A Construção Social Discurso Educativo em Cabo
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A Construção Social Discurso Educativo em Cabo
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-26) Um Contributo para a História da Educação Ficha Técnica Título A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911 – 1926): Um Contributo para a História da Educação Autora Maria Adriana Sousa Carvalho Imagem da capa Escola Grande da Praia, da autoria de Konstantin O. Richeter Concepção da capa Aristides Lopes da Silva Composição Gráfica Aristides Lopes da Silva Edição Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro de Cabo Verde CP 464 – Tel. +238 2618482 Fax. +238 2618416 Praia – Cabo Verde – www.bn.cv 2007 Impressão Gráfica do Mindelo Tiragem 1000 exemplares Todos os direitos reservados Maria Adriana Sousa Carvalho A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-26) Um Contributo para a História da Educação Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro Praia 2007 Índice geral Prefácios....................................................................................................................... XV Nota de apresentação ..............................................................................................XXVII INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 1 Objecto de estudo ............................................................................................................. 2 Marco conceptual ............................................................................................................. 3 Problemática .................................................................................................................... 6 Questões metodológicas................................................................................................... 8 Fontes ............................................................................................................................. 10 I Parte UMA SOCIEDADE (IN) CONFORMADA ........................................................................ 33 1. Relações coloniais ...................................................................................................... 35 2. Cultura e língua .......................................................................................................... 45 3. A luta contra a adversidade: emigração e ensino ....................................................... 51 II Parte A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO EDUCATIVO ........................................................... 59 1. Escolarização e analfabetismo ................................................................................... 61 2. Modelação do sistema educativo ............................................................................... 81 3. Desenvolvimento institucional ................................................................................... 97 3.1. Organização pedagógica e administração ............................................................... 97 3.2. Financiamento do ensino ...................................................................................... 108 3.3. Intervenção social ................................................................................................. 116 4. Rede escolar ............................................................................................................. 127 5. Manifestações internas da cultura escolar ................................................................ 147 5.1. (In) disciplina ........................................................................................................ 148 5.2. Inovações pedagógicas.......................................................................................... 152 5.3. Artefactos e livros escolares ................................................................................. 158 5.4. Avaliação da aprendizagem .................................................................................. 169 6. Identidade profissional do docente .......................................................................... 185 7. Edificação do ensino liceal ...................................................................................... 213 7.1. O Seminário-liceu ................................................................................................. 214 7.2. Os Institutos de Instrução ...................................................................................... 222 7.3. Finalmente, o Liceu .............................................................................................. 227 CONCLUSÕES .................................................................................................................. 245 FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................................................................ 253 1. Fontes ....................................................................................................................... 255 2. Referências Bibliográficas ....................................................................................... 265 APÊNDICES ...................................................................................................................... 269 A. Análise do corpus documental.................................................................................. 271 B. Jornais e revistas ....................................................................................................... 275 C. Legislação consultada ............................................................................................... 281 D. Planos Orgânicos da Instrução Pública na Província de Cabo Verde....................... 285 Índice de quadros Quadro 1 – Peças consultadas no jornal A Voz de Cabo Verde, segundo a temática central – 1911/1919 ................................................................................................................ 14 Quadro 2 – Tipo de peças consultadas no jornal A Voz de Cabo Verde – 1911/1919 .......... 14 Quadro 3 – Peças consultadas no jornal O Independente, segundo a temática central – 1911/1913 ................................................................................................................ 15 Quadro 4 – Tipo de peças consultadas no jornal O Independente – 1911/1913 ................... 16 Quadro 5 – Peças consultadas no jornal O Progresso, segundo a temática central – 1912.. 16 Quadro 6 – Tipo de peças consultadas no jornal O Progresso – 1912 ................................. 17 Quadro 7 – Peças consultadas no jornal O Futuro de Cabo Verde, segundo a temática central – 1913/16 ..................................................................................................... 19 Quadro 8 – Tipo de peças consultadas no jornal O Futuro de Cabo Verde – 1913/1916..... 19 Quadro 9 – Peças consultadas no jornal O Popular, segundo a temática central – 1914/1915 ................................................................................................................................. 20 Quadro 10 – Tipo de peças consultadas no jornal O Popular – 1914/1915 ......................... 20 Quadro 11 – Peças consultadas no jornal O Caboverdeano, segundo a temática central – 1918 ......................................................................................................................... 21 Quadro 12 – Tipo de peças consultadas no jornal O Caboverdeano – 1918 ........................ 21 Quadro 13 – Peças consultadas no jornal O Manduco, segundo a temática central – 1923/1924 ................................................................................................................ 23 Quadro 14 – Tipo de peças consultadas no jornal O Manduco – 1923/1924 ....................... 23 Quadro 15 – Jornais consultados – 1911/24 ......................................................................... 24 Quadro 16 – Tipo de artigos analisados – 1911/1924 .......................................................... 24 Quadro 17 – Emigração para São Tomé, por níveis etários – 1913/1920 ........................... 53 Quadro 18 – Emigração forçada: número de emigrantes e relação com a população – 1910/1929 ................................................................................................................ 54 Quadro 19 – Emigração livre: número de emigrantes, segundo os territórios de destino – 1911/1920 ................................................................................................................ 55 Quadro 20 – Recenseamento escolar, concelho da Ribeira Grande – 1923/1924 ................ 66 Quadro 21 – Recenseamento escolar, ilha do Sal – 1923/1924 ............................................ 66 Quadro 22 – Frequência escolar: taxas de crescimento das matrículas, total e femininas – 1911/20 .................................................................................................................... 67 Quadro 23 – Número de alunos do ensino primário e percentagem de alunas matriculadas – 1911/1920 ................................................................................................................ 69 Quadro 24 – Número de alunos matriculados, segundo a raça – 1911/1920........................ 72 Quadro 25 – Matrículas no ensino primário e percentagem de alunos com frequência irregular – 1910/17 ............................................................................................ 73 Quadro 26 – Distribuição dos alunos com frequência irregular – 1911/1916 ...................... 74 Quadro 27 – Evolução dos alfabetizados por níveis de literacia – 1912/1920. .................... 79 Quadro 28 – Evolução do analfabetismo por concelhos/ilhas – 1912 /1920 ........................ 79 Quadro 29 – Configuração curricular da instrução primária – 1915 .................................... 83 Quadro 30 – Planos curriculares do Curso de Ensino Primário Superior (Mindelo) e do Ensino Primário Superior (Decreto de 29 de Março de 1911) ................................ 88 Quadro 31 – Movimento de alunos de «instrução secundária», Escola Primária Superior da Praia – 1918 ............................................................................................................. 91 Quadro 32 – Efectivos escolares da Escola Primária Superior de S. Nicolau – 1918 .......... 91 Quadro 33 – Planos Orgânicos da Instrução Pública na província de Cabo Verde .............. 96 Quadro 34 – Legislação educacional emanada do Governo da República ........................... 99 Quadro 35 – Constituição do Conselho de Instrução Pública ............................................ 100 Quadro 36 – Domínios de intervenção do Governo Provincial ......................................... 101 Quadro 37 – Distribuição das despesas com a instrução pública – 1912/1920 .................. 111 Quadro 38 – Conta corrente de receitas e despesas, município da Praia – 1910/1917 ....... 113 Quadro 39 – Distribuição dos rendimentos obtidos com os impostos – 1922 .................... 114 Quadro 40 – Número de alunos do ensino particular, por concelhos/ilhas – 1911/1916 ... 124 Quadro 41 – Relação de postos de ensino – 1921/1922 ..................................................... 133 Quadro 42 – O mobiliário escolar de uma “escola bem organizada” e da escola caboverdiana ................................................................................................................. 139 Quadro 43 – Punições escolares ........................................................................................ 151 Quadro 44 – Equipamentos e artefactos escolares.............................................................. 160 Quadro 45 – Lista de livros escolares – 1910/1911 ............................................................ 161 Quadro 46 – Lista de livros escolares – 1925/1926 ............................................................ 163 Quadro 47 – Remunerações e regalias dos professores da instrução primária (metrópole e colónia) ................................................................................................................. 190 Quadro 48 – Vencimentos anuais dos professores de instrução primária – 1917 .............. 195 Quadro 49 – Vencimentos anuais dos professores de instrução primária – 1917/18 ......... 195 Quadro 50 – Distribuição dos professores de instrução primária por categorias profissionais 1917/1926 .............................................................................................................. 200 Quadro 51 – Frequência escolar no Seminário-liceu de S. Nicolau – 1912/15 .................. 216 Quadro 52 – Disciplinas, classes e número de alunos do Seminário – 1912/ 1915 ............ 217 Quadro 53 – Liceu Nacional de Cabo Verde: professores e disciplinas – 1919 ................. 237 Quadro 54 – Liceu Nacional de Cabo Verde: professores e disciplinas – 1921 ................. 237 Índice de gráficos Gráfico 1 – Frequência escolar: número de alunos no ensino primário – 1910/ 1920 ......... 67 Gráfico 2 – Evolução das matrículas de alunos e alunas – 1911/1919 ................................. 68 Gráfico 3 – Repartição dos alunos, segundo a origem étnica – 1911/1920 .......................... 71 Gráfico 4 – Frequência escolar regular e irregular – 1910/1917 .......................................... 74 Gráfico 5 – Evolução da alfabetização – 1912 /1920 ........................................................... 78 Gráfico 6 – Distribuição do orçamento para a instrução pública por concelhos/ilhas – 1912/1915 .............................................................................................................. 112 Gráfico 7 – Distribuição dos subsídios atribuídos ao Fundo de Instrução – 1922 ............. 113 Gráfico 8 – Evolução dos alunos do ensino particular – 1911/1916 .................................. 124 Gráfico 9 – Distribuição das escolas primárias segundo o número de alunos – 1910/11 ... 140 Gráfico 10 – Evolução do número de escolas de instrução primária – 1911/1926 ............ 141 Gráfico 11 – Evolução das escolas primárias nas regiões de Sotavento e Barlavento – 1911/1926 .............................................................................................................. 141 Gráfico 12 – Resultados da avaliação final, 1º grau ........................................................... 181 Gráfico 13 – Resultados da avaliação final, 2º grau ........................................................... 181 Gráfico 14 – Evolução das classificações de insuficiente, 1º grau ..................................... 182 Gráfico 15 – Evolução das classificações de insuficiente, 2º grau ..................................... 182 Gráfico 16 – Salários anuais de diferentes categorias profissionais – 1912 ....................... 192 Gráfico 17 – Salários anuais de diferentes categorias profissionais – 1919 ....................... 196 Gráfico 18 – Evolução dos docentes do ensino primário – 1911/1926 .............................. 198 Gráfico 19 – Evolução das professoras do ensino primário, total e interinas – 1917/26.... 199 Gráfico 20 – Evolução dos professores interinos – 1917/1926 .......................................... 200 Gráfico 21 – Evolução dos professores normalistas – 1917 /1926 ..................................... 208 Gráfico 22 – Frequência escolar do Seminário, segundo a raça – 1912/1915 .................... 216 Gráfico 23 – Liceu Nacional de Cabo Verde: frequência escolar total e masculina – 1917/1924 .................................................................................................... 238 Índice de figuras Figura 1. O primeiro número do jornal A Voz de Cabo Verde ............................................. 12 Figura 2. Anúncio da Tipografia da “Voz de Cabo Verde”.................................................. 13 Figura 3. Cabeçalho do jornal O Manduco ........................................................................... 22 Figura 4. “Cabo Verde”, Os Lusíadas, Canto V ................................................................... 26 Figura 5. Primeiro Boletim Oficial de Cabo Verde .............................................................. 30 Figura 6. Desembarque do primeiro governador republicano em Mindelo, 1910 ................ 36 Figura 7. Eugénio Tavares e José Lopes em S. Vicente, 1927 ............................................. 47 Figura 8. “Se a América do Norte fechar os seus portos aos analfabetos” ........................... 64 Figura 9. Desenho de um aluno da instrução primária ......................................................... 86 Figura 10. Palácio do Governo, cidade da Praia, cerca de 1910......................................... 102 Figura 11. “Se a gramática não erra …” ............................................................................. 106 Figura 12. Anúncio de uma escola particular ..................................................................... 119 Figura 13. Anúncio da Escola João de Deus ...................................................................... 123 Figura 14. Postos de ensino e escolas primárias ................................................................. 130 Figura 15. Escola de S. Thiago – Cabo Verde, situada no largo do Guedes, Praia ............ 134 Figura 16. Carta escolar das ilhas Brava, S. Vicente, Sal e Maio....................................... 142 Figura 17. Carta escolar das ilhas Boavista e Fogo ............................................................ 143 Figura 18. Carta escolar das ilhas Santo Antão e S. Nicolau.............................................. 144 Figura 19. Carta escolar da ilha Santiago ........................................................................... 145 Figura 20. Página da Cartilha Maternal ............................................................................. 147 Figura 21. “O meu primeiro passeio escolar” ..................................................................... 155 Figura 22. Exercícios caligráficos ...................................................................................... 159 Figura 23. Anúncio de livros e mapas ................................................................................ 161 Figura 24. Lista de manuais escolares ............................................................................... 162 Figura 25. Um exercício de desenho .................................................................................. 166 Figura 26. Registo do acto do exame.................................................................................. 169 Figura 27. Prova escrita do exame de instrução primária do 1º grau.................................. 175 Figura 28. Prova escrita do exame de instrução primária do 2º grau.................................. 176 Figura 29. Resultados finais das provas escritas ................................................................ 178 Figura 30. Notícia de exames de instrução primária do 2º grau ......................................... 179 Figura 31. O perfil do professor de posto ........................................................................... 188 Figura 32. “Cabo Verde foi dotado de um liceu!” .............................................................. 213 Figura 33. “Vista do edifício do Seminário de Cabo-Verde” (1897) ................................. 214 Figura 34. Alunos internos e extrnos do Seminário (1895) ................................................ 215 Figura 35. Na casa do Seminário, “um colégio particular, como qualquer outro” ............. 223 Figura 36. Corpo discente do Instituto Caboverdeano de Instrução – 1925/1926 .............. 226 Figura 37. Estação Telegráfica – S. Vicente, cerca de 1910 .............................................. 235 Figura 38. Edifício onde o Liceu e os Correios foram instalados....................................... 236 Figura 39. Pedido de bolsa de estudos para o aluno Baltasar Lopes da Silva .................... 240 Siglas BN Biblioteca Nacional BO Boletim Oficial CAT Categoria conceptual CCU Contexto cultural CPO Contexto político CSE Contexto social e económico CV Cabo Verde CXª Caixa DED DG FCV IAHN Desenvolvimernto educacional Diário do Governo Futuro de Cabo Verde Instituto do Arquivo Histórico Nacional INS Insuficiente RB Raça branca RM Raça mista RP Raça preta SSE Situação do sistema educativo SUF Suficiente SUPL VCV Suplemento Voz de Cabo Verde Prefácio 1 Desde que pisou terra cabo-verdiana creio que Maria Adriana Carvalho manifestou um empenhado interesse pelos problemas de instrução pública e de educação na jovem República. Conheci-a como professora nos primeiros anos de Independência e desde logo detectei a sua sensibilidade para o carácter social da tarefa que se levantava perante o povo e os dirigentes de Cabo Verde: substituir o aparelho da educação nacional herdado do colonizador e ajustá-lo às acrescidas e complexas necessidades dos novos tempos. Entre as ex-colónias portuguesas, do mesmo modo que durante o período colonial, Cabo Verde distinguia-se pelo elevado nível cultural da sua classe média no contexto da África subsaariana. Cabo Verde dispunha de uma elite culta cujas raízes mergulhavam numa tradição continuada. Nas instituições de ensino médio e superior, no Continente europeu, não só em Lisboa como em Coimbra e no Porto, havia estudantes de Cabo Verde. Creio que o Direito, designadamente em Coimbra, absorvia parte substancial do estudantado crioulo. Creio que ainda existe na Praia uma associação dos antigos alunos da Alma Mater coimbrã. Por outro lado, sob o ponto de vista cultural, o arquipélago flagelado por secas e fomes salientava-se na literatura portuguesa neorealista pela excelência dos seus prosadores e dos seus poetas, e nela se desenrolava uma das experiências literárias mais originais de que foi expoente o movimento Claridade. A consciência de que os problemas sofridos pelo seu povo não eram apenas expressão das contingências climáticas modelava o rosto profundamente humano desta literatura em cujo chão o colonizador instalara um dos seus instrumentos de repressão do pensamento e do sonho de uma terra livre: o campo de concentração do Tarrafal. Entretanto, se a camada mais letrada da sociedade cabo-verdiana procurava o ensino até aos anos terminais do secundário, num sistema escolar socialmente marcado, transferindo-se em seguida para a Universidade portuguesa e para as escolas médias, de que a Escola de Regentes Agrícolas de Santarém era exemplo, a verdade é que ele deixara de funcionar uma vez conquistada a Independência. Imperativos sociais e pedagógicos que eram pontos fulcrais do programa da República exigiam uma revisão profunda do sistema escolar: na base de tudo a garantia do acesso de todos à educação básica, a revisão desse mesmo troço de escolaridade de modo a satisfazer as necessidades sócio-económicas do desenvolvimento e de promoção do trabalho e do emprego, a ampliação da base XV cultural de acesso ao ensino superior que deixara de ter Portugal como destinatário único e passara a diversificar-se noutros países doadores que ampliavam a oferta de bolsas de estudo no exterior. Uma das questões específicas a que era necessário dar resposta tinha a ver com a queda do ensino técnico-profissional em São Vicente, o que passava por um debate em torno da permanência ou da extinção do mesmo ramo de ensino com a feição que ele detivera em Cabo Verde durante décadas e o inegável prestígio de que gozavam os seus antigos diplomados na consciência e memória pedagógica dos que defendiam a sua permanência. Um dos aspectos relevantes que se colocavam tinha a ver com a potencial criação de novos ramos escolares de ensino secundário profissional e sua articulação com o ensino técnico do passado. Lidar com este elenco de problemas e ainda com o debate em torno da questão de saber se seria ou não adequada a criação de ensino superior em Cabo Verde foi uma das experiências mais aliciantes que me foi dado viver. O meu primeiro contacto com o sistema de ensino da República data de cerca de 1980, quando fiz parte de um grupo de trabalho que o Prof. Luís de Albuquerque, grande amigo desta terra, se encarregara de ajudar a constituir. O grupo contava com pessoas que conheciam razoavelmente o país e as suas instituições educativas, tais como o Prof. Jorge Veiga, da Universidade de Coimbra. Passámos uma semana na cidade da Praia, discutindo com altos funcionários ministeriais cabo-verdianos numa das salas de aula do Liceu, entre os quais a Dr.ª Maria Luísa Ribeiro. Sobre esse encontro, que permitia a quase todos nós a obtenção dos primeiros conhecimentos sobre o conjunto e organização das instituições educativas, passaram alguns anos, durante os quais ocorreram outras missões de avaliação promovidas por outros países e instituições, até que o governo cabo-verdiano, obtido um financiamento do Banco Africano de Desenvolvimento, teve possibilidades de realizar uma análise mais aprofundada dos novos rumos a seguir. Enquanto uma missão do Banco Mundial, liderada por Roberto Carneiro e por Pedro d’Orey, se ocupava do ensino básico, uma segunda missão, de que fiz parte, estava encarregada de reestruturar o ensino secundário. Nas várias diligências empreendidas no quadro das actividades de pesquisa e avaliação, tive ocasião de conhecer Maria Adriana Carvalho, cuja permanência em Cabo Verde determinou o seu desvio da actividade docente ao nível secundário, mas uma intervenção profissional constante ao nível da inovação e do planeamento educativos, e mais tarde ao nível do ensino superior. Sem exagero nem favor, ela tornara-se uma profunda conhecedora do sistema educativo e das suas ligações com as necessidades e exigências sociais. XVI Ao mesmo tempo, tornou-se uma profunda conhecedora da cultura popular de Cabo Verde e as suas publicações vieram comprová-lo por vezes em elegantes edições em livro. Concluída a minha participação no Projecto de reforma do sistema educativo, só eventualmente encontrava Maria Adriana Carvalho, até que tive a grata surpresa de a encontrar como aluna do Mestrado em Ciências da Educação (ramo História da Educação) que a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa assegura na Universidade de Lisboa. Mais uma vez, durante a parte académica dessa pós-graduação, tive a oportunidade de observar a persistência e organização do seu estudo e pesquisa. Quando, tempos depois, tive a surpresa de ser convidado por Maria Adriana Carvalho a orientar a elaboração da sua tese, logo verifiquei como o tema escolhido se compaginava com a sua já longa experiência pessoal como técnica de educação. O tema eleito por Maria Adriana Carvalho relacionou-se com a reconstituição crítica de um discurso educativo produzido pela sociedade cabo-verdiana entre a 1ª República e a Ditadura. Conhecedora dos materiais susceptíveis de revelarem informações relevantes sobre o sistema, Maria Adriana Carvalho firmou-se em fontes impressas e em fontes manuscritas, em especial na imprensa local durante o período em consideração no âmbito do tema. Assim, realizou uma primeira sondagem aos retratos do passado, que os arquivos conservam em silêncio e que é preciso saber interrogar. A significativa experiência pessoal da Autora no presente permite-lhe colocar ao passado as questões que ele ajuda a responder. Assim procede Maria Adriana Carvalho, começando por identificar na sociedade colonial anterior à ditadura um quadro de relações que se entretecem entre a cultura, a língua e o combate à adversidade (as estiagens e a fome): emigração e ensino, progresso social e educação, tais foram as suas grandes linhas de actividade. Este ponto introdutório do seu trabalho final de Mestrado coloca-nos perante algumas evidências explicativas do recurso à educação como ferramenta de sobrevivência. Desse modo, Maria Adriana Carvalho põe-nos diante algumas evidências explicativas do recurso à educação. Nesse espírito aborda problemas relativos ao primeiro ensino: a questão do analfabetismo e da escolarização como ponto de emergência de um sistema de ensino, o que significa a ultrapassagem da informalidade na instrução pública e a manifestação da acção e da responsabilidade do Estado relativamente às garantias do direito dos povos à educação e à cultura. A XVII educação é a arma criada pelo colonizador e pelo colonizado em ordem à sobrevivência deste relativamente ao opressor. Maria Adriana Carvalho passa em revista os diferentes graus de ensino, no sentido da sua diversificação curricular, com base nas respectivas representações e práticas: o ensino primário elementar e complementar, além do ensino primário superior. Sobre este quadro, a Autora procede a uma leitura critica da organização do sistema escolar: a administração, o financiamento e a intervenção da sociedade. Quanto às manifestações externas da cultura escolar, estudou minuciosamente a rede das escolas primárias, ao passo que nas chamadas manifestações internas dessa mesma cultura realizou a análise da disciplina, das inovações pedagógicas, do mesmo modo que os artefactos e os manuais escolares, a avaliação da aprendizagem assim como a formação identitária dos ensinantes. A terceira parte da investigação de Maria Adriana Carvalho foi consagrada ao ensino secundário. Semelhante estudo abrangeu uma série de grandes temas: - Do Seminário-Liceu ao Instituto Caboverdeano de Instrução; - A implantação do Liceu de São Vicente: O Liceu Nacional de Cabo Verde. Em ambos os casos, perante a consciência sócio-cultural do cabo-verdiano, tratava-se de um imperativo de Soberania A investigação de Maria Adriana Carvalho foi coroada de êxito. Ela distingue-se pela riqueza da informação obtida em primeira mão e pela organização do texto que suporta a narrativa. Ao contrário do que seria de supor, a narrativa de reconstrução, nas mãos da Autora, não se compagina com uma gesta retórica de progresso, no seguimento do positivismo histórico oitocentista que derivou de Augusto Comte1. Ela é cautelosa na avaliação dos progressos e não se deixa prender pela paixão de um progresso rectilíneo e invariável. Pelo contrário, é uma observadora atenta e crítica do curso enleante da história da instrução e da educação públicas, nas suas continuidades e descontinuidades, nos seus avanços e recuos. Desse modo, Maria Adriana Carvalho mostrou-se à altura das tarefas de investigação científica inerentes à escolha do seu tema, fortemente instigada pela sua experiência de professora e técnica de ensino e pela consciência de que a 1 Não confundir, de qualquer modo, positivismo e positividade, como recomendava nos bancos da Faculdade de Letras de Lisboa o meu falecido mestre Vieira de Almeida. O positivismo passara como doutrina mas a positividade era uma atitude de espírito que se mantinha viva. XVIII formação não decorre num deserto social; senão que, pelo contrário, na convivialidade física e espiritual do homem com os outros homens. A educação e a instrução constituem, por isso, uma aventura humana que devemos acompanhar em toda a extensão e profundidade. O trabalho que vamos ler foi elaborado com rigor e honestidade. A Autora procura comprovar as suas afirmações mercê do recurso à administração da prova, o que, a seu turno, exige uma pesquisa criteriosa e fina, acompanhada de um equilibrado senso crítico. O valor desta realização de Maria Adriana Carvalho não decorre somente da comprovação de que o passado contribui para a compreensão do presente e para o desenho do futuro: decorre também da comprovação de que a demonstração nas ciências humanas tem regras diferentes da demonstração nas ciências duras, sem que, por esse traço, a liberdade de opinião se confunda com a opinião livre. Nas ciências humanas e sociais o investigador cinge-se à crítica dos materiais empíricos para deles extrair o significado das acções e dos pensamentos de quem no antecedeu. As felicitações a endereçar a Maria Adriana Carvalho duplicam aquelas que lhe enderecei no dia da discussão da sua tese de mestrado e no novo compromisso que mutuamente assumimos de repetirmos a nossa experiência de orientação em nova jornada. Rogério Fernandes Lisboa, 1 de Março de 2007 XIX Prefácio 2 Geralmente supõe-se, e nem sempre sem fundamento, que o produto de uma pesquisa levada a cabo com a finalidade de obtenção do grau académico de mestrado ou doutoramento, tem como propósito natural ser um documento dirigido apenas a um determinado público. A nossa representação mental do texto constitui, frequentemente, uma sequência de conceitos teóricos, seguida de um discurso hermético, praticamente codificado e extraordinariamente complexo, cuja leitura, mais que um prazer é um acto necessário para os especialistas da matéria em questão. Mas no caso da presente obra, a Autora surpreende-nos porque, respeitando escrupulosamente os princípios científicos e metodológicos que norteiam um trabalho desta natureza, apresenta-nos um texto duma lisura admirável, que nos cativa e prende e onde somos literalmente levados pela mão, a vivenciar e partilhar com as personagens da época, as preocupações e representações individuais e colectivas sobre a situação, o papel e o significado da educação. A obra focaliza um momento extremamente importante na evolução da nação cabo-verdiana, que ao mesmo tempo que suporta uma profunda crise económica, exteriorizada no binómio seca/fome, está imersa na construção duma nova estruturação social e familiar pós – esclavagista, que no que respeita à educação, está simbolicamente marcada pela passagem de um modelo educativo próprio duma sociedade escravizada, para um modelo, que a sociedade quer obrigatório e que deseja se constitua num factor de progresso social e económico. De uma forma hábil e amena, este trabalho apresenta questões complexas, tais como a convergência de factores determinantes para o desenvolvimento de sentimentos de pertença e de atitudes de intervenção, que ficam patentes na ingerência activa da nossa intelectualidade nos assuntos que dizem respeito ao futuro da nação e da educação. Se a independência é olhada como uma quimera, o direito à igualdade com os cidadãos da metrópole reivindicado, tendo como justificativa o ascendente cultural particular do cabo-verdiano, é um facto assumido. Ao mesmo tempo, mostra a face das autoridades portuguesas, que confrontadas com as contradições inerentes entre a sua condição de colonizadores e o ideal humanista republicano, optam por uma remodelação cautelosa, onde os conteúdos XXI não levam em consideração as particularidades do arquipélago e a organização e configuração do sistema e da rede não satisfazem as aspirações dos cabo-verdianos. A apresentação de um panorama sócio político abrangente, profusamente ilustrado com recurso ao discurso e a produção dos diferentes actores sociais da época, lhe permitem apresentar os elementos que confluem para a construção social do discurso educativo, com o rigor e a isenção inerentes à profissão de historiadora. A sensibilidade e a cientificidade como pedagoga, manifestam-se ao colocar-nos perante as representações sociais de questões tão relevantes como o papel da educação, o status social do corpo docente, ou as práticas educativas, particularmente as de ensino aprendizagem que privilegiam a memorização em detrimento da reflexão, a forma de exercício da disciplina, os mecanismos de avaliação e a organização da sala. Além do contributo fundamental, para a construção da história da educação no país, tendo em conta o estado da produção cientifica cabo-verdiana actual, a obra apresenta-se como uma reflexão particularmente fecunda e bem sucedida, que convida a novos estudos, porque descortina novas e estimulantes perspectivas de trabalho. A título de exemplo, mencionemos a possibilidade de nos situar numa perspectiva histórica mais ampla, intimamente relacionada com o pensamento humanista republicano da época de preocupação com o acesso à educação de rapazes e raparigas, revelada na forma de recolha e apresentação dos dados estatísticos, e que certamente, constituirá uma referência para estudos especializados na área de género. Uma outra vertente interessante a explorar é a ilustração duma situação, geralmente escamoteada até agora nos estudos sobre a sociedade cabo-verdiana – o factor raça como elemento pertinente ou relevante nas análises sociais. Igualmente, os estudiosos dos processos de descentralização e das questões relacionadas com a evolução na forma de encarar a língua cabo-verdiana, encontrarão importantes referenciais. Esta pesquisa, que supre uma lacuna importante em matéria de sistematização histórica do percurso cabo-verdiano, que estende uma ponte entre a sociedade imediatamente pós – escravocrata do último quartel do século XIX e o movimento “Claridoso” do segundo quartel do século XX, ao não segregar os múltiplos XXII aspectos que confluem para a construção da consciência colectiva, pode suscitar inquietação, pois aflora questões sagradas, difíceis de questionar no nosso inconsciente colectivo, tais como o sentimento de cabo-verdianidade e seu entrelaçamento com assuntos como raça, classe social e língua. A presente obra está consubstanciada por uma sólida base teórica conceptual, mas a sua qualidade e o seu brilho intrínseco, creditam por si mesma, a presente publicação. Maritza Rosabal Praia, 18 de Março de 2007 XXIII XXIV Dedico este livro ao Ildo Augusto, Ana e Pedro XXV XXVI Nota de apresentação Este livro é uma versão da dissertação de Mestrado em Ciências da Educação (área de especialização em História da Educação), na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, da Universidade de Lisboa. Em múltiplas revisões procedi a alterações do texto, com o fito de o tornar menos árido para eventuais leitores, aligeirando as marcas formais dos trabalhos académicos2. A inevitável deformação do meu percurso académico conduz, invariavelmente, à tentação de contar a história de actos que transcendem o quotidiano. Este livro tem uma curta história, que não resisto contar. Como confesso na “Introdução”, a investigação, que conduziu ao presente trabalho, surgiu em resposta ao desencanto e cansaço com os resultados (ou melhor, os não resultados) de uma pesquisa inicial sobre “a história da educação em Cabo Verde”, intuitiva e sem suporte académico. O reconhecimento de inesperadas limitações – na convicção enganosa das virtualidades da minha experiência de muitos anos – motivou a candidatura a um curso de Mestrado, na Universidade de Lisboa. Fui seleccionada e, durante dois anos, vivi entre Praia e Lisboa, entre afectos, estudo e obrigações profissionais. Na Faculdade, sendo a mais “nova” da turma, reencontrei a solidariedade das/os jovens, a partilha da convivência universitária e uma imensa ajuda das/os colegas que guardavam apontamentos, bibliografia, textos (aquando das minhas escapadelas a casa) e esclareciam muitas dúvidas. Encontrei uma tríade admirável de mestres: Professor Rogério Fernandes (meu ilustre orientador de tese), Professor Justino de Magalhães e Professor Jorge do Ó. A bolsa de estudos, concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian, deu o indispensável suporte material. Desta conjuntura favorável resultou a dissertação A construção social do discurso educativo em Cabo Verde (1911-26), defendida nos idos de Fevereiro de 2004. A generosidade de um amigo – refiro-me a Manuel Brito Semedo – incitou-me à candidatura, com a presente tese, ao Grande Prémio Cidade Velha (seríamos concorrentes). Mais um desfecho favorável: dividimos, ex aequo, a menção honrosa por uma obra – não resisto à imodéstia – que “empresta valência científica à cultura 2 Reduzi o número de gráficos, de tabelas, notas de rodapé e anexos. Traduzi as citações, originalmente, em francês e inglês. Nos documentos transcritos conservei a grafia original. XXVII cabo-verdiana3”. Tamanha vaidade levou-me a retirar o estudo do isolamento e da poeira da estante e procurar divulgá-lo. Se esta história teve mais um final feliz, deve-se ao Presidente do Instituto da Biblioteca Nacional, que, desde a primeira hora acreditou no projecto e aceitou o desafio da publicação da obra. Bem-haja! Agradecimentos Foi um privilégio ter sido aluna de Rogério Fernandes. O livro que aqui se traz a público existe graças à esclarecida orientação científica e ao permanente estímulo e encorajamento do Professor. As sessões de orientação foram ocasiões únicas de aprendizagem e de debate com um historiador crítico, de vasta cultura humanista, fino trato e uma generosidade sem limites. Presto o meu público reconhecimento à Fundação Calouste Gulbenkian pela bolsa de estudos que me atribuiu e pelo apoio financeiro à edição do livro. Ao Professor Doutor Eduardo Marçal Grilo, Doutor Manuel Carmelo Rosa e Doutora Margarida Abecassis a minha gratidão. Os meus agradecimentos à Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, pelas facilidades concedidas para a realização do trabalho e apoio à edição do livro. Estou muito grata à Doutora Ondina Ferreira pela leitura atenta e paciente revisão do texto. O último agradecimento à colega e amiga Maritza Rosabal pelo gosto em discutirmos, crítica e abertamente, as coisa da educação de hoje e do passado. Roteiro da escrita O livro A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-26), que subtitulei Um Contributo para a História da Educação, está organizado em duas partes e dez capítulos. A Introdução anuncia o Objecto de Estudo e contém o Marco Conceptual, a Problemática e as Questões Metodológicas. Fecha com a inventariação das Fontes. A I parte, intitulada Uma Sociedade (In) conformada, abre com um capítulo dedicado às Relações Colónias (1). O capítulo seguinte (2) incide no estudo da 3 In diploma da concessão da menção honrosa, 18 de Outubro de 2005. XXVIII Cultura e da Língua e o último (3), focaliza a Luta contra a Adversidade: Emigração e Ensino. A II parte da tese, a mais extensa, designa-se A Construção do Discurso Educativo. Iniciada pelo estudo da Escolarização e Analfabetismo (1), apresenta o processo de Modelação do Sistema Educativo (2) e o Desenvolvimento Institucional. A cultura escolar é captada nas suas manifestações externas – a Rede Escolar (4) e nas internas: a Disciplina, as Inovações Pedagógicas, os Artefactos Escolares e a Avaliação da Aprendizagem (5). Seguidamente, a Identidade Profissional dos Professores (6). O capítulo final (7) incide na problemática da Edificação do Ensino Liceal. As Conclusões estabelecem pontes entre a problemática e as hipóteses, entendidas como pistas para futuros alargamentos da investigação. O aparato crítico é integrado pelas Fontes e Referências Bibliográficas. A tese fecha com um conjunto de Apêndices, com informações complementares ao processo heurístico e documentação considerada relevante para o conhecimento do sistema educacional cabo-verdiano. Praia, 17 de Março de 2007 Maria Adriana Sousa Carvalho XXIX ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Introdução “Cumpre, pois, irmão, o dever iniludível de exercer os teus direitos políticos, de mandar à escola os teus filhos, do trabalhador enveredando para o campo que a moderna orientação abre, como uma Canaam, sob os passos dos luctadores. Educa-te; une-te; disciplina-te.” (Eugénio Tavares, 1910, p. 12) “Art. 4º Direitos e deveres da educação: 1. Todo o cidadão tem o direito e o dever da educação. 2. A família, as comunidades e as autarquias locais têm o direito e o dever de participarem nas diversas acções de promoção e realização da educação. Art. 5º Objectivos e princípios gerais do Sistema Educativo: (…) 4. A educação deve contribuir para salvaguardar a identidade cultural, como suporte da consciência e da dignidade nacionais e factor estimulante do desenvolvimento harmonioso da sociedade.” (Lei de Bases do Sistema Educativo de Cabo Verde, 19901) O percurso de vida em Cabo Verde, pessoal e profissionalmente comprometido com o ensino (do básico ao superior), articulado com a formação académica em História, suscitou em nós a curiosidade pelo caminho percorrido entre o apelo do poeta Eugénio Tavares pela educação, enquanto direito político (1910) e a sua consagração, como direito e dever de todo o cidadão, volvidos oitenta anos (1990). A curiosidade conduziu a uma pesquisa intuitiva e sem projecto, com a pretensão de encontrar a verdade objectiva nos arquivos e, assim, reconstituir a história da educação de Cabo Verde até ao dealbar da independência. A ilusão da objectividade, o desencanto com as respostas obtidas e a perspectiva de uma interminável pesquisa – para a legitimação de juízos definidos (e quiçá definitivos) – despertaram a consciência de sérias limitações teóricas e metodológicas. Pedimos ajuda. A ajuda veio sob a forma do curso de Mestrado em Ciências da Educação, especialização em História da Educação, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, da Universidade de Lisboa. A leitura de obras de referência nos campos da Nova História e da Sociologia, desencadeou um renovado interesse pela História da Educação, situada na intercepção dos campos científico e metodológico da História e das Ciências da 1 Lei n.º 103/III/90, 29 de Dezembro de 1990. Supl. ao Boletim Oficial n.º 52, pp. 21-22. 1 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Educação, provocando – pouco a pouco – uma abertura a abordagens diversificadas a novos campos epistémicos, mas convergentes com a temática que continuava a preocupar-nos. Neste percurso desenrolou-se uma progressiva ruptura com preconceitos e ideias feitas num processo, ainda, não concluído. O plano de investigação foi norteado pela asserção de Gaston Bachelard, que resumiu o processo científico em três actos: “conquistado sobre os preconceitos; construído pela razão; verificado pelos factos” (Quivy & Campenhoudt, 1998, p. 25). O interesse pelo tema tornou-se pessoal e quase compulsivo. “Na medida em que toda a investigação tem a sua própria finalidade, deve alimentarse de uma curiosidade sempre renovada. Este aspecto obsessivo dificilmente poupa um investimento pessoal, quase afectivo. O historiador é um necrófago, ou pelo menos, um necrófilo: a exigência da história nasce, frequentemente, de uma morte, ou de uma ruptura. Tenta-se aceitar esta ruptura, se a vivemos mal, ou simplesmente, viramo-nos para a história para melhor compreender o que se passa hoje: como se passou antes? A partir de quando houve mudanças?” (Compère, 1995, p.89) Objecto de estudo O campo de estudo, o ensino colonial, inscreve-se na “listagem de temáticas que podem contribuir para uma renovação dos estudos histórico-educativos” (Nóvoa, 1994, p. 164). Segundo António Nóvoa, “a historiografia portuguesa da educação pode encontrar neste campo [estudos comparados] um importante ponto de expansão e de renovação das suas práticas, nomeadamente por via de uma referência ao espaço europeu, de uma cooperação no espaço latino-americano e de uma ligação às realidades dos países africanos de expressão portuguesa” (1993, p. 18). Para a delimitação do objecto de estudo e do campo de análise tivemos em linha de conta “o reconhecimento de que a educação não decorre, nem decorreu nunca num deserto social”: “Pelo contrário, assim no presente como no passado, ela situa-se na intercepção de factos histórico-sociais de diferente natureza. Deste modo, a História da Educação definiu-se pelo seu carácter de História Social, procurando na contextualização dos factos educativos e pedagógicos a explicação da sua génese e do respectivo processo evolutivo. Desse modo, ainda que se trate da história das ideias ou das correntes pedagógicas, ainda que o alvo seja a vida e a produção ideológica dos pedagogos, a explicação terá de ser procurada noutra zona da realidade que não na própria Pedagogia.” (Fernandes, 2004b, p. 796) 2 Introdução Foi no campo da História Social e na confluência de motivações subjectivas e de actualidade, que estabelecemos a temática: A construção social do discurso educativo em Cabo Verde. O aparente confronto entre o humanismo do projecto republicano2 e a situação de dominação vivida na colónia, foi decisivo para o estabelecimento do arco temporal do estudo, de 1911 a 1926. O discurso pedagógico republicano depositava desmedida confiança no progresso social, atribuindo à educação e à escola um papel decisivo na consecução das novas metas estabelecidas (Fernandes, 2004c, p. 596). A compreensão do processo de transferência do discurso pedagógico republicano para a colónia constituiu um desafio. Reflectir sobre a acção educativa – ideias pedagógicas, práticas e representações discursivas – percepcionada pela sociedade islena, na situação de submissão colonial e reconstituir as realidades vividas, enquanto construções históricas de actores individuais e colectivos, são os objectivos do presente estudo. Marco conceptual A investigação foi iniciada pela leitura da bibliografia de referência, em vários domínios das Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, Etnologia, História da Educação), que se articulam, de forma interdisciplinar, com a História. A apropriação teórica, mediante leituras, debates e reflexões, contribuiu para o aprofundamento de conhecimentos sobre o objecto de estudo e para a orientação metodológica. Após o caos original3, num acervo de propostas teóricas e de conceitos, por vezes contraditórios, procedemos ao levantamento de princípios especulativos gerais e diferentes abordagens e problematizações, relacionados com a temática. A fase seguinte consistiu na selecção de conceitos, que se foram relacionando entre si e forneceram os parâmetros para o desenvolvimento da investigação. 2 “Educação interessada na criação e consolidação de uma nova maneira de ser português, capaz de expurgar a Nação de quantos males a tinham mantido, arredada do progresso europeu, sem força, sem coragem, sem meios para sacudir de si a sonolência em que mergulhara.” (Carvalho, 2001, p. 651) 3 Conceito utilizado por Raymond Quivy e Luc Van Campenhoudt no subtítulo do capítulo “Problemas de método (o caos original... ou três maneiras de começar mal)” do Manual de investigação em Ciências Sociais: trajectos (1998, p. 44). 3 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) História social A intenção de recuperar a memória educativa de Cabo Verde, em inícios do século XX, teve como cenário de fundo “a história [definida] como o inventário explicativo, não dos homens nem das sociedades, mas do que há de social no homem, ou mais precisamente das diferenças que apresenta este aspecto social” (Veyne, 1989, p. 6). A história assume-se como uma epistemologia que elabora processos de construção social das acções humanas, reportando-os a quadros espacio-temporais determinados: Cabo Verde, no período de 1911 a 1926. Construção social Situamo-nos no “novo espaço de questões e de problemas”, o construtivismo social, uma vez que a realidade tende a ser apreendida como construída (e não como «natural» ou «dada» de uma vez por todas)” (Corcuff, 1995, p. 8). Para Philippe Corcuff “se as perspectivas construtivistas, tal como as entendemos aqui, supõem um momento de des-construção – quer dizer, de interrogação do que se apresenta como «dado», «natural», «intemporal», «necessário» e/ou «homogéneo» – elas exigem de seguida investigações sobre os processos de construção da realidade social (momento de reconstrução)” (idem, p. 24). Reprodução escolar Ao analisar a realidade educativa, recorremos ao paradigma centrado no conceito de produção simbólica como instrumento de dominação e de reprodução social. Pierre Bourdieu estabelece a distinção entre capital económico, social e cultural e considera que a posse do capital cultural confere aos jovens, que acedem ao sistema escolar, grandes probabilidades de obterem um título de prestígio, que lhes dará acesso a boas posições sociais e profissionais. A escola tem, assim, funções de ratificação, justificação e integração: “A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindoos das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções.” (1989, pp. 10-11) 4 Introdução Nesta perspectiva, os sistemas educativos perpetuam e consolidam as organizações hierárquicas da sociedade onde se inserem, através de mecanismos de reprodução escolar. “Escola, demónio de Maxwell4? (...) Maxwell imagina um demónio que, entre as partículas em movimento mais ou menos quentes, ou seja, mais ou menos rápidas, que se lhe apresentam, opera uma triagem, enviando as mais rápidas para um recipiente, cuja temperatura aumenta, e as mais lentas para outro, cuja temperatura baixa. Fazendo-o, mantém a diferença, a ordem, que, de outro modo, tenderia a ser aniquilada. O sistema escolar age à maneira do demónio de Maxwell: ao preço do dispêndio de energia que é necessário para realizar a operação de triagem, mantém a ordem preexistente, quer dizer, a distância entre os alunos dotados de quantidades desiguais de capital cultural. Mais precisamente, através de toda uma série de operações de selecção, separa os detentores do capital cultural herdado dos que são desprovidos dele. Sendo as diferentes aptidões inseparáveis de diferenças sociais segundo o capital herdado, tende, desse modo, a manter as diferenças sociais preexistentes.” (Bourdieu, 1989, p. 22) Em contextos de dominação colonial, a escola exerceu, por excelência, estas funções, constituindo-se caixa de ressonância do poder dominante. O conceito de reprodução social encontra-se vinculado à teoria da legitimação da ideologia, como domínio simbólico. Poder A tomada em consideração da dimensão simbólica da realidade social tem consequências sobre a maneira de pensar as relações de dominação (assimetria de recursos) entre indivíduos e grupos. É neste âmbito que emerge a noção de violência simbólica (Corcuff, 1995, p. 44). “As diversas formas de dominação, a menos que se recorra exclusiva e continuamente à força bruta (que, aliás, supõe, ela própria uma dimensão simbólica, visto que é apercebida e se expressa de uma certa maneira), devem ser legitimadas, reconhecidas como legítimas, isto é, devem revestir-se de um sentido positivo ou, em todo o caso, devem tornar-se «naturais», de maneira que os próprios dominados adiram à ordem dominante, desconhecendo os seus mecanismos e o seu carácter arbitrário (não natural, não necessário, portanto histórico e transformável). É este duplo processo de reconhecimento e de desconhecimento que constitui o princípio da violência simbólica e por isso da legitimação das diversas dominações.” (Bourdieu, 1977, citado em Corcuff, 1995, p. 44) 4 Para explicar os mecanismos de reprodução escolar, Pierre Bourdieu evoca a imagem empregada pelo físico Maxwell para fazer compreender como podia ficar em suspenso a eficácia da segunda lei da Termodinâmica. 5 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Michel Foucault reformulou o velho axioma iluminista, “o conhecimento exerce poder, sublinhando que o poder produz conhecimento” (Nóvoa, 1996, p. 39). A educação colonial consagrou o princípio que “para dominar era preciso acumular informações, para poder tornava-se imprescindível saber” (Gomes, 1996, p. 154). Assimilação Constituiu o fundamento ideológico da educação colonial, ancorada em três vectores: a mestiçagem biológica, a catequização e a aculturação linguística. Segundo Gaston Mialaret e Jean Vial, “Nos países onde preexistia uma cultura escrita e uma certa transmissão institucionalizada desta cultura, foram quase sempre tentados compromissos, empiricamente; mas a aculturação do país explorador e, portanto, o esbulho cultural, predominaram sempre muito, considerada a finalidade prosseguida. Na ausência de tais tradições, o favor acordado em escolarizar uma pequena parte da população tomava um aspecto ainda maior.” (s. d., p. 103) Na época colonial, os conceitos assimilação e aculturação foram legitimados pelas Ciências Humanas, que “participam na construção desta imagem e a autenticam, creditando a noção de hierarquia entre os indivíduos e os povos” e pelo “ensino, [que] pela sua própria existência e pelo desenvolvimento relativo que conheceu, é apresentado como o resultado mais aceitável e mais promissor do empreendimento colonial, pelas ideias que difunde” (Léon, 1991, p. 37). Problemática Para Paul Veyne “a história apenas existe em relação às perguntas que lhe fazemos”. Acrescenta que “materialmente, a história escreve-se com factos; formalmente, com problemáticas e conceitos” e, consequentemente, “o historiador é implicitamente um filósofo, pois que decide sobre o que se considera antropologicamente interessante” (1989, p. 6). Porém, Popkewitze (1991) adverte que “a recusa de uma teleologia da história obriga-nos a aceitar que nada pode ser conhecido de forma segura” e considera que “é preciso considerar a história como uma epistemologia social que interroga as relações entre o poder e o saber a partir da sua localização num espaço e tempo precisos” (citado em Nóvoa, 1998, p. 19). O quadro teórico conduziu ao seguinte modelo de análise: partimos de questões concretas e de possibilidades teóricas, que foram modelando e delimitando o 6 Introdução objecto de estudo e o campo de análise, ao longo da investigação, por aproximações e verificações sucessivas. Partindo do conhecimento do estádio actual da educação cabo-verdiana, formulámos perguntas: Como se processou a génese da educação em Cabo Verde? Como foi percepcionada a educação, pela sociedade cabo-verdiana, num contexto de dominação colonial? Como é que o discurso educativo, durante o período republicano, absorveu e sintetizou valores tão contraditórios, como os da solidariedade e da subjugação? A problemática foi construída a partir das três questões. As respostas testadas por hipóteses, reformuladas ao longo da investigação, constituem interpretações antecipadas e provisórias. No decurso do processo heurístico inventariámos as seguintes hipóteses analíticas: A construção do discurso educativo, no arquipélago de Cabo Verde, correspondeu a uma vontade social de desenvolvimento, assente na valência da educação como fonte do progresso. Os pressupostos redentores e utópicos da educação republicana não se traduziram em medidas educativas capazes de romper com a inércia administrativa e a distância (física e burocrática), que separavam a colónia da metrópole. A imprensa foi a imago mundi da afirmação de valores integradores da identidade cabo-verdiana: a apetência pelo conhecimento e a vontade de autonomia. A resposta às adversidades naturais – seca e fome – e à governação colonial – dominação e ineficácia – foi procurada por duas vias libertadoras: a emigração e o ensino. A escola cabo-verdiana exerceu as funções de ratificação, justificação e integração da ideologia e cultura dominantes (modelação do escolar colonizado à imagem-ideal do colonizador). O sistema escolar assumiu a função de legitimação das diferenças sociais, sob clivagens discriminatórias: classe, género, língua, raça, origem (rural/urbano; colónia/metrópole). 7 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A substituição do ensino secundário religioso pelo ensino secundário laico inscreveu-se num contexto de disputa da liderança regional, protagonizada pela elite cabo-verdiana, que exercia o controlo económico, social e cultural. Apesar da isonomia dos sistemas educativos (português e cabo-verdiano) surge – de forma incipiente, mas firme – um discurso portador da vontade da diferença, que não conseguiu forjar uma cultura escolar, marcada por práticas e saberes genuínos. Esperamos que o exercício de reconstrução do discurso educativo, na colónia de Cabo Verde (1911 a 1926), proporcione respostas, ainda que provisórias, ao questionamento inicial. Questões metodológicas “A familiaridade que temos com o passado é como aquela que temos com os nossos avós; não existem em carne e osso, de modo que os dias passam e não pensamos nunca que a sua biografia, que ignoramos quase inteiramente, é povoada de acontecimentos tão apaixonantes como a nossa e não se reconstrói à risca. A ciência é inacabada de jure, só a história pode permitir-se ser lacunar de facto: porque não é um tecido, não tem trama.” (Paul Veyne, 1983, p. 28) Paul Veyne defende que “qualquer historiografia depende, por um lado, da problemática que levantar, por outro, dos documentos de que dispuser” (1989, pp. 10-11). A natureza da problemática da presente investigação condicionou as regras da metodologia. O modelo adoptado situa-se, essencialmente, no campo da investigação qualitativa e da abertura interdisciplinar, a partir de uma lógica interpretativa assente na análise dos materiais empíricos disponíveis. Utilizámos também técnicas quantitativas de análise, nomeadamente a interpretação de dados estatísticos. A organização de uma estratégia de pesquisa foi norteada pela pergunta: que fontes de informação estão potencialmente disponíveis e são adequadas ao objecto de estudo? 8 Introdução Após uma prospecção nos arquivos em Cabo Verde5 e na Biblioteca Nacional de Lisboa, elegemos a imprensa cabo-verdiana e portuguesa (temática colonial), como fonte primordial, por constituir um corpus documental portador de testemunhos vivos do processo de socialização do discurso educativo. As fontes legislativas, condensados no Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, desvendaram a lógica da administração e as representações formais e simbólicas do sistema escolar. Captámos a ambiência cultural e o pulsar das relações coloniais em livros e opúsculos coetâneos. Acedemos às manifestações comportamentais – práticas quotidianas, tensões e conflitos – em fontes primárias, no Instituto do Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde ("Secretaria Geral (1803-1927): repertório numérico simples do Fundo Arquivístico", 1998). Seguiu-se a organização do acervo documental, considerado adequado à temática da dissertação e a validação das hipóteses formuladas, segundo uma perspectiva pessoal, inevitavelmente, subjectiva. A documentação foi ordenada em categorias conceptuais (contexto, sistema escolar e desenvolvimento educacional), cujas significações dependem de relações com categorias menores ou subcategorias (cf. modelos de tabelas analíticas, em formato Excel 6). Estamos conscientes que, em muitos casos, fizemos interpretações de interpretações, dada a prevalência de fontes secundárias. Esta uma das limitações do nosso trabalho. Marie-Madeleine Compère adverte: “A crítica histórica, desde a sua origem, considera uma hierarquia de fontes, no fundo das quais estão os documentos «de segunda mão», nos quais os factos são relatados, logo agenciados, por um primeiro leitor «de primeira mão», que esteve em contacto com as fontes” (1995, p. 80). O processo heurístico foi, ainda, pautado pelo paradigma da Nova História, que vira a sua atenção para as práticas discursivas e para a questão da intertextualidade: “A relação do texto com o real (que pode talvez definir-se como aquilo que o próprio texto apresenta como real, construindo-o como um referente situado no seu exterior) constrói-se segundo modelos discursivos e delimitações intelectuais próprias de cada situação escrita. (…) O que nos leva, em seguida, a considerar que os ‘materiaisdocumentos’ obedecem também a processos de construção onde se investem conceitos e obsessões dos seus produtores e onde se estabelecem as regras da escrita próprias do género de que emana o texto. São essas categorias de pensamento e esses princípios de 5 Além do Instituto do Arquivo Histórico Nacional, visitámos o arquivo do Liceu Ludgero Lima, em Mindelo e um núcleo documental – armazenado num cubículo fechado – no edifício da “Escola Grande”, na Praia. Porém o estado de elevada degradação dos referidos arquivos impossibilitou a consulta documental. 