concepção de comunicação como processo de organização das

Transcrição

concepção de comunicação como processo de organização das
1
KAIROGRAMA: MUDANÇAS NOS PLANOS DE OBRAS A PARTIR
DE UMA PERSPECTIVA DE COMUNICAÇÃO
Ricardo Rocha de Oliveira1
1
Engenheiro Civil. http://lattes.cnpq.br/9689913112662636. Universidade Estadual do Oeste
do Paraná, Cascavel – PR, Brasil. Email: [email protected].
2
Antônio Edésio Jungles2
Engenheiro Civil. http://lattes.cnpq.br/3969504791422706. Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis – SC, Brasil. Email: [email protected].
RESUMO
O artigo discute a relação entre comunicação e gestão de obras da construção civil, com base
nos conceitos da Escola de Montreal de comunicação organizacional. Na revisão conceitual dois
eixos teóricos são apresentados: 1) gestão de construção como uma organização temporária de
pessoas reunidas para atingir um objetivo, em um determinado período; 2) a organização como
uma transformação constante de conversações em textos. Os métodos de pesquisa são
apresentados, com uma descrição do contexto dos eventos comunicativos e as formas de
obtenção dos dados. Para discutir a conceituação é selecionado e transcrito um episódio de uma
conversação, que ocorreu durante uma reunião de planejamento operacional de um
empreendimento habitacional. Como resultado da análise, foi observado como a conversação e
os recursos de linguagem utilizados permitem a emergência de uma compreensão coletiva, com
a transformação de vários agentes em um ator coletivo, um texto, que expressa a forma como a
organização irá lidar com uma situação específica, no caso do artigo, um plano de ataque de
uma obra, modificando uma proposta inicial de sequencias de atividades a serem realizadas.
Apresenta-se a contribuição para uma concepção mais adequada para comunicação e gestão de
obras, com destaque para dois pontos: 1) a introdução de teorias de comunicação ainda não
exploradas no contexto da gestão de obras; 2) a apresentação de uma metodologia para a
coleta, seleção e análise de episódios de eventos comunicativos que ocorrem em locais de
trabalho da construção civil. Apresenta-se ao final a noção de kairograma na construção civil,
considerado como o reconhecimento de um conjunto de momentos no curso do tempo, em que
eventos especiais modificam uma compreensão coletiva sobre a forma de execução de uma
obra, criando novos planos durante a execução de um empreendimento.
Palavras-chave: comunicação; obra; kairograma; gestão.
ABSTRACT
This paper discusses the relation between communication and construction management, based
on the concepts of The Montreal School of organizational communication. In the conceptual
review two theoretical orientations are presented: 1) construction management as a temporary
organization, a social construction of people united for a certain period of time; 2) organization as
a constant transformation of conversations into texts. The research methods are presented, with
a description of the context of the communicative events and the forms of data collection and
analysis. In order to discuss the conceptualization, the selection, transcription and analysis of a
conversation which took place during an operational planning meeting of a construction is
presented. As a result of the analysis, it was observed how the conversation and the language
resources used enable the emergence of a collective comprehension, with the transformation of
several agents into one collective actor, one text, which expresses how the organization will deal
with a situation. In the discussion of the discourse theme, the contribution of communication and
organization was highlighted in two ways: 1) the observation of communication theories in the
context of temporary organization, and specifically construction management; 2) the presentation
of a methodology for the collection, selection and analysis of episodes of communicative events
which occurred in the workplace. It is presented at the end the notion of Kairos chart in
construction, regarded as the recognition of a set of moments in the course of time, in which
events change one collective understanding of how to perform a work, creating new plans during
execution an enterprise.
Keywords: communication, construction project, kairos chart, management.
1. INTRODUÇÃO
Várias obras foram desenvolvidas pela humanidade ao longo de sua história. Entre elas
estão pirâmides egípcias, o Parthenon grego, a Grande Muralha da China e os aquedutos e
estradas do Império Romano (GAITHER e FRAIZER, 2001). Na maioria delas não havia
projetos conceituais de engenharia e um planejamento formal. Apesar dessa situação, há
trabalhos que apresentam conhecimento da antiguidade, considerados como semelhantes
às atuais formas de gerenciamento, obtidos de conceitos da bíblia (LOW, 1998), da
construção de pirâmides do Egito (JACOBS, 2007) ou da China antiga (LOW, 2007).
Uma maior preocupação com a conceituação e criação de teorias sobre o
gerenciamento dos processos produtivos surge somente após a revolução industrial. A
teoria de gestão de obras é relacionada à área de conhecimento denominada gestão de
projetos ou organizações temporárias, que tem seu início associado às teorias de
administração científica no início do século XX, com o Gráfico de Gantt ou cronograma de
barras. Esse instrumento é considerado o primeiro grande evento de mudança da
programação da produção, ao proporcionar uma ferramenta útil para compreender a relação
complexa entre homens, máquinas, ordenamento e tempo (HERMANN, 2005). Ainda hoje,
adaptado e integrado ao uso de recursos de informática, o Gráfico de Gantt é apresentado
como uma ferramenta bastante interessante pela simplicidade e potencialidade no uso de
controle em canteiros de obras (HEGAZY, ELBELTAGI e ZHANG, 2005). Ao longo do
século XX várias outras ferramentas e metodologias de planejamento, programação e
controle de obras foram incorporadas, tais como PERT-CPM e linha de balanço, além de
nas últimas décadas desse século haver uma expansão de tecnologias da informação
através de programas computacionais (GREEN, 2006). Porém, a partir do final do século
XX, surgiram vários trabalhos, com orientações diferentes do direcionamento de ferramentas
e incorporação de programas computacionais. Destacam-se aqui dois importantes conceitos
desses trabalhos. Primeiro, que o planejamento não trata apenas da elaboração de planos,
mas sim de um processo amplo de obtenção de informações, criação e difusão desses
planos, além da realização de ações e avaliações. Essa conceituação é citada como
dimensão horizontal de planejamento e tem como referência principal o trabalho de Laufer e
Tucker (1987). O segundo destaque é o da hierarquia do planejamento ou dimensão
vertical, representado, por exemplo, por sistemáticas como Last Planner (BALLARD, 2000;
BALLARD e HOWELL, 2003) ou por estruturas para planejamento e controle de obras como
as propostas por Formoso et al. (1999), em que se reconhece o planejamento realizado em
vários níveis (longo, médio e curto prazo). Esses dois pontos significam compreender a
gestão de obras como um processo complexo, que ocorre antes e durante a execução das
obras e que envolve a coordenação e a participação de vários atores ao longo do tempo
(CHOO, 2003). Dentro dessa orientação, o presente trabalho trata do planejamento,
programação e controle de obras com um enforque de teorias de comunicação
organizacional e define, ao final, uma proposta de síntese para análise de momentos
ocorridos ao longo do tempo, distinta da noção de cronograma, por meio do estudo de
eventos ocorridos durante a gestão das obras, denominado de kairograma, um neologismo
proposto pelos autores.
