, pode-se dizer que a semiótica, aqui presente, visual, não é uma semiologia da comunicação, do signo, mas é uma semiótica que quer ser uma semiologia da significação. Portanto, estamos diante de uma semiótica do espetáculo, daquilo que é visual, é imanentista. Estudar a significação pela visualidade é procurar ver o texto como um produto produtor, de forma que se verifica: 1)Preponderância da relação sobre os termos: campo — terra terra — chão Como mencionamos, por se tratar de uma música com animação de vídeo e texto impresso, Antunes trabalha com o compartilhamento do verbal, do visual, do audível e do tátil. Estas quatro formas de sentir, sinergicamente, colaboram para a construção da poética. campo — visão Nesta relação triádica, identificamos: → terra = significado → chão = significante → campo = objeto extralinguístico capturado da realidade O campo de visão é a percepção do real, segundo o ponto de vista greimasiano. O poema é, pois, a percepção da realidade, a proto-forma do objeto, o figural. 2)Recusa de um enfoque genético em benefício de um enfoque gerativo-transformacional O título do poema é apresentado como luz na escuridão, na disposição do n.º 5 em um dado de jogo: Primeiramente, verificam-se tensões de diversas ordens: —escuro (ausência de cor) / claro (letras translúcidas) —espaço vazio / espaço preenchido —largo / estreito —espessamento / despojamento —chão (palpável) / visão (abstrata) C M A P O A tensão aqui gerada evoca o texto de Junichiro Tanizaki, analisado por GREIMAS (1987) em A cor da obscuridade, cujo velamento leva-nos à seguinte constatação: - para ver o real que está por detrás do real, é preciso velar - através do velamento, claro e escuro permanecem ligados. Ou, segundo HUYGHE (1960, p.61): “Se é um lugar-comum dizer que não haveria coisa visível sem a luz, logo se lhe acrescenta um paradoxo, a saber, que a luz pode igualmente permitir a expressão, o fazer ver aos olhos do espírito aquilo que escapa aos olhos do corpo.” 3)Enfoque imanente do texto — texto versus contexto, via enunciação 38 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2 p. 36-40, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 36-40, 2011. 39 O projeto da semiótica visual quer surpreender os caminhos da semiotização de substância plástica, surpreender nos espaços entre as linguagens. No vídeo, as palavras estão em movimento, em contraste: / terra - chão / A CONSTRUÇÃO DO HERÓI VITORIANO SOB A ÓTICA DO ENUNCIADOR DO SÉCULO XXI: IDEOLOGIA E SIMBOLOGIA / vê - chão / / visão / The construction of victorian heroe by the enunciator vision from the XXI century: Ideology and simbology / campo de visão / Assim, produzem a sinergia, pois essas palavras vibram como cordas feridas de uma guitarra, gerando efeitos musicais dinâmicos e interferindo na percepção. Torna, pois, o estésico em estético. Maria Angélica Seabra Rodrigues MARTINS Neste artigo a figura de Alice, do livro Alice na Terra das Maravilhas (1865) por Lewis Carroll será analisada do ponto de vista de Tim Burton, em sua adaptação para os filmes (2010). Levando em conta sua analise de um ponto de vista Vitoriano e sua ênfase na construção de uma heroína com uma caracterização feminina moderna, considerando as estruturas do inconsciente que permitiram o personagem a obter a sabedoria, coragem e capacidade de decidir seu próprio destino. 4)Preponderância da forma sobre a substância: - tensão entre o que é da forma e - o que é da substância Palavras-chave: Tim Burton, Alice no País das Maravilhas A plasticidade da poesia impressa apresenta-se em letras estreitas e compridas, com predominância da isotopia da obliquidade em relação à verticalidade; olhando-se verticalmente, se veem pontilhados (chão); entretanto, olhando-se horizontalmente, se lê com nitidez (visão). Portanto, produzem-se tensões de diversas ordens: verticalidade, horizontalidade, obliquidade. Observa-se uma trans — form — ação → metamorfose, no encontro mítico–mágico: matéria/sentido. Produzir sentido é exercitar metamorfoses, transformar um estado de coisas em um estado de signos. Constata-se, no texto, a poética do despojamento, do que seria o figural: In this paper the figure of Alice from the book Alice in Wonderland (1865) by Lewis Carroll will be analyzed from Tim Burton’s sight in the adaptation for the movies (2010), noticing his analysis of a Victorian argument and his emphasis to a construction of a heroine with a characterization in the female pattern at the present time, considering the structures of the unconsciousness that allowed the character to obtain the wisdom, courage and the capacity to decide its own destiny. A Keywords: Tim Burton, Alice in Wonderland figura do herói é inerente a todas as culturas humanas. Seus feitos são transmitidos aos jovens nos ritos de iniciação pelos anciãos das tribos, a fim de que adqui- ram as responsabilidades relativas a seu papel na sociedade em que — no visual, mostra-se a proto-forma do objeto, plástico e dinâmico (em constante mutação); — no verbal: → a palavra “campo”, enquanto chão, é significado; → a palavra “campo”, enquanto visão, é percepção. estão inseridos. Muitas das estórias folclóricas relatam os feitos de determinado herói, que levaram a modificações em comportamentos ou que solucionaram conflitos em determinadas tribos, muitas vezes expondo-se a perigos que poderiam lhes custar a própria vida, mas que se mostraram capazes de conduzir a uma evolução As tensões apontadas colaboram para a construção da poética, através da qual percebemos o mundo pelas suas qualidades, pelas estesias que, pouco a pouco, vão se transformando em estética. pazes de auxiliar o indivíduo em formação a entender as pressões acordo com os requisitos de sua mente consciente (ego) ou incons- ANTUNES, Arnaldo. Campo 64978192 in “Nome” music video. São Paulo: BMG Ariola vídeo-home, acompanhado de texto impresso homônimo, 1993. GREIMAS, Algirdas-Julien. De l’imperfection. Paris-França: Pierre Fanlac Éditeur, Périgueux, 1987. MERLEAU-PONTY, Maurice. Visível e Invisível. São Paulo: Perspectiva, 1964. HUYGHE, René. A Arte e a Alma. Lisboa-Portugal: Bertrand, 1960. 40 À medida que a narrativa se desenvolve, surgem elementos cado id (mente pré-consciente), oferecendo possíveis soluções, de Referências Recebido em 18 de Março de 2011. humana e moral desse indivíduo e do povo por ele representado. ciente (superego), temporárias ou permanentes, para problemas que o perturbam. Ao enfocar problemas humanos universais, as narrativas folclóricas (e os contos de fadas) auxiliam a abordagem de problemas existenciais como morte, envelhecimento, limites da vida, segundo Bettelheim (1987), que devem ser enfrentados, como Aprovado para publicação em 17 de Novembro de 2011 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2 p. 36-40, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. 41 a questão do mal, tão presente quanto a virtude e que estão figurativizados nas propensões desenvolvidas por nova versão do herói, feminina, adulta, e que marca o alvorecer de todo ser humano, as quais devem ser enfrentadas e os problemas morais solucionados de forma a promoverem a um novo século, em que mudanças significativas irão determinar o integração do indivíduo ao meio social, de forma equilibrada. novo papel da mulher na sociedade. Alice é aquela que ousa romper Ao fornecer a problemas cotidianos uma roupagem que aborde temáticas apresentadas de forma figurativizada, tais estórias propiciam que situações complexas sejam vivenciadas em um mundo de fantasia, o “lá-então”, limites, opondo-se aos ditames da restritiva sociedade vitoriana e decidir seu próprio destino como mulher. em que tudo é possível. Ao observar as lutas e bravatas do herói (ou heroína) da estória, enfrentando monstros, Dependendo do contexto em que estiver inserido, o herói tanto bruxas, florestas encantadas, o ego em formação se identifica com esse herói e compreende que também é capaz poderá representar a complexidade psicológica e ética da condição de se libertar de suas dificuldades, caso atue de maneira correta e seja persistente. A necessidade da fantasia humana, quanto transcender essa mesma condição, ao assumir vir- estaria relacionada ao fato de a criança possuir um ego frágil, em processo de construção; dessa forma, deve tudes que o ser humano comum dificilmente consegue atingir, como visualizar em um contexto exterior a ele os desejos que não consegue dominar, a fim de que possa obter algum a fé, a coragem, a determinação e a paciência. Dessa forma, ousa ir tipo de controle sobre os mesmos. (BETTELHEIM, 1980, p.71) além, destacando-se do comum dos mortais e, por isso mesmo, é A personagem Alice será analisada neste artigo, a partir do filme de Tim Burton (2010), observando-se a por eles amado (ou odiado). A Alice de Tim Burton será observa- interpretação do diretor das obras de Lewis Carrol (Alice no País das Maravilhas, de 1865, e Alice através do da como a que representa as mudanças de uma era, um reflexo do espelho o que ela encontrou por lá, de 1871) e considerando-se o encaminhamento dado pelo cineasta a um super-homem de Nietzsche, liberto de todas as amarras impostas argumento vitoriano, cuja ênfase na construção da heroína aproxima-se dos moldes femininos atuais, em que as pela época, sem arrependimentos e sem falsos moralismos. estruturas do inconsciente levam a personagem a adquirir sabedoria e a desenvolver a coragem e a capacidade de O conceito de herói remete ao herói clássico grego, que fornecia decidir seu próprio destino. A simbologia dos elementos apresentados será observada à luz da antropologia e da o modelo de conduta para a sociedade de sua época e era guiado por psicologia (individuação junguiana), utilizando como instrumental teórico metodológico as teorias do discurso, a ideais nobres e altruístas como liberdade, fraternidade, sacrifício, partir das relações envolvendo os sujeitos enunciadores, a intertextualidade e a carga ideológica que se manifesta coragem, justiça, moral, paz. Seu périplo em direção à heroicidade no contexto dessa nova versão. envolvia adquirir a sophrosyne ou temperança, marca característica do verdadeiro herói. Héracles e Ulisses despenderam longo tempo e Alice: a heroína no limiar de uma nova era muitas ações para a alcançarem, e, no caso do primeiro, também o direito à divindade, por meio do martírio pelo fogo; no caso do na- A estória de Alice no País das Maravilhas, na versão cinematográfica de Tim Burton (2010) apresenta uma Fig. 3 Alice na versão de Lewis Carroll vegador, as muitas peripécias para domar sua prepotência e obter de (século XIX) Poseidon, a quem ofendera, a permissão para voltar para seu oikos, seu lar, o que somente ocorre com a interferência de Zeus. No caso de Alice, os acontecimentos que envolveram o século XIX e que surgem na obra de Lewis Carroll, por meio das marcas deixadas no discurso pelo enunciador, serão retomadas no intertexto estabelecido por Tim Burton, a partir de Alice no País das Maravilhas (1865) e Através do espelho e o que encontrou por lá (1871), enfatizando aspectos que o enunciador considera pertinentes, a partir da visão que o homem do século XXI tem das transformações vividas pela mulher, em decorrência dos acontecimentos que pontuaram a segunda metade do século XIX, e o século XX. Se a visão do primeiro escritor está contextualizada no universo vitoriano, a do diretor perpassa uma visão abrangente dos acontecimentos, produzindo um modelo de heroína com características marcadamente feministas. Se o herói grego constituía um reflexo da sociedade de seu tempo, a Alice de Tim Burton é aquela que evidencia mudanças significativas no universo feminino, a partir da visão de um indivíduo de época posterior ao ocorrido e que imprime sua marca a seu discurso. Dessa forma, se revela ao receptor elementos que remetem ao contexto de época em que esse discurso foi escrito, de certa forma à revelia do autor, também não deixa de apresentar a interpretação do diretor acerca desses fatos, o que remete a Bakhtin, quando afirma que existe na Fig. 2 Alice – Tim Burton linguagem “vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance em um sistema estilístico harmonioso (...)”(BAKHTIN, 1988, p. 106) o que leva a identificar a língua 42 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. 43 como “uma opinião plurilíngue concreta sobre o mundo”(IDEM). Existe, portanto, a inter-relação entre dois vitoriana reagir contra os reguladores sociais da época, o que seria enunciados: o do contexto de época pesquisado e o transformado pelo roteirista e recriado pelo diretor, em dis- inadmissível, naquele contexto histórico-social, mas que constitui cursos que dialogam entre si, produzindo efeitos de sentido que, ao mesmo tempo em que contam uma estória, um eco da modernidade do século XXI, estabelecendo uma relei- também a contam com a marca do enunciador/diretor, construindo uma visão plurilíngue do mundo, no conceito tura da obra de Lewis Carroll, em que a garota que cai na toca do bakhtiniano: coelho pode apenas sonhar com um mundo diferente de fantasias. Com base nas transformações sociais e históricas que perpassam os O diálogo das linguagens não é somente o diálogo das forças sociais na estática de suas coexis- séculos XIX e XX, modificadoras do papel da mulher, levando-a a tências, mas é também o diálogo dos tempos, das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce; assumir sua participação enquanto sujeito, em um novo mundo em aqui a coexistência e a evolução se fundem conjuntamente na unidade concreta e indissolúvel de que o feminismo se impõe, o intertexto apresenta a Alice Kingslei- uma diversidade contraditória e de linguagens diversas. (BAKHTIN, 1988, p.159) gh atual manifestando rebeldia, traços de reação ao sistema em que a história está inserida, evidenciando que não aceita as imposições, Dessa forma, segundo a teoria bakhtianiana, o discurso seria observado como mecanismo dinâmico, em que desde o não uso do corpete e das meias em uma ocasião especial, “todos os termos de um texto vêm inseridos em múltiplas situações, em diferentes contextos linguísticos, históri- até a não aceitação imediata do casamento com um lorde, ambição cos e culturais”, segundo Lopes (2003, p.70), o que leva à pluralidade de sentidos em um texto, a sua construção máxima das donzelas da sociedade de seu tempo. Tim Burton man- dialógica. Kristeva ao retomar Bakhtin e considerar no texto a noção de sujeito, do destinatário e dos textos tém o corpus básico de Carroll, ambientando sua estória em um externos, observa que essas três dimensões realocam em dois eixos as relações entre o sujeito e o destinatário suposto futuro da Alice original, com traços de contemporaneidade, (horizontal) e o espaço onde as palavras se manifestam em direção ao corpus literário (vertical), encontrando o que Lopes (2003) denominaria “visceralmente ideológico”. outra esfera de existência, isto é, tornando-se discurso. O dialogismo entre o texto literário de Carroll e o de Burton Por meio da leitura ocorre a apropriação de um texto por outro, em que se cria uma nova significação; dessa perpassa a retomada do tema do primeiro, revestindo-o de um novo forma, “toda sequência está duplamente orientada: para o ato de reminiscência (evocação de uma outra escrita) e investimento ideológico, possível para o homem do século XXI, para o ato de intimação (a transformação dessa escritura)” (KRISTEVA, 1978, p.121). Nesse processo Kristeva que pode retomar a obra original, apresentando na ficção um sal- retoma o dialogismo bakhtiano, analisando-o tanto sob a ótica da subjetividade, quanto da comunicatividade, to de apenas treze anos, quando na realidade sua Alice transporia substituindo a noção de intersubjetividade pela de intertextualidade (cf. LOPES, 2003, p.71), conceito por ela mais de um século, o que justifica também a “muiteza” (coragem, criado em 1969. Com base nesse direcionamento, a noção de “pessoa-sujeito da escritura” cede espaço à da “am- ousadia, na colocação do Chapeleiro Maluco) de que se investirá a bivalência da escritura” (KRISTEVA, 1978, p.121). Dessa forma, um texto dialoga com outros textos, embora personagem ao longo da estória. Fig. 5 -Alice - Tim Burton também reflita as vozes de seu tempo, os hábitos, os valores, as crenças e a história de um grupo social, seus anseios e temores.[ ] Retomando Eichembaum (1970): Nessa releitura da Alice de Lewis Carroll (Fig. 3), observa- A obra de arte é percebida em relação com as outras obras artísticas, e com ajuda de associa- -se a carnavalização bakhtiniana, ções que são feitas com elas. Não apenas o pastiche, mas toda obra de arte é criada paralelamente que se manifesta em um “mundo e em oposição a um modelo qualquer. A nova forma não aparece para exprimir um conteúdo novo, de ponta-cabeça, em que se sus- aparece para substituir a velha forma que perdeu seu caráter estético. (cf. LOPES, 2003, p.73) pendem todas as regras, as ordens e proibições que regem as horas Segundo Zani (2003), como o conceito de dialogismo extrapola a literatura e a história de suas fontes, mani- do tempo de trabalho na ‘vida festando-se no interior de produções artísticas e culturais variadas (pintura, cinema, música, literatura), em uma normal’, segundo Lopes (2003, polifonia “onde vozes subexistem, como uma relação intertextual” (p.126), capaz de se estender por vários meios p.77), “quando a ordem, o bom e períodos, refletindo a intertextualidade tanto desempenhos anteriores do próprio autor, quanto as influências de senso, as leis e as hierarquias que outros autores, o que se manifesta por meio da projeção da enunciação no enunciado, e que faz da comunicação organizam nosso mundo cotidia- um “exercício dialógico” (LOPES, 2003, p.73), polifônico e “visceralmente ideológico” (IDEM), à medida que no são virados para o avesso, e as o enunciador imprime seu direcionamento ao constructo de seu texto-discurso. distâncias firmemente estabeleci- Dessa forma, observa-se que Tim Burton imprime a sua versão de Alice à possibilidade de o sujeito/mulher 44 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Fig. 4 Chapeleiro Maluco - Tim Burton Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. 