6 Consultar apêndice A. 9 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) escrita que é necessário actualizar antes de qualquer leitura ‘positiva’ do documento. O real assume assim um novo sentido.” (Chartier, 1988, pp. 62-63) Apesar da abundância de informações recolhidas – de per si sintoma do interesse da sociedade pela educação –, sentimos a presença de factos e de situações silenciados, o que relativizou muitas das interpretações que ousamos formular. Rogério Fernandes alertou-nos para estas limitações e para a complexidade do ofício de aprendiz de historiador, ao considerar que: “Os conteúdos da cultura escolar traduzem-se pelos objectivos proclamados nos planos de estudo, ou seja, nas disciplinas, assim como pelas actividades e saberes académicos propostos ou exigidos, pelas práticas educativas instauradas, pelos materiais didácticos adoptados, pelos normativos reguladores das acções, pelas modalidades administrativas e gestionárias. Traduzem-se também pelas ausências e silêncios, isto é pelos saberes excluídos ou que passam a estar nessa condição.” (Citado em Proença, 1998, p. 24) Neste sentido, ao pretendermos recuperar o discurso educativo (nas linhas e entrelinhas) e questionar as histórias da história, as ausências e os silêncios, esperamos contribuir para a preservação e divulgação de testemunhos da memória (i)material de Cabo Verde. Fontes A inteligibilidade da narrativa histórica depende da confluência de fontes primárias e secundárias, impressas e manuscritas. A intertextualidade das fontes permitiu o contraponto entre a lógica do poder, as práticas educativas e as representações simbólicas, filtrados pelo senso comum, que perpassavam na imprensa e nos registos produzidos nas escolas, secretarias, municípios e na sociedade. No diálogo com as fontes apropriámo-nos de projectos, utopias e jogos de poder. Na senda de explicações apercebemo-nos da compartimentação redutora e rígida das antinomias: oficial-privado, autoridade-submissão, professor-aluno, ordemdesordem, disciplina-indisciplina, colonizador-colonizado, eu-outro. A progressão na diagnose da realidade educativa foi proporcional ao crescendo da problematização e da ilusão de apurar a verdade e atingir a objectividade. Conscientes das restrições, impostas pelas fontes, a nossa ambição limitou-se ao mapeamento da realidade educativa e ao estabelecimento de uma genealogia da educação, em Cabo Verde, no dealbar do século XX. 10 Introdução A imprensa cabo-verdiana A imprensa cabo-verdiana nasceu no dia 1 de Outubro de 18777, com a publicação, na Praia, do jornal Independente, que se apresentava como um “jornal político, literário e comercial, dedicado aos interesses da província de Cabo Verde” (Oliveira, 1998, p. 122). Segundo João Nobre de Oliveira, “a história da imprensa em Cabo Verde parece caracterizar-se pela existência de períodos de letargia separados por outros períodos de intensa actividade jornalística” (idem, p. 22). O nosso estudo incide numa quadra de intensa actividade jornalística, caracterizada pelo aumento do número de jornais e pela expansão da actividade editorial às ilhas de Santiago, Fogo, Brava e S. Vicente. Uma das principais preocupações da República foi libertar a imprensa periódica das peias legais que a limitavam, reconduzindo-a a situação idêntica à dos melhores tempos do constitucionalismo (Tengarrinha, 1965, pp. 259-260). O Decreto de 28 de Outubro de 1910 regulamentou o exercício do direito de liberdade de imprensa: “Regula-se pelas disposições deste decreto o direito de expressão de pensamento pela imprensa, cujo exercício é livre, independente de caução, censura ou autorização prévia, entendendo-se por imprensa qualquer forma de publicação graphica e por imprensa periodica ou periodicos quaesqueres publicações que não tratem exclusivamente de assuntos scientificos, literarios, artisticos ou religiosos, cuja distribuição se faça em periodos determinados de tempo ou em series de exemplares ou fasciculos.” (Art. 1º, Diário do Governo, n.º 21, 29 de Outubro de 1910, p. 28)8 7 No dia 24 de Agosto de 1842, tinha sido impresso o primeiro número do Boletim Oficial do Governo de Cabo Verde, na ilha da Boavista. Guilherme Dantas, bibliotecário e jornalista considerava “De todas as possessões portuguesas, duma certa classe, é Cabo Verde a única que ainda não possui uma publicação literária e periódica... O Boletim – acrescentou – pelo exíguo do seu formato, pela sua mesma índole, não comporta nem longos e sucessivos artigos, nem dissertações sobre todas as matérias, nem artigos de recreio para o público, tais como romances, folhetins, etc. Ora, tudo isto se poderia reunir numa publicação mensal” (1998, p. 22). 8 No jornal O Popular defendia-se a aplicação deste decreto a Cabo Verde, com adaptações: “Ora em tal caso, uma das prinicipaes alterações a introduzir no decreto de 28 de Outubro de 1910 é a supressão do seu art.º 28º, não porque se condene o julgamento pelo jury dos crimes de liberdade de imprensa e das contravenções respeitantes ao exercicio da mesma liberdade, mas pela simples razão de que não existindo o jury criminal entre nós para o julgamento de crimes incomparavelemente muito mais graves que o abuso da liberdade de imprensa, racional é que, por espírito de uniformidade, ele não exista para o julgamento deste ultimo crime. (...) Em Cabo Verde, atento o progressivo estado da evolução mental, usos e costumes dos seus habitantes, podem perfeitamente vigorar leis feitas para a Metropole com ligeiras modificações por vezes” (n.º 4, 5 de Novembro de 1914, p. 1). 11 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A Voz de Cabo Verde O jornal foi impresso e composto na Imprensa Nacional de Cabo Verde (Praia), dirigido por Gustavo Carlos da Fonseca, teve como administrador Abílio Monteiro de Macedo e como editor, João Maria Parreira. O poeta Eugénio Tavares foi redactor durante os primeiros anos, embora o seu nome não figure no cabeçalho do jornal (Oliveira, 1998, p. 281). Figura 1. O primeiro número do jornal A Voz de Cabo Verde Filiado na ideologia republicana, circulou entre 1 de Março de 1911 e 19 de Maio de 1919 (n.º 369). O semanário esteve suspenso entre Julho e Novembro de 1911, devido ao bloqueio do Governador9, por discordância com a linha editorial adoptada e a consequente proibição de ser composto na Imprensa Nacional. A dependência ao Governo da Província foi superada quando o administrador comprou o seu próprio prelo, tendo o periódico reaparecido, no dia 27 de Novembro de 1911, com nova redacção10 (Figura 2). 9 Joaquim Pedro Vieira Júdice Bicker (1911-1915). Abílio Macedo tornou-se director e editor e a administração do periódico foi assumida por Francisco Marques Ferreira. 10 12 Introdução Figura 2. Anúncio da Tipografia da “Voz de Cabo Verde” (A Defesa, n.º 4, 15 de Outubro de 1913, p. 4) Em 1915, a administração do jornal foi entregue a Isidoro José de Sousa (n.º 208, 23 de Agosto)11. Discordâncias entre os elementos da redacção, especificamente entre Eugénio Tavares e Isidoro Graça, provocaram a saída do poeta e o regresso de Abílio Macedo (primeiro administrador) que, a partir de Fevereiro de 1916 (n.º 231, 14 de Fevereiro), dirige o periódico. Eugénio Tavares, em carta dirigida ao Dr. Henrique Vilhena, refere-se a esta situação: “Eu ganhava quarenta escudos n’a VOZ; preferi ficar em péssimas circunstâncias, pobre e sem colocação, a ter de prestar o concurso da minha actividade à imoralidade dos açambarcamentos. Para viver lancei-me a escrever versos e a vendê-los. É-me preferível vender maus versos, a estragar belos ideais com os prostituir comerciandoos.” (Monteiro, 1999, p. 23) Em finais de 1916, “a censura militar [devido à deflagração da 1ª Guerra Mundial] começou a cortar as notícias tidas como de importância militar e o jornal passou a deixar em branco os espaços correspondentes aos textos censurados” e “devido às dificuldades provocadas pela guerra (falta de papel), a direcção viu-se obrigada a reduzir o tamanho do jornal” (Oliveira, 1998, p. 329). No ano de 1919, A 11 Director: General Sérvulo de Paula Medina e Vasconcelos. 13 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Voz liberta da censura12 (n.º 361, 17 de Março de 1919) retomou a defesa dos interesses de Cabo Verde. Após termos compulsado a colecção completa do periódico, na Biblioteca Nacional de Lisboa, seleccionámos um total de 112 jornais, o que representa 31,1% em relação ao total de números editados (Quadro 15). Analisámos 24 artigos sobre o contexto sociocultural e 157 peças dedicadas à temática da educação. Quadro 1 – Peças consultadas no jornal A Voz de Cabo Verde, segundo a temática central – 1911/1919 Temática central Contexto Educação Total Peças consultadas Número Percentagem 24 13,3% 157 86,7% 181 100,0% Nos artigos analisados, 33% das notícias e das crónicas mereceram honras de primeira página (18% editoriais) e apenas oito são ilustrados com fotografias (0,4%). Quadro 2 – Tipo de peças consultadas no jornal A Voz de Cabo Verde – 1911/1919 Tipo de peças Descritivas Analíticas Opinativas Total Peças consultadas Número Percentagem 85 47,0% 33 18,2% 63 34,8% 181 100,0% A predominância conjunta de peças analíticas (18,2%) e opinativas (34,8%) demonstra o interesse pela inteligibilidade do processo educativo e contexto envolvente, em detrimento da simples descrição dos factos (47,0%). Para além dos editoriais, da responsabilidade da redacção do jornal, verificámos que 42,5% dos artigos são assinados, em alguns casos, com pseudónimos e iniciais Alguns autores identificados eram professores13. 12 A Voz de Cabo Verde, n.º 55, 2 de Setembro de 1912, refere-se, em editorial de José Lopes, a uma querela, “que tinha sido vítima da lei das rolhas, lei retrógrada e reaccionária – de Lopo Vaz e João Franco – criada expressamente para amordaçar a imprensa republicana, ao tempo”. 13 Consultar apêndice B4. 14 Introdução O Independente Gustavo Carlos da Fonseca14 foi editor e redactor da “folha republicana dedicada aos interesses de Cabo Verde”. Propriedade de Luís Loff de Vasconcelos, o periódico existiu entre 15 de Janeiro de 1912 e 16 de Outubro de 191315. Inicialmente com periodicidade quinzenal, passou a trimestral, a partir do número seis. Tornou-se concorrente do jornal A Voz de Cabo Verde, não obstante as cordiais relações publicamente ostentadas: “Agradecemos, em nome do autor do editorial que publicamos, sob o título A Voz de Cabo Verde, as amáveis referências que nos foram feitas por êste ilustre colega, e retribuímos reconhecidos o aperto de mão” (n.º 35, 17 de Abril de 1913, p.1). As boas relações rapidamente se deterioraram em “guerras de palavras, só que, às vezes, se passavam aos actos16” (Oliveira, 1998, p. 267). O Independente apresentou-se como “um instrumento útil de educação, ensinando, dentro da sua fraca capacidade, o povo caboverdeano a discutir com cortezia, sem diatribes, sem empregar expressões violentas e impróprias de pessoas bem educadas” (n.º 18, 27 de Setembro de 1912, p. 1). Em 15 números, identificámos 20 artigos relacionadas com a educação e o ambiente cultural e político. Quadro 3 – Peças consultadas no jornal O Independente, segundo a temática central – 1911/1913 Temática central Contexto Educação Total Peças consultadas Número Percentagem 2 10,0% 18 90,0% 20 100,0% Apenas três artigos, consagrados à causa da educação, aparecem na primeira página, numa percentagem inferior à verificada no rival A Voz de Cabo Verde17. Dois artigos analisados incidem no contexto social e cultural cabo-verdiano e 18 tratam de temas educativos. 14 Foi director do jornal A Voz de Cabo Verde até 31 de Maio de 1911. Segundo Nobre de Oliveira, o jornal n.º 45, de 16 de Outubro “É o último exemplar existente na colecção do IBNL, sendo impossível por ele saber se o jornal terá editado ainda mais alguns números ou se este foi efectivamente o último” (1998, p. 269). 16 Referência a um duelo ocorrido nos subúrbios da Praia, entre Carlos Eugénio de Vasconcelos e Velhinho Correia (O Independente, n.º 10, 27 de Maio de 1912). 17 Artigos sobre educação na primeira página: O Independente – 15%; A Voz de Cabo Verde – 33%. 15 15 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Quadro 4 – Tipo de peças consultadas no jornal O Independente – 1911/1913 Tipo de peças Descritivas Analíticas Opinativas Total Peças consultadas Número Percentagem 4 20,0% 0 0,0% 16 80,0% 20 100,0% Conforme os dados supra, predominaram os artigos de opinião, dando-se menor importância à notícia. Os dois colaboradores identificados eram docentes18. O Progresso Sob a epígrafe “Justiça e verdade”, intitula-se um “Semanário republicano dedicado aos interesses da província de Cabo Verde”. O corpo da redacção era constituído por elementos da burguesia urbana de Cabo Verde19: Cezar de Sá Nogueira e José do Sacramento Monteiro, directores; Simão Monteiro Levy, editor; Carlos Eugénio Vasconcellos, secretário da redacção, e Francisco Xavier Mascarenhas, administrador. Iniciado em 4 de Julho de 1912, sobreviveu até 23 de Janeiro de 1913. Quadro 5 – Peças consultadas no jornal O Progresso, segundo a temática central – 1912 Temática central Contexto Educação Total Peças consultadas Número Percentagem 6 28,6% 15 71,4% 21 100,0% Na colecção disponível na Biblioteca Nacional de Lisboa (n.º 1, 4 de Julho de 1912 - n.º 23, 5 de Dezembro de 1912) consultámos 21 artigos com referências à temática em questão. Nas notícias e crónicas sobre o contexto envolvente, predomina a temática dedicada ao Nativismo20 (28,6%); os restantes artigos 18 Consultar apêndice B4. Cezar de Sá Nogueira, comerciante; José do Sacramento Monteiro, secretário da Câmara da Praia; Simão Monteiro Levy, comerciante; Carlos Eugenio Vasconcellos, funcionário aduaneiro e Francisco Xavier Mascarenhas, funcionário administrativo (Oliveira, 1998, p. 269). 20 Movimento de ideias que defendia a identidade dos povos naturais das colónias. O periódico A Voz de Cabo Verde definiu o Nativismo, como “o amor à nesga de terra onde se ergue a choupana, o orgulho de se ver um conterrâneo subir às culminâncias de um lugar de destaque, a mágoa de se sentir desprezado como filhos espúrios, mas, acima de tudo, com um acrisolado amor pela Pátria” (n.º 53, Agosto de 1912). 19 16 Introdução (71,4%) tratam de questões educacionais. Foi concedido espaço, na página nobre, a quatro dos artigos analisados. Quadro 6 – Tipo de peças consultadas no jornal O Progresso – 1912 Tipo de peças Descritivas Analíticas Opinativas Total Peças consultadas Número Percentagem 10 47,6% 4 19,1% 7 33,3% 21 100,0% O Progresso valorizou a interpretação dos factos (peças opinativas: 33,3%; analíticas: 19,1%). Não obstante contar com colaboradores regulares, apenas seis dos artigos são assinados com pseudónimos, destacando-se a escrita de T’Chaka – possivelmente inspirado no nome do rei dos Zulus – que alimentou uma polémica com o jornal A Voz de Cabo Verde, em torno do Nativismo. O Mindelense No Simpósio sobre a Cultura e a Literatura Cabo-verdianas (Mindelo, 1986), Félix Monteiro afirmou que “na ilha de São Vicente, os finalistas do Colégio Municipal, encorajados pelo aplauso dos seus leitores, entre os quais Eugénio Tavares, deliberaram saltar para a arena, mais a sério, com o Mindelense, impresso a partir do seu segundo número, em 1913” (1986, p. 10). Eis o cartão de apresentação do jornal de estudantes: “Pequenino embora, serpenteando ainda no risonho bêrço da juventude académica, formando os primeiros adejos para dobrar triunfantemente os umbrais do seu destino, germinado no mais ardente patriotismo em que se apoiam os seus alicerces, desabrochando-se com indizível fervôr para arreigar no coração de todos, notas de estima, o jovem Mindelense não pode, por forma alguma, ser excluído da plêiade dos que mais labutam pelos interesses da província, prosseguindo como, imparcialmente, encetou a missão, expandindo-se com inflexível lialdade, alargando-se pela atmosfera do seu lêma – Instruir, recriar.” (N.º 7, 15 de Julho de 1913, p. 1). Com periodicidade quinzenal, foi dirigido por Raul do Rosário Ribeiro e Francisco da Paula Mercês do Rosário e, a partir do n.º 7, apenas por Raul do Rosário Ribeiro21. 21 A direcção do jornal ficou apenas entregue a Raul do Rosário Ribeiro, pois “por motivos alheios à sua vontade este cooperador [Mercês do Rosário], amigo e ex-director do Mindelense não pode continuar fazendo 17 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) No Instituto do Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde tivemos acesso a três números do jornal (7, 8 e 9) e analisámos três artigos sobre questões educacionais. A Defesa Com a redacção e a administração situadas na Vila de S. Filipe (ilha do Fogo), o mensário foi dirigido por Manuel Dias da Cunha Ribeiro e impresso na Tipografia “Voz de Cabo Verde”. Guilherme Monteiro Cardoso foi editor e Aníbal Henriques, administrador. A Biblioteca Nacional de Lisboa conserva o jornal n.º 4, de 15 de Outubro de 191322, com uma notícia do ensino na colónia, sem fonte identificada e dois anúncios de cursos de ensino particular. O jornal, que teria durado dois anos, teve uma edição regular, “conforme se pode constatar pelo jornal da Praia (A Voz, n.º 153, de 20/Jul. /1914) que felicita o colega de S. Filipe pelo seu 1.º aniversário” (Oliveira, 1998, p. 283). O Futuro de Cabo Verde O semanário “independente e defensor dos interesses do arquipélago” nasceu na Praia, no dia 1 de Maio de 1913. Foi dirigido por José do Sacramento Monteiro, secretário da Câmara Municipal da Praia e a edição e administração acumuladas por Sebastião M. Moreira, director da Imprensa Nacional de Cabo Verde, onde o periódico era composto e impresso. Era um jornal pró-governamental, encarado com desconfiança e ironia pelo periódico A Voz de Cabo Verde, que reagiu assim ao seu aparecimento: “Como a pescada. O Futuro de Cabo Verde é um jornal que deve aparecer brevemente. Ainda não apareceu, mas já tem grande circulação em toda a província! Tal qual a pescada: antes de ser já o era!” (n.º 88, 21 de Abril de 1913, p. 1). Reflectia a posição de uma parte da sociedade cabo-verdiana, mais precisamente aquela que não se identificava com as posições, a princípio radicais da Voz (Oliveira, 1998, p. 332). Foi suspenso no dia 29 de Outubro de 1916 (n.º 180). Mas, “se era um jornal apoiado pelo governo da província porque este o deixara cair?” Nobre de Oliveira responde à questão que ele próprio colocou: parte da Direcção (...) deixa gratas impressões, e sua ausência saudade infinita” (n.º 7, 15 de Julho de 1913, p. 1). 22 Segundo João Nobre de Oliveira, “o 1.º número do jornal teria saído em (Julho?) de 1913 e o último número em (Maio?) de 1915” (1998, p. 610). 18 Introdução “Talvez porque o Futuro deixara de ter utilidade política. Afinal de contas estando A Voz de boas relações com o governador Fontoura23 esse não precisava de um órgão para defender-se dos ataques deste jornal como fora, ao fim e ao cabo, o caso de seu antecessor. A perda de apoio estatal marcou o início da sua agonia e a entrada de Portugal na Guerra trouxe o aumento das dificuldades que conduziram ao seu fim.” (1998, p. 332) Consultámos a série completa de O Futuro de Cabo Verde e examinámos 248 artigos (em 114 números do jornal) sobre a ambiência social (8,1%) e temas educativos (91,9%). Quadro 7 – Peças consultadas no jornal O Futuro de Cabo Verde, segundo a temática central – 1913/1916 Temática central Contexto Educação Total Peças consultadas Número Percentagem 20 8,1% 228 91,9% 248 100,0% Quadro 8 – Tipo de peças consultadas no jornal O Futuro de Cabo Verde – 1913/1916 Tipo de peças Descritivas Analíticas Opinativas Total Peças consultadas Número Número 200 80,6% 18 7,3% 30 12,1% 248 100,0% A maioria das peças é de carácter noticioso (80,6%), o que demonstra a ênfase colocada na descrição dos factos. É de considerar que 17% dos artigos analisados aparecem na primeira página (cerca de metade refere-se a questões educativas e alguns são editoriais). O jornal demonstra rigor com a identificação das fontes (54 artigos assinados), não obstante o recurso a pseudónimos e a iniciais. Mais uma vez se nota a participação activa de muitos professores24. 23 24 Governador de Cabo Verde, Comandante Abel Fontoura da Costa (1915-1918). Consultar o apêndice B4. 19 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) O Popular O jornal foi editado em S. Vicente (Outubro de 1914 a Abril de 1918), sob a direcção do Dr. Mário Ferro e a administração de Augusto M. Miranda. A partir de 7 de Abril de 1916 foi suspenso e “publicou esporadicamente alguns (?) números em 1917 e em Abril de 1918 publicou um suplemento” (Oliveira, 1998, p. 611). “A ilha de S. Vicente, por um conjunto de razões de ordem moral e material, necessita de um órgão que defenda simultaneamente os seus interesses e os das outras ilhas, suas irmãs. Para isso se fundou “O Popular”, que será o defensor dos interesses caboverdeanos e que fará o possível por se não desviar da trajectória traçada.” (N.º 1, 5 de Outubro de 1914, p. 1). Consultámos, no Arquivo Histórico Nacional, um conjunto de 12 números (22 artigos), que se reportam ao contexto social (22,7%) e educativo (77,3%). Quadro 9 – Peças consultadas no jornal O Popular, segundo a temática central – 1914/1915 Temática central Peças consultadas Número Percentagem 5 22,7% 17 77,3% 22 100,0% Contexto Educação Total Prevaleceram as matérias opinativas (68,2%). O jornal deu espaço, na primeira página, a cinco artigos dedicados ao ensino. Apenas dez artigos são assinados, sendo patente a colaboração de professores25. Quadro 10 – Tipo de peças consultadas no jornal O Popular – 1914/1915 Tipo de peças Descritivas Analíticas Opinativas Total 25 Consultar o apêndice B4. 20 Peças consultadas Número Percentagem 7 31,8% 0 0,0% 15 68,2% 22 100,0% Introdução O Caboverdeano “Órgão republicano independente, defensor dos interesses da província”, foi editado na Praia, nos anos de 1918 e 1919, com periodicidade quinzenal. O corpo directivo era constituído por César Augusto Pereira Sá Nogueira (director) e José M. M. Fragoso (administrador). “É singelo e simples: Pugnar pelos interesses gerais da colónia; combater pelas legitimas reivindicações das chamadas forças vivas do arquipélago, mormente pelo comércio e pela agricultura; trabalhar pelo fomento económico de Cabo Verde, e oferecer aos humildes, com devotamento, decidida protecção. Não temos, nem os aceitamos, compromissos de política partidária; queremo-nos absolutamente libertos, para, dentro da República e pela República, pormos a Pátria acima dos partidos.” (N.º 1, 7 de Abril de 1918, p. 1). A partir do n.º 22 (17 de Novembro de 1918) passou a ser impresso em formato menor e adoptou a epígrafe “Defensor dos interesses regionais”. Fundado em pleno período de censura militar, devido à 1.ª Guerra Mundial, não foi um jornal de grandes alardes (...), a linguagem panfletária deu lugar a uma outra mais suave e moderada (Oliveira, 1998, p. 346). No Arquivo Histórico de Cabo Verde foi-nos facultada a consulta de oito números, onde identificámos nove artigos dedicados à educação e ao enquadramento social e político. Quadro 11 – Peças consultadas no jornal O Caboverdeano, segundo a temática central – 1918 Temática central Contexto Educação Total Peças consultadas Número Percentagem 2 22,2% 7 77,8% 9 100,0% Quadro 12 – Tipo de peças consultadas no jornal O Caboverdeano – 1918 Tipo de peças Descritivas Analíticas Opinativas Total Peças consultadas Número Percentagem 2 22,2% 0 0,0% 7 77,8% 9 100,0% 21 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Três crónicas são assinadas (duas foram escritas por um inspector escolar). As notícias tiveram uma expressão menor (22,2%) do que os artigos de opinião (77,8%). O Manduco Pedro Monteiro Cardoso foi proprietário, director e editor de O Manduco, jornal regional (ilha do Fogo), composto e impresso na Imprensa Nacional de Cabo Verde. O cabeçalho dos primeiros cinco números transcreve o artigo 3º, n.º 13 da Constituição Política Portuguesa: “A expressão do pensamento, seja qual fôr a sua forma, é completamente livre, sem dependência de caução, censura ou autorização prévia, mas o abuso dêste direito é punível, nos casos e pela forma que a lei determinar”. Figura 3. Cabeçalho do jornal O Manduco O poeta Eugénio Tavares dirigiu o jornal (nove números). Nesta época, a referência à Constituição Política Portuguesa foi substituída pela epígrafe “Orgão defensor dos interêsses da Colónia”. O nome do periódico evoca as crónicas de Pedro Monteiro Cardoso, sob o pseudónimo Afro, no jornal A Voz de Cabo Verde, denominadas “A Manduco...”, espaço de debate contra as injustiças sociais e pelo progresso de Cabo Verde. O jornal deu relevo à literatura, a que não será estranha a colaboração do “trio de notáveis que, desde o início do século, vinha enobrecendo o jornalismo e as letras cabo-verdianas: Eugénio Tavares e José Lopes, juntos desde os jornais de Pinto 22 Introdução Balsemão26 e da Revista de Cabo Verde27, e Pedro Cardoso que começou logo depois” (Oliveira, 1998, p. 349). O primeiro número data de 1 de Agosto de 1923. Após um aviso publicado no Boletim Oficial, n.º 13, de 29 de Março de 1924, que comunicava a suspensão do mensário, “a fim de efectuar os melhoramentos prometidos” (p. 357), reapareceu fugazmente., para se extinguir no dia 30 de Junho desse ano. Na Biblioteca Nacional de Lisboa, seleccionámos, em 11 números, 21 artigos dedicados ao ambiente sociocultural (28,6%) e à educação na colónia (71,4%). Quadro 13 – Peças consultadas no jornal O Manduco, segundo a temática central – 1923/1924 Temática central Contexto Educação Total Peças consultadas Número Percentagem 6 28,6% 15 71,4% 21 100,0% Quadro 14 – Tipo de peças consultadas no jornal O Manduco – 1923/1924 Tipo de peças Descritivas Analíticas Opinativas Total Peças consultadas Número Percentagem 10 47,6 7 33,3 4 19,1 21 100,0 O discurso jornalístico combina peças de índole descritiva (47,6%), analítica (33,3%) e opinativa (19,1%). Foi concedido espaço, na página nobre, a 13 artigos (quatro sobre a causa educativa). 26 Eduardo Augusto de Sá Nogueira Pinto de Balsemão (1837-1902) foi redactor do Boletim Oficial, que reorganizou e ordenou, de forma mais prática, tendo dado uma vasta colaboração na parte não-oficial, quer publicando artigos de opinião ou descrições de viagens, quer traduzindo do francês textos ou artigos que achava serem de interesse para a província (principalmente de agricultura). Teve um papel de relevo no desenvolvimento da primeira Biblioteca Pública de Cabo Verde. Foi defensor de uma colonização que tivesse em conta os interesses dos nativos e desse maior autonomia governativa às colónias. (Oliveira, 1998, pp. 694695) 27 Revista de Cabo Verde, Mindelo, ilha de S. Vicente, 1899. 23 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Em síntese Com o propósito de captarmos o retrato do ensino e o processo de edificação do discurso educativo, em Cabo Verde, consultámos nove jornais impressos no arquipélago, que caracterizámos de forma sucinta. Tratando-se de jornais generalistas, dedicavam um espaço considerável a temas educativos. Parece-nos lícito concluir que, na época, a educação era temática recorrente e com projecção social. As matérias são essencialmente descritivas (62,2%), embora, a imprensa periódica tenha concedido espaço à opinião (25,4%) e à análise (12,4%), o que denota o grau de intervenção social em questões educacionais. Quadro 15 – Jornais consultados28 – 1911/192429 A Voz de CV O Independente O Progresso O Futuro de CV O Manduco Total Anos 1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918 1913 1923 1924 Total Tot. Cons. % Tot. Cons. % 19 52 51 51 46 50 51 31 9 11 12 15 13 20 12 14 12 3 57,9 23,1 29,4 25,5 43,5 24,0 27,5 38,7 33,3 24 9 13 2 54,2 22,2 360 112 31,1 Tot 23 Cons. 9 % Tot 15 45,5 23 9 % Tot. Cons. % Tot. Cons % 77,8 80,0 78,6 43 84 86 104 98 90 51 31 9 9 5 610 24 23 36 44 55 39 14 12 3 7 4 261 55,8 27,4 41,9 42,3 56,1 43,3 27,5 38,7 33,3 77,8 80,0 42,8 39,1 35 53 52 40 33 Cons . 39,1 180 21 31 35 27 114 60,0 58,5 67,3 67,5 63,3 9 5 14 7 4 11 Quadro 16 – Tipo de artigos analisados – 1911/1924 Jornal A Voz de CV O Independente O Progresso O Futuro de CV O Caboverdeano O Manduco Total Peças descritivas Número Percentagem 85 47,0 4 20,0 10 47,7 200 80,6 2 22,2 10 47,6 311 62,2 Peças analíticas Número Percentagem 33 18,2 0 0,0 4 19,0 18 7,3 0 0,0 7 33,3 62 12,4 Peças opinativas Número Percentagem 63 34,8 16 80,0 7 33,3 30 12,1 7 77,8 4 19,0 127 25,4 Total 181 20 21 248 9 21 500 28 O quadro apresenta apenas os jornais com séries longas ou completas. Não apresenta dados dos jornais com colecções rateadas: O Mindelense (1913), A Defesa (1913), O Popular (1915) e O Caboverdeano (1918). 29 Nos anos de 1925 e 1926, não foram editados jornais. 24 Introdução António Nóvoa considera que “a escrita jornalística não foi ainda, muitas vezes, depurada das imperfeições do quotidiano” e, por isso, revela quase sempre “o quente, as questões essenciais”. De facto, a imprensa cabo-verdiana revelou-nos “o quente, as questões essenciais que atravessaram o campo educativo”. Sendo o arquipélago de Cabo Verde uma parcela do império colonial português, poderemos falar de jornalistas cabo-verdianos? Quem escrevia e lia os jornais? Cabo-verdianos? Portugueses? “Em Cabo Verde (...) os leitores eram cabo-verdianos, interessados na metrópole mas também interessados na sua terra e na defesa dos seus interesses mesmo que estes fossem contrários aos da metrópole e, quanto aos jornalistas, estes eram na sua maioria homens formados nas ilhas e que escreviam para as suas gentes. E isto fez a diferença! Explicando melhor. Não nasceu em Cabo Verde uma imprensa “colonial” precisamente porque não havia colonos. (...) Em Cabo Verde, portugueses residentes eram em número diminuto. Não justificavam a existência de um jornal só para si. Ainda por cima, sendo Cabo Verde a colónia mais próxima da metrópole, recebiam os jornais portugueses com um atraso aceitável. Assim, um jornal em Cabo Verde só podia existir se contasse com o público leitor cabo-verdiano e este, no ultimo quartel do século XIX, já existia, resultante do desenvolvimento da educação, da actividade das sociedades recreativas, das bibliotecas, etc. Por outro lado, portugueses homens de letras ligados ao jornalismo, só esporadicamente, e normalmente por poucos anos se estabeleciam no arquipélago; a pobreza da terra, os baixos salários, como observou Gabriel Mariano, afastavam-nos das ilhas. Os salários e as perspectivas das outras colónias eram mais atractivas.” (Oliveira, 1998, pp. 115-116) O interesse da imprensa por questões educacionais e a participação actuante dos seus escribas na acção cultural demonstram que a intelectualidade cabo-verdiana, circunstancialmente dividida por interesses políticos, pugnou pela afirmação de uma identidade cultural própria. A imprensa portuguesa de temática colonial A imprensa dedicada a assuntos coloniais, que deve muito aos estudantes africanos que, com o entusiasmo, a abnegação e a militância próprias da idade, estiveram sempre activos durante a 1ª República (Oliveira, 1998, p. 362), teve um papel fundamental na difusão do movimento pan-africano30. 30 O pan-africanismo, que lutou pela dignificação do homem negro, pela equiparação das colónias às províncias europeias e pelo direito dos “nativos” governarem a sua terra, “apareceu, como movimento organizado, depois 25 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) O Negro Intitulou-se “órgão dos estudantes negros, dedicado à defesa dos valores do homem africano e à luta contra a tirania colonial.” Era propriedade de Alberto José da Costa e foi dirigido por J. Cunha Lisboa. Com uma existência efémera (de 9 de Março a 23 de Outubro de 1911) denunciou, com veemência, a situação de abandono de Cabo Verde e noticia os “primeiros symptomas da fome” (n.º 2, 21 de Maio de 1911, p. 3). Revista Colonial Surgiu no ano de 1912 (seis números) e foi editada por A. Lopes de Figueiredo. O primeiro número (único a que tivemos acesso na Biblioteca Nacional de Lisboa) apresenta o projecto de organização administrativa da província de Cabo Verde (p. 10) e o projecto do Congresso Colonial (p. 11). Figura 4. “Cabo Verde”, Os Lusíadas, Canto V (N.º 10, 25 de Outubro de 1913, p. 8) da proclamação da República e seria controlado pelos jovens oriundos dos arquipélagos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe” (Oliveira, 1999, p. 359). 26 Introdução Em 25 de Janeiro de 1913, foi editada uma revista, com o mesmo nome, propriedade da Agência Colonial. Teve como director o Dr. Sousa Ribeiro, antigo Secretário Geral do Governo da província de S. Tomé e Príncipe e do Governo Geral de Moçambique e editor, António Nunes Sequeira. Em nove números, identificámos 12 artigos dedicados a Cabo Verde (11 notícias e uma crónica). A Voz d’ África Denominado “Órgão da Junta de Defesa dos Direitos d’ África”31, apresentou-se como o jornal de maior circulação em África (1 de Setembro de 1912 a 21 de Agosto de 1913). O quinzenário teve o seguinte conselho de redacção: director, João de Castro e editor, Ayres de Meneses. Nos números examinados identificámos 17 artigos sobre a vida social, cultural e política de Cabo Verde. Os artigos – quatro tiveram o privilégio de primeira página – são, predominantemente, analíticos e opinativos (notícias: 29%). O jornal contou com a colaboração de cidadãos cabo-verdianos, conforme se pode atestar nas fontes identificadas32. Tribuna de África Em 20 de Fevereiro de 1913 foi editado outro jornal intitulado “Órgão da Junta de Defesa dos Direitos d’ África”. Foi, igualmente, uma publicação quinzenal “dirigida pela mesma dupla de responsáveis do jornal anterior”, pelo que “não é de estranhar que fosse em tudo uma duplicação da Voz d’ África, o mesmo tipo de linguagem, as mesmas denúncias, etc.” (Oliveira, 1998, p. 364). De entre os colaboradores cabo-verdianos destacaram-se Rafael Nobre de Melo33 e Cristiano Monteiro de Melo34. 31 No primeiro número do jornal é noticiada a criação de Comités da Junta de Defesa dos Direitos d’ África em Cabo Verde (1 de Setembro de 1912, p. 1). A Junta foi fundada, em Lisboa, no dia 8 de Agosto de 1912. Este movimento, aliás, depressa seria controlado pelos jovens oriundos dos dois arquipélagos atlânticos: Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe. Politicamente, a nova geração de cabo-verdianos deixa de lutar pela adjacência das suas ilhas e, fazendo coro com as outras ex-colónias, pede a transformação de todas as colónias em províncias portuguesas com o mesmo estatuto que o Minho ou o Algarve. (Oliveira, 1998, p. 359) 32 Consultar o apêndice B4. 33 Rafael Nobre de Melo (sécs. XIX/XX), natural da ilha de Santo Antão, foi representante d’ A Voz de Cabo Verde em Massachusetts, América, o 1º director do Ressurgimento e colaborou também no Tribuna d’África, de Lisboa. (Oliveira, 1998, p. 767) 34 Cristiano Monteiro de Melo nasceu na ilha de Santo Antão. Foi funcionário do Serviço das Finanças de Cabo Verde, tendo sido demitido por motivos políticos (1913) e depois readmitido. Foi correspondente da Voz d’África e da Tribuna de África. (Oliveira, 1998, p. 767) 27 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) O Eco d’ África Quinzenário defensor dos interesses de África (1914/1915), teve como administrador e editor, Manuel Ranjel e como director, Lino Bayão. Acedemos aos números cinco e seis (1914) e ao n.º 11 (1915), com um artigo dedicado à educação no arquipélago e duas crónicas ilustrativas da situação da imprensa cabo-verdiana. Correio de África O semanário “defensor dos direitos africanos”, iniciado em 22 de Março de 1915, foi dirigido por Nicolau Santos Pinto, sendo a administração entregue a Joaquim Monteiro de Macedo35 e a edição, a António Corsino Lopes da Silva. O periódico alertou para “a crise de fome [que se] está agravando constantemente”, advertindo que “não vindo os imediatos socorros repetidas vezes pedidos à metrópole a hecatombe [será] horrível, recaindo as responsabilidades exclusivamente sobre o governo central” (n.º 37, 13 de Abril de 1922, p. 2). A primeira página do n.º 40 (4 de Maio de 1922) foi dedicada a “Cabo Verde, Terra Mártir”. Em sete números, analisámos 14 artigos de opinião. Destes artigos, oito foram publicados na primeira página. O Correio d´África contou com a colaboração de ilustres cabo-verdianos: Corsino Lopes, Joaquim Monteiro de Macedo, Pedro Cardoso e José Lopes. Gazeta das Colónias Semanário de “propaganda e defeza das colonias” (propriedade da “Empreza de Publicidade Colonial”) dedicou-se, entre 1924 e 1926, a veicular informações sobre as colónias (para cada colónia, uma página), sem o carácter reivindicativo dos periódicos anteriormente referidos. Assumiu um tom crítico, embora moderado, nas crónicas intituladas “Cabo-Verde o que tem sido e o que deve ser”36, “Cabo-Verde o que está feito e o que falta fazer”37 e “Cabo-Verde abusos a corrigir”38. 35 Joaquim Monteiro de Macedo (1894-1943) era cabo-verdiano (ilha do Fogo). Apoiado pela Liga Africana, foi eleito deputado por Cabo Verde. (Oliveira, 1998, p. 754) 36 Nº 24, 19 de Junho de 1924, pp. 8-9. 37 N.º 7, 26 de Agosto de 1924, pp. 7-8; n.º 9, 9 de Outubro de 1924, pp. 7-8. 38 N.º 21, 25 de Abril de 1925, pp. 11-12; n.º 24, 10 de Agosto de 1925, pp. 15-16. 28 Introdução Boletim Nos primeiros números do Boletim, editado pela Agência Geral das Colónias (de Julho de 1925 a Dezembro de 1931), obtivemos informações sobre a educação em Cabo Verde (13 e 16). O Boletim n.º 45 (1929) – dedicado integralmente a Cabo Verde – apesar de ultrapassar o âmbito cronológico do presente estudo é uma fonte documental relevante, que nos situa no ambiente social, económico e cultural das ilhas. No domínio educacional, destacamos as comunicações “O Seminário-liceu da ilha de S. Nicolau de Cabo Verde”, da autoria de José dos Reis Borges e “A instrução Pública”, de Adriano Duarte Silva39. No termo da sucinta caracterização da imprensa portuguesa, de temática colonial, sublinhamos a sua importância para o conhecimento da acção cívica dos estudantes em Lisboa e da “intelectualidade das ilhas [que] fizera a descoberta da africanidade cabo-verdiana e a ligação do destino de Cabo Verde ao das outras excolónias” (Oliveira, 1998, pp. 378-79). Boletim Oficial de Cabo Verde O primeiro e mais regular órgão de informação, impresso em Cabo Verde, foi o Boletim Oficial. No cumprimento do Decreto de 7 de Dezembro de 1836, “sendo Governador de Cabo Verde, Francisco de Paula Bastos, na quarta-feira dia 24 de Agosto de 1842, imprimiu-se o primeiro número do Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, na vila de Sal-Rei, ilha da Boa Vista40” (Oliveira, 1998, p. 45). As ambições deste órgão da imprensa estatal estão bem expressas no primeiro número: “Raiou felizmente para esta Provincia uma nova era de illustração; o Governo de SUA MAJESTADE sempre sollicitado pelo bem dos subditos da mesma Augusta Senhora não podia por mais tempo consentir que continuasse a ignorancia, em que o povo se achava engolfado” (24 de Agosto de 1842, p. 4). Ultrapassadas as primeiras vicissitudes – a periodicidade começou a falhar na segunda semana de vida, quando se suspendeu a sua publicação por quase cinco 39 Adriano Duarte Silva (1898-1961), licenciado em Direito e Ciências Sociais, pela Universidade de Lisboa, ingressou na docência do Liceu Infante Dom Henrique e foi reitor do liceu (1924). 40 Em 1836, a vila de Sal Rei, na ilha da Boavista, tinha sido erigida, momentaneamente, em capital da Província de Cabo Verde, durante a estadia do Governador. 29 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) meses41 – tornou-se um órgão de comunicação regular, como jornal oficial, informativo e de divulgação de temática vária. Inicialmente bissemanal, a partir do n.º 33 (27 de Maio de 1843), passou a semanário, periodicidade que mantém até à actualidade. Figura 5. Primeiro Boletim Oficial de Cabo Verde O Boletim Oficial contém um corpus normativo de excepcional importância para o conhecimento da educação cabo-verdiana, pois desvenda a retórica oficial e a dimensão formal do sistema escolar. O cruzamento dos Boletins com os outros jornais propicia uma permanente interacção normas-práticas, prescrições-realidades e os contextos de aplicação dos diplomas legais na escola e na sociedade. Como único órgão da imprensa, em períodos longos, cumpriu um papel informativo e recreativo, à margem da couraça institucional que o enformava. A Parte Não Oficial acolhia notícias, anúncios, avisos, relatórios, discursos e curiosidades. 41 Houve outras interrupções do Boletim Oficial: O n.º 193 do Boletim Oficial foi publicado em 26 de Junho de 1847 e só em 17 de Junho de 1848 saiu o n.º 194. Foi suspensa novamente a sua publicação até ao dia 21 de Abril de 1849, data em que, com o n.º 195, recomeçou a sua publicação. Ou seja, num período de quase dois anos, só se publicou um único número, o 194. Mas recomeçou a sua publicação por pouco tempo, pois, dificuldades várias levaram a nova suspensão: tendo publicado o n.º 208, em 25 de Agosto de 1849, só retomou a publicação em 10 de Novembro do mesmo ano, data em que saiu o n.º 209. Chegou a ser suspenso, pela portaria de 21 de Agosto de 1851 que, depois, foi revogada. O Boletim teve uma nova interrupção, de 18 de Janeiro a 25 de Outubro. (Oliveira, 1998, pp. 51-52) 30 Introdução Compulsámos a série de Boletins Oficiais, de Outubro de 1910 a Dezembro de 1926, que se traduziu na recolha, tratamento, registo, análise e interpretação de normas e informações em 844 números. Neste acervo documental examinámos documentação de vária ordem: circulares, “notícias dos concelhos”, “publicações úteis”, estatísticas, balancetes de contas, correspondência (cartas e telegramas), avisos e anúncios, regulamentos, actas, contratos, alocuções e até poemas. A leitura sistemática do jornal oficial permitiu-nos aceder aos sistemas de decisão e de controlo, representados pelo normatismo burocrático, deixando transparecer, sob a aridez da produção oficial, conflitos, tensões, ambiguidades e mesmo (ir) racionalidades administrativas. Documentos manuscritos O projecto de recriação do discurso pedagógico, que se foi moldando na província de Cabo Verde, exigiu a consulta de fontes primárias manuscritas, produzidas por agentes directamente implicados no processo educativo: alunos, professores, autoridades educativas, pais e outros cidadãos. O Instituto do Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde disponibilizou um importante acervo, que pertenceu à Secretaria Geral do Governo Provincial (18031927), organizado em oito séries: L. 1. Instrução Pública: Juntas Locais; L. 2. Serviços de Instrução Pública; L. 3. Escola Principal de Instrução Pública; L. 4. Liceu Nacional de Cabo Verde; L. 5. Instrução Pública: Conselho Inspector; L. 6. Frequência e Exames; L. 7. Recenseamento Escolar e L. 8. Diversos. Os documentos consultados revelaram-se fontes de excelência para a história que pretendemos contar. São testemunhos que falam em directo, em relações de contexto-intertexto com outras fontes documentais. De forma abreviada, apresentamos as fontes manuscritas consultadas, ordenadas em função dos actores que as produziram ou a que se reportam: Alunos Composições escritas, desenhos e provas do exame do 1º e 2º graus da instrução primária elementar. 31 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Professores Registos de actos administrativos relativos aos exames, provas de avaliação dos conhecimentos dos alunos (exames); requisições de materiais didácticos e equipamentos; listas de manuais escolares; guias de entrega de materiais didácticos e equipamentos; requerimentos com pedidos de colocação e de transferência de docentes; requerimento de uma professora com pedido de licença de parto; relatórios; reclamações; actas de reuniões e correspondência diversa. Outros cidadãos Exposição com o pedido de manutenção do liceu na ilha de S. Vicente; reclamação contra o Governador por ter proposto a redução do curso do Liceu Nacional de Cabo Verde; projectos de integração dos professores do extinto Seminário-liceu, das Escolas Normais e do Ensino Primário Superior no corpo docente do Liceu Nacional de Cabo Verde; petição a favor da admissão de uma professora e correspondência com pedidos de doação de livros escolares. Autoridades educativas Proposta de transferência do Seminário-liceu de S. Nicolau para a cidade da Praia; correspondência sobre a adaptação do seminário a um liceu nacional; listas dos manuais escolares adoptados e balanços da existência; correspondência diversa sobre o analfabetismo, exames, manuais escolares e alunos pobres; informações sobre o desempenho dos professores; registos de vários actos administrativos relacionados com os professores; registos de vários actos administrativos relacionados com os alunos; processo disciplinar aplicado a um inspector; certificados de despesas; facturas; actas de reuniões; relatórios; regulamentos; projectos de legislação; contratos de arrendamento de casas para serem adaptadas a sala de aula; proposta de criação de um internato em Mindelo; projecto de um estandarte para o liceu; mapas estatísticos e discursos. Um olhar sobre a relação apresentada, em termos meramente quantitativos, demonstra o desequilíbrio existente entre a voz, ainda marginal, da sociedade (os cidadãos), a intervenção dos protagonistas directos do acto educativo (professores e alunos) e a produção oficial omnipresente (autoridades educativas). 32 I Parte Uma sociedade (in) conformada ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 1. Relações coloniais ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ “Aos olhos do mareante, o arquipélago lembra uma frota de galeões dispersos e petrificados. Projectadas na altura a maioria das ilhas quedam como estarrecidos monstros, irradiando os denteados dôrsos de sáurios prehistóricos, precipitando os vales augustos, projectando os picos solitários desde os topes e crateras aos alicerces basálticos, à correnteza do mar. O litoral, por vezes, é uma muralha inacessível. Na face queimada e trágica, a riba desnuda, a ferida aberta de um desabamento, os cortes nos montes de lava, são, da crónica milenária, páginas a memorar espanto, a lembrar cataclismos. Os vulcões calaram-se. As crateras dormem. O drama terciário está ali, presente, ainda, na bruteza da paisagem dantesca. Mas, aqui e além essa bruteza amansáram-na já as povoações, as terras lavradas, os caminhos lentos. As encostas íngremes, a pique, suavizaram o tempo e o esforço dos homens. (...) Vivem nas ilhas do arquipélago portugueses: brancos, prêtos ou mestiços. Chamam-se todos, com orgulho, creoulos.” (Augusto Casimiro, 1935, pp. 5-6/11) “Do ponto de vista social, cultural e psicológico não há cabo-verdianos negros, nem cabo-verdianos brancos, nem cabo-verdianos mestiços. Haverá, sim, cabo-verdianos ricos, pobres, remediados, miseráveis. Cabo-verdianos de profissões humildes e prestigiadas.” (Manuel Ferreira, 1967, p. 39) A esperança na República Eugénio Tavares, dirigindo-se «Ao povo caboverdiano» auspiciava “um dia, se a Manhã da Liberdade te surprehender ainda vivo, os teus filhos te dirão isso; porque antes de entrar na liça do trabalho, terão elles passado pela atmosféra depuradora da Escola” (1910, p. 10). Para muitos cabo-verdianos, a proclamação da República foi a “manhã da liberdade”. O primeiro governador republicano, o oficial da marinha, Artur Marinha 35 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) de Campos42, foi recebido entusiasticamente no arquipélago. Na cidade da Praia, numa manifestação popular, declarou: “Eu pasmo como nem a fome de 1903-1904 fez aparecer entre vós um Aguinaldo43, que esfarrapando o odioso trapo azul e branco (...) então repetisse aqui a notável epopeia das Filipinas. Eu admiro como mais de vinte mil caboverdeanos morreram de fome nesta ilha, em menos dum ano, sem um movimento de revolta que pusesse termo a tanto sofrimento. Eu ter-me-ia revoltado44.” (In Oliveira, 1998, p. 180) Figura 6. Desembarque do primeiro governador republicano em Mindelo, 1910 Ed. Bazar Central Bonucci & Frusoni – S. Vicente (Loureiro, 1998, p. 18) Após o entusiasmo inicial, a população cabo-verdiana torna-se cautelosa. Eugénio Tavares, em carta ao amigo Inocêncio Cândido Simplício, avisava (8 de 42 Foi governador de Cabo Verde, nos anos 1910/1911, durante quatro meses, com uma administração conturbada. 43 Manuel da Cunha Ribeiro (sécs. XIX-XX), que foi notário na Ilha do Fogo e director do jornal A Defesa, escreveu, nos tempos da monarquia, com o pseudónimo de Aguinaldo, “em honra do herói filipino do mesmo nome, e defendeu o recurso à luta armada «para conquistar a nossa independência»” (Oliveira, 1998, p. 785). 44 Estas palavras determinaram o fim do seu mandato: “na metrópole receara-se que ele quisesse ser aquele Aguinaldo filipino na província de Cabo Verde e, demitindo-o, mandaram-no recolher sob prisão à metrópole, onde devia entrar na fortaleza de S. Julião da Barra...” (Rocha Martins, citado em Oliveira, 1998, p. 181). 36 Uma sociedade (in) conformada Fevereiro de 1913): “A República (...) não é para aí nenhuma milagrosa terma de N. S. de Lourdes: não sara cancros, de repente, com um banho, dois copos de água e três salve-rainhas” e sobre a governação colonial, indagava: “Política? Parafraseia tu o verso de Hamlet – «to be or not be»: comer ou não comer, aí é que bate o ponto! – “that is the question” terás a política deles” (in Monteiro, 1999, p. 158). “Aspirações? Unicamente aquelas que estão ao alcance de um voo de galinha: possuir a amizade do sr. governador; tomar chá com o sr. governador; jogar com o sr. governador; ser o primeiro a atracar quando chega o sr. governador; ser o último a largar quando parte o sr. governador; ler, em roda de amigos, roendo-se de ciúmes, as cartas do sr. governador; classificar de adoráveis os erros de gramática do dr. governador; e comentá-los, com uma pontinha de malícia finíssima e outra pitada de benevolência superior: Este governador! E enfim, lisonjear o governador; orientar o governador; iludir o governador; governar o governador.” (Tavares, 1913) A imprensa desconstroi as bases da governação colonial, ao denunciar a inércia governativa e as difíceis condições de vida da população: “Tudo se espera das chuvas, sem que um poço artesiano consulte o coração da terra, nem uma bomba eleve as aguas às ladeiras em que ella falta. As artes como as sciencias são letra morta; nem podem deixar de o ser, não existindo escolas nem lyceos onde se estudem. A industria é nulla, sem fórma, nem methodo para poder competir nem mesmo concorrer com a identica d'outras colonias da Europa. O commercio é reduzido e rachitico e, longe de se desenvolver, definha e atrophia-se por não ser appoiado sobre a actividade local mas só depender de influencias exteriores. A idéa da associação ainda aqui não penetrou. A sociedade vota-se ao egoismo individual: cada um busca para si uma independencia hypothetica e saboreia os prejuizos do seu semelhante.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 1, 1 de Março de 1911, p. 2) Inconformada com o abandono a que foi votada, a sociedade exige protecção especial da metrópole, legitimada por alegado ascendente cultural do caboverdiano: “Em todas as províncias ultramarinas da Costa Ocidental ainda ha gentios, só Cabo Verde, mesmo no interior das suas ilhas não os tem, quasi todo o filho desta província tem a cultura máxima que cá pode receber, é trabalhador, é honesto, e homens assim devem ser protegidos pelos poderes metropolitanos” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 13, 24 de Julho de 1913, p.1). O discurso indutor de um estatuto diferente, convivia com o sentimento de apego à terra e a rejeição de pertença a outras partes do império: “E tanto que preferimos para viver e para morrer, a aridez e a miséria de Cabo Verde, ao bucolismo do Minho, por exemplo, ou às riquezas das nossas Áfricas. Isto será um crime?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 176, 28 de Dezembro de 1914, p. 1). 37 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Que modelo colonial? A entrada de Portugal na Grande Guerra, para além do objectivo mais geral de dar prestígio à posição do país no campo internacional, visava evitar que a paz se fizesse à custa das possessões ultramarinas. A nova conjuntura internacional fragilizou o modelo colonial lusitano. Em alternativa surgiam novos paradigmas, “uma concepção muito descentralizada do império, não apenas do ponto de vista administrativo, mas também do económico-financeiro e mesmo do político45”(Alexandre, 1993, p. 1118) ou, em contraste, a “centralização, equilíbrio financeiro, predomínio dos interesses metropolitanos (em nome de uma solidariedade que na prática significava a subordinação das colónias)“ (idem, p. 1127). No ano de 1914, a colónia foi dotada de autonomia administrativa e financeira. O professor e poeta José Lopes reconhecia que a autonomia “representa em si mesmo, subjectivamente, um passo gigantesco na senda do Progresso”, acrescentando “é preciso que essa excelente medida seja bem aplicada, de modo que objectivamente se traduza em resultados positivos de reais vantagens para as Colónias. Il faut savoir faire” (A Voz de Cabo Verde, n. º 162, 21 de Setembro de 1914, p. 2). “Era tempo. A civilização colonial não se compadecia com a nossa situação de tuteladas. E tuteladas eram as Colónias, que não discutem os seus orçamentos minuciosamente; não o expungem de todos os êrros do passado; não votam as suas receitas; não as aplicam em fomentar e valorizar as suas riquezas, desprezadas umas, inexploradas outras e não possuem «capacidade para adquirir, contratar e estar em juízo em seu próprio nome e sob a sua responsabilidade». Todo êsse passado de subserviência e servidão terminou com a aprovação da autonomia administrativa e financeira das Colónias.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 62, 2 de Julho de 1914, p.1) Nesse mesmo ano, o Ministro das Colónias divulgou uma carta do Secretário do 1º Congresso Universal das Raças46, com preceitos que visavam o respeito pelas diferenças raciais: 45 Teoria defendida por Norton de Matos e “alguns dos seus colaboradores ou discípulos (entre outros, Ferreira Dinis, Armando Cortesão e Augusto Casimiro)” (Alexandre, 1993, p. 1118). 46 “O primeiro Congresso de Raças Humanas realizou-se em Julho de 1911 e contou, entre os seus protectores, com 35 presidentes de Parlamentos, a maioria dos vogais do Tribunal Permanente de Arbitragem e dos delegados da segunda Conferência de Haia, uns 130 professores de Direito Internacional, os principais antropologistas e sociólogos do mundo, e muitas outras personagens de distinção. No Reino-Unido, onde se efectou êsse Congresso, o apoio que lhe foi dado não foi de menor valimento, nem menos cordial a maneira como foi acolhido, pois na lista do seus Vice-Presidentes, contam-se o primeiro-ministro e outros membros do gabinete, os leaders dos partidos Conservador e do Trabalho, representantes de todos os cultos religiosos e 15 38 Uma sociedade (in) conformada “I. Respeitar e ser cortês para com os usos, costumes e pessoas de todas as raças; II. Saber que diferenças, em civilização, não significa, necessariamente, inferioridade ou superioridade; III. Reconhecer quanto é ilusória e insustentável a prosápia que algumas nações teem de que a sua civilização, a sua força, a sua sciência, os seus usos e costumes, são superiores aos dos restantes povos da terra; IV. Reconhecer o direito que cada nação tem de estudar, sem desprimores, as civilizações, os usos e os costumes dos outros, povos; que, nas próprias civilizações tidas como ínfimas, há muito que estudar e aprender; que todas as civilizações merecem o nosso respeito pela base histórica em que devem assentar-se; V. Reconhecer que as ideias, os usos e costumes dos povos de outras raças lhe devem ser tão caros como os da sua própria raça e nacionalidade, e que tanto maior deve ser êsse respeito quanto maior aquêle que exige que os outros vos tenham dos da sua raça e nacionalidade; VI. Deve reconhecer a solidariedade e a interdependência da Humanidade, e quanta beleza encerra uma atitude serena, pacífica e fraternal perante todos os seres humanos.” (Boletim Oficial, n.º 15, 11 de Abril de 1914, p. 138) Nativismo Não obstante estas disposições, a decepção com o regime republicano era notória, conforme documenta o artigo “Instrução pública”: “Implantada a República, em 1910, a instrução continuou, nesta província, no mesmo pé em que a deixou o ancien regime, isto é, não sofreu até hoje a mais pequena remodelação no sentido de a facilitar e desenvolver entre nós e melhorar a triste situação em que se encontra a classe do professorado” (A Voz de Cabo Verde, n.º 257, 21 de Agosto de 1918, p. 2). O descontentamento social foi difundido pela voz dos nativistas. O nativismo, o orgulho de ser natural de Cabo Verde, está patente nas palavras do Senador Augusto Vera-Cruz que, revoltado com a inércia da administração colonial, proclamava “Sou português de sangue e coração, mas acima de tudo sou caboverdeano47”. Postura idêntica tinha sido adoptada por Eugénio Tavares, que se declarava: “Português de lei! Cabo-verdiano de alma!” (in Monteiro, 1999, p. 173). O Padre Duarte da Graça48 não obstante ter hostilizado a ideologia republicana, nos primeiros tempos do regime, declarou: dos 18 vice-chanceleres das universidades.” (Carta do Secretário do 1.º Congresso Universal das Raças, 18 de Novembro de 1913. Boletim Oficial, n º 15, 11 de Abril de 1914, p. 137) 47 Palavras proferidas em entrevista ao Correio d’África, n.º 3, 1924 (Oliveira, 1998, p. 183). 48 O padre António Duarte da Graça (1862-1923) foi cónego da Sé de Cabo Verde, professor primário de prestígio e proprietário na ilha de Santiago. Depois da proclamação da República em Portugal, reagiu aos ataques do governador Marinha de Campos contra a Igreja, tendo sido preso. Publicou “uma célebre brochura 39 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) “Ser nativista não é crime, nem o é tam pouco desejar alguém, simplesmente, a independência da sua pátria. Poderia ser, quando muito, um sonho de um visionário, quando essa pátria não tivesse recursos próprios ou elementos sólidos para constituir sua independência e governar-se por si mesma (1911).” No ano de 1915, António Corsino Lopes da Silva escrevia “pensar na independência de Cabo Verde, para já, seria uma fraqueza do meu raciocínio” (A Voz de Cabo Verde, n.º183, 15 de Fevereiro de 1915). Na perspectiva de Nobre de Oliveira, “afastada a hipótese de independência, por impraticável, a luta pela dignificação dos cabo-verdianos continuava a ser a luta pela igualdade com os metropolitanos” (1998, p. 234). Os periódicos A Voz de Cabo Verde e O Progresso envolveram-se numa disputa em torno do nativismo, geradora de clivagens e tensões sociais. “Tão desorientados têm andado crioulos e europeus, n’esta cidade da Praia, (pois que nas outras ilhas e no interior d’esta, nem se lembram de semelhante cousa) que estes chamam aos crioulos: - mata brancos, e aquelles aos metropolitanos mata pretos! E o que é mais curioso e interessante, é que no grupo de mata brancos há muitos metropolitanos, e no de mata pretos, muitíssimos caboverdeanos!!! E, de resto, há já tanto tempo que se falla de mata brancos e mata pretos, e comtudo no meio de todos esses estardalhaços de mortes e tiros de canhões e de synaiders, a punhal, à faca e até à camuga, nenhum tem morrido! Mas... dar-se-há o caso da phrase crioula: - nem matado és cá tá morré?!... (nem matado morrem?!) (A Voz de Cabo Verde, n.º 16, 4 de Dezembro de 1911, p. 2) A leitura dos artigos, que alimentaram a polémica, proporciona imagens e representações diferenciadas do outro dominado, na perspectiva do eu dominador. Parafraseando Rui Gomes, “é em nome de algumas semelhanças superficiais, num universo de dissemelhanças, que o Estado vê nos indígenas não aquilo que são mas aquilo que desejaria que fossem, cidadãos portugueses” (1996, p. 154). “É por isso que os naturaes d’esta provincia de Cabo Verde foram sempre, e são, sem excepção de côr, portuguezes na educação civica e moral, na indole doce e pacifica, nos costumes e até, no sentimento, pois são bondosos, hospitaleiros e caritativos, sentimentos que caracterisam o povo portuguez e o destinguem d’entre os demais da Europa.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 16, 4 de Dezembro de 1911, p. 2) Para Auguste Chevalier “o Negro cabo-verdiano permaneceu o negro bon-enfant que conhecemos em África” e “o Branco quase-branco que vive à sua volta é que foi, muitas vezes, aos encontro dos costumes dos Negros” (1935, p. 65). Esta visão, em que não poupava o referido governador”, intitulada Quatro mezes e meio de uma administração ultramarina a pontapés ou a administração do sr. Marinha de Campos, edição do autor, 1911. (Oliveira, 1998, pp. 740-741) 40 Uma sociedade (in) conformada na óptica da política de assimilação, advinha do reconhecimento das similitudes e diferenças entre colonizadores e colonizados, esbatidas pela acção civilizadora lusitana. Em sentido diferente, o estereótipo do “indígena indolente, desleixado e bêbado”, assente no conceito de raça inferior, numa lógica segregacionista: “Os indígenas são indolentes, desleixados e bêbados? – Se assim fosse, a culpa seria dos desleixados e indolentes que nos têem governado. (...) Ora é com exemplos e com o ensino que o preto aprende a não ser desleixado e bêbado, mas não com exemplos de brancos da tal terra que conhecemos, nem com falta de escolas; pelo contrario; é criando estas e confiando a sua regência a professores brancos ou pretos (a cor não importa) com competência profissional e moral, e tornando obrigatória a sua frequência.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 36, 26 de Abril de 1912, p. 2) A imprensa deu voz a franjas da sociedade divididas entre o sentimento de afirmação da sua terra (Cabo Verde) e de inserção no império colonial (Portugal). Neste jogo de ambivalências, ambiguidades e conflitos surgiam sinais de (in) conformismo, que se foram incorporando na matriz da cabo-verdianidade. Apesar de sujeitos de identidades oprimidas, os cabo-verdianos assumiam a “nobreza de carácter” e repudiavam o ónus de “frutos da conquista”: “Somos colonos e mistos e não conquistados; pois a nossa origem é nobre e a nossa terra, há pouco mais de quatro séculos, era deserta e os nossos antepassados a colonizaram. Não somos fruto da conquista” (A Voz de Cabo Verde, n.