Quando quem discute a relação é ele
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Quando quem discute a relação é ele
RESENHA CARPINEJAR, Fabrício. Mulher perdigueira: crônicas. Rio, Bertrand Brasil, 2010. Quando quem discute a relação é ele Kátia Motta 1 Colégio Pedro II Cada vez que um autor “nasce” para meus olhos, acontece uma pequena epifania: a descoberta daquele novo universo discursivo e a exploração de seus limites. Logo me ponho a imaginar o cenário, as senhas, os trajetos, a música escondida em um assovio, enfim, todas as diminutas peças do quebra-cabeças que compõem aquele pequeno cosmos. Assim se deu quando recebi de uma amiga, por e-mail, a crônica “Quero uma mulher perdigueira” de Fabrício Carpinejar. Confesso meu estupefato. Nesse texto, em uma ágil prosa poética, com despudor de um filósofo de boteco, o autor proclama seu desejo por uma mulher farejadora, entrona, espaçosa, dominadora, barraqueira mesmo. Escrevi para minha amiga que adorara a crônica, mas que duvidava de que algum homem hoje em dia, realmente desejasse uma mulher assim. Carpinejar é figurinha fácil na ciberliteratura (permitam-me o neologismo). Poeta do Twitter, conselheiro amoroso em um site, colaborador em outro sobre futebol e literatura, blogueiro, esse gaúcho de Caxias do Sul que vive em Porto Alegre é um dos bons exemplos de autores surgidos a partir dessa grande janela que é a Internet. Com estofo para ir além da web, recebeu vários prêmios, entre eles o Jabuti 2009 por seu livro “O Canalha!” A essa altura já se instaurara o revoar de borboletas na minha cabeça, aquela farfalhação de pequenas asas que revolvem meus pensamentos e me impelem a saciar aquele desejo de desbravar mais essa densa floresta, aquele cosmos de que falei antes. Foi assim, com essa curiosidade efervescente, que me deparei com o volume de 336 páginas, publicado pela Bertrand Brasil, em que mais de cem crônicas nos dão uma pequena mostra da proficuidade do autor. Alguns leitores e críticos elegeram a questão do ciúme como o grande tema norteador dessa coletânea de crônicas. Eu, particularmente, depois de ler os demais textos além de “Mulher perdigueira”, estou convencida de que estamos diante de um fenômeno, se não 1 [email protected] Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 1, p. 128-129, 2010 128 inédito, pelo menos inusitado: um homem que não tem medo de discutir a relação. Mais que isso: ele deseja discuti-la, exige mesmo. Se não fosse cacofônico, eu diria: um falo falante. Nessa dimensão criada por Fabrício nos textos desse volume, encontramos alguém capaz de formular as questões certas, em vez de respondê-las erroneamente. Na economia da linguagem, na fluidez da prosa que ora esbarra na poesia, ora segue a torrente do pensamento em golfões, na desconcertante sintaxe caprichosamente estancada por palavras que cismam em ocupar espaços que não lhes são próprios, o leitor, em particular o público feminino, vai se sentir como se estivesse ouvindo a conversa dos garotos na mesa, quando as meninas vão ao banheiro. Parece pouco? Parece fútil? Mas quem hoje em dia, em sã consciência, abre o peito e mostra claramente o que quer numa relação? Vivemos um mundo ascético, virtual, de polidez, bom-senso e bom-gosto no que diz respeito à relação amorosa. Todos se controlam, ninguém se entrega, ninguém dá o braço a torcer, todos se protegem. Relações de encaixe – como horários nos consultórios médico-dentários. O encontro entre duas pessoas é tão efemérico quanto configurações cósmicas – ninguém quer sair um centímetro de sua órbita, ninguém quer sair no escuro, todos querem o mapa do trajeto. No entanto, de dentro de “Mulher perdigueira”, emergem, enfim, as mais finas estacadas no coração, os mais cruéis estratagemas, a mais cínica canalhice do dia a dia permeados pela poesia grandiosa cuja escritura é feita de ínfimas coisas, como gimbas de cigarro, roupas no varal, objetos esquecidos, a colher que empurra o resto de um prato para o seu. Livro bom, boa leitura, eu recomendo a todos, mas esse, em especial, eu recomendo às “garotas”. Depois de ler Carpinejar, os versos de Leoni em “Garotos II – o outro lado” nunca fizeram tanto sentido para mim: “Garotos como eu/ sempre tão espertos/ perto de uma mulher/ são só garotos.” Recebido em 24/06/2010. Aprovado em 30/06/2010. Linguagens e Diálogos, v. 1, n. 1, p. 128-129, 2010 129