45 das pelas convenções são abolidas” (IDEM), impondo-se um novo modo de relações humanas, que surge em por exemplo). oposição às relações sociais: “A conduta, o gesto e a palavra do homem se libertam da dominação das situações A polifonia surge nesse mundo em tons pastéis hierarquizadas (camadas sociais, graus, idades, fortunas) que as determinam inteiramente fora do Carnaval e se onde tudo aparentemente é perfeito, como marca tornam excêntricas, deslocadas do ponto de vista da lógica da vida habitual”. (BAKHTIN, 1970, p.170) das situações contraditórias: uma irmã feliz se- A sugestão de que o modus operandi dessa nova Alice será diferente é apresentado logo no início, quando, gundo as convenções, mas traída pelo marido; um ao invés de meninas brincando no jardim, como na obra de Carroll, surge uma reunião de homens de negócios noivo lorde, expectativa de toda donzela, mas em e uma Alice criança que, acordando após um pesadelo, surpreende a conversa dos adultos e a fala emblemática um noivado arranjado, sem relações afetivas; uma do pai que marcará seu percurso ao longo da estória: “A única forma de alcançar o impossível é acreditar que moça de dezenove anos que foge de um pedido de é possível”. O diálogo com o pai acerca do medo da loucura, ao lhe contar o sonho com o coelho de paletó, a casamento, quando o maior risco para toda moça lagarta azul e o pássaro dodô evidencia um “exercício polifônico” em uma visão diferenciada do mundo, pois da época era não encontrar um noivo... Mas, como em um contexto onde não seria adequado incentivar-se a fantasia nas crianças, uma vez que a própria infância afirma Bakhtin, todo discurso ideológico que repre- não deveria ser estimulada, mas rapidamente transposta, segundo Ariès (1981), o pai diz a Alice não se preocupar senta o lado pretensamente sério da vida é manipu- com o inadequado, pois entre as pessoas que conhecera as malucas eram as mais interessantes: latório, o discurso que se constrói entre o lado de fora e o de dentro da toca do coelho objetivam ma- ALICE: -- Será que estou louca? PAI: -- Receio que sim. Você é louquinha. Maluca. Pirada. Mas vou lhe contar um segredo: as melhores pessoas o são. (...) nifestar no sujeito Alice a possibilidade de transfor- Fig. 7 – colorido Mundo Subterrâneo mar sua capacidade em estado virtual de se rebelar em atualização, ao transformá-la de inconformada em heroína, o que ocorrerá em seu percurso no País das Maravilhas para provar a todos que é a “verdadeira” Treze anos após, o dialogismo se manifesta, no contato com o mundo do futuro noivo, que tenta dominar sua imaginação: Alice, ou seja, a que aprendeu, quando criança, a capacidade de ir contra o sistema e de passar de potência ao ato. Segundo Lopes (2003), a ficção da modernidade “nasce do encontro de vozes diferenciadas que se somam, se interenunciam, se contradizem, se homologam e se infirmam umas às outras – em síntese, se relativizam mu- HAMISH: -- Por que gasta seu tempo pensando em coisas impossíveis? tuamente” (p.76): “o resultado é que a intertextualidade nasce da percepção da disjunção existente entre essas ALICE: -- Papai dizia que acreditava em seis coisas impossíveis antes do café. duas vozes, essas duas consciências, esses dois discursos, homólogos narrativos das contradições profundas que coexistem a cada instante dentro e fora de uma mesma coletividade” (IDEM) É o choque de dois universos em que Dessa forma, Tim Burton apresenta um discurso em que dois textos se contradizem, de maneira a que um o mundo em tons pastel, marcado pelas surge como uma inversão jocosa, paródica, ridícula do outro, segundo a visão cotidiana do mundo, dentro do que convenções sociais hierarquizadas do Bakhtin denominaria carnavalização, a tal ponto que não se sabe qual seria o verdadeiro e qual o falso, ou qual o noivo irá contrastar vivamente com as real e qual o imaginário, nos mundos de Alice, o que lhe deixa a opção da escolha. cores fortes e com o inesperado do País das Maravilhas (Fig. 6 e 7). Alice foge do convencional, ao ser inquirida pelo A competencialização do herói noivo com um pedido de casamento para o qual não tem uma resposta, no mo- Além de Bakhtin, outros estudiosos que se dedicaram à visão funcionalista da língua, os chamados formalis- mento, e “mergulha na toca do coelho”, tas russos, também renovaram a metalinguagem crítica, fornecendo novos modelos de análise do texto literário. um mundo que existia em sua imagina- Entre eles destacam-se Jakobson, e seus estudos sobre as funções da linguagem, particularmente a relação entre ção, em que a paisagem é desafiadora, a emotiva e a poética; Eikhenbaum e Tomachevski, analisando elementos como a entoação e o ritmo no verso e as cores fortes e as convenções não são na prosa; Tynianov, com uma metodologia para os estudos literários (LOPES, 2010); e Propp, apresentando um respeitadas (o Chapeleiro Maluco cami- estudo da estrutura dos contos fantásticos (ou maravilhosos), por meio da observação das repetições que obser- nha sobre a mesa posta para o chá para vou nos mais de 400 contos populares russos analisados: recebê-la, a rainha descansa seus pés soFig. 6 – pálido mundo exterior 46 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. bre um porco, ao invés de uma almofada, O fato de que os contos são compostos sempre dos mesmos elementos serve a Propp como prova Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. 47 de sua origem comum. A Morfologia o leva a vislumbrar o fator social que constitui a protoforma O percurso que a leva a se tornar heroína é o desenvolvido no subjacente ao conto: é o caso do ritual de iniciação como fonte arcaica dos motivos do conto mági- País das Maravilhas, o “lá-então” de que fala Bettelheim (1987). co. A lei da metamorfose, fundamental na morfologia goethiana, vem completar o paralelismo entre Alice-adulta tem que se fazer diminuta para entrar nesse reino, em essas duas manifestações. As duas morfologias - a de Goethe e a de Propp - representam a busca de que a temática remete à infância e à época de fantasias estimuladas leis capazes de descrever a repetição dos fenômenos e também a causa da repetição. Longe de um pelo pai (agora falecido). Observa-se no líquido que a faz enco- interesse abstrato pela composição literária, a morfologia proppiana fundamenta-se nessa repetição lher a figurativização do retorno a um tempo em que se alcançava presente nos contos russos. (LOPES, 2010, p.13) o impossível, meramente acreditando-se ser possível, por isso ela toma o conteúdo do frasco onde está escrito “Drink me” e encolhe; da mesma forma come o pedaço do bolo (Altenstrudel), quando Propp observou que certas estruturas, principalmente as relativas à natureza oral dos contos, permitia-lhes precisa crescer para pegar a chave sobre a mesa. que fossem transmitidos através dos séculos, sem que sua essência desaparecesse, apesar da interferência do Nesse novo mundo aonde Alice-adulta chega, o tempo-espaço narrador, podendo alterar certos elementos para adaptá-lo à compreensão de seu público, características do conto não são marcados como no mundo exterior, por isso o questiona- que Jolles (1976) denomina “formas simples” e que permitia que fosse compreendido por todos. Ao se isolar as mento apresentado pelos habitantes do Mundo Subterrâneo quanto partes elementares de um conto, surgia uma morfologia, ou seja, “uma descrição do conto maravilhoso segundo a ela ser a mesma que um dia estivera lá. Segundo Pinel (2003), a Fig. 8 – A sábia lagarta Absolem as partes que o constituem, e as relações destas partes entre si e com o conjunto” (PROPP, 1984, p.25). Por se trajetória do herói relaciona-se a seu posicionamento diante dos tratar de uma narrativa breve, objetiva e compacta, em sua estrutura importava saber o que fazem as personagens acontecimentos do mundo, caminhando do egoísmo para o alocentrismo, ou seja, em sua evolução aprende a ter (IDEM, p.26), pois o conto maravilhoso atribui ações iguais a personagens diferentes, o que permite o estudo os outros como seu centro de interesse. Nesse percurso, suas atitudes envolvem adquirir conhecimento sobre os desses contos “a partir das funções dos personagens” (p.25), entendendo-se por função “o procedimento de um fatos, motivar-se a ocupar o lugar ou a desempenhar a função esperada, mostrar-se pronto a novos aprendizados personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação” (p.26) (com humildade), ser audacioso (ter coragem), e fazer por merecer. Nesse percurso, compreende o sentido da Propp (1984), também identificou um modelo abstrato presente nas estruturas desses contos, capazes de pro- vida e o valor do coletivo, o que o motiva a não mais pensar de forma egocêntrica. Dessa forma, ao ser apresen- duzir o “efeito narrativa”, manifestando-se, em princípio, na inversão da situação inicial: assim, a uma situação tada a Absolem, o guardião do Oráculo – um pergaminho mágico que revela presente, passado e futuro – quando inicial de carência, envolvendo o herói, segue-se a liquidação dessa carência; se houver a ruptura de um contrato, lhe indagam se é a Alice verdadeira, a lagarta, como o arquétipo do velho sábio, responde: “Não totalmente”, ou termina com o restabelecimento desse contrato, por exemplo. Greimás, na linha estruturalista, retoma os estudos seja, Alice precisaria, como afirma Pinel, aprender a ter os outros como seu centro de interesse, desenvolver o de Propp e observa que as sequências propostas estão abrigadas em uma estrutura, cujo padrão marca o percurso altruísmo, para poder se tornar digna de portar a espada Vorpal e matar o Jaguadarte no Gloriandei. do herói, em um modelo triádico das provas perfomanciais, que denominou prova qualificante, em que ocorre a aquisição da competência por parte do sujeito (querer e dever, poder e saber); prova principal, ou perfomance do sujeito e muitas vezes um lugar de confrontação com um anti-sujeito; e a prova glorificante ou lugar de reconhecimento do sujeito, isto é, a sanção do contrato estabelecido. Na década de 60, Greimás concluiu que o percurso do sujeito articulava, de forma regular, quatro percursos encadeados: manipulação, competência, perfomance e sanção. Na manipulação, um destinador (um sujeito que faz fazer) exerce sobre um destinatário (sujeito operador) um fazer persuasivo, induzindo-o a um querer ou a um dever fazer, mediante a apresentação do objeto de sua ação e levando-o a um fazer-crer. Dessa forma, estabelece-se entre ambos um contrato fiduciário, que no final do percurso será sancionado pelo destinador como positivo ou negativo. (BARROS, 1990) Em Alice no País das Maravilhas (2010) de Tim Burton, o não conformismo de Alice, atuando como destinador, a induz a um querer-fazer/não aceitar o casamento arranjado, o que a leva a empreender a fuga para adquirir a competência (ou prova qualificante) para, na condição de donzela da era vitoriana, renunciar a seu papel social de mulher submissa a um casamento como única opção feminina. Dessa forma, a estória introduz um improvável Fig. 9 - O monstro Capturandum argumento – para a época – o da escolha da mulher por uma profissão exclusivamente masculina (dirigente de uma empresa de navegação), ao invés da vida como mãe de família e dama da sociedade, uma marca deixada no discurso pelo enunciador Tim Burton. 48 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. 49 A heroína irá desenvolver seu percurso a partir das provas que XIX, no filme de Tim Burton, a questão da loucura é abordada com a ruptura da noção de valores espaciais: o enfrentará para se qualificar até desempenhar sua prova glorifican- Chapeleiro vem saudar Alice que chega com o gato, atravessando por sobre a mesa vitoriana posta para o chá; da te, quando realiza o esperado: matar o Jaguadarte e libertar o reino mesma forma, a lebre despeja o líquido em uma xícara com o fundo quebrado; e Alice, diminuída por um líquido da Rainha Branca, destruindo a Rainha Vermelha. No terreno do dado pelo Chapeleiro, para escondê-la dos guardas da Rainha Vermelha, é colocada dentro de um bule de chá. “aqui–agora”, irá se competencializar para realizar sua performan- Nesse universo contraditório, cabe ao Chapeleiro revelar a Alice seu papel, recitando-lhe o mito presente no ce principal: ser capaz de matar o Jaguadarte, seu medo maior, para oráculo, primeiramente em linguagem cifrada: “Estava briluz e os silvos tovos gireavam e gimbolavam no vabar. enfrentar o mundo exterior e realizar a sanção positiva, do ponto de Tão mimíssicos eram os borogovos que os momequis foram transgabar”. vista do destinador. A primeira prova é a do confronto com o Capturandum, ani- que mordem e presas que agarram. Cuidado com o Jaguadarte, filho. E o frumioso Capturandum. Ele empunhou mal semelhante ao puma, batedor dos guardas da Rainha Vermelha. sua espada Vorpal: a Lâmina Vorpal que fura quem a encara. Ele o deixou morto, mas com a cabeça. Ele retornou Alice não acredita ser real o que está passando, mas parte de um galopando vitorioso.” sonho, então não se move e se belisca (como o pai a ensinara) para O Chapeleiro revela a Alice que o mito é sobre ela, mas a futura heroína recua: “Eu não mato. Então tire isso acordar, mas é ferida pelas garras do animal, o que configura, se- da mente”, ou seja, o sujeito Alice ainda não desenvolveu a competência do poder-fazer, para conseguir realizar gundo a análise de Propp (1984, p.35) , o dano, que determina “o sua performance principal. nó da intriga”, inserindo Alice no contexto da estória, pois precisa Como resposta, agindo como destinador de uma ação, o Chapeleiro procura manipular Alice, a partir da inti- ser auxiliada pela ratinho alfaiate (adjuvante) que arranca um olho midação, despertando-lhe um dever-fazer: “Mente? Você não mata (jocoso). Tem alguma ideia do que a Rainha do animal com sua agulha, para que Alice possa fugir. Entretanto, Vermelha fez?” . Alice procura se defender: “Eu não conseguiria se quisesse”. Então ele retorna à manipulação esse ferimento também acrescenta um outro aspecto ao conto, pois por meio da provocação: “Você não é mais a mesma de antes. Você era muito mais... muitais. Perdeu sua muite- antecipa a função em que o herói é marcado (marca, estigma), que za”. Ao que ela responde, aceitando a provocação: “Minha muiteza?”. O Chapeleiro responde, apontando-lhe o lembrará a personagem durante toda a trama, de que não está vi- peito: “Aí dentro. Falta algo”. Estabelece-se o fazer-crer entre destinador e destinatário, quando Alice pede-lhe vendo um sonho. que conte o que a Rainha Vermelha fez, embora ele a advirta não ser uma estória bonita; ela lhe pede que também Ao fugir, Alice e os gêmeos Tweedledee e Tweedledum Fig.10 Tweedledee e Tweedledum Como ela não compreende a linguagem cifrada, continuou: “O jaguadarte com olhos de fogo. Mandíbulas fale sobre o ataque do Jaguadarte ao reino da Rainha Branca e a destruição. (Fig.10)– personagens originais de outra obra de Lewis Carroll, Após a narração dos fatos, chegam os soldados da Rainha Vermelha e, para que Alice escape, o Chapeleiro Através do espelho e o que Alice encontrou por lá (1871) – chegam a coloca (ainda diminuta) na aba de sua cartola e a atira na outra margem do lago, dizendo-lhe para fugir para o a uma encruzilhada em uma cena que traça um intertexto com o reino da Rainha Branca. Ocorre a terceira prova, pois no dia seguinte, após ter passado a noite escondida sob a filme O mágico de Oz de 1939, na qual há duas placas com in- cartola, Alice é encontrada pelo cão Bayard, a serviço da Rainha Vermelha, que se mostra amigável e lhe conta dicações confusas: Sub sul (SNUD) e Subleste (QUEAST), que que o Chapeleiro foi pego. Ao invés de se salvar, Alice pede ao cão que a leve ao encontro da inimiga, em Salazen remetem à confusão da própria mente da futura heroína. Nesse mo- Grum, para salvar o amigo, ocorrendo nova prova de altruísmo. Alice cavalga o cão como se fosse um corcel de mento, ocorre a segunda prova, quando os meninos são levados um herói e desenvolve nova performance secundária. por um grande pássaro JubJub e Alice fica só, tendo que enfrentar A prova seguinte a espera na chegada ao castelo, cercado por um fosso onde boiam cabeças dos inimigos, o medo da solidão em terras desconhecidas. Motivada pelo desejo justificando o mote (e a crueldade) da Rainha Vermelha: “Cortem-lhe a cabeça!”