º 218, 8 de Novembro de 1915, p.2). Eugénio Tavares, em carta a D. Alexandre d´Almeida (1918)49, afirmava: “Cabo Verde é um povo. E os povos têm aspirações que não se limitam à panela” (in Monteiro, 1999, pp. 228-239). A trajectória da cabo-verdianidade – com ciclos de crioulização/ assimilação – iniciada pela afirmação individual (o nativo de Cabo Verde) conduziu à gradativa consciência de uma comunidade, de um povo. 49 Alexandre d’ Almeida no jornal A Luta defendeu a teoria da “fixação do povo cabo-verdiano no seu seio”, pelo aviltamento da emigração para a América. (Monteiro, 1999, pp. 228-239) 41 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Educação colonial Em conformidade com Antoine Léon, “o aluno indígena é apresentado como um ser à parte, sofrendo de diferentes limitações intelectuais ou culturais, mas desfrutando, ao mesmo tempo, de algumas disposições auspiciosas” (1991, p. 37). Idêntica imagem surge na imprensa cabo-verdiana: “A creança preta é viva, esperta, engraçada, aprendendo facil e rapidamente, e até mais rapidamente que a branca. Mas quando se espera vêr o prodigio desabrochar, temos um desapontamento. Porquê? Porque a creança não é treinada em reflexões. A faculdade da senso-percepção desenvolve-se, mas em prejuízo das outras. A memoria é solida, retem facilmente as impressões recebidas, e os mestres satisfazem-se com isso, o que constitue o erro fundamental. O preto pequeno tem memoria de sobra, mas não tem a faculdade de comprehender o que retem. Ensina-se lhe a ler, e, com surpreza, ao chegar ao fim do livro de leitura, notamos que elle repete de cór o livro todo, mas não sabe realmente lêr. O mestre em vez de ensinar a creança a reflectir, ensinou-a a decorar. É uma experiencia facil de fazer com qualquer rapaz das escolas.” (O Progresso, n.º 11, 12 de Setembro de 1912, p. 2) O Progresso defendeu o modelo de relação colonial assente na despersonalização do colonizado. Caía a máscara do humanismo e aparecia a exploração económica e social, sob a forma de “encher a bolsa e pôr-se a andar”: “Men must be judge, not by the tint of skin. Mas é pelo miolo que se apreciam os homens; e miolo do indígena de qualquer paiz, tem de soffrer uma demorada preparação, de passar pelo crisol do tempo, da experiencia e do estudo, para entrar a produzir e para inspirar confiança. (...) N’esta colonia, como de certo, em todas as colonias Portuguezas, as nossas relações com o indígena, nos modernos tempos, são isentas de exageros, taes como o lynchamento; mas como o branco não vem para a Africa para tratar da saude, mas para fazer dinheiro, nem se preocupa com as ideias altruistas ou civilisadoras, nem com o progresso real da colonia: - «encher a bolsa e pôr-se a andar», – este é o lemma. (…) O preto nem possue originalidade, nem expontaneidade, nem intellegencia, nem cultura sufficiente para sahir, sosinho, do labirynto em que a nossa civilisação o lançou.” (N.º 9, 20 de Agosto de 1912, p.2) A estratificação escolar, traduzida no nivelamento por baixo da oferta educativa para os naturais das ilhas, controlava a mobilidade social e cristalizou as bases da sociedade colonial: 42 Uma sociedade (in) conformada “Os pretos costumam dizer: «façamos a panella emquanto o barro está mole»; e assim é; se o deixarmos seccar, só conseguiremos panelas defeituosas e incapazes de serviço. Que faremos, pois, para resolver o problema? Salvo melhor opinião: 1º O governo crear escolas preparatorias de mestres indígenas, nos centros mais importantes, escolas d'onde saia gente capaz de ensinar agricultura, artes e officios. 2º Dar ao preto uma educação variada, mas simples; reduzindo a instrucção litteraria ao minimo, deixando-nos de latins e de leituras classicas, que papaguearão sem as comprehender.” (O Progresso, n.º 11, 12 de Setembro de 1912, p. 2) Estas ideias causaram repulsa e indignação, tendo A Voz de Cabo Verde reagido, pela voz de um cidadão, sob o pseudónimo Um preto: “A educação não estraga o preto; aperfeiçoa-o, civiliza-o, e tanto mais rapidamente, quanto mais amigos, mais leais, mais brandos forem os brancos para com ele” (n.º 58, 22 de Setembro de 1912, p. 3). “Não é com explorações torpissimas, astucias, asperesas, despreso que se civilisa o preto. Para o civilisar, é preciso que, a par da escola, o Evangelho do A B C, como dizia Luciano Cordeiro, o tratemos como de igual para igual, não provocando nunca a sua desconfiança. (...) Acabem-se os abusos e criem-se escolas a valer e ver-se-á a Africa civilisada, em poucas dezenas de anos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 58, 22 de Setembro de 1912, p. 3). A educação colonial pautada pela trilogia “conhecer, adaptar e assimilar” (Gomes, 1996, p. 155) reproduzia, de forma acentuada, as assimetrias e desigualdades observadas nas escolas metropolitanas. Como expressa Antoine León, “em termos de estatuto, o colonizado é o proletário do colonizador, isto é o proletário dos proletários europeus” (1991, p. 8). 43 44 2. Cultura e língua ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ “Os bailes são festas comuns em todas as ilhas. A orchestra é acompanhada de rabeca e viola, acompanhadas do bater do compasso com o pé no chão. À porta estreita da habitação em que o baile tem logar, acumula-se o povo, quando não pode já invadir a sala, e então entôa phrases e bate palmas, em homenagem a este ou aquele par dançante com que sympatisa. É o que se chama um batuque. (...) As danças predilectas do povo são a coladeira, a taca e o landum. A primeira é licenciosa na forma e um tanto libertina na intenção. A taca é uma dança sapateada diferindo n’ isso do landum. (...) Nas classes mais civilizadas dançam-se as mornas que são caracteristicas e originais de Cabo Verde e que estão sendo imitadas agora na Europa, juntamente com o tango argentino tambem em moda. A morna é typica e simples, traduz um mixto de sentimentalismo e morbidez.” (Ernesto J. de C. e Vasconcellos, 1916, pp. 106-107). Traços de cultura Manuel Ferreira na obra A aventura crioula fala-nos do “tríptico completo: poesia, música e dança – a poesia da morna, feita de coisas amorosas, impregnada de morabeza e crecheu” e acrescenta que é na morna que o cabo-verdiano “encontra todas as possibilidades de escape emocional e todos os caminhos do sonho e integração” (1967, p. 58). Além da “poesia da morna”, o cabo-verdiano realizou-se culturalmente na literatura, com duas formas de expressão literária: o crioulo e a língua portuguesa. O crioulo utilizado pelo povo inteiro, que nele tem uma criação amorosa, hoje património da sua própria consciência, foi, contudo, por vezes, combatido e contrariado. Pouco a pouco logrou adicionar à sua independência social a sua independência literária (Ferreira, 1967, p. 231). 45 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Na expressão poética distinguiram-se Pedro Cardoso, Eugénio Tavares e José Lopes que, para além da obra literária, foram cidadãos intervenientes pelo progresso social e pela causa educativa50. Pedro Cardoso, pioneiro da investigação do folclore cabo-verdiano, lutou pela dignificação do crioulo. Defendendo, no entanto, a sua qualidade de cidadão português, nem por isso enjeitava vozes remotas que lhe vinham segredar à tona da consciência: “África minha, das Esfinges berço Já foste grande, poderosa e livre ....................................................” (Jardim das Hespérides, citado em Ferreira, 1967, p. 170) Eugénio Tavares, ”figura popular, muito querida numa terra onde o prestígio das letras é uma das suas verdades sociais, espírito irrequieto, só em crioulo, se realizando em plenitude como poeta, exerceu larga influência nos meios onde viveu – e foi sem dúvida vulto de primeira plana na sua época” (Ferreira, 1967, p. 175). Francisco Lopes da Silva, no texto “Lembrando Eugénio Tavares”, recorda-o como o poeta do “amor pletórico, sensual, possessivo, impetuoso como uma corrente, e irreverente perante as convenções sociais e as bocas do mundo, que ele desprezava” (Notícias, 1 de Dezembro de 1990, p. 17). Osório de Oliveira, que organizou o livro de poemas Mornas – Cantigas crioulas51, assistiu às festividades da Semana dos Poetas52, na cidade de Mindelo (1927) e descreveu a homenagem a Eugénio Tavares e José Lopes: “Podeis imaginar o que seja uma multidão constituída por pessoas de todas as classes sociais, mas, em grande parte, por gente do povo, de pé descalço, a vitoriar incessantemente dois poetas? Compreendeis o que seja, para um europeu do século XX, acostumado ao desprezo pelos intelectuais e pelos artistas, ver um povo inteiro a gritar: «VIVAM OS NOSSOS POETAS»? Pois foi isso mesmo que eu vi, admirado, entusiasmado e comovido, no dia em que chegaram a São Vicente, aonde não iam há bastantes anos, os dois poetas mais queridos de Cabo Verde: Eugénio Tavares e José Lopes, o poeta da Brava e o poeta de Santo Antão.” (Notícias, 1 de Dezembro de 1990, p. 17). 50 Vários testemunhos da intervenção cívica e do interesse pela educação de Pedro Cardoso, Eugénio Tavares e José Lopes são referidos ao longo da dissertação. 51 A publicação deste livro deve-se a iniciativas e aos cuidados de Osório de Oliveira (Tavares, 1930, p. 109). 52 Em Outubro de 1927, o Governador, Coronel António Álvares Guedes Vaz convocou Eugénio Tavares, José Lopes e Januário Leite para uma homenagem pública em Mindelo. Pedro Cardoso não foi notificado por estar impedido. Só comparecerão Eugénio Tavares e José Lopes, este vindo da ilha de Santo Antão, onde estava colocado como professor. (Notícias, 1 de Dezembro de 1990, p. 17) 46 Uma sociedade (in) conformada Figura 7. Eugénio Tavares e José Lopes em S. Vicente, 1927 (Notícias, 1 Dez. 1990, p. 17) Relativamente ao poeta José Lopes, Martinho Nobre de Melo53, no prefácio das Hesperitanas, questionava: “Um romântico? Um clássico, um pensador, um simbolista, um enamorado da forma e do ritmo? Nada disto é José Lopes, sendo de tudo o bastante para nos desnortear, subjugar e encantar”54. 53 Martinho Nobre de Melo (1891-1985) natural da ilha de Santo Antão, formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, seguiu a carreira académica e foi professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi Ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros. Diplomata e escritor, colaborou em vários jornais e dirigiu a Junta de Defesa dos Direitos de África. Nos anos vinte tornou-se um dos ideólogos da direita portuguesa. Foi director do jornal A Reconquista (Lisboa), que apoiou o golpe militar de 28 de Maio de 1926, que pôs fim à 1ª República. Notas baseadas em Oliveira, 1998, pp. 765-66. 54 Citado no prefácio das Poesias escolhidas de José Lopes (1972). 47 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Questão linguística Dos universos simbólicos que impregnaram a cultura cabo-verdiana, a língua “como condição de inteligibilidade da palavra, intermediária estruturada do que se deve construir para se explicar a relação constante entre o som e o sentido” (Bourdieu, 1989, p. 9), num contexto de diglossia, merece atenção especial. Na obra Colonização, ensino e educação, no capítulo dedicado à língua de ensino, Antoine Léon explica a correlação entre as combinações binárias “jargões/línguas” e “selvagens/civilizados”55 e adianta que “o objectivo principal da empresa colonial, a saber da dominação exercida pela Metrópole sobre os povos subjugados, poderia ser teoricamente atingido privilegiando tanto a língua do colonizado como a do colonizador” (1991, p. 55). No caso de Cabo Verde, a língua crioula foi preterida56, sendo claramente privilegiada a língua portuguesa. Baltasar Lopes da Silva, escritor e linguísta, assegurou que “a linguagem crioula, essa, está tão arreigada no solo das ilhas, como o próprio indivíduo” (in Ferreira, 1967, p. 77). Num apontamento lido ao microfone da Rádio Barlavento, em resposta às considerações de Gilberto Freire sobre esta matéria57, afirmou: “Se não erro muito, o emprego constante do crioulo significa, em primeiro lugar, que, por processos de enriquecimento lentos e subtis, ele está apto a servir em grau elevado de veículo de comunicação entre os homens; e, em segundo lugar, que ele está definitivamente integrado no corpo de ideias e sentimentos que formam a nossa personalidade regional.” (1965, p. 35) Antoine Léon, no contexto da colonização francesa, considerou a política linguística um “altruísmo egoísta” (1991, p. 58). Também, em Cabo Verde, o ensino da língua portuguesa foi um acto de “altruísmo egoísta”, o próprio substrato da aculturação. 55 Antoine Léon cita uma afirmação de P. de Maupertuis. O currículo dos cursos da Escola Colonial, na Sociedade de Geografia de Lisboa, destinada “a preparar o pessoal que se destine ao funcionalismo ultramarino e a (...) auxiliar a propaganda dos interêsses coloniais portugueses” incluia a cadeira de “Línguas coloniais”, onde aprendiam o fula ou mandinga (Guiné); fioti (Angola), kimbundo (Angola), landim (ronga) (Moçambique), suahili (Moçambique), concani (Índia) e teto ou galoli (Timor) (art. 10.º). Em § único é referido que “O ensino do crioulo de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé, Índia ou Macau, bem como o doutras línguas indígenas, alêm das que já se ensinavam, será instituído à medida que as necessidades públicas o exijam” (Boletim Oficial, n.º 33, 16 de Agosto de 1919, p. 298). 57 Gilberto Freire passou pelas ilhas e sobre elas discorreu em dois livros: Aventura e Rotina e Um Brasileiro em Terras Portuguesas, em páginas que denunciam afirmações passíveis de controvérsia (Ferreira, 1967, p. 41). 56 48 Uma sociedade (in) conformada “Procedendo assim [difundindo a instrução], reconhecia que a língua portugueza atravez do continente negro, falada e escrita por 150 ou 200 milhões de habitantes, se tornaria imorredoura e representava a conquista de um povo, intelectualmente, e por tanto uma gloria para Portugal que teria a sua reflorescencia, o seu brilho nestas terras tão longínquas de Africa! Não se importando com esse problema tão magno para a vida de uma nação, depreende-se que os seus governantes querem continuar com as suas expoliações, despotismos, e essas barreiras separatorias que colocam o nativo, quer seja educado ou não, abaixo do europeu analfabeto, porque aquele é um... negro e este um branco! Misericórdia!” (Correio de África, 1 de Dezembro de 1922, p. 1) Rodrigo de Sá Nogueira, no prólogo do livro de Baltasar Lopes da Silva, O dialecto crioulo de Cabo Verde (1957), afirma que “a língua portuguesa não se conservou, no verdadeiro sentido da expressão, nas ilhas de Cabo Verde: ela metamorfoseou-se”. Sublinha que “não é o mesmo português da Metrópole, mas um português cheio de lesões muito profundas, não só na sua fonética como na sua morfologia, na sua semântica e na sua sintaxe” (Silva, 1984, p. 11). Acrescenta que do contacto do crioulo com o português resultou “um impulso generalizado de aristocratização fonética e vocabular” (idem, p. 43). A convivência das línguas – materna e de ensino – teve implicações no ensino e na aprendizagem: “Que espécie de ensino poderá ministrar um professor, que mal saiba falar o português e que o escreva incorrectamente? Qual de vós não reparou já que as crianças, por essas ilhas fóra, falam na escola o crioulo umas com as outras e até com os professores?” (O Caboverdeano, n.º 7, 18 de Maio de 1918, p. 1) Os efeitos didácticos da interferência do crioulo na aprendizagem (em língua portuguesa) fundamentaram a interdição do “uso da língua materna nas escolas”: “Tendo na minha visita às escolas das diferentes ilhas dêste arquipélago notado, com grande desgôsto, que em algumas delas o ensino se faz ainda em crioulo, ou mixto de crioulo e português, e tendo sido informado pelo inspector escolar de que ao seu conhecimento chegou a notícia de que êsse abuso têm sido levado ao ponto de alguns interrogatórios dos exames, tanto do 1º como do 2º grau, se realizaram nesse dialecto, o que é contra todas as disposições regulamentares em vigor na província; Atendendo a que o ensino feito por essa forma não só é improfíquo como redunda em alto prejuízo das populações escolares e, consequentemente, do povo caboverdeano: Hei por conveniente proibir expressamente o uso do crioulo nas escolas e determinar que a inobservância desta ordem seja considerada desobediência e, como tal, punidos todos os professores que a infringiram.” (Portaria n.º 303. Boletim Oficial, n.º 19, 8 de Maio de 1920, pp. 184-185) 49 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Eugénio Tavares, um dos paladinos da dignificação da língua cabo-verdiana, afirmava que “o dialecto caboverdeano pode falar-se e grafar-se (...) [e] constitui a documentação de uma das transformações mais felizes da língua portuguesa entre os povos coloniais”: “Mestiçada pelo contacto de duas raças diferentes, num consórcio de séculos; ressentindo-se da influência exercida, em longas gerações de colonos, por multidões de escravos; em breve a língua dos senhores tomou os vícios prosódicos dos escravos, conservando, ao lado de arcaismos lusitanos, pitorescamente, fonalidades bárbaras de muitos vocábulos sonoros, e de poucas expressões interjectivas. Transformações de línguas, é de crer que se operam não só por circunstâncias de tempo, como as que já distanciam a língua em que remoqueou Gil Vicente, da língua em que cantou João de Deus; senão, tambêm, por circunstâncias de meio, como as de que desviaram da língua em que fala o português continental, o dialecto em que se exprime o português de Cabo Verde. E deve ser certo que o interêsse filológico que leva ao estudo da língua em que nos chegaram as «Saudades» de Bernardim, não seja maior que o interêsse glotológico que recomenda o estudo do dialecto em que as deliciosas crioulas gorgeiam os seus amores.” (O Manduco, nº 11, 30 de Janeiro de 1924, p. 1) Não obstante a proibição do crioulo na escola e o anátema de língua de pretos e “estando o reinol (puro em contaminações tropicais) em nítida minoria, foi o homem crioulo que teve a última palavra; e o reinol não teve outro remédio senão «aculturar-se» idiomaticamente” (Baltasar Lopes, citado em Carreira, 1983, p. 73). Porém, a força anímica do crioulo não destronou o português, como língua de valorização pessoal e de expressão literária. “Mas são as condições privadas em que [o crioulo] socialmente se move, sem tratamento escolar, que tendem a limitá-lo à expressão literária popular, dado que a todo o momento, e à mão, ali está, depurado e amestrado o idioma nacional. Pois a língua portuguesa, e isto achamos dever realçar, ganha lugar de tal maneira sólido na alma do cabo-verdiano que basta tratar-se de indivíduos de instrução mediana para ela não esconder nenhum dos seus preciosos segredos. Eis, porque, em certa medida, é quase lícito perguntar se o idioma português não é também a língua dessa «região geográfica e psicológica», ou seja o leite materno dos escritores e poetas de Cabo Verde.” (Ferreira, 1967, p. 115) Em conclusão, as palavras de Manuel Ferreira (idem, p. 77): “o dialecto crioulo de Cabo Verde, [foi] afinal seiva robusta de uma soberba cultura nova: a cultura mestiça, simultaneamente garantia de uma transculturação de adaptação e quiçá a mais extraordinária prova a que a língua portuguesa já foi submetida pelas cinco partidas do mundo”. 50 3. A luta contra a adversidade: emigração e ensino ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ “Pela sua posição geográfica, Cabo Verde marca a extremidade ocidental da faixa do Sahel, caracterizada por condições climáticas de aridez e semiaridez, na dependência de fenómenos que acompanham as migrações anuais e seculares da convergência intertropical e seus efeitos desastrosos quando, nos movimentos para norte, tal faixa pluviogénica da circulação atmosférica não alcança as ilhas. Secas e crises têm sido acontecimentos constantes no arquipélago, constituindo, só por si, os maiores desafios para a população, que vive, fundamentalmente, da agricultura pouco diferenciada e de algumas actividades com ela ligadas.” (Ilídio do Amaral, 1991, p. 1) Estiagens e fome A pobreza natural das ilhas, dependentes de uma economia de subsistência muito frágil, agravada pela persistente irregularidade das chuvas e prolongadas estiagens, sujeita o cabo-verdiano a condições de vida extremamente duras. As secas frequentes e prolongadas, “a bem dizer cíclicas (de 5 em 5 anos, de 7 em 7 e mais)” (Carreira, 1983, p. 35), provocavam elevada mortalidade. No primeiro quartel do século XX ocorreram graves crises alimentícias, com especial incidência nos anos de 1911-13 e 1921-2358. O jornal português O Negro noticiou: “Tem-se manifestado em Cabo Verde os primeiros symptomas da fome. Ante este horror alguns negociantes pretendem explorar os caboverdianos, augmentando o preço dos géneros de primeira necessidade. Pedem-se providências” (n.º 2, 21 de Maio de 1911, p. 3). A cena observada por um grupo de estudantes de Mindelo, em visita à ilha de Santo Antão, é elucidativa: “Pouco tempo depois despertou a nossa curiosidade um sino que tangeu na rua, defronte da casa onde nos achávamos, aparecendo logo aos primeiros sons desferidos uma multidão de mulheres e crianças, que levavam bules velhos, canecos, etc. 58 Ocorreram crises e houve escassez de colheitas nos anos de 1900, 1901-02, 1905, 1910, 1911-13, 1920 e 1921-23. (Amaral, 1991, p. 14) 51 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Tendo perguntado a que iam, fomos informados de que iam receber a cachupa, que por ordem do governo lhes era distribuída diariamente por uma comissão composta dos srs. Borja, enfermeiro e Pedro da S. Brito, guarda fiscal. Não nos poupamos ao desejo de assistir a tal distribuição, a fim de sobre tudo informar os nossos leitores. Notamos apenas dois homens no grupo, sendo as restantes pêssoas, mulheres e crianças. Um dêstes homens estava magro, esquelético, os olhos sem brilho, as faces encovadas e as pernas a tremerem-lhe. Notamos tambem uma póbre mulher cêga que era conduzida por uma criança de 3 anos. As crianças estavam todas nuas e as mulheres tam miseravelmente trajadas que se lhes divisava as formas do corpo. (...) A cachupa consistia num milho fervido sem mistura nenhuma, não merecendo por isso o nome de cachupa. Quanto à quantidade, vimos quatro latas das que servem de vasilhame ao petróleo, cheias. Terminada a distribuição soubemos do sr. Borja que as pessoas contempladas na distribuição eram em número de 200, sendo 140 crianças e 60 adultos.” (N.º 7, 15 de Julho de 1913, p. 1) O Governo Provincial anunciou medidas “no sentido de eficazmente pôr-se termo à lamentável e desastrosa marcha que tem sido adoptada para elevar-se a excessos insofríveis o preço da alimentação dos pobres” (Portaria n.º 13, 14 de Janeiro de 191659). As “Notícias dos concelhos” descrevem os efeitos das estiagens: “Em Santo Antão, a ilha mais fustigada pela crise, há zonas de maior e menor escassez. «No geral, a situação do povo é má; mas diga-se com justiça, muito menos aflitiva do que no último ano». (...) «Fóme, na verdadeira acepção da palavra, só existirá em Sam João Baptista; no Coculi e na Garça há bastante falta, lutando a população com dificuldades, em vista do alto preço dos generos alimentícios: mas não há fôme». (...) «Cabe talvez, aqui, dizer que em Santo Antão paga-se mal ao trabalhador. No geral, o proprietário não dá a cada trabalhador mais que $1460 por dia e, muitas vezes, pagam em géneros. Às mulheres paga-se $08 a $10.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 246, 5 de Junho de 1916, p. 1) “[S. Vicente] População densa, com pouca higiene, pulmões traumatizados pelo pó de carvão, fustigados pelas areias que a briza forte arrasta, enfraquecida pela sífilis e pelo álcool, está em condições de fácil tuberculização. E para mais, parece ver-se ao longe o aspecto da fome, ouvindo-se já rumores de protesto das classes desprotegidas. É que falta o carvão, energia disto tudo, originando a dificuldade de comprar alimentos que estão caríssimos, e a sua falta concorre também para que a comida seja mal cozinhada, dura por isso, e com germens aos quais o calor mal combateu, mortificando e embaraçando o estômago e intestinos, provocando infecções. Para pensar, e muitíssimo, nesta crise de subsistências! (Boletim Oficial, n.º 27, 6 de Julho de 1918, p. 240) 59 Supl. nº 1 ao Boletim Oficial n.º 2, 14 de Janeiro de 1916, p. 21. O pagamento diário de um trabalhador ($14) dava apenas para comprar um quilo de batata inglesa; o salário de uma mulher ($08 a $10) equivalia ao preço de um litro de feijão “pedra” ou um litro de favona (um tipo de fava) (Cf. Edital de preços a retalho, 11 de Maio de 1916. Boletim Oficial, n.º 21, 20 de Maio de 1916, p. 174). 60 52 Uma sociedade (in) conformada A seca prolongada, de 1921 a 1923, sentiu-se nas escolas, que “funcionavam com regularidade, mas com uma frequência muito diminuta, nos pontos mais acossados pela crise” (Boletim Oficial, n.º10, 11 de Março de 1922, p. 78). Face às adversidades da natureza, “o cabo-verdiano torna-se o eterno emigrante que busca em terra estranha aquilo que a sua lhe nega sistematicamente. E passado algum tempo no «estrangeiro», ou amealhado modesto pecúlio, aí está de regresso às suas ilhas onde espera outra estiagem para voltar a emigrar. É quase um ciclo vicioso” (Carreira, 1983, p. 36). O eterno emigrante A solução adoptada na gestão das calamidades, pela administração colonial, foi a emigração coerciva: “Todo o indígena da província de Cabo Verde está sujeito à obrigação, moral e legal, de procurar adquirir pelo trabalho, os meios que lhe faltem de subsistir e de melhorar a própria condição social. (…) Tem plena liberdade para escolher o modo de cumprir essa obrigação; mas se não a cumprir de modo algum, a autoridade pública pode impor-lhe essa obrigação” (Regulamento do Trabalho Indígena61). Com “plena liberdade” para conseguir os parcos meios de subsistência, o caboverdiano foi forçado a procurá-los na terra-longe. Mesmo em plena República, nenhuma porta em aberto permitiu ao indígena escapar ao contrato, “sob a inovação constante da necessidade de o educar e de o civilizar” (Carreira, 1983, p. 193). Quadro 17 – Emigração para São Tomé, por níveis etários – 1913/1920 Grupos etários Menos 14 anos 14 - 20 anos 21 - 30 anos 31 - 40 anos Mais 40 anos Total Número 539 391 4.368 480 123 5.901 Homens Percentagem 55,1% 68,2% 60,3% 67,4% 86,6% 61,2% Número 439 182 2.876 232 19 3.748 Mulheres Percentagem 44,9% 31,8% 39,7% 32,6% 13,4% 38,8% Total 978 573 7.244 712 142 9.649 (Carreira, 1983, p. 238) 61 Supl. nº 2 ao Boletim Oficial n.º 9, 7 de Março de 1913, p.1. 53 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A emigração obrigou homens, mulheres (38,8%) e crianças (10,1%62) a trabalharem nas roças das ilhas de S. Tomé e Príncipe. Jerónimo Paiva de Carvalho63, no “depoimento sobre a questão dos serviçais de São Tomé”, dá-nos um testemunho do trabalho forçado: “Fala agora o serviçal mais inteligente que conhecemos no Príncipe. É um espírito atilado, cara bondosa e leal, coração generoso. Alto e corpulento, olhar vivo e franco. Chama-se João Antunes, de 30 anos de idade, casado, natural de Santa Catarina (Cabo Verde). Serviçal contratado com a Empresa Agrícola do Príncipe. Às nossas perguntas responde lucidamente: - O senhor curador conhece a minha situação como filho de Cabo Verde. Sou casado, tenho cinco filhos e sei ler e escrever. Só a fome, que encheu a minha terra, em 1903, podia arrastar-me a este inferno, onde, todavia, ganhei um pecúlio regular devido à mais rigorosa economia e onde não deixei ficar a pele pela coragem e tenacidade da minha fé no futuro e pelo sonho que me obcecava a todo o momento de ver os meus filhos. Sofri variados tormentos. Magoaram a minha dignidade. Cortaram, a chicote, o meu corpo. Mas vivo e isso é-me bastante. Onde todos caíram, eu consegui ficar de pé! Tive sorte. E por isso parto tranquilo e alegre. Nunca mais voltarei ao Príncipe. E nenhum dos meus patrícios terá vontade de o fazer. Antes rebentar de fome à beira da estrada do que descer à vergonha que arrastei estes anos de contrato.” (In Carreira, 1983, p. 178) No primeiro decénio do século, o surto migratório para São Tomé e Príncipe, ultrapassou 10.000 homens, mulheres e crianças, com picos nos anos de estiagem (1911-1914: 4.542 saídas). Na década seguinte, registou-se a emigração de 6.798 cabo-verdianos64, valores praticamente circunscritos aos anos de 1920-1921, “com a saída de 5.642 adultos, além de 479 crianças” (Carreira, 1983, p. 226). Quadro 18 – Emigração forçada: número de emigrantes e relação com a população – 1910/1929 Anos 1910/19 1920/29 Total Valor de cada decénio Média anual População recenseada 10.176 6.798 16.974 1.018 680 151.180 152.970 (Fonte: Carreira, 1983, p. 246) 62 Considerámos as crianças com menos de 15 anos. Jerónimo Paiva de Carvalho foi curador dos Serviçais na ilha do Príncipe, em inícios do século XX e autor do opúsculo Alma negra! Depoimento sobre a questão dos serviçais de S. Tomé (1912). (Carreira, 1983, p. 178) 64 Estes valores devem estar subestimados, devido “à inexistência de estatísticas da emigração forçada, a partir de 1923 e até 1940” (Carreira, 1983, p. 227). 63 54 Uma sociedade (in) conformada Mas porque ides, assim arrebanhada, A essa maldita terra de desterro? É a fome que vos leva acorrentada? Aproveitai melhor a mocidade E ide mais distante, ide à América A terra do trabalho e liberdade! (Eugénio Tavares) O poeta, também emigrante65, questiona o êxodo para a “terra de desterro”, contrapondo a emigração para “a terra do trabalho e da liberdade” (Lobo, 1996, p. 38). Segundo o historiador António Carreira, a primeira corrente migratória caboverdiana data do final do século XVII ou dos primeiros anos do XVIII e foi orientada para a América do Norte (1983, p. 85). O destino preferido foi a América, com um peso de 75,6% em relação ao total dos territórios que recebiam a emigração livre. Quadro 19 – Emigração livre: número de emigrantes, segundo os territórios de destino – 1911/1920 Países ou territórios de destino Ano Estados Unidos 1911 1912 1913 1914 1915 1916 1917 1918 1919 1920 Total 1.474 1.128 1.691 1.610 784 1.829 1.508 323 491 1.506 12.344 Brasil, Argentina, Uruguai, Chile 186 333 302 134 32 32 52 22 144 298 1.535 Guiné Angola, Moçamb. S. Tomé e Príncipe Dacar Gambia Lisboa, Açores, Madeira Outros países Total 174 26 6 1 97 125 60 84 144 519 1.236 30 15 10 90 10 26 7 8 2 4 202 18 18 23 369 29 39 15 30 25 16 582 65 61 173 76 82 94 41 13 17 115 737 58 18 18 25 124 60 48 48 65 18 482 9 39 48 32 5 16 5 154 2.014 1.599 2.262 2.353 1.190 2.210 1.747 528 893 2.476 16.330 (Carreira, 1983, p. 110) A emigração espontânea foi a alternativa para uma vida melhor. Contra a opinião dos que advogavam a “teoria da fixação do povo cabo-verdiano no seu seio” 66 e, 65 Eugénio Tavares foi injustamente acusado de alcance, pelo que teve de fugir para a América do Norte, para não ser preso. Em seu entender, não fugiu mas sim retirou-se. Porque – diz ele – “fugir é cobardia; retirar pode ser, ainda, um ponto de táctica” (Monteiro, 1999, p. 19). 55 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) ante a perspectiva da diminuição do fluxo migratório devido à proibição da entrada de analfabetos67 nos Estados Unidos, Eugénio Tavares enaltece as virtualidades da emigração para o Mundo Novo: “1.º Que o cabo-verdiano não vai à América apenas à cata de alimento. 2.º Que o cabo-verdiano, quando regressa, (pois que sempre regressa quem como ele ama a família e a terra em que nasceu) traz, não só “dollars”, senão luzes; e, apresenta, não só um exterior de civilizado, mas uma noção social por vezes mais justa que aquela que de outra parte lhe seria impossível trazer. 3.º Que o cabo-verdiano, na América, modifica o seu modo de ser moral, erguendo-se de um absoluto anonimato social, a consciente elemento de progresso. 4.º Que, açacalado no contacto do grande povo americano aprende a encarar a vida por um prisma mais elevado; cria necessidades que lhe educam a vontade em lutas mais nobres; integra-se na civilização, já se não adaptando dentro da exigência da cubata e da cachupa; já dificilmente suportando as exigências de um trabalho humilhante e mal remunerado, facto que já por mais de uma vez o contra-indicou, para as encomendas de forças físicas periodicamente facturadas para S. Tomé e Príncipe. 5.º Que, finalmente, o cabo-verdiano pertence, como todos nós sabemos, a esse número de homens cuja aspirações se não limitam à actividade mandibular.” (in Monteiro, 1999, pp. 229-230) “Proibir a emigração para os Estados Unidos é dirigirmo-nos ao povo cabo-verdiano, e dizer-lhe: Amigo tira os sapatos; despe o casaco; pega numa enxada e salta para os morgadios de Santiago, do Fogo, de Santo Antão, onde há faltas de braços. Foste até aqui, o livre trabalhador da América; de agora passas a ser uma espécie de contratado de S. Tomé. Até hoje comeste à tua mesa, em pratos e com talheres, o pão que o suor do teu rosto livremente fecundou e amadureceu; de hoje em diante irás comer, em gamelas de pau, o pão da escravidão que o diabo amassa – dessa escravidão encamisada de liberdade, que é um insulto à dignidade humana.” (Carta de 10 Junho 1918. In Monteiro, 1999, p. 230) As medidas restritivas da emigração para a América provocaram o aumento das saídas clandestinas. O ofício de 27 de Janeiro de 1916 refere que “a maior parte dos portugueses que se apresentam a pedir socorros nos consulados de Portugal no estrangeiro [são] indivíduos que nas colónias embarcam clandestinamente, protegidos pelos capitães de navios” (Boletim Oficial, n.º 8, 19 de Fevereiro de 1916). 66 Opinião defendida por D. Alexandre d’ Almeida (Carta de Eugénio Tavares, 10 Junho 1918). (Monteiro, 1999, pp. 228-239) 67 Consultar II Parte, Capítulo 1 (págs. 63 a 65). 56 Uma sociedade (in) conformada O bloqueio dos Estados Unidos da América à emigração de analfabetos evidenciou, a par da correlação seca-fome-emigração, o binómio ensino-emigração. A América era a terra das oportunidades, a alternativa para uma vida livre e culta: “¿Porque não ha de ser grande a América, se ela é o tabernáculo da Luz, o sacrário da Instrução e o santuário das liberdades individuais e colectivas? ¿Porque não estará ela enfileirada na grande Photodotera do Progresso, se no cumprimento do mais solemne dever coopera na colmeia das letras?” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 95, 18 de Fevereiro de 1915, p. 3) “Esta evidente ancia de se instruir, da raça preta na província, é concordante com o brilhante fenómeno observado na América do Norte e mostra a alta consciência que tem essa raça vilipendiada e desprezada, de que só na instrução poderá encontrar meios para se dignificar e para se elevar na civilisação, ao lugar que ocupa a raça branca! Só assim poderá combater o nefasto preconceito de raças, que mesmo entre nós faz dizer a um ministro, que não promoveu um empregado, honesto, inteligente e competente, por ser preto.” (O Progresso, n.º 26, 26 de Dezembro de 1912, p.1) O historiador António Carreira defendeu a tese que “a ideia de emigrar sedimentou-se no espírito dos insulares, designadamente pela tomada de consciência da curteza de horizontes que a classe dominante procurava manter” e colocou a hipótese de que “quando o preto e o mulato (em regra «filho de fora») se lançou na senda da emigração para países desenvolvidos, talvez tivessem no subconsciente a ideia de amealhar o suficiente, para, no retorno, se imporem à classe dominante, e vingarem-se da «guerra» implacável que esta lhe moveu sempre” (1983, p. 112). Ensino e desenvolvimento “A primeira necessidade em Cabo Verde para, fazendo resistencia ao actual estado das cousas, poder desenvolver-se e progredir, é crear escolas muitas e muitas escolas bem organisadas, com bons mestres, que ensinem instrucção primaria e um pouco de secundaria, afim de que o homem fique habilitado a lêr e a comprehender. (...) Supprimir a ignorancia, ou senão refreal-a é a estrada real que conduz a um futuro próspero e risonho.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 1, 1 de Março de 1911, p. 2) “Se, pois, n’este paiz se estuda, se os costumes são honestos, o homem torna-se estudioso e morigerado; no caso contrario o homem segue o vicio e entrava a roda do progresso.” (Idem, n.º 4, 22 de Março de 1911, p. 1) 57 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A interdição da entrada de analfabetos nos Estados Unidos da América foi pretexto e ocasião para campanhas de promoção do ensino e de combate ao analfabetismo. O inconformismo face às fatalidades e a intelecção do ensino como factor de desenvolvimento marcou o discurso jornalístico. José Lopes media “o grau de civilização de um povo, pelo número e estado das suas escolas, pela capacidade moral e intelectual de seus professores e pelo valor pedagógico dos livros didácticos” (A Voz de Cabo Verde, n.º 103, 4 de Agosto de 1913, p. 2). “Fechar uma escola equivale a inaugurar uma prisão. De todas as causas que tem patrocinado o homem, nenhuma ha mais sublime, que mais dignifique, consolide e edifique do que a da Instrução. Nobilissima causa a da Instrução! Quando vemos povos como os nipónicos, na máxima energia da sua vitalidade, subirem numa vertigem ciclópica ao apogeu da glória, colocaram na vanguarda da civilização, não podemos deixar de considerar que a escola, um germen nos trâmites da evolução para a glória, é um dos coeficientes mais poderosos que contribuem para enaltecer um povo e levantar uma nação a um nível de grandeza, moralidade cívica e prestigio universal.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 95, 18 de Fevereiro de 1915, p. 3) Nota final Ao fecharmos o capítulo Uma sociedade (in)conformada, retomamos o encadeamento dos conceitos ensino – educação – progresso – civilização – desenvolvimento, núcleo duro e denominador comum dos registos discursivos e simbólicos. Ao determinismo e à adversidade – fatalismo da natureza e da condição de cidadão colonizado (e mal governado) – opunha-se o querer sair e voltar (ciclo migratório) e a crença na capacidade do ensino gerar progresso social. A imagem da escola, reflectida pelo “espelho dos colonizadores” (Nóvoa, 2000, p. 132), era a suma aspiração da sociedade das ilhas. A consciência do atraso civilizacional da colónia e do mundo que o português criou68, gerou atitudes críticas ao referente educativo e cultural (oriundo da metrópole), porventura caldeadas com o conhecimento de outros modelos, que a abertura ao Mundo Novo proporcionou (pela emigração e evasão). 68 Expressão de Gilberto Freire. 58 II Parte A construção do discurso educativo ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 1. Escolarização e analfabetismo ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ O ensino e a alfabetização, como condições de progresso social, integraram o ideário cabo-verdiano, no primeiro quartel do século XX. Estas aspirações encontraram eco no ambiente gerado pela implantação da República, que “trazia, na sua bagagem revolucionária, o decidido projecto de reformar a mentalidade portuguesa, propondo-se executá-lo por diversas vias e, em situação de realce, pela via da instrução e da educação” (Carvalho, 2001, p. 651). Importa, ab initio, precisar as noções de analfabetismo e iletrismo. Justino de Magalhães, na obra Alquimias da escrita: alfabetização, história, desenvolvimento no mundo ocidental do Antigo Regime, estabelece a distinção entre os conceitos: “Analfabetismo e iletrismo constituem duas situações geradas num mesmo fenómeno de incapacidade de utilização da cultura escrita, mas têm origens diferentes e a resposta pedagógica também não é necessariamente a mesma. As situações de iletrismo não traduzem uma ausência de escola, mas uma regressão nas capacidades literácitas, originada, ou por uma desadequação da cultura escolar, ou por uma insuficiente assimilação da mesma. É em função da escolarização como processo histórico e pedagógico de ensinoaprendizagem que tende a definir-se e avaliar-se o conceito de alfabetismo e que tem sido escrita a história da alfabetização. (...) Há diferenças fundamentais entre os processos de alfabetização e a escolarização, quer no nível do ensino/aprendizagem, quer no nível do funcionamento dos próprios estímulos.” (1996, pp. 10/14-15) Com a necessária cautela, para não transgredir o rigor conceptual, seleccionámos um conjunto de opiniões sobre os caminhos da escolarização e da alfabetização em Cabo Verde. A documentação consultada contém frequentes referências ao estigma do analfabetismo e aos anseios de escolarização de crianças, jovens e adultos. “Sim; não basta criar escolas; é preciso tornar efectiva a obrigação de as frequentar. Essa obrigação tem, a nosso ver, dois fins: o de diminuir, quanto possivel, o numero de analfabetos e o de habituar o futuro homem a ter umas tantas horas por dia, de aplicação a algum trabalho util. Costumamos, ver por aí, garotando em horas escolares, dezenas de rapazes, sem que isso preocupe os pais, as autoridades, e os proprios professores com relação áqueles rapazes que não estão matriculados.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 36, 26 de Abril de 1912, p. 2) 61 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A alfabetização era percepcionada como fenómeno comunicacional e instrumento de desenvolvimento e de libertação. “Sem instrução não há progresso nem civilisação. Os povos analfabetos são presa facil de toda a especie de exploradores e de todas as superstições e preconceitos! Não vivem, vegetam! Os seus indivíduos não são unidades de riqueza, mas sim de miséria, pois não compreendem os seus justos interesses, são faltos de iniciativa, de previdência dignidade! Os povos analfabetos são escravos. A província de Cabo Verde ainda sob êste ponto de vista é pobre, porque a deficiência da sua instrução é grande, os meios para a conquistar precários e mal organizados. Não porque aos seus habitantes mingúe vontade de saber e de se elevarem, mas porque lhes escasseiam os meios para a alcançar e ser um povo instruído.” (O Progresso, n.º 26, 26 de Dezembro de 1912, p. 1) O estudo aprofundado do analfabetismo, em Cabo Verde, coloca questões que ultrapassam o âmbito deste estudo: Qual a qualidade das práticas da leitura e da escrita? Houve analfabetismo letrado? Na coluna intitulada “A vol d’ oiseau” (A Voz de Cabo Verde), o advogado Loff de Vasconcellos aborda esta problemática: “Preconizar a instrução e a educação de um pôvo é já um lugar comum tão indigesto, que nos abstemos de o fazer; mas o que é certo é que toda a gente fala da necessidade desse pão espiritual, e cada vez mais essa necessidade vai aumentando na classe dos analfabetos letrados, essa praga que tudo corroe numa sociedade, onde poucos sabem lêr bem e tombent dans le pédantesque. O analfabetismo iletrado é um mal – sem dúvida; mas que tem uma correcção natural no bom senso intuitivo do pôvo, no seu critério simplista, na sua experiência atávica, adquiridos e robustecidos pelo trabalho duro, pelas sábias lições da Natureza, esse grande pedagôgo que, sem compêndios, sem estéreis prelecções, é e será sempre a grande mestra da vida.” (N.º 354, 8 de Julho de 1918, p. 1) A dimensão informal, à margem da cultura escolar institucional, pode ser percebida em retratos do quotidiano captados pela imprensa: “É frequente observarse nas povoações numerosas crianças sentadas na rua, a quem professores improvisados ensinam o que sabem” (O Progresso, n.º 26, 26 de Dezembro de 1912, p. 1). Na I Parte (Capítulo 3) defendemos a premissa que a emigração e a alfabetização foram realidades convergentes, com um vértice comum – o progresso social. O domínio da escrita tornou-se “factor de auto controlo económico e jurídicoadministrativo, associado a uma complexificação económica e a uma maior diversificação e especialização das forças produtivas” (Magalhães, 2001, p. 161). 62 A construção do discurso educativo A conotação da ausência de cultura escrita com níveis socioprofissionais desprestigiantes assoma no texto jornalístico: “O filho de Cabo Verde, que vai para a América, destina-se ali a trabalhos braçais. Geralmente, emigra analfabeto, o que o inibe de exercer outros mistéres numa terra onde todas as aptidões são aproveitadas e largamente remuneradas” (A Voz de Cabo Verde, n.º 49, 22 de Julho de 1912, p. 1). Contrastando com o estádio de desenvolvimento limitado dos estados periféricos – agravado em contextos de subjugação colonial –, o desenvolvimento tecnológico dos Estados Unidos da América não era compatível com a força de trabalho iletrada. “O problema do analfabetismo é também um problema económico e disso tiveram durissima demonstração os caboverdianos, para quem a emigração para os Estados Unidos constitui uma fonte de riqueza e um meio de civilização: nos Estados Unidos vai ser proibida por lei a entrada de emigrantes que não mostrem falar e escrever a sua lingua. Esta proibição equivale a estancar quasi completamente a emigração para os Estados Unidos, porque a grande maioria da população deste Arquipelago é constituida por analfabetos: segundo a estatistica oficial de 1911 publicada em 1912 no Boletim da Província, a percentagem dos analfabetos atinge na quasi totalidade das freguezias mais de 85%, chega a atingir 95% em algumas! Urge provêr de remedio este gravissimo mal que, de mãos dadas com a fome, assola o arquipelago de Cabo Verde.” (Revista da Educação, n.º 2, Julho de 1913, p. 140) Nesta conjuntura, a Sociedade de Estudos Pedagógicos propôs ao Governo da República69 “o desenvolvimento das escolas oficiais existentes, a criação de outras nos locais mais afastados, a criação de escolas móveis e o recurso ao ensino particular, estimulando-o com prémios pecuniários” (idem, p. 142). A reacção do professor Augusto Miranda às limitações impostas à emigração para os Estados Unidos da América foi contundente: “Alta administração, iniciativas sensatas, economias necessárias e medidas rasgadas de fomento, eis os planos a opor ao odioso gesto do Congresso Americano” (O Popular, n.º 14, 15 de Fevereiro de 1915, p. 2). 69 A representação da Sociedade de Estudos Pedagógicos foi remetida, pelo Ministro das Colónias, ao Governador da Província de Cabo Verde, com pedido de informação sobre as solicitações apresentadas (Ofício n.º 261, 29 de Junho de 1913. Cx. 670, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN). 63 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Figura 8. “Se a América do Norte fechar os seus portos aos analfabetos…” (Excerto do relatório sobre o movimento da Escola Oficial de S. Jorge da ilha do Fogo70) O jornal oficial pronunciou-se sobre a questão: “Todavia, admitindo-se a hipótese da possível aprovação do projecto proibindo a entrada de analfabetos dos Estados Unidos, publica-se esta notícia, como prevenção aos habitantes do arquipélago de Cabo Verde, que podem num futuro não distante vêr tolhida uma emigração que até ao presente se lhe tem facilitado e de que tiravam vantagem” (Boletim Oficial, n.º 15, 10 de Abril de 1915, p. 144). A administração provincial, em circular às administrações de concelho, anunciou um projecto de reforma do ensino, que viria “disseminar o mais possível a instrução na colónia”: 70 Cx.ª 666, Fundo da Secretaria Geral do Governo, 1 de Setembro de 1916, IAHN. 64 A construção do discurso educativo “Em vista do telegrama publicado neste Boletim, confirmando a noticia de haver sido vedada a entrada de emigrantes analfabetos, nos Estados Unidos da América do Norte, em nome de S. Ex.ª o Governador é recomendada às administrações de concelho a circular publicada no Boletim Oficial n.º 18, de 5 do corrente, em que se exortou os interessados a que procurem frequentar as escolas primárias, afim do aprenderem a lêr e escrever. Com o fim de disseminar o mais possível a instrução primária na colónia, tem o Govêrno da Província, procurado providenciar, submetendo ao Govêrno da Metrópole, em 1915, um projecto de reorganisação do ensino primário, que recentemente renovou, e que tem por fim, não só melhorar as condições de tal serviço, – preparação e admissão de professores e suas garantias – mas tambêm aumentar o número de escolas e postos de ensino, estimulando, outro-sim, o leccionamento particular na província, onde quer que êste seja susceptível de aproveitamento.” (Boletim Oficial, n.º 21, 26 de Maio de 1917, p. 206) O estímulo da alfabetização, praxis associada ao fenómeno migratório, era considerado um desígnio patriótico: “Debaixo do ponto de vista nacional impõe-se ao govêrno a obrigação de ensinar a ler aos caboverdeanos para evitar a sua desnacionalização, para se não dar o facto de os vêr ir aprender a ler e escrever na América o inglês antes de saberem o português” (O Caboverdeano, n.º 11, 23 de Junho de 1918, p. 2). Do ponto de vista do “interêsse nativista local”, era uma questão social: “Não resta dúvida que convêm muito mais à provincia habilitar cada ano uns milhares de seus filhos para a luta pela vida por êsse mundo fóra, a poderem emigrar e trabalhar em melhores condições económicas, do que fazer anualmente quatro dezenas de doutores à custa de quatro milhares de analfabetos. Económica e socialmente valem mais para Cabo Verde, trazem mais vantagem coletiva material cem emigrantes da América que dez doutores, e custa menos a ensinar a lêr a cem crianças, isto é, custa menos sustentar uma escola de instrução primária um ano do que formar um bacharel. (…) Estão sem escola 22:785 crianças! Correm o perigo do analfabetismo, 14:504 raparigas e 8:281 rapazes. Bom povo de S. Vicente! Se o cónego Teixeira vos não disse isto fez muito mal. Reparai que estas 22:785 crianças, e mais grande parte, a maior, das 6:564 que não tiveram aproveitamento nas escolas, são os futuros escravos que o José Costa e outros inimigos de Cabo Verde vão mandar para S. Tomé a um tanto por cabeça como quem vende gado!” (O Caboverdeano, nº 11, 23 de Junho de 1918, p. 2) 65 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Frequência escolar assimétrica A política de alfabetização centrou-se na escola e no modelo pedagógico formal. Os resultados parcelares do recenseamento escolar71, no concelho da Ribeira Grande, ilha de Santo Antão (40,3% de crianças não escolarizadas) e na ilha do Sal (25,7%), dão-nos a dimensão das crianças não escolarizadas. Quadro 20 – Recenseamento escolar, concelho da Ribeira Grande – 1923/1924 Freguesias Nª Senhora do Livramento Nª Senhora do Crucifixo Santo Crucifixo São Pedro Apóstolo Total Crianças recenseadas Masc. Fem. 80 72 343 79 428 36 68 0 919 187 Crianças que recebem ensinam Oficial Particular/doméstico Masc. Fem. Masc. Fem. 78 72 2 0 223 54 0 0 177 17 0 0 33 0 0 0 511 143 2 Crianças que não recebem ensino Masc. 0 120 251 35 Fem. 0 25 19 0 406 44 0 (Boletim Oficial, n.º 45, 11 de Novembro de 1923, p. 359) Quadro 21 – Recenseamento escolar, ilha do Sal – 1923/1924 Freguesias Nª Senhora das Dores Total Crianças recenseadas Masc. Fem. 63 38 63 38 Crianças que recebem ensinam Oficial Particular/doméstico Masc. Fem. Masc. Fem. 39 26 4 6 39 26 4 6 Crianças que não recebem ensino Masc. 20 Fem. 6 20 6 (Boletim Oficial, n.º 46, 17 de Novembro de 1923, p. 365) A análise dos “Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas”, apresentados pela Secretaria Geral do Governo da Província, com periodicidade mensal72, permitiu-nos traçar o perfil da frequência escolar de 1910 a 192073 (Gráfico 1). 71 A Carta Orgânica da Província de Cabo Verde regulamentou o recenseamento escolar, atributo das Juntas Locais de Instrução, que o realizava em “época prefixa” (art. 265º do Decreto n.º 3.108-B, Supl. nº 9 ao Boletim Oficial n.º 25, 25 de Junho de 1917, p. 27). O recenseamento era organizado por uma comissão constituída, sob a presidência dos administradores dos concelhos e seus delegados locais, pelas Juntas Locais de Instrução, por professoras e professores, oficiais do Registo Civil e pelos párocos. (Boletim Oficial n.º 28, 13 de Julho de 1918, p. 249). 72 Consultámos a série publicada nos Boletins Oficiais, de 15 de Dezembro de 1910 (referentes a Outubro de 1910) a 31 de Março de 1917 (referentes a Janeiro de 1917). 73 Não tivemos acesso a dados estatísticos consistentes para o período de 1921 a 1926. 66 A construção do discurso educativo Em conformidade com as informações estatísticas, condensadas em instrumentos de quantificação, registou-se uma evolução positiva das crianças escolarizadas, com uma quebra nos anos de 1914 a 1916, que poderá estar relacionada com a situação económica gerada pela 1ª Guerra Mundial. Gráfico 1 – Frequência escolar: número de alunos no ensino primário – 1910/ 1920 nº d e matrículas 8 .0 0 0 7.50 0 7.0 0 0 6 .50 0 6 .0 0 0 5.50 0 5.0 0 0 ano lectivo Os indicadores de frequência escolar feminina indiciam uma cultura de género discriminatória (Quadro 22 e Gráfico 2). Porém, enquanto que a taxa de variação da frequência escolar (ambos os sexos) foi de 4,1%, o mesmo índice para o sexo feminino elevou-se a 6,2%. Estes valores sugerem uma tendência para a atenuação das diferenças de género. Quadro 22 – Frequência escolar: taxas de crescimento das matrículas, total e femininas – 1911/192074 Anos lectvos Taxa de crescimento das matrículas 1911-12 1912-13 1913-14 1914-15 1915-16 1916-17 1917-1920 2,1% 8,3% 20,0% - 6,4% - 3,9% 5,6% 9,9% Taxa de crescimento das matrículas de alunas 2,1% 8,8% 21,8% - 6,9% 10,2% - 0,2% 37,5% (“Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde75) 74 Alunos matriculados na instrução primária: 1910-11(Total mat.: 5.548; Alunas: 18,7%); 1911-12 (Total mat.: 5.670; Alunas: 22,1%); 1912-13 (Total mat.: 6.144; Alunas: 22,2%); 1913-14 (Total mat.: 7.390; Alunas: 22,5%); 1914-15 (Total mat.: 6.911; Alunas: 22,4%); 1915-16 (Total mat.: 6.630; Alunas: 25,7%); 1916-17 (Total mat.: 7.002; Alunas: 24,3%) e 1920 (Total mat.: 7.701; Alunas: 30,3%). (“Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde) 67 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Gráfico 2 – Evolução das matrículas de alunos e alunas – 1911/1919 Nº de matrículas 85 75 65 55 45 35 25 15 % matrículas raparigas % matrículas rapazes % evolução frequência feminina 1911-12 1913-14 1915-16 1918-1919 Anos lectivos O professor José Lopes denunciou a discriminação da mulher no acesso a oportunidades educativas: “Se a educação da mulher portugueza, no geral, tem sido quasi totalmente esquecida, a da caboverdeana, em particular, está por completo desprezada. São em limitadissimo numero as escolas proprias do sexo feminino existentes na Provincia e, as poucas que há, são todas primarias. Recebem, por conseguinte, uma insignificantissima parte da população feminina. A grande maioria não participa do beneficio que o Estado aliás deve a todos, beneficio que só se pode generalizar pela creação de muitas mais escolas, ainda que não passem de femininas. A educação que as caboverdeanas recebem é, quasi totalmente domestica e restricta aos costumes; mas a instrução, essa rudimentar instrução que tão escassamente se lhes proporciona, só a compartilham filhas de paes abastados e de medianos haveres ou de gente pobre a quem succeda residir nas proximidades das escolas. (...) Como salvar a mulher caboverdeana, “a do povo, [que] não sabe lêr, nem escrever, nem contar e [a quem] esta dupla miseria intellectual e moral augmenta muito as desgraças da sua classe? 75 Os dados referentes ao período de 1910 a 1917 foram extraídos dos “Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas”, publicados nos Boletins Oficiais: n.º 45, 28 de Outubro de 1911, p. 390; n.º 42, 12 de Outubro de 1912, p. 232; n.º 39, 27 de Setembro de 1913, p. 345; n.º 51,19 de Dezembro de 1914, p. 467; n.º 52, 25 de Dezembro de 1915, p. 24; n.º 44, 28 de Outubro de 1916, p. 363 e n.º 13, 31 de Março de 1916, p. 131. Os dados referentes a 1920 foram colectados na publicação Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1923), pp. 116-117. 68 A construção do discurso educativo Por toda a parte, em nossas ilhas, abundam infelizes mulheres que parece terem sido chamadas a desempenhar uma função única, a degradante e triste função de satisfazer os appetites de lascivia, das grandes victimas da prostituição, nas quaes a maternidade, que sempre devia dignificar a mulher, é um crime, aliás imputável à sociedade.” (O Independente, n.º 6, 30 de Março de 1912, p. 3) Às assimetrias de género juntavam-se as diferenças sociais: “as filhas de paes abastados e de medianos haveres”, com escassa instrução e a “mulher do povo, que não sabe lêr”, associada à “triste função de satisfazer os appetites de lascivia”. A cartografia da escolarização revela profundas desigualdades, com incidência particular na escolarização feminina. Quadro 23 – Número de alunos do ensino primário e percentagem de alunas matriculadas – 1911/1920 Concelhos Ilhas Praia, ilha de Santiago Ilha do Maio Santa Catarina, ilha Santiago Tarrafal, ilha de Santiago Ilha do Fogo Mosteiros,76 ilha do Fogo 1911-12 1913-14 1915-16 1920 Total Alunas Total Alunas Total Alunas Total Alunas 831 22,4% 1.224 19,4% 1.146 28,1% 1.166 26,1% 0 0,0% 0 0,0% 0 0,0% 100 22,0% 728 7,8% 992 6,8% 802 11,7% 473 26,2% 0 0,0% 0 0,0% 0 0,0% 427 3,9% 304 21,1% 544 20,4% 598 16,9% 415 16,6% 0 0,0% 0 0,0% 0 0,0% 187 0,0% 542 42,1% 554 44,4% 570 35,1% 587 50,8% 742 34, 6% 1.079 39,5% 975 41,1% 750 46,0% 1.509 13,5% 1.819 15,9% 1.522 20,8% 1.578 24,5% 0 0,0% 0 0,0% 0 0,0% 841 39,7% Ilha de São Nicolau 743 24,4% 754 21,6% 684 24,7% 825 36,0% Ilha da Boavista 212 25,9% 299 32,1% 281 27,8% 297 15,8% Ilha do Sal 59 35,6% 66 37,9% 52 42,3% 55 43,6% Ilha Brava Ilha de São Vicente Ilha de Santo Antão 77 Paul, ilha de Santo Antão (Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde78) 76 A região de Mosteiros integrava o concelho do Fogo. Com a divisão administrativa de 1917, surge o concelho irregular dos Mosteiros, abrangendo a freguesia de N.ª Sra. da Ajuda. 77 Após a divisão administrativa de 1917, o concelho de Santo Antão passou a designar-se concelho regular da Ribeira Grande e surge um novo concelho: Paúl, que abrange as freguesias de Santo António das Pombas e de S. João Baptista. 78 Os dados referentes ao período de 1910 a 1917 foram extraídos dos “Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas”, publicados nos Boletins Oficiais: n.º 45, 28 de Outubro de 1911, p. 390; n.º 42, 12 de Outubro de 1912, p. 232; n.º 39, 27 de Setembro de 1913, p. 345; n.º 51,19 de Dezembro de 1914, p. 467; n.º 52, 25 de Dezembro de 1915, p. 24; n.º 44, 28 de Outubro de 1916, p. 363 e n.º 13, 31 de Março de 1916, p. 131. Os 69 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A ilha de Santiago apresenta clivagens entre a cidade e o meio rural: na Praia, a taxa de frequência escolar feminina (1920) atingiu o percentual de 26,1, enquanto que no Tarrafal, no mesmo ano, era de 3,9%. Contrariando a tendência geral, na ilha do Fogo, a escolarização feminina regrediu ao longo do tempo (variação de menos 3,5%) e nos Mosteiros (1920), a frequência escolar era exclusivamente masculina. A ilha Brava apresenta os melhores indicadores de escolarização feminina (1912: 42,1%), atingindo a equidade em 1920. Em Mindelo, as diferenças de género foram-se atenuando (1920: 46% de meninas na escola). Registou-se uma evolução positiva, em Santo Antão (no fim da década: 24,5%). Na ilha de S. Nicolau, após uma redução inicial, o número de alunas cresceu (1920: 36%). Pelo contrário, na ilha da Boavista a taxa de escolarização feminina diminuiu, a partir de 1913/14 (1920: 15,8%). Na ilha do Sal, com uma população escolar diminuta, as desigualdades eram menos notórias (média, 39,9%). As marcas discriminatórias não se esgotavam nas diferenças de condição social e de sexo. A sociedade cabo-verdiana foi estigmatizada por heterogeneidades fundamentadas em critérios étnicos: “A província de Cabo Verde, pelo último recenseamento conta 143:257 habitantes – desses são de cor 138:511 – brancos 4:736. Quer dizer que a raça branca representa a trigésima parte da população. Póde pois dizer-se que a estatística incide, na sua quási totalidade, sôbre a raça preta. Boas ou más, as conclusões pertencem-lhe.” (O Progresso, n.º 26, 26 de Dezembro de 1912, p. 1) Os censos e as estatísticas escolares consolidaram os níveis hierarquizados da população, organizando-a em três grupos: raça branca, raça mista e raça preta79. A classificação “era feita a olho, pelo que indivíduos mestiços com aparência de brancos ou de negros podiam ou não ser classificados como mestiços, sendo incluídos em qualquer dos outros dois grupos em caso negativo” (Oliveira, 1998, p. 392). dados referentes a 1920 foram colectados na publicação Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1923), pp. 116-117. 79 A classificação dependia assim da variação dos critérios utilizados e da experiência do «classificador». Isto explica (para além das fomes é claro) as variações incongruentes do número de homens brancos, negros e mestiços nas estatísticas. Certo mesmo é a progressiva diminuição dos brancos e “quase brancos” e o aumento, tanto numérico como percentual, do grupo mestiço. (Oliveira, 1998, p. 392) 70 A construção do discurso educativo Gráfico 3 – Repartição dos alunos, segundo a origem étnica – 1911/1920 Preta Branca Mista No arco temporal do presente estudo, 64,6% das crianças escolarizadas era classificada de “raça mista”, 8,3 % de “raça preta” e 27,1% de “raça branca”80. De acordo com a distribuição regional dos efectivos escolares, segundo a origem étnica, a maioria dos alunos de “origem europeia” concentrava-se na ilha Brava, representando quase um quarto da população escolar (22,7%)81. Em situação antagónica, as ilhas do Maio e de Santo Antão, sem registos de alunos brancos (1920). 80 Alunos da instrução pública, por origem étnica: 1910-11(Total mat.: 5.548; RB: 8,4%, RM: 67,9%, RP: 23,6%); 1911-12 (Total mat.: 5.670; RB: 9,7%, RM: 61,8%, RP: 28,5%); 1912-13 (Total mat.: 6.134; RB: 7,7%, RM: 60%, RP:32,3%); 1913-14 (Total mat.: 7.390; RB: 6,3%, RM: 62,7%, RP: 31%); 1914-15 (Total mat.: 6.911; RB: 6,1%, RM: 66,9%, RP: 27%); 1915-16 (Total mat.: 6.630; RB: 6,9%, RM: 60,9%, RP: 32,2%); 1920 (Total mat.: 7.591; RB: 4,5%, RM: 71,6%, RP: 23,9%). (“Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde) 81 Alunos de raça branca, ilha Brava: 1911/12, 25,8%; 1913/14, 21,6%; 1915/16, 18,1%; 1920, 25,4%. 71 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Quadro 24 – Número de alunos matriculados, segundo a raça – 1911/1920 1912 - 1912 1913 - 1914 1915 - 1916 1920 Concelho Ilha Praia Maio Santa Catarina Tarrafal Fogo Mosteiros Brava S.Vicente S. Antão Paúl Total Branca Mista Preta Total Branca Mista Preta Total Branca Mista Preta 831 79 423 329 1.224 97 556 571 1.156 101 407 648 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 728 18 276 434 992 25 199 768 802 17 173 612 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 304 30 206 68 544 17 341 186 598 28 344 226 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 542 140 379 23 588 128 421 39 570 103 444 23 742 67 530 145 1104 74 870 160 975 86 717 172 1.509 177 989 343 1.819 90 1.508 221 1.522 106 1.185 231 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 Total Branca Mista Preta 1.079 80 375 624 100 0 63 37 396 28 130 238 427 6 51 370 413 11 314 90 187 4 174 9 587 149 380 58 750 63 604 83 568 0 568 0 841 5 833 3 743 13 626 104 754 9 617 128 684 7 677 0 825 2 797 26 Boavista 212 15 45 152 299 12 86 201 281 8 70 203 214 3 81 130 Sal 59 10 28 21 66 10 35 21 52 3 24 25 55 3 40 12 S Nicolau (Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde) Apesar da legislação educacional consultada não ter consagrado o princípio da obrigatoriedade escolar, a sociedade defendia a criação de medidas de estímulo à escolarização das crianças. Leia-se o artigo “Instrução pública em Cabo Verde” escrito pelo Engenheiro Armando Xavier da Fonseca82: “O Estado, desde que se sacrifica a abrir escolas, para difundir a instrução, tem de fazer exigências: quanto a nós, no que diz respeito à instrução, como em muita coisa mais, não se pode ir com meias dóses de exigência; assim, onde existirem escolas que já comportam a população escolar, deve-se tornar obrigatória a frequência de todas as crianças dos 5 aos 10 anos, sob a pena de multa, em dinheiro ou trabalho, aplicado aos pais, tutores ou curadores que não mandem os filhos à escola.” (O Futuro de Cabo Verde n.