Simbolizar, sonhar e pensar:

Transcrição

Simbolizar, sonhar e pensar:
Simbolizar, sonhar e pensar:
sonhando sonhos com quem não aprendeu a sonhar
Paulo de Moraes Mendonça Ribeiro1
I – Símbolo é separação e re-união
Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira, símbolo significa
“aquilo que, por um princípio de analogia, representa ou substitui outra
coisa”. A palavra símbolo origina-se do grego σύμβολον (sýmbolon), cujo
radical grego sym significa junção, união. Originalmente, para os gregos, um
símbolo era um objeto formado por duas metades partidas que se
encaixavam novamente permitindo o re-conhecimento do objeto original;
por exemplo, os membros de um mesmo grupo se reconheciam como tal
ao unirem partes separadas de um determinado objeto. [Expressões como
“cara-metade” ou “fulana é a tampa da minha panela”, ou mesmo as
bijuterias feitas de metades de um coração, nas quais cada membro de um
casal fica com uma metade, são exemplos comuns disso na atualidade.]
Portanto, símbolo veicula a idéia de algo que era unido e separou-se, mas
que mantém a expectativa de uma re-união.
Talvez a primeira separação que todos nós sofremos seja o nosso
nascimento; o parto obstétrico marca realisticamente a separação
definitiva da fusão simbiótica com a mãe, separando-nos das trocas
constantes que se davam através da placenta e da contigüidade dos corpos
da mãe e do feto. Cesura de tal magnitude demanda elaboração. Podemos
reconhecer no psiquismo humano uma busca contínua de união/fusão
dessas partes primitivas separadas, seguida sempre da necessidade de nos
separamos dela e de lidarmos emocionalmente com a sua ausência.
Uma concepção ampla e profunda do simbolismo acredita que é por
meio do processo de construção de símbolos que ocorre boa parte dos
processos de elaboração psíquica. Nossas emoções, fruto dos inumeráveis
encontros e desencontros com os nossos objetos internos e externos, são
metabolizadas por meio da construção de símbolos inconscientes. O campo
dos sonhos é o espaço psíquico no qual a mente se dedica em lidar com
conflitos (como por exemplo, este da uniãoseparação do objeto
originário), dando representação expressiva imagética/pictórica às
emoções envolvidas nos conflitos. Desta forma, os sonhos desempenham
1
Membro Efetivo da SBPSP e da SBPRP.
1
papel central no processo de elaboração e de integração das experiências
humanas. Quando o trabalho onírico falha no desempenho dessa função, a
capacidade de formar símbolos se empobrece, abrindo caminho para falhas
no funcionamento mental.
II – Simbolizar, sonhar e pensar
Como nos ensinou Freud (1911) e depois Bion (1962, 1963), a
camada simbólica de comunicação humana é conquistada através da
tolerância gradativamente conquistada à dor psíquica. O lactente sente
suas necessidades internas (como por ex. fome ou sede) como aumento de
tensão interna, então chora e se esperneia, descarregando de forma
motora a sua tensão aumentada. Essa descarga motora corresponde, ao
mesmo tempo, a:
1. uma comunicação primitiva convocando uma mãe com
capacidade de rêverie para atender às necessidades do
lactente, e
2. à criação, via fantasia onipotente, de um substituto
alucinatório do seio realístico (o polegar na boca torna-se um
seio).
No entanto, mais cedo ou mais tarde, o Princípio da Realidade se
impõe ao do Prazer, e a gratificação alucinatória do desejo não consegue
mais eliminar a fome do bebê, demandando o uso das capacidades
psicossomáticas em maturação no sentido de encontrar um seio real
externo que o satisfaça. O polegar-seio que momentaneamente iludira a
fome do bebê é sentido como sendo uma idéia falsa (Freud, 1911), e o
lactente se depara com a realidade da ausência do seio externo para
satisfazer sua fome. Esta dolorosa frustração junto ao seio ausente, que
Bion chamou de “não-seio” (Bion, 1962, 1963), pode tornar-se um
elemento útil para a capacidade de pensar na medida em que a mente se
torne suficientemente alimentada de função-α capaz de transformar a
experiência sensorial e emocional junto ao seio e ao não-seio em
elementos sonháveis/pensáveis, ou seja, elementos-α.