. Alice deve pisar sobre elas de ir em auxílio dos gêmeos, Alice embrenha-se em uma floresta para transpô-lo, municiando-se de coragem, ela vence essa prova e penetra nos jardins do palácio, justamente no escura, com árvores retorcidas – marca de Tim Burton – quando instante em que a rainha joga crícket com um ouriço como bola. Alice liberta o animalzinho, em um ato heróico, surge o Gato de Cheshire (Fig. 11), como adjuvante, que cuida de realizando performances secundárias, ainda como pequenina, mas que a preparam para o Gloriandei, cujo papel seu ferimento, apenas para que não infeccione, embora não o faça principal – o de heroína – ainda não aceita. desaparecer, e a conduz ao Chapeleiro Maluco e à Lebre de Março. No jardim, pede ao coelho branco um pedaço do doce que a faz crescer e, como fica muito alta, utiliza-se desse fato como um ardil, ao ser encontrada pela rainha, dizendo-lhe ser uma fugitiva da terra de Afensa, pois Fig. 11 – Gato de Cheshire 50 Um aspecto interessante abordado quanto a esse encontro é que crescera muito e os seus não mais a aceitavam. Dessa forma, enquanto destinador, utiliza a sedução por meio de se Lewis Carroll trata da questão do tempo, com a discussão à mesa um saber-fazer sobre a rainha/destinatário e obtém a sanção positiva, pois a tirana se identifica com ela, devido girando em torno de o relógio do Chapeleiro não estar funcionando ao tamanho de sua cabeça e a acolhe como “protegida”, estabelecendo-se entre ambas um contrato fiduciário. direito para marcar o dia, quando deveria marcar a hora, no século Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Nesse episódio há um intertexto a ser considerado com a Odisseia de Homero, pois Ulisses também se utili- Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. 51 zou de um ardil semelhante, para entrar nos muros de Troia, dentro de um enorme cavalo. A Alice diminuta ou Dessa forma, o tema da transformação do indivíduo em heroína está figurativizado no abandono das vesti- em tamanho normal (reconhecível), não poderia fazê-lo, mas imensa, pode entrar, incógnita (chegada incógni- mentas femininas, contra as quais ela já esboçara descontentamento no mundo exterior, ao não vestir o corpete to, na teoria de Propp), o que, o que permite o desencadeamento das outras funções: um falso herói apresenta e as meias para a festa. No Mundo Subterrâneo não há o regulador social que a impede de assumir, agora, seus pretensões infundadas (pretensões infundadas), que se traduz pelos planos da Rainha Vermelha e do Valete de desejos, o que fica evidente no próprio reconhecimento de seu ego, no contato a seguir com Absolem, que tam- dominarem no Gloriandei e de Alice se tornar a nova protegida da Rainha. bém está finalizando seu processo de transformação, fechando-se em um casulo: Na sequência, é proposta à futura heroína uma tarefa difícil (tarefa difícil): Alice deve tomar a espada Vorpal guardada pelo temível Capturandum; por meio da sedução, o destinador Alice, utilizando-se de um saber-fazer, ALICE: Absolem? Por que está de cabeça para baixo? devolve ao animal o olho que lhe fora anteriormente arrancado pelo ratinho e obtém a adesão do destinatário, ABSOLEM: Cheguei ao fim desta vida. que por meio de um querer-fazer permite que ela pegue a chave pendurada em sua coleira e abra o baú onde está ALICE: Você vai morrer? a Vorpal. A sanção desse percurso do sujeito é, portanto, positiva, e Alice dá mais um passo rumo a sua heroici- ABSOLEM: Transformar-me. dade. A tarefa é realizada (realização da tarefa). ALICE: Não vá. Preciso de sua ajuda. Não sei o que fazer... O Chapeleiro e o Ratinho são condenados à decapitação pela Rainha Vermelha, mas organizam uma revolu- ABSOLEM: Não posso ajudá-la se você nem sabe quem é, menina idiota. ção, no momento da execução da pena, conclamando o povo à luta contra a tirana, no que são atendidos. Alice ALICE: Eu não sou idiota! Meu nome é Alice. E moro em Londres. Minha mãe se chama Helen surge na praça montando o Capturandum e, em meio à confusão, o ratinho grita “Fuja, Alice!”, momento em e minha irmã, Margaret. Meu pai se chamava Charles Kingsleigh. Ele tinha um projeto de viajar ao que o herói é reconhecido (reconhecimento), também ocorrendo na sequência o desmascaramento do malfeitor, redor do mundo e nada o deteve. Eu sou filha dele. Eu sou Alice Kingsleigh. quando o Chapeleiro chama a rainha de Cabeçuda e mostra que toda a corte usava disfarces (narizes, orelhas, barrigas postiças) para ficarem feios e serem aceitos pela tirana. ABSOLEM: Alice, finalmente! Você era tão tola quando esteve aqui pela primeira vez. Pelo que me lembro, chamava de “País das Maravilhas”. Ao chegar a Marmoreal, Alice executa nova performance, entregando à Rainha Branca a espada Vorpal, dizendo-lhe que a devolvia a quem ela de fato pertencia. Entretanto, ocorre uma tentativa de manipulação do Alice então se recorda dos acontecimentos de sua infância no mesmo local, tornando-se um sujeito agora destinador/rainha sobre Alice, quando afirma que a armadura já estava completa, faltando apenas o campeão competencializado segundo um poder e um saber-fazer, estando apta a vestir a armadura (Fig.14) e a empunhar que a vestiria para enfrentar o Jaguadarte e olha significativamente para Alice, o que sugere a provocação se- a espada Vorpal. Contrariando as expectativas dos amigos, Alice/heroína chega montando o Capturandum, a fim gundo um saber-fazer, atribuindo ao destinatário/Alice um dever-fazer. Entretanto, como parte de seu processo de realizar sua performance principal: matar o Jaguadarte. Segundo Resende (2010): “A lagarta é um ser raste- persuasivo de levar o destinatário primeiramente a crer nas razões do destinador, Mirana dissimula, rapidamente jante que fica independente na forma de borboleta. Pode-se dizer que Alice “rasteja” em sua vida, ao contrário do acrescentando que Alice é um pouco mais crescida do que esperava (para usar a armadura). O destinatário/Alice, dinamismo e brilho que alcança ao final da aventura.” induzido, em parte, pela manipulação do destinador/rainha, conta que sua altura se devia ao excesso de Altestrudel, então Mirana prepara-lhe uma poção para que retorne ao tamanho normal. No campo de batalha, con- A função o herói recebe nova aparência (transfiguração) apresenta-se na roupa com que Alice surge vestida: frontam-se as irmãs Iracebeth, a túnica e calças compridas, como um príncipe hindu, em um lugar onde reina a extrema feminilidade nos vestidos, irascível Rainha Vermelha, tema nos gestos, na aparência e na voz suave. da fúria e do descontrole do mal, Fig. 14 - Alice campeâ da Rainha Branca figurativizados no nome e na aparência (cabelos vermelhos, testa larga, roupas de época) em Elizabeth I, rainha da Inglaterra; e Mirana, nome de provável origem latina, significando mulher sábia, admirável, tematizando o Bem, o que está figurativizado nos gestos contidos, na fala suave, no temperamento controlado e na presença do branco e do azul, cores suaves; Fig. 12 - Alice: tranformação da donzela vitoriana em mulher decidida 52 Fig. 13 – Conversa final com Absolem e redescoberta de si mesma Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Entretanto, também apresenta ati- Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. 53 parada para deixar o Mundo Subterrâneo, pois adquiriu a coragem, a persistência e a sabedoria necessárias para construir próprio seu futuro. Fig. 15 – Alice enfrenta o Jaguadarte A grande batalha e o universo junguiano A temática do Bem e do Mal está figurativizada, no campo de batalha, tanto nas cores, quanto no aspecto de cada jogo: no de xadrez, com peças brancas a descoberto, vence o raciocínio, a sabedoria; no de baralho, cartas vermelhas, a trapaça, o que será visível, quando Iracebeth, ignorando a proposta de paz de Mirana, apresenta sua maior arma, o Jaguadarte. O excesso de racionalismo da cabeça volumosa, que impede o controle das emoções (Iracebeth não consegue lidar com o ciúme do relacionamento dos pais com a irmã, por isso faz cobranças carregadas de ira a seu redor); e o lado extremamente feminino de Mirana, que precisa de um cavaleiro que vista a armadura, pois é tudes dissimuladas, a preferência por tratar com seres mortos, batom, unhas e sombrancelhas negras, em um vivo contraste com o branco predominante no reino marmóreo, sugerindo um outro traço de sua personalidade, trazido ferreamente sob controle. O confronto com o Jaguadarte é marcado pelo encorajamento a partir da recordação do pai das seis coisas impossíveis, que ela atribui a seu próprio percurso no Mundo subterrâneo e vai recitando, enquanto enfrenta o monstro: beth e Mirana representam o animus e a anima exacerbada, entre esses dois arquétipos Alice deve aprender seu próprio autocontrole. Segundo Resende (2010): (...) Alice confronta os dois opostos de si mesma – Iracebeth e Mirana – e Seis coisas impossíveis. Conte-as, Alice. Um: há uma poção que faz você encolher. Dois: e um bolo que faz você crescer [ataca o animal e corta-lhe a língua; ele a joga no chão com a cauda]. Tres: animais podem falar. Quatro, Alice!: Gatos podem desaparecer! Cinco: existe um lugar chamado País das Maravilhas. Seis: eu consigo matar o Jaguadarte. Retomando Jung, Rezende (2010) esclarece que quanto mais largo o campo da consciência, quanto mais o indivíduo se conhecer, maior será o livre arbítrio, mais possibilidades se apresentarão e poderão ser concretizadas pelo eu: “O eu possui o livre-arbítrio – como se afirma, mas dentro dos limites do campo da consciência” (JUNG, 1990a, p. 4, cf, RESENDE, 2010) Alice, um sujeito devidamente competencializado segundo um poder e um saber-fazer, realiza sua performance principal, mata o Jaguadarte, obtendo a sanção positiva, e devolve o Reino à Rainha Branca. Entretanto, como a competencialização também envolve adquirir a capacidade de agir por si mesma e de improvisar quando necessário, contrariando o oráculo, que dizia que ela matara o Jaguadarte mas não lhe cortara a cabeça, Alice imprime sua marca ao momento presente e, de um salto, pula sobre o pescoço do monstro e com um único golpe decepa-lhe a cabeça com a Vorpal, o que causa estranhamento aos amigos. Dessa forma, a nova Alice está pre- 54 incapaz de matar qualquer ser vivo; sob a ótica junguiana, Irace- Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. leva o melhor dos dois, apesar deles acabarem se separando novamente. Mas o conhecimento advindo do seu embate ficou e transformou a personagem. Sua persona acaba se constituindo como uma armadura, que precisa usar para saber se impor aos circundantes e tomar as rédeas da sua vida. A ênfase agora recai em Mirana, que passou a reinar no mundo subterrâneo. (...) Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. 55 a Rainha Branca fornece uma persona de guerreira e encarna também o feminino. Como símbolo do exigirá um afastamento dos elementos da “caverna” em que esteve aprisionada, para encontrar a si mesma, sua Si-mesmo detém os opostos em si, e usa de dons sobrenaturais. Apoia uma mulher em uma época de força interior e fazer valer sua vontade. preconceitos, rigidez e pressões, e fornece-lhe os instrumentos interiores para seu sucesso. Como protagonista da estória, Alice, representa o ego, aquilo que o indivíduo conhece sobre si mesmo ou, como afirma Jung, o ego “é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa” (1990A, p. 1, cf. RESENDE, 2010). A simbologia presente nesses dois aspectos torna-se patente na busca de Alice pelos momentos em que es- Tais atos corresponderiam a ações baseadas no uso da própria vontade e com objetivos bem definidos, por isso teve com o pai – seu exemplo de animus empreendedor, destemido, audaz – uma vez que no universo vitoriano é através dele que o indivíduo pode ou não mudar seu destino e também por isso somente Alice pode matar o em que vivia estava a mulher cercada de normas e regras que impediam o desenvolvimento da racionalidade, Jaguadarte (IDEM), optando por cortar-lhe a cabeça, o que não estava determinado anteriormente, no oráculo, pautando seus atos em uma persona marcada por atitudes suaves (porém irreais), similares às da Rainha Branca. pois seu ego ainda não estava formado. Já a atitude típica da Rainha Vermelha, no universo junguiano vista como aquela que não consegue desenvolver Dessa forma, deve desenvolver um percurso rumo à heroicidade, enfrentando diferentes desafios, rumo a sua a persona, o trato social, geralmente é temida, não desejada. O coelho branco que surge no momento de decisão individuação. Nesse trajeto, encontra diferentes auxiliares e oponentes que a auxiliam ou instigam em momentos no mundo real é o símbolo que indica a Alice o momento de resgatar sua capacidade de ação, sua “muiteza”, ou críticos. Assim, é conduzida por um adjuvante, o sorridente Gato de Cheshire, quando está para errar o caminho; seja, a capacidade de reagir, de colocar-se contra os ditames da sociedade e seguir seu próprio destino. é aconselhada pela lagarta Absolem (arquétipo do velho sábio), que também lhe sinaliza o momento de se trans- Segundo Jung (2008), quando um arquétipo surge em um sonho, na fantasia ou na vida, ele fornece ao formar, ao passar de verme a borboleta (símbolo de transformação: morte e vida, liberdade), evidenciando que indivíduo uma força que gera fascínio ou impele à ação. O ser humano possuiria “uma psique pré-formada de Alice estaria pronta para aceitar novos desafios no mundo exterior, assumindo sua própria vontade. Tim Burton acordo com sua espécie, a qual revela também traços nítidos de antecedentes familiares” (JUNG, 2008, p.90) enfatiza o inconsciente sombrio, com figuras que o marcam como a um pesadelo, como o estranho Valete de determinada a partir de formas de função denominadas por ele “imagens”, que expressam não apenas a forma Copas (o protetor da Rainha Vermelha), as árvores ressequidas, o céu enevoado, o contraste entre o branco e o da atividade a ser exercida, mas também, simultaneamente, a situação típica na qual se desencadeia a atividade: negro no reino da Rainha Branca, e entre o vermelho e o negro no reino da Rainha Vermelha, uma tirana a quem faltam emoções adequadamente desenvolvidas. Tais imagens são “imagens primordiais”, uma vez que são peculiares à espécie, e se alguma vez O colorido do ambiente e a maquiagem/aparência exacerbadas dos personagens de sonho do País das Mara- foram ‘criadas’, a sua criação coincide no mínimo com o início da espécie. (...) Uma vez que tudo o vilhas, como a do Chapeleiro Maluco; a cabeça enorme da Rainha Vermelha; e o negro dos lábios, contrastando que é psíquico é pré-formado, cada uma de suas funções também o é, especialmente as que derivam com a palidez cadavérica da Rainha Branca, em nada se parece com os tons pastéis do mundo exterior. Esse diretamente das disposições inconscientes. A esta pertencem a fantasia criativa. Nos produtos da conjunto de elementos simboliza os medos mais profundos que essa Alice terá que enfrentar para se tornar adulta fantasia tornam-se visíveis as ‘imagens primordias’ e é aqui que o conceito de arquétipo encontra e uma heroína capaz de retornar, enfrentando os ditames da era vitoriana, assumindo não o papel esperado para sua aplicação específica (IDEM) uma mulher – casar e ser submissa ao marido – mas se tornar uma dirigente de uma companhia de navegação e viajar por todo o mundo. (...) arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens similares, são formas ins- Se o sangue do Jaguadarte corresponde ao prêmio obtido pela façanha alcançada e o meio pelo qual ela será tintivas de imaginar. São matrizes arcaicas onde configurações análogas ou semelhantes tomam transportada ao mundo exterior, e que Alice bebe sem temor, o mesmo não acontece com Iracebeth ao receber a forma (...) Resultariam do depósito das impressões superpostas deixadas por certas vivências fun- notícia de seu exílio para o mundo exterior, um mundo que exigia o equilíbrio das emoções, competência que ela damentais, comuns a todos os humanos, repetidas incontavelmente através dos milênios (SILVEIRA, não possuía; dessa forma se desespera ao saber que não terá a seu lado o valete, para a proteger dos excessos de 1978, p.77) sua própria falta de habilidade no trato social. CONCLUSÃO As vivências típicas a que se refere Jung estão relacionadas às emoções e fantasias causadas por fenômenos da natureza, pelas experiências com a mãe, pelos encontros do homem com a mulher (e vice-versa), pelas jor- Alice desenvolve o percurso do herói, em seu mundo interior, o que a qualifica para desempenhar a rebeldia nadas difíceis como a travessia de mares e de grandes rios, pela transposição de montanhas etc. Tais vivências que irá expressar em seu retorno, transformada: não mais a menina medrosa e rebelde, mas a mulher decidida e constituiriam disposições herdadas que, inerentes à estrutura do sistema nervoso, seriam capazes de construir compromissada com seu futuro. Dessa forma, deixa o mundo conhecido, os hábitos segundo os quais foi criada “representações análogas ou semelhantes”, as quais, funcionando como um nódulo de concentração de energia e em cujos valores sua moral se desenvolveu, para descobrir o sentido da vida que lhe fora transmitido pelo pai, em estado potencial, atualizam-se na forma de imagens arquetípicas, que muitas vezes se manifestam nos so- quando criança, por meio da magia e do estímulo à fantasia, em uma época em que o comum era o estímulo ao nhos, sendo instintivamente reconhecidas nos contos de fadas e nas estórias folclóricas. No caso de Alice, a toca oposto, ou seja, como a infância não era cultuada, os indivíduos aguardavam a idade adulta para se manifestarem, do coelho simboliza a fuga dos padrões conhecidos, para que possa entrar em contato com seu rico universo inte- o que não ocorre com Alice e o pai. rior, em busca de saídas para a situação de desagrado em que se encontra. Entretanto, a ruptura com tais padrões 56 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Penetrar na toca do coelho, ao fugir, no momento em que é dada em casamento a um rapaz com quem não Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. 