º 63, 9 de Junho de 1914, p. 2). O professor José da Fonseca Laje, colaborador assíduo de O Futuro de Cabo Verde, após traçar o quadro ideal da missão do professorado, interrogava: “¿Mas isto [os melhores e mais racionais métodos de ensino e os mais sabedores professores] obtem-se em Cabo Verde sem que ponham em rigorosa execução a lei do ensino obrigatório? Forte e cego engano!... 82 Armando Xavier da Fonseca (sécs. XIX-XX), engenheiro civil e de minas, colaborou no jornal A Voz de Cabo Verde. Alvo de troça de Eugénio Tavares, tornou-se seu inimigo e fez uma campanha contra o poeta no jornal O Futuro de Cabo Verde, de que era colaborador assíduo. Fonte: Oliveira, 1998, p. 773. 72 A construção do discurso educativo Se o aluno não quer frequêntar a escola, a família, que bem reconhece que nenhuma responsabilidade tem nesse arbítrio, não se opõe, e o menino vai, se quer, mas se não quer ninguém o obriga. (...) Aqui nota-se a omissão do Govêrno descurar a lei do ensino obrigatório e o desinterêsse das sociedades e dos particulares: Clamam pela instrução, mas ficam calados e sem instrução!” (N.º118, 29 de Julho de 1915, p. 3) No ano seguinte, o professor José Maria Cabral de Azevedo apresentou uma série de questões sobre o abandono escolar: “Há alguns anos a esta parte que os habitantes daquela ribeira [Praia Branca, ilha de São Nicolau] precipitaram-se numa tam degradante como abominavel inércia, que do mês de Abril em diante não mandam os seus filhos para a escola, e os poucos que mandam o fazem tardiamente e com tal frieza e indiferentismo que nem fornecem aos filhos os utensílios indispensáveis e exigidos pelo professor; e se ele lhes pedir com instancia, o descompôem confiados em que as autoridades não dão previdências. Pergunto: ¿Porque é que o administrador do concelho não vai ali advertir e conduzir aquela gente à ordem? (...) O contribuinte, que se omite no pagamento da contribuição, é logo, com meios coercivos, executado e muitas vezes confiscado. ¿E o aluno matriculado que, espontaneamente, ou com a permissão do pai, filho da sua ignorancia, deixa de comparecer à escola ou se comparece, não se encontra munido de livros e utensílios, o que se justifica ser causado pelo desmazelo repreensível do pai, não é logo chamado e repreendido com advertencia, todavia sem se afastar da sã moral que é a doutrina de bons costumes e que deve ter por princípio a bondade, e não deixar ao talento dos ignorantes e desculpaveis pais e filhos o procederem como entenderem?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 258, 28 de Agosto de 1916, p. 3) Quadro 25 – Matrículas no ensino primário e percentagem de alunos com frequência irregular – 1911/1917 Anos lectivos N.º total matrículas 1910-11 5.548 Percentagem de alunos com frequência irregular 50,6% 1911-12 5.670 41,6% 1912-13 6.134 26,5% 1913-14 7.390 41,4% 1914-15 6.911 41,6% 1915-16 6.630 52,3% 1916-17 7.002 33,7% (Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde83) 83 Os dados foram extraídos dos “Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas”, Secretaria-geral do Governo, publicadas nos seguintes Boletins Oficiais: N.º 45, 28 Outubro 1911, p. 390; n.º 42, 12 de Outubro 1912, p. 232; n.º 39, 27 Setembro 1913, p.345; n.º 51, 19 Dezembro 1914, p. 467; n.º 52, 25 Dezembro 1915, p. 24; n.º 44, 28 Outubro 1916, p. 363; n.º 13, 31 de Março 1916, p. 131. 73 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Os indicadores de absentismo, em decréscimo no primeiro triénio, aumentaram até 1915/16, atenuando-se nos anos seguintes. A frequência irregular é sintoma de elevadas taxas de abandono escolar. Gráfico 4 – Frequência escolar regular e irregular – 1910/1917 % alunos com frequência irregular % alunos com frequência regular nº de matrículas 70 60 50 40 30 20 1910-11 1911-12 1912-13 1913-14 1914-15 1915-16 1916-17 Ano lectivo Quadro 26 – Distribuição dos alunos com frequência irregular ao longo do ano – 1911/191684 Meses Outubro Novembro Dezembro Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho 1911-12 26,2% 27,2% 28,7% 28,7% 41,5% 29,6% 30,4% 32,8% 36,9% 41,6% 1913-14 22,0% 25,5% 25,1% 27,6% 28,9% 30,6% 32,0% 32,8% 38,2% 41,3% 1915-16 20,1% 24,3% 25,8% 29,4% 30,9% 37,7% 37,4% 40,1% 45,8% 52,3% Anos As faltas às aulas acentuavam-se a partir do mês de Abril e culminavam no fim do ano lectivo. Este comportamento poderá ser associado ao deficiente aproveitamento e às características da rede escolar: “As escholas de 1º mantem frequencia alumnos promptos evidentemente, em 84 Ver nota anterior. 74 grau, com 60 alumnos, dos quaes em muito casos só metade regular, chegando ao fim do anno lectivo com menos de 10 para exame e o resto com fracas noções do programma, muitos logares não dão muito melhores resultados; e, se A construção do discurso educativo examinarmos o que produzem outras escholas, em que a frequencia é ainda reduzida por difficuldades de viação, por grande dispersão de casaes, etc., facilmente se conclue que um certo numero das escholas ruraes existentes na provincia poderiam, sem desvantagem, ser supprimidos, substituindo-se-lhes a instrucção rudimentar livre, subsidiada pelo processo preconizado na citada portaria provincial de 1889 (premios de leccionadores que apresentassem creanças por elle ensinadas – tudo authenticado segundo o regulamento).” (Boletim Oficial, n.º 23, 10 de Junho de 1911, p. 179) Existe uma correlação entre aprendizagem mínima e abandono escolar. Nas zonas rurais, muitas famílias queriam que os filhos “não aprendessem mais do que o preciso para saberem escrever umas letras, os seus nomes ou uns numeros em casca d’ abóbora (…), por effeito de necessidades da vida agricola local, que obrigam os menores a ajudarem os paes em varios serviços do campo, em prejuizo do ensino diurno” (idem). Nas épocas de estiagem, as escolas ficavam desertas, como testemunha Chiquinho85: “Das ilhas chegavam notícias alarmantes. Por toda a parte a seca estendera as suas garras insaciáveis. Em Santiago, a Praia enchera-se literalmente de gente fugida do interior. (...) A minha escola no Morro Brás morreu de inanição. Os alunos foram desaparecendo um a um. O pão do espírito cedeu à necessidade mais imediata e absorvente da cachupa do corpo.” (Lopes, 1970, pp. 273-274) António Nóvoa considera que “a escola não é sentida, como uma necessidade ou um progresso, na maior parte do território nacional, onde o analfabetismo é a regra e não a excepção86” e admite que “o facto de se impor a escola é, muitas vezes, percebido como uma violência, na medida em que impede as crianças de cumprirem as tarefas agrícolas, situação que não agrada às famílias campesinas” (1987, p. 576). Esta asserção, válida em Cabo Verde, contraria o paradigma escola, via da promoção social, defendido pela elite letrada. O autor de Le temps des professeurs defende que “se o slogan «via da promoção social» (difundido pelos republicanos) pode fazer sentido entre as camadas da pequena burguesia, principalmente nas cidades, no meio rural a possibilidade de seguir esta via é muito limitada e, por isso, podemos interrogarmo-nos sobre as motivações para enviar as crianças à escola” (idem). 85 86 Personagem do romance com o mesmo nome, da autoria de Baltasar Lopes. Notas manuscritas de Alvaro V. Lemos (in Nóvoa, 1987, p. 576). 75 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Promover a escolarização Como referimos, anteriormente, a Sociedade de Estudos Pedagógicos, em representação ao Ministro das Colónias, propôs a criação de escolas móveis, em Cabo Verde, como panaceia para o analfabetismo (1913). Idêntica proposta foi ventilada na imprensa local: “Admitindo que cada escola possa manter 60 alunos, que num ano podem ter bastante aproveitamento, o número de escolas a criar, dado o número da população em idade escolar, seria de: Praia – 56 escolas; Santa Catarina – 16; Brava – 8; Fogo – 30; São Vicente – 12; São Nicolau – 16; Boa Vista – 1; Sal – 0; Santo Antão – 7. Rematando êste exposto estatístico, diremos, que sendo as novas escolas a criar destinadas a ensinar a lêr, escrever e contar, poderia ser reduzido a metade o número, desde que fossem móveis, como se usa em Portugal87, tendo uma demora de seis meses em cada lugar que garanta a frequência de 60 alunos.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 59, 11 de Junho de 1914, p. 3) A criação de cursos nocturnos visava, igualmente, reduzir o analfabetismo e promover a escolarização de adultos, em particular, nas ilhas de emigração para a América: “Deve fundar-se nesta ilha [Brava] uma escola nocturna, para instrução popular e aperfeiçoamento intelectual e moral das classes trabalhadoras que desejem matricularse, pedindo a Câmara Municipal um subsídio ao govêrno, visto a mesma Câmara não ter verba necessária para fazer face à mesma despesa, nomeando-se um professor habilitado para reger aquela cadeira.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 76, 8 de Outubro de 1914, p. 3) Uma das primeiras iniciativas legislativas, empreendidas pelos Republicanos, foi a regulamentação da instrução militar preparatória, com o objectivo de “preparar, desde a infância, as gerações militares, dotando-as com a alma e o saber preciso para bem desempenharem a missão que lhes incumbe” (Carvalho, 2001, p. 654). A organização de um batalhão escolar, em Cabo Verde, enquadrou-se na estratégia de promoção da escolaridade elementar. 87 O Decreto de 29 de Março de 1911, primeira reforma de ensino após a instauração da República, criou escolas móveis: “Não podendo, por quaesquer motivos, estabelecer-se, em determinadas freguesias, escolas primarias fixas, (...) criar-se-hão cursos temporarios ou escolas moveis, que funccionarão, pelo menos, dez meses consecutivos” (cap. IV, art. 28º. Diário do Governo, n.º 73, 30 de Março de 1911, p. 1.343). 76 A construção do discurso educativo “Havendo n’ esta cidade e nos seus arrebaldes, dezenas de crianças que, por inconsciencia propria ou pela ignorancia dos paes, se esquivam à matricula nas escolas, e outra que por falta de segura e salutar direcção furtam-se à frequencia das mesmas, este lamentavel facto suggeriu-me a ideia de congregar esforços para promover-se a organização de um batalhão escolar (...). Devo informar a v. Ex.ª que, por iniciativa do distincto professor municipal, nocturno, Alvaro de Paiva Lereno, angariava-se há tempos, donativos, por meio de uma receita, para compra de instrumentos para se formar uma charanga, composta pelos alumnos das escolas nocturnas, a qual servia para o batalhão organizar, sob as bases expostas.” (José Bernardo Alfama88. O Independente, n.º 12, 27 de Junho de 1912, p. 2) A Associação de Assistência Escolar, que vivia de óbolos e das contribuições dos seus consócios, organizou um “batalhão” de alunos, regido pelos valores da disciplina militar. “Ao marcial, passos cadenciados, com o porte de treinados guerreiros, parecem quaes soldados verdadeiros aquelles tão pequeninos soldados. Creou-se estimulo e disciplina, aspirações mais nobres que o far niente, entre os rapazes novos da cidade. E o beneficio que assim se origina, já mereceu o louvor de toda a gente, para quem tão bem fez á mocidade” (O Progresso, n.º 14, 3 de Outubro de 1912, p. 2) O espírito laico, que caracterizou a educação republicana, explica o episódio relatado no jornal A Voz de Cabo Verde: “No domingo, 6 do corrente, compareceu na igreja, à hora da missa, o batalhão escolar, ou, antes, uma grande parte dos alunos que o constituem, debaixo de forma. Procuramos, imediatamente, informar-nos do que havia a tal respeito e soubemos que era da exclusiva responsabilidade de alguns alunos que apenas tiveram em mira o exibirem-se em publico e que os seus dirigentes nenhuma intervenção tiveram nesse acto. Soubemos tambem que o aluno que tomou a iniciativa de levar os camaradas à missa, e que os comandou, foi devidamente castigado pela Direcção da Associação da Assistencia Escolar que tomou as necessarias providencias para que faltas de tal natureza se não repitam. (...) Mas assim como achamos justo o castigo ao aluno que cometeu a falta, não nos parece menos justo que sejam louvados aqueles que se recusaram a tomar parte na formatura, 88 Funcionário autodidacta e republicano convicto, colaborou nos jornais A Voz de Cabo Verde e O Independente. Foi presidente da Associação de Assistência Escolar. 77 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) o que, certamente, não passará despercebido á ilustre Direcção da Associação.” (N.º 61, 1 de Outubro de 1912, p. 2) A instrução militar de crianças foi criticada por figuras de prestígio do regime republicano português. Adolfo Coelho89, referindo-se a exercícios militares nalgumas escolas municipais, reconhecia “que esses exercícios imbecilizavam os rapazinhos” (Carvalho, 2001, p. 655). Números da alfabetização A Estatística Geral da Província de Cabo Verde organizou a população em três categorias: (1) sabem ler e escrever, (2) sabem ler e (3) analfabetos. A distinção entre as duas primeiras categorias reflecte comportamentos literácitos distintos: “aquele que se iniciou e utiliza as bases da leitura e da escrita no seu quotidiano” (Magalhães, 2001, p. 12) e o que possui capacidade para a recepção de textos pela leitura e incapacidade de produção escrita. Gráfico 5 – Evolução da alfabetização – 1912 /1920 nº alfab et izad o s 4 0 ,0 0 0 3 8 ,0 0 0 3 6 ,0 0 0 3 4 ,0 0 0 3 2 ,0 0 0 3 0 ,0 0 0 2 8 ,0 0 0 2 6 ,0 0 0 2 4 ,0 0 0 19 12 19 14 19 15 19 18 19 2 0 ano lect ivo Entre 1912 e 1918, verificou-se um crescimento dos índices de alfabetização. Os registos de 1920 revelam um agravamento (menos 4.440 alfabetizados em relação a 1918), que poderá ser explicado pelas dificuldades decorrentes da 1ª Guerra Mundial. A diminuição do número dos que “sabem ler e escrever” coexiste com um ligeiro acréscimo do número de pessoas com competências exclusivas para a leitura. 89 Adolfo Coelho foi mestre no Curso Superior de Letras, eminente filólogo e pessoa de sólida erudição (Carvalho, 1986, p. 652). Foi autor das seguintes obras: A Questão do Ensino (1872), Reforma do Ensino Público (1894), História da Instrução Popular (1895), Instrução Nacional. Parecer e Projecto (s. d.) e Questões Pedagógicas (1911). 78 A construção do discurso educativo Quadro 27 – Evolução dos alfabetizados por níveis de literacia – 1912/1920 Categoria 1912 Sabem ler e escrever 1914 1915 1918 1920 Número % Número % Número % Número 5 Número % 23.465 92,8 25.864 92,7 32.142 91,1 34.090 90,0 26.639 79,7 Sabem ler 1.819 7,2 2.050 7,3 3.136 8,9 3.785 10,0 6.796 20,3 Alfabetizados 25.284 100,0 27.914 100,0 35.278 100,0 37.875 100,0 33.435 100,0 (Movimento da população por naturalidade, instrução e raças. Estatística Geral da Província de Cabo Verde, 1913-1916, 1918, 1925) Quadro 28 – Evolução do analfabetismo por concelhos/ilhas – 1912 /1920 1912 Concelhos / Ilhas Praia (Santiago) 90 1920 População Analfabetos Perc. População Analfabetos Perc. 29.021 25.686 88,5% 32.150 27.075 84,2% Nossa Senhora da Luz (Maio) 1.836 1.653 90,0% 2.082 1.696 81,5% Santa Catarina (Santiago) 27.834 26.043 93,6% 21.329 18.685 87,6% Tarrafal (Santiago) 91 - - - 18.674 17.675 94,7% Brava 9.041 6.344 70,2% 6.383 4.017 62,9% Fogo 17.744 15.510 87,4% 21.509 16.317 75,9% S. Vicente 9.929 8.641 87,0% 14.639 10.405 71,1% S. Nicolau 11.477 2.996 26,1% 10.753 3.427 31,9% Boavista 2.727 1.943 71,3% 2.454 1.663 67,8% 620 458 73,8% 674 530 78,6% Sal Santo Antão 33.700 29.371 87,2% 28.973 24.752 85,4% Total 143.929 118.645 82,4% 159.620 126.242 79,1% (“Movimento da população por naturalidade, instrução e raças”. Estatística Geral de Cabo Verde (1913 e 1925). A repartição regional dos indicadores de analfabetismo revela diferenças abissais entre a ilha de S. Nicolau, sede do Seminário-liceu (1912: 26,1% de analfabetos) e o concelho rural de Santa Catarina, na ilha de Santiago (1912: 93,6%). O crescimento do analfabetismo, na ilha de S. Nicolau (em 8 anos, mais 5,8 pontos percentuais), articula-se com a crise do ensino eclesiástico, que culminou com o encerramento do 90 A freguesia de Nossa Senhora da Luz, na ilha do Maio pertencia ao Concelho da Praia. Com a divisão administrativa da província de Cabo Verde, fixada pela portaria n.º 327, de 11 de Outubro de 1917, a ilha do Maio é classificada como um concelho irregular, abrangendo a freguesia de Nossa Senhora da Luz. (Supl. nº 17 ao Boletim Oficial n.º 40, 11 de Outubro de 1917, p. 1). 91 As freguesias de Santo Amaro Abade e de S. Miguel pertenciam ao Concelho de Santa Catarina. Com a divisão administrativa da província de Cabo Verde, fixada pela Portaria n.º 327, de 11 de Outubro de 1917, a região do Tarrafal é classificado como um concelho irregular (idem). 79 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Seminário, no ano de 1917. A análise da evolução da frequência escolar (ensino formal) e da alfabetização, na mesma época, evidencia pontos comuns (crescimento geral de efectivos) e uma discrepância, no segmento temporal de 1916 a 1920, com uma curva ascendente das matrículas dos alunos da instrução primária (Gráfico 1)92 e um fluir descendente das taxas de alfabetização (Gráfico 5)93. O Dr. Mário Ferro, no Conselho do Governo (1918), informava que a percentagem de analfabetos “nesta província é de 78% e na Metrópole94 é de 70 a 72% aproximadamente, sendo de notar que antes da implantação do regime republicano essa percentagem era maior” (A Voz de Cabo Verde, n.º 341, 29 de Abril de 1918, p. 1). A taxa de analfabetismo em Portugal (população com idade superior a 10 anos), segundo António Nóvoa95, diminuiu de 70,3% (1911) para 66,2% (1920). A comparação dos indicadores atesta uma tendência comum decrescente, embora lenta, do analfabetismo (Portugal: menos 4,1%; Cabo Verde: menos 3,3%96). Em conclusão O desenvolvimento histórico do alfabetismo e da escolarização – nas suas representações e práticas (in) formais – tem de ser percebido nas dimensões linguística, didáctica, antropológica e cultural. Conscientes da polissemia e complexidade conceptuais, limitámo-nos a identificar comportamentos literácitos, traços e marcas de comunicação e de participação social, que ultrapassaram a exiguidade física do arquipélago, na senda da emigração para outros destinos. 92 Consultar pág. 67. As fontes documentais consultadas não permitiram uma explicação para a discrepância identificada. 94 Em conformidade com os valores do Anuário Estatístico de Portugal [(1886?)-1939], em Portugal havia 4.478.078 analfabetos (75,1% da população), “números terríveis no seu significado social”(Carvalho,1986, p. 711). 95 António Nóvoa utilizou os dados estatísticos apresentados no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 38.968 de 27 de Outubro 1952 (1987, p. 569). 96 Taxas de analfabetismo em Cabo Verde: 1912 – 82,4%; 1920 – 79,1 % (Quadro 30). 93 80 2. Modelação do sistema educativo ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ “A instrucção publica em Cabo Verde além de não corresponder aos fins que se propõe, não preenche os desejos e as aspirações dos individuos nem dos metropolitanos que aqui residem. A pedagogia, cujas doutrinas servem de base nos paizes civilizados aos regulamentos especiaes e leis de educação e ensino, são n’este archipelago, senão ignorados pelo menos desprezados, do que adveem gravissimos prejuizos.” (António do Rincão, A Voz de Cabo Verde, n.º 1, 1 de Março de 1911, p. 2) Ensino primário elementar A representação social do ensino chega-nos pela escrita jornalística, que apresentou projectos de reforma curricular: “A escola de instrucção deve ficar dividida em duas partes. À primeira pertenceria o estudo de soletração, leitura, escripta, solução das quatro operações fundamentaes da arithmetica.À segunda o estudo de noções geraes de grammatica, rudimentos de historia portugueza, com especial respeito ao governo e administração de Cabo Verde; elementos de desenho graphico sobre a ardosia; repetição das quatro operações arithmeticas, systema metrico decimal, operações sobre quebrados decimaes, noções gerais sobre a hygiene do corpo.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 2) Em conformidade com a primeira reforma educativa republicana – Decreto de 29 de Março de 191197 – o ensino elementar era o primeiro grau do ensino primário, seguindo-se o complementar e o superior (cap. I, art.4º). Com a duração de três anos (art. 9º, § único), preceituava um plano de estudos complexo, que se distribuía “por quatro grupos de intenções que poderíamos classificar como literárias, científicas, artísticas e técnicas” (Carvalho, 2001, p. 670). Era considerado obrigatório para 97 O Decreto de 29 de Março de 1911 legislou sobre os ensinos infantil, primário e normal (Diário do Governo, n.º 73, 30 de Março de 1911, pp. 1341-1347). 81 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) todas as crianças, de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os sete e os quatorze anos98 (cap. V, art. 37º). Rómulo de Carvalho considera esta reforma escolar “um documento notabilíssimo que colocaria [Portugal] ao nível dos países mais avançados no domínio da instrução se fosse minimamente executada” (2001 p. 666). Seria uma reforma de sonho, em que se programa o que seria bom ver realizado, sem se atender à situação real do país, à sua pobreza sem remédio, à impreparação dos seus executores, à sonolência dos serviços do Estado, à inércia nacional (idem, p. 665). A situação real da colónia não era compatível com a utopia da reforma que concebeu “um ensino graduado, concêntrico e metódico, mantendo, numa harmonia crescente, o desenvolvimento orgânico e fisiológico, e o desenvolvimento intelectual e moral” (preâmbulo, Decreto de 29 de Março de 1911). Em 1914, o professor José Rodrigues de Carvalho, em carta ao Inspector Escolar de Cabo Verde, referia-se ao ensino primário, cujo “fim é proporcionar ao educando os conhecimentos indispensáveis para a conquista do pão e torná-lo apto para aperfeiçoar por iniciativa própria, em qualquer ramo de vida a que se dedicar” e lamentava a falta de “um programa adequado, que delimite o campo da sua acção, em harmonia com as exigências do tempo e do lugar” (O Futuro de Cabo Verde, nº 63, 9 de Julho de 1914, p. 2). O docente recordava que a instrução pública caboverdiana ainda se orientava pelo Regulamento de 1875, que “não satisfaz às necessidades pedagógicas da actualidade, nem se coaduna com os modernos processos do ensino, que devem ser, essencialmente práticos, utilitários e intuitivos”. Um projecto de reforma curricular, apresentado na sequência do convite para “a remodelação dos serviços de instrução”, propunha que as “duas classes de instrução primaria em Cabo Verde (…) [fossem] divididas em três cursos: preparatório, elementar e médio, compreendendo as matérias dos programas do ensino primário vigentes na Metrópole e uma preparação especial para a admissão aos licêus” (carta de Simão José Berlenga, 25 de Agosto de 191599). 98 O artigo 37º acrescentava “são dispensadas da frequencia das escolas publicas as crianças que recebem ensino particular ou domestico, e aquellas que residam a mais de 2 kilometros de distancia de qualquer escola oficial ou particular gartuita”. Segundo o artigo 39º, §2º, “São dispensadas da obrigatoriedade escolar as crianças que a inspecção reconheça impossibilitadas por doença ou qualquer defeito orgânico ou mental”. 99 Cx.ª 670, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 82 A construção do discurso educativo Em 1915, o jornal oficial publicou os “programas oficiais do ensino primário, modelados pelos da metrópole” (Portaria n.º 264, 29 de Outubro de 1915)100. A partir da estrutura programática, reconstituímos o plano curricular da instrução primária, organizado em dois graus e quatro classes: Quadro 29 – Configuração curricular da instrução primária – 1915 Áreas disciplinares 1ª Classe Leitura Escrita Desenho 2ª Classe Leitura Escrita Desenho Aritmética Aritmética Sistema métrico 3ª Classe Leitura Escrita Desenho Rudimentos Agricultura prática Aritmética Sistema métrico Ginastica Trabalho de agulha e lavores Ginastica Trabalho de agulha e lavores Moral Ginastica Trabalho de agulha e lavores 4ª Classe Leitura e exercícios Língua Portuguesa Escrita Desenho Rudimentos de Sciencias Naturais, aplicáveis à Agricultura e Hygiene Aritmética Sistema métrico Geometria prática elementar Corografia História pátria Primeiras noções de Educação cívica Ginástica A publicação dos programas da instrução primária “veio preencher uma lacuna importante do ensino que até então era insubsistente, arbitrário e incompleto” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 156, 23 de Abril de 1916, p. 1). Programa de Leitura e Escrita As orientações didácticas para o ensino da língua portuguesa apelavam a exercícios de memorização e de raciocínio, baseados na tese da marcha graduada do ensino, “no princípio pedagógico do fácil para o difícil, tendo especial cuidado em não apresentar a matéria nova sem que a classe tenha conhecimento perfeito da que a precedeu e em não sobrecarregar excessivamente as lições e exercícios, para que possam ser proveitosos” (1ª classe, p. 1). Prescreviam que “o ensino [da Gramática] deveria ser exclusivamente prático e limitar-se ao indispensável para que os alunos se habilitem a compreender, espôr e escrever correctamente” (4ª classe, p. 3). O programa estipulava “preceitos gerais relativos à posição do corpo no acto de escrever, colocação do papel ou da ardósia e do tinteiro, modo de pegar na pena e no lápis, lado de onde convém receber luz natural ou artificial” e a inclinação “tanto da letra como dos algarismos, [que] deve ser de 45 graus”. A norma que “não deve 100 In Supl. nº 15 ao Boletim Oficial n.º 45, 6 de Novembro de 1915, pp. 1-4. 83 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) o professor consentir que os alunos se sirvam de fragmentos de lápis, excessivamente curtos, que devem desviar os dedos da posição conveniente” atesta o distanciamento entre o normativo e a realidade social, num meio de extrema pobreza. As considerações metodológicas faziam tábua rasa da situação linguística das crianças cabo-verdianas. Recomendava-se, porém, que “os exercícios devem ser acompanhados de correcção nos vícios de pronuncia que os alunos apresentam, até haverem desaparecido esses vícios” (1ª classe, p. 1). Para além do carácter instrumental, o ensino da língua deveria veicular “preceitos morais ou conselhos sobre higiene” (2ª classe, p. 2). Programa de Aritmética, Sistema Métrico e Geometria A Aritmética era estudada ao longo das quatro classes. Na fase de iniciação recomendavam-se “exercícios de cálculo mental concreto e abstracto”. O Sistema Métrico (2ª e 3ª classes) era explicado pela “intuição das unidades de medida e exercícios numerosos de uso comum”. Fazendo jus à designação Geometria Prática Elementar, o programa aconselhava o método intuitivo e a concretização dos saberes. Cita-se, a título de exemplo, “traçar com um fio e um pedaço de giz uma linha recta em qualquer tábua que se pretenda serrar” (4ª classe, p. 4). As actividades eram diferenciadas para professores e professoras: “Os professores podem mostrar também aos alunos, por meio de polígonos em cartão de varias côres, que os triângulos hexágonos e quadrados, e estes combinados octógonos regulares, podem unir-se sem deixar intervalos, e que estas formas geométricas são muitas vezes aproveitadas para sobradar e ladrilhar pavimentos, etc. As professoras poderão igualmente mostrar às suas alunas que para fazerem coberturas, sacos, etc. podem aproveitar retalhos de fazenda, que não tenham outra aplicação, com as quais, dando-lhes as indicadas formas geométricas podem obter um objecto de uso doméstico, útil e de bonito aspecto.” (Programa, 4ª Classe) Programa de Corografia, História Pátria e Educação Cívica Na disciplina de Corografia apelava-se ao ensino prático, mediante a “demonstração intuitiva da forma da terra” e a “intuição que os alunos tenham já adquirido pelo conhecimento da localidade em que se acharem, ou das que tenham visitado”. Recomendava-se aos docentes que “o ensino devia ser essencialmente 84 A construção do discurso educativo intuitivo e feito nos mapas corográficos”, importando “menos a definição do que o conhecimento perfeito definido” (3ª classe, p. 3). Contrariamente ao princípio do “conhecimento da realidade”, os conteúdos reportavam-se a um meio com “caminhos-de-ferro e rios navegáveis”. Programa de Ciências da Natureza Os pressupostos didácticos dos Rudimentos de Sciencias Naturaes, especialmente aplicáveis à Agricultura e à Hygiene (4ª classe) preceituavam a ordenação dos conteúdos “em lições de cousas”101 e a aprendizagem “por meio de processos intuitivos, com o auxílio de estampas, na falta ou impossibilidade da apresentação dos próprios objectos” (4ª classe, p. 3). As aplicações práticas incidiam nos “prejuízos que resultam de abuso de bebidas alcoólicas”, nas desinfestações que importa conhecer (com uma alusão específica à varíola), nas necessidades da vacinação e inconvenientes da falta de limpeza. Programa de Agricultura Prática Os Rudimentos de Agricultura descrevem um universo alheio ao ambiente local: “cultura e tratamento do pinheiro, sobreiro, castanheiro, oliveira; criação do bichoda-seda e das abelhas”. “O estudo da Agricultura feito em face dos compêndios adoptados para a escola na metrópole é sobremodo abstracto e estéril, por isso que os conhecimentos que exibem não são aplicáveis à flora tropical, tornando-se necessário que o professor supra êsse defeito com indicações ùteis sobre agricultura regional. Assim é conveniente ensinar aos alunos os processos da fabricação da aguardente, açúcar, sabão, extracção do oleo das sementes da purgueira, rícino, coco, etc. A cultura da bananeira, café, cana de açúcar mandioca, mangue, coqueiro, diversos cereais e legumes de primeira necessidade, deve merecer particular atenção ao professor no ensino desta disciplina, que deve ser ministrado em lições de coisas, de fórma a conseguir-se uma utilidade rial.” (O Futuro de Cabo Verde n.º 156, 23 de Abril de 1916, p. 1) 101 No ensino elementar e complementar “são obrigatorias as lições de cousas, como meio de educação physica, intellectual, moral e esthetica” (Art. 14º, Decreto de 29 de Março de 1911. Diário do Governo, n.º 73, de 30 de Março de 1911, p. 576). 85 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Programa de Agulha e Lavores Domínio exclusivamente feminino, acompanhava as alunas ao longo das quatro classes. Os conteúdos e as práticas incidiam nas prendas domésticas: costura, malha e croché. Programa de Desenho Leccionada nas quatro classes, o ensino da disciplina pautava-se por uma percepção rígida e mecanicista da realidade. A criatividade era preterida por gestos e repetições, num crescendo de complexidade: “cópia de estampas, representando objectos de uso comum” e de “objectos existentes na escola: mesas, bancos, quadros, balanças, pesos, medidas, etc., em dimensões pequenas” (1ª à 3ª classe). Figura 9. Desenho de um aluno da instrução primária (Prova escrita, 2º grau, Mosteiros, ilha do Fogo, 1920102) Programa de Moral A disciplina de Moral103 devia ser pragmática, uma conduta para a vida e um instrumento de socialização, mediante “deveres para connosco, para com os membros da família e para com os nossos similhantes” (3ª classe, p. 4). 102 Cx.ª 669. Fundo da Secretaria Geral, IAHN. 86 A construção do discurso educativo “O ensino [da Moral] deve ter uma feição inteiramente prática, aproveitando-se para êle as matérias contidas nos livros de leitura, história pátria e qualquer ensejo que se ofereça no convivio com os alunos durante as aulas, corrigindo-lhes as tendências contrárias aos bons costumes, incutindo-lhes no espírito a noção do dever e despertando-lhes a consciência moral, por meio de exemplos.” (O Futuro de Cabo Verde, nº 156, 23 de Abril de 1916, p. 1) Programa de Ginástica No termo da sequência programática, a indiciar subalternidade, o programa era organizado sem distinção de classes e em função das diferenças de género. A listagem dos exercícios remetia para a “instrução militar preparatória”, pois visava a “adaptação dos alunos aos exercícios de ginástica e à escola do soldado sem arma”. A ginástica feminina integrava-se no programa geral, “com excepção dos saltos”. Os docentes eram instados a “não fatigar excessivamente os alunos”, considerando que “a ginástica deve ser mais um recreio do que um trabalho”. Ensino primário complementar O ensino primário complementar, facultativo e gratuito (cap. V, art. 38º) tinha a duração de dois anos (cap. II, art. 10.º, § único) (Decreto de 29 de Março de 1911104). Encontrámos escassa informação sobre o ensino primário complementar, o “non plus ultra da nossa produção literária” (A Voz de Cabo Verde n.º 63, 9 de Julho de 1914, p. 2), o que pode denotar uma fraca implantação no sistema escolar caboverdiano. Embora designado “primário complementar”, funcionava como um ciclo propedêutico ao ensino secundário: “Tem por objecto iniciar o educando no conhecimento das generalidades das matérias professadas no ensino secundário, não sendo, portanto admissível exigir, no exame do 2.º grau de Instrução Primaria, o conhecimento profundo de materias do curso secundário” (A Voz de Cabo Verde, n.º 107, 1 de Setembro de 1913, p. 3). 103 O programa de Moral marca uma ruptura com o passado (monarquia), apresentando, no espírito republicano “uma escola sem Deus, enormidade escandalosa e arrepiante para mentalidades secularmente amparadas pelas palavras da Igreja” (Carvalho, 2001, pp. 674-675). 104 Diário do Governo, nº 73, 30 de Março de 1911, p. 1343. 87 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Ensino primário superior No ano de 1911, a Comissão Municipal de São Vicente criou o Curso Livre de Ensino Primário Superior, com a duração de três anos, destinado “à educação dos filhos dos municipes de S. Vicente, sendo todavia facultado aos estranhos a este concelho” (Boletim Oficial, n.º 3, 20 de Janeiro de 1912, p. 30). A imprensa elogiou o programa “bem elaborado e completo” (A Voz de Cabo Verde, n.º 55, 2 de Setembro de 1912, p. 3) e vaticinava que “com os 3 annos de curso, os rapazes que os frequentarem [ficariam] com uma bagagem de conhecimentos, que é uma importante ferramenta na pratica da vida” (O Progresso, n.º 12, 19 de Setembro de 1912, p. 4). O currículo do Curso Livre de Ensino Primário Superior aproximava-se do plano de estudos do ensino primário superior, professado em três anos, estabelecido na reforma educativa de 1911 (cap. II, art. 11º, Decreto de 29 de Março de 1911)105. Quadro 30 – Planos curriculares do Curso de Ensino Primário Superior (Mindelo) e do Ensino Primário Superior (Decreto de 29 de Março de 1911) Curso Livre de Ensino Primário Superior Língua portuguesa Língua francesa Língua inglesa História geral História pátria e das colónias Geografia matemática Geografia física Geografia política Aritmética, Geometria, Álgebra Agrimensura Escrituração e Contabilidade Física Química História natural Botânica Mineralogia e Geologia Desenho 105 88 Ensino Primário Superior, Decreto 29 de Março 1911 Língua portuguesa Língua francesa Língua inglesa História, especialmente de Portugal Geografia geral e especificamente de Portugal e das Colónias Geografia económica Moral Instrução cívica Nção de economia Direito usual Matemáticas elementares (Aritmética, Geometria, Álgebra e Agrimensura) Contabilidade Ciências físico-químicas e histórico-naturais e suas aplicações à agricultura, ao comércio e às indústrias, consoante as necessidades de cada região Higiene Desenho Prática em aulas-escritório, estenografia, oficinas, campos experimentais Educação física, exercícios militares, ginástica, jogos, natação, remagem, etc. Música e canto coral Diário do Governo, nº 73, 30 de Março de 1911, p. 1.343. A construção do discurso educativo O curso municipal privilegiou os domínios cognitivos em detrimento das competências e habilidades profissionalizantes, que caracterizaram as “escolas primárias superiores” criadas pela reforma de 1911106. A iniciativa dos cidadãos mindelenses respondia aos anseios de transgressão da aprendizagem mínima, imposta pelo poder colonial. Os requisitos de acesso a este nível de ensino e a textura curricular tornavam o ensino primário superior equivalente ao patamar inicial do ensino secundário, com uma componente vocacional. “Quando por iniciativa de um vogal da Comissão Municipal de S. Vicente, se pensou em criar o Curso Primário Superior, em Outubro de 1911, a ideia teve o apoio formal, decisivo, enérgico, entusiástico, do presidente Sr. Borja Araújo, ilustre ornamento da marinha de guerra portuguesa. E foi tanto mais apreciável esta cooperação, eficacíssima, quanto o trabalho retrógrado de alguns elementos adversos do progresso, se alastrava na sombra, no sentido de desviar o Govêrno da Província da aprovação do plano. (...) Criando tal curso no meio de oposições sistemáticas, o município tem razões fortes para se orgulhar da sua excelente obra, pois que, quanto aos que têem seguido de perto, observadores, o desenvolvimento dos alunos do Curso, sincera e calorosamente aplaudem o empreendimento que, confesso, excedeu a minha espectativa.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 15, 7 de Agosto de 1913, p. 3) As “oposições sistemáticas” surtiram efeito, pois o Curso Livre de Ensino Primário Superior foi extinto, por alegadas dificuldades financeiras: “Abrir uma escola será talvez fechar uma prisão. «A reconstituição mental da nação é o mais sagrado dever e será a suprema glória da Republica» Adães Bermudes 107 O Município de S. Vicente, no louvável empenho de interpretar êsse passo do progresso, criou ha dois anos, o Curso Primário Superior, que, com o elementar e complementar, segundo diz o Dr. F. Adolfo Coelho, «estendendo-se ao todo por 8 anos, como a escola popular de diversos países, será a base futura para o ensino industrial e comercial elementar». (…) 106 As “escolas primárias superiores” criadas pela reforma educativa de 1911, só foram implementadas com a reorganização da educação em 1919 (Araújo, 200, p. 178). 107 Arnaldo Redondo Adães Bermudes (1883 a 1947) foi arquitecto, pintor e professor. A sua intervenção no domínio da arquitectura escolar teve início em 1898 quando obtém o primeiro prémio no concurso para projectos-tipo de escolas primárias. Enquanto director das construções escolares (1901-1906) foi responsável por cerca de trezentos edifícios escolares. Os trabalhos apresentados por Adães Bermudes, e que foram posteriormente premiados com a medalha de ouro na secção da arquitectura escolar na Exposição Universal de Paris de 1900, traduzem “um dos primeiros projectos entendidos em sentido moderno, prevendo as variantes e as combinações que os tornavam adaptativos às várias situações de programa e de dimensão” (Fernando Moreira Marques, 2003, pp. 168-172) 89 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Como o Curso Primário Superior representa uma dessas despesas [não suportadas pelas receitas camarárias], foi êle um dos imolados na constituição orçamental do município. É certo que a vereação propõe a criação de duas escolas infantis e um liceu hipotético, em substituição do Curso. Francamente: discordamos muito dessa opinião. Quanto àquela, não é mau o plano: mas seria melhor criarem-se duas escolas de instrução primaria elementar e complementar, pois as tres oficiais e municipais desta natureza teem uma frequência superior a 330 alunos, e a infantil contem cêrca de 130 crianças.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 30, 22 de Novembro de 1913, p. 3) Em 1914, os professores deste curso, “criado e extinto pela última comissão municipal, ofereceram-se à actual câmara para, gratuitamente, regerem o 3º ano do curso” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 41 de 5 de Fevereiro de 1914, p. 5). O Conselho Inspector da Instrução Pública, no ano seguinte, reunido sob a presidência do Governador Fontoura da Costa, anunciou a criação de “um curso superior na Praia e em S. Vicente, na impossibilidade material da criação de um liceu” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 130, 21 de Outubro de 1915, p. 2). As Escolas Primárias Superiores O ensino primário superior foi institucionalizado pelo primeiro Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde, de 1917108, com escolas na cidade da Praia e em S. Nicolau. A Escola Primária Superior da Praia funcionou, provisoriamente, no antigo edifício do correio e foi dirigida pelo coronel-médico, Júlio Barbosa Nunes Pereira. A direcção da Escola Primária Superior de S. Nicolau foi atribuída ao antigo Reitor do Seminário, Cónego António José de Oliveira Bouças (Portaria n.º 386, 16 de Novembro de 1917109). “Aos dezanove dias do mês de Novembro do ano de mil novecentos e dezassete, se reuniu em sessão na sala das aulas da Escola Superior Primária, o corpo docente da mesma escola. (...). Aberta a sessão às quinze horas, pelo presidente foi dito que o fim desta sessão era: primeiro, distribuir as disciplinas pelos professores; segundo, formular o horário da escola; terceiro, estabelecer o modo de proceder à matrícula dos alunos. As disciplinas foram distribuídas pela forma seguinte: ao bacharel Jacinto Amado Vasconcelos Raposo foi incumbida a regência das cadeiras de Português e Educação 108 Decreto n.º3.435, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18, ao Boletim Oficial n.º 43, 30 de Outubro de 1917, pp. 1-4. Consultar apêndice D. 109 Boletim Oficial, n.º 46, 17 de Novembro de 1917, p. 414. 90 A construção do discurso educativo Física; ao capitão Jorge Figueiredo de Barros, das de Inglês, Francês, e Sciências Físico-Químicas e Historico-Naturais; ao bacharel António Soares de Campos, das de Matemática Elementar e Desenho; ao reverendo Rodrigo José Milheiro, das de História e Geografia Geral e Económica, Moral e Instrução Cívica, Trabalhos Práticos, e Musica e Canto Coral. Praia, 23 de Novembro de 1917. O secretário, Rodrigo José Milheiro.” (Boletim Oficial, n.º 47, 24 de Novembro de 1924, pp. 426-427) Quadro 31 – Movimento de alunos de «instrução secundária», na Escola Primária Superior da Praia – 1918 Alunos externos Total Branca Mista Preta Total Distintos Aprovados Adiados Total Branca Mista Preta Total Distintos Aprovados Adiados Examinados Examinados Raças Matriculados Examinados Reprovados Raças Aprovados 1ª Classe Alunos internos Total Matriculados Disciplinas classes Total geral de examinados 56 20 - 56 20 56 7 16 33 56 8 12 36 - - - - - - - - (Estatística Geral da Província de Cabo Verde, 1920, p. 19) Quadro 32 – Efectivos escolares da Escola Primária Superior de S. Nicolau – 1918 Alunos Matriculados Perderam o ano por faltas Não se habilitaram Fizeram exame Distintos Aprovados Adiados Internos 13 13 2 11 - Externos 11 2 1 8 1 7 - Total 24 2 1 21 3 18 - (Estatística Geral da Província de Cabo Verde, 1920, p. 18) O ensino primário superior foi socialmente prestigiado e percepcionado como ensino secundário de curta duração, preparando os jovens para funções de enquadramento médio. É elucidativo o facto da Estatística Geral da Província de Cabp Verde considerar os estudantes deste nível de ensino, como alunos de «instrução secundária» (Quadro 31). Este grau de instrução não consta do sistema escolar definido pelo Plano Orgânico de Instrução Pública, de 1918110. As escolas estavam condenadas a fechar. 110 Segundo o Plano Orgânico de 1918 “o ensino em Cabo Verde compreende: I – o ensino primário; II – o ensino secundário e normal primário e III – o ensino profissional. Portaria nº 474, 27 de Dezembro de 1918. Supl. nº 14 ao Boletim Oficial nº 52, 31 de Dezembro de 1918, pp. 1-5. Consultar apêndice D. 91 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) “Tendo o Conselho de Instrução Publica, em sua sessão de 4 de Junho findo, resolvido que os alunos da Escola Primária Superior da cidade da Praia fossem submetidos a um exame final das matérias leccionadas durante o corrente ano lectivo — lº do curso, — a fim de que os aprovados possam exibir um documento para admissão no 2° ano do curso no liceu provincial, resolução que foi tomada pelo motivo de na proposta do novo Plano Orgânico de Instrução Publica, aprovado em Conselho do Governo e submetido à apreciação de Sua Ex.ª o Ministro das Colónias, ser eliminada a Escola Superior da Praia. Visto o programa para os exames referidos, apresentado pelo Conselho Escolar e que foi aprovado pelo Conselho de Instrução Pública, em sua sessão de 7 do corrente: Hei por conveniente determinar: 1.° Que as aulas da referida escola fechem amanhã, 20; 2.° Que os exames comecem no próximo dia 22; 3.° Que se observe o programa aprovado pelo Conselho de Instrução Publica e que será a seguir publicado em suplemento ao Boletim Oficial.” (Boletim Oficial n.º 29, 20 de Julho de 1918, p. 255) Em sessão do Conselho do Governo, foi debatida a supressão do ensino primário superior. O vogal do Conselho, Dr. Mário Ferro interrogava: “¿Porque é que, em Cabo Verde, uma das nossas poucas colónias de civilização relativamente adiantada, não se deverá ministrar este ensino, tanto mais que já está decretado e em princípio de execução? Estas escólas devem ter uma feição prática; o seu programa, como se viu, não se reduz a um ensino meramente teórico e abstracto. Em Cabo Verde, perguntamos novamente, ¿porque é que não deve existir o ensino primário superior?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 342, 6 de Maio de 1918, p 1) Os bons resultados dos alunos da Escola Primária Superior da Praia, em precárias condições de aprendizagem, foram razões justificativas da manutenção da escola, qua não assumia o epíteto de “paródia de liceu”: “Iniciaram-se, há dias, os exames na Escola Primária Superior desta cidade. De cinquenta e um alunos matriculados, estão prestando provas vinte e dois. É inegável que este facto constitue o melhor argumento de que podem lançar mão aqueles que, como nós, defendem o direito que assiste à capital da provincia, de possuir esse estabelecimento de ensino que, violentamente, por razões de politiquice rasteira, e de curtas vistas, vai ser extinto, mas não antes de professores e alunos terem, pelo resultado obtido ao fim do primeiro ano lectivo, sem material, sem livros, por elogioso esforço próprio, evidenciando implicitamente a sua razão de existência, a sua utilidade, as suas condições de profunda vitalidade. Nenhum outro argumento nos pode servir melhor para provarmos que a Escola Primária Superior da Praia não é uma paródia de liceu. Poderá, sê-lo, sim, na parte que respeita ao mise-en-scene escolar, na falta condenável de material, de apetrechos, de 92 A construção do discurso educativo livros, etc., mas de tal só serão culpados aqueles que lhe entravaram a util e eficaz colaboração. (...) Não se esperou pela experiência desse primeiro ano lectivo para se resolver em face dela; não se atendeu ao transtorno que a extinção vai causar a este alunos que viram os seus esforços escolares coroados de uma aprovação; a coisa alguma se prestou uma atenção estudiosa, sensata. Era preciso extinguir-se! Extinguiu-se.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 354, 20 de Julho de 1918, p. 1) Os argumentos a favor da eliminação do ensino primário superior, fundamentados com a política de contenção orçamental e um possível excesso de diplomados, foram refutados por Mário Ferro: “Como é notório, o novo plano de instrução primária eliminava tal ensino [primário superior], invocando-se, para justificar semelhante supressão, o déficit orçamental de 119 contos. (...) ¿A que critério obedeceu a extinção da Escola Primária Superior da Praia? Admitindo-se como aceitável o argumento da economia para o equilíbrio orçamental, produziu-se este, porventura? Não. O orçamento viu-se sobrecarregado com outros encargos que foram buscar a sua sustentação nas economias feitas com a Instrução! Excelente critério e bela norma de aplicação da sciencia colonial! Apresentou-se tambem outro argumento (…) o do perigo de uma praga idêntica à dos bachareis na metropole. Calcule-se que grande perigo poderá constituir para a província o facto de, entre umas dezenas de milhares de habitantes, existirem umas centenas de cabo-verdeanos habilitados a poderem exercer cargos burocráticos, resultando disso uma bôa economia – que tanto se tem procurado –; habilitados a poderem, conscientemente, aumentar o desenvolvimento agrícola, comercial e industrial; habilitados a irem, nos nossos vastos territórios coloniais, dispender a sua actividade, em proveito de toda a nacionalidade.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 355, 5 de Agosto de 1918, p. 1) A Escola Primária Superior da capital foi restabelecida111, sob a direcção do bacharel António Soares Costa (Portaria n.º 560-A, 10 de Dezembro de 1919112), sendo, definitivamente, encerrada no ano de 1921 (Portaria n.º 249, 27 de Setembro): “Considerando que, durante o ano lectivo se matricularam na 1ª e 2ª classes da dita Escola apenas 22 alunos de ambos os sexos; Considerando que daqueles 22 alunos, apenas 7 aproveitaram o ano, tendo-o perdido, por faltas, 15; Considerando que tendo a referida escola 3 anos de funcionamento, não houve alunos para a frequência da 3ª classe; Considerando que dos 6 professores nomeados para tão diminuta frequência, apenas havia uma professora ordinária – provida mediante concurso; 111 112 Portaria n.º 632, 21 de Novembro de 1919. Boletim Oficial, n.º 47, 23 de Novembro de 1919. Boletim Oficial, n.º 5, 23 de Janeiro de 1920, p. 46. 93 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Considerando que êste pessoal docente produz o encargo para a província de perto de 3 contos mensais; Considerando que é de presumir que, em face da situação proveniente da crise de fome que flagela este arquipélago, para o futuro a frequência de tal escola, não aumente, antes diminua; Considerando que o estado financeiro da província não permite que, para benefício de 7 alunos, se esteja despendendo uma avultada soma para pagamento a 6 professores; (…) Artigo 1º Fica extinta a Escola Primária Superior da Praia, cujo mobiliário e material de ensino será distribuído pelas escolas primárias oficiais que mais necessitem. (Boletim Oficial, n.º 40, 1 de Outubro de 1921, p. 364) A trajectória da Escola de Ensino Primário Superior de S. Nicolau foi, igualmente, conturbada. Considerada insubsistente (Portaria nº 632, de 21 de Novembro de 1919113) funcionou até finais do ano lectivo 1919/20. No Correio d’África “apelava-se para o patriotismo dos seus irmãos da província, com cuja colaboração contam para a consecução dos seguintes objectivos de capital interesse colectivo”: “1º Secundarem uma subscrição aberta aqui, para subsidiar particularmente a escola que funciona no edifício do Seminário, já aberta por iniciativa particular; 2º Insistirem, reclamando, junto dos poderes superiores da província ou da metrópole, para que a mesma escola venha a readquirir todas as prerrogativas oficiaes, necessarias para a sua dotação e consequente valorização dos seus estudos. S. Nicolau, 14 de Novembro de 1921.” (N.º 20, 15 de Dezembro de 1921, p. 1) Apesar da “insubsistência” da escola de S. Nicolau ter sido declarada sem efeito114, o estabelecimento de ensino fechou, por força da lei (Portaria n.º 153, 20 de Setembro de 1922)115. O golpe definitivo no ensino primário superior foi desferido pela Portaria n.º 28, 12 de Março de 1924116, que “considerando que na Metrópole se extinguiram as escolas primárias superiores117, declarava “extintas as Escolas Primárias Superiores criadas pelo Decreto n.º 3.435 de 8 de Outubro de 1917, bem como a Escola Normal Primária, as primeiras das quais, de facto deixaram há muito de existir e a última nunca chegou a organizar-se”. Antes de concluirmos o percurso do ensino primário superior na colónia, importa perguntar: Qual a natureza curricular deste nível de ensino? Complementou o 113 Boletim Oficial, n.º 47, 22 de Novembro de 1919, p 417. Portaria n.º 16, 20 de Janeiro de 1922. 115 Boletim Oficial, n.º 38, 25 de Setembro de 1922, p. 289. 116 Boletim Oficial, n.º 11, 16 de Março de 1924, p. 85. 117 A proposta curricular do Ministro [João José da Conceição] Camoesas excluía o ensino primário superior (Carvalho, 2001, p. 701). 114 94 A construção do discurso educativo ensino primário e fechou um ciclo? Foi uma modalidade de ensino profissional? Um sucedâneo do ensino secundário? Uma paródia de liceu? De acordo com Rogério Fernandes (1983), as escolas primárias superiores “originalmente, pretendiam ser um ensino polivalente, integrando a preparação académica para prosseguimento de estudos e objectivos de natureza profissionalizante (…), passaram a assumir, sobretudo o carácter de escolas técnicas” (citado em Araújo, 2000, p. 178). A tumultuosa história das escolas primárias superiores, em Cabo Verde, não se deve apenas a incoerências normativas e nem sequer foi original. Reproduz “a turbulenta existência do ensino primário superior e, as políticas contraditórias de que foi alvo revelam o conflito inerente aos vários projectos de «ensino de continuação»118, sobretudo entre 1921-1926” (Araújo, 2000, p. 179). Organização sistémica A necessidade de “reformar a instrução na província de Cabo Verde, por forma a satisfazer as aspirações da sua população” e conferir “a unidade e a concordância de esforços indispensáveis ao seu progressivo desenvolvimento”, conduziram à aprovação do Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde (Decreto n.º 3.435, de 8 de Outubro de 1917119). Transitava-se de iniciativas avulsas e sem sistematização para a estruturação de um sistema escolar. Em conformidade com o Plano Orgânico, o sistema escolar compreendia (1) o ensino primário e normal, (2) o ensino secundário e (3) o ensino profissional (tít. I, art. 1º). O ensino primário abrangia “três graus, compreendendo as matérias dos programas do ensino primario elementar, complementar e superior adoptado na metrópole” (tít. II, cap. I, art. 3º). O primeiro ordenamento da instrução pública cabo-verdiana teve vida efémera. Em sessão do Conselho do Governo foi aprovado outro Plano Orgânico (Portaria n.º 474, 27 de Dezembro de 1918120), que reconfigurou a instrução, que passou a compreender (1) o ensino primário, (2) o ensino secundário e normal primário e (3) o ensino profissional. O ensino primário retornou à configuração em dois graus: elementar e complementar (tít. II, cap. I, art. 3º). 118 Expressão usada por António Sérgio (Araújo, 2000, p. 179). Supl. nº 18 ao Boletim Oficial n.º 43, 30 de Outubro de 1917 (apêndice D). 120 Supl. nº 14 ao Boletim Oficial n.º 52, 31 de Dezembro de 1918 (apêndice D). 119 95 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Quadro 33 – Planos Orgânicos da Instrução Pública na Província de Cabo Verde 1917 Sistema escolar: - Ensino primário e normal - Ensino secundário - Ensino profissional O ensino primário abrange três graus: - Ensino primário elementar - Ensino primário complementar - Ensino primário superior 1918 Sistema escolar: - Ensino primário - Ensino secundário e normal primário - Ensino profissional O ensino primário abrange dois graus: - Ensino primário elementar - Ensino primário complementar Contempla o ensino particular e doméstico As expectativas de adaptação do ensino às aspirações dos cabo-verdianos (flexibilização dos programas e contextualização à realidade local) encontraram eco no primeiro Plano Orgânico, que, além de prever a “necessária adaptação do ensino agrícola e cívico”, consagrava um “maior desenvolvimento do ensino da língua portuguesa e da história e geografia caboverdeanas” (Decreto nº 3.435, tít. II, cap. 1, art. 3º). O segundo Plano Orgânico limitava-se a mencionar a necessidade de “maior desenvolvimento da língua portuguesa e da educação cívica” (Portaria nº 474, tít. II, cap. 1, art. 3º), sem aludir às especificidades locais. “Perguntar-se-á: Se ainda há seis meses que se pôs em vigor nesta malfadada província um plano de ensino, com o consenso unânime da opinião pública, se as circunstâncias financeiras provinciais permanecem invariaveis, se as necessidades da instrução públicas são as mesmas que existiam há meses, se a evolução social, progressiva ou regressiva, nunca pode ser de uma instantaneidade tal que hoje as exigências de uma sociedade, de um pôvo, sejam umas, e amanhã outras, de uma variabilidade semestral, como se compreende que o Decreto de 8 de Outubro de 1917, que satisfez velhas aspirações do pôvo caboverdeano, com condições de adaptabilidade ao modo de ser mental e social da população destas ilhas, já necessite que se lhe introduzam modificações sensíveis nas suas bases estruturais?” (Mário Ferro, A Voz de Cabo Verde, n.º 342, 6 de Maio de 1918, p. 1) A sucessão das reformas, num lapso de tempo tão curto, reflecte inconsistências da política educativa, numa conjuntura marcada pelas sequelas do bloqueio do Congresso Americano à emigração de analfabetos (1915) e pelo controverso encerramento do Seminário-liceu de S. Nicolau (1917). O sistema educativo caboverdiano foi modelado, num contexto de pressão social e inoperância administrativa, mediante uma profusão de planos, decretos e portarias, por vezes, contarditórios, efémeros e em permanente mutação. 96 3. Desenvolvimento institucional ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 3.1. Organização pedagógica e administração A modelação do sistema escolar consolida-se com a organização em conjuntos funcionais – cursos, graus e classes e com a divisão do currículo em programas anuais “concêntricos”, ajustando tudo isto a um correcto emprego do tempo, com horários semanais e diários (Barroso, 1995, p. 98). A organização escolar subordinou-se às três regras da tragédia clássica: unidade de acção, de tempo e de espaço (Gloton, citado em Barroso, 1995, p. 11). O modelo centrado na classe graduada possibilitou o ensino simultâneo, com práticas uniformes para o mesmo grupo de alunos. O espaço estruturou-se com tecnologias específicas. O Plano Orgânico da Instrução Pública (1917)121, que estratificou a instrução primária, não especifica as idades de permanência dos alunos em cada grau122. A configuração do espaço (ratio aluno/classe/sala de aula) dependia da oferta escolar. “A eloquencia dos numeros que antecedem123 prova que o brutal excesso de alunos nas diversas escolas oficiais, municipais e particulares do 1º e 2º graus, algumas com mais do dobro de número de alunos permitidos por lei, é a causa do fracasso do aproveitamento dos respectivos alunos, deixando mal colocados os professores por se lhe querer atribuir toda a responsabilidade do desastre dos exames e da vergonha do analfabetismo.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 170, 16 de Novembro de 1914, p. 1) A organização da classe (o paradigma continuava a ser a relação face a face do mestre com os discípulos) obedecia ao princípio da separação de alunos de sexos 121 Decreto n.º3.435, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18,ao Boletim Oficial, n.º 43, 30 de Outubro de 1917, pp. 1-4. Consultar o apêndice D. 122 Conforme o Decreto de 29 de Março de 1911, publicado na metrópole, “as escolas de ensino primario elementar e complementar destinam-se a educar as crianças cuja idade se ache comprehendida entre os sete e os quatorze annos, ministrando-lhes o ensino geral que sirva para revelar as aprtidões naturaes e preparar para qualquer profissão” (cap. III, art. 25º) (Diário do Governo, nº 73, 30 de Março de 1911, p. 1343). 123 Referência às médias de aproveitamento dos alunos do 1º e 2º graus da instrução primária (Bom – 18,665%; Suf. – 29,104%) e aos resultados dos exames finais (aprovados: 8,902%). 97 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) diferentes. Admitia-se a classe mista em casos de baixa densidade da população escolar124. “Usando da faculdade que me confére o artigo 47º, n.º 3, da Constituição Política da República Portuguesa: hei por bem, sobre proposta do Ministro das Colónias, e nos termos do artigo 15º do decreto, com fôrça de lei, de 30 de Novembro de 1869, decretar o seguinte: Artigo 1º São criadas três escolas de instrução primária na Província de Cabo Verde, sendo uma para o sexo masculino no lugar de S. Jorge, da freguesia de S. Lourenço, da Ilha do Fogo, outra para os alunos do sexo feminino no lugar do Galinheiro, da mesma freguesia e ilha, e outra para ambos os sexos na Povoação Velha, da Ilha da Boa Vista. (...) Art. 3º A escola para ambos os sexos, da Povoação Velha, da ilha da Boa Vista, será, em regra, dirigida por uma professora.” (Boletim Oficial, n.º 12, 22 de Março de 1913, p. 102) Os jornais alertavam para as distorções da rede escolar. A Voz de Cabo Verde chama a atenção para a insuficiência de escolas para meninas: “Não me parece, no referente ao concelho do Tarrafal, que a distribuição das escolas e postos de ensino seja equitativa. A criação de uma escola do sexo feminino, na Calheta, a povoação mais importante da freguesia de Sam Miguel e a segunda do concelho, em população e movimento comercial, mais não foi que um acto de justiça, porque era vergonhoso que numa freguesia de sete mil almas não existisse uma só escola para o sexo feminino. Nos Flamengos, de há muito que se pugnava pela abertura do posto de ensino para o sexo feminino ou mixto (...); hoje, porém, vejo que em vez de um posto de ensino para o sexo feminino ou mixto, foi criado um posto para o sexo masculino naquela localidade, quando é certo que na Calheta, Sam Miguel e Saltos, de que Flamengos constitui, por assim dizer, o centro onde existem escolas para o sexo masculino.” (N.º 321, 13 de Dezembro de 1917, p. 2) A classe, “um conjunto organizado” e “um lugar institucional” (Ardoino, 1977, p. 47), está na origem da gestão escolar, que observou os princípios da racionalização e da eficiência: ensinar ao maior número de alunos, com o menor dispêndio de meios. 124 As crianças do ensino primário elementar e complementar deviam ser ensinadas em escolas de um só sexo. Todavia, o art. 26º, § único, determinava: “quando, porem, em virtude da exigua densidade da população escolar, não puder fundar-se uma escola para cada sexo, criar-se-ha uma escola mista”. A diferenciação foi, também, adoptada na docência: “As escolas primarias para o sexo masculino são regidas por professores; as mesmas escolas para o sexo femininas e as mistas são regidas por professoras” (art. 29º). Nas escolas primárias superiores vigorava a “co-educação dos sexos” (art. 32º § 1) (Decreto de 29 de Março de 1911, tít. III, cap. IV, p. 1.343). 