Natureza e deslumbramento:
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Natureza e deslumbramento: construindo nanoestruturas sintéticas biocompatíveis Por Dr. Alvaro Antonio Alencar de Queiroz “O verdadeiro devoto tem de superar o difícil caminho entre o precipício da ausência de Deus e o pântano da superstição” (Plutarco) A palavra religião vem do latim religare e significa “unir”, ligar coisas que foram separadas. No sentido de buscar as relações mais profundas entre coisas que na superfície da mente parecem dissociadas, que os objetivos da religião e da ciência quase se identificam, à exceção de suas diferenças no terreno das verdades declaradas e nos métodos de abordagem. A melhor forma de deflagrar a sensação religiosa é olhar para o céu em uma noite clara (Fig. 1). É nesse momento de fascinação que questões antigas nos atormentam através dos tempos. A verdade absoluta de nossa existência e do manto da consciência que cobre nossa visão do mundo ainda permanece totalmente desconhecida. Talvez a verdade ainda seja demasiado grande para que a mente humana a suporte. mais nesse mesocosmos, na estrutura biológica celular, com o auxílio do microscópio eletrônico de transmissão (MET) descobre-se uma estrutura fantástica que confere às células o papel de reconhecimento, o glicocálice (Fig. 2). Figura 2. Estrutura do glicocálice capilar do miocárdio (esquerda: adaptado de van den Berg B.M., Vink H., Spaan J.A. The endothelial glycocalyx protects against myocardial edema. Circulation Research 2003, 92: 592-594) revelada por microscópio eletrônico de transmissão (direita). Figura 1. Nebulosa da águia (esquerda: adaptada de http://apod.nasa.gov/ apod/ap090208.html) e ressonância magnética nuclear funcional (RMF) do amadurecimento do cérebro (direita: adaptada de http://www.loni.ucla. edu/~thompson/DEVEL/dynamic.html). Na imagem RMF as regiões em vermelho indicam mais massa cinzenta e em azul, menos massa cinzenta. O glicocálice é uma extensão da própria membrana celular, rica em polissacarídeos que se projeta da superfície fosfolipídica formando uma cobertura externa cujas funções são de reconhecimento celular, formação de aderências intracelulares e absorção de moléculas para a superfície celular desempenhando uma importante função na manutenção da integridade do tecido biológico, em especial as artérias e consequentemente da saúde humana (Fig. 3). Quando o glicocálice é alterado, desencadeia uma série de efeitos biológicos nocivos, entre eles, a aterosclerose e o infarto agudo do miocárdio. Entretanto, não precisamos nos deslocar até galáxias distantes para enxergar a grandiosidade da natureza. Uma estrutura tão complexa quanto o universo que contemplamos com o auxílio de poderosos telescópios está dentro de nós, o cérebro humano (Fig. 1). Trata-se do mais complexo de todos os órgãos cuja base de funcionamento é a flexibilidade e a capacidade plástica que se manifesta mesmo nas idades mais avançadas, favorecendo assim constantes transformações. Estima-se que o número de neurônios no cérebro seja cerca de 86 bilhões, muito próximos dos 100 bilhões de estrelas que formam nossa galáxia, a Via Láctea. Todo um universo está em nós. Albert Einstein disse que o sentimento religioso cósmico é o motivo mais forte e mais nobre para a pesquisa científica. Voltando nossos olhos para uma estrutura biológica em escala mais reduzida, o mesocosmos, o mistério da vida nos causa uma forte emoção. Não parece haver no mesocosmos estruturas que cheguem sequer perto da complexidade dos sistemas biológicos de macromoléculas e células existentes no organismo humano. Várias evidências científicas demonstram que a superfície celular é dotada de tamanha especificidade que permite às células do organismo humano se reconhecer mutuamente e estabelecerem certos tipos de relacionamento. Mergulhando um pouco Figura 3. Influência da estrutura do glicocálice (GC) no bom funcionamento do organismo humano. O glicocálice existente nas paredes de artérias, vasos ou capilares mantém o organismo saudável (esquerda). Quando o glicocálice é destruído, eventos indesejáveis “perturbam” a saúde. As siglas referem-se a várias células que coexistem em equilíbrio no glicocálice: MC = monócitos (leucócitos, defesa), PG = proteoglicanos (estrutural e transporte), SDE = enzima superóxido dismutase (defesa antioxidante da célula), PP = proteínas do plasma (transporte), vWF = fator de von Willebrand (fatores associados ao mecanismo da coagulação do sangue), PT = plaquetas (coagulação), TFPI = ativador tecidual do plasminogênio (coagulação), AT = antitrombina (enzimas desativadoras do processo da coagulação), ICAM = moléculas de adesão (promove a adesão celular). Adaptado de van Golen R.F., van Gulik T.M., Heger M. Free Radical Biology and Medicine 2012, 52: 1382-1402. 