O conceito de kairograma parte um direcionamento de um conjunto de trabalhos
acadêmicos que compreendem duas perspectivas sobre tempo (Kronos e Kairós),
associadas à mitologia e filosofia originária na antiga Grécia (MARTINS et al., 2012). Essas
duas noções de tempo tem sido discutidas no âmbito da gestão das organizações em geral
(BARTUNEK;
NECOCHEA,
2000;
ORLIKOWSKI;
YATES,
2002;
ROE,
2008)
e
especialmente no caso de gestão de projetos ou organizações temporárias (RÄMÖ, 2002;
CROSSAN et al., 2005). Kronos1 é o mais conhecido dos conceitos para tempo, presente na
composição de várias palavras como cronômetro, cronologia, e especialmente cronograma.
Kronos é associado ao tempo objetivo, homogêneo, mensurável pelo relógio ou outros
artefatos, tempo linear newtoniano da Mecânica Clássica (ROE, 2002). Nas organizações
temporárias como os projetos da construção civil, Kronos é associado ao tempo e
gerenciamento de projetos no contexto de fazer as coisas direito, de acordo com prazos
(RÄMÖ, 2002). Kairós é associado ao tempo como algo não-linear, heterogêneo, que ocorre
por eventos e experiências (ROE, 2002). Para Rämö (2002), em organizações temporárias,
Kairós é relacionado ao gerenciamento para fazer as coisas certas, nos momentos certos,
independente do tempo medido por relógios e calendários. Roe (2002) considera que
enquanto o tempo associado ao conceito de Kronos pode ser medido por meio de relógios e
calendários, o tempo em Kairós só pode ser acessado através de experiência, direta ou
indireta, por meio de descrição de eventos verbais ou artefatos que os registrem (diários ou
agendas). Esses conceitos serão retomados na discussão final do artigo, como forma de
sintetizar as contribuições conceituais da pesquisa aqui exposta, em relação à gestão de
obras e comunicação.
2. CONSIDERAÇÕES CONCEITUAIS
2.1. Gestão de Obras e sua base conceitual na teoria de Gestão de Projetos
A indústria da construção civil é organizada em projetos (empreendimentos ou obras) e a
teoria e a prática da gestão nesse setor é influenciada intensamente pelos conceitos e
1
Algumas grafias diferentes são usadas em outros trabalhos para Kronos, tais como Cronos ou Chronos.
técnicas da área denominada internacional em inglês como Project Management2
(BALLARD, 2000). Em português a área de conhecimento é denominada de administração
de projetos, gerenciamento de projetos ou gestão de projetos, como conceitos praticamente
equivalentes. No âmbito da construção civil, nos últimos anos, tem ocorrido um importante
debate em relação a teorias que permitam compreender o que é e como ocorre o processo
de gestão de obras (KOSKELA; BALLARD, 2006; WINCH, 2006). Nessa discussão têm
surgido críticas sobre as correntes teóricas predominantes em relação à gestão de obras,
com propostas distintas das concepções tradicionais (KOSKELA; HOWELL, 2002). De forma
a articular, comparar e desenvolver críticas, dentro de um quadro teórico mais amplo e de
forma relacionada a conceitos da área conhecida como Project Management, Koskela e
Howell (2002) consideram haver duas compreensões distintas sobre o que é e quais as
funções da gestão de obras. Em uma perspectiva ainda dominante na literatura da área de
gestão de projetos, esses autores apontam que a gestão é conceituada como um conjunto
articulado de ideias, denominado de gerenciamento como planejamento, segundo um
quadro de concepções sobre gestão da produção, desenvolvido por Johnston e Brennan
(1996). Nessa abordagem uma organização é concebida principalmente como constituída
por uma parte de gerenciamento e uma parte de ação, e a ênfase das funções da gestão é a
criação, revisão e implantação de planos. Koskela e Howell (2002) apontam que para essa
forma de compreender a gestão, embora não seja explicitada, a concepção implícita que liga
a parte de gerenciamento e a parte de ação é a teoria clássica de comunicação, inicialmente
proposto por Shannon (1948). O modelo proposto por Shannon é considerado como o que
originou a concepção do processo de comunicação como troca ou fluxo de informação entre
um emissor e um receptor (TAYLOR et al., 1996).
No conjunto diferenciado de concepções de gestão como organização, Koskela e
Howell (2002) consideram ainda que a teoria de comunicação deva ser compreendida de
forma diferenciada do modelo original proposto por Shannon (1948). Para os autores uma
teoria mais adequada para a compreensão de gestão como organização é a Perspectiva da
Linguagem Ação ou LAP (Language Action Perscpective), desenvolvida entre outros por
Winograd e Flores (1986). Nessa teoria, a comunicação é concebida como uma rede de
conversações, onde diferentes agentes que formam uma organização coordenam suas
ações, através de ciclos de intervenções, de forma a fazer e manter compromissos mútuos.
A incorporação dessa abordagem de conversações associada ao planejamento de
2
Se utiliza a nomenclatura projeto, gerenciamento ou gestão de projetos com base na denominação da
literatura de linha inglesa dos termos “project” e “project management” para o estudo de organizações
temporárias com características comuns, tais como: singularidade, complexidade e tarefa a ser realizada em um
período limitado de tempo (SÖDERLUND, 2004). No artigo o conceito do termo projeto é usado para a
organização temporária
obras é destacada por Ballard e Howell (2003) como um das mudanças recomendadas pela
experiência de implantação e de avanços recentes das formas de gestão de obras baseadas
na sistemática denominada Last Planner System (LSP). No início do século XXI um conjunto
de trabalhos internacionais associados à continuação do desenvolvimento da sistemática
LSP tem aprofundado a relação da gestão de obras e comunicação, como um conjunto
estruturado de conversações. Através de vários trabalhos, entre os quais os de Ballard e
Howell (2003), Macomber e Howell (2003), Macomber, Howell e Reed (2005), considera-se
a comunicação como uma forma de gerenciar as promessas entre os diversos agentes
participantes da gestão de obras, para que a organização coordene as ações da produção.
Mossman (2009) enfatiza que a proposta da sistemática LPS é a de criar um conjunto
estruturado de conversas para o desenvolvimento da confiança entre os grupos
responsáveis pelo planejamento e execução de obras.
As contribuições de Koskela e Howell (2002) e Ballard e Howell (2003) e demais
autores citados, de uma compreensão articulada da gestão de obras e comunicação como
um conjunto de conversações estruturadas para desenvolver e articular promessas para
organizar as ações da obra significa uma importante contribuição. No entanto, nos últimos
anos, observa-se na área de comunicação organizacional um conjunto de concepções
teóricas não exploradas e que podem contribuir para uma compreensão mais adequada da
relação entre a comunicação e a gestão de obras na concepção de gerenciamento como
organização, expostas na próxima seção.