Neste momento, o lactente pode mentalizar um símbolo primitivo
que represente o seio, que provavelmente será de qualidade visual, talvez
uma imagem redonda com círculo maior e um menor no meio, algo que se
assemelhe a auréola e o mamilo. Ao longo do tempo, através de repetidas
experiências de ‘mamadas suficientemente boas’ (parafraseando
Winnicott), esse lactente pode vir a introjetar (identificação introjetiva)
cada vez mais funções da personalidade materna (como a função α) e
2
evoluir essa imagem visual primitiva para um símbolo muito mais
complexo, representado, por exemplo, pela palavra: “mamá” ou tetê”.
Aqui, este bebê já estará pensando, mesmo que primitivamente.
Entretanto, na insuficiência da função α, seja a do próprio indivíduo
ou ‘emprestada’ por outrem, a pessoa não consegue “sonhar”2 nenhuma
imagem, mesmo as mais primitivas e, como conseqüência, não consegue
fazer transformações de suas experiências brutas, ficando impedida de
evolução psíquica e permanecendo presa no universo das coisas-em-si
(elementos-ß).
Hanna Segal (1991), consagrada pelo estudo da simbolização,
sublinha que os símbolos são necessários para a superação da
separação/perda do objeto e não para simplesmente substituí-la ou negála. Isto implica que os símbolos são conseqüência de um trabalho contínuo
de luto, ou seja, são fruto da dor e da elaboração da dor. Deste vértice,
podemos sublinhar a importância da capacidade de simbolização estar em
bom estado, uma vez que na vida, em geral, temos mais frustrações do que
realizações; portanto, a capacidade de luto para elaborar frustrações é
diretamente proporcional a nossa sanidade mental. E quanto maior a
sanidade, maior a capacidade para organizar e utilizar nossos símbolos
inconscientes com clareza e eficiência, algo que, em clínica psicanalítica, se
relaciona com o que Bion (1970) descreveu como “linguagem de êxito”.
III – A origem do símbolo: pictogramas afetivos
Voltando aos gregos, o objeto cortado ao meio que servia para
simbolizar uma união, após sua fratura nunca volta a ser exatamente o
mesmo, sempre haverá uma linha de corte, de separação, marcando a
inexorável cesura. Um símbolo nunca é uma cópia exata do vivido; tanto ao
representar algo, no sentido de estar no lugar de, quanto ao expressar uma
experiência emocional, o símbolo se forma inconscientemente de acordo
com leis internas e articulações pessoais, como podemos perceber quando
analisamos sonhos.
Como vimos, o campo dos sonhos é o lugar no qual a mente se
esmera no trabalho de elaboração das experiências emocionais, em busca
do que Freud (1900) descreveu como “migração para figurabilidade”. Esta
migração ocorre num palco afetivo pessoal que acaba por determinar o
2
Nesse texto, adotarei o sinal “ ” para indicar que estou me referindo a um conceito psicanalítico (F1 na
Grade de Bion), e o sinal ‘ ’ quando estiver me referindo a um modelo, ou a uma analogia imaginativa (C3,
C2 ou F2 na Grade).
3
desfecho final do sonho3. O “trabalho do sonho”, como Freud descreveu,
produz imagens que captam e expressam as formas iniciais de constituição
dos significados das experiências emocionais e sensoriais, desta forma
inicia-se a metabolização da vida emocional através da criação de imagens
visuais altamente primitivas, algo que Elias Barros (2000) denominou de
“pictograma afetivo”.
O pictograma afetivo se constitui na primeira forma de
representação mental das experiências emocionais, ele é fruto da função
alfa que cria símbolos para o pensamento onírico; se constitui através da
formação de imagens fortemente expressivo-evocativas, que por sua vez,
demandam sua transformação em linguagem verbal (palavras),
constituindo-se no primeiro passo na direção dos processos de
pensamento. A imagem dos círculos concêntricos representando o seio que
gradativamente evolui para a palavra “mamá” ou “tetê” são exemplos.
