grafias - Casa das Rosas

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POIESIS – INSTITUTO DE APOIO À CULTURA, À LÍNGUA E À LITERATURA
Clovis Carvalho | Diretor Executivo
Plinio Corrêa | Diretor Administrativo
Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva
Ivanei da Silva | Museólogo
Dirceu Rodrigues | Imprensa
Angela Kina | Design
CASA DAS ROSAS – ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA
Frederico Barbosa | Diretor
Carmem Beatriz de Paula Henrique | Coordenadora Administrativa
Márcia Kina | Supervisora Administrativa
Fabiano da Anunciação | Assistente Administrativo
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Daniel Moreira | Supervisor Cultural
Thaís Feitosa | Técnica Cultural
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Annelise Csapo / Luis Felipe Lucena / Kryslei Cipriano Goes | Educativo
Waltemir Dantas / Jackson Oliveira / Beto Boing | Produção
Marcelo Macedo | Zelador
CENTRO DE REFERÊNCIA HAROLDO DE CAMPOS
Julio Mendonça | Coordenadora
Rahile Escaleira | Bibliotecária
Irana Magalhães | Assistente de Organização e Pesquisa
Leonice Alves | Assistente de Biblioteca
CENTRO DE APOIO AO ESCRITOR
Reynaldo Damazio | Coordenador
Maria José Coelho | Assistente
Mayne Benedetto | Assistente de Biblioteca
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GRAFIAS – revista do centro de apoio ao escritor
Diretor: Frederico Barbosa
Editor: Reynaldo Damazio
Assistentes: Maria José Coelho / Mayne Benedetto
Produção: Carmem Beatriz Henrique de Paula
Design: Angela Kina / Assistência de Design: Carlos Santana
Revisão: Centro de Apoio ao Escritor
Imprensa: Dirceu Rodrigues / Débora Nazari
ANO I – N° 2 – Dezembro de 2014
sumário
7
8
12
14
22
24
30
Editorial
Minhas primeiras palavras
Evandro Affonso Ferreira
A terra exilada: viagem e literatura
Tiago Novaes
Donizete Galvão (1955-2014) in memoriam
Guilherme Gontijo Flores
Escrever é fácil
Marcia Tiburi
O spray da poesia concreta
Anelise Csapo
Literatura lenta
Noemi Jaffe
editorial
Os desafios da escrita criativa e do complicado mundo das letras são
questões centrais nas atividades do Centro de Apoio ao Escritor da Casa
das Rosas, desde a formação de um repertório pessoal e consistente ao
desenvolvimento do projeto literário, que pode ser um livro impresso, e­book,
fanzine, site, revista eletrônica ou qualquer outro veículo para divulgar ideias,
textos e imagens. A revista Grafias é uma das ferramentas do CAE nesse
percurso tão incerto quanto fascinante. Em seu segundo número, Grafias
apresenta a contribuição de escritores, que são também parceiros do CAE,
sobre as dificuldades de escrever, a profissão do escritor, a viagem na
literatura, a poesia dos grafites, as primeiras experiências literárias, além de
um ensaio primoroso sobre a poesia de Donizete Galvão (1955­2014).
Reynaldo Damazio
8
MINHAS PRIMEIRAS
PALAVRAS
9
Evandro Affonso Ferreira
Leitor compulsivo. Já havia catalogado nela minha
biblioteca particular quase quatro mil livros – bons.