2.2. Concepções sobre comunicação organizacional e a Escola de Montreal
A literatura sobre comunicação organizacional apresenta um crescente interesse e o
desenvolvimento de diferentes concepções no estudo das organizações como construções
discursivas, em que a linguagem usada no ambiente de trabalho se destaca através da
consideração das conversações e dos textos organizacionais (FAIRHURST; PUTNAM,
2004). Para autores dessa área, o estudo das organizações, baseado na metáfora do
discurso, busca conhecer como as pessoas se comunicam através de conversações ou
escritas, a fim de organizar e executar os seus trabalhos (BARGIELA-CHIAPPINI;
NICKERSON; PLANKEN, 2007). Essa orientação concentra-se na investigação da
comunicação falada e escrita nas organizações, e em particular no uso da linguagem no
ambiente de trabalho. Um dos destaques nessa área é o grupo liderado pelo canadense
James Taylor, denominado Escola de Montreal de Comunicação Organizacional (TAYLOR;
COOREN, 1997; TAYLOR; ROBICHAUD, 2004; CASALI, 2009), especialmente por destacar
o papel da comunicação e sua relação com a organização. As concepções oriundas desse
grupo constituem uma oportunidade de contribuição na busca de uma compreensão mais
adequada para a relação entre comunicação e gestão na construção civil.
Casali (2009, pg. 107) aponta, a partir dos conceitos da Escola de Montreal, que “a
comunicação organizacional é caracterizada como um processo social que aciona os
universos objetivos e subjetivos na criação de um ambiente ao mesmo tempo estável e
mutante”. Para Putnam e Cooren (2004), essa orientação apresenta a concepção da
organização formada como um discurso de duas formas: como conversações ou atos
comunicativos dos agentes e como textos que refletem as práticas de construção de
significados e hábitos dos membros da organização. Conversações constantemente geram
novos textos organizacionais, que retornam como base para conversações subsequentes. O
processo de organização ocorre quando os membros se orientam para objetivos
compartilhados, a partir dos textos gerados em conversações. Nesse fluxo, se produzem
artefatos materiais e se reproduzem as estruturas sociais que constroem o ambiente
organizacional (CASALI, 2009).
Na compreensão da Escola de Montreal (TAYLOR et al., 1996), há uma intensa
relação entre texto e conversações, como processos comunicativos que conduzem as
pessoas para organização das ações. Taylor e Robichaud (2004) apresentam essa
concepção com base no modelo denominado de coorientação (figura 1): assume-se que o
uso da linguagem produz organização e, por meio de conversações, a comunicação tornase uma instância de produção de sentidos e posicionamento social entre agentes. No
modelo, A e B são sujeitos comunicadores e X é o objeto material e/ou social da
comunicação. Esses três agentes exercem papéis equivalentes no processo de
comunicação, pois as interações humanas possuem sempre um objeto material/social
(quem fala, fala de alguém ou de algo). Ao se comunicar, os sujeitos recorrem a um
universo linguístico, que permite a leitura e interpretação dos objetos materiais e sociais. A
figura 1 também destaca que as conversações se relacionam ao mesmo tempo a aspectos
materiais e sociais.
Figura 1 - Coorientação através da conversação como unidade relacional essencial
(Adaptado de Taylor, 2004)
No caso das organizações, uma das consequências do processo de coorientação é a
negociação de responsabilidade para o desempenho de um objetivo ou estabelecimento de
um relacionamento. Nessa conceituação, a essência da comunicação não é troca de
informações, mas uma transferência de intenção. Nesse sentido, quando uma intenção for
transferida de um agente para outro, para se buscar produzir um resultado, se estabelece
um alinhamento entre eles, que é a forma básica para a coordenação das ações
organizacionais (TAYLOR et al., 1996).
2.3. Conceituação de textos e sua relação com conversações no processo de
comunicação organizacional
Segundo McPhee (2004), a expressão genérica para texto normalmente é usada como um
rótulo para um meio, especialmente os materiais impressos, ou ainda, de forma mais
ampliada, para qualquer meio de representação relativamente permanente e legível de uma
inscrição, ou, ainda, como uma expressão que se refere a um conjunto de textos
relacionados. No entanto, o autor reconhece que, na visão da Escola de Montreal, a
concepção de texto é diferenciada: um texto pode significar o resultado retido de
conversações, ou seja, não é enfatizada a permanência na forma de um meio material
durável. Cooren (2004) considera texto como uma formulação coerente de palavras,
números ou imagens, que existem em um formato materialmente replicável. Para o autor,
textos podem existir em formas impressas, materiais em meio eletrônico ou textos orais,
uma vez que estes ainda existem em um formato replicável (podem ser gravados na
memória e lembrados em futuras situações). Para Cooren (2004), o que define realmente a
noção de texto é a sua repetibilidade, quer seja sob a forma de citação ou reprodução
mecânica.
Anderson (2004) menciona que há duas formas para compreender a relação entre
conversação, escrita e textualização: como atos escritos ou como atos discursivos. Como
um ato escrito, textualização ocorre quando uma conversação é transformada em alguma
forma escrita. Como atos discursivos, uma textualização ocorre quando uma conversação é
transformada em uma forma de narrativa, uma interpretação de um discurso que ocorreu.
Kuhn (2008) considera que textos podem ser manifestados de duas formas: concretos e
figurativos. Textos concretos são sinais e símbolos inscritos em alguma forma relativamente
permanente, tais como: políticas, documentos técnicos, produtos, imagens, regras,
instrumentos, e-mails ou memorandos. Textos figurativos, em contraste, são representações
ou resumos das práticas locais de comunidades e empresas. Esses últimos são observados
como elementos comuns, ou valores do grupo, discursos do meio ambiente organizacional.
Uma vez que esses textos se tornam crenças do grupo, através da sua utilização em uma
variedade de conversas distribuídas, os atores atribuem identidade, se motivam e se
obrigam a realizá-lo.
A abordagem da Escola de Montreal associa conversações e textos necessariamente.
Para Taylor (2007), na maior parte das vezes, quando se usa a palavra “texto”, se considera
esse conceito relacionado a inscrições, como palavras datilografadas numa página ou
códigos de programas de computador. Contudo, para o autor, não são as inscrições que
efetivamente são o texto, mas o significado que ele transmite. Taylor (2007) considera que o
texto é um meio cuja única função é transmitir o significado de uma posição para outra, ou
guardá-lo para futura referência. Portanto, a noção de texto usada não é exclusiva a
manifestações em algum material durável, como um fluxograma ou cronograma impresso ou
gravação em forma digital, mas também como resultado de uma atividade comunicativa, em
situações concretas de interação social ou, mais especificamente, resultados da atividade
verbal de agentes, com a intenção de coordenar suas ações para alcançar uma determinada
finalidade. Esses elementos compreendam a análise do relacionamento entre o processo de
comunicação e gestão de obras, base para o estudo empírico e a discussão realizada nas
considerações finais do artigo, que embasam a noção de kairograma. Os métodos expostos
na próxima seção detalham como essas concepções são usadas no estudo empírico.