98 A construção do discurso educativo O cúmulo organizativo foi conseguido com a “divisão funcional do trabalho (director, professores de cada classe, alunos), prescrita através de regulamentos escritos que possam ser postos em prática, qualquer que seja a escola e qualquer que seja o professor” (Barroso, 1995, p. 401). Poder central O poder político e administrativo normalizou as relações sociais e os jogos de conduta no campo educacional. A acção governativa, “o domínio prático e teórico em que a acção humana se verga às regras do cálculo, da medida e da comparação” (Ó, 2003, p. 33), exercia uma acção de vigilância a partir de Lisboa, centro do império. Quadro 34 – Legislação educacional emanada do Governo da República Diploma Decreto de 22/2/1913 (Paços do Governo da República) Boletim Oficial N.º 12, 22/3/1913 Decreto n.º 2.349/354, 19/12/1913 (Direcção Geral das Colónias) N.º 1 3/1/1914 Decreto n.º 22/179, 30/6/1914 (Paços do Governo da República) N.º 29, 18/7/1914 Decreto n.º 888, 24/9/1914 (Paços do Governo da República) Lei n.º 701, 13/6/1917 (Ministro das Colónias) Assunto Criação de três escolas primárias. Autorização do estabelecimento de um curso de ensino particular de instrução secundária, Mindelo, alegando-se “falta de lei ou regulamento em vigor na província”. Declaração de nulidade da portaria provincial de 1 de Janeiro de 1911, que suspendeu o presbítero e professor do Seminário-Liceu de Cabo Verde, do exercício docente e do vencimento, “por ter atacado num sermão a lei do divórcio”. N.º 42, 17/10/1914 Torna extensivo o direito de aposentação aos professores das escolas municipais ultramarinas. N.º 27, 7/7/1917 Extingue as Escolas Práticas de Aprendizagem e cria um Liceu. Decreto n.º 3.435, 8/10/1917 (Ministro das Colónias) Supl. nº 43, 30/10/1917 Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde Decreto n.º 6.132, 12/12/1919 (Ministro da Instrução Pública) Supl. nº 49, 12/12/1919 Programas das disciplinas do curso geral e do curso complementar do Liceu. Trata-se de uma simbiose de actos rotineiros (criação/extinção de escolas e nomeação de professores) e de normativos de regulação e reforma (planos orgânico e programas de ensino). A governação colonial a distância implicou a criação de uma plataforma de poder, localizada na capital da província. A Carta Orgânica da Província de Cabo 99 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Verde, de 25 de Junho de 1917125, definiu os princípios do governo provincial, que “desfruta de autonomia administrativa e financeira nas condições definidas pelo diploma, sob a superintendência e fiscalização da metrópole” (art. 1º). A província era administrada por um governador que tinha, entre outras competências, as de “nomear, promover, confirmar, transferir dentro da província, aposentar e exonerar, nos termos legais, os funcionários da mesma, que não tenham nomeação do Govêrno da Metrópole” (art. 43º, 9. Carta Orgânica, 25 de Junho de 1917) e, com o voto afirmativo do Conselho do Governo, “aprovar os estatutos das associações e institutos de recreio, instrução pública, educação (...), bem como os seus regulamentos orgânicos e dos estabelecimentos que administrem” (art. 44º, 4). O Conselho do Governo era constituído por vogais funcionários e eleitos126, uns e outros habitantes da colónia, representando os eleitos, a população para os efeitos de promover e defender os seus interesses legítimos e exprimir a sua opinião” (art. 63º). A gestão dos assuntos “de instrução pública” (art. 98º, 2) e “o serviço de estatística geral da Província” (art. 5º) eram encargos do Secretário Geral. Segundo os Planos Orgânicos de Instrução Pública, de 1917 e 1918 (Decreto n.º 3.433 e Portaria n.º 474127), a direcção e a fiscalização do ensino eram exercidas pelo Conselho de Instrução Pública, com composição diferente nos dois normativos. Quadro 35 – Constituição do Conselho de Instrução Pública Plano Orgânico, de 1917 Governador Secretário Geral Director das Obras Públicas Capitão dos Portos128 Chefe de Repartição de Agricultura e Pecuária Inspector do Ensino Primário e Normal de Sotavento Cinco cidadãos eleitos e residentes na Praia129 125 Plano Orgânico, de 1918 Governador Vice-Presidente do Conselho do Governo Inspector do Ensino Primário Dois cidadãos eleitos e residentes na Praia130 Decreto n.º 3.108-B. Supl. nº 9 ao Boletim Oficial n..º 45, 25 de Junho de 1917, pp. 1-31. Vogais eleitos do Conselho do Governo: um representante da população de cada ilha, eleito pelos vogais dos corpos administrativos (art. 63º, b). 127 Consultar o apêndice D. 128 Coordenavam as acções respeitantes à Escola Profissional de Pilotagem. 129 Cinco cidadãos de reconhecida competência, residentes na Praia, eleitos, um pelo Consêlho do Governo de entre os seus membros não funcionários, um pela Câmara Municipal da Praia, um pela Câmara Municipal de S. Vicente e os dois restantes, respectivamente, pelos municípios de Sotavento e Barlavento, ainda não representados (art. 24º). O período de exercício dos vogais eleitos era de três anos. 130 Dois cidadãos de reconhecida competência, residentes na Praia, eleitos trienalmente, um pelas Câmaras Municipais das ilhas de Sotavento e outro pelas Câmaras das ilhas de Barlavento (art. 44.º). 126 100 A construção do discurso educativo A composição deste organismo colegial foi simplificada, em 1918, com perda de membros com conhecimentos especializados (Náutica, Obras Públicas e Agricultura) e redução do número de cidadãos eleitos. O quadro seguinte elenca os domínios de intervenção do poder provincial: acção educativa quotidiana, gestão do corpo docente, regulação da carta escolar, controlo da intervenção social e produção/divulgação de sistemas de informações. Quadro 36 – Domínios de intervenção do Governo Provincial Domínios Nomeação de comissões para a reforma do ensino Concurso documental para o lugar de professor Mobilidade do corpo docente Louvores a professores Medidas disciplinares Nomeação de directores de escolas e reitores do liceu Criação, conversão, transferência, e extinção de escolas Reforço de verbas no orçamento da província Abertura das aulas nos estabelecimentos de ensino Proibição da utilização do crioulo nas escolas Assistência aos alunos pobres Criação do dia da árvore Estatísticas gerais e educacionais Constituição dos júris de exames Instruções relativas aos actos de exame Abertura das matrículas nos estabelecimentos de ensino Classificação dos professores Selecção dos membros dos júris de exames Selecção e nomeação de professores Autorização e fiscalização do ensino privado Aprovação dos horários do liceu Entidade Governador Governador Governador Governador Governador Governador Governador Governador Governador Governador Governador Governador Secretaria Geral Secretaria Geral Secretaria Geral Secretaria Geral Secretaria Geral Conselho de Instrução Pública Conselho de Instrução Pública Conselho de Instrução Pública Conselho de Instrução Pública Tipo de diploma Portaria Anúncio Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria Mapa Publicação Publicação Anúncio Portaria Publicação Portaria Despacho Publicação O exercício governativo era objecto de apreciação crítica pela sociedade: “Em Cabo Verde temos, é certo, um chamado Conselho Inspector de Instrução Pública. Mas de organização acanhada, restrita e obsoleta, está actualmente muito longe de satisfazer a um fim útil e progressivo” (O Futuro de Cabo Verde n.º 17, 31 de Agosto de 1913, p. 5). O inspector escolar, no ano 1919/20131, numa apreciação sobre “o estado dos serviços escolares” afirmava que “tem sido muito criticada e por vezes com excessiva severidade, em discussões publicas, a acção do governo 131 Não conseguimos datar com precisão o relatório do inspector escolar. Deduzimos que foi redigido em fins de 1919, pois o autor refere-se ao ano do seu com o afastamento temporario da sede do Governo, “de que tanto necessitava a minha deprimida saude”. Segundo o Boletim Oficial, n.º 41, 10 de Outubro de 1925, p. 307, o inspector partiu para Portugal com licença disciplinar, no dia 7 de Novembro de 1919. 101 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) central e do governo provincial no que respeita à instrução primaria nesta colonia” (relatório, s.d.132). 132 Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 102 A construção do discurso educativo Figura 10. Palácio do Governo, cidade da Praia, cerca de 1910 Ed. União Postal Universal (Loureiro, 1998, p. 55) Poder local O poder local era exercido, nas “sedes das paróquias civis ou ainda em outras povoações”, por juntas constituídas por três vogais eleitos (art. 264º, Carta Orgânica, 25 de Junho de 1917) e “se na localidade houver professor de escola pública primária e o número de elegíveis fôr inferior a trinta, mas não a vinte, funcionará a junta, constituindo-se com o professor e dois membros eleitos” (§ 1). As juntas reunidas “no edificio da escola ou em qualquer casa de despacho que escolher” (art. 269º, § 2) deviam “fazer, em época pré-fixa, o recenseamento escolar da respectiva área e enviá-lo, em tempo oportuno, à autoridade competente” (art. 265º, 6.º). Se a situação do ensino primário corria mal no sistema de centralização, igualmente mal continuou a correr com a descentralização (Carvalho, 2001, p. 679). “Em qual das ilhas é que a tua vontade é consultada? Em que os direitos do município constituem um facto? Desde S. Vicente onde campeia o sinecurismo; desde a Praia, onde a Salvé Rainha na pontinha da língua, é a melhor bitola nos exames de instrucção primária: até à pequenina Brava, onde a imbecilidade deu leis – passando por todas as ilhas –, onde 103 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) é que tu, meu grande pedaço d’asno, exerces o teu jus sufragii, e conservas o aprumo levantado do povo livre, que a lei te confere e que os teus capatazes to negam? Não te parece, isto, esta reles pandega, um fim de festa, na qual, os convivas tardios e insaciados estejam engulindo sem mastigar, na cega inconsciencia d’uma voracidade de tubarões?” (Tavares, 1910, p. 15). “A existencia das Comissões Municipais, cujos membros se arranjam ou se tiram por uma simples portaria para representarem a vontade do povo, é não só ilegal mas sim vexatória, para o nosso grau da civilisação. Como se pode ser interprete da vontade do povo, quem ele não escolheu e nenhum interesse tem na administração dos seus negocios? Quando é que veremos o povo representado por uma Câmara electiva, que zele os seus interesses, que defenda os seus direitos e que dignifique a sua missão, tão humanitária?!!” (Voz de África, nº 18, 15 de Maio de 1913, p. 3) Nem sempre a opinião pública verberou o municipalismo. Estimulou a acção municipal, em prol da escolarização, com a parceria de cidadãos e de entidades privadas (ex. Comissão Municipal de S. Vicente133). Por iniciativa do Governo Provincial, “os presidentes das corporações municipais, ou delegados das corporação” foram chamados para opinarem sobre “a remodelação e desenvolvimento do ensino primário nesta província, deliberar sôbre a escolha dos respectivos livros e sôbre a possível criação de mais escolas, mediante um imposto equitativo e quanto possível distribuído por toda a população” (Boletim Oficial, n.º 41, 9 de Outubro 1915, p. 348). As limitações financeiras colocavam os municípios sob o arbítrio do poder central. “Enquanto as camaras municipais não poderem tomar todos os encargos resultantes do ensino primario, e mesmo quando assim suceder, para que haja a necessaria uniformidade em todas as questões do ensino nos diferentes, as camaras não devem tomar resoluções deliberativas sobre assuntos desta natureza, sem o voto afirmativo do Conselho Inspector. (...) Quanto a vencimentos, as camaras municipais não deverão em caso algum, elevar ou diminuir, seja a que titulo for, os vencimentos dos professores nem atribuir-lhes, sob qualquer pretexto, gratificação alguma, a não ser, pelo que respeita à diminuição, que um caso de força maior, como seja a falta de rendimentos ou contribuições, se imponha como medida. Neste caso a medida deverá ser extensiva a todos os serviços camararios.” (Relatório, 13 Outubro 1914134) 133 134 Criação do Curso Livre de Ensino Primário Superior (1912). Cx.ª 664. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 104 A construção do discurso educativo Dispositivos de vigilância O tempo e espaço escolares eram geridos com dispositivos de coordenação, controlo e fiscalização, como o calendário escolar e o horário-tipo. O ciclo da vida escolar – ano lectivo – era simbolicamente iniciado em cerimoniais, que congregavam as forças vivas da sociedade islena. “É talvez o primeiro caso de um governador ordenar oficialmente que a abertura das aulas seja feita com a maior solenidade. Apoiado o govêrno que assim procede! É rialmente indispensavel que a abertura duma escola retumbe no espírito geral como um dos maiores progressos acontecidos entre a comunidade! Até hoje êste acto de uma significação encantadora, passava desapercebido em quási todos os povos. E porquê? É que a escola primária era uma mendiga andrajosa e suja, de quem não valia a pena fazer caso: o edificio era pequeno esburacado e imundo; tinha apenas as quatro paredes despidas com portas velhas, carunchosas, e com janelas a desconjuntarem-se, sem a mais modesta vidraça. Alêm, a um canto semi-escuro, jazia uma mesa pequena, encebada, com um tinteiro sêco e uma caneta sem aparo, a ornamenta-la! Uns bancos trôpegos e algo desconjuntados formavam o complemento de todo aquele luxo e de toda aquela grandeza. A escola primária, no passado, foi um escárneo, porque os felizes tubarões uma vez saídos dela, iam depois deprimi-la assim como ao mártir professor que os tinha pacientemente ensinado! Essa época tenebrosa acabou. O luminoso tempo da democracia varreu toda a iniquidade dos tempos idos para festejar o sol esplêndido que no horisonte apareceu, aquecendo com seu calor de caridade os menos favorecidos da fortuna e os que mais trabalham em benefício da humanidade.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 177, 24 de Setembro de 1916, p.1) À Inspecção Escolar incumbia o controlo externo. Em 1917, foram nomeados “dois inspectores, um para o Círculo de Sotavento, com sede na Praia, e outro para o de Barlavento, com sede em S. Vicente, os quais percorrerão as escolas durante os meses do ano lectivo, fiscalizando, dirigindo e aperfeiçoando os professores, uniformizando os métodos e os processos de ensino, e elevando assim o nível pedagógico das escolas” (art. 10º, Plano Orgânico da Instrução Pública, de 1917135). A inspecção, que devia actuar in situ, era exercida por “inspectores da metrópole”. 135 O Plano Orgânico de 1918 limitou a acção inspectiva, ficando um só inspector, “um dos dois que já estão na provincia, ficando o outro a servir como professor de Pedagogia no Instituto de Instrução Secundária” (Portaria nº 474, tít. II, cap. 2, art. 16º, § 1). Consultar o apêndice D. 105 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) “Um inspector que não inspecciona. Se não estamos em erro há mais de 18 anos que a província paga a uma certa pessôa 500$00 anuais, como inspector das escolas primarias. Ora durante êsse longo lapso de tempo, não nos lembra que o Sr. inspector uma só vez as tenha inspecionado. Logo durante êsse período, tem a província gasto a bagatela de escudos 9.000 com um funcionario que recebe os vencimentos sem trabalhar. Não pode continuar… ou então comam todos.” (A Defesa, n.º 4, 15 de Outubro de 1913, p. 2) “Ainda sobre a inspecção às escolas: tem acontecido, escolher-se um apaniguado e mandal'o mediante boa massa, já se deixa ver, proceder à inspecção às escolas, que seria melhor mandal'o passear à custa dos pobres contribuintes, sem nada fazer (...). O célebre inspector teve o descaro de dizer-me, lembro-me disto ainda com horror: que me não matasse com o ensino porque não convinha que se ilustrassem os humildes, aliás seríamos mal servidos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 232, 1 de Março de 1916, p. 3) O inspector do círculo de Sotavento, não obstante o carácter fugaz da sua missão136, apresentou um relato do estado da instrução e um perfil do cargo inspectivo: “Assim, dadas as condições imperfeitas, mesmo bastante defeituosas, do ensino primario em Cabo Verde; a deficiente preparação de muitos dos professores, portanto, o pouco rendimento útil das escolas; - reconhecida também a necessidade de imprimir-se ao ensino uma orientação quanto possível progressiva e em que sejam aproveitados e seguidos processos modernos de cultura das creanças : afigura-se-me que a provincia deve, antes ter um serviço de inspecção e escola movel «para professores», ou seja contractar um individuo competente: - primeiro para instrui-los em mettodo e sistemas de ensino uniforme, mediante um programa que lhes faça distribuir, contendo preceitos dos mais praticamente experimentados a que se subordinem o ensino e trato de cultura dos alunos; depois, para verificar, em inspecção directa das escolas, se tal programa é fielmente interpretado e executado, e se os resultados obtidos na sua aplicação recomendam a definitiva nomeação dos professores interinos ou provisorios susceptiveis de provimento, e, de modo geral, qualquer procedimento tendente a melhorar o que porventura se acuse de menos proveitoso pela referida inspecção. É assim que me parece mais util e pratica a missão de um inspector de escolas, e não assimilando-se essa tarefa ao cargo de secretario geral, que é, por via de regra, o repositorio vago, no ultramar portuguez, de todos os serviços que teem responsável definido ou técnico; do que resulta para o caso presente, um inevitavel prejuizo para tal inspecção, e pouco beneficio, de facto, para a instrução publica, visto não ser precisamente um pedagogo e um mestre, com competencia e autoridade profissional para dirigir o professorado primário, conforme atraz referi” (Relatório, s.d.137) 136 Tendo-se retirado para a metrópole em 7 de Novembro do mesmo ano [1919] com 60 dias de licença disciplinar nunca mais voltou à província (Boletim Oficial, n.º 41, 10 de Outubro de 1925, p. 307). 137 Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 106 A construção do discurso educativo O inspector do círculo de Barlavento foi arguido, num processo de inquirição, pelo Administrador do Concelho da Ribeira Grande, Guilherme Reginaldo Morbey: “O inspector não se demorava nas aulas, fazendo visitas rápidas, não assistindo as leccionações, interrogando raramente os alunos e que nas suas visitas, tratava primordial e quasi exclusivamente da escripturação escolar. (...) Tampouco, como o determina o § único, desse artigo [96.º do Regulamento Provisório de Instrução Pública], nunca assistiu a toda a aula, em qualquer escola, e só, por vezes, como mero desfastio fez algumas perguntas aos alunos. Não consta que tivesse feito lições, nas escolas, por onde passou. (....) O seu extremo cuidado e zelo, como nitidamente ressalta da declaração dos professores, era tão sómente dedicado à inspecção da escrituração escolar, porventura porque como ele declara, na reprimenda que deu à professora (...) é pela estatística geral e especial de cada escola, pela qual se avalia o progresso do ensino num país, numa região ou numa escóla e à qual os pedagogistas modernos dão grande valor.” (Relatório, 29 de Julho de 1919, f. 14v/15138) O teor da inquirição demonstra o descrédito da acção inspectiva, “[onde cometeu] tais erros, tais gafes, tais defecções em frente dos professores, [que] depõem muito contra a sua competencia, fazem ressaltar a sua incapacidade tecnica e profissional para o cargo que vinha desempenhando” (idem, fv. 17). Figura 11. “Se a gramática não erra…” (Excerto de relatório, 29 de Julho de 1919, Santo Antão) 138 Cx.ª 671. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 107 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Em 1920, foi criado o lugar de Secretário da Inspecção Escolar, “em virtude dos múltiplos assuntos que, além do serviço de fiscalização e orientação do ensino, são cometidas ao inspector” (Boletim Oficial, n.º 28, de 10 de Julho de 1920, p. 288). Dois anos mais tarde, O Correio de África noticiava a nomeação de um inspector cabo-verdiano, “o nosso ilustre compatriota e distinto professor primario sr. José dos Reis Borges“ (n.º 51, 1 de Setembro de 1922, p. 2). “Convencido de que um inspector escolar, por mais hábil que seja e por maiores que sejam as suas faculdades de trabalho, pouco poderá produzir, agindo isoladamente, isto é, sem o concurso de professores; convencido também de que o professorado primário de Cabo Verde possui elementos valiosos, quer sob o ponto de vista moral, quer sob o ponto de vista intelectual e animado dos melhores desejos de trabalhar e de sempre acertar, venho confiadamente, como amigo e como colega, solicitar o valioso concurso de V. Ex.ª no sentido de elevarmos por uma educação bem orientada, o nível intelectual e moral do povo de Cabo Verde. E para isso basta que encaremos muito a sério a nossa missão, que é das mais honrosas e das mais sublimes; que o professorado se una sinceramente em tôrno do inspector, e que, finalmente, tenhamos por divisa – Ordem e Trabalho.” O inspector escolar, interino, José dos Reis Borges.” (Boletim Oficial n.º 7, 18 de Fevereiro de 1921, p 54) No ano de 1923 foi criada uma secção de Instrução Pública, na Secretaria Geral do Governo (Diploma Legislativo n.º 38, 26 de Fevereiro), com a prestação de serviço de um professor primário que se ocupava da fiscalização do sistema escolar. Esta medida não foi duradoira e as competências inspectivas foram cometidas “ao Secretário Geral do Governo de Cabo Verde, que as exercerá em todo o arquipélago”, com a argumentação que os serviços de instrução pública “se encontram defeituosos, havendo escolas em que os professores não primam pela competência nem pela assiduidade”139 (Boletim Oficial, n.º 41, 10 de Outubro de 1925, p. 307). As sucessivas identidades da fiscalização do ensino demonstram as hesitações entre a visão pedagógica, em sede de escola e a visão administrativa, centrada no poder político. O contacto directo dos inspectores, que “percorrerão as escolas durante os meses do ano lectivo, fiscalizando, dirigindo e aperfeiçoando os professores, uniformizando os métodos de ensino, e elevando assim o nível pedagógico das escolas140”, foi substituído pelo controlo indirecto através de processos, relatórios, cadastros e demais registos, em diferido, da vida escolar. 139 No relato do estado da instrução o inspector de Sotavento advertia quanto à possibilidade da atribuição do cargo de inspector ao Secretário Geral do Governo, visto “não ser precisamente um pedagogo e um mestre” (p. 105). 140 Apêndice D. 108 A construção do discurso educativo 3.2. Financiamento do ensino Quem geria os recursos financeiros? A resposta a esta questão foi procurada na produção discursiva (imprensa) e no legado normativo dos decisores (Boletins Oficiais). Enquanto que na metrópole foi fixado o quadro normativo do financiamento da instrução pública (Decreto de 29 de Março de 1911141), em Cabo Verde, a gestão de despesas e receitas para a instrução era regida por medidas avulsas. “Das corporações municipais, sobrecarregadas com despesas que melhor cabem ao govêrno, como a da renda de casa, mobiliário e custiamento das escolas, apenas a Comissão Municipal da Praia, por proposta do seu ilustre presidente, sr. Guilherme de Meneses, mostrou interessar-se pela causa do ensino, propondo em sessão da edilidade um aumento de impostos, consagrado integralmente ao ensino, proposta que está pendente da resolução ulterior. Trata-se da criação de um imposto de 10% sôbre as contribuições predial e industrial cobradas pelo Estado, e sôbre as taxas de licença passadas pela Câmara Municipal, sendo êste imposto cobrado conjuntamente com os 10% que a câmara actualmente cobra, mas a sua inscrição no orçamento municipal far-se-há em separado. Isto é, a sua aplicação será única e exclusivamente destinada ao custeio de 7 escolas de instrução primária do 1º grau, distribuidas por êste concêlho, que são as que o aumento das receitas preveem. Com esses impostos, cujo fim altamente patriótico não podemos deixar de encarecer, a Comissão Municipal propõe-se, quanto em si caiba, difundir a instrução pelo concelho, desanuviando o futuro desventuroso, que espera a todos os que, não sabendo ler nem escrever a língua nacional, pensem em ir moirejar a vida pela América. Êsses impostos, pela sua relativa modicidade, demonstram abertamente que não são gravosos e não dificultam, por conseguinte, até a embaraçar, a vida 141 Art. 52º As despesas com o serviço da instrução pública são pagas pelo Estado e pelas Câmaras Municipais. § 1.º O Estado paga as despesas relativas á direcção, fiscalização e administração do ensino normal e à direcção do ensino primário. § 2º As Câmaras Municipais pagam as despesas de administração do ensino primário de todas as categorias, e que digam respeito aos seguintes encargos: a) rendas de casa das escolas e habitações dos professores; b) subsídios de renda de casa; c) aquisição de material didáctico; d) reparação e conservação dos edifícios escolares; e) prémio de seguro dos mesmos edifícios; f) expediente e limpeza das escolas; g) despesas com os exames de instrução primária e h) ordenados aos professores. Art. 53º Para os effeitos do pagamento das despesas com os serviços da administração do ensino primario é criado, junto de cada um dos municipios da Republica, um fundo escolar. (Diário do Governo, nº 73, 30 de Março de 1911, p. 1.344) 109 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) económica dos cidadãos. Pelo contrário, vem beneficiá-la, não para já, mas para daqui a algum tempo, porque, fechando a emigração para os Estados Unidos, a Província ressentir-se-ia grandemente dêste desvio da corrente emigratória, pela cessação da drenagem de oiro que da América chega anualmente.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 5, 29 de Maio de 1913, p.1) As receitas obtidas com a contribuição de cidadãos (impostos) eram administradas pelo poder provincial e pelos municípios. O binómio ensino/emigração ressurge com o projecto de criação de um imposto “que se pretendia mais equitativo: (...) seria o de 5$000 réis por cada emigrante que regresse da América do Sul ou do Norte, à entrada na província e que se destinaria à criação e manutenção de escolas primárias” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 6, 5 de Junho de 1913, p. 1). A angariação de receitas para a educação dependia da iniciativa dos “filhos dilectos desta terra”: “Foi êste filho dilecto desta terra [Viriato Gomes da Fonseca, major de artilharia], que elevou a verba da instrução, que era de 1.280$00 escudos, a 2.079$00, criando no orçamento, que então elaborou, um tributo sobre as licenças da venda da aguardente, desse veneno tam prejudicial à instrução da sua terra. Depois o sucessor dêste notável homem, no Senado camarário, o eminente sábio e abalisado professor José Lopes, elevou também a verba da instrução, que era de 2.079$00 para 2.390$00 escudos, o que foi um valente impulso para a beneficência pública; mas José Pereira Serra, eleito presidente, a seguir ao Lopes, ainda encontrou maneira de ampliar esta dotação da educação juvenil, alongando-a para 2.668$69 escudos!” (A Voz de Cabo Verde, n.º 186, 1 de Março de 1915, p. 3) O ordenamento da instrução pública, no Plano Orgânico (1917), contemplou as bases da gestão orçamental e definiu os procedimentos de mobilização e de administração dos recursos financeiros: “Art. 26° São obrigadas as câmaras municipais a destinar aos encargos de instrução, pelas forças das suas receitas, quantias pelo menos iguais às que actualmente dispendem com o ensino primário, devendo essas quantias ser entregues trimestralmente nas recebedorias de fazenda concelhias, à ordem do govêrno da província. § único. Efectuada a nova divisão administrativa da província, as câmaras municipais dos concelhos cuja área for alterada, e bem assim as comissões municipais dos novos concelhos irregulares, são obrigadas a destinar aos encargos de instrução, pelas forças das suas receitas, quantias pelo menos iguais às que lhe competiriam na divisão das que actualmente dispendem as Câmaras dos concelhos antes de divididos. Estas quantias terão o destino indicado no corpo deste artigo. Art. 27° É criado o imposto de 3% ad-valorem sôbre todas as mercadorias importadas pelas alfândegas de Cabo Verde, com excepção do carvão; e de $00 (l) por quilograma sôbre a purgueira, exportada pelas mesmas alfândegas. 110 A construção do discurso educativo Art. 28° É lançado um imposto de consumo de $10 por litro sôbre a aguardente produzida na colónia ou nela importada. Art. 29° Constituem fundo especial com aplicação exclusiva aos serviços de instrução da colónia: 1º - Uma subvenção a inscrever anualmente no orçamento da província, nunca inferior a 24.000$00; 2° - Uma subvenção a inscrever anualmente no orçamento da Junta de Melhoramentos de Agricultura e Pecuária, nunca inferior a 5.000$00; 3° - As receitas provenientes das Câmaras e Comissões municipais, indicadas no artigo 26° deste diploma e seu parágrafo único; 4° - O produto dos impostos criados pelos artigos 27° e 28°; 5° - Os saldos do fundo criado por este artigo e que existam à data de 30 de Junho do ano económico anterior; 6° - Os donativos de entidades oficiais ou particulares, o produto das propinas; o das multas provenientes da embriaguês e da prática de jogos ilícitos, e o de quaisquer outras fontes especiais de receitas que com êsse destino forem criadas. Art. 30° O fundo especial criado pelo artigo antecedente será distribuído segundo as necessidades do ensino em orçamento de ano económico, que será elaborado pelo Conselho de Instrução Pública e sujeito à aprovação do Conselho do Govêrno da Colónia. Art. 31º É autorizado o Governador da Província, ouvido o Conselho do Govêrno, a contratar com um estabelecimento de crédito português, e com destino a construções escolares, um empréstimo até à quantia de 60:000$ não devendo a taxa de juro exceder 6%, e o prazo de amortização não ir além de 20 anos.” (Decreto nº 3.435, 8 de Outubro de 1917, p. 3142) O segundo Plano Orgânico (1918) introduziu mudanças em matéria fiscal. Criou novos impostos: $02 por litro sobre o vinho comum e bebidas fermentadas; $04 por litro sobre os vinhos licorosos, espumosos, vermutes e champanhe, importados pelas alfândegas da província e 5% ad-valorem sobre os metais preciosos em obras (excluída a moeda), tabacos e tecidos de seda e $01 por quilo de café143 (tít. VII, art. 48º e 50º, Portaria nº 474, 27 de Dezembro)144. A política de expansão do sistema educativo assentou no agravamento contínuo das tributações: “O orçamento da Instrução Pública está desequilibradíssimo. O seu deficit sobe a uns duzentos contos. Não obstante são frequentes as exigências para que se criem novas escolas, pois que a população escolar excede muito da lotação das existentes. Sustentar, porêm, o que existe é já impossível, se não criarem receitas. 142 Supl. nº 18 ao Boletim Oficial nº 43, 30 de Outubro de 1917, p. 3 (apêndice D). Manteve os impostos de 3% ad valorem sobre as mercadorias importadas, de 00,1 por quilograma sobre a purgueira e de consumo de $10 por litro sobre a aguardente (art. 49º). 144 Supl. nº 14 ao Boletim Oficial nº 52, 31 de Dezembro de 1918, p. 4 (apêndice D). 143 111 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Atendendo a esta necessidade, o Conselho Legislativo, aprovou e o Govêrno da Colónia dá o seu assentimento ao seguinte, que fica provisóriamente em vigor, nos termos da secção 2ª da base 30ª do decreto n.º 7:008, de 9 de Outubro de 1920: Artigo 1º O imposto de consumo de aguardente produzida na província, destinado ao fundo de instrução e criado por decreto n.º 3:435, de 8 de Outubro de 1920, é elevado de $10 para 1$; Artigo 2º É igualmente elevado de $10 para 3$, o imposto de consumo de aguardente importada na província de portos estrangeiros ou nacionais, com destino ao fundo de instrução.” (Boletim Oficial, n.º 51, 23 de Dezembro de 1922, p. 383) O debate em torno do financiamento da instrução não se esgotou no agenciamento de recursos. Incidia, também, no controlo da aplicação das receitas. “O vogal snr. José Costa pergunta o que é feito da verba da instrução e daquele saldo que sobejou do orçamento transacto, e diz que então se a verba não é gasta na Instrução não compreende como estejamos a pagar 3% sobre tudo quanto comemos, bebemos e vestimos. O snr. Secretário Geral explica que se já estivesse realisado o emprestimo que a provincia pediu, teriamos dinheiro, para as importantes despesas que compete ao desenvolvimento da Instrução Primária, mas assim é impossível realisar um certo numero de melhoramentos devido à falta de recursos.” (Acta de 6 de Novembro de 1918145) Para uma melhor compreensão dos custos da educação, procedemos à análise das receitas e despesas destinadas ao ensino146. A ponderação das despesas face ao total orçamentado, revela um decréscimo dos gastos com o ensino no período de 1914 a 1915, fenómeno coerente com a quebra de efectivos escolares na mesma época (menos 6,9%147). Seguiu-se um período de crescimento de 1915 a 1920. Quadro 37 – Distribuição das despesas com a instrução pública – 1912/1920 Despesas com a instrução Anos Orçamento Valor em escudos % 1912 381.073$041 21.389$965 5,61 1914 636.591$352 18.762$70 2,95 1915 476.982$89 18.225$56 3,82 1920 1.077.283$73 100.635$81 9,34 (Estatística Geral da População, 1913, 1915, 1918 e 1925) 145 Cx.ª 668. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. Deparámo-nos com limitações, de que destacamos a utilização de fontes de origens distintas e de séries estatísticas incompletas (1910-1920) ou indisponíveis (1921-1926). 147 Consultar Quadro 22 (pág. 67). 146 112 A construção do discurso educativo A evolução temporal148 das despesas consignadas para a instrução pública e a sua distribuição espacial dão-nos uma ideia das assimetrias regionais no desenvolvimento educacional. Gráfico 6 – Distribuição do orçamento para a instrução pública, por concelhos/ilhas – 1912/1915 1912 35% 1914 1915 30% 25% 20% 15% 10% 5% a Bo av i st Sa l S. V ic en te S. A nt ão S. N ic ol au Br av a Fo go ar in a ai o M S. Ca t Pr ai a 0% A capital detinha a maior fatia orçamental149. Assiste-se a uma redução dos custos da educação150 na ilha de S. Nicolau (1914/15), devido à decadência do Seminário, que seria extinto em 1917. As dotações para o ensino, nas ilhas do Fogo, Brava, Boavista e S. Vicente151 apresentam uma tendência ascendente. A tributação foi a principal fonte de receitas. Apesar da variedade de projectos de impostos, cujas receitas se destinavam à instrução pública, segundo as fontes consultadas apenas se efectivaram os seguintes: 3% ad valorem sobre as mercadorias importadas e 10% sobre as contribuições e as licenças para escolas. 148 Não incluímos o ano de 1920, pois os dados colhidos na Estatística Geral da Província de Cabo Verde (ed.1925) não são congruentes com os dados referentes a anos anteriores e não fornecem informações sobre os concelhos de Santa Catarina, S. Vicente, S. Nicolau e Boavista. 149 Em 1912, o orçamento global, para o ensino, foi de 21.389$965 e o concelho da Praia recebeu a dotação de 5.516$255. 150 Em 1912, em S. Nicolau, o orçamento para o ensino, no valor de 5.119$715, tinha um peso de 23,9% (total: 21.389$965); em 1914, a dotação desceu para 1.110$30, equivalente a 5,9% (total: 18.762$661). 151 Na ilha de S. Vicente, no ano 1912, as despesas com o ensino foram orçadas em 1.662$100 (7,7%) e no ano 1914, o orçamento ascendeu a 2.296$00 (12,2%). 113 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Quadro 38 – Conta corrente de receitas e despesas, município da Praia – 1910/1917 Receitas Ano Despesas Designação Valor Esc. 1910 Imposto 3% ad valorem sobre a importação 2.164$06 1912 Imposto 3% ad valorem sobre a importação 1.485$93 10% sobre as contribuições Imposto 3% ad valorem sobre a importação Total 10% sobre as contribuições 10% sobre as licenças para escolas Imposto 3% ad valorem sobre a importação Total 270$26 4.916$22 5.186$48 1 671$17 331$81 9.132$03 11.135$01 1915 1917 Perc. Designação Instrução Primária e apoio a institutos152 Instrução Primária e apoio a institutos153 Valor Esc. 1.595$18 Perc. 2.232$12 58,6% Instrução primária 3.657$45 41,4% 73,7% Instrução primária 3.966$10 26,3% (Boletim Oficial n.º 9, 4 Março de 1911, p. 64; n.º 6, 8 de Fevereiro de 1913, p. 53; n.º 10, 4 de Março de 1916, p. 81; n.º 10, 9 de Março de 1918, p. 93) A tabela apresenta os valores das receitas e despesas do ensino, geridas pelo município da Praia. Verifica-se que as receitas, provenientes da tributação, eram superiores às despesas (à excepção do ano de 1912), o que não é compatível com as alegadas dificuldades financeiras, mas pode revelar uma deficiente gestão orçamental. Gráfico 7 – Distribuição dos subsídios atribuídos ao Fundo de Instrução – 1922 S. Vicente 33,9% Praia 22,6% Fogo 8,1% Santa Catarina Ribeira Grande 6,5% Tarrafal Brava S. Nicolau 4,8% 3,2% Paúl Mosteiros Boa Vista 0,8% Sal Maio 152 O total de despesas reportava-se a: Instrução primária – 1295$18; Instituto Ultramarino – 150$00; Instituto Médico-Tropical – 150$00. 153 O total de despesas reportava-se a: Instrução primária – 1954$38; Instituto Ultramarino – 138$86; Instituto Médico-Tropical – 138$87. 114 A construção do discurso educativo O governo provincial fixou “os subsídios com que as câmaras e as comissões municipais devem contribuir para o fundo especial de instrução pública”, no montante global de 62.000$00 (Portaria n.º 99, 29 de Maio de 1922)154. A ilha de S. Vicente contou com o subsídio mais avultado (21.000$00), o que se explica pelo desenvolvimento no campo académico após a instalação do liceu. Seguem-se, por ordem decrescente, as quotas dos municípios da Praia (14.000$00), de Santa Catarina e da ilha do Fogo (5.000$00). Às ilhas do Sal e do Maio não foi exigido qualquer subsídio, sintoma de níveis baixos de desenvolvimento educacional (Gráfico 7). A distribuição dos recursos, obtidos com os impostos destinados ao financiamento da educação, demonstra que a ilha de S. Vicente liderava a arrecadação de receitas (56,8%), seguida da cidade da Praia (25,4%). Quadro 39 – Distribuição dos rendimentos obtidos com os impostos – 1922 Valor dos rendimentos Círculos aduaneiros 3% ad valorem Praia Ribeira da Barca155 Tarrafal Fogo Brava Maio São Vicente Santo Antão São Nicolau Sal Boavista Total Imposto sobre a aguardente Valor em escudos Percentagem 6.963$47 58$20 750$89 1.907$37 2.032$44 19$50 6.982$97 58$20 750$89 1.907$37 2.032$44 13.800$45 37$35 107$22 1.846$80 15.647$25 37$35 107$22 25,4% 0,2% 2,7% 6,9% 7,4% 0,0% 56,8% 0,1% 0,4% 0,0% 0,1% 100,0% 18$17 25.675$56 1.866$30 18$17 27.541$86 (Resumo do rendimento no mês de Fevereiro de 1922. Administração do Círculo Aduaneiro, Praia156) Não obstante as notórias dificuldades com a obtenção de recursos para a educação, as verbas destinadas à instrução pública foram utilizadas para outros fins, incluindo a aquisição de bens para o palácio do governador: 154 Boletim Oficial, n.º 22, 3 de Junho de 1922, p. 173. Porto do concelho de Santa Catarina. 156 Boletim Oficial, n.º 24, 17 de Junho de 1922. 155 115 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) “Sendo insuficientes os saldos existentes no capitulo 1º do quadro das despesas ordinárias do corrente ano económico, na verba da secção 3ª do artigo 1º «aquisição e concerto de mobília dos palácios do governo», e na verba 1º da secção 2ª do artigo 7º «material para serviços agrícolas, experimentais e exploração» para ocorrer até ao fim da actual gerência aos pagamentos de caracter inadiável; (...) Hei por conveniente determinar Que dentro do capítulo 1º do quadro da despesa ordinária da colónia, em vigor no corrente ano económico, se façam as transferências seguintes: a) Da secção 2ª do artigo 3º «instrução pública», cem escudos (100$) para a secção 3ª do artigo 1º «aquisição e concerto das mobilias do palácio do Governo». b) Da secção 5ª do artigo 3º «instrução pública», tresentos escudos (300$) para a verba 1ª da secção 2ª do artigo 7º «material para serviços agrícolas, experimentais e explorados». c) Da secção 1ª do artigo 7º «para pagamento de ajudas de custos», quatrocentos escudos (400$) para verba 1.ª secção 2ª do mesmo artigo «material para serviços agrícolas, experimentais e explorações». As autoridades e mais pessoas, a quem o conhecimento e execução da presente competir, assim o tenham entendido e cumprem.” (Portaria n.º 104, Boletim Oficial, n.º 17, 24 de Abril de 1915, p. 157) Ao findarmos a análise retrospectiva do financiamento da instrução pública – em determinações legais, números esparsos ou organizados em séries estatísticas e pela voz crítica da imprensa – inferimos que a gestão educacional se caracterizou por desequilíbrios orçamentais gravosos para a educação, num contexto de “descentralização controlada”157 pelo poder colonial. 157 Expressão utilizada por João Barroso (1995, p. 725). 116 A construção do discurso educativo 3.3. Intervenção social No período republicano, a expansão da oferta educativa exigia uma forte intervenção estatal. A ineficácia da governação redundou num panorama educativo degradado, caracterizado pela precariedade das escolas, distorção da rede escolar e estratificação social: escolas para alunos e para alunas (em clara minoria); alunos brancos, mistos e pretos; da cidade e do interior; remediados e pobres. Nas ilhas de Cabo Verde, a pobreza visível e sentida158 era um flagelo que se agudizava nas cíclicas e frequentes crises alimentares: “A Comissão Central de Assistência, instituída em face da pavorosa crise que assola as ilhas de Cabo Verde, motivada pela absoluta falta de chuvas e agravada pela escassês e carestia dos transportes marítimos, certa de que nem um só coração deixará de se abrir aos lamentosos ais de todo um povo que se contorce numa horrida e cruel agonia, vem, esperançada nos seus sentimentos generosos e em nome dos laços que prendem toda a humanidade, solicitar de V. Ex.ª o valioso auxílio da abertura de uma subscrição entre as pessoas das suas relações, nos jornais, e em todas as instituições em que exerça influência, a fim de, com o seu produto minorar a crise horrível, que algumas vítimas está causando. (...) Bem maior que as forças da Comissão é sem dúvida a impetuosidade do flagelo que abala a Sociedade nos seus próprios alicerces, enervando e desorientando energias que seriam úteis à barreira de resistência tão carente de refôrço e de novas dedicações extremadas. Bem sabe a Comissão que é triste, mesmo muitíssimo horroroso, o assistir ao cortejo macabro das vítimas da fome, rua fóra, de mãos súplices à caridade pública umas, e direitas à vala comum, terminus de um sofrimento atroz, aqueles que menos puderam resistir.” (Boletim Oficial, n.º 15, 9 de Abril de 1921, pp. 151-152) Cynthia Greive Veiga, no texto Alunos pobres no Brasil, século XIX: uma condição de infância, refere que a pobreza oficial está patente “nos registros de matrículas, na relação de pais omissos e nas listagens de alunos pobres” (s. d., p.32). Também, em Cabo Verde, a pobreza é omnipresente na produção burocrática e discursiva. Parca em palavras surge em alusões colaterais e silêncios. Os alunos pobres raramente aparecem como sujeitos, mas sim como objectos de medidas reparadoras, sob a égide do assistencialismo social. 158 Em Alunos pobres no Brasil, século XIX: uma condição de infância, Cynthia Greive Veiga propõe três conceitos de pobreza: oficial, visível e sentida. Texto elaborado a partir da pesquisa “História social da infância: crianças pobres, negras, pardas e mestiças na institucionalização da instrução elementar em Minas Gerais, século XIX”, sob a orientação da Prof.ª Maria Luiza Marcílio, em programa de pós-doutoramento na Universidade de São Paulo (s. d.). 117 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) “Para realisar tão humanitarios fins [distribuição gratuita de livros e vestuários aos alunos pobres], carecemos do auxilio das pessoas generosas, pelo que vimos solicitar a valiosa coadjuvação de V. Ex.ª, pedindo-lhe se inscreva como socio da Associação de Assistencia Escolar, cujas quotas são de 100 ou 200 réis mensais, à escolha.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 55, 2 de Setembro de 1912, p. 1) O Plano Orgânico de Instrução Pública de Cabo Verde (1917) estipulava “para a assistência escolar anualmente uma verba não inferior a 1.000$” (tít. VII, art. 32º, Decreto nº 3:485). No segundo Plano Orgânico (1918) o valor triplicou, sendo destinado à “distribuição de livros e material escolar aos alunos pobres, pelo sustento e ensino destes no Instituto de Instrução Secundária159, e pela distribuição de uma ração diária a 90 alunos das escolas profissionais da Praia e de S. Jorge dos Órgãos” (tít. VIII, art. 55º, Portaria nº 474, 27 de Dezembro). O Presidente da Câmara Municipal da Praia, em carta ao Secretário Geral do Governo, aludia a “abusos na venda de manuais e mudança constante de títulos” e inscreveu no orçamento, a verba de 20$00, para a compra de livros para os alunos pobres. Era uma verba irrisória para a capital da província160. Em 1918, foi constituída a associação “O vintém das escolas”, para a qual convergiram apoios do governo, dos municípios e da sociedade: “Foi apresentada a nota número 131 de 18 de Junho findo da Administração do Concelho da Brava, solicitando o abono de um subsídio ao Govêrno para se acudir à distribuição de livros, papel e roupa às creanças pobres, para refôrço da verba com que já hoje contam para o mesmo fim e que provêm de uma Associação com o título «O vintém das escolas», organizado pelo presidente da Junta Local de Instrução a convite do Inspector Primário de Barlavento.” (Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 3 de Julho de 1918161) A desproporção entre as sequelas sociais da pobreza, corolário das estiagens e as referências discretas à pobreza dos alunos, permite-nos concluir que o discurso dominante sugeria, mais do que desvendava, a pobreza vivida e sentida pelas crianças do arquipélago. 159 Consultar Parte II, Subcapítulo 7.2. (págs. 221-223). Numa factura datada de 20 de Fevereiro de 1915, constam os seguintes preços: 100 livros de leitura, 1.ª classe – 12$00; 50 livros de leitura, 2.ª e 3:ª classes – 15$00; 50 livros de leitura, 4.ª classe – 15$00; 100 Sistemas Métricos – 15$00; 100 gramáticas – 25$00; 100 livros de Educação Cívica – 12$00; 100 livros de História – 20$00; 100 livros de Aritmética – 28$00; 100 caligrafias – 24$30; 100 livros de Corografia – 25$00; 100 livros de Agricultura – 25$00 e 150 Cartilhas escolares – 7$50. (Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN) 161 Cx.ª 668. Fundo da Secretaria Geral do Governo, 3 de Julho de 1918, IAHN. 160 118 A construção do discurso educativo Ensino particular Os estabelecimentos de ensino eram classificados em escolas oficiais, municipais, particulares e religiosas. As fronteiras da nomenclatura situam-se na delimitação da propriedade e no grau de regulação estatal e de intervenção da sociedade. O ensino particular complementava o ensino público, cuja administração prometeu mais do que a vontade e as finanças conseguiam realizar. “E o mal [do ensino] é gravissimo, carece de remedio urgente. É preciso que o caboverdiano saiba ler e escrever a sua lingua para que não lhe vedem a entrada nos paizes onde tantos vão procurar trabalho, buscar o sustento e a civilização. Procurava dar esse remedio pronto e eficaz a portaria n.º 126 publicada no Boletim da Província, n.º 13 de 30 de Março de 1889. Era o recurso ao ensino particular, estimulado por meio de premios pecuniários, cujo quantitativo por aluno seria fixado devidamente, sendo os fundos para estes premios provenientes de três origens: verbas abonadas pelo cofre da Província; verbas votadas pelas Camaras Municipais; donativos obtidos pelas juntas locais por meio de subscrição permanente. Era o Estado auxiliado pelo Municipio e pela iniciativa privada. A Sociedade de Estudos Pedagógicos cumpre o seu dever representando ao Governo da Republica para que atenda à necessidade de combater o analfabetismo na Província de Cabo Verde, promovendo (...) o recurso, para já, ao ensino particular, estimulando-o com premios pecuniarios nos termos da portaria citada.” (Revista de Educação, n.º 2, Julho de 1913, pp. 141-142) A liberdade de ensino era um valor caro aos Republicanos. A reforma educativa (1911) consagrou o ensino particular livre, embora sujeito à fiscalização do ensino oficial. “Art. 48º O ensino particular é livre, mas só pode ser exercido profissionalmente por individuos que tenham a competencia estabelecida na lei, para o exercicio do magisterio primario oficial. Art. 49º É livre a instituição de qualquer escola particular ou curso particular de ensino primario, ficando, contudo, essa escola ou curso sujeita à fiscalização oficial, para garantia da competencia legal dos professores e das prescrições da hygiene escolar. (...) Art. 50º As camaras municipais, e bem assim o Governo, podem subsidiar as escolas de iniciativa particular, quando reconhecidamente uteis, desde que funccionem em localidades onde não haja escolas officiaes do mesmo grau, ou havendo-as, não sejam sufficientes para as necessidades do ensino; e em especial se destinam ao ensino infantil e ao ensino elementar. 119 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Art. 51º Será prohibido o exercicio do magisterio primario particular aos cidadãos que ensinarem doutrinas contrarias às leis do Estado, à liberdade dos cidadãos e à moral social.” (Decreto de 29 de Março de 1911)162. Na óptica de J. Stewart e S. Ranson, “o dilema para o sector privado está no facto de que o domínio público estabelece as próprias condições de que o sector privado depende” e “o dilema para o sector público está, por sua vez, no facto de, ainda que detenha em si a sua própria justificação, ele deve incluir o sector privado” (citados em Estêvão, 1998, p. 53). Na colónia de Cabo Verde, foi o domínio público que estabeleceu as regras de funcionamento do ensino particular (Plano Orgânico, de 1918): “Art. 43º É permitido livremente o ensino particular e doméstico, ficando porêm o primeiro sujeito à inspecção escolar. § único. Os indivíduos, corporações ou associações, que pretendam estabelecer quaisquer cursos, colégios ou escolas de ensino particular onde se ensinem as matérias professadas no Instituto Secundário podem faze-lo sem qualquer formalidade legal, ficando porem obrigados a enviar até 1 de Junho ao Conselho de Instrução Pública uma nota dos alunos que propõem para exame e enviando até ao dia 30 de Junho à Secretaria do Instituto a sua informação acerca do valor intelectual e da habilitação dos seus alunos.” (Portaria n.º 474, 27 de Dezembro de 1918) Figura 12. Anúncio de uma escola particular (O Futuro de Cabo Verde, n.º 10, 3 Julho 1913, p. 5) 162 Diário do Governo, n.º 73, 30 de Março de 1911, p. 1.344. 120 A construção do discurso educativo Anúncios de cursos do ensino particular, na imprensa periódica e nos Boletins Oficiais, testemunham a existência do ensino privado, anteriormente à sua inserção no sistema escolar (1918). Da iniciativa de cidadãos – professores, militares, funcionários públicos e clérigos –, os cursos eram pagos (constituíam uma fonte de rendimento supletiva ao exercício profissional) e apresentavam-se com os seguintes atributos: “leccionados com qualidade”, “ensino cuidadoso e garantido”, “com professores bastante habilitados e com larga pratica de ensino em Lisboa”. Surgiam alusões a metodologias de referência: “Dinorah Moreira de Aguiar, professora diplomada pela Escola Normal de Lisboa, lecciona em sua casa pelo método legográfico de D. Amália Luazes163” (A Voz de Cabo Verde, n.º 221, 20 de Novembro de 1915, p. 3). O ensino particular foi, por vezes, subvencionado pelo Governo, mediante a concessão de gratificações aos professores, estabelecidas em função do número de alunos apresentados a exame: “Que por cada aluno que fôr apresentado a exame, apenas sabendo lêr, (especialmente manuscritos), escrever, e as quatro operações, sejam os seus professores gratificados com um escudo por cada aluno; e, dos que fizeram exame de 1º e 2º graus com a gratificação de 2 escudos e 50 centavos, por cada. É permitido ao professorado particular, que seja autorizado pelo inspector das escolas, e por cada aluno apresentado pelos professores particulares, sejam estes gratificados com a quantia de 5 escudos, por cada aluno que apresentem a exame no primeiro caso, acima especificado, e 8 escudos, no segundo caso.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 73, 17 de Setembro de 1914, p. 3) “A portaria provincial n.º 23, de 17 de Janeiro de 1918 – Boletim n.º 3 – mantendo a gratificação de 15$00 mensais ao professor José Lopes da Silva164, determinou que o respectivo pagamento se fizesse pela verba orçamental destinada a professores particulares, por falta de dotação especial para esse fim.” (Despacho de 28 Junho de 1921165) 163 Amália Luazes (1865-1938) fundou o Instituto do Professorado Primário Oficial Português (Lisboa, 1916). Professora primária e formadora de professores, atribuía à educação um elevado papel de regeneração social, pela dissipação das trevas da ignorância e pelo combate ao analfabetismo, que considerava a maior vergonha entre as nações cultas. Interessou-se pelos métodos de ensino da leitura e da escrita, tendo publicado Método legográfico Luazes – Guia maternal, em que expôs um método analítico-sintético, designado “legográfico”. (Felgueiras, 2003, pp. 800-804) 164 O professor José Lopes manteve, desde 1910, na ilha de Sto Antão uma escola particular do ensino das línguas francesa e inglesa e de História e Geografia (Oliveira, 1998, p. 803-804). 165 Cx.ª 665. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 121 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Na colónia de Cabo Verde, o ensino particular não se circunscreveu ao ensino doméstico e a cursos de explicações. Tivemos notícias de um colégio formalmente organizadas e legitimado. O Colégio Esperança, fundado pelo cónego capitular António Manuel da Costa Teixeira, foi criado pela Portaria n.º 402, de 14 de Dezembro 1914166, como “instituto particular português, de educação e ensino neutro, com internato” (art. 1.º). O jornal O Popular anunciava o movimento escolar do Colégio, no mês de Outubro: “Instrução Primária, 35 matriculas. Instrução Secundária, 400 matriculas, sendo: 45 em Português, Inglês e Ginástica; 30 em Francês, Física, Desenho, Matemática, História e Geografia; 35 em Escrituração Comercial, 10 em Córte e Costura, e 40 em Musica. Total dos alunos, 80; total das matriculas singulares, 435; total de professores, 12” (n.º 5, 15 de Novembro de 1914, p. 2). Colégio Esperança CURSO PRIMARIO 167 = 1ª Sèção: - Ensino Preliminar: = Ensino Escóla infantil, mista, 3 tostões, – para meninos e meninas de 4 a 7 anos, – sob a regencia de professôras – segundo o programa oficial de 23- 8-1911. Art. 2º – Escóla rudimentar, 5 tostões, preparação a exames, limitada ao estudo de – Leitura, Escrita, Desenho e Contas – Uma aula para cada sexo. = 2ª sèção: - Ensino Elementar: = Art. 3.º – Escóla de 1º e 2º grau, 1 escudo, Habilitação a exames finais (6 professôres) – segundo os programas oficiais – Uma aula para cada sexo. 3ª sèção: Ensino Especial: Art. 4º – Escóla Comercial, 1 ½ escudo. Aulas nocturnas, para o sexo masculino – 1º ano: Habilitações: - Portuguêz, Inglêz, Comércio, Expediente. Art. 5.º – Escóla Artística 1 ½ Escudo – para o sexo feminino – Música: Canto, Piano, Recitação; Desenho; Trabalho: Lavôres, Costura, Corte e Pintura; Educação: Lições práticas de Português e Francês. Art. 6.º – Ensino individual e doméstico: Português, à colónia estrangeira; e lições separadas, em casa, ou nas horas vagas, para qualquer habilitação especial…. (contrato). (...) Mindêlo, 12 de Setembro de 1914 O Secretario do Colégio, Abilio Augusto Mendes (O Popular, n.º 1, 5 de Outubro de 1914, p. 4) Pautado pelos “programas da metrópole”, o Colégio propunha adaptá-los ao contexto local, “sendo mais intensos os exercícios práticos de composição e conversão em Português, Inglês e Francês, mais vasta a Educação Física e Cívica, e mais prolongado e variado o Ensino Artístico e Profissional para ambos os 166 Boletim Oficial, n.º 52, 26 de Dezembro de 1914, pp. 474-476. Ver referências ao curso do ensino secundário, ministrado no Colégio Esperança, no subcapítulo 7.4. (pág. 228). 167 122 A construção do discurso educativo sexos”. (Boletim Oficial, nº 52, 26 de Dezembro de 1914, p. 472). Os planos pedagógicos e regulamentares observavam as condicionantes impostas pelo Estado para a legalização do ensino particular: neutralidade em matéria doutrinal e submissão às normas da administração pública. A sobrevivência financeira advinha “de subsídios, ofertas ou doações; e de quaisquer outros meios legítimos, como bazares a benefício de alunos pobres, venda de bilhetes-postais ilustrados privativos; récitas e publicações literárias, em benefício do Instituto” e da mensalidade dos alunos: “Escola mixta infantil – $30 (trinta centavos); Escola rudimentar – $50 (cinquenta centavos); Escola elementar – (1.º ou 2.º grau) – 1$ (um escudo); Comércio (nocturna); Lavores; Musica – 1$50 (um escudo e cinquenta centavos); Ensino de português a estrangeiro; ou doméstico, contracto” (idem). Sendo propriedade da “colectividade dos professores, reunidos em Conselho Escolar”, não dispunha de edifício próprio, funcionando “como simples externato escolar, leccionando-se regularmente em salões que, na cidade, se possam obter em melhores condições pedagógicas”. Dos “cooperadores iniciais” e “compartícipes dos lucros do colégio”, a maioria era constituída por professores municipais (seis) e de entre os restantes, havia dois médicos, um capitão-de-fragata e dois guarda-livros (idem, p. 475). Na observância da tradição académica, o colégio era representado por um conjunto de símbolos identitários: o emblema – “uma ancora verde, sôbre o escudo nacional inserido numa estrela de cinco raios em azul e amarelo, com fundo vermelho nas insígnias, e, branco, circular, na bandeira, que é das côres nacionais” (art. 4.º); e os uniformes, sendo para o sexo feminino “vestido branco, cinto verde no curso primário e faixa verde, a tiracólo, no curso secundário” e para o sexo masculino “vestido branco, preto, mixto e campal, com boné emblemado e com o distintivo dos cursos e dos graus conquistados” (idem, p. 476). A educação particular acentuava as diferenças sociais, pela capacidade de seleccionar os melhores meios de ensino para a obtenção de melhores resultados, numa lógica de mercado. A igualdade de oportunidades de ensino, é condicionada pela livre oferta de ensino, “em virtude [do ensino particular tender] a transformarse em fonte de desigualdades sociais, em benefícios de grupos económica e socialmente mais favorecidos” (Estêvão, 2001, p. 70). Encontrámos marcas de ensino particular operador de diferenciação social, no arquipélago (Colégio Esperança) e também, em Lisboa, numa instituição de referência, a Escola João de Deus, que recebia alunos do arquipélago. “Escola João de Deus Mais uma vez temos o agradável ensejo de nos referirmos a êste colégio, que, de ano para ano, progride extraordinariamente, acentuando cada vez mais, os sólidos créditos de que vem gozando desde a sua fundação, em 1909. (...) 123 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Tanto nos exames do 1º e 2º grau, como nos do Conservatório e do Curso dos Liceus, os alunos da Escola João de Deus, que a êles se submeteram, obtiveram na generalidade classificações elevadas, o que só póde atribuir-se à competência do seu escolhido corpo docente e da sua Directora sr.ª D. Izabel dos Santos, irmã do nosso amigo sr. Albino dos Santos, gerente da importante casa deste arquipélago, Manuel Gomes Madeira & Filha, Sucessora Luzia de Andrade. Depois do que fica exposto não temos dúvida em recomendar êste colégio aos nossos leitores, os quais, para informações, podem dirigir-se áquele nosso amigo, em S. Vicente, ou à Direcção da Escola João de Deus – rua Ferreira Borges 30, 1.º – Lisboa.” (O Futuro de Cabo Verde n.º 125, 16 de Setembro de 1915, p. 3) Figura 13. Anúncio da Escola João de Deus (A Voz de Cabo Verde, n.º 212, 20 de Setembro de 1915, p. 3) “Tivemos o prazer de vêr as fotografias de duas crianças cabo-verdeanas nele internadas desde há um ano, – uma filha e um filho do nosso amigo sr. Filipe dos Santos Silva, do Fogo, e francamente o aspecto delas é de tal modo atraente que não podemos deixar de elogiar o tratamento cuidado e higiénico que naquele colegio é dispensado aos alunos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 300, 2 de Julho de 1917, p. 3). 124 A construção do discurso educativo Completamos o roteiro pelo ensino particular com uma avaliação quantitativa, no período de 1911 a 1926. Gráfico 8 – Evolução dos alunos do ensino particular – 1911/1916 700 600 500 400 300 200 100 1915-16 1913-14 1911-12 0 Quadro 40 – Número de alunos do ensino particular, por concelhos/ilhas – 1911/1916 Concelhos/ Ilhas Masc. Praia Santa Catarina Ilha Brava Ilha de S. Vicente Ilha de S. Antão Ilha de S. Nicolau Total 45 191 64 0 170 0 470 1911-1912 Fem. Total 87 0 0 0 38 0 125 132 191 64 0 208 0 595 Masc. 55 33 34 25 0 77 224 1913-1914 Fem. Total 46 0 0 0 0 0 46 101 33 34 25 0 77 270 Masc. 23 9 14 52 0 0 98 1915-1916 Fem. Total 70 0 0 0 0 0 70 93 9 14 52 0 0 168 (“Mapas de movimento e frequência de alunos e alunas”, 12 de Outubro de 1912; 19 de Dezembro de 1914; 28 de Dezembro de 1916168) O ensino particular não acompanhou a expansão dos efectivos das escolas públicas, tendo sofrido uma redução de 595 (1911/12) a 168 alunos (1915/16), no período em análise. A discriminação das meninas, acentuada nos primeiros anos (frequência feminina, 21%), evoluiu no sentido de maior equidade (1915/16: 41,7%). O perfil da distribuição geográfica atesta a perda de importância do ensino 168 Boletim Oficial, n.º 42, 12 de Outubro de1912, p. 232; n.º 51, 19 de Dezembro de 1914, p. 467; n.º 44, 28 de Outubro de 1916, p. 363. 125 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) particular na ilha de Santo Antão (nos primeiros anos do decénio, 35% dos efectivos escolares), a evolução decrescente em Santa Catarina, na Brava e em S. Nicolau e a tendência de crescimento na cidade de Mindelo, a partir de 1913/14 (Quadro 40). No termo desta análise, sublinhamos a relevância da intervenção social na educação, que contribuiu para a liberdade de ensino, para a constituição de parcerias de entidades privadas com o aparelho estatal, com mais similitudes que diferenças, graças à sujeição do ensino particular ao papel regulador do Estado. 