57 Arte, Narrativas e Memórias simpatiza, simboliza o retorno às lembranças de uma época em que tinha o poder de decisão. Dessa forma, as personagens que encontra no País das Maravilhas representam aspectos de seu universo interior: o Chapeleiro Art, histories and memories Maluco, o medo de sua própria loucura, que a desafia; a Lebre maluca, que age de forma totalmente desconexa, a ruptura com os padrões da época; a Rainha Vermelha, o excesso de racionalidade (animus) e a tirania; a Rainha Branca (anima), etérea, mas incapaz de tomar atitudes – a própria lady vitoriana – que precisa de Alice para que seja seu Cavaleiro. Alecsandra Matias de OLIVEIRA Observa-se uma luta entre o delicado e vulnerável papel feminino, esperado da mulher da época, e a necessidade de assumir seu lado guerreira para poder modificar seu destino e exercer seu livre arbítrio. Sob a ótica junguiana, os arquétipos da anima e do animus necessitam entrar em equilíbrio, bem como seu ego, para que Alice seja um indivíduo completo: sendo feminina, mas capaz de tomar suas próprias decisões. Dessa forma, Mestre em Comunicações e Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - Brasil. a protagonista/sujeito pode, finalmente, adquirir as competências necessárias à obtenção de sua heroicidade: Este artigo providencia um ponto de vista nas relações entre opinião pública, pesquisa de opinião e o processo de socialização da arte através da internet. Acreditamos que a discussão deste tópico é muito importante para entender os efeitos das reflexões entre a circulação de informações dentre os artistas e as produções artísticas em sí, já que o processo de redes de informação (promotores de artistas, museus, doadores e representantes de eventos culturais) é de importância fundamental para a formação da opinião pública numa sociedade. sabedoria, comedimento, capacidade de perdoar, humildade, astúcia, recebendo a sanção positiva do destinador “busca do self” que a motivou a ir à procura de seu mundo interior. Referências. Palavras-chave: opinião pública, socialização da arte BAKHTIN, M. La Poétique de Dostoievski. Paris, Seuil, 1970. ____________ Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1988. The paper provides an insight into the interrelationships between public opinion, opinion research and the process of socialization of the arts via the Internet. We believe that the discussion of this topic is very important to understand the effects of reflections between the circulation of information within the artistic and artistic production itself, since the process of informational network (promoters of artists, museums, donors and representatives of cultural events society) is of fundamental importance for the formation of public opinion in a society. BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990. BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Porto Alegre: ArtMed, 1987. CHEVALIER, J.; GHEEBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991 KRISTEVA, Julia. Semeiotike: recherches pour une sémanalyse. Paris: Coleção Points-Essai, Éditions du Seuil, l978, p.120/121. LOPES, E. Discurso literário e dialogismo em Bakhtin. IN: BARROS, D. L. P; FIORIN, J. L. Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: EDUSP, 2003. JOLLES, A. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo, Cultrix, 1976. 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Q Keywords: public opinion, art socialization uando se define a condição contemporânea como um estado de incredulidade em relação às metanarrativas, estabelece-se também o patamar para uma série de questionamentos sobre os sistemas narrativos pelos quais a sociedade humana organiza e dá significado, unidade e “universalidade” à sua experiência. Entre esses sistemas, em franco debate, encontra-se a arte que tem sua função narrativa intrínseca desde os mais remotos testemunhos. Seja nas representações funerárias no Egito, nos relevos comemorativos nas construções greco-romanas ou na pintura sacra medieval, uma das funções da arte é contar histórias. Na antiguidade clássica, arte liga-se ao simulacro, à ideia e à beleza. A arte não se encontra na natureza, mas no mundo das fantasias e da razão. Nesse sentido, “o simulacro é o intelecto unido ao objeto, e esta adição tem um valor antropológico, pelo fato de que ela é o próprio homem, sua história, sua situação, sua liberdade e a resistência que a natureza opõe a seu espírito”. Então, arte é conhecimento. Conhecimento do objeto, quando apreendido do mundo real e conhecimento, quando o artista constrói o simulacro, utilizando suas capacidades mnemônicas. É também forma de cognição para o espectador, uma vez que este reconhece, por suas faculdades mnemônicas, o objeto simulado. Para os gregos, a ideia de beleza é permeada pela razão, que por sua vez se vale da memória, da proporção e de regras imutáveis. Nessa concepção, a arte não é cópia fiel da realidade, mas a memória da realidade. Por ser aparência, representa o intelecto associado ao objeto de arte ou à criatividade do artista, acrescida da forma, caracterizando a idealização do objeto em sua plena harmonia. “Mesmo quando o herói olímpico recebe o direito de ter sua imortalidade, através de uma estátua, essa não tem a forma exata do retrato, pois é somente uma idealização do que deve ser uma representação harmônica do corpo e do rosto de um herói”. A arte é, no seu sentido pragmático, ou seja, enquanto ensinamento ético-político, empregada pelos romanos Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. 59 – como meio para a narrativa de acontecimentos históricos com a finalidade de lembrar as vitórias dos generais A partir das inovações e transformações ocorridas a partir do século XX, a arte como conhecimento não é e imperadores. Por essa razão, a arte é pensada como “coisa pública”, ou seja, perpetua a memória coletiva de mais uma concepção unânime e a arte passa a valorizar outras formas de sentir e de expressar o mundo, tais Roma. Arcos, obeliscos e outros monumentos arquitetônicos romanos são como instrumentos de rememoração como sonhos , emoções e imagens que não são passíveis de narração, ou pelo menos, não de uma narração line- – as marcas de uma “história gloriosa.” Quando a arte se torna cristã, nas catacumbas narra o sacrifício dos ar e totalmente compreensível. As vanguardas históricas (Expressionismo, Dadaísmo, Cubismo, Surrealismo e mártires e os eventos bíblicos. Através da arte, ocorre a cristianização da memória coletiva, permeada pelos ritos Abstracionismo) alteram, quebram ou até mesmo dissolvem o aspecto narrativo na arte. Em comum, buscam a litúrgicos, girando em torno dos cultos dos mortos e dos santos. “Pode-se descrever o judaísmo e o cristianismo, liberdade e a autonomia para o objeto artístico. Porém, nenhuma das vanguardas exclui a ideia de que a arte é religiões radicadas histórica e teologicamente na história, como ‘religiões da recordação’”. Através da lingua- modo de expressão de emoções. gem artística os registros religiosos mantiveram-se por todo o período medieval e evangelizaram partes remotas do mundo. No Renascimento, retorna-se às premissas clássicas, a arte passa a ser considerada “coisa mental”, isto é, arte é mento. Na arte moderna, as imagens se disseminam excessivamente e necessitam de uma ordenação que não é a recriação da natureza e se limita ao processo de ordenação matemática e à harmonia: elemento da vida. Através necessariamente regular ou linear. A proliferação do uso da fotografia, por exemplo, contribui para a formação do da arte renascentista os temas bíblicos, os mitos e a vida nos reinos espelham o “espírito de uma época”. Na novo sistema visual, registrando a memória do instante. O registro da memória ganha novas técnicas (especial- Renascença, a memória está resguardada pelo registro escrito (uma infinidade de tratados, manuais e documen- mente, através dos veículos de comunicação) que multiplicam sua capacidade de transmissão de imagens – o que tos) e pelas obras-primas (monumentos arquitetônicos, telas e esculturas) que são a garantia de “imortalidade de ocorre é certa banalização dos registros e, por consequência, toda e qualquer memória pode ser preservada. As artistas e mecenas”. vanguardas históricas e, mas tarde, a arte pós-II Guerra estão envoltas nesse movimento acelerado de proliferação As teorias clássicas sobre a arte ligam-se, por intermédio da precisão, da regularidade e da sistematização do de imagens. conhecimento, às regras e princípios teóricos adotados pelas academias de Belas-Artes. Nas academias francesas As concepções de documento e monumento seriam substituídas somente pelo conceito de imagens da me- e italianas predominam os valores relativos à semelhança do real e da beleza. Contudo, o neoclassicismo e o ro- mória? Não. Mesmo a arte moderna tem seus monumentos comemorativos que exaltam aspectos da renovação mantismo acrescentam à concepção de arte dinamismo e sentido evolutivo. Os iluministas depositam esperanças industrial e da ligação homem-máquina. A imagem que constitui a obra de arte deflagra múltiplos elos que, por nas ciências e na cultura especializada – fatores que poderiam possibilitar o progresso infinito. Para os iluminis- sua vez, constituíram diversos presentes. A obra de arte revela a memória que traz consigo. Memória essa que tas, a memória é claramente passível de treinamento, bem como a arte. Técnicas e temas são transmitidos com continuará, em seu devir, a atravessar outros presentes, uma vez que sempre, diante da imagem, se está diante de mais intensidade através de recursos mnemônicos. Os gêneros da pintura (retrato, natureza-morta, paisagem e tempos “(...) olhá-la significa desejar, esperar, estar diante do tempo”. pintura histórica) florescem rapidamente e mostram a potencialidade do aspecto narrativo da arte, nesse momento. Não é por coincidência que um desses gêneros, a paisagem, abre caminhos para o Impressionismo que em sua proposta procura aprisionar a luz e o instante – a recordação do momento presente. É o modernismo que reivindica com mais contundência uma “arte pela arte” que se nega a veicular mensagem e servir de meio transparente de comunicação. Os artistas de vanguarda aproveitam as conquistas da ciência na sociedade moderna para a construção de novo sistema visual. Nesse sistema, a memória na arte não reconstitui somente o visível, mas também os sentidos humanos. O próprio conceito de memória se alarga, especialmente, com as teorias freudianas e piagetianas. Simultaneamente, o conceito de conhecimento deixa de ser o “enciclopédico” (ou acumulativo) dos iluministas e compreende-se a fragmentação e o processo de especialização do Saber em saberes. Os fenômenos mnemônicos na arte moderna podem ser compreendidos, a partir das considerações de Henri Bérgson, em especial na obra Matéria e Memória. Nessa obra, o filósofo considera central a noção de “imagem”, na encruzilhada da memória e da percepção. Na ordem espiritual, na lembrança e na memória, está a união da matéria e do espírito , ou seja, as representações arquitetônicas (monumentos) são agentes transmissores de lembranças. A memória será o elo entre o material e o espiritual. Bérgson define a matéria como imagem: certa existência que surge imediatamente através do sentido da visão. A percepção é definida como algo puramente material porque mostra de modo simples a existência da coisa. A percepção é, ainda, a ação da matéria, é o reflexo do material, não pode existir isoladamente. Já a lembrança torna-se a ação do espírito de recordar e de perceber. Segundo Bérgson, a memória capacita o indivíduo a trabalhar suas lembranças e a formar objetos materiais. Nesse sentido, a memória é algo que motiva o retorno das lembranças No entanto, o caráter efêmero da produção de vanguarda e sua ação de destruição para construir o novo tornam- para que o presente construa novas significações. Essas lembranças organizam o presente e revelam o futuro. -se processo de esgotamento da arte. A busca pelo novo constitui-se em obsessão do artista: ao encontrá-lo, ele Logo, a lembrança, assim como a percepção não existe isoladamente. A memória é móvel e criativa, mais do que logo se transforma em antigo. O artista se vê condenado a encontrar uma nova forma de olhar e por essa razão isso, a memória possibilita a criação do novo. transforma-se constantemente, desagrega sua identidade; ao desagregar-se, armazena em sua memória impressões que se transformarão em imagens. A memória manifesta-se, pois, na luta contra o movimento implacável do tempo. Essa condição leva o artista a questionar a validade da mesma, sobretudo, com a crise que se instala na Europa no pós I Guerra Mundial. Para Walter Benjamin, os sobreviventes que regressam das trincheiras, voltam mudos. Por quê? Porque aquilo que vivenciam não podia mais ser assimilado por palavras. A memória da batalha torna-se dolorosa e difícil de ser transmitida a outrem. 60 Nesse ponto, assinala-se que como sistema de organização das emoções, a memória serve como uma busca pessoal de aprendizado, de repertório para o porvir ou até mesmo uma advertência sobre os perigos do esqueci- Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. A perspectiva de Bérgson da memória, de certa forma, influencia os caminhos da literatura como documento escrito, em particular, porque realça as interações da memória e do espírito. Marcel Proust convence-se, rapidamente, da proximidade entre literatura e memória. Assim, um objeto como, por exemplo, uma flor somente se transformaria em flor verdadeira como objeto de memória. Proust observa que as mnemotécnicas, geralmente, baseiam-se no princípio da ação sensorial, ou seja, no estimular os sentidos: visão, audição, olfato, paladar e Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. 61 tato. Entre esses, a visão possuiria prioridade sobre os demais sentidos, por essa razão, os conteúdos da memória pessoal que permeia a produção artística, especialmente, a brasileira de meados dos anos de 1990. Os trabalhos também são vistos como imagens mnemônicas. A ideia de Proust é destituir a visão dessa posição privilegiada e apresentam-se, cada vez mais, narrativos, autobiográficos e auto-referenciais. A memória, o corpo e, em alguns abarcar outros sentidos como portadores da memória. Para tanto, o escritor lida com as memórias involuntárias casos, a história e a localidade são impressos nos objetos estéticos como forma de especificidade. e voluntárias. A visão estaria relacionada às atitudes racionais por isso interligada à memória voluntária. Já a memória involuntária não tem como origem um desejo determinado de manipular o passado com vistas à sua possível utilização no presente. Pelo contrário, a memória involuntária advém de uma sensibilidade difusa e inesperada (todos os sentidos em ação confusa) que acomete o homem a qualquer instante, levando-o a reviver flashes do seu passado, em todo o seu colorido original. Ao atualizar o passado, a memória (somatória de voluntária e involuntária) recria o tempo (passado, presente e futuro), fundindo instante e duração num continnum tecido. Para Marcel Proust, a arte conseguiria operar a síntese entre instante e duração, através da matéria media as relações com o espiritual. Nesse sentido, deve-se retomar uma das questões principais que auxiliam na constituição da história, como disciplina, no século XIX: a exclusão da memória involuntária. Na arte essa expulsão nunca ocorre totalmente. O que se dá é a utilização da memória involuntária com maior ou menor intensidade. A arte pressupõe conhecimento sensível e este depende das potencialidades da memória involuntária, assim sendo, eliminar os sentidos expostos na memória involuntária seria dirimir o que há de essencial na arte. Nesse ponto, torna-se importante assinalar que a arte não se inicia na ocasião das primeiras obras de arte – ou pelo menos aquilo que se denomina arte atualmente – mas quando certos objetos são pensados esteticamente. Ela também não acaba quando deixam de existir obras de arte (esculturas, pinturas, música ou literatura), a arte se altera e renova-se de tal maneira que uma história da arte sustentada tão somente em estilos, movimentos, evolução e progresso artístico não dá conta de sua plenitude. A partir do pensamento estético, conta-se a história da arte que a princípio é mimética de depois se torna moderna e, agora contemporânea. A contemporaneidade mostra que as formas artísticas não podem mudar, a menos que as práticas sociais o façam ou, ainda, a produção artística é construída num contexto social e num sistema de valores vivido. A arte As buscas destinam-se ao relato de histórias individuais, às particularidades das origens dos artistas, à genuinidade de lugares, ao entendimento do cotidiano urbano e do seu papel na sociedade. Contudo, todos procuram, através do trabalho artístico, dar sentido à existência, seja a sua própria ou a da coletividade. No mundo atual, pressionado por uma força de “pasteurização” de valores, surgem propostas de reafirmação da individualidade