3. MÉTODO DE PESQUISA
3.1. Delineamento geral do estudo
O artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa que desenvolveu uma proposta de
modelo para compreensão da relação entre os fluxos comunicativos e a gestão de obras, no
contexto de empreendimentos habitacionais financiados (OLIVEIRA, 2010). Nessa pesquisa
foi realizado o estudo de caso apresentado no artigo, através de observação direta de
reuniões de planejamento de obras de empreendimentos de prédios de apartamentos
residenciais para população de baixa renda, realizados na região metropolitana de
Florianópolis – SC.
O trabalho parte de uma base de implantação e avaliação de um conjunto de
conceitos, técnicas e práticas de gestão de obras, semelhante a outros desenvolvidos e
utilizados em pesquisas no âmbito da construção civil (BERNARDES, 2001). Esses
conceitos, técnicas e práticas de gestão de obras definem um processo de hierarquia de
níveis de tomada de decisão, por meio de um conjunto de reuniões entre os responsáveis
pela gestão, realizadas de forma regular antes e durante a execução das obras.
O estudo apresenta as seguintes etapas: 1) Coleta de informações sobre o
empreendimento e as organizações responsáveis pela concepção do projeto e execução da
obra; 2) Coleta de documentação e participação em reuniões de planejamento, antes do
início da obra, para compreender e registrar as decisões principais e os detalhamentos
existentes antes do período de construção, em relação aos planos da produção previstos; 3)
Participação e registro das reuniões de médio e curto prazo realizadas ao longo da
execução da obra. Antes do início da obra, obteve-se um conjunto de documentos e foram
registradas as intenções dos responsáveis pelo processo de planejamento da obra, quanto
aos aspectos chave dos planos da produção, tais como lógica de execução prevista (plano
de ataque, sequências, zoneamento da obra), prazos de execução e programação inicial de
recursos. A participação nas reuniões de médio e curto prazo foi realizada por meio de
observação estruturada, ou seja, havia acesso aos documentos e materiais gerados,
anotação de situações especiais observadas e registro fotográfico. Em todas as reuniões
houve participação de membros da equipe de pesquisa e em todos os eventos ocorreu a
gravação de áudio, para posterior análise.
3.2. Apresentação do estudo de caso
O episódio analisado no artigo teve origem em um estudo de longo prazo, realizado de
junho de 2008 a agosto de 2009, através de observação direta das reuniões de
planejamento da obra, em um empreendimento de nove prédios de apartamentos
residenciais, para população de baixa renda (tipologia de dois quartos, área interna
aproximada de quarenta e oito metros quadrados, quatro apartamentos por andar, com
térreo para garagens e mais três andares com unidades habitacionais, com um total de doze
unidades por prédio e um total de cento e oito apartamentos). Essa construção foi realizada
na região metropolitana de Florianópolis – SC, na cidade de São José – SC, por uma
construtora. A fase de planejamento da obra iniciou em janeiro de 2008 e a construção em
agosto desse mesmo ano, com cronograma previsto para quinze meses de execução.
Em relação à estrutura organizacional, a construtora apresentava um encadeamento
de níveis, iniciando pela direção, representada por dois sócios proprietários, e na sequência
uma área de engenharia, composta por um conjunto de engenheiros e estagiários. Dentre
os diretores, um era responsável pelas decisões estratégicas relacionadas à obra. No
período da pesquisa, no setor de engenharia atuavam três engenheiros, com envolvimento
de todos no detalhamento dos planos prévios e como representantes do nível intermediário
de gerência. Nas obras, a diretoria designava uma equipe de gerência operacional,
composta de um membro da engenharia como responsável pela execução e um mestre de
obras para atuar em tempo integral, na fase de construção.
3.3. Método de seleção e análise dos episódios
A pesquisa teve como orientação metodológica a proposta de um conjunto de
trabalhos na área de organizações e comunicação (KARREMAN; ALVESSON, 2001;
COOREN, 2004; NIELSEN, 2009), em que se combinam duas abordagens: 1) o
desenvolvimento de um estudo longitudinal, através de coleta de dados de estudos de caso,
de forma a conhecer com profundidade o contexto organizacional; 2) coleta, seleção e
análise em profundidade de micro eventos, através das regras de análise de conversação
em um episódio específico.
Para a seleção e análise do episódio, o trabalho se orientou no método utilizado por
Donnellon, Gray e Bougon (1986):
1) Descrição do contexto em que ocorrem os processos de comunicação, em termos
de funções, atores, questões e sequência de eventos;
2) Amostragem teórica de episódios de comunicação ocorridos na gestão da obra em
estudo;
3) Transcrição do processo de interação e textos gerados;
4) Análise da transcrição, de forma a identificar segmentos de interação em que os
membros do grupo em estudo demonstram mudança na sua interpretação dos eventos;
5) Análise do processo de comunicação, associado ao movimento do grupo em
direção à constituição de um texto compartilhado.
Após a gravação de cada reunião havia uma análise e divisão do período de sua
realização em episódios, com identificação de tópicos. Após esse processo, os episódios de
conversações diretamente relacionados à organização do processo de produção da obra
eram selecionados para análise (ver figura 2).
REUNIÃO DE MÉDIO OU CURTO PRAZO
DESCRIÇÃO
Participantes
Local
Momento no tempo
Função
TEXTOS
Tarefas
Equipes
Prazos
Compromissos
CONVERSAÇÕES
Duração: XhYm
x
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro também
-- alguém termina
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro
também
-- alguém termina
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro também
-- alguém termina
x
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro
também
-- alguém termina
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro também
-- alguém termina
x
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro também
-- alguém termina
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro
também
-- alguém termina
x
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro também
-- alguém termina
SELEÇÃO DE TÓPICOS RELEVANTES PARA A FORMAÇÃO DO PLANO
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro
também
-- alguém termina
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro também
-- alguém termina
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro também
-- alguém termina
TÓPICO
- Uma começa
- Outro responde...
- um terceiro
também
-- alguém termina
Texto final da reunião: novo contexto do plano de ações: decisões sobre
sequencias, ordens de ataque, durações, compromissos para as ações
futuras da produção
Figura 2 – Descrição da seleção de episódios e constituição dos textos de análise
Para o artigo foi selecionado um episódio que envolvia o plano de ataque elaborado
antes do início da obra, com alteração na sequência prevista inicialmente. Dentro das
orientações dos métodos de análise, primeiro se faz a transcrição desse episódio
considerado representativo de um fenômeno que se quer explorar. A partir do contexto
inicial conhecido, da análise dessa transcrição, juntamente com a gravação original, e, por
meio de triangulação com demais evidências obtidas na coleta de campo, é feita a análise.
Essa análise ter por objetivo explorar com profundidade a relação desse segmento de
conversa com textos anteriores, bem como compreender como, através da interação, em
um determinado momento, os agentes responsáveis pela obra constroem um novo
significado e passam a orientar suas ações com base nessa nova compreensão.