Costumava dizer sem abrir mão do gracejo que o
pior autor dele meu acervo era Borges, sim, o Jorge
Luis, segundo o qual cada homem corre o risco de
ser o primeiro imortal. De repente, dias começaram a
amanhecer anêmicos, nada-ninguém para me ajudar
a esconjurar reveses, sortilégios, as digamos impremeditações bancarroteiras. Pensei em vendê-los –
todos. Adeus meu Bruno Schulz, minha Hilda, meu
Faulkner, meu Chesterton, meu Juan Carlos Onetti,
meu Cornelio Penna, meu Hölderlin, meu Dino Buzzatti, meu Lucrécio, meu Musil, meu Hermann Broch,
meu Homero, assim por diante. Náufrago sem possibilidade de resgate. Senti aquela dor sem espasmo, inane, escura e triste, dor modorrenta, apática,
contida, para a qual nem alívio nem saída. Quem lê
Coleridge entende inquietudes deste naipe. Vender –
mesmo sabendo que sem aqueles valiosos volumes
meus caminhos se tornariam mais estreitos. Mesma angústia dele Abraão a caminho do Monte Moriá. Jeito era me desfazer deles todos meus amigos,
minhas armaduras meus escudos contra o tedium
vitae. Cheguei ao primeiro sebo, ofereci. Dono já me
conhecia, sabia dela minha exigência, da substancia-
lidade qualitativa do acervo. Sugeriu ato contínuo que
eu abrisse a própria loja de livros usados. Abri: Sagarana – meu primeiro sebo. Fali no terceiro ano: excesso de qualidade. Não me abati: tempo todo soube
à semelhança dele Luciano, aquele de Samósata, que
a vida não é um mar de leite com enormes queijos-ilhas. Antes, de tanto ler, descubro num dicionário antigo, a palavra bangalafumenga. Gostei da sonoridade. Cataloguei mais uma, mais outra, zaratempô aqui,
zuruó ali, catrâmbias acolá, pronto: três mil palavras
sonoras. Pensei: dia desses tiro proveito dessa palavrosidade infindável. Lendo tempo todo dentro da
própria loja, belo dia, frente a frente com as histórias
de cronópios e de famas do Cortázar, pensei petulante: Acho que sei escrever textos curtos assim. Dito e
feito: ano depois havia nascido “Grogotó” – primeiro
livrinho de minicontos. Cheio delas palavras sonoras
tiradas do meu léxico digamos particular. Já estou
no meu nono, décimo livro, perdi a conta. Fui abrindo
mão aos poucos desse apego lexical exagerado. Hoje
parece que faço prosa mais aceitável, não me preocupo em vivificar palavras abstrusas. Confesso que
ainda não aprendi que para escrever bem é preciso
passar por cima das ideias intermediárias. Montesquieu, sim: aprendeu.
Evandro Affonso Ferreira é escritor, autor de “Crogotó”, “Minha mãe se matou sem dizer adeus” e “O mendigo que sabia de
cor os Adágios de Eramos de Rotterdam” (este último ganhador do Prêmio Jabuti).
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A TERRA
EXILADA:
VIAGEM E LITERATURA
Tiago Novaes
Para muitos Homero foi um andarilho cego que oferecia suas epopeias a troco de um prato de comida
e abrigo ante as intempéries. O crepitar do fogo e
um cozido no estômago estimulavam o canto das
musas e a postergação do desenlace, cada um dos
vinte anos que levará para que Odisseu retorne a
Ítaca. Homero poderá dormir uma noite mais sob
o teto de algum senhor porque seu herói está ao
relento, ao embalar das ondas divinas e dos feitiços
nas ilhas. Quando a estrada de Odisseu termina, a
de Homero precisa recomeçar.
Planejar o que não é plano, a navegação sobre mares e desertos e a sedução do distante não serão
apenas temas fascinantes para os leitores de todos
os tempos e lugares como também o próprio terreno da escrita: o mistério do narrar que se descortina
como uma paisagem, o acontecimento que não é
senão abertura à continuidade da trama e do horizonte, um deslizamento dos sentidos que nunca se
fixam e o atestado da alteridade do autor, fluente
em uma língua que jamais será sua, intimado ao
umbigo do sonho que se desabriga em cada cali-
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grafia. A aventura só é exótica porque é intrínseca. E
nos escapa na mesma injunção que nos faz humanos.
Em tempos remotos, quando a terra não era um
lugar, inconcebível posto que familiar, quando os
povos se conservavam pela distância e acidentes
geográficos, a narrativa contemplava o augúrio e
a ameaça do inaudito. A terra era guardada por
dragões de fogo, o mar por tempestades e criaturas do fim do mundo. Para além, o nada, o abismo.
O homem submetia-se ao jugo dos titãs (forças
naturais) e de seus filhos olímpicos (caprichos da
fortuna). A viagem foi fuga e encontro ao destino.