e da localidade, utilizando a memória como arma de “resistência”. Nesse sentido, desvelar memórias pessoais e a configuração de um olhar atento para dentro de si torna-se movimento de resistência contra a apatia e a amnésia - sentimentos gerados por um contexto de excessos, estabelecido pela cultura da mídia eletrônica e cibernética que produz o máximo de informação contido em um mínimo de tempo, gerando um estado de ansiedade incessante, focado na tentativa de acompanhar os fatos que são oferecidos a cada instante repetidamente. Muitos artistas contemporâneos põem em debate a comercialização das memórias através das impressões maquínicas (TV, Internet, jornais entre outros veículos de comunicação). A leitura pessoal das memórias se contrapõe à amnésia e a apatia social que o oferecimento freqüente de informações acarreta na cultura atual. O fascínio dos artistas por histórias relaciona-se à atração pela convenção (na permanência ou na ruptura dela), pela nostalgia e pela memória das narrativas já conhecidas. Esse fascínio transforma a produção dos artistas contemporâneos em obras/textos, cobertas de “narrativas enviesadas” ou abertas para si mesmas: A arte torna-se comentário sobre o tempo e a vida, que toma o corpo de uma escritura, tão subjetiva como o próprio alfabeto. É conhecimento flexível mais imprescindível – um conhecimento que se abre ao observador como um estranho livro, que a narrativa contida se assume de acordo com seu próprio olhar. contemporânea justapõe e dá igual valor ao mundo fechado em si mesmo e o mundo aberto para o exterior, da história e da experiência (nesse âmbito, a memória). Essa “arqueologia emocional” esbarra muitas vezes no co- A arte como comentário abre espaço para diferentes linguagens e, mais do que isso, para figuras de linguagens, lecionismo, no qual os objetos servem de apoio. O recordar nas poéticas visuais torna-se amealhar instrumentos ou, ainda, metáforas (do grego, metaphora = transporte, junção) diversas que narram os acontecimentos e senti- para próximas ações, analisar as possibilidades à luz das experiências vividas, reviver o prazer de sensações boas mentos envoltos na contemporaneidade. Através da metáfora, a arte expressa formas de conhecimentos possíveis e precaver-se com a reincidência das más. e atuais. Essas metáforas são cada vez mais complexas. Podem estar encravadas nas poéticas visuais ou repre- Para o artista contemporâneo, o cultivo da memória é, acima de tudo, uma busca de reafirmação do que o passado significa. Mesmo a memória coletiva que geralmente serve a propósitos políticos ou de orientação de compositivos na obra ou até mesmo surgirem pela ausência destes. conduta, sendo imposta ao grupo por uma determinada instância superior (um governo, uma religião ou uma ins- Nesse contexto, emerge a discussão referente à seriação, repetição, acumulação e citação – elementos compo- tituição), sofrendo uma série de intervenções e revisões ao logo do tempo, manipulada para servir a determinados sitivos transmissores de metáforas. Esses elementos têm reminiscências na arte moderna, porém na contempo- propósitos, na produção artística tem sua afirmação ou negação. Para os artistas a memória pode servir como um raneidade assumem linhas radicais. Os artistas contemporâneos através da seriação, repetição, acumulação e ci- propósito cognitivo, um esforço de apreensão de um fato ou momento que remete ao coletivo (artista e público) tação de elementos na produção estética misturam mitologias públicas e privadas. Jogam, metaforicamente, com uma reflexão sobre o que foi ou o que poderia ter sido – a suspensão de um momento muitas vezes eternizado no as memórias pessoais e coletivas. Através desses elementos, a obra de arte não está isolada na sua forma objetual, espaço expositivo ou na percepção do objeto estético, em uma narrativa fragmentada, indireta e que não permite mas abrange diferentes variantes: poética do artista, vida, técnica, elementos compositivos, entre outros fatores. possibilidade de leitura única e linear. 62 sentar uma circunstância específica vivenciada pelo o artista e seu público. Podem estar presentes em elementos A repetição de elementos compositivos apresenta-se como a confirmação do presente que não envelhece que Na contemporaneidade, a sensação de descontinuidade, desencaixe e fragmentação geram um sentimento de se condiciona em transe celebrativo. O mesmo elemento se repete obsessivamente durante a trajetória do artista, pouca “intimidade” com a realidade, o que pode justificar o crescente desejo de expressão e busca de sentido como por exemplo, as bandeirinhas de Alfredo Volpi. Já a seriação pode ser repetição (e vice-versa). Porém, se Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. 63 configura como seriação que assume uma forma sistêmica, articulada pela experiência artística e que desnatu- continum. A memória, então, decanta o passado de sua exatidão. É ela que humaniza e configura o tempo, en- raliza o sistema clássico de representação. Na seriação o elemento se transfigura como se ocorresse uma “nova trelaçando os fatos. Por sua vez, a obra de arte permite sua leitura como montagem de tempos diferentes, o que variação sobre o mesmo tema”. A acumulação, na modernidade e contemporaneidade, é liberada pela permis- significa dizer que existem formas diversas de repensar as relações entre o agora e “o não mais agora”. As obras sividade e pelo desperdício da indústria e da tecnologia, gerado pelo fenômeno de fetichização e patronização de arte formam um novo modelo de temporalidade, especialmente, as obras contemporâneas que aliam diferentes da cultura – este procedimento sobrepõe repetição e seriação. A citação advém da necessidade dos artistas em tempos (o cronológico, o psicológico, o recriado e muitos outros). usar arquétipos universais e inevitáveis. Estes seriam utilizados de modo articulado e transformados em arte representacional, ou ainda, serem suprimidos, com o risco de simplesmente dar uma nova roupagem às alegorias tradicionais , conferindo-lhes certo “ar contemporâneo” e falso, ao invés de propor novas investigações sobre os temas do passado. Muitas vezes, na arte contemporânea, as narrativas não se prestam à exaltação de eventos e tão pouco à grandiosidade de um homem envolvido em ações nobres. Inexiste uma moral implícita, as alegorias, nem sempre identificáveis, tangenciam histórias difusas, possibilitando um labirinto de especulações, muitas vezes utilizadas sob o pretexto de “retorno à pintura” e ao “exercício do retrato de uma visão particular”. A hierarquia clássica e o lugar dos acontecimentos desaparecem e são substituídos pela associação enigmática e democrática com ares antigos. Há uma “presença da ausência”, um “sentimento de que a cultura há muito se foi e de que a festa está em outro lugar”. A figura humana retorna ao cenário artístico, porém, apresenta um desequilíbrio perturbador, um aspecto de fragilidade e cansaço. Na representação contemporânea, em algumas poéticas, a figura humana está recortada e fora do centro da composição. O homem deixa de ser o centro e a medida de todas as coisas, resta-lhe somente observar atônito o cotidiano para dar o seu próximo e indeciso passo carregado de obscuridade e melancolia, mas, paradoxalmente, com certa dose de ironia. A dúvida e o ceticismo pairam sobre qualquer tentativa de imposição de “grandes verdades”, resta à autoconsciência perceber que a inocência se perde e que será necessário “ir além”, não se prendendo às teorias e às descobertas científicas. É necessária uma aceitação, sem restrições, às manifestações culturais de outros setores da sociedade. Essa atitude torna-se contrária ao modernismo que propõe uma elite “avant gard” versus uma cultura de massa, sem possibilidades de pontos de contato. Os procedimentos de repetição, seriação, citação e acumulação mimetizam e criticam a racionalidade técnica, utilizando principalmente a memória do artista que se refere às metáforas envoltas nos procedimentos, mas também a do espectador, responsável por decodificar as memórias guardadas. Desse modo, a estreita ligação entre arte e memória decorre de suas implicações narrativas, cognitivas e emotivas. Tal qual a história, a arte debate-se entre romper ou não com a memória. Contudo, as margens desse embate apresentam-se tênues e subjetivas. Percebe-se que a memória utilizada em arte é a somatória da voluntária e involuntária. E isso provoca grande diferencial. Se na história tenta-se apartar (sem muito sucesso) os valores subjetivos da memória involuntária, na arte, a partir do século XX, principalmente, após as vanguardas históricas e os fenômenos da modernidade, o uso da memória involuntária sobrepõe ao uso da memória cognitiva. A arte seria o revés da história? Não. Nenhum dos sistemas consegue livrar-se totalmente da interação entre as memórias. E é essa nuance entre as memórias que transforma as relações entre história/memória/arte complexas e próximas. Em síntese, tem-se que a memória, em seus efeitos de reconstrução do tempo, é convocada e interrogada pelo historiador, e não exatamente o passado. Nesse contexto, o tempo passado só existe como fato de memória: seus aspectos fundantes são retirados por intermédio de um processo de decantação sempre atualizado em presente 64 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. Referências AJZENBERG, Elza (org.). Arte e Memória. São Paulo: MAC USP/PGEHA, 2007. BARBOSA, Sylvia Werneck Quartim. De Dentro para Fora: A Memória do Local no Mundo Global. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, 2007. BARTHES, Roland. “A Atividade Estruturalista”. In: BARTHES, Roland. O Método Estruturalista. 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The art and the sacred in the origin of the topology of the psychic apparatus Janaina Teles BARBOSA Cientista Social e Artista Visual. Mestre em Design da Imagem pela Universidade do Porto-Portugal Visite o site: www.poeticasvisuais.com Este trabalho constrói um discurso poético utilizando-se do corpo como uma expressão artística, através da performance em espaços públicos, baseado nas experiÊncias conceituais do pesquisador, assim como estudos artísticos, sociológicos e antropológicos na representação social que cerca a vida cotidiana das mulheres brasileiras na sociedade Portuguesa. Palavras-chave: corpo como uma expressão artística, vida cotidiana das mulheres brasileiras This work builds up a poetic speech, using the body as an artistic expression, through the performance in public space, based on the conceptual experiences of the researcher, as well as artistic studies, sociological and anthropological on the social representations that surround the daily life of the Brazilian women in the Portuguese society. Keywords: body as an artistic expression, daily life of brazilian women Trabalhos em PV - Vol 2 Modernistas contra acadêmicos? A pintura de Hugo Adami La mirada cinematográfica generacional Federico Fellini, entre crítica e nostalgia E 66 muito mais... Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. Este artigo partiu da minha tese de mestrado em Design da Imagem da Universidade do Porto em Portugal. O estudo tem como fito apresentar uma leitura criativa, através da performance corporal em espaços públicos, acerca das representações sociais sobre a mulher brasileira construídas no cotidiano da sociedade portuguesa. O estudo partiu da minha vivência na condição de mulher, de nacionalidade brasileira, artista, designer e pesquisadora, compartilhando provisoriamente o cotidiano português durante dois anos. Por meio de uma produção imagética conceitual, ou seja, uma produção artística, procurei construir um discurso poético sobre a mulher brasileira e suas representações no imaginário português, para assim contribuir na compreensão acerca dos processos de produção dos estereótipos que estes corpos sofrem. Para isto participo de uma “corpografia” que propõe uma desterritorialização do corpo feminino brasileiro ampliando olhares referencias que vão além deste universo imaginado que interfere na vida quotidiana de muitas brasileiras que vivem em Portugal. Esta produção propõe a utilização das práticas experimentais e criativas como metodologia de pesquisa em áreas do design e da comunicação, na tentativa de construir olhares mais críticos acerca da produção e consumo de informações imagéticas na sociedade contemporânea, contribuindo assimpara uma quebra de fronteiras culturais que geram preconceitos entre Brasil e Portugal, numa perspectiva de compreensão mais ampla acerca dos processos migratórios. Muitos estudos revelam que dentre a diversidade de imigrantes estrangeiras, a mulher brasileira, na sociedade européia, carrega muitos estereótipos, os quais interferem diariamente em suas vidas. Tais estereótipos estão relacionados ao fato de sua imagem estar vinculada a objeto sexual. As causas desse fato encontram-se em fatores históricos e sociológicos que contribuem para a produção deste imaginário coletivo tanto na Europa como no Brasil. Entre os latino-americanos residentes em Portugal, o número de brasileiros é relevante, correspondendo a mais de 90% entre estes imigrantes. Entre 1986 e 2003, o índice de brasileiros cresceu quase nove vezes, passando a sua percentagem, no total dos estrangeiros regulares, de menos de 9% para aproximadamente 15%. O fenômeno da migração brasileira em particular, é cada vez mais presente nos meios de comunicação e em debates políticos Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. 67 e acadêmicos. Em 2006, calculava-se que viviam em Portugal mais de 100 mil imigrantes brasileiros. Hoje, este número estar bem mais elevado. (MALHEIROS, 2007) Os processos migratórios sempre causou conflitos na história da humanidade, na medida em que dois povos, apesar das ligações históricas, entram em contato, pois as diferenças culturais, muitas vezes, causam estranhamentos e preconceitos. Outro fenômeno que é gerado nesse processo é a produção de estereótipos sobre o outro, especialmente com relação a mulher. No caso do Brasil vale remeter-se ao estudo sobre o processo de miscigenação, em que explica-se a mistura de raças de seu povo. Ao evidenciar o “mito da democracia racial” existente no país, Gilberto Freyre (1992), em Casa-Grande e Senzala, aborda a influência do escravo na vida sexual e familiar brasileira, através de uma visão erotizada das escravas. Esse estereótipo foi difundido, sempre relacionando a mulata a sabores exóticos. Assim, segundo Piscitelli (1996), o que seria atualmente reconhecido como intrínseco à mulata brasileira é sua alegria, sensualidade, juventude, afetividade, submissão, docilidade, enorme disposição para o sexo e uma certa passividade. Atualmente este processo é intensificado por fatores sociais, como as fortes diferenças econômicas entre as pessoas, que contribui para que o Brasil apresente um número elevado de turismo sexual. Diante disto este estudo partiu da premissa de que todo corpo carrega identidades que o mapeia, construindo referências, memórias e simbologias. No embate com outros universos referenciais, estas identidades afloram, ganham vida e fortificam-se. Neste processo de tomada de consciência de si mesmos, descobrem-se como se é visto pelo outro, através dos chamados estereótipos que rotulam as pessoas. A experiência da alteridade faz com que o ser humano perceba a si mesmo em suas particularidades, abrindo espaço para fortalecimentos de laços identitários. Esse processo pode parecer estável, resumindo-se na constatação da diferença no processo de reconhecer-se no outro, mas seria apenas a primeira etapa de um processo dialógico, bastante dinâmico e rico quando há uma troca em que acontece tanto um fortalecimento das identidades, como uma transformação, causada por influências mútuas. É nesse contexto que percebemos que somos constituídos de várias identidades em constante mutação e não somente uma. Percebe-se cada vez mais na contemporaneidade um intenso trânsito de informações que promove uma quebra de fronteiras identitárias antes delimitadas por estados-nações. A sociedade da informação juntamente com fenômeno das migrações traz um novo panorama nos processos de trocas culturais na contemporaneidade. Apesar disso não podemos perder de vista o forte jogo de forças ditado pelo poder econômico, que ainda se configura entre blocos de países de todo o mundo e influencia fortemente as trocas culturais. Neste universo, a imagem simbólica da mulher brasileira em Portugal apresenta-se de uma maneira ainda mais forte. Quando falamos deste grupo social, o fator sexualidade é apontado como forte integrante das representações sociais, constatamos então uma íntima relação entre as dimensões de gênero e nacionalidade. Nas entrevistas realizadas neste trabalho, revelou-se o constante incômodo das mulheres com a quotidiana associação de sua nacionalidade a imagens de mulheres sensuais, que sabem sambar e extremamente vulneráveis ao sexo.Estas imagens são construídas também pelo Brasil como veículo para a construção de uma identidade nacional mercantilizada. Como um negócio, o turismo produz e reproduz estereótipos exotizantes, vendendo dentre imagens culturais e paisagens, corpos de morenas semi nuas. Neste processo, corpos mapeados são constantemente desmapeados e novas corpografias são construídas. No caso específico deste estudo, faço uma tentativa de sair das ruas principais deste grande mapa corporal feminino brasileiro, e desbravar ruelas, descobrindo atalhos que possam oferecer uma compreensão mais ampla e sensível destes processos. Desta forma flanei no cotidiano urbano para realizar a parte prática do projeto,dialogando constantemente com três dimensões de conhecimento que cruzaram-se a todo instante, ou seja, quando coloco-me ao mesmo tempo como pesquisadora ou observadora, pesquisada ou sujeito agente da pesquisa, e criadora ou artista. A arte aqui encontra-se como canal de expressão e comunicação, através da qual tento construir este discurso poético através da imagem, objetivando a abertura de brechas na realidade que suscitem questionamentos ou pontos de partidas para discussões e pensamentos sobre a realidade que me cerca. Desta forma o aspecto contestatório da ação artística é bastante relevante aqui e nela o papel do artista. 