devir cínico

Transcrição

devir cínico
Fórum Construindo vidas despatologizadas.
Mesa: Viver é preciso, controlar não é preciso.
Unicamp, Campinas-SP.
Outubro de 2014.
Luiz Fernando Silva Bilibio
UFRGS
 Ele é um tipo de nãocidadão, sem residência fixa, desprovido
de pátria, vai para lá e para cá; parece estar em casa em
qualquer lugar! Mendigo e vagabundo vive de um dia para o
outro!
 Vivem como cão! Com sede, bebem água da chuva; com
sono, dormem no chão; com fome, comem o que aparece; com
necessidade, se põem a urinar e defecar em qualquer lugar.
 Eles não têm controle interno e parecem não se importar com
sua saúde e com sua vida!Andam por aí se expondo ao
calor e ao frio sem se importar com suas roupas podres e
mal cheirosas.
 Mas eles vivem aqui; nas cidades! Se aproveitam das
conveniências da cidade, entre elas, a oportunidade de
esmolar, de dormir nas fachadas dos prédios públicos...
 São despudoradamente indiferentes às normas sociais
estabelecidas; desrespeitam nossas convenções sobre limites,
sobre o que é público e o que é privado. Sua rejeição
deliberada da vergonha é escandalosa às pessoas de bem, aos
cidadãos respeitáveis.
 Estes cães desfiguram nossa tradição humana e subvertem
nossas autoridades; são desprezados, mas parecem não se
importar com isto .
 São um tipo de louco; é preciso extirpar este despudor de
nossas cidades!
Quem são eles???
Os cínicos: o movimento cínico na Antiguidade e o seu legado.
Marie-Odile
Goulet-Cazé
e
R.
Bracht
Branham
(Orgs.)
Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2007 (493pg.). (ISBN: 85-15-03223-6)
 O nome Cínico derivado do grego
antigo Kynicos: igual a um cão.
 Movimento
que
começa
provavelmente em Atenas no
século IV a. C..
 Possível fundador: Antístenes
(discípulo de Sócrates); seu maior
representante é Diógenes de
Sinope
(contemporâneo
de
Platão).
 Personagens conhecidos como os
cães filósofos, embora a
controversa se realmente foi uma
escola filosófica.
Por que retomar os cínicos na segunda década do séc. XXI?
Piraí-RJ, 2013
e... na saúde... ainda...
Uma questão referência ...
As nossas práticas de saúde estão
ocorrendo a favor da produção das
diferentes possibilidades de vida ou
estão ocorrendo a favor de que?
(Feuerwerker, Rede Unida, 2012)
De um lado...
 Por outro lado, em boa parte das políticas públicas voltadas
para a população de rua temos o(s) seguinte(s)
pressuposto(s):
 Quem são: “vítimas do atual sistema político, que, na
cegueira do capital tem produzido milhares de novos
moradores de rua a cada ano” (...).
 Por que está na rua: “Por falta de opção... Ninguém
está na rua porque quer” (Ministério Público/MG,
201?).
De outro lado... experimentações no Consultório na Rua (encontros
intercessores).
 “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos
toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. O
sujeito da experiência seria algo como um território de
passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que
acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve
algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (Bondia,
2002).
 “Fictícios ou reais (...) é preciso fabricar seus próprios
intercessores (...). Eu preciso de meus intercessores para me
exprimir (...): sempre se trabalha em vários, mesmo quando não
se vê. E mais ainda quando é visível” (Deleuze, 2002)
 Devir cínico: estratégia de pensamento para produzir sentidos
intempestivos à produção do cuidado junto a população em
situação de rua.
Considerações sobre o devir
 “As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número
(...). O que define uma maioria é um modelo ao qual é preciso
estar conforme (...). Ao passo que uma minoria não tem
modelo, é um devir, um processo (...). Todo mundo, sob um
ou outro aspecto, está tomado por um devir minoritário que
o arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em
segui-lo” (Deleuze, 1992, pg. 214).
 “Não se abandona o que se é para devir outra coisa (imitação,
identificação), mas uma outra forma de viver e de sentir
assombra ou se envolve na nossa e a faz fugir” (Zourabichvili,
2004, pg. 48).
 “O devir não é a história; a história designa somente o
conjunto das condições (...) das quais desvia-se a fim de devir,
isto é, para criar algo novo. É exatamente isto o que Nietzsche
chama de o Intempestivo” (Deleuze, 1992, pg. 211).