A palavra irá reviver o mito do retorno. Ulisses foi
reconhecido por sua terra, personificada por Argos,
ainda que não por seus homens. Édipo reconheceria
o pai muito depois de derramar o seu sangue. A
viagem desfigura, mas há sempre uma cicatriz que
enraíza o viajante.
A partir do início da história do mundo como um
lugar, as narrativas contarão do domínio, do anseio
total e devorador humano. Os dentes da descrição
são os mesmos das engrenagens das máquinas.
A afirmação da alteridade denunciará a ocupação
do empreendedor e do antropólogo. A análise
decomporá o mundo em partículas e a alma em
instâncias psíquicas. São os tempos de Robinson
Crusoé, self-made man, da pressa de Mr. Phileas
Fogg, e a revelação do avesso do sistema-mundo
na barbárie civilizatória em Joseph Conrad. O
sistema, desde o século XIX convertido em aparato
brutal de liquidação planetária, começa a arder a
partir das beiradas. Aquele que ousa adentrar as
colônias testemunhará a outra face do homem
esclarecido e tranquilizado pelo pensamento
cartesiano. A partir de então, a beleza será apenas
máscara da verdade, e não mais a mimese da
natureza. Filhos de Rimbaud e de Nietzsche, poetas
sulcarão vida e obra na mesma vertigem, no amor
ao acaso como libertação da estereotipia, do banal
como vacina e veneno perante a grandiloquência
do fascismo burguês.
Na terra exilada já não há o homem. Na geografia integrada pelos sistemas de produção, a viagem
será impossível. A beleza será recoberta pela tempestade do deserto. O destino, abolido. Nenhum heroísmo na jornada, apenas um movimento natural,
naturalmente subversivo de negação de nacionalismos e nações.
O poeta aguarda na aduana que o separa daquilo
que seguirá desconhecido. O oficial das fronteiras
observa seus documentos e não decifra ali qualquer
identidade. Está consternado. O poeta ri. É um infrator por querer chegar ao outro lado. O exílio lhe dá
asas, pois ele habita o estreito onde as pessoas não
se entendem e precisam recomeçar do nada. Mas
é claro: já não há reconhecimento. Já não estamos
mais nos lugares que nos foram caros. O nômade
margeia o trauma, o limite entre a palavra e o silêncio, entre a dor germinal e a antimatéria cancerígena.
Nada nos fala, e este nada é o nosso legado.
Tiago Novaes é psicanalista e escritor, autor de “Estado vegetativo” e “Documentário”, entre outros.
Foto: Divulgação
DONIZETE GALVÃO (1955-2014)
IN MEMORIAM
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“A caminho de que
Ítaca Branca e rochosa
nos perdermos?”
(“Figan ta Pedia”, Donizete Galvão)
Guilherme Gontijo Flores
Há um descompasso grande que praticamente funda toda literatura: se as obras ficam, por outro vão-se os homens; a leitura é, no geral, a marca de uma
ausência do corpo pela presença do texto; e a regra
é lermos quase sempre nossos ilustres desconhecidos, pela distância ou pelo tempo, nomes que insistimos em atribuir à obra, sem sabermos nada dele,
meras chancelas. No último século e meio, pudemos
muitas vezes ver as fotos dessas figuras, mas ainda
digo — fotos enganam: dão uma casca enquadrada
àquela chancela desprovida de sentido, e nessa fissura entre nome, imagem & necessidade de sentido
é que nossa imaginação funda o autor (um tema
obsessivo no Ventrakl de Christian Hawkey, que
apresentei faz pouco tempo no escamandro).
O Donizete, por exemplo, eu conheci primeiro em
livro & foto, aquela poesia pesada, noturna (“a
noite é nossa sina”), mineiramente doída (com seus
bois, taperas, capins &c. “Nunca saí dessa Minas
que não termina”), ou melhor, paulistomineira &
doída (como negar que sua roça é provavelmente a
mais urbana da poesia brasileira?), de algum modo
combinava com a imagem forte que eu tinha dele
nas (2 ou 3) fotos que eu conhecia. Sempre tive a
impressão de que era um homem alto e robusto —
o que era imaginação, invenção daquela chancela,
desejo de lhe dar uma unidade coerente que nada
tem de humano.