68 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. O crítico de arte Nicolas Bourriaud (1998) aponta atualmente para as “utopias de aproximação”, que são práticas artísticas que se estendem num vasto território de experimentações sociais e que pretendem agir, gerando novas percepções e novas relações de afeto, num mundo regulado pela divisão do trabalho, ultra-especialização e pelo isolamento individual. Para o filósofo francês, a arte contemporânea desenvolve um projeto político, esforçando-se em investigar e problematizar a esfera relacional. Dentro do campo simbólico que se desenrola o tecido urbano, constituído por percursos humanos programados, segundo Debord (1997), o habitus artístico pode intervir e talvez invocar sensibilidades adormecidas. É quando uma frágil barreira pode ser quebrada e num piscar de olhos ou num suspiro, a arte virar vida. Ela não produz responsáveis ou salvadores, apenas suscita aos sujeitos um retorno a uma memória artista ancestral de um tempo em que indivíduo e arte não se dividiam, quando não existiam fronteiras e tudo fazia parte de uma mesma dimensão. É em busca disso que trabalho com o “corpo des-mapeado”, um corpo mutante e criativo com sentidos mais aguçados a tudo que o cerca. Ele tenta fugir da fragmentação que lhe é prometida a todo instante. Um corpo que estranha-se e brinca com suas vestimentas, usando-as quando acha que é necessário, como também, ao transmutar-se, deixa-as no caminho para serem vestidas por outros corpos. Este corpo tenta encontrar atalhos desviando-se dos caminhos ditos principais, mas muitas vezes utiliza-os como ferramenta afim de chegar a algum lugar onde possa dialogar, vivenciar e inventar novas rotas. Foi nesta perspectiva que surgi a performance “Carimbada”, realizada no Brasil em agosto de 2010, na cidade de Fortaleza, e em seguida em Portugal, em maio de 2011 na cidade do Porto. A ação consistiu em andar por um espaço público e aos poucos auto carimbar-me com o nome “MULHER BRASILEIRA”. Depois de marcar todo o meu corpo, olhando para um espelho, retiro da bolsa um batom vermelho que passo exacerbadamente nos lábios e nas partes íntimas. O carimbo, objeto que taxa e marca, foi utilizado como simbologia dos processos de construção de estereótipos dos corpos femininos. O batom vermelho traz uma simbologia de beleza, sensualidade, mas também de dor. O espelho participa da obra não como objeto que intensifica a formação do ego deste modelo de mulher construído socialmente, mas como testemunha de um auto reconhecimento desta mulher marcada e estereotipada, abrindo possibilidades de processos de resignificação de Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. 69 identidades. que só a ação já falava muito, as palavras não faziam parte da obra, meu corpo e o que eu fazia já trazia e oferecia Na primeira versão ocorrida no Brasil ocorreu interação com público que ocupava aquele mesmo espaço. Iniciei a ação agindo como uma simples participante do evento e, conversando com amigos, comecei a marcar o Estas questões tinham a intenção de suscitar reflexões que contribuíssem para o esclarecimento de alguns meu próprio corpo. Logo depois despedi-me daquele grupo e fui percorrer a praça parando em alguns momentos conceitos. A primeira pergunta intentou para significados acerca do estereotipo da mulher brasileira. Seria o es- para marcar mais uma área do meu corpo. Sentei no chão, no meio da praça, e marquei todas as minhas pernas tereotipo uma máscara? Uma máscara que pode ser manipulada, transformada? Ou uma máscara que esconde as e braços, pedindo em seguida às pessoas que me carimbassem em lugares que eu não podia ver.Após esta etapa, particularidades de cada mulher brasileira que vive em Portugal? levantei a roupa para carimbar as partes íntimas do meu corpo. Percebi que neste momento comecei a chamar A segunda pergunta pretendia possibilitar a manipulação ou releitura da máscara criada por/para cada pessoa: mais atenção do público, no entanto, continuei marcando minhas partes íntimas, como também interagi com Estaria construindo minha própria imagem? Seria uma imagem diferente? Ou seria uma utilização da imagem já homens que passavam por mim oferecendo-lhes o carimbo para que marcassem o meu corpo. construída no imaginário coletivo da sociedade portuguesa? A ação gerou vários tipos de reações, desde olhares desconfiados, até pessoas que parabenizaram o trabalho. Com estas questões em mente, sentei ao lado de uma senhora, ao pedir para ajudar-me, ela perguntou porque Um rapaz homossexual pediu que eu o carimbasse suas nádegas, talvez sentiu-se identificado pela ação. Uma eu fazia aquilo, pois meu rosto estava ficando feio e que assim não conseguiria uma imagem bonita, mesmo as- moça disse “é isso aí, mulher é só bunda, só carne”, parecia que ironizava, ao mesmo tempo que confirmava a sim, atendeu ao meu pedido. Seu marido chegou e ele também muito simpático marcou as minhas costas e logo atitude do rapaz. Outras mulheres 70 um discurso. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. depois foram-se os dois. pediram para ser marcadas com Continuei aquele ritual sozinha sentada no banco na rua. De repente, um rapaz que tinha saído do meu lado o carimbo e saíram dizendo “sou e sentara-se no vaso de plantas ao lado, recusou-se em participar, mas trocou algumas palavras comigo. Ele sim, muito brasileira”. Homens comentou que eu não estava nada bonita e que um “sabãozinho e uma água resolveria isso”, sugerindo que eu ca- também pediam para serem carim- rimbasse somente os braços. Logo após a esse episódio, passei por um café e pedi ajuda para umas mulheres que bados. Muitos pediram-me expli- lá sentavam. Elas mostraram interesse em participar, uma delas escolheu com cuidado uma parte do meu corpo cação para tudo aquilo, eu ficava para marcar, as costas. Interagiram rindo. Uma jovem disse que não precisava construir uma imagem melhor, eu calada na maioria das vezes, sabia já era bonita. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. 71 Prossegui com minha peregrinação e percebi que cada vez mais chamava atenção. As pessoas das lojas movimentavam seus corpos para matarem a curiosidade. Sentia que alterava o movimento normal da rua. Era um corpo estranho naquele fluxo com movimentos previsíveis, contatos e objetivos. Havia muitos artistas de rua. Interagi com suas estéticas. Mais a frente, depois de cerca de quarenta minutos quando meu corpo já estava bastante marcado, parei no meio da rua e lavei-me em publico, retirando todas aquelas marcas do meu corpo. Repentinamente, formou-se um círculo com muitos transeuntes que ali pararam e ficaram a olhar-me. Eu era o alvo daqueles olhares curiosos. Esperavam provavelmente que eu fizesse algo de espetacular e talvez pensavam que bateriam palmas depois disso. Mas não fiz nada, só lavei-me, pus a água escura numa garrafa de vidro transparente e depois uma flor branca. Este ato da performance simbolizava uma ação contra o processo de taxação que meu corpo juntamente dos outros corpos femininos sofriam. A flor simbolizava vida e renovação quando pode ocorrer a recriação destes estereótipos ou uma resignificação de identidades. Foi então que levantei-me, pus a garrafa na cabeça e comecei a caminhar cuidadosamente e lentamente, fazendo todo o trajeto num constante jogo de equilíbrio. Nesta performance assumi minha estranheza em terras lusitanas. Em Portugal sempre senti-me como um corpo estranho e deslocado, tenho a sensação que sempre estou sendo observada, vigiada em espaços públicos. Na performance colocava agora meu corpo estranho a serviço destes olhares. Eu era a agente, permitia agora que me olhassem. Oferecia códigos, sinais de um discurso, uma idéia, ou talvez um grito, um alerta. Nestas experimentações meu corpo apresenta-se como um território que participa como elo de ligação, colocando-se como canal de comunicação com o meio, com o público, e com os lugares que transito. Nos trabalhos performáticos o habitus corporal, ou como chamo aqui, o “corpo des-mapeado”, pode ser visto como capacidade geradora de práticas, disposição adquirida socialmente, num processo de construção e desconstrução, pode conter uma parte de inventividade e adaptabilidade, que permite uma coexistência entre aspectos de permanência, improvisação e transformação. (BOURDIEU, 2002) Desta forma, o corpo em diversas esferas da vida humana passa por processos de objetivação e a arte é uma 72 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. 73 destas esferas. Numa óptica tradicional da estética artística, conceber o corpo como objeto de arte seria impossí- indivíduos empreendedores tomarem o papel de realizadores para improvisar uma nova realidade.” (MCCOR- vel, pois uma vez construída a obra de arte nunca mais é retocada, constituindo um exemplo de idealização deste MICK, 2010, 52) corpo. Aí ele é apenas o modelo, uma inspiração para um corpo ideal, intocável, único e místico. Nesta ótica o corpo é oposto a obra de arte, pois está em constante metamorfose. Na performance realizada no Porto, um senhor ficou muito curioso com o que estava acontecendo e parou um instante o seu percurso, perguntando-me qual a minha motivação para aquele ato. Aconteceu um diálogo onde Nas performances descritas acima essa capacidade de transformação e efemeridade do corpo humano são foram colocadas impressões sobre a imagem da mulher brasileira. A conversa foi construída de maneira espon- essências do processo criativo. Esta maneira de conceber o corpo dentro da arte proporciona uma quebra de tânea e intuitiva. Apesar daquela ação ter uma certa justificativa, a intenção era envolver aquele senhor na ação, fronteiras entre o corpo utilizado como objeto e este corpo inserido na própria vida quotidiana, relacionando-se provocá-lo com perguntas. Para ele a imagem da mulher brasileira era boa e que não pode-se generalizar tudo, com aspectos antropológicos. como mostra o diálogo abaixo: Na ótica antropológica podemos conceber que todas as formas de representar o corpo, para nós e sob o olhar do outro, traduzem uma maneira de ser no mundo, como se o corpo não fosse nada sem o sujeito que o habita. - Não seria uma imagem comercial? Cuidar deste corpo não é tratá-lo como objeto, é afinal considerá-lo como sujeito de nossas representações e de - Eu acho que todas as sociedades são reacionárias em princípio. A mudança é um processo. nossos pensamentos. (JEUDY, 2002) - É um processo rico. Leva muitos anos. Neste processo, um aspecto interessante a colocar aqui é a fuga da morte deste corpo por meio da criação artística. Na realidade quotidiana o corpo é um território imaginado dentro ou fora do seu território de referencias - Há alguns anos atrás não a encontrei com uma garrafa na cabeça. simbólicas. Dentro ou fora do Brasil, o corpo da mulher brasileira, por exemplo, é cercado de estigmas construí- - Talvez seja a minha tataravó. dos para satisfazer desejos humanos, sejam femininos ou masculinos. Jeudy (2002) coloca que a todo momento - Então vens com uma família que tenta um equilíbrio. Gosto da palavra. Espero encontrá-la com nossos corpos estão propensos a processos de objetivação. Na dimensão do amor, por exemplo, colocamo-nos a serviço do outro que então é idealizado e utilizado para o prazer de ambos. Esses processos que geram ilusões o equilíbrio. de nossos próprios corpos, segundo o autor, são essenciais para dar sentido a eles e assim fugirem da constata- - Acho que ainda não sou capaz. ção material de suas existências, ou seja, da morte. Visto como corpos diferentes capazes de agirem diferentes, - Mas as utopias também são dignas de orientação. o corpo da mulher brasileira trazem a tona questões de gênero e sexualidade, sendo fruto de um mapeamento cultural que envolve outras questões além da simples designação de serem diferentes, correndo o risco constante - Sim, também acho. Elas nos levam a dar mais um passo. de sofrerem a morte deste corpo vivo e dinâmico. - Posso assegurar que sim. Porém essa realidade ilusória pode muitas vezes ser desvendada, utilizada e manipulada, como também trans- - Obrigada pela conversa. formada. Esse princípio consagra a idéia de que nosso corpo nos pertence, isso ocorre na medida em que somos - Adeus. sujeitos do objeto que ele representa, o que faz persistir uma dúvida acerca da realidade (JEUDY, 2002). Isto acontece neste trabalho com o processo criativo da performance, em que utilizo-me de meu corpo para questionar-me sobre essa realidade construída sobre mim mesma, gerando dúvidas sobre esta visualidade tratada como real, na busca de novos sentidos e de novas rotas de fuga da morte de meu próprio corpo. Agindo como a própria arte, o corpo apresenta-se como ato único, deixando-se de lado a objetivação, construindo assim um discurso diferente do textual. É como na dança em que, segundo Jeudy (2002), muitas vezes ironiza-se com o peso das palavras ou o ato de interpretação, ao desenhar seu próprio discurso. Nas ações performáticas meu corpo sofre dois deslocamentos. O primeiro acontece pelo fato ser mulher estrangeira e o segundo deslocamento no próprio ato artístico. No momento em que meu corpo foi deslocado ao ser posto em espaços públicos, abrindo possibilidades diversas de diálogo, provoca também um deslocamento no público. Aquele que até então vigiava, agora neste estado de ação criativa, é chamado para diálogo abrindo possibilidades diversas de ações, falas, desabafos, impressões, dúvidas, questionamentos, angústias etc. O público apresenta-se não como público tradicional com a função de assistir e aplaudir, como num espaço no campo artístico de fruição, fechado e institucional. Ele é chamado para aquele “espetáculo” e convidado a deslocar-se dentro da sua aparente normalidade quotidiana. A rua e tudo que ela oferece são colocadas sobre um palco ilusório abrindo possibilidades diversas de desvios. “Todo o mundo é um palco, e é apenas um caso de 74 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. As ações misturam-se aos movimentos urbanos na tentativa de expressar-se, de dizer algo e abrir espaços para falas diversas, na construção coletiva de diálogos poéticos e criativos. Porém, na medida em que algo precisa ser dito, muitas vezes isso adquire caráter de invasão, gera incômodo. Em “Trespass, história da arte urbana não encomendada” (2010) autores falam que na arte de rua, quando uma propriedade é violada, o maior tabu que é rompido é a dimensão psicológica do espaço. Os objetivos da utilização daqueles espaços supostamente coletivos para a criação artística vão além das limitações que dizem o que é arte e o que não é, ou seja, afirmam-se no próprio ato artístico que aqueles espaços e as pessoas que transitam nele fazem parte daquela arte. Neste percurso em que ocorrem interações e incômodos, criam-se espaços emocionais que podem ser efêmeros, mas interfere de alguma forma com aquele fluxo normativo. (MCCORMICK, 2010) De acordo com a análise de Laura Mulvey (1983), quando discute as relações e significados no cinema narrativo e o lugar da imagem da mulher, existem três olhares associados com o cinema: o da câmara que registra o acontecimento pró-fílmico, o da platéia, quando assiste ao produto final, e aquele dos personagens dentro da ilusão da tela. As convenções do filme narrativo rejeitam os dois primeiros, subordinando-os ao terceiro, com o objetivo consciente de eliminar sempre a presença da câmara intrusa e impedir uma consciência distanciada da platéia. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. 