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Uma Ambição Inafundável: Aprender com o Titanic Cem Anos Depois André Rodrigues P. Silva, Abril de 2012 Assinalou-se em 2012 e, em particular, no dia 15 de Abril, um pouco por todo o mundo, o Centenário do Naufrágio do RMS (Royal Mail Ship) Titanic. Se é verdade que este não foi, apesar do que tem sido apregoado nos média, o maior acidente do género no tocante ao número de vítimas, certo é que ganhou, na cultura popular e no imaginário colectivo, um lugar de destaque de que, na época contemporânea, nenhum outro naufrágio logra sequer aproximar-se. O Titanic compete, em popularidade, com personagens de uma qualquer ficção, com embarcações que não tiveram existência concreta, mas pertencem ao domínio religioso/mitológico como a Barca de Noé, a Barca de Caronte ou o Holandês Voador. Não erraremos muito ao afirmar que será preciso recuar aos Descobrimentos para encontrar uma embarcação tão popular e que de facto existiu, como a nau Santa Maria, de Colombo. Dir-se-á que isso se deve ao cinema e à literatura e não será difícil aceitá-lo, o impacto que ambos têm nas nossas vidas torna-o possível. Mas devemos perguntar também por que razão tantos autores e realizadores escolheram contar a história do navio inglês, sem sequer precisarem de a alterar substancialmente: com efeito, cinema e literatura sobre o Titanic, efabularam muito pouco, se não contarmos como efabulações as imprecisões históricas. O Titanic não precisa disso. Para a literatura como para o cinema, não é preciso mudar o essencial do que de facto aconteceu. O próprio filme de Cameron, celebérrimo mas justamente contestado, “apenas” lhe acrescenta, dum modo que muitos consideraram vulgar e mesmo grosseiro, a história de uma tão arrebatada como precipitada paixão amorosa, em nada coerente com os códigos amorosos da época, como poderíamos constatar pelo próprio cinema de há não menos que uns 50 anos. Na realidade crua, não menos que centenas de casais foram destroçados com a separação forçada, imposta pelo protocolo que obrigava, justamente, a salvar as mulheres e as crianças em primeiro lugar. Temos a antítese perfeita que há entre a fragilidade do homem e a força das suas emoções, mormente, como no filme, a paixão amorosa. A sua passagem pelo mundo é assaz efémera, o amor perdura. A sua ambição é ilimitada, a tradução material dos seus esforços terrenos acabará por ser ultrapassada. Este texto, que não tem quaisquer pretensões de originalidade. Nasceu de nos interrogarmos sobre as razões pelas quais o destino infeliz das 1 523 pessoas que encontraram a morte na viagem inaugural do enorme transatlântico ficou assegurado de vida muito para além de um desaparecimento em condições particularmente trágicas. Acreditamos que essas são, também aqui, como as que nos movem e contribuem para a nossa originalidade enquanto espécie, de ordem psicológica. O naufrágio do Titanic condensa como poucos acontecimentos, se concordarmos em exceptuar a guerra, os medos fundamentais do psiquismo humano. E, se é verdade que a nossa ambição nos move e nos permite ultrapassar obstáculos e superarmo-nos, a história do Titanic fala de uma outra ambição, a que os Gregos Antigos chamaram Hybris, que poderíamos traduzir por arrogância ou insolência, não apenas perante os deuses, mas face à própria condição humana. Como nos dizia muitas vezes um querido amigo, se trouxéssemos de volta um tragediógrafo grego, certamente ele se ocuparia de escrever uma tragédia sobre o Titanic. Nada, para o efeito, lhe faltaria. Claro que fazer hoje um catálogo dos erros cometidos no Titanic será certamente um anacronismo. Os salva-vidas não eram em número suficiente, o que foi deliberado, por entender a White Star Line que nunca seriam necessários e que isso roubava demasiado espaço no convés. Alguns partiram, segundo se escreveu, com menos de metade dos lugares preenchidos. Também é verdade que o navio viajava à velocidade de 22 nós numa região do Atlântico Norte cheia de icebergs. Mas mesmo isso não era estranho à prática da época. Colocou-se a hipótese de que haveria a intenção de chegar a Nova Iorque antes do anunciado, surpreendendo tudo e todos e fazendo grande propaganda à White Star Line. Perante o desastre, a tripulação revelou-se, diz-se, inexperiente. Para aumentar a dimensão da tragédia, de entre as embarcações a que chegaram os apelos do Titanic, alguns tê-los-ão ignorado por razões difíceis de determinar. Também isto não é inusitado na época, a mudança viria depois do Titanic. O Carpathia, que acolheu os sobreviventes, demorou cerca de quatro horas a chegar ao local, quando já aproximadamente 1 500 pessoas haviam morrido, por afogamento, hipotermia, esmagamento ou outro acidente. Mesmo que hoje se possam enumerar e mesmo julgar estes factos de forma ligeira, a sua análise deverá sempre ser feita à luz da época. Se assim não for, não estamos perante História, mas apenas