Em setembro de 2012, ele veio a Curitiba fazer
uma oficina de poesia: claro que fui pra conhecer a
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figura, o Bernardo Brandão veio junto. Depois de um
momento curioso de primeira vista, comecei a rever
o homem imaginado: não era tão alto, notavelmente
tímido, com uma voz hesitante & fina — fina que
não cabia naquele corpo pouco forte, mais afeito à
barriga civilizatória. Essa mesma voz fina sempre
viria a me espantar nas outras vezes que o veria,
como que nunca pertencendo ao corpo. Pra
terminar, a presença de anéis coletivos, apinhados
num mesmo dedo, cujo sentido nunca cheguei a
perguntar, talvez por simplesmente gostar daquilo
sem compreender.
Enfim, a oficina foi ótima, de Eliot ao Drummond
profundo que eu sei que ele carregava consigo,
independente da mineirice partilhada (eu mesmo,
mineiro pelas metades, acabei por carregar esse
modo & até penso que talvez esteja mais na terra
do que nas leituras de Drummond), passando por
Sophia de Mello Breyner Andresen. O que importa
é que, depois da oficina, a gente foi conversar com
o homem & depois fomos tomar uma cerveja &
depois fomos jantar com o homem, de uma gentileza
carinhosa & de uma abertura que vi poucas vezes
no meio literário: aqui convém dizer que muitas
vezes o melhor, em literatura, é ficar sem conhecer
as pessoas, porque em geral o homem decepciona,
está sempre aquém da obra. O Donizete não.
Não é nem que estivesse além da obra — ele simplesmente era a contraparte da obra.
Com isso eu quero dizer que encontrei no homem
um aspecto solar que (quase) não aparecia na sua
poesia. Essa característica contrastiva — pessoa X
obra — tirava toda a aura da obra, & isso, penso
eu, talvez fosse o melhor da obra. Quem lê a sua
poesia sente exatamente um estado de fim da aura,
de poesia inacabada, homem inacabado (título do
seu último livro), cortado entre uma origem roceira
& uma vida urbana que nunca termina de se
completar: um homem a caminho do nada. Mas
o Donizete ria bastante, pude dar longas risadas
com ele nas outras vezes que nos encontramos
ao longo desse ano & meio, além de discutir
essas questões solares e noturnas, de qualquer
modo sublunares, que era o que nos importava. A
última foi agora em dezembro, quando estive em
São Paulo: voltei de lá com uma garrafa de cerveja
artesanal que ele me presenteou.
Como a vida segue banal & sempre, a cerveja já
se foi na banalidade dos dias. Foi-se entre amigos,
sem sentido, talvez antes da hora, sem a atenção
que eu poderia ter dado. Talvez como o Donizete. É
diante dessa perda banal de um casco de cerveja,
que se ressignificou pra mim com a perda imensa
do Donizete que eu escrevo este micromonumento.
Estou com quatro livros dele aqui em casa, vou selecionar cinco poemas que mais me comovem — a
mim, este homem solar que sou — do meio da noite
do Donizete, para comentar brevemente. Hoje acho
que, mais do que noturna, a poesia dele é uma poesia de sombras, porque areja, não nos trava no puro
breu, como naquela sua injunção: “ama o inominado
/ o perecível / o particular”.
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CRINAS
“Amei um cavalo – quem era? – ele me olhou
bem de frente, sob suas crinas.”
Saint-John Perse
Amou um potro baio,
bicho em cujo frêmito
de aguda animalidade
o vigor do sangue corria.
Amou um cavalo cego,
que teve o olho vazado
pela ponta de um prego
na triste hora da doma.
Amou um cavalo morto,
que, em sonho, o visita.
Nos seus ombros,
carrega a sina dele e do cavaleiro
que já não mais existe.
Amar, para além de um sentido objetivo do objeto presente, é sempre um ato
de rememoração. Donizete percebeu isso com uma força tão impressionante
neste poema: amar o cavalo vigoroso mesmo depois, no cavalo velho, cego,
até o cavalo morto. Sem saber ao certo as causas desse amor por um animal, se estaria nele mesmo ou nesse cavaleiro (um parente? um amigo?) que,
como o cavalo, persiste amado.