75 Segundo a autora esta interação complexa de olhares é específica ao cinema, mas ela propõe alternativas de cada vez maior entre as pessoas de diferentes espaços no mundo, tem perturbado o caráter aparentemente “esta- quebra desta ilusão. O primeiro golpe é libertar o olhar da câmara em direção à sua materialidade no tempo e no belecido” de muitas populações e culturas. Em vez de uma mistura o que ocorre neste processo é uma volta as espaço, e o olhar da platéia em direção á dialética, um afastamento apaixonado. Isto destrói o prazer do especta- especificidades culturais que recorre a um passado histórico. Porém, segundo Hall (2000), este processo acontece dor e ilumina o fato do quanto o cinema dependeu dos mecanismos voyeuristas ativo\passivo. (MULVEY, 1983). na busca não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. “Têm a ver não tanto com as questões Algo parecido acontece na ação performativa ao lidar com um público que até então encontra-se desavisado, “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, pois ela invadi a materialidade da realidade social, encontra poética nesta própria materialidade e propõe diálo- “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar gos e construções alternativas com este público. a nós próprios”.” (HALL, 2000, p.109) Isso tem a ver com uma negociação com a tradição na invenção de novas rotas, e não uma suposta volta as raízes. Porém neste diálogo persiste uma carga ficcional na formação de novas Apesar de lidar com o acaso e a espontaneidade como elementos essenciais no processo criativo, no trabalho identidades. “Carimbada” certos aspectos precisaram ser programados, como a escolha do espaço. Na teoria da ´Dèrive`, Todas estas questões foram abordadas no texto corporal da performance “Carimbada”. Na primeira versão, Debord (1958) afirma que as cidades são sitiadas e os percursos das pessoas são programados através de pon- realizada no Brasil (p.26), traz uma constatação da problemática através de um reconhecimento territorial do tos fixos que impedem muitas vezes livres fluxos entre seus espaços. Desta forma, segundo ele, a rua pode ser meu próprio corpo. Este, depois de vivenciar uma realidade cultural diversa durante aproximadamente um ano, mapeada e a ´Dèrive` é realizada dentro do domínio das variações psicogeográficas através do cálculo de pos- volta novamente a sua “origem”, o Brasil, agora com uma identidade negociada, portanto diversa. Posso dizer sibilidades. Nesta perspectiva, em “Carimbada”, escolhi uma rua comercial onde supostamente os olhares das que aconteceu nesta fase o que Hall (2000) chama de sutura, em que ocorre um diálogo entre as identidades, pessoas que por ali passam são guiados por objetivos comerciais. Esta suposição foi relacionada com o fato da verificando-se a consciência de mim mesma envolvida em estruturas maiores. É então que o meu corpo expressa- manipulação da imagem da mulher brasileira, a qual é vendida e comprada como produto cultural. -se no ato de auto-rotular-me em espaço público ao marcar-me e fazer-me marcar inteira com o título “Mulher Um outro aspecto característico e implícito deste trabalho é a questão de identidade. Pensar neste conceito Brasileira”, utilizando-me da expressão artística para ironizar com as próprias representações que são impostas a relaciona-se diretamente com o deslocamento sofrido por mim, do Brasil, meu país de origem, para Portugal. mim. Ao brincar com o ato de representar e ser representada, talvez a performance remete à questões colocadas No encontro com o outro abriram-se possibilidades de pensar como sou vista por outrem e como vejo-me a mim por Hall (2000) neste constante processo de negociação. mesma. É no diálogo destes dois campos simbólicos que este trabalho nasceu e desenvolveu-se. Enfim, tais experiências criativas podem ser comparadas um pouco ao que Butler (2010) chama de subversão Quando pensamos em identidade, corremos muitas vezes o risco de pensá-la como algo fechado, como uma da identidade, que acontecem no interior das práticas de significação reguladoras. As práticas artísticas podem caixa embalada que contém uma certa quantidade de símbolos que identificam certo grupo social em um territó- adquirir este papel de subversão, quebra e deslocamento. “Assim como as superfícies corporais são impostas rio geográfico específico. Pensar identidade desta forma é perder de vista os aparatos históricos que o sustentam. como o natural, elas podem tornar-se o lugar de uma performance dissonante e desnaturalizada, que revela o Esta idéia emerge no interior de um jogo de poderes que marcam a diferença e a exclusão, e é sustentada por status performativo do próprio natural.” (Butler, 2010, 210) Estados com diversos objetivos, como por exemplo: assegurar uma suposta essência cultural ou fazer-se como produto cultural rentável economicamente. (HALL, 2000) Posso dizer que estas ações performáticas foram concebidos não como obras de arte inovadoras, mas como experiências, trabalhos experimentais, ações criativas e intervenções artísticas, inspiradas no que eu sinto e penso Como já referido, existe no imaginário português representações simbólicas sobre o que é Brasil e sobre o sobre a essência da arte. Uma arte que não dependa dos espaços institucionais mas que utilize-se deles apenas que é a mulher brasileira. Existe então uma imagem fictícia que é vendida e comprada acerca da mulher brasi- como mais uma ferramenta, que não procure gênios mas que dissemine sementes, que ajude o ser humano a leira como a mulata, simpática, que sabe sambar e que é boa para o sexo. É mais um produto cultural mediático repensar a sociedade e transformá-la. Não falo de uma arte política, mas de uma política e de todas as esferas da bastante rentável que esconde as tramas de poder entre seres humanos, entre povos e entre sexos. Esta imagem vida que fossem a própria arte. estática influencia fortemente no tecido social, configurando-se novas identidades numa costura realizada pelas próprias agentes. Na contemporaneidade a arte contemporânea propõe-se a modelar mais que representar, pretende inserir-se e agir dentro do tecido social mais do que inspirar-se nele. Desse ponto de vista, a obra de arte constitui-se como um interstício social, um espaço de relações humanas que, ao integrar-se mais ou menos harmoniosa e aberta- O conceito de processos de “identificação”, remete à noção de identidades como reconhecimento do sujeito mente no sistema global, sugere outras possibilidades de intercâmbio do que aqueles vigentes nesse sistema. de características que são partilhadas ou não com outros grupos ou pessoas. É como algo em construção dentro Dessa forma, a tarefa da arte contemporânea no campo do intercâmbio das representações é criar espaços livres, de um processo em constante transformação. Segundo Hall, nesta perspectiva, identidades são pontos de ape- propor temporalidades, cujo ritmo atravesse aqueles que organizam a vida cotidiana; favorecer relacionamentos go temporário às posições de sujeitos que as práticas discursivas constroem para estes sujeitos, ou seja, o que interpessoais diferentes daqueles que nos impõem a sociedade da comunicação. acontece é uma negociação com suas posições ocasionando o que ele chama de pontos de sutura. (HALL, 2000). Acredito que socialmente estes questionamentos colocados neste estudo podemalargar o campo de atuação Nesta perspectiva as entrevistas feitas com mulheres brasileiras residentes em Portugal demonstraram o quanto das mulheres na luta pelos seus direitos na sociedade, contribuindo para a discussão sobre os fluxos migratórios são modeláveis suas identidades, ponto abordado na leitura corporal da performance deste trabalho. femininos e suas implicações, ou particularmente da mulher brasileira; como tambémdeixando pistas na utili- Nos processos de globalização, incluindo o fenômeno da migração pós-colonial, em que ocorre um trânsito 76 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. zação de ferramentas metodológicas que dialoguem dentro do campo da arte, do design e das ciências sociais. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. 77 As regras do génio REFERÊNCIAS ALMEIDA, Miguel Vale de. Um mar da cor da terra: raça, cultura e política de identidade. 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Estela Catedrático da università de Roma, Itália Este artigo parte de um tema básico e de uma hipótese: o tema é a idéia de que - sem nada contra o sistema “competencias - capacidades - geniosidade” que faz um artista, quer dizer, a individualidade, subjetividade do artista e sua criatividade, etc. - o mesmo artista pensa - age - cria numa sociedade que sofre o processo de socialização, onde ele vivencia as instituições, a economia, a política, etc., onde ele estabelece relacionamentos fortes e duradouros. dos Santos Abreu. Rio de Janeiro-RJ: Contraponto, 1997. DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas-SP: Papirus, 1993. FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala. Formação da família patriarcal brasileira sob o regime de economia patriarcal. 28ª Ed, Rio de Janeiro-RJ: Record, 1992. HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (org. e trad.). Identidade e diferença: a Palavras chave: geniosidade, criatividade artística, Pierfranco Malizia This paper starts from a basic theme and from an hypothesis: the theme is the idea that – without anything against the system “competencies – capacities – geniality” that makes an artist, that means, the individuality, subjectivity of the artist and his creativity etc. – the same artist thinks – acts – creates in a society that suffers a process of socialization, where he lives the Institutions, the economy, politics etc., where he establishes strong and durables relationships. perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, p. 103-131, 2000. Keyqords: geniality, artistic criativity, Pierfranco Malizia JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo-SP: Estação Liberdade, 2002. LAPLANTINE, François. A Descrição Etnográfica. São Paulo-SP: Terceira Margem, 2004. MACHADO, Igor José de Renó. 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In Cadernos pagu 23, Campinas, pp.229-256, julho-dezembro de 2004. Recebido em 11 de Março de 2010. 78 P “A criatividade é uma qualidade de definição não simples, que tem a ver com a energia, a inteligência, a agressividade, a ambição, a capacidade de pensar novos problemas e encontrar novas soluções para problemas antigos, de mudar mentalmente de forma inovadora elementos já dados, de simular rapidamente o resultado de cursos complexos de acção, de alcançar razoavelmente e coerentemente objectivos estabelecidos, de sintetizar novas formas com base em elementos (informações) dados, etc. ” (Strassoldo, 2001; p. 94) Aprovado para publicação em 15 de Setembro de 2011 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. tivo, e influencia-lo de várias formas. Vamos tentar, então, de delinear algumas pré-condições estruturais que podem fortemente influenciar (em alguns casos, talvez determinar) a criatividade artística, porém, sem diminuir as capacidades individuais dos artistas, isto é, o que podemos romanticamente definir o “génio” artístico, uma lógica absolutamente significativa Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. 79 e que outras ciências (por exemplo, a psicologia cognitiva, cfr. Gardner, 1991) deverão tentar de compreender e A produção artística explicar, talvez parcialmente, pela complexidade acima mencionada. Este trabalho quer simplesmente descrever alguns quadros sociais da criatividade artística, sem ter pretensas de exaustividade, com o único intento de reflectir ulteriormente sobre a relação “sociedade - actor social”. Arte e sociedade “A arte não está percebida (definida) como um problema social, como por exemplo o “desconforto juvenil”, as relações industriais, a estratificação, a assistência sanitária, ou as dezenas de outros campos de investigação dos sociólogos. Sobre as razões desta atitude podemos formular outras hipóteses – corolários. Primeiro, a arte, apesar da sua evidente ubiquidade, é considerada pertencer à esfera do marginal, do supérfluo, do luxo, dos estratos mais elevados, e portanto evanescentes, da “sobra - estrutura”. Segundo, considera-se que os problemas eventuais da esfera artística não precisam ser compreendidos e explicados, e portanto solucionados, por meio das ferramentas da sociologia. Esta atitude parece ser muito difusa entre os operadores de arte (Strassoldo, cit. Para “arte” entendemos aqui os processos de produção e os produtos reconhecidos como tais (isto é, artísticos) pela sociedade. O significado destes “produtos” deve ser compreendido no seu contexto de geração, bem como no contexto da fruição; esta definição portanto compreende âmbitos artísticos fortemente diferenciados, tais como: -as artes figurativas; -a literatura; -a musica; -o cinema, o teatro, a dança etc. Como evidencia Zolberg (cit.; cap. I), podemos constantemente encontrar duas concepções de arte que sempre são fundamentais para a constituição do discurso “arte/sociedade” e que podemos sintetizar assim: P. 16)”. Esta citação, como a antecedente (proveniente por um volume que enfrenta exaustivamente as problemáticas arte/sociedade), enfrenta uma longa serie de dificuldades conceituais e temáticas que esta oportunidade encontra no debate sociológico. Provavelmente, hoje podemos enxergar uma inversão de tendência (testemunhada por uma recente produção neste sentido), em particular no âmbito musical; esta inversão de tendência é devida, talvez, ao desabrochar da sociologia da cultura em todos seus componentes temáticos e processuais, em particular, por quanto concerne os grandes meios de comunicação como “difusores” e/ou “produtores” de objectos cultu- CONCEPÇÕESSIGNIFICADO PERTINÊNCIA rais (Griswold, 1997) em diferentes âmbitos, a partir da escola de Birmingham até as mais recentes pesquisas italianas (Morcellini, 2000), por fim, tentativas sistemáticas de grande interesse (Strassoldo, cit.; Zolberg, 1994; Crane, 1997). Porém, quais dificuldades podem continuar obstaculizando uma sociologia da arte? O problema de fundo está provavelmente na substancial pluri – dimensionalidade da mesma arte (Gallino, 1993; pp. 38-41), e na conse- EXÓGENA Arte como produto de uma genialidade criativa, unicidade do acto artístico. Estética História da arte ENDÓGENA Arte como processo de criatividade“social” e de “reconhecimento social” Sociologia quente concentração sobre uma ou outra dimensão: por um lado, a perspectiva “genética”, centrada na produção artística (tanto material quanto económica) e os factores determinantes no processo produtivo; pelo outro, a dimensão sintáctica que privilegia a estrutura do discurso artístico e a determinação da apreciação social; ou, além disto, a dimensão semântica que leva de forma semi – unívoca para a reflexão sobre a correspondência “formas de arte – tipologia de sociedade”, correspondência frequentemente extrema, e que de qualquer forma auto explica-se, por fim, a dimensão pragmática que desenvolve principalmente o conceito de arte como “ferramenta ideológica” (idem, p. 40), para hipostasiar uma tal ordem social ou para discuti-lo. Isto pertence à pluri – dimensionalidade, que pode de fato assumir-se como complexidade substancial para uma sociologia da arte; mas a arte não é exclusivamente um fenómeno complexo “difícil” de ser interpretado, assim, talvez o problema de uma sociologia da arte está também no que König escrevia há alguns anos atrás: “embora a maioria dos contributos e das pesquisas de sociologia da arte assumam o fato social “experiencia artística” como ponto de partida ou centro da própria analise, isto acontece, digamos assim, intuitivamente: isto é, considera-se obvio o fato social, sem se preocupar de circunscrevê-lo com precisão, de clarifica-lo ou especifica-lo. É claro que por um tal caminho ingénuo nascem umas dificuldades, e que para superá-las acaba se por explorar todos os sectores marginais de pesquisa.” (König, 1967; pg 31). 80 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. 