3.4. Simbologia e regras de transcrição de conversações
No quadro 1 são demonstradas as regras de transcrição, baseadas na simbologia utilizada
em trabalhos de análise de conversação (PASSUELLO; OSTERMANN, 2007), e a
transcrição do episódio é apresentada no quadro 2. Além do uso da simbologia, destacam-
se palavras relacionadas às etapas da obra (em azul) e as referências aos blocos de
apartamento (sublinado e negrito) que se relacionam com o plano de ataque da obra. Há
três participantes reconhecidos nas falas, identificados por siglas em cada uma das suas
intervenções: ENG1 (Engenheira destacada para a obra), MES1 (mestre de obras) e ENG2
(Engenheira da empresa, participante da etapa prévia de planejamento e auxiliar na
execução). Em um trecho as falas são inaudíveis, devido a problemas de ruído externo
(linha 24 do quadro 2). Além dos atores apresentados na transcrição, também participaram
da reunião uma estagiária de engenharia e o pesquisador.
Quadro 1 – Convenções utilizadas na transcrição
Símbolo
[texto]
ºtextoº
::
=
(texto)
(xxxx) ou [xxxx]
-
Representação
sobreposição de falas
fala mais baixa que o padrão normal
alongamento de som
falas coladas
dúvidas na transcrição/inaudível
fala não compreendida, não transcrita
interrupção abrupta da fala
4. ANÁLISE E DISCUSSÃO SOBRE A COMUNIÇÃO ORGANIZACIONAL E SUA
RELAÇÃO COM A GESTÃO DE OBRA
4.1 Contexto inicial do evento comunicativo e do episódio
Nessa fase da obra, a reunião operacional era realizada na sala do mestre de obras. De
forma mais frequente participavam uma engenheira responsável pela obra, um mestre de
obra, um a dois estagiários da empresa, além da equipe de pesquisa (um pesquisador e um
auxiliar de pesquisa). Em algumas reuniões havia a presença de chefes de equipes de obra
ou representantes de empresas de serviços terceirizados. O episódio foi retirado da terceira
reunião operacional, ocorrida no dia três de outubro de 2008, um mês após o início efetivo
da obra. Esse encontro foi iniciado às dez horas e quinze minutos e teve a duração de uma
hora e dois minutos. O objetivo da reunião era elaborar o plano de curto prazo da semana
seguinte e verificar problemas em relação aos recursos necessários à execução. O episódio
iniciou após a avaliação da execução do plano de curto prazo da semana anterior, em que
havia se identificado um desvio em relação ao plano de ataque previsto inicialmente.
No período entre os meses de setembro e dezembro de 2008, correspondente à
janela de tempo do primeiro plano tático, estava prevista a conclusão de instalação do
canteiro, todas as fundações (nove prédios) e as etapas de blocos de coroamento de
estacas, vigas baldrame e pilares do pilotis de quatro blocos de apartamento, dentre os nove
edifícios previstos para o empreendimento. Essa meta de realização de quatro blocos
contíguos era necessária para propiciar o imediato uso de grua na obra, a partir do mês de
janeiro, que seria posicionada entre os prédios três, quatro, oito e nove para atender a
distribuição de materiais necessários às etapas de estrutura de concreto armado e vedação
em blocos de concreto. Para as etapas de blocos de coroamento de estacas, baldrames e
pilares (pilotis), a empresa definiu apenas uma equipe de funcionários próprios, prevista
para seguir uma ordem de execução das etapas e deslocamento entre blocos conforme
demonstrado na figura 3 (mapa no lado esquerdo da parte inferior). Na parte superior dessa
figura é apresentada a situação de algumas etapas que eram avaliadas durante a reunião
quanto ao estágio de execução, no momento anterior ao episódio. Pela figura, observa-se
que a ordem de ataque prevista no plano tinha dificuldade em ser concretizada, devido a
problemas com caixas e tubulações de drenagem na região dos blocos de apartamento
nove e três. Quando da avaliação inicial para elaborar o plano, a execução dessas
instalações era prevista para ser realizada rapidamente (cerca de duas semanas). No
entanto, após o início dos trabalhos, foi constatado que a drenagem demandaria um tempo
maior, devido à necessidade de caixas de passagem inicialmente não previstas. Diante
dessa situação, o mestre de obras durante a semana iniciou trabalhos na etapa de blocos
das estacas no prédio dois, fora do escopo previsto no plano tático inicial. Nesse contexto é
que ocorre o episódio de conversação.
4.2 Análise do episódio
No episódio ocorre principalmente um diálogo entre a engenheira e o mestre de obras,
sobre as tarefas a serem executadas na semana seguinte (plano de curto prazo). Há
algumas intervenções da segunda engenheira, que colabora em alguns momentos, por
conhecer os planos da obra. No início do episódio a engenheira confirma a concretagem da
etapa de baldrame do bloco de apartamentos quatro (linhas 1 e 2). A partir da linha 4 esses
atores passam a discutir as demais tarefas. A engenheira solicita que se faça a fundação
(blocos) do edifício oito (linha 5). Na sequência o mestre sugere que se façam as tarefas de
blocos e baldrame nos prédios dois e um, devido à situação das tarefas precedentes
(estacas) e por já ter iniciado as escavações dos blocos de coroamento de estacas no
prédio dois. No entanto, a engenheira não concorda e reafirma a intenção de iniciar as
tarefas no bloco de apartamentos oito, e que é acatado pelo mestre (linhas 7 a 12).
15
Quadro 2 – Transcrição de trecho 10 da reunião de 03/10/2008
1
ENG1
2
3
4
5
6
7
8
9
MES1
ENG1
MES1
ENG1
MES1
ENG1
MES1
10
11
12
13
MES1
ENG1
MES1
14
15
ENG2
ENG1
ENG1
MES1
16
17
18
19
ENG1
MES1
ENG1
20
21
22
23
24
25
ENG1
MES1
ENG1
MES1
MES1
ENG1
26
27
MES1
28
29
ENG2
ENG1
30
31
32
33
ENG2
ENG1
MES1
34
35
36
37
MES1
ENG1
MES1
ENG1
ENG1
ENG1
Trecho 10 (até 2min.26seg)
Vamos pensar pro futuro. Semana que vem. O que a gente vai fazer semana que
vem? Segunda-feira a gente concreta. Pode ser? [Aproveita pra concretar o
baldrame.]
[Sim:::]. Tranquilo. Tá pronto. Se quiseres.
[Só ataca aquilo la.] Então ta.
[xxxx]. O que é que você quer que eu faça. Qual fundação?Pois é. Eu queria agora que tu fizesse a oito:::
A dois é uma que tá bem adiantada. Mas você [xxxxx]
[A dois não vai] adiantar. Entendesse?
Uhum.
Tu vai perder tempo assim. Tu vai fazer agora e vai abandonar ela- Só pro ano
que vem.
Tá, então- Pra mim eu::::, como você quiser. Tudo igual pra mimAcho que bota o oito. Agora o oito ele vai liberar.
Tá.