Proponho pensarmos o pictograma afetivo como sendo a primeira
forma simbólica no psiquismo humano; sua criação é fundamental para a
evolução dos elementos alfa em combinações complexas que permitirão a
formação dos “pensamentos oníricos”, que por sua vez poderão evoluir
para “sonhos” e para “pensamentos”.
Mas e quando o processo de simbolização é significativamente
afetado?
Experiências que não alcançam ‘sonhabilidade’ originam-se de
situações oriundas da realidade externa e/ou interna nas quais as funções
da personalidade do indivíduo foram incapazes de fazer frente à invasão de
estímulos, que acabam por soterrar a mente do indivíduo.
Nestas situações, o símbolo perde a sua plasticidade enquanto
representante de algo, regride para o que Hanna Segal descreveu como
“equação simbólica” e torna-se pobre no seu caráter expressivo de
emoções. Nestes casos, observamos um gradativo empobrecimento das
representações mentais, que se tornam repetitivas e marcadas pelo que é
atual e factual. A riqueza que povoa a dinâmica mental e da qual se
constroem os sonhos e o “sonhar” esvaece: deslocamentos, condensações,
projeções, introjeções, identificações, vida fantasmática, etc. vão sendo
apagados. O inconsciente da pessoa parece ficar isolado, às vezes quase
incomunicável; ela pode ser capaz de receber estímulos, mas é incapaz de
3
Usarei o termo “sonhar” (entre aspas) ao me referir à função psíquica que insere os elementos
sensoriais (e infra-sensoriais) da experiência no campo das representações e criação de significados; e
usarei sonho, ou o sonhar (sem aspas), ao referir-me ao substantivo sonho ou ao seu verbo
correspondente, ou seja, a criação mental que geralmente surge durante o sono. O sonho que o paciente
narra ter tido na noite seria uma manifestação fenomenológica da ação do que Bion (1962) descreveu
como “função alfa”, que possivelmente ocorreu naquela noite (passado), e a narrativa do sonho na sessão
pode ser a manifestação, ao vivo, da função “sonho” na sala de análise.
4
emitir respostas verdadeiras e significativas. Isso possivelmente se deve ao
uso amplo de cisão e identificação projetiva, ou repressão maciça, fatores
de empobrecimento psíquico.
Uma vez que pensamos através de símbolos, a capacidade de pensar
é afetada pelo empobrecimento da capacidade simbólica. Símbolos não são
meros envelopes condutores de significado, mas a parte mais básica e
essencial do “aparelho de pensar os pensamentos”.
IV – Na clínica: ‘emprestando’ “sonhos” para quem não aprendeu a
“sonhar”
Portinari, “Futebol”, 1940
Pacientes com falhas na capacidade de simbolização podem
promover sentimentos de ‘vazios’ no setting ao re-viverem núcleos
primitivos na relação transferencial-contratransferencial com o analista;
isto ocorre em função destes núcleos serem áreas impossibilitadas de
comunicação através de palavras ou de mesmo por atuações mais
elaboradas (enactments), demandando flexibilidade na técnica do analista.
Essas pessoas parecem ter sofrido traumas precoces, factuais ou
fantasiados, que ultrapassaram sua capacidade de elaboração. Se o
paciente não é capaz de “sonhar”, quem deverá ‘sonhar o sonho do
paciente’ é o analista.4 É claro que o sonho sonhado pelo analista não é o
sonho do paciente, mas, se o analista encontra-se coeso em sua função,
este sonho estará relacionado ao sonho do paciente e será criação da
intersecção das duas mentes presentes na sala (o “terceiro analítico
intersubjetivo” descrito por Ogden, 1994).