6 Naturale dezembro/janeiro - 2013 Os pesquisadores do Centro de Estudos e Inovação em Materiais Biofuncionais Avançados (CEIMBA) da UNIFEI sintetizaram sob coordenação do Prof. Dr. Alvaro A. Alencar de Queiroz, estruturas poliméricas que mimetizam o glicocálice (Fig. 4). As estruturas poliméricas correspondem ao polímero poli (metacrilato de 2-hidroxietila) (PHEMA) enxertadas na superfície do polietileno. A síntese foi efetuada utilizando raios gama de uma fonte de cobalto-60 multipropósito em colaboração com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN/SP). Tais estruturas, denominadas de polímeros com topologia tipo escova (polymer brushes) apresentam elevada compatibilidade com o tecido sanguíneo, similarmente à estrutura de um glicocálice biológico. Figura 4. Fonte multipropósito de 60Co do IPEN/USP (esquerda) utilizado para a síntese de nanoestruturas sintéticas que imitam o glicocálice celular (direita). As micrografias à direita são referentes à microscopia eletrônica de varredura que ilustram as estruturas de glicocálice sintetizados na UNIFEI no CEIMBA. A obtenção das estruturas de polímeros tipo escova utilizando a radiação ionizante tem uma finalidade específica. Esta técnica pode ser apontada como um procedimento de Química Verde ou Química Limpa, já que não são usados catalisadores ou solventes na reação. A técnica elimina a necessidade de reciclar, descartar e manipular um solvente orgânico (muitas vezes tóxico, inflamável e/ ou ataca a camada de ozônio). Ao mesmo tempo, as reações de polimerização conduzidas pela radiação ionizante mostraram grande vantagem em termos de rendimento, tempo e menor formação de subprodutos. A ausência de resíduos de catalisadores no produto final confere ao material a característica de biocompatibilidade com o organismo humano. Dois tipos de polímeros com topologia escova foram sintetizados: o polímero com topologia esférica e com topologia plana (Fig. 4). Agora os pesquisadores estão projetando com as estru- Naturale dezembro/janeiro - 2013 turas obtidas, revestimentos compatíveis com o sangue e biossensores implantáveis para a monitoração da dengue. Os revestimentos biocompatíveis com o sangue poderão num futuro próximo contribuir para a medicina cardiovascular, minimizando as interações entre esse fluído biológico e a superfície sintética (Fig. 5). Tais materiais poderão Figura 5. Superfícies sintéticas após contato com sangue humano: superfície sintética não revestida (esquerda) e revestida pelos pesquisadores do CEIMBA/UNIFEI com glicocálice artificial (direita). Observa-se na superfície não revestida com o glicocálice uma grande quantidade de hemácias e plaquetas sanguíneas ativadas formando os temíveis trombos. A superfície revestida com o glicocálice artificial não apresenta adesão de trombos, o que a torna hemocompatível. A superfície sintética é o polietileno de baixa densidade. O glicocálice artificial é o PHEMA. ser utilizados na fabricação de máquinas de diálise, cateteres e revestimentos que minimizam a formação de coágulos na superfície sintética. A descoberta das estruturas do glicocálice se deve a avanços tecnológicos que revelam maravilhosas formas de vida biológica. Por sua incansável busca pela verdade de nossa existência, a biologia merece uma declaração de amor. A teoria da evolução permeia também a geologia e a cosmologia. É oriunda da biologia a grandiosidade da visão de vida que, enquanto a Terra gira, de acordo com a lei imutável da gravidade, houve um começo muito simples onde formas de vida infindáveis, as mais belas e perfeitas, evoluíram e ainda evoluem. A biologia demonstra que toda a vida na Terra está intimamente interligada cuja evolução é um fato, não uma teoria. O conhecimento que emerge dos avanços tecnológicos aplicados ao estudo da estrutura celular (entre eles o microscópio eletrônico de transmissão) são ainda profundamente limitados. A evolução da estrutura do glicocálice e seu papel biológico não são compreensíveis em sua totalidade. E a incompreensão frustra e inquieta nossa mente. Mas, resta o consolo de que a verdade que emerge da biologia demonstra-se a si mesma no amor pela ciência. Nunca é propriedade nossa, um produto nosso, como também o amor nunca se pode produzir, mas só receber e transmitir como dom. Talvez não devamos perguntar por que a mente humana se inquieta com a extensão dos segredos da natureza. As diversidades de seus fenômenos são tão vastas e seus tesouros escondidos na vida biológica tão ricos, para que a mente humana nunca tenha falta de alimento. Dr. Alvaro Antonio Alencar de Queiroz, Coordenador Científico do Centro de Estudos e Inovação em Materiais Biofuncionais Avançados, UNIFEI. 7
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