E ai tu tem que botar eles (xxxx) pra fechar o um e depois o estaqueamento do
três. Entendesse?
É o três e o nove.
É que esse três ali::: é um problema sério. Sabe vai ter que cavar uma vala de
quatro metros de altura, porque aquela lama que a gente aterrou se (a gente
tivesse gasto) a máquina lá em cima. Vamos ter que fazer diferente então. Vamos
ter que tirar toda aquela terra lá:: Olha:: Toda aquela terra tem que tirar primeiro.
(xxxx) Mas em uma semana você tira tudo bem. Não resolve em uma semana?
Resolveria sim. Mas dai eu teria que ter:::: Como eu vou te dizer.
Não tem que botar uma escavadeira, será?
É. Pensa uma escavadeira. Daí bota umas quatro caçamba. Tira rapidinho. ٥Um
dia tira tudoº
Meu como é que pode ter tanto material.
Também se tudo visse o tamanho da vala aberta
ºMeu Deusº
Mas ta funcionando tudo certinho. Já encheu. Já graças a chuva (xxxx)
Inaudível (barulho de serra circular ao lado – 21 seg.)
Então. bloco nove é crítico. Por que não foi nem feita a fundação dele. Eu tenho
que ligar pro homem. Falar com ele pra não atrapalhar::: o andamento do negócio
(da fundação) aquele negócio do estaqueamento pré-moldado. Mas, o nove é
crítico. Certo?
É.
Então, o nove vai ser o último de todos para fazer. Vai ser feito lá em dezembro,
vamos supor.
Como assim em dezembro?
Não, por que ele não fez nem o estaqueamento. Não vai decidir. [Não tem nem
máquina. É]
Ah ta. [Terminar em dezembro.]
Então o bloco oito é o que ta livre agora, o três ta com esse problema ai do coisa
Ta. Só duas estacas, três. Agora são quatro. Que quebrou uma.
É (xxxx) consegue entendeu tem que resolve em uma semana. Põe ele pra tirar
aquele material lá então.
Ta. Então vou pegar lá então jáPorque daí a gente faz (outro) esquema. DaíSim
O quatro. O quatro já ta fechando, vai pro oito, vai pro três e vai pro nove.
16
Após essa definição, os dois passam a conversar sobre a sequência das demais
etapas, diante das dificuldades com as instalações de drenagem e sua consequência para
se executar o estaqueamento, e com isso permitir a realização de blocos e baldrames dos
prédios, para se atingir a meta definida no plano tático (linhas 13 a 23). Avaliada as atuais
circunstâncias da obra, a partir da linha vinte e cinco, a engenheira conversa com o mestre e
define um novo plano de ataque. O novo plano é apresentado nas falas finais do episódio,
especialmente a linha trinta e sete. Esse novo plano de ataque é representado na figura 3,
no lado inferior direito. A situação era interpretada pelos presentes na reunião como dentro
dos limites possíveis de serem modificados no período de médio prazo, por se considerar
que as etapas de blocos, baldrames e pilares de pilotis, previstas como meta para quatro
blocos contíguos até o mês dezembro, seriam atingidas mesmo com a alteração. Destacase que essa nova ordem de ataque aos blocos, que alterava o plano original, não foi
transformada em nenhum texto concreto, na forma de diagrama ou descrição escrita, mas
foi efetivamente utilizada em outras conversações e construção dos planos de curto prazo
das semanas seguintes.
4.3 Os elementos para compreender a relação da gestão de obras com o processo de
comunicação
Apesar da literatura relacionada a autores da Construção Enxuta discutir conceitualmente a
questão comunicação, conversações e gestão de obras (KOSKELA e HOWELL, 2002), bem
como incorporar experiências de aplicação dessa concepção à sistemática LSP, o presente
trabalho amplia essa questão conceitualmente e demonstra a sua aplicação em estudos
para compreender empiricamente as concepções propostas no âmbito da gestão de obras.
Desta forma, o episódio estudado no artigo apresenta dois propósitos: primeiro, demonstrar
através da análise de uma situação específica, como ocorre a articulação entre
conversações e textos no ambiente de gestão de obras, e; segundo, apresentar o processo
de construção de um novo texto a partir de conversações. Destacam-se dois pontos a seguir
para articular o estudo às concepções gerais de gestão de obras e sua relação com o
processo de comunicação.
Primeiro, na gestão de obras as concepções atuais utilizam a hierarquia do processo
de planejamento, através de propostas baseadas nas sistemáticas Last Planner (BALLARD,
2000) ou desenvolvimentos nacionais sobre planejamento de obras (BERNARDES, 2001).
Nessas abordagens, a ideia é que há diversos níveis de planejamento, onde há objetivos e
diferentes atores participantes. Na concepção adotada na maioria dos trabalhos nacionais
na construção civil, originada principalmente de Formoso et al. (1999) e Bernardes (2001),
considera-se haver três níveis hierárquicos: estratégico, tático e operacional. A cada um
desses níveis corresponde uma pauta, em termos de decisões, com a construção e
transmissão de significados entre agentes.
17
BLOCO 9
7
8
BLOCO 8
10
3
4°
2
9
BLOCO 4
PLANO DE ATAQUE ORIGINAL
12
2°
1°
1
4
3°
5
6
11
BLOCO 3
PLANO DE ATAQUE NOVO
Figura3–Compçãdlnetqvscaorçõduniãe03/128
18
Nessa orientação, a gestão de obra se desenvolve por um processo de delineamento
ao longo do tempo, ou seja, o plano inicial apresenta concepções gerais e, a partir das
conversações entre os agentes nos níveis hierárquicos seguintes, há uma maior definição e
um maior detalhamento, até a especificação final no plano operacional do que é previsto
para ser executado.
Um segundo ponto a ser considerado na relação da comunicação e gestão de obras
é que essa compreensão pode ser interpretada como gestão como organização, exposta na
revisão conceitual. Com isso, uma conceituação mais adequada do processo de
comunicação deve considerar não somente um conjunto de conversações estruturadas, mas
o fluxo contínuo de tradução de conversações em textos e de textos em conversações.
Destaca-se que os textos podem ser tanto concretos (explicitados em alguma forma durável)
ou resultados de conversações, ou seja, a interação entre os agentes pode ter levado à
definição de uma compreensão nova sobre como a execução será realizada.
Essa relação de construção de textos por meio de conversações ao longo do tempo
define o conceito de kairograma na construção civil e foi observada no estudo de caso. Após
as definições estratégicas e desdobramentos realizados pela gerência responsável pelo
médio prazo, ocorria uma transferência das intenções do nível tático para o nível
operacional, pelos textos prévios (plano de ataque, cronogramas, zoneamento da obra e
metas mensais). Durante a execução da obra iniciava-se, então, uma série de interações
conversacionais entre os agentes responsáveis pelas instâncias táticas e operacionais. No
estudo de caso essa instâncias eram representadas por engenheiros, mestres e chefes de
equipes que atuavam na execução da obra. A eles cabia coordenar as conversações antes,
durante e após reuniões e, especialmente, aprovar os significados construídos que
compunham os textos operacionais. Nessas conversações, com base nos textos prévios
transferidos, havia um conjunto de traduções em textos operacionais ou planos de curto
prazo que orientavam a execução da obra. A comunicação desse plano de curto prazo aos
operários da obra, através de conversações após a reunião operacional semanal significava
o momento de definição e alocação das tarefas às equipes, ou seja, a formação final do
texto operacional.