126 A construção do discurso educativo 127 4. Rede escolar ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Como expusemos, em capítulo anterior, o desenvolvimento educacional enfrentava dificuldades com as limitações severas, em recursos humanos e materiais, vividas na colónia. De entre os constrangimentos de ordem material, destacamos as insuficiências e assimetrias da rede escolar. A expansão do parque escolar era tema recorrente na imprensa periódica. Os jornais não só denunciavam situações de sobrelotação e degradação dos espaços, como debatiam critérios para a criação, transferência e extinção de estabelecimentos de ensino. A confiança na educação republicana augurava progressos na instrução, “dos tempos da monarquia, com 1 escola para 3:529 almas” deveria evoluir-se para o ratio de uma escola para “60 famílias” ou “300 indivíduos”169 (A Voz de Cabo Verde, n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 3): “Em 4 seculos e meio, apenas 17 escolas officiaes! Dezassete escolas para uma população de mais de 60.000 almas! (...) Dividindo o numero de almas pelo de escolas, teremos, em media, 1 escola para 3:529 almas. Bello serviço prestado pelo governo da monarchia à instrucção em S. Thiago de Cabo Verde, durante largo espaço de 451 annos! (...) Verão agora os leitores que, brevemente, o governo da republica nos dotará com as seguintes escolas, assim distribuídas: mais 4 na freguezia de Santa Catharina, que com 14 mil almas, tem apenas 3 escolas officiaes; mais 3 na freguezia de S. Miguel, que tem mais de 8 mil almas e apenas 1 escola official da 1.ª classe; mais 2 na freguezia de S. Thiago Maior, que com quasi 6:000 almas, tem somente 1 escola official.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 3) “A tal respeito, ainda no outro dia... afirmava o sr. Afro170, o seguinte, nas colunas da Voz: «Quantas escolas há na provincia? 50 oficiais, 15 municipais e 2 paroquiais (S. Nicolau). Ao todo 67 para 160 mil habitantes». (...) 169 Em inícios dos anos 30, “a proporção entre, de um lado, o número de escolas primárias, e, do outro, a população e a superfície do país, coloca Portugal no último rang dos países europeus: uma escola primária pública por 883 habitantes; uma escola primária pública por 12 km2” (Nóvoa, 1987, p. 578). 170 Pedro Cardoso utilizou, no jornalismo e na política, o pseudónimo “Afro”, que em si mesmo já é indicador de outro cavalo de batalha de Cardoso, pois ele foi um ardente defensor do continente negro e dignificação do homem africano. Levaria a sua militância ao ponto de baptizar um filho, falecido em 1927, com o nome de Afro (Oliveira, 1998, p. 712). 128 A construção do discurso educativo Mas, ainda assim, isto é, contadas todas, não poderemos deixar de reconhecer que é insuficentissimo o numero de escolas de que dispõe a nossa provincia. E, senão, vede: suponhamos que o n.º 67, depois de se lhe adicionar o numero das escolas acima apontadas, sobe a 80, aproximadamente; qual ficará sendo, neste caso, a percentagem das escolas em relação ao numero dos habitantes do arquipélago? Uma escola para dois mil habitantes! E bastaria isso? Claro que não, di-lo aquele nosso pontinho de admiração. Já o douto sr. Rincão (ao qual terei muitas vezes ocasião de me referir) na série de artigos por ele iniciada com o primeiro numero deste mesmo semanario e sobre o mesmissimo assunto de que ora me ocupo, lembrava a conveniencia de serem criadas escolas «em todos os lugares onde houvesse de 60 familias para cima». Plenamente de acordo; mas como é muito variavel o numero de pessoas de que possa constituir-se cada familia, diremos que seria conveniente criar-se uma escola em todo e qualquer ponto do arquipelago onde houvesse 300 individuos, aproximadamente, com residencia fixa e constituindo familia.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 68, 2 de Dezembro de 1912, pp. 2-3) A rede escolar caracterizava-se pela dispersão e “distancias a que ficam da sede da escola oficial os núcleos de população espalhados pelas dez ilhas do arquipélago: (...) [que] são na maioria dos casos superiores a 4 km, chegam a atingir 10, 11, 12 e 15 km” (Revista de Educação, Julho de 1913, p. 14). Os sacrifícios dos alunos, que calcorreavam caminhos distantes e íngremes, constituíram móbil para a expansão do parque escolar: “São insuficientissimas estas escolas para accudirem às necessidades dos povoados tão distanciados, como são Ribeira de Mendes Faleiro, Fontes e Ribeirão Chiqueiro, – portanto a creação de mais uma escola para sexo masculino n’esta freguezia, não seria de mais, assim como outra para sexo feminino, aliás de muita vantagem, porque sendo ellas estabelecidas em Mendes Faleiro que é de maior população, pouparia aos alumnos uma fastidiosa jornada de todos os dias de mais de 3 kilometros para a séde da freguezia, onde se acham as unicas escolas, e teriam sem duvida a concorrencia de todos, que maior parte, não as frequentam pela demorada distancia.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 12, 17 de Maio de 1911, p. 3) “Em João Gonçalves, proximidades de Mangue171 hospedei-me há dias em casa de um honrado proprietário e, em conversa com êle, soube que um filho seu frequentava a escola da Calheta, regida pelo senhor António S. Gonçalves, que fica aproximadamente a uma distancia de tantos dez quilómetros que, com outros tantos quilómetros de regresso, perfazem vinte, distancia que a pobre criança, de treze anos apenas, palmilha diariamente para poder aprender a ler.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 321, 3 de Dezembro de 1917, p. 2) 171 Concelho do Tarrafal, ilha de Santiago. 129 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Os critérios de localização das escolas, comprometidos com interesses políticos e pessoais, eram objecto de crítica social: “D’antes havia uma escola no sítio «Capela» da Ribeira do Engenho, mas essa escola, que era municipal, mudou mais tarde para a Assomada, d’onde desapareceu há... (ilegível) annos, para reaparecer agora na Ribeira da Barca com o mesmo professor, onde a frequencia de alumnos deve ser bem menor. Será a influencia politica d’algum grande proprietario do «Engenho», a quem não convenha que o povo tenha luz para conhecer os seus direitos, não encomodando os srs. Feudaes d’aquella região, quando despoticamente fazem suas gentilezas, atropelando a lei e o direito da liberdade de acção?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 22, 15 de Janeiro de 1912, p. 3) “Quer sim, quer não, cumprimos o nosso dever de jornalistas chamando a atenção para os defeitos, lacunas e êrros que viviam os serviços públicos. Exemplificando: quanto à instrução, é preciso que na distribuição das escolas rurais não se atenda exclusivamente às conveniências do professor e aos interêsses do senhorio; é preciso aliviar os alunos dos anti-higiénicos passeios forçados, de léguas em cada dia...” (O Manduco, n.º 3, 30 de Setembro de 1923, p. 1) Escolas de primeira e de segunda João Barroso traça a evolução etimológica da palavra escola, que “considera elucidativa das várias representações que foi tendo a relação educativa: «scholê», em grego, começou por significar o descanso, a terminação das fadigas físicas e, por extensão, o momento propício para a actividade do espírito, para a leitura e o estudo; depois com a palavra latina “schola”, significa já o local destinado ao estudo, aos exercícios intelectuais” (1995, p. 124). A terminologia oficial distingue escola e posto de ensino. A diferenciação não é meramente semântica, mas patenteia clivagens na qualidade da “casa da escola”172. “Art. 4º O ensino primário elementar será ministrado em postos de ensino e em escolas de ensino primário elementar. Art. 5° O ensino primário complementar será ministrado, somente em escolas de ensino primário complementar. Art. 6° O ensino primário superior será ministrado em escolas de ensino primário superior.” (Plano Orgânico da Instrução Pública, tít. II, cap. 1173) 172 No século XIX, o edifício onde funciona a escola era designado “casa da escola” (Barroso, 1995, p. 124). Decreto n.º 3.435, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 ao Boletim Oficial, nº 43, 30 de Outubro de 1917, p. 1 (apêndice D). 173 130 A construção do discurso educativo Estas disposições mantidas no Plano Orgânico da Instrução Pública, de 1918174, introduziram a classificação de espaços escolares baseada em níveis de escolarização e na implantação geográfica. Na metrópole, os postos de ensino (denominados, mais tarde, postos escolares), foram criados em Novembro de 1931 e constituíram o regresso «a um passado deploravelmente triste» (Nóvoa, 1987, p. 559). Na colónia, a criação precoce dos postos de ensino (14 anos antes) inscreveu-se na estratégia expansionista da rede escolar, com recursos humanos e materiais de reduzido valor. Os professores auferiam metade do vencimento de um “professor primário em exercício de 1ª classe”, 60% do valor do salário de um “professor de 2ª classe” e 75% do salário de um “professor de 3.ª classe” (Plano Orgânico da Instrução Pública, tabela A175). Conforme o “Mapa demonstrativo do número de escolas que existiam pela antiga lei e passam a existir nos termos do decreto n.º 3:345, 8 de Outubro de 1917”, funcionaram postos escolares, por iniciativa municipal ou oficial, antes do seu enquadramento no Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde. Figura 14. Postos de ensino e escolas primárias (Supl. nº 21 ao Boletim Oficial n.º 45 de 1917, p. 5) 174 Art. 4º, Portaria nº 474, 27 de Dezembro de 1918. Supl. nº 14 ao Boletim Oficial, nº 52, 31 de Dezembro de 1918, p. 1 (apêndice D). 175 Decreto nº 3.485, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 ao Boletim Oficial, nº 43, 30 de Outubro de 1917, p. 4 (apêndice D). 131 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A rede física escolar alargou-se graças à multiplicação de postos de ensino (taxa de crescimento, 64,5%) e ao incremento mitigado das escolas (taxa de crescimento, 8,3%). A criação de escolas de segunda, nas povoações rurais, não foi consensual, conforme o debate no Conselho de Instrução Pública, em 3 de Julho de 1918, a propósito da revisão do Regulamento Provisório da Instrução Primária: “Os postos de ensino serão estabelecidos nas povoações rurais devendo tornar-se mistos os menos frequentados. (...) O Inspector de Barlavento troca impressões com o seu colega acêrca da nova redacção dada ao artigo 15º, discordando com a designação de postos de ensino estabelecidos nas povoações rurais de 3ª classe, pois é sua opinião que tais postos não devem existir, mas sim só escolas. Os vogais Snrs. Barjona de Freitas e José Costa concordaram em absoluto com a nova redacção dada ao artigo 15º pelo Inspector de Sotavento. O Snr. Secretário Geral, presidindo, disse que tambêm concordava com a alteração apontada, mas isso, a seu vêr, trazia como consequência não encontrarem as crianças onde aprender as primeiras letras. Entendia que o que se deveria procurar fazer era melhorar os postos de ensino. O vogal General Medina disse que tambêm não concordava com a designação de postos de ensino e menos ainda com a remuneração dos professores destas escolas. Entendia que todos os professores devem ter as mesmas garantias sejam elas destinadas ao ensino das primeiras letras seja ao 1º e 2º grau. O snr. Inspector de Sotavento (...) propusera a sua transformação em escolas móveis176. O Snr. Inspector de Barlavento disse que a transformação dos postos de ensino em escolas móveis traria aumento de despesa, visto que os professores destas escolas devem ser melhor remunerados tal qualmente como se procede na Metrópole. Disse mais que tais escolas não têm dado os resultados que se tinha em mira quando foram criadas, pêlo Ministro da Instrução”. (Acta da sessão, 3 de Julho de 1918, pp. 4-5177) A burocratização do sistema escolar é visível nas “Instruções para a criação, conversão, transferência ou supressão de escolas e postos de ensino” (1918), determinadas pelo Governador, com o parecer do Conselho de Instrução Pública: “1. Quando se tratar da criação, conversão, supressão ou transferência de escolas de instrução primária e postos de ensino, as Juntas Locais de Instrução Pública organizarão um processo instruído com os seguintes documentos: a) Para a criação de escolas: Cópia do recenseamento escolar respectivo; Indicação da casa onde se projecta instalar a escola; Relação do mobiliário escolar e fórma de o adquirir o mais economicamente possível; 176 O último ponto tratado na acta “preconiza a conveniência da vinda a esta Província de duas missões das Escolas Móveis João de Deus, que na Metrópole tem percorrido Portugal – continental e insular, colhendo sempre os melhores resultados” (Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, Praia, 3 de Julho de 1918, p. 10). 177 Cx.ª 668. Fundo da Secretaria Geral do Governo, 3 Julho 1918, IAHN. 132 A construção do discurso educativo b) Para a conversão ou supressão de escolas: Cópia do recenseamento escolar respectivo; Mapas estatísticos do ano lectivo anterior, e de frequência e aproveitamento dos meses do ano lectivo corrente; Indicação da casa e do local para onde deve ser transferida a escola. (...) Concluída a organização do processo, pela Junta Local de Instrução, deverá ser êste enviado ao inspector do respectivo círculo escolar, que, depois de o ter completado com as instruções que constam do número anterior, o submeterá à apreciação do Conselho de Instrução Pública.” (Boletim Oficial, n.º 48, 30 de Novembro de 1918, p. 402) A pavorosa fome que assolou o arquipélago, no dealbar dos anos vinte, reflectiuse no abandono escolar e justificou a extinção de postos de ensino: “Atendendo à diminuta frequência escolar, em quási todos os postos de ensino da província, devido à grave crise que êste arquipélago atravessa; Atendendo a que a maior parte dos postos, principalmente os da ilha de Santiago estiveram encerrados, por falta de frequência, durante o ano lectivo findo; Atendendo ao actual estado financeiro da província e ao pouco aproveitamento dos alunos que frequentam êsses postos de ensino; Atendendo a que os professores das escolas actualmente existentes em toda a província, são suficientes para administrar o ensino aos alunos que há: Hei por conveniente, em vista da proposta do Conselho de Instrução Pública, baseado na proposta da Inspecção Escolar, determinar que sejam encerrados todos os postos de ensino da Província de Cabo Verde, com excepção dos seguintes: n.º 10, da Cidade Velha; n.º 23, de Pedra Badejo; n.º 29, de Jalalo Ramos no concelho da Praia; n.º 6, do concelho de S. Nicolau; n.º 12, do concelho do Paul; e n.º 13 do concelho da Ribeira Grande.” (Portaria n.º 257. Boletim Oficial, n.º 41, 8 de Outubro de 1921, p. 371) Foram reabertos alguns postos escolares, atendendo a reclamações da população, dado que “o estado financeiro da província não permite, por ora, a criação de mais escolas” (Portaria n.º 85. Boletim Oficial n.º 19, 13 de Maio de 1922, p. 143). “Tendo a Comissão Municipal do Concelho da ilha de S. Vicente, solicitado a criação de um posto de ensino mixto na aldeia de Ribeira Bota, em vista das instantes reclamações dos moradores daquela localidade, alegando que as escolas existentes não comportam os alunos que as frequentam, sem grave prejuízo da higiene, tendo ainda em vista a necessidade de derramar a instrução na população infantil, em idade escolar, naquela aldeia, que, pela distância a que se encontra, não pode frequentar as escolas primárias da cidade; Considerando que na tabela orçamental em vigor, foram consignados mais cinco postos de ensino, alêm dos que já existiam, com o fim de se atender pedidos desta natureza: Hei por conveniente, (...) a criação de um posto de ensino mixto, na aldeia de Ribeira Bota, da freguesia de Nossa Senhora da Luz do concelho da ilha de São Vicente, o qual fica na respectiva lista com o n.º 16.” (Portaria n.º 105. Boletim Oficial, n.º 39, 29 de Setembro de 1923, p. 324). 133 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Quadro 41 – Relação de postos de ensino – 1921/1922 N.º Localidade Fundamentação da criação Portaria Boletim Oficial 6 7 11 Furna Monte Clara Gonçalves (ilha Brava) Nª Sª da Conceição (ilha do Fogo) Figueira da Horta (ilha do Maio) Trindade, Praia (ilha de Santiago) “Densidade populacional do concelho da Brava”; “encerramento da escola particular da Congregação Pentecostal, ficando sem matrícula cerca de 120 crianças”. N.º 127 16/12/21 N.º 47 19/11/21 Existir “apenas uma escola do sexo feminino”, na ilha do Fogo, na vila de São Filipe. “Uma frequência média de 13 alunos e, que portanto se acha justo que o mesmo pôsto comece a funcionar”. “Uma frequência média de 20 alunos e com um professor remunerado pelo Director do Pôsto Zootécnico”. “[Concelho] mais povoado do arquipélago, que a sua população, antes da crise que está flagelando a província, era superior a 15:000 almas, e que, apesar de ter decrescido essa população há ainda um núcleo de crianças para frequentar regularmente mais de duas escolas para o sexo feminino, que são as únicas existentes no referido concelho”. N.º 290 05/12/21 N.º 23 02/02/22 N.º 24 02/02/22 N.º 50 10/12/21 N.º 6 11/02/22 N.º 6 11/02/22 N.º 71 24/04/22 N.º 17 29/02/22 “Foram encerrados postos de ensino em locais cuja população escolar, querendo receber as luzes benéficas da instrução, terá de percorrer quilómetros e quilómetros para frequentar a escola mais próxima”. N.º 85 11/05/22 N.º 19 13/05/22 5 4 8 7 Achada Lém, Santa Catarina (ilha de Santiago) 9 11 Praia Branca Queimadas (ilha de S. Nicolau) Ponta do Sol Carvoeiros, Paul (ilha de Santo Antão) Fontes S. Domingos Rui Vaz (ilha de Santiago) 3 13 16 17 22 A casa da escola A cultura escolar transparece na casa da escola. As pedras e edificios escolares falam; também os pátios e os lugares de encontro da ambiência escolar nos querem dizer algo, (...) são elementos de intermediação social e cultural (Benito & Diaz, 2002, p. 225). Segundo Justino de Magalhães, uma das características da escola moderna é a “criação de espaços fechados para a educação” e “a arquitectura escolar, quando existente, torna-se inteiramente cativa de dois factores ordem/disciplina e da comunicação vertical entre os seus membros” (1996, p. 22). Os edifícios projectados para o ensino reflectiam o universo de protecção e de recolhimento dos alunos. 134 A construção do discurso educativo Figura 15. Escola de S. Thiago – Cabo Verde, situada no largo do Guedes, Praia (Oliveira, 1998, p. 71) O espaço arquitectónico – salas rectangulares, corredores rectilíneos, janelas altas, pátio interior – favoreciam a vigilância e a disciplina. Na expressão de Carlos Manique Silva, as normas reguladoras dos espaços escolares “incidirão de modo muito particular a sua atenção sobre a sala de «classe» no capítulo das obrigações higienistas (ventilação, iluminação, cubagem...), não influindo notoriamente no tipo de edifício” (2000, p. 16). “É de toda a conveniência que, tanto as escolas como os postos de ensino, sejam instalados, em casas próprias; que assegurem a permanência do seu funcionamento em condições proveitosas; e quando, porém, não se poder adquirir, construir ou apropriar outra, arrendar-se há provisoriamente uma que satisfaça, tanto quanto possível, as condições higiénicas e pedagógicas que a lei exige.” (Boletim Oficial nº 48, 30 de Novembro de 1918, p. 402) Não obstante a institucionalização de projectos arquitectónicos específicos, a matriz predominante da escola colonial cabo-verdiana era a escola pardieiro. O edifício escolar, onde ocorrem os rituais de passagem da criança a aluno, é um objecto histórico, carregado de memórias. Agustín Escolano Benito, em conferência na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (6 de Maio de 2004), afirmou “ não sendo possível espreitar a escola do passado pelo buraco da fechadura”, podemos “vê-la” através das fontes etnohistóricas. 135 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Perscrutámos as memórias da escola pardieiro nas fontes documentais e iconográficas. Entrevimos: Casas acanhadas, sem recreio e higiene “Lecciona-se em casas acanhadas, não há recreio, não há hygiene. Por isso os filhos sahem da escola sem desenvolvimento physico nem moral, e de memoria cançada por decorarem um punhado de palavras, cujo significado ignoram.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 2) Cobertas de colmo “O estado da casa onde funcciona a escola é pessimo. A casa é arrendada, coberta de côlmo e não tem cubbagem sufficiente para o numero de alumnos que a frequentam. (...) A mobilia não é sufficiente e está em mau estado. Aqui não há casa em condição para a escola.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 9, 26 de Abril de 1911, p. 3) Com o aspecto singular de latas de sardinha “Em caso nenhum a superfície interna de uma aula pode ter menos de 50 metros quadrados, devendo regular-se um metro quadrado por cada aluno. Trata-se aqui apenas do número mínimo de metros quadrados que deve ter uma aula, apezar de quasi todas as escolas desta ilha matricularem, anualmente, mais de cem alunos. Ora, a aula oficial da Cidade Velha tem só 12 metros quadrados de superfície interna, não obstante ter uma frequência de 35 alunos, cabendo portanto a cada um o acanhadíssimo espaço de 0,33m2 – o que dá ao recinto escolar o aspecto singular de latas de sardinhas.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 41, 5 de Fevereiro de 1914, p.3) Paredes meias com cavalos e burros “Os edifícios onde funcionam as escólas desta ilha – vergonha é dizê-lo – na sua grande maioria, são pouco melhores que cavalariças, vivendo nalguns, alunos e professôres, paredes meias com cavalos e burros (...). Outros, pequenos, cobertos de colmo, térreos, paredes negras, não teem a suficiente capacidade para conter o elevado número de alunos que frequentam as escolas neles instaladas.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 257, 21 de Agosto de 1916, p. 2) Salas alugadas, contíguas ao quarto “Durante as horas em que devem funcionar as escolas, obriga-se o arrendatário a manter boa ordem no quarto contíguo a essa sala, ocupado por sua família, não 136 A construção do discurso educativo podendo arrendar a extranho esse quarto ou dar-lhe destino diferente.” (Contrato provisório de arrendamento, cláusula 4ª, Ribeira Grande, 11 de Dezembro de 1918178) Pedagogia e higiene A sociedade cabo-verdiana, pela voz da imprensa, defendia o princípio “que para se estabelecer uma escola é indispensável que o edifício seja deveras apropriado em dimensões, luz, ar e localidade (...) com toda a mobília escolar, adaptada, conforme ordena a moderna pedagogia, aos progresso do ensino” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 118, 29 de Julho de 1915, p. 2). Num discurso frontal imputava a responsabilidade do “deplorável” estado dos edifícios escolares à administração colonial e invocava “os inalienáveis direitos do povo” para reclamar “edifícios que sob todos os pontos de vista se encontrem em condições de cabalmente preencherem o importantíssimo fim a que são destinados”: “Vá entretanto, de passagem, uma observação: em vista do exposto parecerá natural e provavel a muita gente, que nós, os caboverdeanos, nos dariamos por satisfeitos com a melhoria das condições das palhoças, visto que já seria muito o mandar assoalhá-las, trastejá-las e substituir-lhe a cobertura de colmo pela de telha; mas... tenham paciencia, meus senhores: se na provincia nos faltam bons edificios escolares, a culpa não é nossa, e sim daqueles que nos governam ou governaram; e se é ainda deploravel o estado em que se encontra a instrução nesta malfadada provincia de Cabo Verde, não se diga que por aí se possa ou deva aquilatar o grau de civilisação do bom povo caboverdeano; tal afirmativa não poderemos deixar de reputá-la injusta, a todos os respeitos, se bem atentarmos no estado relativamente adiantado de civilisação e progresso a que o nosso povo já conseguiu chegar, póde-se dizer que à custa do seu proprio esforço e por expontanea vontade sempre animada de nobres aspirações. Mas por isso mesmo, por ser dotado de tendencias progressivas e faculdades capazes de assimilar os resultados sociais de todos os modernos progressos, é que o povo caboverdeano não se limita a pedir, como pede uma esmola ou solicita um favor, que lhe mandem concertar e trastejar as palhoças destinadas à instalação das escolas primarias; não; - o povo quer, pede e reclama, dentro da esfera dos seus inalienaveis direitos, que lhe deem para as suas modestas escolas, edificios que sob todos os pontos de vista se encontrem em condições de cabalmente prencherem o importantíssimo fim a que são destinados.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 74, 13 de Janeiro de 1913, pp. 3-4) 178 Cx.ª 668, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 137 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A administração procurou corresponder ao apelo da sociedade com a construção de edifícios escolares179 e o recurso, menos oneroso, de aluguer de casas de habitação. Para o efeito, o inspector deveria “indicar os trabalhos de apropriação que julgar necessários para a adaptação conveniente do edifício aos fins a que se destina” e tratando-se “de casas cedidas por particulares, dar o seu parecer sôbre as garantias de duração que pode oferecer essa cedência, juntando uma descrição circunstanciada, das suas condições higiénicas e pedagógicas” (Boletim Oficial n.º 48, 30 de Novembro de 1918, p. 402). De acordo com os princípios pedagógicos e higienistas da época, surgem novas concepções do ambiente escolar: “Nota n.º 185 de 26 de Setembro ultimo acompanhada do resumo das deliberações tomadas pela Junta Local de Instrução da Ilha Brava, em sua sessão de 18 do mesmo mês, tratando do arrendamento de 272 metros quadrados de terreno anexo à Escola Central daquéla ilha para jardim da mesma escola. O Conselho foi de opinião que naquêla ilha – cujas povoações são geralmente ajardinadas – era dispensável o jardim privativo da Escola em projecto.” (Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 8 de Novembro de 1918, p. 7180) “O vogal, sr. dr. Barbosa [coronel médico, Júlio Barbosa Nunes Pereira] aponta a conveniência de se aplicarem “chuveiros” nas dependencias da escola [Escola Central, do sexo feminino, a ser instalada na sala onde funciona a Biblioteca Pública], para as crianças que necessitam de banhos de limpesa, medida esta que reputa muito higiénica e bastante benéfica. Aprovado.” (Acta da sessão do Conselho de Instrução Pública, 21 de Outubro de 1918, p. 3181) Representações iconográficas A relação aluno/professor foi determinante na organização espacial da classe e na tipologia e ordenação do mobiliário escolar. O interior da sala de aula tinha a racionalidade própria dos espaços concentracionários, com a mesa do professor 179 Em 1920, o orçamento para a educação contemplava a verba de 13.021$61 para construções escolares, o que equivalia a 12,9% do total. 180 Cx.ª 668, 8 de Novembro de 1918. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 181 Cx.ª 668, 8 de Novembro de 1918. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 138 A construção do discurso educativo assente num estrado elevado, que permitia a vigilância total e as carteiras dos alunos dispostas em filas, em plano inferior. De acordo com os testemunhos documentais coevos: Ver o interior de uma escola causa comoção “É uma lástima: bancos velhíssimos flanqueados por uma esburacada carteira que, pela sua feição antidiluviana e descomunal mais parece um grande esquife de que um móvel escolar, onde as crianças são obrigadas a escrever de pé, por ser relativamente alta, e os bancos demaziadamente baixos para os conter assentadas. A secretária do professor é uma obra que se fôsse mandada para alguma exposição de curiosidades coloniais estamos certo que obteria o primeiro prémio, em atenção ao seu estado de decrepitude e mais particularidades assombrosas que a caracterizam. Não se póde fazer um retrato ao vivo do que ela seja, – Só vendo-a; e vê-la causa comoção. As escolas mais rudimentares e medianas da Guiné Portuguesa são mais bem servidas em objectos de mobília, do que esta. Todos os artigos do mobiliário existentes carecem de pintura, mas as requisições do professor infelizmente nunca são atendidas na íntegra, sucedendo-se isso mesmo com aquelas que pertencem ao expediente e serviço ordinário da escola.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 163, 11 de Junho de 1916, p.3) Como carteira uma tábua e quatro bancos “Ex.mo Sr. – A casa escolar d’esta freguezia é muito pequena e coberta de palha. Tem como carteira uma taboa, sobre que os meninos escrevem, e quatro bancos de regular comprimento e muito estreitos. – (assinado) Pedro Rodrigues Tavares.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 232, 1 de Março de 1916, p. 3) Não se podem chamar sequer escolas “Com certeza 2/3 das escólas existentes na Província não medem mais do que 5 m de comprido por 4 de largo, não são soalhadas e não teem mobiliário, apezar de deverem ser freqùentadas por mais de 50 alunos; portanto não se pódem chamar sequer escolas.” (O Caboverdeano, n.º 7, 18 de Maio de 1918, p. 2) Esta a situação degradante do mobiliário escolar. 139 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) No espólio documental da Secretaria Geral do Governo encontrámos vestígios de equipamento escolar convencional, segundo o padrão de “escola bem organizada”, gizado por Mariano Ghira, no século XIX (citado em Silva, 2002, p. 51). Quadro 42 – O mobiliário escolar de uma “escola bem organizada” e da escola cabo-verdiana Mobiliário escolar (Cabo Verde) Mobiliário “Escola bem organizada” (Ghira) Estrado e mesa do professor Quadro preto Bancadas para os alunos (carteiras e bancos ligados) Peças Estrado (comp. 1,50 m; larg. 1,50; alt. 0,25 m.) e mesa do professor (comp. 1,20 m; larg. 0,70; alt. 0,85 m.) Quadro preto e respectivo estrado (comp. 1,20 m; larg. 0,80m.) Carteiras para os alunos. Bancos (comp. 2,80 m; larg. 0,40; alt. 0, 50 m.) Mesa grande (chata) para o exercício da escrita (comp. 3,50 m.; larg. 1,10; alt. 0,85) Crucifixo Busto ou retrato do rei Contador mecânico com 100 esferas Contador mecânico Fontes 182 Relação de objectos, Rabil, 16/09/1918 Documentação vária (imprensa). Relação de objectos, Rabil, 16/09/1918 VCV, n.º 128, 08/12/1915, p. 3; Relatório de 01/09/1916 Requisição, Sal-Rei, 06/12/1918. Relógio Relógio Mapa de Portugal Quadro do novo sistema legal de pesos e medidas e correspondentes modelos representativos Pote com torneira para água, copo ou púcaro de metal Mapas de Portugal e das Colónias Relatório 01/09/1916.Idem. Mapas de pesos e medidas VCV, n.º 128, 08/12/1915, p. 3; Requisição 06-12-1918 Pote de barro e alguidar para o pote Púcaro de ferro esmaltado Máquina «Singer» para lições de costura Lavatório Cabides numerados para bonés, capas... Livros para empréstimos aos alunos mais pobres Exemplares para escrita e cadernos para escrita e contas 182 Cabides Escarradores Nota dos artigos fornecidos, Ponta do Sol, 21/02/1919 Lista de material escolar da Irmandade, 03/01/1919 Requisição, Sal-Rei, 06/12/1918 Requisição da Escola Primária Superior da Praia 22/11/1917 Requisição da Escola Primária Superior da Praia 22/11/1917 As fontes não referidas, na tabela, foram consultadas no IAHN (Cx.ª 666, Fundo da Secretaria Geral do Governo). 140 A construção do discurso educativo Carta escolar No ano de 1910-1911, a rede escolar primária era constituída por 51 escolas oficiais (64,6%), 17 municipais (21,5%) e 11 particulares (13,9%). A maioria das escolas comportava grupos com mais de 40 alunos: cerca de 26,6% dos estabelecimentos de ensino congregava grupos de dimensão média (41 a 60 alunos) e 20,3% das escolas, grupos numerosos (superiores a 100 alunos). O número de estabelecimentos de ensino, com uma população escolar reduzida, era diminuto (11,4%: menos de 21 alunos e 15,2%, menos de 41 alunos)183. Gráfico 9 – Distribuição das escolas primárias segundo o número de alunos – 1910/1911184 26,60% 16,50% 15,20% 11,40% 10,10% 11,40% 3,80% < 21 alunos 21 - 40 alunos 41 - 60 alunos 61 - 80 alunos 81 - 100 alunos 101 - 120 alunos 121 - 140 alunos 5,10% > 140 alunos A rede escolar sofreu um aumento exponencial entre 1911 (79 escolas) e 1920 (160 escolas), decrescendo de 1921 a 1926185, num contexto de crise social, provocado por secas prolongadas (Gráfico 10). 183 Escolas com menos de 21 alunos: 9 (11,4%); 21-40 alunos: 12 (15,2%); 41-60 alunos: 21 (26,6%); 61-80 alunos: 13 (16,5%); 81-100 alunos: 8 (10,1%); 101-121 alunos: 9 (11,4%); 121-140 alunos: 3 (3,8%) e mais de 140 alunos: 4 (5,1%). 184 Fonte: “Mapas de frequência de alumos e alumnas”, 1910-11. Apenso n.º 8 aos Boletins Oficiais de 1911, pp. 2-4. 185 Número de estabelecimentos de ensino primário: 1911 – 79; 1917 – 158; 1921 – 160; 1926 – 150. 141 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Gráfico 10 – Evolução do número de escolas de instrução primária – 1911/ 1926 170 160 150 140 130 120 110 100 90 80 70 1911 1917 1921 1926 Em 1911, a maioria das escolas concentrava-se na região de Barlavento (com um peso de 57%), tendência que se alterou a partir de 1917, com uma maior concentração de escolas em Sotavento (1917: 56,6%; 1921: 56,3%; 1926: 51,7%)186. Gráfico 11 – Evolução das escolas primárias, nas regiões de Sotavento e Barlavento – 1911/1926 Sotavento 100 Barlavento 90 90 90 77 80 70 69 70 1917 1921 73 60 50 40 45 34 30 20 1911 186 1926 A supremacia da região de Sotavento, quanto ao número de escolas, era relativa, considerando-se o peso demográfico das ilhas do sul. População do arquipélago de Cabo Verde, por regiões: 1910: Sotavento: 84.835 habitantes; Barlavento: 57.717 habitantes; 1920: Sotavento: 101.390 habitantes; Barlavento: 57.493 habitantes. (Estatística da Província de Cabo Verde, 1915 e 1923). 142 A construção do discurso educativo Tomando como referência o ano de 1915, apresentamos a cartografia escolar de Cabo Verde187, com a localização dos postos de ensino e das escolas primárias com frequência feminina, masculina e mista188. Figura 16. Carta escolar das ilhas Brava, São Vicente, Sal e Maio Escala 1: 250 000 E♂ = Escola masculina P♂ = Posto de ensino masculino E♀ = Escola feminina P♀ = Posto de ensino feminino E♂♀ = Escola mista P♂♀ = Posto de ensino misto 187 Fonte: “Mappas de frequência de alumnos e alumnas”, 1915 e Estatísticas da Província de Cabo Verde, 1915. 143 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Figura 17. Carta escolar das ilhas Boavista e Fogo Escala 1: 250 000 144 A construção do discurso educativo Figura 18. Carta escolar das ilhas Santo Antão e São Nicolau Escala 1: 250 000 145 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Figura 19. Carta escolar da ilha de Santiago Escala 1: 250 000 146 A construção do discurso educativo 147 5. Manifestações internas da cultura escolar ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ A cultura escolar manifesta-se por “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (Julia, 1995, p. 356). A heurística ajudou-nos a recuperar as manifestações internas da cultura escolar cabo-verdiana: rotinas e inovações, cerimónias e rituais (exames), protagonizadas por actores educativos, reguladas pelo poder e reelaboradas pela sociedade, num contexto de subjugação. Figura 20. Página da Cartilha Maternal (Deus, 1995, p. 6) 148 A construção do discurso educativo 5.1. (In) disciplina A administração escolar estabeleceu estratégias e tácticas, cujas matrizes básicas foram “o horário, o exercício, o dever e o respeito” (Magalhães, 1996, p. 19). A obediência, a submissão e a disciplina eram condutas a inculcar. “A escola deve ser a fábrica de cidadãos: ¿que cidadãos, ou antes que espécie de cidadão poderá vir a ser um aluno que hoje responde torto ao professor, que o não respeita, que não é aplicado? ¿E, no inverso, por que ruas do desprestígio não andará um professor que desobedecido expulsou um aluno ao receber ordem para de novo receber êsse aluno? É de todo o ponto conveniente e nisso insistimos, que seja modernisado o regulamento escolar de 1875, de forma que fique efectivamente proibido ao professorado aplicar castigos corporais nos alunos, desde que para isso não sejam devidamente autorisados pelos pais ou tutores, mas, onde, se estabeleça, que por motivos de desobediência, faltas de educação, poderão os professores aplicar períodos de 3, 10, 15, 20 e 30 dias de expulsão aos alunos, e correspondentemente que essas faltas corresponderão à multa diária de $20, que os pais, tutores ou curadores dos alunos terão de pagar, ou em trabalho, ou em dinheiro que reverterá para um fundo especial de assistência escolar. Isto impõe-se em absoluto. O regulamento escolar existente é deficientíssimo e antiquado.“ (O Futuro de Cabo Verde, n.º 63, 9 de Junho de 1914, p. 2) A transformação das crianças em escolares passava pela vigilância e acção disciplinar, confiadas pelas famílias aos professores. “Escrevem-nos do Fogo dizendo que o professor municipal José Gomes Barbosa foi processado por ter castigado paternalmente um alumno seu. Ignoramos como os factos se passaram, mas ainda assim não deixaremos de pedir, a quem competir, um lance d’olhos para esta questão – a abolição dos castigos corporais nas escolas primarias – que trouxe como consequencia a transformação do discipulo n’uma sensitiva, em que não se pode tocar, sob pena de processo. Os castigos corporaes, sempre paternaes, deverão ser de novo inscriptos na legislação escolar caboverdeana, se é que se pretende prestigiar o professor, que, com expulsões não consegue manter os alumnos no espirito do respeito e da disciplina, que em casa não recebem e na escola não querem seguir, por lhes ser mais commodo e facil saltar, brincar e depois recorrer aos tribunaes para castigar o professor que se lembrou que as orelhas serviam para mais alguma coisa do que para ouvir.” (O Independente, n.º 4, 20 de Fevereiro de 1912, p. 3) A reflexão sobre a disciplina remete-nos ao pensamento de Foucault: “Na oficina, na escola, no exército é exercida uma micropenalização do tempo (atrasos, faltas, interrupção de tarefas), da actividade (desatenção, negligência, falta de zelo), 149 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) da maneira de estar (indelicadeza, desobediência), do discurso (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes «incorrectas», gestos não conformes, falta de asseio), da sexualidade (imodéstia, indecência)“ (1975, pp. 209-210). A punição torna-se elemento de um “sistema duplo: gratificação-sanção“ (idem, p. 212). “Um regulamento especial de instrucção publica devia regular as horas de ensino e prescrever quaes os dias uteis e os feriados. O ensino às creanças deve ser ministrado com intermittencias: cada hora de estudo seguida de quinze minutos de recreio, sob as vistas do professor. Uma tal distribuição de tempo, a creação de premios e outros estimulos, só podem efficazmente supprimir o uso e abuso da palmatoria, das orelhas de burro e de outros castigos antiquados que moem os orgãos das creanças e lhe obcecam o espirito, dando-lhe o habito da humildade requintada até ao abjecto, e ensinando-lhe a obediência desarrazoada e servil”. (A Voz de Cabo Verde, n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 2) “É quanto a nós, absolutamente necessário tambêm, recomendar ao professorado, que lhe é absolutamente vedado aplicar castigos corporais aos alunos, por falta de dedicação ao estudo, falta à escola, desobediência ou mau comportamento, ainda que com o consentimento dos pais, mas legisle-se de forma que, os pais, tutores e curadores, sejam responsáveis pelas faltas à escola, falta de dedicação, desobediência e mau comportamento, dos seus filhos, tutorados ou curados, com multa efectiva de 20 centavos por cada falta, paga em dinheiro ou em trabalho. (…) A educação recebe-se em casa e a instrução na escola, e poupava-se ao público consciente o espectáculo indecoroso que se observa em muitas escolas, da província, em que os alunos, como se num curral estivessem, perturbem a ordem, cuspam nas paredes, risquem paredes e carteiras, sendo os professores impotentes para domarem uma orda miuda de malcriados, a quem os pais nada dizem, e os professores nada podem fazer. Regulado êste assunto de capital importância, conseguia-se o que é mister, haver disciplina.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 63, 9 de Junho de 1914, p.2) O campo semântico da expressão disciplina é vasto. O discurso educativo é pautado por conceitos-chave: autoridade, obediência, vergonha e submissão. “A educação da voz é uma tarefa árdua que tem o professor, principalmente rural: sabe-se que os meninos do campo, acostumados a ouvir uma linguagem brusca e muitas vezes brutal, adquirem uma voz rouquenha e fastidiosa que necessariamente deve ser corrigida. Trazê-la a uma tonalidade pura é empresa dificílima. Nunca estão de pé sem se encostar a uma parede ou a uma porta, ou a uma mesa, etc. perguntando-lhe qualquer cousa levam logo a mão à cabeça ou põem-se sôbre um pé coçando qualquer parte do corpo. São defeitos que o professôr deve sufocar impreterivelmente.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 248, 19 de Junho de 1916, p. 3) Assistimos a uma cena de controlo disciplinar que “não consiste simplesmente em ensinar ou em impôr uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação 150 A construção do discurso educativo entre um gesto e a atitude global do corpo, condição de eficácia e de rapidez” (Foucault, 1975, p. 178). Luís Romano, em Cabo Verde: Renascença de uma Civilização no Atlântico Médio descreve os instrumentos de castigo mais usados no controlo disciplinar: “Palmatória: o pesadelo dos meninos-de-escola! Instrumento de madeira dura, com um furo no centro para doer mais e «cantar». A palmatória ou «palmate» também é cortada na pele do tubarão. Foi ela que endireitou muito menino «andejo», abriu a memória às cabeças-duras na cartilha e constribuíu bastante para que, amedrontados aprendêssemos depressa as quatro operações, os ditados, e soubéssemos cuidar dos nossos «bibes», cadernos e livros. Os companheiros, moradores nos regadios, conheciam um insecto chamado «nagóia» que moído e esfregado nas mãos, tinha o poder de quebrar a «diaba» em duas partes, ante o pasmo dos professores! Vara-de-marmelo: É o remédio infalível para acabar com as «terribezas» ou terribilidades da criançada mais travessa. Companheira da palmatória, nas escolas e mesmo nas casas de «gente branco», menino que tivesse «seita» ou teimosia mudava de opinião quando a vara de marmeleiro era empregada, principalmente na barriga das pernas ou na alma das costas. O certo é que todos fomos criados no respeito, sem os complexos e as taras que a moderna pedagogia procura resolver com meios mais suaves e civilizados, geralmente pouco eficientes, ante o descalabro da moderna geração.” (1970, p. 83) A escrita sobre a disciplina está matizada de representações ambíguas. O senso comum, ao mesmo tempo que recriminava os castigos escolares, legitimava-os como métodos de persuasão nas dualidades punição-eficácia e pedagogiaineficácia. “Ante os discipulos, não se vinca a fronte, por maior que seja a sua contrariedade, por mais funda que seja a mágua que na alma sente; porque sabe que as crianças são impressionáveis e que, em torno delas, só deve reinar alegria. Instrui e educa, não pelo temor, mas pelo amôr. Não quer isto dizer que não castiga ou que não deva castigar. ¿Qual é o pai (o verdadeiro professôr é bem um segundo pai) que, por maior amôr que aos filhos consagre, não os castiga, que moral, quer fisicamente, quantos castigos merecem? O bom professôr castiga, sim, e até fisicamente. Quando insuficientes todos os castigos morais, recorre, moderadamente é claro aos chamados «castigos corporais», porque «há seres de uma atenção tam movel, que só ao castigo físico são capazes de obedecer.» Um ilustre pedagogista, referindo-se, num Tratado de Pedagogia, aos castigos físicos, disse que o «erro não está em usa-los; está em abusar deles e em os inscrever na cabeça do rol».” (A Voz de Cabo Verde, n.º 333, 1 de Março de 1918, p. 1) “Afigura-se-me, pois, essencial e primordial necessidade canalisar os bons impulsos naturaes das creanças, desde os mais tenros anos (e não são esses impulsos o que falta na indole dócil dos povos caboverdeanos) e é ainda de mais essencial e primordial 151 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) interesse para a educação desses pequenos sêres, que hão-de continuar ámanhã as obras de progresso da provincia, segundo a direcção e preparação que, a tempo e conscientemente lhes fôr dada: - por um lado não os brutalisar com maus tratos em que, as mais das vezes, se descarrégam injustamente as contrariedades e amarguras dos pais ou dos outros parentes; por outro lado, não cair-se no excesso oposto a esse, que é o de estragar as creanças, cumulando-as de prazeres impróprios das suas idades, contrariantes da higiene, deprimentos do desenvolvimento equilibrado das forças dos musculos e do cerebro, e que às creanças dão a ideia falsíssima das realidades duras, que veem a mostrar-lhes mais tarde o quanto a vida real carece de uma preparação mais bem compreendida.” (Relatório do inspector escolar, s. d.189) No acervo documental reconstituímos as práticas punitivas mais frequentes na escola cabo-verdiana: Quadro 43 – Punições escolares Punição Citação Fonte Advertência “A educação da criança não consiste em ralhar e bater (...), mas sim em influir por meio de palavras com timbre de respeito.” “Orelhas de burro e outros castigos antiquados que moem os orgãos das creanças” “Palmatória: o pesadelo dos meninos-de-escola!” “Vara-de-marmelo: é o remédio infalível para acabar com as «terribezas» ou terribilidades da criançada mais travessa” “Períodos de 3, 10, 15, 20 dias de expulsão aos alunos” FCV, n.º 129 14/10/1915 VCV, n.º 5 29/03/1911 Romano, 1970, p. 3 FCV, n.º 63 09/06/1914 Vexame Castigos corporais Expulsão A recriação das práticas de submissão e de obediência, nas páginas do romance O Chiquinho de Baltasar Lopes, conclui a reflexão sobre a (in) disciplina escolar: “- Vocês leiam! Toda a classe leu em voz alta. O joão-da-camâra190 tinha trechos muito bonitos. O Sr. José Martins ficava de pé no estrado, com o ponteiro encostado ao ombro, a ouvir a leitura em coro. - Dick, estás lendo com uma voz muito fina. Um homem deve ter voz de homem... A sala era pequena e não chegava para tanta gente. Eu, como era novo na classe, ficava com os outros junto da porta, quase na rua. - Maninho, não sabes ainda a lição que te passei anteontem. Seis palmatoriadas. Nasolino foi cumprir a ordem do professor. Os rapazes da 3ª classe faziam-nos bioco, a troçar da nossa leitura. Um garoto veio condenar um companheiro que lhe estava tirando penico nas pernas. Quatro palmatoriadas. Nasolino cumpriu. Os decuriões foram tomar lições aos mais atrasados. Sr. José, dá licença para eu ir fazer um serviço na rua?” (1970, pp. 51-52) 189 Cx.ª 671. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. Livro de leitura para as escolas de instrução primária para a 4ª classe, da autoria de João da Câmara, Maximiliano de Azevedo e Raul Brandão. 190 152 A construção do discurso educativo 5.2. Inovações pedagógicas No primeiro subcapítulo referimo-nos ao acto de ensinar, mediante a coacção de estímulos externos – a disciplina e a punição. Em contraposição, o paradigma da Escola Nova transformou a disciplina “num exercício crescentemente solitário e associado à independência ideal do aluno”, com regras que “já não se impõem pela violência das sanções, pela rigidez dos princípios” (Ó, 2003, p. 112). O isolamento geográfico e cultural de Cabo Verde e a submissão política ilhavam a educação da influência das novidades pedagógicas. Porém, a elite crioula conseguia romper o cerceamento físico e político e aceder a ideias novas, aos princípios da Pedagogia. “[O ensino] além de não corresponder aos fins que se propõe, não preenche os desejos e as aspirações dos individuos nem dos metropolitanos que aqui residem. A Pedagogia, cujas doutrinas servem de base nos paizes civilizados aos regulamentos especiaes e leis de educação e ensino, são n’este archipelago, senão ignorados pelo menos desprezados, do que adveem gravissimos prejuizos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 1, 1 de Março de 1911, p. 2) “Ao mais humilde dos discipulos de Froebel ou de Pestallozzi repugnar-lhe-ia entrar em algumas ou em muitas das escolas primarias da Provincia de Cabo Verde, e um mestre-escola suiço, alemão, escandinavo, japonês teria para nós lágrimas de comiseração se pudesse um dia comtemplar a miseria que caracteriza quasi geralmente o professorado primario e as escolas, essas duas cousas que entre nós nenhuma atenção tem merecido, atraves dos seculos, aos poderes; essas duas cousas que nos seus respectivos paises se impõem, ao contrario, como um dogma, ante o qual se ajoelham governos e povos” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 103, 4 de Agosto de 1913, p. 2) Pela janela da imprensa, os métodos pedagógicos de Pestalozzi e Froebel – que defendiam a autonomia da aprendizagem, de acordo com a evolução, as aptidões e as necessidades das crianças – chegavam ao conhecimento da classe docente. Embora de forma empírica, os professores aplicaram metodologias activas, que contrariavam as tradicionais abordagens do ensino: “saber ensinar, especialmente crianças, é abstrair da grande soma e da generalidade de conhecimentos adquiridos, ensinando-as gradualmente, sem sobressaltos, sem asperesas, de maneira que dum conhecimento resulte o outro e a soma de todos seja uma unidade completa e integrada” (O Futuro de Cabo Verde n.º 69, 20 de Agosto de 1914, p. 3). 153 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A obra pedagógica de João de Deus e o método “racional, simples e fácil” (Nóvoa, 2003, p. 467) eram populares191. A Cartilha Maternal192 e Os deveres dos filhos com seus pais integravam a relação de manuais adoptados. A Voz de Cabo Verde noticiou que o Dr. João de Deus Ramos, filho do poeta João de Deus, se tinha prontificado “a vir tratar da instrução em Cabo Verde”, conforme extracto de uma carta transcrita no periódico: “Ontem vim no comboio com o João de Deus Ramos, governador civil da Guarda. Falámos a respeito da instrução em Cabo Verde e ele mostrou-me desejo de ir estudar o assunto e promover a fundação de jardins escola e estabelecimentos congéneres, como já aqui fez, com um belo... (ilegível), em Coimbra, Porto, Lisboa, Figueira e Guarda. O rapaz é muito competente e isso vê-se pelo que já tem feito. Seria um belo serviço à provincia a ida dele aí. Para tal, basta que de aí o convidem. Disse-me que não aceita remuneração alguma e que, quando muito, lhe paguem a viagem de ida e volta.” (N.º 40, 22 de Julho de 1912, p. 1) A notícia acrescenta que, “se atentarmos à provada competência do Dr. João de Deus Ramos, ao desvelado amor que vota à instrução, a persistência e tenacidade com que se dedica a todos os problemas e trabalhos que à mesma digam respeito”, o governo deveria promover a missão, considerando que “a despesa com as passagens [que] é insignificante (...), será largamente compensada com os benefícios que a vinda daquele ilustre pedagogo trará à instrucção publica” (idem). Não conseguimos apurar se o Dr. João de Deus Ramos visitou o arquipélago, mas o método João de Deus193 era conhecido e aplicado. “Tomou êste senhor [professor José da Fonseca Lage] em seguida a palavra, e por espaço de uma hora, depois de dirigir afectuosos cumprimentos aos colegas, à Câmara, à Administração e ao Gôverno, poz em relevo o grande serviço prestado pela Câmara Municipal à instrução, atendendo o seu apêlo e dos seus colegas para que o ensino fôsse uniformizado com o maravilhoso método João de Deus. Depois descreveu as vantagens dêste método, que desde já adopta na sua escola, e continuou descrevendo as vantagens da instrução nesta província, com que se fará um prodigioso levantamento moral na juventude, que agora desperta para vida.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 94, 11 de Fevereiro de 1915, p. 2) 191 A Cartilha foi traduzida para línguas indígenas africanas (de Angola e Moçambique) e língua concani de Nova Goa (Nóvoa, 2003, p. 277). 192 Ver Figura 20 (pág. 147). 193 O método João de Deus tinha “dois recursos fundamentais: um livro, a Cartilha, «manual» destinado ao ensino individual ou doméstico das crianças ou adultos; os «quadros parietais», placas de grande dimensão destinadas a serem utilizadas no ensino colectivo” (Nóvoa, 2003, p. 446). 154 A construção do discurso educativo A produção epistemológica sobre educação conduziu à “necessidade duma escola nova, em cujas paredes todos os métodos e técnicas educativas se veriam adaptados à realidade particular de cada criança, às suas ideias inatas” (Ó, 2003, p. 126). Um relatório da inspecção local recomendava os processos Montessori194, assentes nos princípios da individualidade, da liberdade e da educação dos sentidos como base da vida intelectual” (Sérgio, 1915, p. 252): “A esse respeito [da acção colaboradora das famílias para a educação das crianças] muito ha a aprender com as reformas do ensino infantil preconisadas e levadas já à prática com grande exito, por exemplo, em Roma, pela Dra. italiana Maria Montessori (Vidé Revue – fasciculo n.º 7 de 1 de Abril de 1914). A divulgação, em língua portuguesa, das notícias referindo trabalhos realisados por esta reformadora da cultura e educação das creanças seria desejavel, para já, como elemento de grande utilidade para meditação de professores e professoras actuaes do ensino primario entre nós, que estamos sensivelmente em grande atraso nessa materia. Ao governo da província, com a devida vénia, lembro a conveniencia de tal tradução e divulgação, e da de todos os escritos deste genero que desenvolvam nas suas minuciosidades os processos da cultura infantil a que me refiro – que tendem a esclarecer o professorado primario para este melhor exercer a sua missão de ensinar crenças; e propagando-se tambem, simultaneamente, nas familias os preceitos e metodos de uma tal educação sadia e benéfica, que devem contribuir tanto para as alegrias do lar como para as prosperidades da região.” (Relatório do inspector escolar, s. d.195) A comemoração anual da Festa da Árvore, na época das chuvas, era ocasião para a prática do ensino pela natureza, com o envolvimento de docentes e discentes. “Foi instituída esta festa com o intuito de incutir no animo das crianças, especialmente, e no da população em geral, o amor pela árvore cuja utilidade é tão grande. Não creio, porém, que consiga os seus fins em Cabo Verde, onde o que salta aos olhos é, em vez do amor e carinho na sua conservação, a sua destruição inconsiderada, se não fôr longamente preparada de antemão, na escola, pela lição do professor, demonstrando cabalmente que da sua conservação ou exploração regular virão maiores proveitos que da sua destruição. A conservação da árvore é um dever cívico, pois é de utilidade pública.” (Boletim Oficial n.º 27, 7 de Julho de 1917, p. 263) António Sérgio defendia que “a escola devia ser simples” e valorava “não a casa, mas a cerca, onde estavam os objectos a estudar: a terra, as plantas, os animais” (A Águia, n.º 85-87, Janeiro-Março de 1919, p. 26). 194 Os processos Montessori, segundo António Sérgio, resumem-se em três ideias directrizes “o princípio da individualidade; o princípio da liberdade; o princípio da educação dos sentidos como base da vida intelectual” (A Águia, n.º 42, Junho de 1915, p. 252). 195 Cx.ª 671. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 155 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Figura 21. “O meu primeiro passeio escolar” (Excerto do repertório, Escola Oficial do Maio, 1 de Maio de 1917196) Eram recomendadas as “lições práticas de cousas” em visitas de estudo: “Determinou S. Ex.ª o Governador que os professores do ensino primário, em alguns dos dias feriados, ministrassem aos seus alunos lições práticas de cousas em passeios nos arredores das sédes das respectivas escolas. Estes exercícios reconhecidamente úteis e necessários ao desenvolvimento demonstrativo das teorias professadas nas 196 Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 156 A construção do discurso educativo aulas, carecem de ser quanto possível amenizados ou tornados agradáveis a professores e alunos, e isso pode por vezes depender da cooperação de boa vontade de moradores dos concelhos, cujas propriedades sejam visitadas pelos excursionistas: é essa cooperação e boa vontade que S. Ex.ª espera dos cidadãos, donos ou gerentes de tais propriedades, confiando tambêm em que as autoridades administrativas locais procurarão, por sua parte fazer compreender nos moradores o interesse que há em que seja apoiada e secundada no que deles dependa a execução regular dos exercícios práticos de ensino, referidos. Tal auxílio consiste principalmente no bom agasalho que dispensem ao pessoal das escolas, facilitando-lhe qualquer meio de conforto sem sacrifício, e relevando às crianças algumas turbulências inevitáveis que a vigilância dos professores, acaso não possa prevenir.” (Boletim Oficial n.º 17, 28 de Abril de 1917, p. 1) A educação cívica e o método da cidade-escola foram objecto de crónicas jornalísticas. De universo concentracionário, a escola transmudava-se em instância de socialização. “O método da cidade-escola consiste em considerar a escola como uma cidade e as diversas classes como outros tantos bairros. Cada classe tem os seus funcionários especiais e o conjunto de todas, formando a cidade-escola, tem o seu governador civil, câmara municipal, presidente de tribunal, juizes, policias, prisões. Todos os funcionários são nomeados pelos próprios alunos, exactamente como acontece na vida pública. Habituam-se assim as crianças a servirem-se de voto. Uma outra vantagem que se assinala é que os funcionários da cidade-escola asseguram eficazmente a disciplina. São êles quem velam pela manutenção da ordem nas classes e fora delas. Os recalcitrantes são levados ao tribunal e êste, depois de ter conferenciado com os professores, aplica-lhes as penas conforme as faltas cometidas.” (O Manduco, n.º 10, 15 de Janeiro de 1924, p. 3) António Sérgio defendeu a tese do self-government escolar: “A cidade escolar organiza a sociedade dos estudantes à maneira de um município; (...) numa organização semelhante às de um estado norte-americano, com suas câmaras, seu presidente, etc., vários estados podem reunir-se numa nação ou confederação” (1984, pp. 44-45). A obra sergiana não era desconhecida em Cabo Verde, conforme se depreende da notícia da “ascensão do ilustre escritor pedagogista ao elevado cargo de ministro (…), talento de elite, dispondo de excepcionais faculdades de trabalho e visão ampla e segura, o novo ministro da Instrução197 é, como tal, the right man in right place” (O Manduco, n.º 11, 30 de Janeiro de 1924, p. 1) 197 António Sérgio foi Ministro da Instrução Pública, em Portugal (18 de Dezembro de 1923 a 28 de Fevereiro de 1924). 157 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Outro símbolo da modernidade, o cinema educativo, chegou às ilhas em 1926, por iniciativa da Biblioteca Escolar Rosariense. Rogério Fernandes situa o aparecimento do cinema educativo “numa época de extremo optimismo (1914)198, talvez realçado por aquilo que o cinema representava, em princípio, como reacção contra a escola que se fechava ao contacto da experiência e se furtava à investida revitalizante do espírito científico” (2004e, p. 657). “Expondo a êste Govêrno a presidência da comissão directora da Biblioteca Escolar Rosariense, da ilha de Santo Antão, a conveniência de se introduzir o cinema na Escola Central da Vila da Ribeira Grande, como complemento auxiliar ao ensino pela exibição de filmes pedagógicos, históricos, geográficos e outros que tendam a demonstrações instrutivas que facilitem os conhecimentos da instrução aos respectivos alunos, pedindo para a sua importação a isenção dos direitos e mais impostos; Considerando que é de apoiar êste alvitre pela facilidade que imprime nos alunos os conhecimentos que, sómente pela parte teórica lhes são impossíveis aduzir da ideia real, concorrendo assim para a melhor apreensão dos assuntos que versem os seus temas habilitando-os conscientemente, o que já em países estrangeiros vem sendo pôsto em prática com bons resultados; O Conselho Legislativo aprovou e o Govêrno da Colónia de Cabo Verde determina o seguinte, com a sanção expressa do Poder Executivo, em ofício n.º 63, de 23 de Setembro findo, da Direcção Geral das Colónias do Ocidente: Artigo 1.º Fica isento de direitos e de todos os mais impostos actualmente criados para o Estado e para quaisquer outras entidades ou organismos municipais a importação, pela Delegação Aduaneira de Santo Antão, de um cinematógrafo completo, compreendendo os filmes ou fitas que o acompanharem e os que posteriormente forem importados pela direcção da Biblioteca Escolar Rosariense e cujos assuntos dos mesmos contenham apenas a matéria instrutiva apropriada ao ensino histórico, geográfico e demonstrativo relativos ao grau da instrução professada na Escola Central daquela vila e à qual se destinam.” (Boletim Oficial, n.º 45, 6 de Novembro de 1926, p. 431) 198 A primeira referência à possibilidade de aplicar o cinema na escola, entre outros meios audiovisuais, surge na obra de Adolfo de Lima, Educação e Ensino, editada em 1914 (Fernandes, 2004c, p. 657). 158 A construção do discurso educativo 5.3. Artefactos e livros escolares A compreensão histórica do vacilante percurso da modernidade pedagógica, na colónia, entre reformas, ideias novas, imposições, rotinas, representações e práticas, pressupõe um olhar sobre os artefactos e livros escolares. A penúria de materiais didácticos, nas salas de aula, patenteia o abissal distanciamento entre projectos e realidade. “Há sete meses que venho representando, perante o município da Praia, o papel de pedinte, e o seu mentor o de usurário sempre refractário às minhas súplicas. Não admito que ninguém espezinhe os meus direitos, porque dêles tem uma perfeita noção como qualquer.... (ilegível) da mula russa, peito de pau, alma de aço, que julga trazer no ventre o Júpiter Tonante para o espanto e terror da humanidade. Estou farto de perseguições!... Estou farto dos coices da besta-féra e bem prevenido para me defender à sombra da lei. Eis os materiais escolares que a secretaria do município tem fornecido à Escola Oficial de 2ª classe, da Praia, durante 7 meses: 3 lápis de gis – $03; 1 caneta – $02; $02; 1 lápis – $02; ½ frasco de coisa parecida com tinta – $02; 5 cadernos de papel almaço – $20; 3 aparos – $03. Soma – $32. É com estes materiais escolares, no valor de 320 réis, que tenho de me desempenhar dos meus deveres de professor, não sei por quanto tempo, porque de cinco requisições, nenhuma me foi satisfeita. Não faço milagres e se não fosse a generosidade dos srs. Sérgio de Carvalho e Abílio Monteiro de Macedo, que são os protectores da minha escola, não sei como havia de exercer proficuamente o meu cargo.