Como modelo clínico, trago Edu, um jovem nascido numa abastada
família de ‘coronéis’ do sertão nordestino e cujos pais emigraram para a
cidade de São Paulo quando ele tinha três anos. Aos seis, Edu teve o pai
4
Por ‘sonhar o sonho do paciente’ refiro-me a “sonhar a sessão” (Bion, 1992) em transcurso e não a
qualquer atividade que usurpasse do analisando uma função psíquica que obviamente só pode ser
executada por ele mesmo.
5
brutalmente assassinado em uma disputa financeira entre familiares.
Chegou para análise arrogantemente acreditando que “a morte do pai não
fizera a menor diferença em sua vida”, afinal, o dinheiro “dava e sobrava”.
Edu falava muito na maioria das sessões, e de forma agradável,
aparentemente interessado no nosso diálogo, entretanto, eu sentia que ele
me comunicava muito pouco com suas ‘palavras’, que muitas vezes me
pareciam vazias de significados. Essas sessões cheias de supostas ‘palavras’
eram intercaladas por faltas freqüentes ou por sessões muito silenciosas,
nas quais parecia não haver nada sobre o que conversarmos.
Numa sessão de seu segundo ano de análise, Edu chegou dizendo (de
forma desafetada, fria) que era aniversário de morte do seu pai, e em
resposta a minha pergunta “Onde está seu pai aí dentro de você?”, Edu fez
um longo silêncio, que me pareceu de qualidade dolorosa. Durante o
silêncio foi surgindo em minha mente uma imagem em câmera lenta. Não
era uma rêverie do tipo que se instala prontamente, ela precisou ser
buscada, encontrada e construída. E foi dolorosa a busca, eu podia
perceber um nó na minha garganta5, como se eu fosse subitamente chorar.
A imagem foi a seguinte: O sertão, como numa tela de Portinari, na
qual a terra é árida e monocromática. Há um triste pôr-do-sol, os tons são
laranja, há muito pouca vegetação, e algumas crianças desnutridas,
isoladas brincando... parecendo perdidas ou abandonadas...6 Ao configurar
essa imagem em minha ‘tela mental’, subitamente lembrei de Guimarães
Rosa: “O Sertão é dentro da gente” e “Se a gente não tomar conta, o sertão
toma conta da gente”. Essas frases surgiram de chofre, completamente
diferentes da rêverie visual que teve que ser buscada lenta e
dolorosamente. Lembrei-me, então, que Edu nascera numa fazenda no
meio do sertão nordestino.
O silêncio se prolongava, apesar de minhas tentativas de contato. O
clima era de dor, despertou-me compaixão e uma fantasia de pegá-lo no
colo e dar-lhe um abraço, colhendo suas lágrimas nos meus ombros. Mas
ele não estava chorando, nem um pouquinho. Onde estariam as lágrimas?
Seriam minhas?
Continuarmos em silêncio mais algum tempo, até que estabeleci esta
interlocução: Parece-me então, Edu, que o pai aí dentro de você é um longo
5
Em se tratando de fenômenos relacionados à protomente, penso ser útil ampliarmos o conceito de
rêverie para incluir não só as imagens mentais, mas também manifestações somáticas do analista (Ogden,
1997).
6
Quando pesquisei essa pintura, encontrei a tela que coloquei na epígrafe deste item, e só então tomei
consciência de que, no primeiro plano da paisagem, há um tronco de árvore cortado/castrado, algo
significativo na psicodinâmica do meu analisando. O plano da “angústia de castração” evidencia a
existência de múltiplas camadas mentais em sofrimento, desde a edípica (com fantasias de parricídio e
incesto) até mais primitivas, como a ‘castração’ da própria vida mental.
6
silêncio e um grande vazio... como um deserto... ou quem sabe, um sertão;
como o sertão onde você nasceu. Talvez um triste pôr-do-sol no deserto.
Edu, defensivamente seco, disse: É, é por aí.