O episódio selecionado no artigo demonstra ainda como, por meio de atividades
verbais, o mestre de obras e a engenheira interagiram na construção não somente de novos
textos operacionais, mas também na alteração de textos prévios - no caso específico, a
modificação e construção de um novo plano de ataque. Nesse sentido, os agentes
buscavam em primeira instância seguir o plano previsto, mas ao observar dificuldades em
executar a ordem de tarefas sugeridas nos textos transferidos pelo nível tático, modificaram
e criaram uma nova concepção a partir das suas contribuições nas conversações. Dessa
forma, os textos transferidos do nível tático para o operacional não ocorriam somente por
19
uma reprodução integral, mas, apesar de considerados nas conversações, em algumas
situações eram interpretados e modificados pelos agentes que o executavam, diante das
circunstâncias que se defrontavam. No episódio, o plano de ataque é modificado devido à
dificuldade de sua reprodução integral, como previsto no planejamento prévio da obra. Com
isso, esse e outros significados transferidos pelos diversos textos táticos referenciais,
prévios ao período construtivo, eram associados aos novos significados elaborados ao longo
da execução e, novamente, articulados nas conversações seguintes do nível operacional,
para criação de outros textos operacionais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo apresenta uma pesquisa que explora os conceitos relacionados a duas noções de
tempo no âmbito da gestão de obras, relacionando-os a teorias de comunicação.
Incialmente descreve a noção de tempo cronológico (Kronos), já bastante difundido na
construção civil, empregada em várias ferramentas e sistemáticas de planejamento,
programação e controle de obras, tais como técnicas de rede (PERT-CPM), linha de balanço
ou a primeira e ainda muito utilizada forma de programar obras: o cronograma. Nessa
concepção, observa-se o tempo relacionado a etapas e suas durações, bem como prazos
definidos previamente pelos citados instrumentos de programação, durações e prazos que
devem ser devidamente controlados. Na gestão de obras, a comunicação relacionada a
essa noção é de fluxo de informações, em que os vários agentes responsáveis pela
produção devem tomar conhecimento em momentos oportunos dos planos da produção e
especialmente como se relacionam com o tempo medido por relógios e calendários.
No entanto, nas últimas décadas tem havido uma discussão fundamental e a
geração de uma nova compreensão sobre o planejamento, programação e controle da
produção no ambiente da construção civil. Nessa nova compreensão associada à gestão de
obras, especialmente ligada a autores da abordagem denomina Construção Enxuta ou Lean
Construction, diferentes agentes participam em momentos oportunos da construção dos
planos da produção. Nos trabalhos de um grupo de autores que defedem essa visão,
considera-se haver um processo de hierarquia de níveis de tomada de decisão, por meio de
um conjunto de reuniões entre os responsáveis pela gestão, realizadas de forma regular
antes e durante a execução das obras, onde os planos das obras são construídos
coletivamente ao longo do tempo. Os autores ligados a essa corrente tem defendido ainda
que a comunicação nessa abordagem é caracterizada por um conjunto estruturado de
conversações. Nesse sentido, o artigo amplia e apresenta uma importante contribuição: a de
que a comunicação deve ser observada como um fluxo contínuo de traduções de
conversações em textos e de textos em conversações. Uma versão ampliada dessa
contribuição pode ser observada no trabalho de Oliveira (2010).
20
Destaca-se ainda, com síntese das análises do artigo, a concepção de kairograma,
como um conjunto de momentos especiais no tempo, identificados através de pesquisas ou
mesmo por registros e estudos das próprias empresas responsáveis pela execução, em que
os planos de obras são construídos em atividades conversacionais, e não apenas planos
previamente elaborados tem seus significados transferidos aos novos agentes. Além do
episódio selecionado e apresentado no presente trabalho, durante o estudo de caso
observou-se outros momentos em que decisões prévias eram discutidas pelos gestores e
muitas vezes modificadas, sendo que, em algumas ocasiões, não havia uma transcrição do
novo significado, aqui compreendido como texto ou plano para executar uma obra em um
determinado período de tempo, mas havia uma compreensão e um compromisso coletivo do
conjunto de atores para com a condução das ações futuras. Considerado o contexto da
produção na construção civil, em que há muita variabilidade e presença de incidentes
inesperados, marcado por momentos em que os agentes de produção usam suas habiliades
e experiências prévias de forma inteligente, para agir em momentos concretos e oportunos
no fluxo de eventos de obras, o estudo desses episódios e dessa orientação, baseada na
noção de tempo não cronológico (Kairós), é fundamental para compreender e desenvolver
processos de gestão adequados, para que se possa fazer as coisas certas, nos momentos
certos.
21
6. REFERÊNCIAS
ANDERSON, D. The Textualizing Functions of Writing for Organizational Change. Journal
of Business and Technical Communication, v.18, n.2, p.141-164, 2004
BALLARD, G. The Last Planner System of Production Control. PhD. Thesis. School of
Civil Engineering, Faculty of Engineering, The University of Birmingham, 2000
BALLARD, G.; HOWELL, G. An Up-date on Last Planner. In: 11th Annual Conference of
the International Group for Lean Construction - IGLC-11, Blacksburg, Virginia: Virginia
Tech, USA, 2003
BARGIELA-CHIAPPINI, F.; NICKERSON, C.; PLANKEN, B. Business discourse. New
York, NY: Palgrave Macmillan, 2007
BARTUNEK, J.; NECOCHEA, R. Old Insights and New Times Kairos, Inca Cosmology, and
their Contributions to Contemporary Management Inquiry. Journal of Management Inquiry,
v. 9, n. 2, p. 103-113, 2000
BERNARDES, M. Desenvolvimento de um modelo de planejamento e controle da
produção para micro e pequenas empresas de construção. Porto Alegre: 2001. Tese de
Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 2001
CASALI, A. Um modelo do processo de comunicação organizacional na perspectiva da
“Escola de Montreal”. In M. M. K. Kunsch (Org.) Comunicação organizacional: histórico,
fundamentos e processo, (Vol. 1, cap. 6, pp. 107-134). São Paulo: Saraiva, 2009
CHOO, H. Distributed Planning and Coordination to Support Lean Construction. A
thesis submitted to University of California for the degree of Doctor of Philosophy. Dept. of
Civil & Environmental Engineering, University of California, Berkeley, 2003
COOREN F. The Communication Achievement of Collective Minding: Analysis of Board
Meeting Excerpts. Management Communication Quarterly, v.17, n.4, p.517-551, 2004
CROSSAN, M. et al. Time and organizational improvisation. Academy of Management
Review, v. 30, n. 1, p. 129-145, 2005
DONNELLON, A., GRAY, B. e BOUGON, M. Communication, Meaning, and Organized
Action. Administrative Science Quarterly, v.31, p.1, p. 43-55, 1986
FAIRHURST, G.; PUTNAM, L. Organizations as discursive constructions. Communication
Theory, v.14, n.1, p.5-26, 2004
FORMOSO, C.; BERNARDES, M.; OLIVEIRA, L.; OLIVEIRA, K. Termo de Referência para
22
o Planejamento e Controle da Produção em Empresas Construtoras. Porto Alegre:
Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil (PPGEC), Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 1999
GAITHER, N.; FRAIZER, G. Administração da produção e operações. São Paulo:
Pioneira Thomson Learning, 2001
GREEN, S. The Management of Projects in the Construction Industry: context, discourse and
self-identify. In: Making Projects Critical. CICMIL, S.; HODGSON, D. Palgrave Macmillan,
Cap.12, 232-251, 2006
HEGAZY, T.; ELBELTAGI, E.; ZHANG, K. Keeping Better Site Records Using Intelligent Bar
Charts. Journal of Construction Engineering and Management, ASCE, V. 131, N.5, pp.