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 120, 1 de Janeiro de 1913, p. 3) Ardósia, pena e lápis A ardósia, a pena e o lápis possibilitaram a aprendizagem simultânea da leitura e da escrita, por serem materiais facilmente adquiridos pelos alunos. Sendo, embora, recursos fundamentais para a aprendizagem, escasseavam nas escolas: “Os livros, a ardósia, o papel e outros utensílios indispensáveis para os exercícios escolares, nunca o aluno os leva na sua totalidade, passando-se meses e meses sem que êle possa treinar nesta especialidade de ensino, o que o atraza um, dois e mais anos na preparação dos seus exames. E da fórma como as coisas do ensino correm, qual o professor que pode evitar tais desregramentos? Nenhum.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 118, 29 de Julho de 1915, p. 3) Para evitarem “deformações graves na caixa torácica e nos órgãos que encerra e desvios da coluna vertebral e miopia”, os alunos eram aconselhados a praticarem “de preferência na ardósia, sob a direcção do professor, os necessários exercícios 159 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) tendentes a educar-lhes os dedos para o manejo da pena e do lápis” (Programa de leitura, 1ª classe199). Quadro preto No ensino rudimentar da leitura pode o professor “servir-se do quadro preto, onde escreverá tantas lições e exercícios variados, quantos o seu engenho e conhecimento pedagógico lhes sugeriam, ou empregar tabelas impressas, litografadas ou manuscritas, em tipo bem nítido e visível, e ainda letras móveis com as quais possa comparar sílabas e palavras” (idem). Caderno diário Era o espelho da aplicação diária do aluno, em cada dia, em cada período escolar, em cada ano lectivo (Ó, 2003, p. 324). O programa de língua portuguesa recomendava que os “exercícios [caligráficos deviam ser] feitos a lápis ou a tinta, sôbre papel pautado a principio tendo as linhas para a inclinação das letras, copiadas do quadro preto” (programa de leitura, 1ª classe). Figura 22. Exercícios caligráficos 200 199 200 Supl. nº 15 ao Boletim Oficial, n.º 45, Novembro de 1915, p. 1. Acervo documental da Biblioteca Nacional de Lisboa. 160 A construção do discurso educativo Mapas e contador mecânico “A única mobília consiste em uns bancos toscos e imundos, uma mesa carunchosa, um estrado velho a cair de pedaços e duas cadeiras. – Material: um mapa de pezos e medidas, um quadro de esqueleto humanos, dois mapas de Portugal, sendo um deles em relevo, mapas de províncias ultramarinas e um contador mecânico.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 218, 8 de Novembro de 1915, p. 2) Caixa métrica “ [A escola] apresentava a seguinte requisição: um contador de parede ou de pé, uma caixa métrica contendo: metro de fanqueiro, fio de prumo, nível de bolha d’ar, 6 solidos geometricos, transferidor, compasso, esquadro, regua e esquadro T, cadeia metrica, decimetro quadrado, decimetro cubico, capacidade do decimetro cubico, duplo decimetro, colecção de medidas para secos, colecção de 7 medidas para líquidos, colecção de pesos de ferro até um kilo, colecção de pesos de latão fazendo 200 gramas, balança de pratos de um kilo, etc.” (Relatório sobre o movimento da Escola Oficial de S. Jorge, ilha do Fogo, 1 Setembro 1916, fv. 3201) Quadro 44 – Equipamentos e artefactos escolares Designação Ardósia e lápis de pedra Caneta Aparos Pena Caderno diário Letras móveis Carta geográfica de Portugal e das colónias Quadro de História de Portugal Mapa de Ciências Naturais Quadro do esqueleto humano Caixa métrica Esfera terrestre Mapa de pesos e medidas Termómetro Colecção “Atitudes escolares”208 Máquina de costura «Singer» Fonte FCV, n.º 118, 29/7/1915, p.3; Lista de material , 3/1/1919202 VCV, n.º 120, 1/12/1913, p. 3 VCV, n.º 120, 1/12/1913, p. 3 Programas do Ensino Primário 203 Acervo documental da BN. Programas do Ensino Primário Relatório, Escola Oficial de S. Jorge, ilha do Fogo, 1/9/1916204 Acta Sessão Conselho de Instrução Pública, 6/11/1918205 Programas do Ensino Primário VCV, n.º 128, 8/12/1915, p. 3 Idem. Requisição de mobiliário, Escola de Rabil, Boavista 3/12/1918206 VCV n.º 218, 8/11/1915, p. 3 Nota dos artigos de mobília, Ponta do Sol, S. Antão, 21/2/1919207 Idem. Requisição de mobiliário, Escola de Rabil, Boavista 3/12/1918 201 Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. Cx.ª 671. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 203 Supl. nº 15 ao Boletim Oficial, n.º 45, 6 de Novembro de 1915. 204 Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 205 Cx.ª 668. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 206 Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 207 Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 208 Materiais elaborados a partir do livro de leitura intitulado Deveres dos filhos (tradução e adaptação de uma obra francesa feita por João de Deus) (Nóvoa, 2003, p. 466). 202 161 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) As práticas educacionais reconstituídas, no arco temporal de 1911 a 1926, desvendaram os equipamentos e artefactos do quotidiano escolar (Quadro anterior). Livros escolares Os manuais tiveram uma importância decisiva como suporte, por excelência, do ensino “verbalista, descritivo e mnemónico” (Sérgio, 1939). Funcionaram como instrumentos de uniformização da linguagem e dos valores. Figura 23. Anúncio de livros e mapas (O Futuro de Cabo Verde, n.º 130, 21 de Outubro de 1915, p. 2) No início da década, foram adoptados os livros escolares constantes da tabela seguinte (Portaria n.º 361, 11 de Dezembro de 1907): Quadro 45 – Lista de livros escolares – 1910/1911 Títulos Cartilhas das escólas Livro de leitura, 1ª classe Livro de leitura, 2ª e 3ª classes Livro de leitura para a 4ª classe Synopses Grammaticaes [e Conjugação de Verbos] Mathematica, Systema metrico e Geometria Chorografia portugueza [O] Desenho das Escolas Primárias], 1ª, 2ª e 3ª classes [Compêndio de] Desenho, 4ª classe Educação Cívica Moral e Doutrina Christã História de Portugal 162 Autores Agostinho Nunes Ribeiro Teixeira José de Carvalho e Silva João da Câmara João da Câmara, [Maximiliano de Azevedo e Raul Brandão] Albino Pereira Magno [Eugénio da Silveira] Ulisses Machado [José Nicolau] Raposo Botelho Angelo [Coelho de Magalhães] Vidal José Vicente de Freitas Almeida Nogueira Manoel Anaquim Acácio Guimarães A construção do discurso educativo Agricultura António Xavier Pereira Coutinho Em meados do decénio, as listas de livros em vigor209 e as facturas de aquisição de manuais comprovam a utilização de outros livros escolares: a Cartilha Maternal de João de Deus e a Gramática Portuguesa de José Relvas. Mudou o manual de Educação Cívica (substituído pelo livro de Albino Pereira Magno). O livro de Moral e Doutrina Christã, usado no tempo da monarquia, foi retirado. Figura 24. Lista de manuais escolares (Factura, 20 de Fevereiro de 1915210) Os professores da ilha de Santiago manifestaram-se “acerca da necessidade instante de se adoptar um compêndio de Moral e Civilidade, pois nenhum existe e o doutrinamento das classes, está sujeito à acção pessoal, pura e simples, dos professores de Moral” (parecer, 22 de Junho de 1915211). No mesmo ano, os professores de São Vicente propuseram, à Junta Local de Instrução Pública, a 209 Lista de livros do professor Reis Borges e facturas diversas. Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 211 Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 210 163 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) abertura de um concurso especial para a concepção dos manuais, em seguida, designados: “1º Para Português: Um método gradual de Leitura Uma Gramática Portuguesa Prática 2º Para a Agricultura: Um pequeno manual compreendendo principalmente as especies caboverdianas, sua utilidade economica, sanitaria e comercial. (...) 3º Para a Educação Cívica: Um fascículo, abrangendo, sumariamente, as principais obrigações morais, familiares, escolares, sociais e cívicas, ensinando-se a substancia dos artigos da Constituição, do Código e do Registo Civil, do Codigo Penal e das Leis Tributárias, que em geral a todo o cidadão importa conhecer, cumprir ou evitar.” (Parecêr, 1 de Julho de 1915212) No ano escolar 1925/26, a listagem de manuais mantinha a maioria dos títulos e autores213: Quadro 46 – Lista de livros escolares – 1925/1926 Títulos Cartilha maternal, 1ª e 2ª partes Livro de leitura, 2ª, 3ª e 4ª classes Gramática portuguesa Aritmética prática e Geometria elementar Noções elementares de Corografia portuguêsa Sciências naturais Compêndio de Desenho Educação cívica Moral História de Portugal Cadernos caligráficos Rudimentos de Botânica e Agricultura Autores João de Deus [Eugénio da Silveira] Ulisses Machado214 B. A. dos Santos Martins215 Ulisses Machado216 José Nicolau Raposo Coelho Eduardo Andrêa e Albino Pereira Magno Albino Pereira Magno217 Albino Pereira Magno Albino Pereira Magno Chagas Franco e Aníbal Magno José Nunes dos Santos António Xavier Pereira Coutinho Os juízos de valor sobre a qualidade dos manuais eram severos: “condenando-os a todos quási (...) pelas faltas ortográficas que neste ou naquele se notam a cada passo”, por conterem ”os mais imperdoáveis solecismos ou êrros ortográficos aqui e 212 Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. Boletim Oficial, n.º 45, 7 de Novembro de 1925, p. 349. 214 O livro de leitura de Ulisses Machado, em vigor desde 1915, substituiu os manuais de João da Câmara. 215 Substituiu as Sinopses gramaticais de Albino Pereira Magno. 216 Substituiu a Aritmética prática de J. L. Travassos Lopes. 217 Substituiu o compêndio da autoria de Angelo Vidal. 213 164 A construção do discurso educativo ali enquistados nos compêndios, tanto mais se o professor não tiver de filologia os conhecimentos bastantes para emendar tais êrros e esclarecer os discípulos” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 189, 20 de Março de 1915, p. 2). 165 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Manuais de Língua Portuguesa Na opinião do professor José Lopes, os manuais de Português “não satisfazem nem aos requesitos da qualidade nem aos fins da quantidade” (A Voz de Cabo Verde, n.º 189, 20 de Março de 1915, p. 2). Eram omissos sobre a realidade caboverdiana. O livro de leitura de João da Câmara afirmava: “o sólo das ilhas [de Cabo Verde] é fértil”, questionando “que quer dizer que um solo218 é fértil e um clima é sadio?” As Synopses Gramamaticaes foram “consideradas insuficientes para o ensino da Língua Portuguesa, nas colónias” (Parecer dos professores de S. Vicente, 1 de Junho de 1915219). Conforme um aviso publicado no jornal oficial (30 de Novembro de 1925220), foram adoptadas, ainda, a Gramática portuguesa de José Relvas (1910) e a Gramática de B. A. dos Santos Martins (1925). “A gramática adoptada agora é uma sinopse muito rudimentar. Deveras lacónica de definições só tem de importante a nomenclatura dos determinativos e dos verbos. Destes apresenta uma lista satisfatória dos irregulares bem como quadros completos de conjugações dos... (ilegível) dos regulares. Mas isto não basta para o ensino das crianças. É necessário ministrar-lhes lições mais desenvolvidas do idioma nacional. A simplificação dos meios didácticos, assim exagerada, não convém nas escolas primárias da Província. Só se poderia admitir nos meios escolares onde o aluno, passando aos liceus ou outros estabelecimentos congéneres, vai concluir os seus estudos de português. O aluno das nossas escolas, como já dissemos, não aprende mais nada, sendo portanto preciso dar-lhe um livro mais desenvolvido que uma simples sinopse gramatical, útil não obstante sob certos pontos de vista. Os nossos discípulos de outrora aprendiam mais português. Os respectivos compêndios eram mais explícitos, menos deficientes, contendo matérias e definições quantitativamente mais próprias para instruir os estudantes e até mesmo para esclarecer, em muitos casos, os professores. Em muitos exames vimos fazer a alunos de vários colegas nossos uma análise gramatical como a não faria melhor um aluno de qualquer liceu produzindo provas orais em matérias do primeiro ano de português, perante um júri exigente. Podemos afoutadamente afirmar este facto em homenagem ao professorado primário da Província, em geral tam laborioso ainda que mal remunerado.” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 191, 12 de Abril de 1915, p 2) 218 Repare-se que a palavra solo apresenta grafias distintas: “sólo” e “solo”. Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 220 Boletim Oficial, n.º 45, 7 de Novembro de 1925. 219 166 A construção do discurso educativo Manual de Aritmética Os alunos desta geração estudaram Aritmética nos livros escolares de Ulisses Machado: “[O manual] é deficiente, ainda assim, relativamente às exigências do ensino primário do segundo gráu. Neste deve o aluno, por força, instruir-se no conhecimento, ao menos rudimentar, das regras de três simples e composta, regras de companhia, operações sobre números fraccionários, decomposição de números em factores primos, noções de máximo divisor comum, e menor múltiplo comum, potências, etc. (...) É portanto conveniente adoptar no segundo gráu, livros que preencham tais lacunas, e a verdade é que já os houve, sendo por consequência lícito e natural perguntar se a nossa orientação consiste em retroceder em vez de progredir.” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 180, 25 de Janeiro de 1915, p. 2) Manual de Corografia Portuguesa Segundo António Nóvoa, os compêndios de José Nicolau Raposo Botelho “que não são particularmente inovadores, revelam os seus conhecimentos enciclopédicos” (2003, p. 183). “O ensino da corografia nacional consta dum livro que satisfaz bastante no que se refere à Metrópole, mas pouco no que se relaciona com as Colónias. Nesta parte deveria ser mais desenvolvido para em tudo ser um cânon. A descrição geográfica dos nossos domínios ultramarinos deve ser tam minuciosa como a da Mãe Pátria, quer na parte física, quer na parte política221. (...) Porém, ao passo que o compêndio descreve até às particularidades por vezes mais insignificantes a Metrópole, já na ordém fisica, já na política, limita-se em geral a dar sucinta notícia de Portugal Colonial omitindo salutares indicações que, pelo contrário, deveriam habilitar a mocidade a conhecer bem os países onde se enraíza o futuro da nossa raça, estas terras, algumas riquíssimas e vastas, onde pompeia a nossa gloriosa bandeira.” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 181, 1 de Fevereiro de 1915, p. 3) Manual de História de Portugal Da autoria de Chagas Franco e Aníbal Magno, contém uma referência a Cabo Verde (descoberta das ilhas), resumida a uma linha (p. 64). Na opinião de José Lopes, a história de Portugal é “um livrinho muito resumido, que por isso não satisfaz de modo algum os fins a que devia destinar-se”: 221 Dedicou três páginas ao arquipélago de Cabo Verde. 167 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Dir-se-ia que foi adoptado sómente para os alunos nada ficarem sabendo da sua nacionalidade além de um ou outro facto notável, um ou outro nome mais ilustre de estadista, guerreiro, descobridor, escritor ou poeta, com simples menção desta ou daquela batalha, descobrimento ou conquista. É, afinal, uma lista de reis que governaram Portugal. É absolutamente necessário adoptar um outro compêndio que ensine à mocidade das escolas primárias a história de Portugal, quer dizer, a história da nacionalidade portuguesa, que é a nossa, de todos nós, que nela estamos integrados. Só assim poderá crescer a infância instruída verdadeiramente nos princípios que os formem cidadãos conscientes do que são e do que devem à pátria.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 181, 1 de Fevereiro de 1915, p. 3) Manual de Desenho As crianças cabo-verdianas aprenderam a desenhar no compêndio de Ângelo Coelho de Magalhães Vidal, “considerado um dos «fundadores» do ensino do Desenho, pelo menos na perspectiva da sua vulgarização no espaço curricular do primário e do secundário” (Nóvoa, 2003, p. 1438). Figura 25. Um exercício de desenho 168 A construção do discurso educativo Manual de Educação Cívica Os professores de Santo Antão, reunidos para se pronunciarem sobre os livros escolares, recomendaram o manual de Albino Pereira Magno222, por “ser modelado segundo o caracter das novas instituições [republicanas]”, reclamando, porém, “a necessidade instante de se mandar adoptar um compêndio de Moral e Civilidade” (parecer dos professores de S. Vicente, 1 de Junho de 1915223). Manual de Agricultura O estudo da Agricultura era baseado no manual de António Xavier Pereira Coutinho. Na opinião do professor José Rodrigues de Carvalho, “O estudo da Agricultura feito em face dos compêndios adoptados para a escola metrópole é sobremodo abstracto e estéril, por isso que os conhecimentos que exibem não são aplicáveis à flora tropical, tornando-se necessário que o professor supra êsse defeito com indicações ùteis sobre agricultura regional. Assim é conveniente ensinar aos alunos os processos da fabricação da aguardente, açúcar, sabão, extracção do oleo das sementes da purgueira, rícino, coco, etc. A cultura da bananeira, café, cana de açúcar, mandioca, mangue, coqueiro, diversos cereais e legumes de primeira necessidade, deve merecer particular atenção ao professor no ensino desta disciplina, que deve ser ministrado em lições de coisas, de fórma a conseguir-se uma utilidade rial. É por isso que mais de uma vez temos afirmado a necessidade de se confeccionar um compêndio de Agricultura prática em harmonia com as circunstâncias especiais desta província.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 156, 23 de Abril de 1916, p. 2) O verdadeiro livro é o professor O manual era um recurso inacessível para muitos alunos, tendo em conta o reduzido poder de compra das famílias (1919, preço médio: 0$39224). Por este motivo, um professor da ilha de S. Nicolau propôs a “supressão dos compêndios”: 222 António Nóvoa considera que Albino Pereira Magno “revelou sempre uma atitude profissional, fazendo parte de uma geração que procurou difundir a «escola obrigatória» na sociedade portuguesa” (2003, p. 852). 223 Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 224 O valor médio de um manual equivalia ao preço de um quilo de carne de carneiro, de um quilo de arroz «da Guiné» ou de um litro de petróleo (Tabela de preços máximos de géneros alimentícios e outros de primeira necessidade no concelho do Tarrafal. Boletim Oficial,, n.º 10, 8 de Março de 1919, p. 65). 169 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) “Há um outro obstáculo que tenazmente põe estorvo ao progresso da instrução nestas terras pobres onde o dinheiro parece que foge da gente, causando gravíssimos transtornos aos pais dos alunos: isto de o governo estar sempre com mudanças de livros de ensino. Por exemplo, um pobre pai sacrifica-se em outubro e compra livros para um filho, e sucede que depois de se sacrificar com uma despesa de 2$00 escudos, o governo manda distribuir circulares para os professores proibindo-lhes, sob pena de procedimento, ensinar por tais compêndios; ¿onde irá o pobre filho de Adão colher dinheiro para realizar a compra de novos livros? (...) Atendendo à pobresa que é tão persistente em todo o Cabo Verde, os professores deveriam ser autorisados a suprirem os compêndios, contando que houvesse uniformidade, lembrando-se que tanto os que aprenderam ao língua de Vieira pela gramática de Bento José de Oliveira como os que a estudaram pelas de Caldas Aulete ou Epifanio Dias, etc., todos, do mesmo modo, sabem igualmente o mesmo idioma e podem ensiná-lo por qualquer dos compêndios que vão aparecendo por cá.” (José Maria C. de Azevedo. A Voz de Cabo Verde, n.º 211, 13 de Setembro de 1915, p. 3) A desvalorização do manual escolar pode, ainda, estar associada com a descontextualização dos conteúdos, alheados da realidade cabo-verdiana. Neste sentido, O Manduco (nº 9, 30 de Dezembro de 1923, p. 1) instava: “Convém ensinar antes a plantar mandioca, a fabricar o açúcar e a tratar o cafeeiro, do que a plantar cepas, a enxertar a oliveira e a fabricar vinhos e azeite” e defendia um livro feito por cabo-verdianos para cabo-verdianos, questionando “¿Não haverá dentro ou fora do professorado quem ouse arcar com as dificuldades da emprêsa?” 170 A construção do discurso educativo 5.4. Avaliação da aprendizagem A avaliação da aprendizagem, processo de seriação e comparação de conhecimentos e capacidades culminava na época dos exames. Na óptica foucaultiana, o exame combina as técnicas da hierarquia, que vigia e as da sanção, que normaliza: “É um olhar normalizador, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Dá aos indivíduos uma visibilidade através da qual os diferencia e os sanciona. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele confluem a cerimónia do poder e a forma da disciplina, o aparato da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos procedimentos de disciplina, manifesta a submissão dos submissos. A sobreposição das relações de poder e das relações do saber têm no exame toda a ostentação visível.” (Foucault, 1975, p. 217). O acto do exame, “fixação ao mesmo tempo ritual e científica das diferenças individuais é uma modalidade nova de poder” (idem, p. 225), exercida por forças de coerção externas ao acto educativo. Figura 26. Registo de acto do exame (Excerto de acta, ilha do Maio, 15 de Agosto de 1913225) 225 Cx.ª 664, 15 de Agosto de 1913. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 171 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Os procedimentos desvendam um aparato organizacional, com “jurys constituídos, em cada séde do concelho, vogaes amoviveis designados pelos respectivos presidentes, de entre os nomeados” (Boletim Oficial, n.º 28, 15 de Julho de 1911, p. 237), sem a presença dos professores dos alunos avaliados. “Acontece a cada passo que, nos exames feitos actualmente, as pobres crianças deixam de satisfazer a perguntas várias sobre matérias que aliás não ignoram. O examinador propôs-lhes as questões a resolver, por exemplo, mas dum modo muitas vezes inteiramente diverso daquêle a que estão habituadas e não teem o desenvolvimento bastante para raciocinarem sobre o caso, distinguirem o sentido das palavras e frases e apreenderem portanto o sentido das interrogações formuladas. E, as pobres crianças inculcam assim ignorar o que aliás não desconhecem muitas vezes.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 164, 5 de Maio de 1914, p. 3) Podemos assistir ao cerimonial do “primeiro dia de exames das meninas”, através do jornal A Voz de Cabo Verde: “Fomos, no dia 10, assistir ao primeiro dia de exames das meninas. A sala estava cheia de senhoras e crianças de ambos os sexos, o que dava ao recinto um aspecto alegre e encantador. No fundo da sala, abancados a uma mesa, o júri, em frente a este, como pequeninas rés que esperam julgamento, sete criancinhas, qual delas mais interessante, risonhas, despreocupadas, dando ao publico e aos pais presentes a certeza de que sairão triunfantes das provas por que iam passar. Começou o exame pouco depois das 12 horas. A distintíssima professora D. Kilda Vieira Teixeira, atenta aos mais pequenos pormenores e palavras da examinanda, fixa-a como se lhe quizesse transmitir toda a sua inteligencia e se a examinanda lhe dirige um olhar, depois de satisfazer uma exigencia do júri, ela sorri maternalmente, sorriso que traduz estas palavras: - Vais bem, estou contente contigo. E a criança animada, desembaraçada, satisfaz cabalmente todas as provas exigidas pelo juri. É chamada outra. Saberei corresponder ao sacrificio e trabalho que teve por mim? E a professora, acariciando-a com o seu olhar, sorri e, com um pequeno movimento de cabeça, parece dizer: - Tenho plena confiança em ti. A terceira examinanda, tão pequenina é, que foi preciso por-lhe um banquinho para chegar à pedra! Concluiram os exames das sete alunas pelas 16 horas, sendo todas classificadas merecidamente com distinção. Vamos agora a umas notas tristes e outras ridiculas. Depois de começarem os exames entrou na sala a professora municipal da freguezia de N.ª Sr.ª do Monte, acompanhada de uma discipula, que oportunamente, será tambem, submetida a exame. O aparecimento dessa aluna foi motivo de risota por parte de algumas meninas, risota contagiante que se comunicou a mais crianças. 172 A construção do discurso educativo A atitude reprovativa de várias senhoras conteve essa nota desagradavel de falta de educação. Perguntamos a uma menina, qual o motivo da hilariedade. - É porque ela, naturalmente acabado o exame, vai casar. - A única razão, pois, do riso, é não ser a aluna uma criança pequenina! Inquirindo, soubemos que a camponeza apesar do seu desenvolvimento, contava apenas 15 anos! Essa é a nota triste. A ridicula é a que se segue. Tinha-nos passado a má impressão da risota, quando no meio do silêncio, que o acto exigia, ouvimos na rua, junto à porta, umas vozes de comando. Voz rouca, de laringe..... (ilegível), um soldado e um polícia civil, ladeando a porta da entrada. Tivemos a impressão de que era a defunta guarda municipal, cercando uma casa de batota! Pouco depois, entrava, triunfante, cheio de si mesmo... e de muito mais, o soba da localidade! Entrou e saiu por três vezes, mostrando-se, mas sempre com as mesmas vestes e caracterização. (…) Começaram no dia 13 os exames do 2.º gráu. O sr. João Feijó, que é um dos examinadores, e cujo procedimento tem merecido a aprovação do público, teve um gesto digno de elogio. Interrogando um aluno sobre a corografia, apresentou-lhe a carta de Portugal, ao cimo da qual estava esse pastel, que se chamou corôa. Indicando aquilo ao examinando, perguntou-lhe: - Sabe o que é isto? Antes que o aluno tivesse tempo de responder, disse: - Não é coisa alguma, nem cá devia estar. E, com a ponta de um canivete fez desaparecer o pastel. Estiveram tentados a aplaudir o procedimento com um bravo, mas contivemo-nos para não perturbar o exame.” (N.º 55, 2 de Setembro de 1912, p. 3) A encenação está dividida em quatro actos. No prelúdio, assistimos à prova de avaliação das “pequeninas rés que esperam julgamento”, perante o júri “abancado a uma mesa, no fundo da sala”, onde se cruzam relações de cumplicidade entre alunas e professoras, mediante um conjunto de códigos: olhares, sorrisos maternais, aparente despreocupação das meninas. Não falta o momento emotivo, protagonizado pela “terceira examinada, tão pequenina, que foi preciso por-lhe um banquinho para chegar á pedra!” No segundo acto, em tom de tragicomédia, a menina-mulher apresenta-se a exame. No terceiro, o poder irrompe pela sala “sempre com as mesmas vestes e caracterização”. O epílogo é marcado pela bajulação ao poder, com os “aplausos contidos para não perturbar a solenidade do exame”. Sobre as arbitrariedades cometidas nos exames, O Independente defendia que “as pobres crianças não podem ser victimas das malquerenças ou das invejas d’esta ou d’aquella personalidade” (n.º 16, 27 de Agosto de 1912, p. 4). 173 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) O papel do professor no processo de avaliação dos alunos (incluindo o acto exame) foi matéria de debate. Questionava-se também a atribuição de recompensas pecuniárias aos docentes, pelo desempenho dos alunos, traduzido em aprovações no fim do ano lectivo. “Em princípio, deverei diser que não concordo com a distribuição de premios pecuniarios aos professores por cada aprovação que obtiverem para os seus alunos. Estes premios, instituídos por decreto de 17 de Agosto de 1912 para os professores diplomados pelas escolas da metropole e por portaria provincial nº 239 de 1 de Desembro de 1909 para os outros professores, muito embora satisfaçam ao fim para que foram creados, isto é, evidenciar e animar o zelo dos professores e servir-lhes de estimulo e torna-los diligentes, recáe por veses no abuso de se submeteram a exame, alunos que vão procurar aprovação unicamente fiados no bamburrio da sorte.” (Ofício da Câmara Municipal de Santa Catarina, 14 de Junho de 1913, pp. 1-2)226 “Nos ultimos anos, o governo tem mandado adoptar como norma, nos exames finais de instrução primária, a exclusão dos professores dos alunos examinandos na constituição dos respectivos júris. Assim nenhum professor pode examinar os seus discípulos. Reconhecemos que uma bôa intenção ditou essa regra ultimamente introduzida na constituição dos júris, no intuito de evitar favoritismos ou escandalosas protecções, dado que pudessem ter lugar. Prevenir possíveis abusos ou entendimentos prejudiciais em actos de tal ordem representa uma bôa praxe, digna de louvor, se considerarmos o caso sob o ponto de vista da sua significação intrínseca. Contudo seguimos opinião contrária. Entendemos que tal norma se devia adoptar nos exames de instrução secundária e não dos da primária. (...) A criança, que faz os seus exames primários não pode, bem apreciadas as cousas, dispensar a intervenção, nos júris, do respectivo professor. Este conviveu com ela muito tempo, estudou-lhe as qualidades escolares, mediu-lhe bem a capacidade absoluta ou relativa, ficou conhecendo as suas tendências ou aptidões, penetrou, às vezes, todos os segredos da sua mentalidade, em evolução, seguindo de perto o desabrochar das suas faculdades, e adquiriu um conhecimento mais seguro, pela observação constante e íntima, da sua psicologia. Só o seu mestre sabe o que ela pode dar. Ensinou-a, segundo um dado método na sua preparação, habituou-a a um certo método de interrogar e de expôr. Só seu mestre lhe conhece os segredos; êle e só êle é capaz de a fazer brilhar, num exame público, em toda a plenitude do seu saber incipiente; êle e só êle, sabe arrancar scintilações a êsse cérebro infantil, êle, cujo espírito foi como que o sol criador e vivificante que operou a primeira eclosão dessa flôr melindrosa.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 164, 5 de Maio de 1914, p. 3) 226 Cx.ª 664. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 174 A construção do discurso educativo A querela desencadeada suscitou questões deontológicas, que foram modelando a identidade profissional do docente: “boa praxe”/ética profissional versus “favoritismo”/ venalidade. O ritual do exame pautava-se por normas e prescrições inclusas nas “Instruções relativas aos exames” (25 de Junho de 1915; 11 de Junho de 1918): “I – Os exames do lº e 2º graus são dirigidos pelo professor proponente, quando o aluno for de escolas oficiais e por um professor oficial, nomeado pelo delegado do Inspector de Instrução Pública quando se tratar de aluno estranho as ditas escolas; e versarão sobre exercícios de ler, escrever o contar. Estes delegados assistirão sempre aos actos de exame. Quando o aluno for apresentado a exame por professor não oficial, não fará o professor proponente parte do júri, podendo assistir ao exame sem intervir. Os delegados do inspector são aos administradores dos concelhos, ou os substitutos destes, nas sedes respectivas; fóra dessas sédes, as pessoas que os mesmos administradores designarem. II – Quando pelo número de alunos a examinar se verificar que não podem estar terminados os exames no último dia útil do mês de Agosto, poderão os júris nomeados duplicar em cada dia o serviço; bem como poderão funcionar duas mesas nas sedes dos concelhos onde for grande o numero de examinandos, se o inspector ou o seu delegado assim entenderem necessário. Quando os alunos a examinar sejam do sexo feminino fara parte do júri a respectiva professora, sendo oficial. III – Perante cada júri devem ser examinados por dia de provas escritas tantos alunos quantos forem compatíveis com a capacidade da sala e a conveniente separação que se deve manter nestes casos, devendo as provas ser prestadas no turno da manhã, entre as 8 e 11 horas; ao mesmo tempo, poderão prestar provas orais os alunos que já tenham satisfeito à prova escrita; serão chamados pela ordem da sua inscrição na pauta.” (Supl. nº 10 ao Boletim Oficial, n.º 25, 26 de Junho de 1917, pp. 2-3) O exame sancionava a avaliação dos alunos e o desempenho profissional dos mestres. A (des) valorização e a reputação do professor, dimensionadas pelos resultados dos alunos, constituíam matéria noticiosa. Em caso de insucesso, mau desempenho profissional: “A escola municipal que funciona na povoação da Ribeira da Barca, freguesia de Santa Catarina, durante três anos lectivos, consecutivos, apenas habilitou dois alunos que submeteu a exame, por isso chamo a atenção da Câmara e da Junta Local da Instrução deste concelho para o que vou escrever, que demonstra que não tem o professor da referida escóla correspondido ao sacrifício que a Câmara vem fazendo para manter a escola a seu cargo. Alunos apresentados a exame em 1914/1915 – 2; idem 1915/1916 – 0; idem 1916-1917 – 0. Despesas com a escola: Ordenado do professor em 1914-1915 …………..…. 300$00 48$00 Renda de casa no mesmo ano ……………...………. 6$00 Gratificação por 2 alunos …………………...……… 175 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Ordenado do professor em 1915-1916 …………...… 300$00 Renda de casa no mesmo ano ……………………… 48$00 Ordenado do professor em 1916-1917 ………...…… 300$00 Renda de casa no mesmo ano ……………………… 48$00 Total …………………………………...…………… 1050$00 Ou sejam 525$00 por cada aluno apresentado a exame pelo professor da escola municipal da Ribeira da Barca, não entrando em conta a despesa feita com o expediente da mesma escola, durante esse período. Que uma escóla aberta num ponto onde, anteriormente, não existia escóla, deixe de apresentar, em dois anos consecutivos, alunos a exame, tolera-se: mas que um professor que vem regendo uma escóla, durante alguns anos, sem gosar licença, deixe de apresentar alunos a exame, não se compreende e muito menos se deve ainda admitir que a Câmara da presidência do sr. Alfredo Alves Neves, conhecedora do assunto e sem que possa ser acusada de favoritismos, tenha conservado sôbre essa escóla tam profundo e condenável silêncio. ¿Um professor nestas condições tem direito a pedir ao govêrno a sua confirmação?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 313, 5 de Outubro de 1917, p. 3) Em caso de bons resultados no exame, a família expressava reconhecimento: “José Rodrigues Mascarenhas vem por este meio testemunhar os seus sentimentos de gratidão à ex.ma sr.ª D. Margarida Gomes Correia, digníssima professora municipal da freguesia de S. Lourenço dos Órgãos, pela maneira desinteressada como se dignou tratar e leccionar a sua filha Palmira, na qualidade de sua aluna interna, pois que em tão curto espaço de tempo se desenvolveu consideravelmente, tendo ficado distinta no seu primeiro exame ultimamente realisado na Praia, de que obteve 16 valores. E sumamente reconhecido vem em publico patentear a sua gratidão. Tambem estou altamente reconhecido ao ex.mo sr. Francisco Carvalhal pelo empenho e boa vontade com que leccionou seus filhos Manuel e Frederico, durante nove meses, habilitando-os ao exame, de que ficaram aprovados, vem em publico reconhecidamente patentear por este meio a sua eterna gratidão. Achada do Mato, 28 de Agosto de 1914.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 71, 3 de Setembro de 1914, p. 3) O poder político detentor do sistema duplo de gratificação-sanção, ao mesmo tempo que penalizava os professores pelos deficientes resultados (reprovações), homenageava-os com louvores, em caso de êxito dos discípulos (aprovações). “Tendo em consideração o que me representou o presidente da Junta Local de Instrução do concelho da Ilha de S. Vicente acerca dos bons ofícios prestados pela professora de 2.ª classe, Olímpia Esmeralda Lima, que ao serviço da Instrução Pública tem dedicado todo o seu zêlo e interêsse, leccionando fora das horas regulamentares, tendo apresentado a exame 14 crianças, das quais 9 ficaram distintas e 5 plenamente aprovadas. Hei por conveniente, ouvido o Conselho de Instrução Pública, louvar a mencionada professora de 2.ª classe, Olímpia Esmeralda Lima, pelo zêlo e interêsse que tem dispensado ao serviço de Instrução Pública, na cidade de Mindêlo.” (Boletim Oficial, n.º 2, 10 Janeiro 1925, p. 15) 176 A construção do discurso educativo Classificar e sancionar Os exames de instrução primária, no termo do 1º e do 2º grau da instrução primária, constavam de provas escritas e orais. As provas escritas (1º grau) precediam as orais e eram prestadas no mesmo dia. As provas escritas (2º grau) precediam as orais, mas eram prestadas em dias distintos (Instruções relativas aos exames de instrução primária, V, 11 de Junho de 1918227). Figura 27. Prova escrita do exame de instrução primária do 1º grau 228 Instruções relativas aos exames do 1º grau229: • Escrita por ditado de um trecho de dez até quinze linhas • Caligrafia em cursivo • Prática de uma divisão de números decimais com a respectiva prova 227 Supl. nº 9 ao Boletim Oficial, n.º 23, 12 de Junho 1918, pp. 2-3. Cx.ª 669. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 229 Os modelos de exames de instrução primária estão descritos nas “Instruções relativas aos exames”, VI e XII. 228 177 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Figura 28. Prova escrita do exame de instrução primária do 2º grau 230 Instruções relativas aos exames do 2º grau: • Escrita por ditado de um trecho de dez até quinze linhas • Caligrafia em cursivo • Resolução de um problema de uso comum, de enunciado claro, e de uma divisão de números inteiros ou decimais com as respectivas provas • Cópia em papel quadriculado ou ponteado de uma das figuras dos exemplares adoptados para o ensino do desenho. 230 Cx.ª 669. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 178 A construção do discurso educativo “As provas orais231 [do exame de instrução primária de 1.º grau] constavam de: a) Leitura corrente em voz alta, de vinte a trinta linhas de um trecho do livro adoptado para exercícios de leitura na 3.ª classe. b) Interpretação do texto lido, sentido das palavras, divisão em sílabas, classificação das palavras quanto ao número de sílabas, divisão das sílabas em fonemas e valor dêstes. c) Exercícios práticos no quadro preto e interrogatório sôbre aritmética e sistema métrico. d) Interrogatório, o mais prático possível, sôbre agricultura, referente às culturas da região onde os exames se realizarem.” (Instruções relativas aos exames). “As provas orais [do exame de instrução primária de 2.ºgrau] constavam de: a) Leitura correcta, em voz alta, de um trecho de vinte a trinta linhas do livro adoptado para os exercícios de leitura corrente na 4.ª classe do ensino primário. b) Inteligência do sentido das palavras e frases, de alguns periodos do trecho lido e correlativo exercício de gramática prático e elementar. c) Exercícios práticos no quadro preto e interrogatório sôbre aritmética, geometria e sistema métrico. d) Interrogatório sôbre corografia e história pátria, acompanhado de indicações no mapa do território da República, ilhas adjacentes e possessões ultramarinas, ou nos quadros adoptados para o ensino dessas matérias. e) Interrogatório sôbre rudimentos de sciências naturais com aplicação à agricultura e à higiene. f) Interrogatório sôbre preceitos de moral e instrução cívica.” (Idem) O processo avaliativo era suportado por dispositivos de produção de distinções e hierarquias sociais, num sistema de registo de notas valorativas (quantitativas e qualitativas). O julgamento das provas de exame contemplava um escalonamento preciso, com os correspondentes juízos de valor. “[Nas provas escritas] os examinandos serão classificados de optimo, bom, suficiente e reprovado. a) Terá classificação de optimo o que obtiver a maioria de optimos em ambas as provas tendo sido as outras classificadas de bom. b) Terá classificação de bom o que tiver alcançado maioria de bons, embora tenha alguma com a classificação de optimo e as restantes de suficiente. c) Terá classificação de suficiente o que alcançar maioria de notas de suficiente, embora tenha algumas de bom ou optimo, mas nenhuma classificada de mediocre ou mau. d) Fica reprovado o examinando que obtiver a classificação de mau ou mediocre (…). e) O resultado da votação é lançado na prova escrita respectiva que será rubricada por todos os membros do júri e tornado publico por meio de editais.” (Instruções, X) 231 Segundo as Instruções relativas aos exames, XXIV, as provas orais não eram públicas, “podem, porém, assistir os pais, tutores ou pessôas encarregadas da educação dos alunos sujeitos ao exame”. 179 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) O processo culminava com a atribuição de uma nota final: reprovado, aprovado e aprovado com distinção. Figura 29 Resultados finais das provas escritas (Provas escritas de exames do 1º e 2º graus da instrução primária232) O exame faz a individualidade entrar num novo campo documental (Ó, 2003, p. 49) e deixa atrás de si “um arquivo ordenado e minucioso que se constitui no plano dos corpos e dos dias” (Foucault, 1975, pp. 221-222). Desde as propostas de provas de exame aos registos dos resultados finais, os procedimentos foram constituindo um cúmulo processual: “O resultado final das votações é lançado no livro dos termos dos exames de instrução primária e assinado pelo júri e é, em nota assinada pelo presidente, fixado à porta do edifício, onde se realizam as provas, lavrando os respectivos termos de exame o professor oficial assistente. As provas escritas destes exames, bem como as respectivas pautas, serão enviadas no fim dos exames à Secretaria Geral, na capital da província, e as administrações de 232 Cx.ª 669. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 180 A construção do discurso educativo concelho nas demais ilhas, em cujos arquivos respectivamente serão conservados durante dois anos. Os livros dos termos de exames são arquivados na Secretaria Geral, e secretarias das respectivas administrações de concelho, e serão, durante a época dos mesmos exames, confiados à responsabilidade e guarda dos delegados do Inspector. Todos os livros serão rubricados e assinados nas folhas de abertura e encerramento, na capital da província pelo Secretário Geral, Inspector da Instrução Pública, e nos demais concelhos pêlos delegados do mesmo Inspector, indicados nas presentes instruções; dêsses livros serão extraídas as certidões que forem requisitadas.” (Supl. nº 10 ao Boletim Oficial, n.º 25, 26 de Junho de 1917, pp. 2-3) Acontecimento social O exame tinha centralidade social e estatuto de evento, com honras de divulgação nos jornais, com particular incidência nos meses de Julho a Setembro233: Figura 30. Notícia de exames de instrução primária do 2º grau (O Independente, 27 de Agosto de 1912, p. 4) 233 Em artigo na revista Contacto (Ed. Universidade Jean Piaget de Cabo Verde), apurámos que as notícias sobre a avaliação da aprendizagem eram sazonais. Notícias publicadas nos meses de Julho e Setembro: O Futuro de Cabo Verde: 75%; A Voz de Cabo Verde: 71,4% (Carvalho, 2006). 181 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A imprensa concedia destaque especial aos exames concluídos com distinção, por “gentis meninos e meninas”, concedendo um tratamento diferenciado, em função da classe social de origem. “Fez exame de instrução primária, 1º grau, ficando aprovado com distinção, 15 valores, o menino Sotto Barbosa da Silva, filho do nosso amigo, Sr. José Roberto da Silva. Também fiou aprovado com 16 valores, o menino António Monteiro Lopes filho do nosso amigo, Sr. tenente Lopes. No Porto fizeram exames de 1.º grau, as meninas Maria e Isaura, gentis filhitas do nosso amigo Sr. alferes Salvador Guimarães. Ficou aprovado com 14 valores o menino Cândido Medina Vasconcelos, filho do nosso amigo, Sr. Luiz Barbosa Vasconcellos. A todos os nossos parabéns.” (O Progresso, n.º 7, 15 de Agosto de 1912, p. 3) Surge uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status a sua própria individualidade (Foucault, 1999, p. 154). A projecção social do exame – pelo aparato organizativo – conferia-lhe “dignidade” de evento prestigiante para as comunidades, que disputavam a sua realização. “A requerimento dos pais dos alunos da escola oficial do Paul, regida pelo professor Manuel Silva Almeida, determinou o Govêrno que os exames fossem feitos nesta localidade. Com efeito e com grande satisfação dos paulenses a êles se procederam nos dias 14, 15, 16, 18 e 19 dêste mês, tendo-se examinado 41 alunos, que durante o ano lectivo foram lecionados pelo referido professor, que exuberantemente tem provado a sua competência e vocação para o magistério. Em igual mês do ano passado, examinaram-se, na séde do concelho, na Ponta do Sol, 19 alunos de 1º e 2º graus de instrução primária, dando o mais profícuo resultado, pois havia assumido o cargo em Fevereiro do dito ano e achara os estudantes em grande atrazo, devido aos impedimentos do professor transato; nêste ano, arremessou para a banca dos exames 42 alunos de ambos os sexos, dos quais 41 foram examinados. (...) Presidiu o júri o muito sério e brioso capitão Serafim José de Oliveira, caracterisado sôbre tudo pela independência com que ha em todos os actos da sua vida, sendo substituído, no dia 16, pelo competentíssimo dr. Colaço. Faz parte do júri o professor municipal, o sr. João Miranda, que argumenta com clareza e sciência, mostrando que possui conhecimentos mais que ordinários. Tão grande trabalho – habilitar 42 alunos, em um ano, – é facto virgem na história das escolas desta ilha, por isso, sr. redactor, trago êste facto ás colunas do seu acreditado jornal, e peço-lhe, em nome do povo do Paul, faço valer esta razão perante os poderes superiores para que vejam que é dêstes professores que nós queremos e nos convém, e se compenetrem e premiem tão relevante serviço. Santo Antão, Paul, 30-8-912.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 20, 11 de Setembro de 1913 p.3) 182 A construção do discurso educativo O clima emocional, que envolvia o acto do exame, foi recriado por Baltasar Lopes, no romance Chiquinho: “Tói Mulato andava muito triste por não ter fato novo para vestir no dia do exame, na vila. Ele mesmo botou umas chapas nas calças de cotim militar. Nos últimos dias o professor dava-nos aulas extraordinárias à tarde, intensificando a nossa preparação em Aritmética e História. Levei para Estância calção azul e blusa branca, em que mamãe bordou os emblemas da fé, esperança e caridade. Todos os meus companheiros se reuniram em nossa casa para irmos juntos para a vila. Os pais dos alunos connosco. Vestiam os seus trajos domingueiros, os homens de fato de casimira, vindos da América (...). Tói Mulato é que foi o herói do dia. (...) À tarde tivemos festa de exame. E como Nhá Totonha não podia festejar a Distinção de Tói Mulato, ele comeu um bolo de mel em nossa casa, guardou outro para ela e foi cedo para casa porque a dona era velha e não podia ficar muito tempo sòzinha.” (1970, pp. 72-73) Indicadores de (in) sucesso Na instrução primária, o insucesso era elevado. No 1º grau, a taxa de classificações de insuficiente (com consequência na retenção dos alunos) atingiu 56,9%234 (1911). Os alunos do 2º grau representavam, apenas, 8% do total dos efectivos do ensino elementar, o que atesta a dimensão das desistências, abandonos e reprovações. Após esta depuração, a percentagem de notas de insuficiente235, no 2º grau, diminuiu ligeiramente (49,2%). Gráfico 12 – Resultados da avaliação final, 1º grau Gráfico 13 – Resultados da avaliação final, 2º grau 13,3% 26,5% Bom Sof 56,9% 29,8% Bom 49,2% Sof Insuf Insuf 24,2% 234 235 Resultados dos alunos do 1.º grau: Bom – 649; Sofrível – 1.455 e Insuficiente – 2.780. Resultados dos alunos do 2.º grau: Bom – 104; Sofrível – 95 e insuficiente – 193. 183 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A transição desigual a outra classe era obtida por mecanismos de filtragem e de exclusão até ao acto final do exame, propiciado a uma minoria das crianças escolarizadas. Com os dados fornecidos pelos mapas estatísticos, traçámos o perfil evolutivo dos resultados da avaliação, no fim do ano escolar, com marcos referenciais nos anos de 1912, 1914 e 1916: Gráfico 14 – Evolução das classificações de insuficiente, 1º grau raparigas rapazes 0,8 0,6 0,4 0,2 0 1912 1914 1915 Gráfico 15 – Evolução das classificações de insuficiente, 2º grau raparigas rapazes 0,5 0,3 0,1 1912 1914 1915 -0,1 No 1º grau da instrução primária, as meninas conseguiram melhores resultados (taxa média de insuficiente: 48,5%). Similar situação no 2º grau (1911/12), que se alterou, a posteriori, tendo os alunos do sexo masculino um melhor aproveitamento escolar (média de insuficiente: alunas, 33,1%; alunos, 30,5%). 184 A construção do discurso educativo “As meninas, sobretudo, distinguiram-se. Notou-se isto com verdadeiro espírito de justiça, sendo, pois, de crêr que a digna professora se sinta justamente recompensada nos eficazes esforços que decerto não deixaram de empregar para o conseguimento dos brilhantes resultados obtidos: houve 6 distinções, tendo ficado com 16 valores uma examinanda no 1º grau, a pequenita Irene. Quanto aos rapazes, ninguém deixaria de notar que, em grande parte, manifestaram algum embaraço e acanhamento. Tem-se verificado que os rapazes, geralmente, são mais acanhados e têem menos vivacidade de espirito que as meninas, e esta circunstancia mais se revela quando se trate de exames; o que, de resto, não admira; porque parece estar fisiologicamente provado que nos rapazes é mais moroso que nas meninas o desenvolvimento fisico e intelectual. Feito entretanto o desconto do natural acanhamento dos examinandos, pareceu-me, ainda assim estarem melhor habilitadas as examinandas.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 58, 22 de Setembro de 1912, p. 3) No termo de uma depuração muito selectiva, os exames – com projecção social – apresentavam baixas taxas de reprovação (6,4%), cabendo às meninas os melhores resultados (reprovações, 1,2%). Em síntese O quinto capítulo, que rematamos, apresenta o mapeamento das manifestações internas da cultura escolar, perspectivadas numa pluralidade de dimensões e significados: o discurso sobre a (in) disciplina (5.1.), patente nas representações e práticas da acção educativa, nas rotinas e inovações (5.2.), recriadas em aparatos pedagógicos (5.3), que condicionaram os mecanismos de diferenciação e de exclusão dos alunos (5.4.). 185 6. Identidade profissional do docente ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Abrimos o capítulo com o pensamento de Gramsci (evocado por Rogério Fernandes), que considera o professor “um intelectual orgânico da sociedade civil, seja da cultura hegemónica em que é amassada a cultura escolar, seja da cultura não hegemónica que, produzida no exterior da escola, exerce sobre a cultura escolar uma acção pressionante, acabando a prazo por contribuir para a sua transformação” (2004a, p. 733). O perfil do professor é, portanto, tributário de duas dimensões culturais: “hegemónica” na escola e “não hegemónica” na sociedade. António Nóvoa situa a construção da identidade profissional dos docentes num “tempo de muitas certezas e de poucas hesitações, sobretudo no que diz respeito a uma crença quase ilimitada nas potencialidades da escola”: “A educação pode tudo, pois ela até consegue fazer com que «os ursos dancem». Esta frase emblemática de Leibnitz pode bem servir de ilustração à confiança total que os pedagogos portugueses dos finais do século passado [século XIX] /princípios deste século depositavam na educação escolar. É a época da consolidação do estatuto profissional dos professores, consolidação que se faz em simultâneo com a institucionalização do modelo estatal de ensino, tal como existe ainda nos nossos dias. O estatuto dos professores constrói-se neste período histórico em que a uma visão da evolução impregnada da ideologia de um progresso constante e inexorável, correspondia uma imagem da escola como «templo da luz» e «redentora da humanidade»” (1991, p. 6) Em Cabo Verde prevalecia a imagem da escola, “um templo da luz”, do magistério, “um verdadeiro sacerdócio” e do professor primário, “um apóstolo do bem”: “Augusto Miranda é um espirito de combate, é um lutador incansavel; mas luta pelo mais sublime das ideias e pela mais nobre das causas: o engrandecimento da sua terra e o progresso do seu povo. É um apóstolo do Bem. E por isso ao terminarmos estas modestas linhas que aqui lhe consagramos em homenagem de admiração a que tem jús pelo seu mérito absoluto e pelo seu valor real, como o Dante lhe diremos: Segue il tuo corso, lascia dire al gente.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 12, 17 de Julho de 1913, p. 3) A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) “O cargo do professor não póde nem deve ser uma sinecura para afilhados incompetentes, o magistério – onde, felizmente, até hoje teem predominado os caracteres nobres, que dignificam e exaltam o seu cargo – não póde nem deve transformar-se em vasadoiro de desqualificados, de crapulosos e de ignorantes. O magistério deve ser um verdadeiro sacerdócio e, como tal, deverá ser desempenhado por quem tenha, além da idoneidade moral, que é essencial, a capacidade profissional, que é indispensável. Não póde quem quer arvorar-se em professor, mas sim quem tenha para isso o critério superior do ensino, a dedicação extrema pelos filhos da sua terra – e nesta designação englobâmos todos os portugueses, sejam quais forem as latitudes em que hajam nascido –, a tenacidade e a paciência precisas para cultivar as inteligências juvenis, que lhe são confiadas como flores em botão. O magistério não é uma sinecura em que se deva investir o primeiro parvenu, porque necessita de uma colocação, de ganhar a vida, de mais uma achega para arredondar o bolo dos seus proventos: – é uma profissão nobilissima que apenas se deve dar a quem de direito.” (O Futuro de Cabo Verde, nº 7, 12 de Junho de 1913, p.1) Os docentes detinham prestígio social, particularmente no meio rural. Sob a acção da Revolução de 1910, vão tornar-se sérios concorrentes dos curas e disputar pouco a pouco a influência que estes detinham na vida das populações (Nóvoa, 1987, p. 606). “Ensinai com advertencia aos vossos filhos, pupilos ou criados, o módo como devem comportar-se na escóla e sôbre a maneira respeitosa com que êles devem permanecer diante do seu professôr, instruindo-os com persistencia que o mestre é o segundo pai, e que assim como o céu clama vingança e punição contra aqueles que desobedecem aos seus pais que são os autores dos seus dias, assim tambem o faz contra os que causam desespero ao seu mestre e que, se aqueles os alimentam com o pão corporal, este os sustenta com o salutaríssimo pão do espírito que jamais os abandonará, e lhes limpará as sendas que conduzem para a eternidade.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 248, 19 de Junho de 1916, pp. 2-3) Os professores tradicionalmente representados nas fileiras da corrente liberal mais pura e generosa (Fernandes, 2004d, p. 770) interpretaram o advento da República, como a era do progresso. Docentes como Pedro Cardoso, José Lopes, Hugo Reis Borges, para não falar das gerações mais novas, estudantes em Coimbra como Mário Ferro (...), todos se tornaram republicanos (Oliveira, 1998, p. 237). O mito da escola, factor de evolução social, modelou um novo perfil profissional: “um dos maiores propulsores do progresso, com a “missão sagrada, sublime, nobilíssima; mas laboriosa e árdua de formar o homem novo” (A Voz de Cabo Verde, n.º 333, 1 de Março de 1918, p. 1). “O professor ocupa um lugar de destaque na escala da vida social. É êle que tem por dever e encargo do enfadonho e espinhoso mister de preparar os homens de amanhã; é êle que se incumbe de lançar a pedra fundamental da sociedade futura, apontando, com 188 A construção do discurso educativo desvelo, aqueles que nos hão-de suceder tanto no campo moral como material; é ele que nos centros das povoações, nos campos e nos lugarejos, à semelhança de um faról como um facho luminôso, espalha os brilhantes raios em todos os sentidos, ilumina os espíritos ainda nascentes das criancinhas pobres e ricas, ilucidando-as com nitidez para, no futuro, virem a ser bons funcionários da República, bons espôsos e cidadãos, capazes de se sacrificarem em pról da Pátria.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 232, 1 de Março de 1916, p. 3) No 1º Congresso da Associação de Professores de Portugal (1924), Álvaro Viana de Lemos caracterizou o docente como “uma espécie de mediador (ou de regulador) da actividade social” (Nóvoa, 1987, p. 608). O novo paradigma pressupunha competências profissionais específicas: ser psicólogo e higienista. “Psicólogo, conhece bem a fundo o grau de inteligencia dos educandos, as suas qualidades, os seus defeitos, tanto físicos como intelectuais e morais, a sua sensibilidade, a sua tendência, o seu caracter. Higienista, distribui trabalhos, designa jogos, lecciona ginástica, tudo em proporção com a idade, estado de saúde, robustês e desenvolvimento intelectual e físico de cada um. Pobre professor primário! Raras são as vozes que se levantam, clamando por que se lhe dê uma remuneração condigna; mas ouve-se dizer e leem-se a cada passo, ácêrca dele, frazes com estas: «É a alavanca do progresso». «É o educador dos homens de amanhã». «É o alicerce de um grande edifício». «O professor primário tem o seu quinhão em todas as glórias da Pátria» etc., etc., etc»” (A Voz de Cabo Verde, n.º 333, 1 de Março de 1918, p. 1) A realidade contrapunha-se à “utopia educativa”: nem o professor assumiu o papel de sacerdote da razão236, nem a sociedade foi expurgada da imagem do mestre-escola (à qual está associada a miséria e a incompetência, a submissão aos poderes religiosos e aos notáveis locais, a ausência de um estatuto e de um reconhecimento social)” (Nóvoa, 1989, p. 587). Na selecção dos professores campeava o favoritismo, com desrespeito pelas qualidades morais e cívicas inerentes ao exercício profissional. “Hoje viemos, não atacar a classe do professorado, que tem elementos a todos os titulos respeitaveis, homens que pela sua inteligencia, honradez e comportamento moral e civil estão acima de qualquer suspeita da nossa parte, mas sim demonstrar que a par dêsses homens que honram o professorado cabo-verdiano, existem outros que são a vergonha e a desonra de tão nobre classe, para a qual só deveriam ser nomeados 236 Expressão usada por António Nóvoa em O tempo de ser professor (1991), p. 12. 189 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) individuos que apresentassem limpa a certidão do registo criminal e que tivessem algumas habilitações literarias. Tal não se tem observado nesta ilha, como passamos a provar: (...) crime de estupro de uma menor, tendo cumprido sómente parte da prisão, na cadeia civil desta cidade, por ter aproveitado de um indulto no tempo da Monarquia... Professor e regedor! Cumpriu degredo em Angola por ter assassinado um conterrâneo... e outros, pela sua incompetência, não tendo alguns mais do que a instrução primaria, e dos quais não citamos os nomes porque êles não teem culpa, mas sim quem os nomeou. Agora cabe-nos a vez de perguntar para que se exigem certidões de registo criminal e de comportamento moral e civil, nos concursos para provimento dos logares de professores? Será sómente para dar a ganhar êsses cobres ao escrivão, ou para o júri classificador ver?...” (O Eco d’África, n.º 11, 15 de Fevereiro de 1915, p. 2) Figura 31. O perfil do professor de posto (Excerto de relatório, S. Jorge, ilha do Fogo, 1 de Setembro de 1916237) A política republicana em matéria religiosa238 não destronou a hegemonia social dos párocos. A Voz de Cabo Verde noticiou situações de abuso de poder e influências lesivas da dimensão ético-profissional: “A escola de 2º grau é frequentada por meia duzia de alumnos, leccionadas pelo filho do professor padre José António dos Santos. O filho d’este professor não tem competencia para leccionar o 2º grau, e por isso, só lecciona o primeiro. Isto assim não pode continuar, e visto o proprietario do logar não poder, por motivo que ignoramos, cumprir o seu cargo pelo qual percebe a quantia de 25$000 réis mensaes, compete ao governo acabar com este abuso, substituindo quanto antes este professor.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 17, 11 de Dezembro de 1911, p. 2) 237 Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. Em 27 de Outubro de 1910, foi determinada a extinção do ensino da doutrina cristã nas escolas primárias e normais primárias (Carvalho, 2001, p. 660). 238 190 A construção do discurso educativo “O professorado, em Cabo Verde, é um emprego cujo fim é oferecer esteios económicos a rapazes mais ou menos simpáticos ou influentes. É magra a côngrua da ilha de Santa Luzia? Faz-se o padre professor e, com uns tantos reis, já o nosso prestante e amável reverendo, bem visto no paço episcopal, com parentela rija em eleições, póde desafogadamente fazer face aos encargos domésticos...” (Eugénio Tavares. A Voz de Cabo Verde, n.º 217, 1 de Novembro de 1915, p. 1) Condição de funcionário público O mito da igualdade de oportunidades e da democratização pela escola, era mais forte que nunca e os professores não aceitavam a condição de “humildes funcionários públicos” (Nóvoa, 1987, p. 588). A reforma educativa de 1911 prometia “aumentos sucessivos que aos professores primarios a Republica irá fazendo nos seus ordenados, [que] contribuirão grandemente para tornar mais solida, mais respeitavel e mais bella, a sua acção moral, dentro da escola” (preâmbulo, III, Decreto de 29 de Março239). Na colónia de Cabo Verde, o corpo docente da instrução primária foi fixado pelo Decreto de 17 de Agosto de 1912: “Artigo 1º É fixado em quarenta o numero de professores e em onze o de professoras do ensino primario da provincia de Cabo Verde, sendo os vencimentos de categoria, respectivamente, de 300$000 réis e 240$000 réis. (...) Art. 4º Aos professores e professoras diplomados pelas escolas da metrópole, que não habitem em edifícios da escola ou casas fornecidas pelo Estado, será abonado um subsídio para renda de casa, abono que obedecerá ao preceituado na portaria provincial n.º 321, de 15 de Setembro de 1911. Art. 5º Aos professores e professoras diplomados pelas escolas da metropole será abonada a gratificação de 5$000 réis por cada alumno que annualmente apresentarem a exame e ficar approvado.” (Boletim Oficial n.º 38, 21 de Setembro de 1912, p. 1) A análise comparativa do estatuto remuneratório da classe docente, na metrópole e na colónia, evidencia a subalternidade dos professores cabo-verdianos. 239 Diário do Governo, n.º 73, 30 de Março de 1911, p. 1.342. 191 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Quadro 47 – Remunerações e regalias dos professores da instrução primária (metrópole e colónia) Matéria Quadro provisório da classe docente (Decreto de 29 de Março de 1911) Hierarquização Divisão dos professores em três classes Vencimentos 1ª classe Categoria: 250$000; exercício: 50$000 2ª classe Categoria: 200$000; exercício: 40$000 3ª classe Categoria: 150$000; exercício: 30$000 Diferenciação de género Subsídios Quadro docente de Cabo Verde (Decreto de 17 de Agosto de 1912) Vencimentos de categoria240: Professores: 300$000 Professoras: 240$000 Párocos: gratificação anual de 300$000 Composição: 40 professores e 11 professoras Salários das professoras: redução de 25%. Subsídios de residência: 30$000 Subsídios para renda de casa: 50$000 (sedes dos concelhos, 1.