Permanecemos em silêncio, que interrompi após alguns minutos,
com uma fala emocionada: Deserto. Vazio. Sertão. Ser-tão-sozinho... Ser tão
sozinho dentro da gente que nem há palavras para se sonhar e falar... Tão
sozinho no sertão interno, sem pai dentro da gente. Mas, quem sabe, tendo
coragem de hoje, pela primeira vez desde que te conheço, olhar um pouco
para a saudade que você tem dele.
Edu derramou algumas lágrimas que, apesar de secas em
associações, evidenciavam contato emocional com dor de ausência.
Permanecemos em silêncio até o final da sessão, quando, ao levantar-se do
divã, Edu disse que iria levar seu carro numa oficina vizinha ao meu
consultório para restaurar a lataria que fora danificada num acidente
recente. O clima emocional pareceu ser outro, mais esperançoso, e eu
compreendi que ele estava criando um “sonho” naquele mesmo momento,
um “sonho” para tentar lidar com restaurações delicadas junto aos seus
objetos primários, restaurações que ainda demandariam tempo até ganhar
dimensão simbólica capaz de representação em palavras. O seu objeto
interno pai-carro, danificado em sua estrutura, começava a apresentar
esperança de restauração, ali pertinho do consultório, na dupla que
formamos. Respeitei seu timming e não fiz nenhuma interpretação de
conteúdo, apenas disse-lhe que restaurar faz muito bem para a saúde.
Pode-se interpretar esse fragmento clínico de várias maneiras,
inclusive como havendo o predomínio de resistências (vínculo -K) do
paciente e do analista, com “transformações em alucinose” (Bion, 1965)
por parte do último. Pode-se também objetar que eu não processei
adequadamente a minha rêverie e a publiquei ao paciente em estado
bruto, o que em parte de fato ocorreu, mas minha intenção não foi
oferecer-lhe uma interpretação psicanalítica, mas sim disponibilizar-lhe
elementos oníricos possivelmente “sonháveis” por ele, mesmo que esses
elementos fossem mais meus do que dele naquele momento. Dessa forma,
ofereci-lhe um modelo de continente em funcionamento, ‘emprestando’
temporariamente meus conteúdos para seu uso até que ele pudesse usar
seus próprios.
Mas o que poderia ter afetado as funções mentais responsáveis pela
capacidade do paciente simbolizar e “sonhar”?
Penso que Edu perdeu o contato com os núcleos infantis que contém
a experiência emocional de qualidade traumática que, fosse de outra
7
forma, seriam expressos simbolicamente, via “sonho”, através de imagens
visuais como as que eu lhe ‘emprestei’, retiradas do meu manancial
particular de “memórias-sonho”. Penso que ele se divorciou dessas
vivências arcaicas devido à inundação de ansiedade que elas
potencialmente provocariam em seu psiquismo, afogando-o ainda mais.
Situações ameaçadoras como as vividas por Edu - por terem sido
experienciadas na infância, numa época em que o ego ainda é incapaz de
processar adequadamente fatos como o da magnitude de um parricídio costumam vir acompanhadas de fortes sentimentos de impotência, uma
vez que, nada, ou muito pouco, a criança pode fazer para alterar as
condições às quais foi submetida. Na atualidade, Edu necessitava de um
objeto paterno/materno (representado pelo analista) que o acompanhasse
através de processos simbólicos capazes de promover a elaboração das
experiências de qualidade traumática, restaurando sua capacidade de
simbolização. Devido à intolerância a dependência de uma outra pessoa, e
ao medo de reeditar a história traumática na relação transferencial, Edu
ataca esta possibilidade, esvaziando nosso vínculo e submetendo-nos à
vivências da ordem do vazio.
Quando o analista oferece significados para o campo dos sonhosnão-sonhados (ou insonháveis) da vida emocional do paciente, ele está
colaborando com uma rearticulação de significados em diversos níveis
simbólicos, uma vez que há na mente do paciente outras áreas (não
traumatizadas) nas quais a capacidade simbólica pode fluir com maior
liberdade e que, portanto, podem ser recrutadas para o trabalho onírico.