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REBOCO
Para Niura Bellavinha
Sexta-feira:
dia de rebocar o chão.
É preciso ir ao curral
e trazer na bacia
o estrume das vacas.
Melhor aquela pasta
que solta fumaça,
ainda cheirando a capim.
Na beira do barranco,
perto do córrego,
cava-se a tabatinga.
Do branco do barro
com o verde da bosta,
que se mistura com os dedos,
surge uma argamassa
com que se barreiam
o piso da cozinha,
a taipa e os lados da trempe.
Para quem não tem muito
tudo tem serventia:
a argila, a bosta da vaca,
o perfume da grama,
o giro ágil das mãos.
Faz-se sem saber como,
sabendo-se desde sempre
essa alquimia.
“Para quem não tem muito: tudo tem serventia”: essa concretude da existência é uma das grandes marcas da poesia do Donizete. O seu mundo está
sem mediação facilitadora, repleto de esterco e terra, mas de um esterco e de
uma terra que tem suas funções fertilizantes para vida. De algum modo, pra
mim, esse poema é sobre a vida: não há qualquer comiseração pela miséria
de que não tem muito, mas apenas mistura, a terra e a bosta da vaca fundam
a casa, fundam o homem.
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ORAÇÃO NATURAL
Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
Fique atento.
A atenção
é sua forma natural de oração.
Essa poética nos dá um olhar de sombra para o Donizete. Contrariando a
simplicidade de uma poesia só da noite, esse poema aponta para as migalhas, ou para a luz delas. A pesca, a fala mínima (matuta), o suor, a memória,
o enraizamento na memória diante do desenraizar urbano — temas centrais
da sua poesia. Diante das perdas incontornáveis & da precariedade da existência, numa poesia que nunca apela para um conforto no além, é na materialidade mesma que se pode formar uma religiosidade, uma oração à vida. E
este poema bem que poderia ser uma religião.
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O CORTADOR DE BAMBUS
Por que o poeta diz
“Cortei bambu: para ti, meu filho”
quando não precisamos mais de bambus
se temos cimento e tijolos?
Para que servem os bambus
se ninguém dá um tostão por eles
e não podem ser deixados como herança?
Quem sabe cortou bambus
para que o filho fizesse
uma cerca perfeita, dentro
dela cresceriam
um jardim e uma horta.
Para que o filho fizesse
arapucas que caçassem
sombras e pássaros inventados.
Para que construísse
uma casa que conservasse
o frescor do vento
e da água da chuva.
Cortou bambus para
manter-se vivo.
e não soçobrar
antes que as crianças crescessem.
Cortou bambus mesmo
em meses errados
e muitos deles foram
carcomidos pelos carunchos.
Cortou como quem, às cegas,
abre com o corpo uma picada,
delimita um território,
clareira de sol e ar limpo
em que se possa viver.
Cortar bambus foi sua maneira
de não ficar de mãos atadas.
A metapoesia aqui me parece ir além. Não se trata apenas da figura do poeta como resistência ao
mudo caduco, mas do próprio movimento de existência: cortar os bambus, como poeta, é equivocar-se
na vocação, fazer a coisa errada pelo único motivo que se justifica, ainda que esse motivo não seja
claro ou unívoco. Os bambus não são dados ao leitor — mensagem numa garrafa —, e sim endereçados
ao filho — com ele, aos pósteros em geral —, então por que dar o obsoleto para o filho, por que esses
bambus mal cortados, cheios de caruncho, marca da incompetência do poeta? Cortar bambus é fundar
o espaço (novamente precário) da existência e mais: ser capaz de conceder esse espaço, fundado e
destinado ao fracasso, ao outro, a um outro amado, como um filho. Diante do fiasco do mundo, sem
remendos, ao poeta é dada a reconstrução, mesmo que errada, ou segundo as palavras do próprio
Donizete, num poema dedicado a Orides Fontela: “[...] no reino do poeta / não há juízo / ele acerta /
mesmo quando / fracassa.”