um relato anacrónico. Infelizmente, até mesmo os livros da especialidade estão repletos deles. Certo é que o naufrágio do Titanic mudou para sempre as normas de segurança e o Direito na navegação em alto mar. Se tantas vidas se perderam, aparentemente sem necessidade, os ensinamentos colhidos do desastre permitiram salvar outras nas décadas seguintes. Face à questão de saber se o Titanic foi mal construído, fosse por necessidade de economizar nos materiais ou na mão-de-obra, uma resposta é contudo cabal: um dos dois congéneres do Titanic, o Olympic, continuou a sua notável carreira e só foi desmantelado cerca de vinte anos mais tarde, com o famoso Mauretania, da empresa rival Cunard Line. Era aliás, este último navio, um dos que a White Star pretendia, com o Titanic, o Olympic e o Britannic, ultrapassar. Dissemos atrás, que no destino do Titanic se reúnem os medos fundamentais do ser humano. Em boa parte, o medo refreia a nossa ambição, impõe-nos limites embora nos possa também imobilizar. Numa tragédia como estas surge, no ser humano, o medo do abandono. A este, experimentamo-lo desde logo enquanto recém-nascidos de um modo bem que fica para sempre registado. Há quem defenda que uma ausência temporária da mãe é bastante para traumatizar o bebé. Será o adulto tão diferente? Escassas horas depois de o seu casco ter sido recortado por um iceberg em colisão lateral, o Titanic começou a afundar e não demoraria muito mais de duas horas a desaparecer por completo da superfície do Oceano. À medida que os passageiros foram tomando consciência do seu provável destino numa noite gelada em pleno Atlântico Norte, o pânico instalou-se e dificultou, não pouco, o trabalho da tripulação e o seguimento dos protocolos. Ainda assim, diz-se que a maioria dos homens a bordo terá prontamente acatado o protocolo que obrigava a salvar primeiro mulheres e crianças. Registaram-se actos de grande nobreza e coragem. Sem as nossas referências e ligações/laços, materiais e humanos, perante o risco de os perdermos em permanência ou mesmo momentaneamente, sentimo-nos abandonados, perdemo-nos de nós e centramos toda a atenção numa luta desenfreada pela sobrevivência. Também o medo da morte, diz-se, controla grande parte das nossas acções e pensamentos, mesmo quando não nos é possível reconhecê-lo. O perigo de morte, em semelhantes condições, está omnipresente, cresce e sufoca a capacidade de pensar e agir com base em qualquer espécie de reflexão. No caso de um naufrágio como este, trata-se de uma morte horrível, por hipotermia, porque o coração não aguenta o choque térmico, por esmagamento, por afogamento. Não demos, neste texto, conta da a conhecer a sucessão de acontecimentos trágicos no naufrágio do Titanic, que continuará a fazer-nos pensar por muito tempo, não apenas por não ser este o local ou por não estarmos na posse dos conhecimentos exigíveis. O essencial e mesmo grande cópia de detalhes, entre o surpreendente e o macabro pode, claro, ser encontrado nos livros de História e, desde há anos, também na Internet, onde recolhemos as imagens para este artigo. Pretendemos, antes partilhar uma reflexão pessoal, por acreditarmos que é também de histórias como esta que se forja a nossa identidade e provêm os exemplos, bons ou maus. Muito haveria a dizer, por exemplo, das diferenças de classe. Sempre existiram e existirão, diz-se, não sem ironia. A bordo do Titanic permaneceram bem notórias, até que a mesma sorte ditou, a tantos, tão diferentes no nascimento, exactamente a mesma morte. Os passageiros da primeira classe viajavam de facto numa espécie de palácio flutuante. Os da terceira encontraram, a bordo do Titanic, um mundo, apesar de tudo, bem menos mau que aquele que haviam deixado, ao partir rumo aos EUA, em busca de melhores condições de vida. Na realidade, pretendia-se que estes mundos tão distintos não se contactassem. A uns e outros o destino trocou as voltas, mostrando quão absurdas se tornam, face à morte, quaisquer ambições materiais. O filme de James Cameron centrou-se numa história ficcional de paixão arrebatada. Mas será sempre o Naufrágio do Titanic o protagonista maior de qualquer filme que queira contar esta história. A realidade, essa ceifou de forma cruel e precoce muitas centenas de vidas e mudou para sempre as de quantos sobreviveram. A História continuou sempre a perseguir, até ao último momento, os últimos sobreviventes do Titanic. Algumas imagens de época: Fig. 1. (acima) Um rapaz, um paperboy, segura um cartaz que anuncia as terríveis notícias do naufrágio do Titanic. Fig. 2. O Titanic, em 1912. Fig. 3. Titanic, 1912; a presença destes homens junto às hélices do Titanic permite ter uma noção das proporções do navio. Fig. 4. Veja-se como, nesta manchete, os editores destacaram, junto ao número aproximado de mortes no naufrágio, o desaparecimento de J.J. Astor, um dos homens mais ricos do seu tempo.
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