Desta forma, o analista ativa novas redes afetivas, possibilitando o paciente
experimentar seus afetos e metabolizar o que carece elaboração,
expandindo as possibilidades de desenvolvimento emocional.
A descoberta e apreensão de novos significados para experiências
emocionais antes insonháveis, portanto sem representação simbólica, atua
como uma espécie de chave que abre novas redes afetivas, tanto para o
paciente quanto para o analista. A abertura destas redes leva à expansão
das capacidades simbólicas rumo à qualidades de pensamento cada vez
mais evoluídos.
V - Sementes
Freud, em 1905, comparou o analista a um escultor, que “via di
levare”, ou seja, retirando os excessos de um bloco de mármore, revelaria a
obra oculta na pedra bruta. Contido nesse modelo há uma crítica ao
8
‘analista-pintor’, que por “via di porre”, colocaria na ‘sessão-tela’ elementos
seus, constituindo assim uma espécie de sugestão, de manipulação.
Penso que isso é perfeitamente válido para pacientes ‘neuróticos’
cujos conflitos emanam das situações edípicas clássicas descritas por Freud
(1900 e 1905) no início de sua obra; mas pergunto: e quando a obra oculta
na pedra ainda não tem forma ou representação? e quando ainda não se
desenvolveu um equipamento de simbolização mínimo que permita uma
interação predominantemente verbal entre o analista e o analisando?
A Psicanálise evoluiu muito ao longo de suas poucas décadas de
existência, e com isso passamos a compreender certos fenômenos que
eram tratados como resistências intransponíveis, como manifestações da
protomente em busca de desenvolvimento. Pacientes outrora tratados
como inanalisáveis, relegados apenas aos recursos da psicofarmacologia,
agora podem encontrar recursos técnicos em seus analistas para um
trabalho em profundidade.
O próprio Freud, em 1910, escreveu numa carta ao seu amigo Oskar
Pfister que a discrição é incompatível com uma boa exposição sobre a
Psicanálise. É preciso ser sem escrúpulos, expor-se, arriscar-se, trair-se,
comportar-se como o artista que compra tintas com o dinheiro da casa e
queima os móveis para que o modelo não sinta frio. Sem algumas dessas
ações criminosas, não se pode fazer nada direito. Apesar de ele estar
falando de exposição sobre a Psicanálise, sabemos que Freud foi capaz de
agir desta maneira com alguns de seus pacientes, ousando experimentar o
que fosse necessário para conseguir colaborar com a evolução de seu
paciente.
Isto está de acordo com Bion, que em “Transformações” (1965),
referiu que a posição do analista é semelhante à do pintor que, através de
sua arte, acrescenta algo à experiência de seu público. Penso que esses
antecessores plantaram valiosas sementes psicanalíticas, que cada um de
nós pode cuidadosamente cultivar.
Sabemos que a camada simbólica de comunicação humana é
desenvolvida a partir da tolerância à dor psíquica. Como vimos, símbolo é
cesura e luto, e com a data do nascimento biológico não há garantias de
que nasça também uma mente para o indivíduo. O nascimento psíquico
não necessariamente coincide com o dia do nosso aniversário; e há em
todos nós partes da nossa mente que não nasceram com o parto obstétrico
e que nos aprisionam em níveis de funcionamento pré-simbólicos (Tustin,
1981; Sapienza, 1999; Symington, 2007). Ao analista cabe acolher as áreas
não nascidas, a-simbólicas, e “sonhar os sonhos não-sonhados” de seu
9
analisando, colaborando com a cesura destas partes que aguardam
‘luz’/parto.
Desta forma, o continente psíquico pode se expandir, ganhar
elasticidade e força, e a personalidade em questão evoluir (+KO). Com as
evoluções, comunicações mais ‘ruidosas’ passam a fazer parte da análise,
diminuindo manifestações de áreas que não alcançaram qualidade
simbólica e possibilitando, então, o manejo analítico dos conteúdos da
comunicação do paciente de forma mais ‘clássica’.
Paulo de Moraes M. Ribeiro
[email protected]
10

Documentos relacionados