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MIOLO
Lembro-te mata
tenda de folhas
ninhal de minas,
casulo de sombras,
alcova de brotos,
renda de luzes.
vertigem de avencas,
friagem de sapos,
labirinto de cipós,
manto de limos,
frescor de cambraias,
grafias de cascas,
acridez de sumos,
açúcar de flores.
Recorro a todos os nomes
sem nunca recuperar
o frêmito do espanto,
o susto da criança
inaugurando a mata.
Um dos poemas mais solares do Donizete, com o tema da infância, com suas percepções atentas &
reveladoras; porém a graça deste poema está no fracasso da linguagem: ao recordar a primeira imagem
da mata (uma mata sem nome & sem local), o poeta recorre a uma série de imagens, deslocamentos
metafóricos ou resumos imagéticos do que representaria a mata, porém nada a resume: o objeto, longe
de estar perdido por inteiro, está apenas inominado, permanece na memória como algo que extrapola a
linguagem, talvez como fonte primária do poético. Afinal, inaugurar a mata: é a criança que se inaugura,
ou a mata que é inaugurada pela criança? Eu ousaria dizer que esse poema é o mito da inauguração da
poesia, na sua falta de explicação.
Guilherme Gontijo Flores é poeta, tradutor e professor de latim, autor de “Brasa enganosa”.
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ESCREVER
É FÁCIL
Marcia Tiburi
Escrever é fácil. Dizer que escrever é fácil é que não
é fácil. Escrever que dizer que escrever é fácil é que
não é fácil, é fácil. Eu poderia dizer que é difícil. Mas
escrever é fácil. Se digo por escrito que escrever é
fácil, então, é mais fácil ainda. A coisa dita e escrita
de uma vez foi realizada: escrevi e foi fácil. A prova
é que está escrito. Em resumo, dizer que escrever
é fácil por escrito é a prova de que é fácil escrever
que escrever é fácil. E é fácil porque foi escrito.
Alguém pode achar difícil. Mas quem achar difícil
estará lendo e não escrevendo. Quem escreve que
escrever é fácil pode estar mentindo, mas digamos
que, como eu, pense estar dizendo a verdade enquanto escreve.
Escrever dizendo que escrever é difícil seria mais fácil
do que dizer que escrever é fácil. É que é fácil escrever
sobre o que é difícil. As dificuldades sempre parecem
mais verdadeiras do que as facilidades. As facilidades
em geral são desprezadas. Não seria diferente com
as da escrita. Privilegia-se o difícil. As facilidades não
parecem desafiar. É que as facilidades parecem baratas. Uma coisa barata é fácil, mas isso é só para
quem também não entende do barato de escrever que
é, de fato, bem barato. E o barato não tem desafio. E
o desafio é que tem valor. Porém, escrever que é fácil
escrever é fácil, mesmo assim, é um desafio. Escrever
que é difícil seria ainda mais fácil, mas um fácil menos
barato e por isso menos valioso porque mais valioso.
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Um desafio totalmente barato, totalmente sem valor
e muito barato é o que vale na hora de escrever
qualquer coisa. Um desafio sem valor é um desafio
que vale mais porque vale menos.
É realmente mais fácil se escrevo que é difícil. Antigamente se falava de mulher fácil. Quem falava da
mulher fácil era o machista, ele mesmo um fóssil.
Infelizmente um fóssil vivo. Melhor ser fácil do que
ser fóssil, diz a mulher fácil. Isso foi fácil de escrever.
Uma mulher fácil é uma boa metáfora para a escrita
fácil. Uns podem achar ruim porque se digo que a
mulher é fácil é porque ela não desafia seu conquistador. Mas escrever é fácil como uma mulher
fácil que não está nem aí para o seu conquistador.
Escrever é fácil quando é um prazer perverso. Ou
seja, é um prazer desapegado. Um prazer sem função. Um prazer vadio. Diante disso, quem escreve só
tem duas alternativas: a melancolia e a depressão,
quando escrever é difícil, ou a perversão, quando
escrever é fácil. Em nenhum dos casos, quem escreve conquistará a escrita. Por que a escrita não está
nem aí. Se a escrita fosse mulher ela seria como a
Vênus das Peles que era uma facílima mulher fácil
que se travestia de nada fácil. Se a escrita fosse
mulher quem escreve seria um tonto como Severino. E Sacher Masoch seria o nosso maior deus
literário. É fácil escrever que ele é. Ele é.