Considerações sobre o devir – 2 (Michal Trpák)
Considerações sobre o devir – 3
Devir cínico – 1
 “Mas se ele tem a sorte a seu favor, como convém a um filho
favorito do conhecimento, depara com verdadeiros
facilitadores e abreviadores de sua tarefa – refiro-me aos
denominados cínicos (...). O cinismo é a única forma sob a
qual as almas vulgares se aproximam do que seja
honestidade” (Nietzsche, 1992 [1886], § 26).
 “Neste ocidente que inventou tantas verdades diversas e
moldou formas de existência tão múltiplas, o cinismo não
para de lembrar o seguinte: que muito pouca verdade é
indispensável para quem quer viver verdadeiramente e que
muito pouca vida é necessária quando se é verdadeiramente
apegado à verdade” (Foucault, 2011, pg. 166).
Devir cínico – 2
 Desfigurar a moeda. Demonstração pelo seu próprio exemplo
da superioridade da natureza em relação ao costume; modo
de vida que busca ‘desfigurar’ os valores falsos da cultura
dominante.
 A natureza proporciona uma norma ética observável em
animais e que pode ser inferida por comparações
interculturais.
 Viver em público como cães, ‘despudoradamente
indiferentes’ às normas sociais estabelecidas; implicação com
um tipo de pedagogia da irreverência.
 Cosmopolitismo. Os sem cidade, sem casa; cidadão do
universo. Rejeição de todos os estados existentes.
Devir cínico – 3
 Despojamento cínico e anarquismo;
 Despojamento cínico e ascese cristã (idade média,
ex: franciscanos, um tipo de cinismo cristão);
 Despojamento cínico e niilismo russo (Séc. XIX,
Dostoiévski);
 Despojamento cínico e contracultura (ex: cinismo
beat, cinismo hippie,...);
 ...
Devir cínico - 4
Devir cínico - 9
Devir cínico – 4
Devir cínico - 5
Devir cínico - 6
Devir cínico – 7 (cinismoilustrado.com -
eduardo salles)
Devir cínico - 8
Encontros produtores de ‘saúde’...
A Gaia Ciência, de Nietzsche, aforismo 120 intitulado Saúde
da alma.
A apreciada fórmula de terapêutica moral (cujo autor foi
Ariston de Quios), ‘a virtude é a saúde da alma’, deveria, para
podermos fazer uso dela, ser alterada ao menos da seguinte
maneira: ‘a tua virtude é a saúde da tua alma’. Porque não há
uma saúde em si própria, e todas as tentativas de definir algo
desse gênero têm falhado lamentavelmente. A determinação
daquilo que significa saúde, mesmo para o teu corpo, depende
do teu objetivo, do teu horizonte, das tuas forças, das tuas
impulsões, dos teus erros e, especialmente, dos ideais e dos
fantasmas da tua alma.
Há, por conseguinte, um número incontável de saúdes do corpo;
quanto mais se permitir ao singular e ao inigualável que
ergam de novo a cabeça, e quanto mais se esquecer o dogma
‘igualdade dos homens’, tanto mais os nossos médicos terão de
abdicar também do conceito de uma saúde normal, tal como
de uma dieta normal e de um curso normal da doença. E, só
então, poderia se chegar a altura de refletir sobre a saúde e a
doença da alma, e de colocar a virtude peculiar de cada um
na sua própria saúde, que, na verdade, poderia assumir numa
pessoa o aspecto do oposto da saúde em outra pessoa.
Ficaria, por fim, ainda em aberto a grande questão de saber se
nos seria possível dispensar a doença, mesmo que para o
desenvolvimento de nossa virtude, e de saber se, sobretudo, a
nossa sede de conhecimento e autoconhecimento não necessita
tanto da alma doente como da alma sã; em suma, se o querer
exclusivamente ter saúde não será um preconceito, uma
covardia, e talvez um vestígio da mais sutil barbárie e atraso.
Intercessores
Direitos do morador de rua: um guia na luta pela dignidade e cidadania. Ministério
Público do Estado de Minas Gerais.
Disponível em http://wwwantigo.mpmg.mp.br/portal/public/interno/repositorio/id/16874
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras.
Educ., Rio de Janeiro , n. 19, Apr. 2002 .
DELEUZE, G. Conversações. – São Paulo: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34. 1997.
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.
FOUCAULT, M. A coragem da verdade: o cuidado de Si e dos Outros II. São Paulo:
editora Martins Fontes. 2011.
NIETZSCHE, F. W. A Gaia Ciência. Lisboa: Relógio D’Agua Editores, 1998.
NIETZSCHE, F. W. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
ZOURABICHVILI, F. O vocabulário Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.