81 É claro que o posicionamento sobre uma ou a outra concepção possibilita ou não a configuração de qualquer Portanto, cada fase desta dinâmica processual deve ser adequadamente acompanhada e suportada em todos discurso social ao redor da arte; aceitando a concepção “exógena” muitos tractos de interesse sociológico podem os níveis, não sendo isto com certeza de fácil realização; pensamos, por exemplo, nas dificuldades e obstáculos ser delineados, tais como: não exclusivamente conservadores, mas também de interesse de status, de interesses particulares que podem se a) a abordagem funcionalista, que sugere varias funções sociais da arte, a partir da função de “idealização” interpor nas fases de “desenvolvimento” e “aceitação” das ideias criativas – inovadoras. Pensamos também nas (sublimar os sentimentos) até aquela de “diversão” (ou loisir); além disso “quando considera-se a relação arte/ resistências (psicológicas, estruturais, de interesse) à mudança, individuais ou colectivas, reais ou instrumentais, sociedade, é preciso ter em mente que a arte pode ter, ao mesmo tempo, uma função de re – envio para uma di- que de fato irão obstaculizar as fases de “colectivização” e “adopção” das mesmas ideias; além disso, em termos mensão diferente, outra, daquela social, como fonte constante de criatividade, inovação expressiva e contestação de cultura organizacional, podemos afirmar que as ideias criativas – inovadoras (a não ser quer exista um habito das ordens constituídos, e uma função celebrativa que também confirma os valores e as representações social- tradicionalmente consolidado e que a criatividade seja colectivamente vivenciada como um valor) encontram- mente partilhadas” (Crespi, 1996; pg. 184). -se frequentemente “culturalmente recusadas”, enquanto “ameaçadoras” (realmente ou não) da ordem cultural b) a abordagem estrutural, que considera todos os componentes da produção – fruição artística, o que mostra uma notável possibilidade de diferentes momentos de estudo, por exemplo: existente, embora não representem um risco para a sociedade. A implantação e o desenvolvimento da “criatividade como valor e prática” nos sistemas sociais de forma difusa representa assim uma dinâmica processual complexa, que diz respeito ao “sistema em si” (que refere-se -os “artistas” (rol e status, subsistemas culturais, etc.); globalmente ao sistema organizacional como sistema, onde cada alteração individual e/ou parcial produz uma -o “mercado” (sistema pergunta/oferta, sistemas de produção, comercialização, venda etc.) cadeia de alterações globais), à “cultura” (que refere-se à uma potencial alteração de valores, hábitos, tradições, -o “publico” (consumo artístico, composição sócio – cultural, modalidades/lugares de fruição etc.); etc., existentes, que, especialmente onde as culturas são fortes quanto ao seu “vivenciado” e compartilhamento, -as “politicas publicas” (intervenções estaduais na arte, arte e escola, etc.); irá precisar de um adequado processo de inculturação, ao menos temporalmente, para realizar-se de forma com- -o “status social” da arte (bipartição “artes maiores/artes minores”, valores sociais de reconheci- pleta), ao “sistema de decisão” (que comporta uma lógica intencional na actividade de decisão de criar continua- mento/apreciação, etc.); -a “industria cultural”. mente e incondicionadamente suporte para a criatividade, que com certeza não falta de obstáculos e que sempre precisa de recursos, também, como já consideramos, com certeza não é a – conflitual). A “criatividade” Sobre a criatividade artística A “criatividade” pode ser definida como um valor cultural, e as culturas não podem não considerar a necessidade de estruturar-se com modalidades e filosofias “que encorajem” a criatividade, a inovação; porém, a criatividade, quando favorecida, constitui uma dinâmica específica que, para ser completamente realizada, deverá A criatividade não pode ser reduzida apenas ao “flash” do génio, mas consiste, também, na resultante de vários factores: excluir comportamentos “ante - criativos” como as formas de controlo social, as especializações vivenciadas a) factores de contexto sócio – cultural; rigidamente e elevadas a barreiras sociais, o favorecer formalmente as novas ideias sem realiza-las efectivamen- b) factores ligados aos “círculos sociais – artísticos”; te, o seguir “sempre e de qualquer forma” as regras e tradições. c) condicionamentos pelas tradições artísticas; Esta dinâmica da criatividade pode assim ser evidenciada: d) influencia da assim chamada “industria cultural”. Antes de desenvolver brevemente estes pontos, devemos lembrar que esta teorização não diminui de alguma forma a “capacidade individual” do génio, porém, acrescenta algumas conotações que derivam pelo simples fato •Estímulos para a criatividade •Desenvolvimento de ideias •Aceitação e colectivização das ideias • Adopção organizada das ideias e dos relativos processos de mudança 82 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. de cada génio nascer e actuar em uma sociedade, em uma cultura, em uma altura histórica etc.; vamos então examinar os pontos acima elencados. Factores de contexto sócio – cultural. No desenvolvimento das teorias sociológicas, embora em diferentes momentos históricos – sociais e em “escolas de pensamento” distantes, podemos evidenciar dois momentos de elaboração teórica da assim chamada por Durkheim “efervescência social” (1972), isto é, situações de contexto que, mais que outras, facilitam processos de inovação, como a “anomia” de Merton (1992) e a “morfogenese” de Archer (1997). Segundo Merton “a anomia Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. 83 depende pela falta de integração entre a estrutura social, que define os status e os papéis dos sujeitos que agem, e Becker (2004) insiste muito sobre a recíproca influencia entre os artistas (independente pela especifica arte a estrutura cultural, que define os objectivos a ser alcançados pelos membros da sociedade, bem como as regras praticada individualmente), enquanto comparticipantes de um “círculo artístico”: “ele começa pela interacção a ser respeitadas para alcançar os objectivos. Acontece que as posições dos sujeitos que agem impeçam – lhe de alcançar os objectivos indicados pela cultura como as melhores (por exemplo, segundo Merton, o objectivo da riqueza e do sucesso na sociedade norte-americana) através dos meios indicados pelas normas institucionais. Porém, quando as primeiras resultam mais importantes que as segundas, temos um comportamento de inovação.” (Izzo, 1991; p. 291). Segundo Archer (1997) o conceito de “morfogenese” refere-se “aos processos que tendem microscópica entre os participantes (submundos artísticos, n.d.r.), mudando-se gradualmente para modelos de associação sempre mais amplos, que compreendem uma variedade de mundos artísticos … os mundos onde os artistas trabalham existem como culturas mais ou menos institucionalizadas, que normalmente tem pouco a ver as umas com as outras … Esta análise de subcultura apresenta as artes como elas próprias.” (Zolberg, cit.: p. 138). Em outras palavras, Becker vê a criação artística como: a elaborar ou mudar a forma, o estádio do sistema … ao contrário, o termo “morfostasi” refere-se aos processos das trocas complexas entre o sistema e o ambiente, que tendem a conservar, a manter uma forma … de um sistema” (cit., p.190). “Morfogenese” significa, então, uma situação social complexa que produz transformações e inovações, e que, por consequência, com um assim chamado “efeito domino”, cria uma realidade complexa onde -resultante por praticas colectivas geradas nos submundos da arte, claramente sem excluir as qualidades individuais; -processo influenciado por formas constantes e “intime” de interacção social, cultural em geral e artística no especifico, entre os artistas que reconhecem-se no mesmo submundo. o acto criativo possui, potencialmente, muitas possibilidades de se originar e desenvolver de forma completa. Factores ligados aos “círculos sociais – artísticos”. Além da noção de contexto em geral, devemos considerar a especifica influencia dos “mundos artísticos” e dos “mercados artísticos” sobre o mesmo artista; na verdade, na nossa opinião não pode-se negar que as relações “artistas - artista” (especialmente em subsistemas fechados, com uma forte interacção e com sistemas normativos – valorais partilhados, isto é, verdadeiras sub – culturas) condicionem as escolhas e os percursos de cada actor, bem como as pressões do mercado, e mais em geral, as lógicas de atribuição socioeconómicas de valor (latu sensu), nunca irão deixar indiferente o artista. Sintetizando, o processo de criação artística pode ser assim descrito: Condicionamentos pelas tradições artísticas. As tradições, cuja interessante etimologia oscila entre “entrega” e “ensino”, assim chamadas “memoria colectiva canonizada” (Jedlovski – Rampazi, 1991), podem ser definidas como “os modelos de crenças, costumes, valores, comportamentos, conhecimentos e competências que são transmitidas de geração em geração, por meio do processo de socialização” (Seymour-Smith, 1991, p. 411). Esta palavra vem depois ser utilizada para indicar tanto o produto quanto o processo (Cinese, 1996, p. 96) da produção cultural de transmissão/ensino típico das mesmas tradições. As tradições constituem uma parte fundamental e um elemento distintivo da identidade cultural (Di Cristofaro Longo, 1996, p. 96), do pertencimento, e constituem também um ponto de referência importante para a acção social em geral, em particular, suportando uma específica tipologia weberiana de “acção”, aquela “conforme hábitos adquiridos e que viraram constitutivos do costume; a reacção aos estímulos habituais em parte absolutamente limitativos; a maioria das acções da vida quotidiana é ditada pelo sentido das tradições.” CONTEXTO (Morra, 1994, p. 96). Sendo elementos distintivos da cultura, as tradições tomam valores endógenos (de auto reconhecimento) e também exógenos (de identificação) para os grupos sociais que referem-se à estes valores. O sistema das tradições pode ser interpretado como uma verdadeira instituição social, no sentido de “forma REDES DE INTEGRAÇÃO MICRO (mundos artísticos) ARTISTA (personalidade, status) REDES DE INTEGRAÇÃO MESO (mercados artísticos) de crença de acção e de conduta reconhecida, estabelecida e praticada estavelmente” bem como no sentido de “práticas consolidadas, formas estabelecidas de proceder, características de uma actividade de grupo” (Gallino, cit., p. 388). O sistema total das tradições, respeito à uma ideia de continuum cultura – subculturas (locais, profissionais, de genro etc.) pode depois ser dividido em grandes e pequenas tradições (Seymour-Smith, cit., p. 203), isto é, a complementaridade, a coexistência, entre PRODUTO a) traços ligados com especificas comunidades, participantes de um sistema social mais amplo, traços mais difundidos, gerais ou comuns; b) divisões existentes entre culturas oficiais e culturas folk (idem, p. 189); coexistência e complementaridade que viram substanciais em uma continuidade de reinterpretações, frequentemente constituídas por descobertas, reavaliações, esquecimentos. As tradições podem ter um valor mais conservador ou de conservação (Parsone, 1965), isto é, podem ser um 84 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. 85 veículo para as inovações e as mudanças, bem como fornecer um suporte para processos de mudança social não Influencia da assim chamada “indústria cultural”. alienados/alienantes: a assim chamada “referência às tradições” pode ter o duplo significado de: a) entrincheiramento ao passado, de forma total e absolutamente não elástica, preliminar e dominante, contra Quais são as lógicas, os mecanismos, os actores da industria cultural? Podemos fazer uma hipótese de modelo explicativo (embora bastante geral) sobre o que acontece hoje, em uma situação caracterizada por fenomenolo- tudo que apareça (o seja percebido) novo b) conservar uma especificidade cultural que facilite, em lugar de contrastar, cada input interno/externo de mudança e consiga homogeneizar seus efeitos com os próprios específicos traços culturais. gias incertas, onde alguns “objectos” (Griswold, 1997, pp. 26-29) fazem carreira e, sendo “funcionais”, viram “culturais” nas suas esferas de referência, ou, em uma geral “concepção do mundo”. O assim chamado “modelo Portanto, onde as tradições artísticas resultam “pesadas”, isto é, influenciam uma criatividade principalmente de Hirsch” (Griswold, 1997, pp. 102-108; Sciolla, 2002, pp. 216,217, e obviamente Hirsch, 1972) parece colectar “problem solver”, a criatividade artística em geral será certamente e discretamente condicionada, e as formas muito consenso. “Hirsch realizou um esquema das relações entre os diferentes subsistemas existentes no sistema, “problem finder” que poderão manifestar-se serão limitadamente praticadas pelos outsiders (Becker, 1991). por ele mesmo definido sistema da indústria cultural, que descreve o conjunto de organizações que produzem Ainda Zolberg (cit.; cap. IV), reflectindo dobre diferentes pesquisas no âmbito da produção artística, faz artigos culturais de massa, como discos, livros, programas da televisão e da rádio. Neste esquema, os media re- uma hipótese de dois ideal tipos weberianos de artistas, diferentes quanto à abordagem ao problema. Segundo presentem um subsistema entre os outros. A organização “de gestão”, por exemplo, para alcançar os mass media esta hipótese, podemos distinguir artistas “problem solver” e “problem finder”: os primeiros prestam atenção à fornece informações sobre o produto (filtro 2). Estas notícias são utilizadas pelo sistema institucional nos media produção artística existente, individuando diferentes modalidades de expressão; os segundos, investigam prin- (gatekeepers mediais, como disc-jockey, apresentadores de talk-show, revisores de livros e filmes, etc.). Neste cipalmente novas problemáticas e/ou necessidades artísticas. Ambas as tipologias podem, de qualquer forma, espaço de intermediação surgem possibilidades de relações pouco transparentes quando não de corrupção. O trabalhar segundo lógicas mais tradicionais ou inovadoras. Estes “ideal-tipos” podem ser assim representados, público conhece o novo produto através dos media. Temos, por fim, dois tipos de feedback: o primeiro vem dos por exemplo, no âmbito das artes visuais: medias, o segundo dos consumidores, mensurado pelas vendas de bilhetes, discos, livros, etc.” (Sciolla, 2002, p. 216). O modelo pode ser assim configurado: ABORDAGEM Filtro 1 PROBLEM FINDER Criação de “arte nova” (es: Duchamp) PROBLEM SOLVER Variantes de “arte nova” (es: Wharol) “INOVAÇÃO” Filtro 2 Filtro 3 Re – descoberta criativa com novos significados (es:Picasso) Seguidores da tradição (es: os artistas figurativos) SUBSISTEMA TÉCNICO (criadores) SUBSISTEMA DE GESTÃO (organizações) “TRADIÇÃO” SUBSISTEMA INSTITUCIONAL (media) CONSUMO (sociedade) feedback A figura representa a configuração tradicional do modelo; porém, sendo um “modelo”, não deve ser utilizado PROBLEM FINDER Criação de “arte nova” (es: Bossa Nova) Re – descoberta criativa com novos significados (es:Moacyr Luz) PROBLEM SOLVER Variantes de “arte nova” (es: Seu Jorge) Seguidores da tradição (es: Paulinho da Viola) de forma rígida, mas sim como principalmente indicador de um processo complexo. Assistimos hoje por meio e causa das redes, a já conhecidas alterações deste andamento processual; os clássicos exemplos são aqueles criativos (em particular, das artes visuais, literatura e musica) que entram directamente, através da Web, no sistema dos media, propondo suas criações e quase “impondo-a” para o publico sem os tradicionais filtros de subsistema; nos casos de sucesso, estes criativos fazem parte do percurso na hipótese de Hirsch, embora com um andamento parcialmente diferenciado que pode ser assim configurado: 86 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. 87 I° CONSUMO (sociedade “em rede)” SUBSISTEMA COMUNICACIONAL (web) Referências Archer M. (1997), La morfologenesi della società, Milano, Franco Angeli Becker H. (1991), Outsiders, Torino, Abele Filtro 1 Becker H. (2004), I mondi dell’arte, Bologna, Il Mulino Filtro 2 Bourdieu P. (1980), Questions de sociologie, Paris, Minuit SUBSISTEMA TÉCNICO (criadores) SUBSISTEMA INSTITUCIONAL (media) SUBSISTEMA DE GESTÃO (organizações) CONSUMO (sociedade) Cirese A.M. (1996), Cultura egemonica e culture subalterne, Palermo, Palumba Crane D. (1997), La produzione culturale, Bologna, Il Mulino Crespi F. (1996), Manuale di sociologia della cultura, Bari, Laterza feedback Di Cristofaro Longo G. (1996), Identità e cultura, Roma, Studium Durkheim E. (1972), La scienza sociale e l’azione, Milano, Il Saggiatore Gallino L. (1993), Dizionario di sociologia, Torino, UTET Este modelo, como nos lembra Griswold, nasceu para os “produtos culturais de massa tangíveis” e pode ser aplicado, com as necessárias/oportunas modificas, para qualquer sector da indústria cultural. Uma reflexão sobre o sistema da industria cultural e da sua influencia sobre os artistas e/ou aspirantes a virar artistas, pode ser útil, quando enquadrada no complexo discurso de Bourdieu (1980) segundo o qual “a macroestrutura nas formas cristalizadas do Estado, do sistema de domínio social e do diferente acesso dos membros aos bens de valor, material ou simbólico, constitui uma presença incumbente” (Zolberg, cit.; p. 138); para compreender de forma completa a produção artística, não pode-se não considerar “a totalidade das relações (as objectivas e as determinadas na forma de relação) entre o artista e os artistas, e, além destes, a totalidade dos actores comprometidos na produção do trabalho artístico, ou, ao menos, do valor social do trabalho … o que as Gardiner H. (1991), Formae Mentis, Milano, Feltrinelli Hirsch P.M. (1972), Processing fods and fashion, in Annual Journal of Sociology, 77 Izzo A. (1991), Storia del pensiero sociologico, Bologna, Il Mulino Jedlowski P. – Ramazzi M.(1991), (a cura di), Il senso del passato, Milano, Franco Angeli König R. (1967) (a cura di), Sociologia, Milano, Feltrinelli Malizia P. (2007),Configurazioni,Milano,Franco Angeli pessoas chamam de criação é o conjunto de um habito e de uma tal posição (status) que pode ser já construído Merton R.K. (1992), Teoria e struttura sociale, Bologna, Il Mulino ou possível na divisão do trabalho da produção cultural” (Bordieu, cit.; pp. 208-212). Morcellini M. (2000) (a cura di), Il Medioevo, Roma, Carocci Conclusões Morra G. (1994), Propedeutica sociologica, Bologna, Monduzi Parsone T. (1965), Il sistema sociale, Milano, Comunità Podemos concluir como tínhamos começado, esperando que quanto argumentado sinteticamente neste trabalho possa ter fornecido uma base para a tese de fundo, isto é, que também a criatividade artística (alguma coisa pensada como o “agir na sociedade”) não possa identificar-se somente na capacidade e/ou performance individuais (o “génio artístico”), que de qualquer forma não devem ser excluídas ou subavaliadas, mas possa ser pesquisada também nos quadros sociais “ocultados” ou “evidentes” que orientam e influenciam os artistas, açores sociais “imersos” (como todos) na sociedade, e portanto, que pertencem aos sistemas de interacção bem como de relação. 88 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. Sciolla L. (2002), Sociologia dei processi culturali, Bologna, Il Mulino Seymour-Smith C. (1991), Dizionario di antropologia, Firenze, Sansoni Strassoldo R. (2001), Forma e funzione, Udine, Forum Zolberg V. (1994), Sociologia dell’arte, Bologna, Il Mulino Recebido em 15 de Setembro de 2010. Aprovado para publicação em 18 de Setembro de 2011 Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. 89