Escrever é fácil porque exige condições básicas. Ter
sido alfabetizado é a primeira. Continuar acreditando que escrever é fácil é a segunda. O narrador é
aquele que acredita que escrever é fácil. Ele não é o
autor. É alguma coisa no autor que não é ele mesmo, enquanto, ao mesmo tempo, é ele. O narrador
é o não-eu que fala dentro de quem escreve. Os
antigos chamavam de Daimon, Genius e outros nomes estranhos. Sócrates tinha um. Sócrates nunca
escreveu nada e não gostava das coisas escritas
porque as considerava falsas como aqueles que,
mesmo alfabetizados, acham que escrever é difícil. Sócrates era o narrador de Platão. Platão era
o autor que, por sentir-se sozinho, por viver meio
tonto como Severino, deixava o personagem falar
o que quisesse. Todo escritor é um ventríloquo que
usa um boneco para falar e por motivos de força
maior, deixa o boneco falar o que quiser. Sócrates
era o boneco de Platão. Era um narrador contra a
escrita que era escrita por Platão. Rebelião inocente
de Platão que não se importava com Sócrates e
continuava escrevendo por que escrever, para ele,
era fácil.
Quem diz que escrever é fácil não tem medo do ridículo. O ridículo é inevitável. É a parte mais fácil das
facilidades da escrita sempre negadas por quem diz
que escrever é difícil.
Problema mesmo é você não ter sido alfabetizado.
O resto é o draminha burguês do escritor que quer
agradar o leitor rebaixado a freguês. Quem escreve
ou lê, só se liberta desse draminha nascido da lei
não escrita que diz que escrever é difícil na vadiagem em que escrever é fácil.
Marcia Tiburi é filósofa e escritora, autora de “Era meu esse rosto” e “Filosofia prática – ética e vida cotidiana”, entre outros.
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O SPRAY DA POESIA
NO CONCRETO
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Foto: Carlos Santana
Anelise Csapo
A cidade cresce na vertical, arranha e risca céus,
e poucos são os que sabem ou que se interessam
pela riqueza da comunicação direta “pixada” em
letras, nomes e frases de cima a baixo nos muros
e muretas de brancos preenchidos com as mais
variadas tipografias entre tags retos* e xarpis*.
Basta nos permitirmos traçar alguns paralelos de
leitura interpretativa para vislumbrar a relação
entre a poesia concreta nascida na cidade de São
Paulo e seus reflexos na pichação da cidade, com
fins de tecer o mais adequado questionamento a
essa criação tão liberta e expressiva.
Foto: Carlos Santana
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Para um dos maiores expoentes da poesia
concreta, Augusto de Campos, a mensagem
codificada da pichação em seu aspecto plástico
tem lá seus padrões determinantes que não dizem
muito à comunidade em geral - a não ser aos
grupos ligados a essa escrita pelas intervenções
na paisagem urbana - a que completa concluindo
a questão da pichação por seu caráter mais
destrutivo, “não tanto pelo intuito de ser uma
criação artística, mas pelo impulso rebelionário,
uma contradita de uma sociedade que não abrigou
aquele protagonista desse tipo de grafia da qual
eu gosto e vejo com bastante interesse” conforme
afirmação no link: https://www.youtube.com/
watch?v=Bo4P2vE67CY (O que é poesia? Com
Augusto de Campos – VIII).
E ali perto, outro fundador do movimento
estético concretista, Décio Pignatari, realizador
de experiências com a linguagem poética, desde
os anos de 1950, ao incorporar recursos visuais
com fragmentação de palavras, se posicionou com
relação ao nascente grafite/pichação paulista em
entrevista de 1981, afirmando que “a pichação é
poesia concreta em si”.
“O que aproxima a pichação da poesia concreta
é justamente o fato de ambas manifestarem
de maneira artística suas expressivas ideias
revolucionárias em espaços públicos com certo
minimalismo vocabular”, e foi essa pretensão de
sintetizar as palavras em manifestação poética
contestatória que em 52 o Décio faz seu ante
anúncio Beba Cola-Cola “ relata Augusto de Campos.