513-521, 2005
HERMANN, J. History of Decision-Making Tools for Production Scheduling, The 2005
Multidisciplinary Conference on Scheduling: Theory and Applications, New York, USA,
July 18-21, 2005
JACOBS, B. Where the Ancient Egyptians System Engineers? How the building of
Khufu’s Great Pyramid Satisfies System Engineering Axioms. Disponível em:
<www.bandisoftware.com> Acesso 29 mai 2007
JOHNSTON, R.; BRENNAN, M. Planning or Organizing: the Implications of Theories of
Activity for Management of Operations. Omega, v.24, n.4, p.367-384, 1996
KARREMAN, D.; ALVESSON, M. Making newsmakers: conversational identity at work.
Organization Studies, v.22, n.1, p.59-89, 2001
KOSKELA, L.; BALLARD, G. Should project management be based on theories of
economics or production? Building Research & Information, v.34, n.2, p.154–163, 2006
KOSKELA, L.; HOWELL, G. The underlying theory of project management is obsolete.
Paper presented at the PMI Research Conference, August 2002, Seattle, USA, 2002
KUHN, T. A Communicative Theory of the Firm: Developing an Alternative Perspective on
Intra-organizational Power and Stakeholder Relationships. Organization Studies, v.29,
ns.8-9, p.1227-1254, 2008
LAUFER, A.; TUCKER, R. Is construction project planning really doing its job? A critical
examination of focus, role and process. Construction Management and Economics, v.5,
n. 5, p.243-266, 1987
LOW, S. Back to the basics: biblical wisdom for effective construction project. International
Journal of Project Management, V. 16, N. 4, pp. 209-214, 1998
23
LOW, S. Managing building projects in ancient China: a comparison with modern-day project
management principles and practices. Journal of Management History, V. 13 N. 2, pp.
192-210, 2007
MACOMBER, H.; HOWELL, G.; REED, D. Managing promises with the last planner system:
closing in on uninterrupted flow. In: 13th International Group for Lean Construction
Conference: Proceedings. International Group on Lean Construction, 2005. p. 13.
MACOMBER, H.; HOWELL, G. Linguistic Action: Contributing to the theory of lean
construction. In: Proceedings of the 11th Annual Meeting of the International Group for
Lean Construction. 2003. p. 1-10
MARTINS, J.; AQUINO, C.; SABÓIA, I.; PINHEIRO, A. De Kairós a Kronos: metamorfoses
do trabalho na linha do tempo. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, v. 15, n. 2, p.
219-228, 2012.
MCPHEE, R. Text, Agency, and Organization in the Light of Structuration Theory.
Organization, v.11, n.3, p.355-372, 2004
MOSSMAN, A. Last Planner: collaborative conversations for reliable design and construction
delivery. Lean Construction Institute, UK. May, 2009. Disponível em
<www.thechangebusiness.co.uk> Acesso em 10 dez 2009
NIELSEN, M. Interpretative management in business meetings: Understanding managers’
interactional strategies through conversation analysis. Journal of Business
Communication.v. 46, n.1, p.23-56, 2009
OLIVEIRA, R. Comunicação e gestão de obras: a dinâmica textos/conversações
baseado no estudo de dois empreendimentos habitacionais. 488p. Tese (Doutorado),
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Tecnológico, Programa de Pós-Gradução
em Engenharia Civil, Florianópolis, 2010
ORLIKOWSKI, W.; YATES, J. It's about time: Temporal structuring in organizations.
Organization science, v. 13, n. 6, p. 684-700, 2002
PASSUELLO, C.; OSTERMANN, A. Aplicação da análise da conversa etnometodológica em
entrevista de seleção: considerações sobre o gerenciamento de impressões. Estudos de
Psicologia, v.12, n.3. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. p.243-251, 2007
PUTNAM, L.; COOREN, F. Alternative Perspective on the Role of Text and Agency in
Constituting Organizations. Organization, v.11, n.3, p.323-333, 2004
RÄMÖ, H. Doing things right and doing the right things Time and timing in
projects. International Journal of Project Management, v. 20, n. 7, p. 569-574, 2002
ROE, R. 16 Perspectives on time and the chronometric study of what happens in
24
organizations. Time in organizational research, v. 3, p. 291, 2008.
SHANNON, C. A mathematical theory of communication. Bell System Technical Journal,
v.27, p. 379-423 e 623-656, July and October, 1948
SÖDERLUND, J Building theories of project management: Past research, questions for the
future. International Journal of Project Management, v. 22, n.3, p.183–191, 2004.
TAYLOR, J. Da tecnologia na organização à organização na tecnologia (J.P. Neves e C.
Gonçalves, Trad.). Comunicaςão e Sociedade, v.12, Universidade do Minho, Portugal,
p.83-102, 2007
TAYLOR, J. Organizational communication: Is it a discipline? Dutch Journal of
Communication, v.32, n.1, p.3-10, 2004
TAYLOR, J.; COOREN, F. What makes communication 'organizational'? Journal of
Pragmatics, v.27, n.4, p.409-438, 1997
TAYLOR, J.; COOREN, F.; GIROUX, N.; ROBICHAUD, D. The communicational basis of
organization: Between the conversation and the text. Communication Theory, v.6, n.1,
pp.1-39, 1996
TAYLOR, J.; ROBICHAUD, D. Finding the organization in the communication: Discourses,
action and sensemaking. Organization, v.11, n.3, p.395-413, 2004
WINCH, G. Towards a theory of construction as production by projects. Building Research
& Information, v.34, n.2, p.154–163, 2006
WINOGRAD, T.; FLORES, F. Understanding Computers and Cognition: A new
foundation for design. Norwood, NJ: Ablex Publishing Corporation, 1986

Documentos relacionados