E então essa cartografia urbana de subversão
efêmera e denúncia aos valores sociais se apropria
do espaço urbano para discutir e imprimir a
interferência humana na arquitetura da metrópole.
Com o uso das mais variadas técnicas, de pasteup (colagem) às tags, os pichadores questionam
concepções artísticas ligadas à estética e à liberdade
de expressão, além de demarcar a linha tênue que
relaciona espaço público e espaço privado.
Lembrando que a definição da palavra grafite no
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dicionário Larousse é: “inscrição, figura, frase ou
risco, geralmente de caráter jocoso, informativo e
contestatório, traçados em superfícies de objetos,
monumentos, paredes ou muros em local público”
e que, a pichação se insere no contexto do grafite
por seu carácter de ilegalidade civil, como bem
observou Décio Pignatati no livro A Poesia do
Acaso, “o que caracteriza o SPRAY é o fato de ele
ser uma escritura em público, o modo pelo qual o
poeta conseguiu ir além da barreira da escritura
particular. Na escritura solitária, o evento só passa a
existir no momento em que vem a público, enquanto
no SPRAY o ato de escrever já é público, e isso
muda tudo”.
A pichação como objeto de comunicação visual que
disputa espaço com placas e outros elementos da
rotina de sinalização urbana agita e desmascara a
inquietude do anonimato, como experiência poética
de decodificação da palavra na consistência de um
grito oco, reverberando no ar.
Em Palestra na UFPR, o escritor, poeta de
vanguarda, redator publicitário e grafiteiro entre
outras tantas atribuições, Paulo Leminski afirma:
“Existe um caráter criminoso implícito no ato de
grafitar. Quando o grafite aparece como fenômeno
poético no Brasil, em meados dos anos 70, essa
manifestação pública encontra na necessidade
de colocar uma marca nos escritos das paredes
do próprio corpo do panóptico, aquela sociedade
fechada e prisional, que é a própria sociedade
moderna. Nós estamos presos na cidade e o grafite
é uma tatuagem na pele da cidade”.
Para saber mais acesse o link: http://goo.gl/jzd7PH
* Tags são assinaturas e marcas dos autores, que em São
Paulo segue a tipografia reta e comprida assim como se
imprimem os prédios na cidade.
*Xarpi (anagrama de trás pra frente da palavra pixar – Xar-pi corresponde a Pi-xar) é o nome dado à pichação no RJ.
Foto: Lucas Borges Barbosa
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Anelise Csapo é supervisora do Núcleo Educativo da Casa das Rosas e jornalista que grita em muros, papéis e bites com
palavras e sprays.
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LITERATURA
LENTA*
Noemi Jaffe
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1. Demorar para escrever.
12. Pesquise para escrever.
2. Demorar para publicar.
13. Invente personagens que têm pouco a ver
com você.
3. Reescrever muitas vezes.
14. Suporte não explicar.
4. Ler muitas vezes.
5. Uma literatura que exige muito de quem
escreve e de quem lê.
6. Ler e reler Samuel Beckett, cada vez com
mais dificuldade.
7. Escrever até que o texto fale sozinho.
8. Cortar.
9. Ter consciência da (quase) todas as
escolhas narrativas.
10. Uma escrita que se abra para
interpretações, mas não excessivas.
15. Para expressar sentimentos, não os
mencione, mas crie situações intensas que
sejam alusivas e oblíquas.
16. Não existe literatura realista. O escritor
que consegue descrever minuciosamente o
contorno e a psicologia do formato de um nariz
não é realista, pois na realidade não é possível
perceber algo assim. Por isso mesmo, é bom
descrever a psicologia e o formato de um nariz.
17. A realidade da literatura é a ficção.
18. Escrever a respeito de asas de xícara
e capachos.
19. A política da literatura é ser literária.
11. Escreva sobre o que você sabe pouco ou
não conhece.
20. Correr riscos.
(*) Extraído da página da autora no Facebook.
Noemi Jaffe é escritora e crítica literária, autora de “O que os cegos estão sonhando?” e “A verdadeira história do
alfabeto”, entre outros.
Foto: Lucas Borges Barbosa
realização