ª classe) 30$000 (sedes de outros concelhos) 25$000 (outras localidades). Subsídios de renda de casa para os professores diplomados pelas escolas da metrópole, que não habitem em edifícios das escolas ou casas fornecidas pelo Estado No caso português, “a ausência de discriminação entre os salários dos homens e das mulheres favoreceu a feminização do corpo docente primário” (Nóvoa, 1987, p. 596). Contrariamente, em Cabo Verde prevaleciam desigualdades no corpo docente, predominantemente masculino (1911: 74%; 1926: 61%). A mulher era vista como mão-de-obra barata: “Uma professora não diplomada, satisfaria plenamente, e esta podia-se obter ali mesmo na ilha, com a pequena gratificação de 15$000 réis mensais” (A Voz de Cabo Verde, n.º 70, 16 de Dezembro de 1912, p. 2). “Fixa o citado decreto os vencimentos de categoria de professores em 300$000 réis e o das professoras em 240$000 réis. Não se comprehende esta distinção de vencimento, que, em nosso humilde entender, deviam ser perfeitamente eguaes para os professores dos dois sexos. A elles, sem excepção, se exigem as mesmas habilitações para o ensino, as mesmas responsabilidades; estão sujeitos aos mesmos regulamentos. Não podemos, pois, perceber porque uns recebem mais e outros menos vencimentos. As diferenças de vencimentos entre classes de funccionarios de categorias e de serviços idênticos, não póde mesmo justificar-se nem ser justa.” (O Progresso, nº 14, 3 de Outubro de 1912, p. 2) 240 Segundo Aúrea Adão, “insistentemente, o professorado requer a unificação [dos vencimentos de categoria e de exercício], porque esta diferenciação traz-lhe prejuízos elevados, quando em situação de inactividade quer por doença, quer por aposentação” (1984, p. 199). 192 A construção do discurso educativo “Não vemos tambem razão plausível para que a professora primária tenha de ordenado apenas 205 escudos por mês. O serviço que ela presta é tam importante como o que se exige ao professor, sendo mesmo certo que sob o ponto de vista moral a missão da professora é ainda mais dificultoza e cheia de exigencias, se tivermos de atender ao principio de que pela educação da mulher é que se há de efectuar a grande obra da nossa vida futura de nação culta e livre. É pois justo que se estabeleça um ordenado igual ao do professor, tanto mais que o numero de escolas para o sexo feminino é muito maior que o de iguais estabelecimentos para o ensino de meninas.” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 155, 3 de Agosto de 1914, pp. 2-3) Ser cabo-verdiano ou metropolitano fazia, igualmente, diferença: “Nota-se outra excepção no decreto citado, que é menos equitativa. Referimo-nos no artigo 5º que manda abonar a gratificação de 5$000 réis por cada alumno que os professores ou professoras diplomados pela escola da metropole annualmente apresentarem a exame e ficar approvado. Ao passo que se dá aos professores diplomados pela metropole 5$000 réis, a gratificação estabelecida para os outros é de 3$000 réis, sujeita ainda a rateio, se o numero de alumnos aprovados no concelho, apresentar quantia superior à verba inscripta no orçamento municipal, porque n’ esse caso tem de ser distribuida pelos professores, e, assim, ser muito inferior a réis 3$000. Como estímulo para o ensino público, estas gratificações deviam ser perfeitamente eguaes. Aos professores e professoras diplomadas pelas escolas da metropole é abonado o subsídio para renda de casa, que é de 10$000 mensaes, nos termos da portaria provincial n.º 321 de 15 de Setembro de 1911. Outra excepção para os restantes professores da provincia. Estas disparidades representam, em média, um augmento de vencimento para os professores ou professoras diplomadas de 140$000 a 160$000 réis. Nada d´isto é justo nem provoca incentivos para o bom exercício do magisterio, a não ser muito excepcionalmente, n´aquelles que se veem peor retribuidos em um serviço perfeitamente egual e de responsabilidade identica.” (O Progresso, nº 14, 3 de Outubro de 1912, p. 2) Pese o desagrado face às diferenças, questionava-se: “Quem vai tirar um curso superior ou mesmo dos liceus, ou de escolas normais, para vir para Africa receber 25$000 réis por mês?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 82, 10 de Março de 1913, p. 3). A docência, como profissão-refúgio241, acolhia qualquer cidadão sem habilitações profissionais, mediante “concursos documentais e não de provas públicas”, prevalecendo os professores nicados242. 241 Expressão de António Nóvoa, no contexto da situação educacional portuguesa, no século XIX (1987, p. 597). 242 Professor interino. Consultar artigo de A Voz de Cabo Verde, n.º 85, 31 de Março de 1913 (pág. 193). 193 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) “Ao que nos consta, de boa origem, pela Repartição de Fazenda foram processados, com referência do mês findo, apenas dois terços dos respectivos vencimentos pouco mais de 16$000 réis – à maior parte dos actuais professores desta ilha – e naturalmente de todo o arquipélago. Motivo? Porque os professores alvejados – que o são de instrução primária, vá o esclarecimento, por causa das dúvidas – não obtiveram nos respectivos concursos – que são documentais e não de provas públicas, a classificação necessária para o provimento do cargo, sendo necessário nomea-los, com o caracter de interinidade, para que as escolas não ficassem desertas, em consequência da respectiva lei, que exige para o magistério primário – e sob a irrosória paga de 25$000 réis mensais – habilitações superiores, que a maioria dos nossos concidadãos não possuem. Mas, enfim, apesar de tudo, a maioria dos nossos professores, embora não possuam as habilitações – documentais – exigidas pela lei, exerce o magistério com a maior proficiência, apezar das péssimas condições – sem edifícios, sem mobiliário escolar, etc., – em que tem de ensinar.” (O Independente, nº 19, 12 de Outubro de 1912, p.3) “Há, em todo o arquipélago muitos professores, dezenas, talvez, englobados na nova classe [professores interinos]. Só nesta ilha [Santiago] existem 6, não contando os municipais que parecem não sofrerem cortes nos seus vencimentos, mesmo quando «provisorios», no verdadeiro significado do termo. Há ainda a esclarecer que quanto maior é o número de professores interinos menor é o de efectivos, o que traduz uma economia que teoricamente se recomenda, sabido como é que os interinos ganham 16.000 e poucos mais reais e os efectivos 23$000 réis. Logo – suntuosa calamidade! –, a redução das despesas orçamentais é, em Cabo Verde, proporcional ao aumento de professores interinos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 82, 10 de Março de 1913, p. 3) Gráfico 16 – Salários anuais de diferentes categorias profissionais – 1912 1.300 720 540 480 252 300 180 Director da Imprensa Nacional Amanuense Oficial maior (S.G. Governo) Porteiro Compositor 1ª classe Aprendiz 1ª classe (Imprensa) Professor 240 Professora (Decreto de 17 de Agosto 1912243) 243 Supl. ao Boletim Oficial, nº 38, 21 de Setembro de 1912, pp. 1-2. 194 A construção do discurso educativo Se confrontarmos os salários dos docentes da instrução primária (1912) com os de outras categorias profissionais, apuramos que a remuneração do professor era inferior ao salário do amanuense e do compositor da Imprensa Nacional e que uma professora recebia um salário similar ao de um aprendiz e, ligeiramente superior, ao do porteiro (Gráfico 16). “Apenas para amostra, sine qua non do escandalo burocratico da provincia, basta colocar em paralelo, sob todas as modalidades, os amanuenses da Secretaria Geral e os professores efectivos. O serviço daqueles é pago com 40$000 réis, o destes com 25$000 réis. Querem agora crêr numa verdade? Pela metropole, seja em que repartição fôr, um amanuense ganha apenas 12$000 réis, quinze o máximo. Pois, ao lado dêle, com renda de casa suficiente e contínuo sortimento de artigos de expediente, vence o professor primario (interino ou efectivo) 15, 18, e 25$000 réis, conforme a classe que lhe couber. É de admirar, não é? Façamos de contas que o que lá existe chegará daqui a meio ano a Cabo Verde. (...) Pelo que respeita a nós, aos professores interinos nicados, já que falei nos efectivos, nem tenho veios por onde serenamente possam passar mais algumas verdades. O que Cerveira de Albuquerque, de concerto com os velhos compadres do Conselho Colonial, cortou às nossas refeições diárias, se é que cortou, só traduz intuitos ridicularizadores, um escarneo completo, uma perfeita troça que briga com todos os principios, conjugada em incompreensiveis agressões.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 85, 31 de Março de 1913, p. 2) Numa terra assolada por secas e fomes frequentes, a sobrevivência era particularmente difícil. Em tom crítico à governação colonial, ”que coloca o povo português ao nível dos povos mais ignorantes”, A Tribuna d’África denunciava: “O diminuto ganho dos professores, 25$000 réis mensais ainda sujeitos a descontos, em terras onde a vida é caríssima, afastados do povoado, fazem com que o professorado em tão precaria situação, tendo de ministrar o ensino em horriveis e nojentos antros onde ele nunca desejaria colocar os pés, tão insalubres e medonhas são que tiram tambem ao alumno a vontade de ali se apresentar, não sinta forças nem vontade de exercer a sua missão redentora, habilitando à luta pela vida este povo que só pela desgraça tem sido acarinhado. (...) Nesta infeliz terra, tão dizimada pela fome que por assim dizer incessantemente a persegue, tendo tantos recursos naturais e condições necessarias para a sua riqueza, pela incúria e desleixo dos governantes, encontra-se reduzida ao unico recurso que lhe resta que é a emigração.” (Nº 2, 7 de Março de 1913, p. 1) A precariedade profissional dos professores de posto foi assunto de debate público, sob diversas percepções. 195 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Na óptica da administração: “Tive, é certo – no intuito de intensificar a difusão da instrução pelo concelho; e de conseguir, por conseguinte diminuir o numero considerável de analfabetos que se encontram na área desta Municipalidade –, a iniciativa de propôr uma pequena redução nos vencimentos dos professores dos Postos de ensino primários, nomeados à sombra de recursos creados pelo agravamento das contribuições. O fim a que eu visava? Evidentemente o de criar mais Postos de ensino. E tive essa iniciativa, propu-la e advoguei-a em sessão, porque se torna indispensável criar, junto de núcleos da população, centros de actividade escolar limitada ao ensino das primeiras letras e da escrita. (...) Quanto a vencimentos: Propus e foi aprovado que os vencimentos, que eram de vinte escudos mensais, passassem a 15. Isto é, houve um córte de 5 escudos, com que, no meu entender, a Câmara deverá criar mais Postos de ensino, como de facto foram criados mais dois, sendo um do sexo masculino e outro do sexo feminino – e com que não ficariam na miséria os professores desses Postos. Os Postos de ensino ficam em povoações, onde a carestia de vida se não faz sentir tão profundamente, que os 15 escudos actuais não deem para cachupa e para um passadio muito regular, ajuntando-se mais a particularidade de, pelo meio que vive, não carecer o professor destes Postos de ensino, de uma representação a que é compelido o professor duma escola, numa cidade ou numa vila.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 160, 7 de Setembro de 1914, p. 4). Na óptica dos professores: “Em Setembro do ano passado um gesto infeliz reduziu a quinze escudos mensais o minguado ordenado desses beneméritos obreiros da geração nova, que era de 25$00. Essa deliberação não obedeceu a nenhum princípio digno de ponderação, pois que a Câmara tinha em cofre um saldo importante. E o que torna mais vexatória essa deliberação cabralina é que nem todos os professores, que prestam o mesmo árduo serviço, foram atingidos com a redução acima mencionada, continuando a perceber 25$00 o professor da Calheta, o de Achada Lém, o da Ribeira da Barca e o da escola nocturna da Assomada. Semelhante disparidade não devia consentir-se, tal atentado contra os direitos de uma classe que melhores subsídios presta para a reconstituição social não podia continuar.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 214, 11 de Outubro de 1915, p. 3) Os vencimentos dos “levitas da instrução [eram] tão variados que parece, Cabo Verde a este respeito, uma Babilónia” (A Voz de Cabo Verde, 13 de Setembro de 1915, p. 3). O Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde244 disciplinou esta situação e fixou o quadro docente do ensino primário elementar e complementar, em 1917, ano em “que se registou [na metrópole] um aumento salarial dos professores, entre 20 e 30%” (Adão, 1984, p. 203). 244 Decreto nº 3.435, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 ao Boletim Oficial nº 43, 30 de Outubro de 1917, p. 5 (apêndice D). 196 A construção do discurso educativo Quadro 48 – Vencimentos dos professores de instrução primária – 1917 Designação 1ª classe – 20 professores 2ª classe – 40 professores 3ª classe – número indeterminado Subsídio de residência245: Praia ou Mindelo Outras sédes de concelhos regulares Outros locais Aos professores diplomados pelas Escolas Normais da metrópole Aos professores que rejam mais de uma turma Aos professores dos postos de ensino Vencimentos Categoria Vencimentos Exercício Total 300$ 252$ 204$ 60$ 48$ 36$ 360$ 300$ 240$ 130$ 75$ 60$ 210$ 120$ 180$ 120$ 180$ (Tabela anexa ao Plano Orgânico da Instrução Pública, 8 de Outubro de 1917, p. 3) Tendo-se conseguido uma equiparação aos salários dos docentes metropolitanos, persistiam desigualdades nas remunerações dos professores menos qualificados: em Portugal os professores interinos ganhavam 240$00246, enquanto que, em Cabo Verde, os professores de posto de ensino auferiam o vencimento de 180$00. O segundo Plano Orgânico da Instrução Pública247 introduziu ligeiras alterações nas remunerações dos professores: Quadro 49 – Vencimentos dos professores de instrução primária – 1917/1918 Ano de 1917 Vencimentos Professor de 1.ª classe Professor de 2.ª classe Professor de 3.ª classe Professor de Posto Ensino Professor temporário Subsídio de renda casa a) Subsídio de renda casa b) Subsídio de renda casa c) Subsídio professor da metrópole Subsídio professor + 1 turma Ano de 1918 Diferença Categoria Exercício Total Categoria Exercício Total Percentagem 300$ 252$ 204$ 60$ 48$ 36$ 180$ 180$ 360$ 300$ 240$ 180$ 180$ 130$ 75$ 60$ 210$ 120$ 300$ 252$ 204$ 84$ 72$ 60$ 384$ 324$ 264$ + 6,7 % + 8,0% + 10,0% = 120$ 72$ 48$ - 7,7% - 4,0% - 20,0% 120$ (Tabelas anexas ao Decreto n.º 3.435, 8 de Outubro de 1917 e à Portaria n.º 474, 27 de Dezembro de 1918) 245 Os professores, a quem fosse dada residência oficial, não recebeiam o subsídio de residência. Vencimentos ilíquidos anuais concedidos a partir de 1917: Interinos – 240$00; 3ª classe – 240$00; 2ª classe – 300$00; 1ª classe – 360$00 (Adão, 1984, p. 204). 247 Portaria nº 474, 27 de Dezembro de 1918. Supl. nº 14 ao Boletim Oficial nº 52, 31 de Dezembro de 1918, p. 5. 246 197 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Durante a 1ª Guerra Mundial, os preços dos produtos alimentícios aumentaram consideravelmente. Em Portugal, perante o crescente ritmo da inflação, a União do Professorado lançou uma campanha, a nível nacional, com vista a pressionar o Governo a uma revisão imediata dos ordenados (Adão, 1984, p. 205). Em 1919, na província de Cabo Verde registou-se uma melhoria salarial do funcionalismo público248. Os professores continuavam aquém do nível atingido por outras categorias da função pública: os docentes mais qualificados auferiam salários inferiores aos dos amanuenses e compositores da Imprensa Nacional e um porteiro ganhava mais do que um professor de posto de ensino. Gráfico 17 – Salários anuais de diferentes categorias profissionais – 1919 3.000 2.400 2.500 2.000 1.600 1.500 1.000 500 840 840 384 360 720 600 540 300 D ia l f ic O ir e ct or d a m Im pr e ns a N ac io n ai A or m al a (S nu .G . G en se ov er A Co no pr m en ) p P di o o s z r i t t ei 1. ro ª c or 1 .ª la ss c la e (Im sse Pr of pr es en so r 1 sa) Pr of .ª cl es a s Pr o r 2 ss e of . ªc es la so r 3 ss e .ª cl Pr ass e of .P os to 0 No ano de 1924 registou-se uma nova subida dos salários249, acrescidos da subvenção colonial e do subsídio eventual. Na perspectiva de António Nóvoa “os anos entre o fim da Guerra e a implantação do Estado Novo constituem o único 248 Salários dos professores efectivos, com o curso normal: 1ª classe, categoria – 500$00; 1ª classe, exercício – 220$00; 2.ª classe – 720$00. Salários dos professores efectivos, sem o curso normal: 1ª classe, categoria – 400$00; 1ª classe, exercício – 200$00; 2.ª classe – 600$00. Salários dos professores de 3ª classe, categoria – 360$00; exercício – 180$00. Professores interinos – 360$00. Professores de postos de ensino – 300$00. Professores de cursos nocturnos – 180$00. Subsídios de residência Praia e Mindelo – 120$00; outras sédes de concelhos regulares – 60$00; outros locais – 30$00. (Supl. nº 14 ao Boletim Oficial, nº 39, 29 de Setembro de 1919, pp. 24/25) 249 O diploma legislativo de 12 de Março de 1924 fixou os vencimentos dos professores de 1ª classe nos seguintes valores: Categoria – 1.833$30; exercício – 3.483$27; subvenção colonial – 870$71 e subsídio eventual – 8.359$82. Fixou, ainda, a gratificação anual aos professores que regerem mais de uma turma, no valor de 960$. (Boletim Oficial, n.º 11, 15 de Março de 1924, p. 84) 198 A construção do discurso educativo período durante o qual os professores parecem estar satisfeitos com as suas remunerações” e “pela primeira vez, há alguns decénios, um documento internacional sobre a «situação dos professores no mundo» não colocava Portugal na cauda da classificação“ (1987, p.625). Em Cabo Verde, a difícil sobrevivência do professor explica a frequente acumulação do serviço docente oficial com outras tarefas remuneradas. “Todavia, fazendo-se na carta referida uma acusação concreta, para ella chamaremos a attenção de quem competir. É a seguinte: que nas estatisticas officiaes, da instrução publica, referentes aos annos de 1909-1910 e 1910-1911 estão englobados, como se fossem todos da mesma escola, os alumnos officiaes e particulares (sendo estes em numero muito mais elevado segundo afirma o auctor da carta), leccionados pelo sr. professor Heitor Fermino, o que impede o poder apreciar-se, com justiça, a qual das escolas, à official ou à particular, serve elle com maior proficiencia.” (O Independente, nº 13, 11 de Julho de 1912, p.3) A conjugação de funções docentes e político-administrativas, próximas do caciquismo, era objecto de reparos: “Recebedor do concelho, professor municipal, thesoureiro da camara, e que tambem é substituto do administrador do concelho. Francamente é muita cousa junta” (A Voz de Cabo Verde, nº 4, 22 de Março de 1911, p. 1). Os párocos podiam acumular o exercício pastoral com a leccionação, recebendo “uma gratificação anual de réis 300$000” (art. 2º, Decreto de 17 de Agosto de 1912)250. A imprensa verberou, com indignação, a acumulação de funções que maculava o bom desempenho profissional: “É professor oficial e delegado ao Govêrno, que também é chefe da delegação aduaneira, encarregado do correio, da arborização, etc. A incompatibilidade nestes diversos empregos é tão manifesta que o público vê sacrificados, ao egoísmo duma só entidade, os seus interesses mais legítimos. Não se pode servir a dois senhores, porque sucederá que um ou ambos ficam mal servidos.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 81, 12 de Novembro de 1914, p. 3) “Apezar dela [a queixa] ter chegado ao conhecimento do encarregado do correio, não se modificou absolutamente nada para melhor, apenas um progresso de caranguejo, porque o encarregado que tambem é «professor em letras», fez constar depois que o correio estaria aberto das 9 e meia às 12 e meia, exactamente as horas em que se ele se encontra na escola, onde vai garantir o seu belo ordenado.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 69, 20 de Agosto de 1914, p. 3) 250 Supl. nº 11 ao Boletim Oficial n.º 38, 21 de Setembro de 1912, p. 1. 199 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A imagem social do professor convivia mal com as privações, num quotidiano de dificuldades. José da Fonseca Lage, professor e jornalista, traça o retrato da pobreza envergonhada da classe: “O professor, em toda a parte, mas especialmente nas ilhas, é sempre um funcionário de destaque, de fina e utilíssima representação, tendo por dever do seu cargo e decôro de sua pessoa, apresentar-se muito decente e correcto no trajar. Alêm disso a pobreza das ilhas, que é imensa, vê no professor um ricaço, a quem constantemente pede esmola com a convicção de que êste não tem direito a negar-lha; e se lha nega, está sujeito e expõe-se a apreciações bem inconvenientes e alêm disso, deprimentes para a ocupação em que oficialmente vive. Mas se o professor é o mais infeliz de todos, porque a forçada pobreza o não deixa gozar uma única hora de alegria!... O que tem para dar, se a miséria o não deixa ter para viver?!” (O Futuro de Cabo Verde, nº 118, 29 de Julho de 1915, p.3) Trajectórias da classe O número de docentes do ensino primário evoluiu, de 1911 a 1926, com a taxa de crescimento médio anual de 3,9%, num ritmo mais acentuado para as professoras (6,9 %), o que demonstra a inserção gradativa da profissão no universo feminino. Gráfico 18 – Evolução dos docentes do ensino primário – 1911/1926 251 T otal Masc. Fem. 256 206 156 106 56 6 -44 1911 1917 1921 1926 251 Taxas de feminização da classe docente: 1911– 25,9% (total, 85; sexo feminino, 22), 1917 – 26,5% (total, 113; sexo feminino, 30), 1921 – 35,2% (total, 128; sexo feminino, 45), 1926 – 38,6% (total, 145; sexo feminino, 56). 200 A construção do discurso educativo A supremacia de homens na classe docente, além de espelhar desigualdades de género, reflecte o elevado desemprego que atingia a sociedade das ilhas, sendo a docência, como profissão-refúgio, destinada preferencialmente ao tradicional chefe de família. Outro sintoma de discriminação radica no facto das professoras tenderem a ocupar os níveis mais baixos da profissão. O perfil de crescimento mostra uma evolução mais acentuada no escalão das professoras interinas. Gráfico 19 – Evolução das professoras do ensino primário: total e interinas 252 – 1917/1926 60% Total Professoras Professoras Interinas 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1917 1921 1926 As condições de acesso à profissão docente foram estipuladas no Plano Orgânico, de 1918253: “título de habilitação legal conferido pelas escolas normais ou de habilitação para o magistério primário da metrópole ou dessa colónia” e “só na falta absoluta dêstes, se nomearão, depois de aberto concurso público, os indivíduos mais idóneos e que se sujeitem primeiramente a um exame” (tít. II, cap. 1, art. 5º). “A graduação dos candidatos, far-se há tendo em consideração: I. Boa classificação de serviço prestado como professor oficial durante 5 anos pelo menos; II. Classificação final do diploma e maioria de habilitações literárias; III. Tempo de serviço efectivo como professor de uma escola oficial (incluídas as antigas escolas municipais); IV. Tempo de serviço temporário como professor de uma escola oficial ou das antigas municipais.” (Tít. II, cap. 1, art. 11º § 1) 252 Professores interinos: 1917 – 30% (total, 80; sexo feminino, 24); 1921 – 53,7% (total, 67, sexo feminino, 36); 1926 – 58, 4% (total, 77; sexo feminino, 41). (Listas provisórias das escolas e dos seus professores, 1917, 1921 e 1926) 253 Plano Orgânico da Instrução Pública da Província de Cabo Verde. Portaria n.º 474, de 27 de Dezembro de 1918. Supl. n.º 14 ao Boletim Oficial nº 52, 31 Dezembro de 1918, pp. 1-2. (apêndice D). 201 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Quadro 50 – Distribuição dos professores de instrução primária por categorias profissionais – 1917/1926 Categorias 1917 1921 1926 Número Percentagem Número Percentagem Número Percentagem Interinos 80 70,8% 67 52,3% 77 53,1% 3ª classe 25 22,1% 38 29,7% 20 13,8% 2ª classe 8 7,1% 23 18,0% 30 20,7% 1ª classe 0 0,0% 0 0,0% 18 Total 113 100,0% 128 100,0% 145 12,4% 100,0% Fonte: Supl. nº 21 ao Boletim Oficial n.º 45, 15 de Dezembro de 1917, pp. 1-5; n.º 50, 10 de Dezembro de 1921, p. 434; n.º 52, 25 Dezembro 1926, pp. 491-493. De 1917 a 1921 verificou-se uma evolução positiva dos professores de 3ª classe (mais 7,6%), decrescendo no quinquénio seguinte (menos 15,9%), facto que pode ser explicado pela promoção de docentes para a 2ª classe254. Gráfico 20 – Evolução dos professores interinos255 – 1917/1926 80% 70,80% 52,34% 53,10% 1926 60% 1921 70% 50% 40% 30% 1917 20% 254 Distribuição dos professores qualificados (60), por anos de serviço (1921): mais de 30 anos – 1 (1,7%); 25 a 30 anos – 5 (8,3%); 20 a 24 anos – 6 (10%); 15 a 19 anos – 4 (6,7%); 10 a 14 anos – 8 (13,3%); 5 a 9 anos – 10 (16,7%); 1 a 5 anos – 7 (11,7%); 1 ano – 19 (31,7%). 255 Distribuição dos professores interinos: 1917 – 113 (80 interinos, 70,8%); 1921 – 128 (67 interinos, 52,3%); 1926 – 145 (77 interinos, 53,1 %). Fonte: Listas provisórias das escolas e dos seus professores, 1917, 1921 e 1926. 202 A construção do discurso educativo O panorama educacional era dominado, como temos referido, por professores interinos (1917-26: 58,7%), sem habilitações profissionais e menos onerosos para o erário público. Admitia-se a mobilidade destes professores que, após aprovação em exame de habilitações para a docência, podiam ser promovidos a docentes de 3ª classe: “Tendo sido aprovados nos exames a que foram submetidos nesta cidade e na da Praia, nos termos do artigo 56° do Regulamento provisório de Instrução Primária, aprovado por portaria provincial n.º 368 A, de 30 de Outubro último, os professores interinos, abaixo mencionados: Hei por conveniente, vista a proposta do Conselho de Instrução Pública (…) promover à 3ª classe, os seguintes professores: Augusto Manuel Miranda, Guilherme Pedro Lima e João Manuel Miranda, com direito à diferença de vencimento desde 7 de Dezembro do ano findo; Maria da Conceição Carvalho Ferreira Santos, Maria Nobre de Melo, Olímpia Esmeraldo Lima, António Joaquim de Oliveira e Pedro Rodrigues de Castro, com direito a diferença de vencimentos desde 8 do referido mês de Dezembro; Teodoro Almada, com direito a diferença de vencimento desde 1 de Dezembro; Hugo dos Reis Borges, João Maria Feijóo e Pedro Rodrigues Tavares, com direito à diferença de vencimento desde 15 do mesmo mês; Kilda Amália Benicio Vieira Teixeira, com direito à diferença de vencimento desde 19 de Dezembro.” (Portaria n.º 47. Boletim Oficial, n.º 5, 2 de Fevereiro de 1918, p. 50) A República torna obrigatória a aposentação para todos os professores que completem 70 anos de idade, limite que veio a ser reduzido para 65 anos (Adão, 1984, p. 231). Inicialmente concedido apenas aos professores oficiais, este direito foi outorgado, a posteriori, aos professores municipais ultramarinos: “Tendo alguns professores do ensino primário municipais ultramarinos (…) solicitado que lhes sejam extensivas as garantias consignadas no decreto com fôrça de lei de 30 de Julho de 1910, que concedeu o direito de aposentação aos professores municipais, habilitados nos termos do referido decreto de 1901. Considerando que não é justo privar aqueles professores do direito de aposentação, pois que, não são habilitados conforme o mesmo decreto, tal não depende de culpa sua, visto a nomeação ser anterior, e então não se exigir similhantes habilitações. (...) Hei por bem, sobre proposta do Ministro das Colónias, decretar o seguinte: Artigo 1.º É tornado extensivo aos professores das escolas municipais ultramarinas, nomeados anteriormente ao decreto com fôrça de lei de 17 de Agosto de 1901, o direito de aposentação, nos termos do decreto, com fôrça de lei de 30 de Julho de 1910. § único. Também gozarão do direito, a que se refere êste artigo, os professores que já estejam separados do serviço, por terem sido julgados incapazes, contanto que tivessem servido pelo menos, até 30 de julho de 1910.” (Decreto n.º 888. Boletim Oficial, n.º 42, 17 de Outubro de 1914, p. 364) 203 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A classe docente beneficiava de assistência médico-cirúrgica, na metrópole, quando se esgotavam os recursos locais de atendimento: “Portaria n.º 175: Permittindo, em vista do parecer da Junta de Saude da Provincia, que a professora official da Villa da Ponta do Sol, da ilha de Santo Antão, Joaquina da Conceição Ferreira, siga para Lisboa, a fim de ser presente à Junta de Saude das Colonias.” (Boletim Oficial, n.º 21, 23 de Maio de 1912, p. 196) As professoras, por ocasião do parto, tinham direito a dispensa do serviço docente, sem perda de vencimentos: “Hei por bem determinar que as professoras de instrucção primaria sejam dispensadas do serviço por espaço de dois meses, durante o ultimo periodo da gravidez e em seguida ao parto, abonando-se-lhes todos os seus vencimentos de categoria e exercicio, bastando apenas que esse facto seja devidamente comprovado por attestado medico perante o respectivo sub-inspector”. (Diário do Governo, n.º 6, 9 de Janeiro de 1911, p. 6) “Estatuindo o decreto do 7 de Janeiro de 1911, em vigor na Metrópole, que às professoras, por ocasião de parto, seja garantido o repouso necessário: Visto o disposto no artigo 108º do Regulamento dos Serviços de Instrução Pública, aprovado pela portaria provincial n. ° 308-A de 30 do Outubro do ano findo, que manda observar, em casos omissos do mesmo regulamento, os preceitos vigentes na Metrópole; Atendendo ao que requereu a este Governo e comprovou devidamente, a professora diplomada da escola n.° 4, do sexo feminino da cidade da Praia, Dinorah Alice Moreira de Aguiar de Meneses; Hei por conveniente, concordando com o parecer emitido a este respeito pelo Conselho de Instrução Publica, conceder à referida professora 30 dias de licença, sem perda dos seus vencimentos, nos termos do citado decreto, encarregando transitoriamente da mesma escola, Margarida Gabriela de Quental Mendes.” (Portaria n.º 146. Boletim Oficial n.º 12, 23 de Março de 1919, p. 109) Carreira e formação profissional O acesso e a promoção na carreira docente exigiam formação específica para o magistério. Com efeito, desde 1901 – com excepção para algumas situações que provêm do século XIX ou de certos casos pontuais – ninguém será nomeado sem apresentar prova do diploma da escola normal (Nóvoa, 1987, pp. 632-633). 204 A construção do discurso educativo Na colónia, a realidade era bem diferente: os normalistas256 tinham uma expressão pouco significativa no corpo docente (1917-26: média, 14,7%257), embora, com tendência de crescimento (1917, 3,5%; 1926, 23,4%) (Gráfico 21258). A habilitação legal para a docência exigida tinha largo espectro: além dos diplomas das Escolas Normais, abrangia um conjunto de habilitações não específicas para o magistério. As candidaturas à docência realizavam-se por concurso público documental, aberto por um período de 60 dias, por iniciativa do Governo Provincial ou das Comissões Municipais, consoante se tratasse de “dar provimento” em escolas oficiais ou em escolas municipais. O processo documental integrava: “I. Diploma de habilitação legal, nos termos do artigo 3º do citado decreto de 17 de Agosto de 1901, e que são: Approvação em qualquer curso de instrucção superior; Approvação no curso complementar ou elementar das escholas normaes; Approvação nos cursos de escholas de habilitação para o magisterio primario; Approvação nos cursos d’instrucção secundaria dos lyceus; Estudos preparatorios do seminario-lyceu de Cabo Verde, nos termos do officio n.º 236, de 4 de Outubro de 1906, publicado no Boletim Official n.º 2, de 1907. II. Attestado de bons costumes. III. Attestado medico com que provem não soffrer de molestia contagiosa. IV. Quaesquer documentos ou habilitações litterarias. V. Certidão de edade, comprovativa, de não terem menos de 21 annos. VI. Certificado do registo criminal.” (Anúncio, 25 Maio 1912. Boletim Oficial, n.º 23, 8 de Junho de 1912, p. 219) Em 1920 solicitava-se ainda um “atestado, passado pelas autoridades ou corpos administrativos da residência do candidato, da sua franca adesão à República e acatamento às suas leis” (anúncio, 11 de Agosto de 1920259), comprovativo da interferência do poder político na colocação dos professores. Era corrente a reabertura dos concursos documentais, dada a inexistência de candidatos detentores das habilitações e critérios exigidos. Em caso de persistir a ausência de candidaturas, verificavam-se duas possibilidades: a selecção do concorrente “que melhores e mais documentos litterarios apresentou” (Portaria n.º 256 Diplomados para o exercício do magistério primário. Expressão utilizada nas “Listas provisórias das escolas e dos seus professores” (Supl. nº 21 ao Boletim Oficial, n.º 45, de 1917, pp. 3-4; Boletim Oficial, n.º 51, 17 de Dezembro de 1921, pp. 442-444 e Boletim Oficial, n.º 52, 25 de Dezembro de 1926, pp. 491-492). 257 Distribuição dos professores diplomados pelas Escolas Normais: 1917 – 113 (4 normalistas, 3,5%); 1921 – 128 (22 normalistas, 17,2%); 1926 – 145 (34 normalistas, 23,4%). (Listas provisórias das escolas e dos seus professores”, 1917, 1921 e 1926) 258 Consultar pág. 208. 259 Boletim Oficial, n.º 33, 14 de Agosto de 1920, p. 340. 205 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 340, 7 de Outubro de 1911260) ou a abertura de “concursos na metrópole, como está determinado pelo Ministério das Colónias” (Boletim Oficial, n.º 47, 21 de Novembro de 1914, p. 417). O aparato processual não impedia a ocorrência de arbitrariedades: “É um acto em que, entendo, as autoridades deviam ser muito escrupulosas, lembrando-se que nem todos nasceram para exercer tam árdua como espinhosa missão de instruir e educar; pois há pessoas muito instruídas e como tal carregadas de documentos de numerosos exames, em que ficaram aprovados, sem todavia, possuirem a habilidade de ensinar a uma criancinha o abecedário; e, pelo contrário, outros que, tendo cursado pouco, são dotados de inigualável aptidão, a vontade inquebrantavel. (...) O provimento das cadeiras faz-se por meio de nomeação provisória, interina e vitalícia. As duas primeiras nomeações convem que saibam os leitores que nunca são efectuadas senão por meio da infame politiquice, que é o mesmo que fazer favores a amigos e afilhados. ¿É a frase significativa de tais nomeações infelizmente? Intercalo aqui um facto que acaba de suceder neste concelho: – Tendo, há pouco tempo, ido pescar o exímio professor Eugénio Manuel dos Santos, o infeliz caiu, por acaso ao mar e morreu, fatalmente, afogado; no dia seguinte – oh! política! – o Presidente da Câmara chamou José Ramos Mota e nomeou-o para substituir o extinto, e o Administrador, opondo-se, alegou que, em vez de se fazer tal nomeação, para o efeito da economia, devia-se nomear um outro professor, para, mediante uma pequena gratificação, reger a escola vaga durante os ultimos meses do ano lectivo, e no mês de outubro p. f. se nomearia um qualquer indivíduo habilitado. Passêmos agora a resolver o binomio -solução: 1º – O Presidente é pai do único professor municipal existente nesta vila; o lugar tem que ser, infalivelmente, posto a concurso documental; o nomeado provisorio tem curso completo do liceu e concorreria inevitavelmente, e venceria infalivelmente o filho, que tem pequeníssimo curso; está, pois, demonstrado o fim porque teve pressa em colocar o elemento terrorista. 2º – O senhor Administrador hospedou-se em casa do mesmo professor municipal e, portanto, deve-lhe finezas, por isso quis ele dar-lhe tal gratificação. É isto que se chama gratidão à custa do dinheiro público. Muito teria que dizer caso o plano me permitisse, sem temer um desmentido. Calemo-nos por aqui. Sam Nicolau, 1 de Julho de 1916.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 256, 14 de Agosto de 1916, p. 2) Além dos Cursos Elementar e Complementar das Escolas Normais e do Curso da Escola de Habilitação para o Magistério Primário, constituíam habilitação para a docência: os diplomas de “qualquer curso de instrução superior”, a “aprovação nos cursos de instrução secundaria dos liceus” e os “Estudos Preparatórios do Seminário-liceu de Cabo Verde” (anúncio, 24 de Maio de 1912261). 260 261 Boletim Oficial, n.º 28, 25 de Novembro de 1911, p. 428 Boletim Oficial, n.º 23, 8 de Junho de 1912, p. 219. 206 A construção do discurso educativo “Como se sabe não possuimos professores diplomados em Cabo Verde, por nos faltarem escolas normais onde se habilitarem. Possuimos tam somente o Seminário que ensina para o fim de saber e não de ensinar; portanto só com um exame rigoroso em que o metodo e a aptidão entrariam como principais disciplinas, se poderia fazer uma pura e bem definida escolha de quem se encarregaria da nobre missão de ensinar e educar como se fazia no meu tempo. Tenhamos sempre em vista que entre vinte candidatos nomeados é impossível encontrar-se dez que se prestem para o fim.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 258, 28 de Agosto de 1916, p. 2) Apesar do prestígio do Seminário de S. Nicolau, instituido “para o fim de saber e não de ensinar”, impunha-se a criação de uma Escola Normal. O poder provincial – amparado pelo governo central – tentou materializar esta aspiração, num percurso de projectos e leis não cumpridos. A falência da escola normal, no arquipélago, foi interpretada como “fechar-nos as portas, a nós que somos naturais do arquipélago, abrindo-as aos continentais”: “Em primeiro lugar, devemos lembrar que não é o diploma (seja ele dimanado das propriamente chamadas escolas-normais), o que dá competência ao professor. Na candidatura a tais diplomas só há duas condições imprescindíveis, ao que nos conste: inteligência clara e algum geito para ensinar crianças. Em segundo lugar, devemos ter bem presente que, embora pudesse um diploma representar competência, e incompetência a falta dele, não é lógico nem é justo exigirnos o Govêrno, para desempenho de certos cargos, conhecimentos que só na Metrópole podem ser adquiridos; demais, não nos facultando meio de tal conseguir sem um sensivel sacrificio. Isso equivale a fechar-nos as portas, a nós que somos naturais do arquipélago, abrindoas aos continentais. Qual o fito? Estreitar mais e mais as relações de cordialidade que devem existir entre os portugueses caboverdeanos e os continentais? Procurar arreigar na colónia por todos os meios possíveis, os hábitos e costumes europeus? Promover que a classe dos professores esteja sempre decentemente representada? Estimular, com a necessidade de largos estudos, os naturais da colónia? Talvez que tudo isso e muita cousa mais, que aliás se conseguiria por processos de melhor eficácia.” (O Popular, n.º 18, 25 de Março de 1915, p. 2) As interrogações enfáticas, cobertas de sarcasmo, demonstram o espírito crítico e o desagrado face à governação colonial. O processo de edificação de uma escola normal cabo-verdiana entrecruzou-se com as histórias do seminário e do liceu262. A escola normal – que não passou de 262 Consultar Parte II, Capítulo 7. 207 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) projecto – foi instituída na sequência da extinção do Seminário de S. Nicolau e herdou o património da reputada casa de ensino: “Art. 8° É criado na escola de ensino primário superior de S. Nicolau um curso de ensino normal primário. § l° Este curso compreenderá, além de quaisquer outras disciplinas que o Conselho de Instrução Pública deliberar estabelecer, o aperfeiçoamento das matérias de ensino primário complementar e o estudo da pedagogia. § 2° Este curso durará três anos, devendo o seu primeiro ano ser o de ensino primário superior, e aproveitar-se dos outros dois anos deste ensino as disciplinas que o regulamento indicar. O último ano é destinado, especialmente, a prática, simultânea do ensino nas escolas primárias locais, sob a direcção do professor de pedagogia. Art. 9° O quadro dos professores do 2° e 3° anos do curso normal primário e seus vencimentos vão indicados na tabela C263.” (Tít. II, cap. II, Decreto nº 3.435, 8 de Outubro de 1917264) As disposições transitórias da lei determinavam que os professores do Seminário passariam “a professores da escola de Ensino Primário Superior de São Nicolau e do Curso Normal, com o vencimento de exercício de 390$” (tít. VII, art. 33.º) e possibilitavam “aos indivíduos que possuam o actual curso completo do seminário, matricular-se no último ano do Curso Normal” (tít. VII, art. 35°). Estas medidas não se concretizaram e, em Maio do ano seguinte, O Caboverdeano apelava para a urgência de “nesta colónia, [se desenvolver] ao máximo a instrução primária e instituir um curso normal onde os que pretendessem dedicar-se ao magistério se fossem preparar” (n.º 7, 18 de Maio de 1918, p. 1). O Plano Orgânico da Instrução Pública, de 1918, criou de novo o Curso de Ensino Normal, inserindo-o no Instituto de Instrução Secundária, instalado no edifício do Seminário. “Art. 17° § 1.° Este Instituto [de Instrução Secundária] funcionará provisoriamente e só enquanto a colónia não tenha alojamento próprio noutra ilha, no edifício do extinto Seminário da Ilha de S. Nicolau, aproveitando-se o respectivo material escolar, devendo também para lá remeter-se todo o material pertencente ao Liceu Nacional de S. Vicente, que fica extinto por êste diploma. (...) Art. 20° É criado no Instituto de Instrução Secundaria um curso de ensino normal, que terá o regime de coeducação dos sexos, a fim de preparar nesta colónia candidatos devidamente habilitados ao magistério primário. § 1° Este curso durará dois anos, frequentando os alunos no primeiro ano uma cadeira de pedagogia geral e história da pedagogia, outra de legislação especialmente escolar e 263 O quadro do pessoal era constituído por um director, 2 professores ordinários, 3 professores agregados, 3 professores dos cursos práticos, 4 secretários e 2 serventes. 264 Supl. nº 18 ao Boletim Oficial, n.º 43, 30 de Outubro de 1917, p. 2. 208 A construção do discurso educativo economia política (noções gerais), e outra que será um resumo de conhecimentos adquiridos no Liceu sobre história, geografia, gramática e matemática; e no 2° ano uma cadeira de pedologia e metodologia do ensino primário e literatura portuguesa, e outra três vezes por semana de psicofisiologia, destinando-se especialmente este segundo ano à pratica simultânea do ensino das escolas primárias locais, sob a direcção do professor de pedagogia. Art. 21° Os indivíduos que pretenderem matricular-se neste curso devem satisfazer às condições seguintes: I. Terem 15 anos de idade completos; II. Apresentarem certidão de passagem na terceira classe do curso liceal; III. Apresentarem atestado, passado por médico, de não sofrerem de moléstia contagiosa e serem vacinados. § único. Podem tambêm frequentar o curso normal independentemente da apresentação da certidão de passagem na terceira classe do curso liceal, todos os indivíduos que, sujeitando-se a um exame que versará sobre tais matérias e principalmente sobre conhecimentos da língua, história e geografia pátrias, ficarem aprovados, podendo também ser admitidos à frequência do 2° ano os professores interinos e particulares, existentes à data da publicação deste decreto, que queiram munir-se do respectivo diploma. Art. 22° Os programas do curso normal e do exame de admissão a que se refere o § único do artigo 21° serão estabelecidos pelo Conselho de Instrução Pública, fazendose só um exame no fim do curso e representando a certidão de aprovação o respectivo diploma. Art. 23° Os alunos pobres são dispensados do pagamento de propina. Art. 24° Os professores de tal curso são os do curso liceal, à excepção do de pedagogia, que será recrutado entre os professores das escolas normais metropolitanas e com os mesmos vencimentos e vantagens daqueles. § único. O primeiro professor de Pedagogia será um dos inspectores dos que estão já na província. Art. 25° Na falta dos professores efectivos do instituto serão nomeados pelo Governo da Província, ouvido o Conselho de Instrução Pública, professores interinos, que terão apenas uma gratificação igual ao vencimento de exercício quando tenham outros vencimentos pagos pelo Estado ou outras corporações públicas, e igual ao vencimento de exercício e dois terços do de categoria quando não tenham outros vencimentos265”. (Tít. III, Portaria n.º 474, 27 de Dezembro de1918266) O Instituto de Instrução Secundária simbolizou a tentativa de permanência do ensino religioso e de aniquilação do projecto de liceu laico. Nesta confluência de interesses, representativos de forças sociais em confronto, radica a génese da formação de professores em Cabo Verde. 265 Pessoal do Instituto de Instrução Secundária: 1 reitor (professor), 7 professores efectivos, 3 professores do antigo Seminário, 1 secretário (professor), 2 prefeitos (professores com residência e comida) e pessoal menor. 266 Supl. nº 14 ao Boletim Oficial, n.º 52, 31 de Dezembro de 1918, pp. 1-2. 209 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Gráfico 21 – Evolução dos professores normalistas – 1917 /1926 30% 25% 23,45% 20% 17,19% 15% 10% 5% 3,54% 1926 1921 1917 0% Ainda que a formação de professores, em Cabo Verde, não tenha passado de desígnio, as estatísticas escolares mostram progressos na capacitação de docentes (índice de crescimento dos normalistas: 19,9%). A identidade profissional forjou-se na união do professorado e em movimentos associativos. Durante o período republicano, em Portugal, o associativismo activo exerceu uma acção com dois intuitos: primeiramente, criando um espírito colectivo, uma atitude de solidariedade, no seio dos «profissionais da mesma profissão»; em seguida, melhorando o estatuto socio-económico e conferindo uma certa dignidade à profissão de professor de instrução primária” (Nóvoa, 1987, p. 692). Na documentação consultada encontrámos referências a uma associação de professores: o Centro Escolar Fontoura da Costa, na vila da Ribeira Brava, ilha de S. Nicolau (1922), preocupado com a formação pedagógica do corpo docente: “Estatuto do «Centro Escolar Fontoura da Costa» Artigo 1º É constituída, nos termos dêstes Estatutos, uma associação de classe que representa, para todos os efeitos, o produto da união do professorado primário de S. Nicolau. Art. 2º Essa associação denominar-se há «Centro Escolar Fontoura da Costa» e terá sua séde em Vila da Ribeira Brava. (...) Art.12º Compete à Direcção: 1º Trabalhar afincadamente a favor da classe para bem merecer a confiança dela; 210 A construção do discurso educativo 2º Procurar estreitar os laços da união do professorado, já desta ilha, já de toda a província; 3º Fazer uma propaganda constante nesse sentido por toda ela e da forma que julgar conveniente; 4º Adquirir para os seus associados, dentro dos limites da possibilidade, órgãos de classe e revistas pedagógicas que se publicam no continente e noutros países; 5º Fazer que na primeira ocasião propícia se funde um jornal para defender os direitos e interêsses do professorado caboverdeano; 6º Fazer sentir à Junta Local de Instrução Pública as deficiências que digam respeito à classe e à escola; 7º Tornar público, pelos jornais de Cabo Verde, caso ela não providenciar, o seu indiferentismo pelo ensino; (...) 11º Promover conferências pedagógicas, regulamentando-as previamente; (…) 20º Fazer, em suma, para que se adopte e se cumpra a divisa, «todos por um e um por todos».” (Portaria n.º 12. Boletim Oficial, nº 4, 28 de Janeiro de 1922, pp. 28-29) No estatuto do Centro Escolar encontrámos linhas de acção que merecem ser sublinhadas: “Procurar estreitar os laços da união do professorado, já desta ilha, já de toda a província”. Não seria por acaso que esta iniciativa surgiu na ilha de S. Nicolau, o primeiro centro académico do arquipélago, que pugnou pelo primado de referência intelectual nas ilhas. “Adquirir para os seus associados, dentro dos limites da possibilidade, órgãos de classe e revistas pedagógicas que se publicam no continente e noutros países e promover conferências pedagógicas”. Eram aspirações indicativas da vontade de actualização do corpo docente. “Fazer que na primeira ocasião propícia se funde um jornal para defender os direitos e interêsses do professorado caboverdeano e tornar público, pelos jornais de Cabo Verde, caso ela [Junta Local de Instrução Pública] não providenciar o seu indiferentismo pelo ensino”. O programa de intenções da Associação de Professores teve em consideração o papel da imprensa local, numa luta persistente – quase teimosa – pela dignificação do homem caboverdiano e do seu bem mais precioso, a educação. No fecho das considerações sobre “a identidade profissional do docente” recorremos, uma vez mais, a António Nóvoa que delineou o modelo conceptual do professor, em torno de um eixo central, duas dimensões e quatro etapas (1986, pp.12-13): 211 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Eixo central: evolução do estatuto social e económico dos professores O professor cabo-verdiano com atributos de mediação comunitária e, circunstancialmente, de liderança vigiada foi plasmando a sua identidade profissional, num contexto de submissão política. Primeira dimensão: a construção de um corpo de conhecimentos e de técnicas próprio e específico da profissão docente A circulação de ideias (com destaque para a imprensa), a aceitação de inovações e as manifestações de vontade de formação pedagógica foram, em nosso entender, mais aspirações do que realidades. Segunda dimensão: a organização (explícita ou implícita) de um conjunto de normas e de valores que devem pautar o exercício da profissão docente O exercício da docência foi regulado por um constructo de procedimentos, práticas e posturas, substrato ético e deontológico da profissão. Primeira etapa: exercício a tempo inteiro (ou como ocupação principal) da actividade docente À medida que se foi modelando o sistema educativo, constituiu-se um corpo de profissionais, com consciência dos seus direitos e deveres, das diferenças no seio da classe docente, em relação a outros grupos profissionais e aos professores metropolitanos. Segunda etapa: estabelecimento de um suporte legal para o exercício da actividade docente A actividade docente foi enquadrada por normas e prescrições (in) eficazes, espelho do quadro institucional dominante. A distância entre Praia e Lisboa – reformas, direitos e regalias profissionais – era superior à lonjura física, separada por um oceano de esquecimentos, prepotências e desigualdades. 212 A construção do discurso educativo Terceira etapa: criação de instituições específicas para a formação de professores (...) através de um “role-transition”267 e não de “role-reversal”268 A luta pela formação de professores, em Cabo Verde, não foi vencida em tempo, dada a incapacidade de dar corpo aos cursos normais projectados. Mas as sementes foram lançadas. Quarta etapa: Constituição de associações profissionais de professores (...) que desempenham um papel fulcral no desenvolvimento de um espírito de corpo Embora com uma experiência associativa incipiente, o professor cabo-verdiano desenvolveu, pela escrita jornalística, um espírito de corpo, em defesa dos seus direitos e de uma educação condigna. 267 268 Passagem do papel de aluno ao papel de professor (Nóvoa, 1986, p. 13). Como a maioria das outras profissões (idem). 213 7. Edificação do ensino liceal ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Na perspectiva de António Nóvoa, a operação histórica, que desenvolve a ideia de liceu, assenta em dois elementos: a emergência de práticas de autogoverno, que estimula uma disciplina que vem de dentro, juntando a liberdade à responsabilidade e a afirmação de um projecto sociopolítico que encara a cidadania, “uma cidadania consciente e esclarecida”, como elemento central do progresso (2005, p. 71). O liceu emerge, nas ilhas, como um projecto sociopolítico e um imperativo de cidadania. Nobre de Oliveira recorda que “foram muitas as pessoas, tanto cabo-verdianos como portugueses ligados a Cabo Verde, tanto nos jornais como no parlamento português, que levantaram a sua voz a favor da criação do liceu” e que “depois da proclamação da República, o combate recrudesceu e sobressaíram, entre outros, Sena Barcelos, Roberto Duarte Silva, Simão Barbosa, Eugénio Tavares, Abílio Macedo, Carlos Vasconcelos, Torquato Fonseca e Frank Martins, transformando a criação deste liceu num dos grandes combates políticos de Cabo Verde” (1998, p. 398). Figura 32. “Cabo Verde foi dotado de um liceu!” (A Voz de Cabo Verde, n.º 300, 2 de Julho de 1917, p. 1) O ensino liceal laico constituía a instância mais elevada do saber científico, pedagógico e cívico no território cabo-verdiano, desde os tempos da extinção do Seminário-liceu de S. Nicolau. A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 7.1. O Seminário-liceu O Seminário Eclesiástico da diocese de Cabo Verde foi criado em 1866, com o curso geral de estudos dividido em “estudos preparatórios e estudos ecclesiasticos” e duas classes de alunos: “dos que se destinam ao estudo ecclesiastico; dos que quizerem estudar no mesmo estabelecimento sem se destinarem à vida ecclesiastica” (Boletim Official, n.º 44, 3 de Novembro de 1886). O Seminário ficou instalado na “casa solarenga da vila da Ribeira Brava”, por cortesia do Dr. Júlio José Dias que se mudou “para uma moradia mais modesta que tinha no Cachaço” (Silva, 1990 citado em Artiletra, n.º 59/60, Outubro de 2004, p. III). Figura 33. “Vista do edifício do Seminário de Cabo-Verde” (1897) (Silva, 1899, p. 161269) 269 Fotografia cedida pelo Sr. Padre Boaventura Lopes, Pároco da freguesia de Nossa Senhora do Socorro, Praia, a quem agradecemos. 216 A construção do discurso educativo A dupla formação religiosa e laica inspirou a linguagem metafórica do Dr. João Augusto Martins – que pertenceu ao corpo docente do Seminário –, ao desejar “que haja nesse estabelecimento, como uma única revolução solar, a noite e o dia, que se completem”. A noite, “a secção dos seminaristas, vestidos de togas negras, elevando-se nas ideias do sacrifício...” e o dia, “a secção dos seculares, animada pelo entusiasmo rubro da infância, aprendendo nas lutas pela vida as rudes lições do dever” (1891, p. 153). Figura 34. Alunos internos e externos do Seminário (1895) Phot. de R. Bayao (Silva, 1899, p. 193270) A notoriedade do Seminário, “um dos acontecimentos mais felizes da história caboverdeana, porque é dêle que partiu a luz que mais intensamente iluminou Cabo Verde”, está reflectida nas palavras do professor José dos Reis Borges: “Foi, pois, ao calor vivificante da suave luz da fé e moral cristãs, de mistura com as beneficentes luzes do a b c, de que eram portadores os padres saídos do Seminário de S. Nicolau, que mais se formou, e de todo se depurou, o carácter franco, leal, pacífico e hospitaleiro dos caboverdeanos. Mas o Seminário que também era Liceu, preparava igualmente para a vida civil, e nesta qualidade aleitou ao seu úbero seio, filhos que cá e lá fora o estão honrando nos diversos ramos da actividade humana, sobretudo nas letras, na burocracia e no magistério.” (Boletim, n.º 45, Março de 1929, p. 198) 270 Ver nota anterior. 217 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) No período republicano, a frequência escolar ultrapassou a centena de alunos internos e externos. Registou-me um crescimento dos efectivos escolares até 1914, seguindo-se uma redução de efectivos (menos 25) com perdas nos alunos internos (menos 32) e um ligeiro acréscimo nos alunos externos (mais 7). Quadro 51 – Frequência escolar no Seminário-liceu de S. Nicolau – 1912/15 Anos Alunos internos Número Alunos externos Número Percentagem Número Percentagem 1912 103 57 55,3% 46 44,7% 1914 135 75 55,6% 60 44,4% 1915 110 43 39,1% 67 60,9% (Estatística Geral da População, 1913/14; mapa anexo a uma carta do Reitor, Dom José Alves Martins, 12 de Outubro de 1915271) Na época analisada, em consonância com a configuração demográfica272, o Seminário era frequentado por uma maioria de alunos de “raça mista” (85,5%)273. Gráfico 22 – Frequência escolar do Seminário, segundo a raça – 1912/1915 Branca 9,7 72,8 17,5 1912 271 Mista Preta 0,0 3,0 87,4 96,4 9,6 3,6 1914 1915 Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. População mista em 1910: 61.2% (Fonte: Oliveira, 1998, p. 393). 273 Dados da Estatística Geral da População relativos à frequência do Seminário: 1912 – RB: 18 (17,5%); RM: 75 (72,8%); RP: 10 (9,7%); 1914 – RB: 13 (9,6%); RM: 118 (87,4%); RP: 4 (3,0%); 1915 – RB: 4 (3,6%); RM: 106 (96,4%); RP: 0 (0,0%). (Cx.ª 670, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN) 272 218 A construção do discurso educativo De acordo com as fontes consultadas, os professores do Seminário leccionaram as disciplinas, que se apresentam no quadro seguinte: Quadro 52 – Disciplinas, classes e número de alunos do Seminário – 1912/1915 1912 Disciplinas e classes Português, 1.º ano Português, 2.º ano Latim, 1.º ano Latim, 2.º ano Latim, 3.º ano Francês, 1.º ano Francês, 2.º ano Inglês Geografia Literatura Aritmética Geometria Introdução Desenho Teologia Cantochão e Música N.º Alunos 20 12 10 3 1 17 7 5 2 5 7 1 2 4 1 6 1914 Disciplinas e classes Português, 1.º ano Português, 2.º ano Latim, 2.º ano Latim, 3.º ano Latim, 4.º ano Francês, 1.º ano Francês, 2.º ano Nº Alunos 32 12 4 1 1 Geografia 28 13 9 Aritmética 5 Introdução Desenho Teologia 4 19 1 História 5 Teologia 1 1915 Disciplinas e classes Português, 1.º ano Português, 2.º ano Latim, 1.º ano N.º Alunos 20 12 12 Latim, 3.º ano 3 Francês, 1.º ano Francês, 2.º ano 18 13 Geografia Literatura Aritmética Geometria 9 6 8 5 Filosofia 4 (Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1913, 1918); “Movimento de alunos de instrução secundária, segundo a raça,” 30 de Setembro de 1915274) Henrique Teixeira de Sousa, em comunicação apresentada por ocasião do aniversário do Liceu de S. Vicente em Cabo Verde (Lisboa, 1992), recordou o ensino ministrado no Seminário-Liceu, pela memória de Pedro Cardoso: “Contou-nos Pedro Cardoso que muito dificilmente conseguiam obter a propaganda republicana, acesa, ao tempo. Que era através das gretas do portão que lhes era passado material subversivo, o qual liam nas camaratas, à luz duma vela. O mesmo se passava com a circulação de determinados livros, adentro dos muros. Eça de Queiroz, por exemplo, era um dos autores malditos. Quando entrava um livro desconhecido, esse livro era primeiro examinado por alguém do corpo docente, antes de ser autorizada a sua leitura. Daí que os jovens ali educados, saíam fortes em humanidades, porém, ignorantes em matéria dos valores culturais da época. Dizia, por exemplo, o Dr. Baltazar Lopes da Silva que o Latim que tinha aprendido no seminário foi latim que lhe valeu até terminar o curso de Românicas. (...) 274 Cx.ª 670, 30 de Setembro de 1915. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 219 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A História Universal era outra disciplina que os seminaristas estudavam com desenvolvimento, especialmente a Antiguidade Clássica (Grécia e Roma). Os antigos alunos do Seminário, gostavam de citar episódios daquelas duas civilizações, ignorando que alguns conseguiam franquear o círculo das humanidades e atingir a contemporaneidade. Raros o conseguiam.” (1992, pp. 46-47) Baltasar Lopes da Silva, no conto Muminha vai à escola, revive “um momento emocionadíssimo” na aula de História: “A este respeito, dizia eu, recordo uma aula em que ele [o professor] nos falava do 9 de Abril e de como os alemães vinham com grande poderio de homens e artilharia, mas os soldados portugueses lá se foram aguentando o mais que era humanamente possível nos campos da Flandres, e ali defenderam gloriosamente os «pergaminhos da raça». A certa altura, ele que era já velho, de cabeça toda branca, levantou-se no estrado (coisa rara e pormenor que me ficou, porque os cónegos do Seminário passavam o tempo todo da lição sentados na cátedra) e afiançou-nos que, se tivesse estado lá, se não fosse com tiro era com a coronha da espingarda, se não fosse com a coronha da espingarda era com a mão, com os dentes, com o que o diabo quisesse. Foi um momento emocionadíssimo na aula – o velho alçado no estrado, os olhos acesos, e brandindo o ponteiro, que as mãos enclavinhavam belicosamente. Quando saímos, ainda possuídos pela violenta emoção recebida na aula de História, achámos (e nisso recorremos às nossas noções de Estilística) que a figura do nosso velho, quando nos fazia a narrativa do combate heróico e nos transmitia a lição de honra e patriotismo que ela continha, era a imagem de D. Afonso Henriques, hirto sobre o seu cavalo de guerra e de espada alta, desancando nos mouros.” (1997, p. 41) João Lopes Filho considera que “com o advento da República ficou traçado o destino do Seminário-Liceu de S. Nicolau e o prelúdio do seu desaparecimento” (2002, p. 225). O Decreto de 8 de Outubro de 1910275 determinava que “os membros das companhias276, congregações, conventos, colégios, associações, missões ou casas de religiosos pertencentes a ordens regulares serão também expulsos do território da República” (art. 6º). Embora a Lei da Separação da Igreja e do Estado não tenha tido aplicação imediata, na colónia277, o Seminário foi objecto de uma campanha 275 Diário do Governo, nº 4, 10 de Outubro de 1910, pp. 17/18. Referência à Companhia de Jesus, a congregação religiosa mais penalizada, em virtude de ter sido retomada a legislação setecentista que provocou a expulsão dos Jesuítas de Portugal: “continua também a vigorar como lei da Republica Portuguesa a de 28 de agosto de 1767, igualmente promulgado sob o regime absoluto, que «explicando e ampliando» a referida lei de 3 de Setembro de 1759, determinou que os membros da chamda Companhia de Jesus, ou jesuitras, fossem obrigados a sair imediatamente para fora do país e seus domínios” (Decreto de 8 de Outubro de 1910, art. 2º). 277 Em 1912, A Voz de Cabo Verde informava: “Na provincia, a Lei da Separação não foi posta em vigor, de modo que a comissão [para tratar da reorganização da instrução primária] não sabia se devia contar com a 276 220 A construção do discurso educativo persecutória. Após a instauração do regime republicano foi notória a desconfiança das autoridades em relação a esta instituição, tendo sido “nomeado o administrador do concelho da ilha de S. Nicolau, capitão Guilherme Reginald Morbey, para syndicar a administração do Seminario de S. Nicolau, e designadamente averiguar qual a proveniencia do deposito de 4:655$415 réis que, por conta da administração do dito seminário, existia na casa «Pedro Coelho Serra & C.ª» de Lisboa”278 (Portaria n.º 2. Boletim Oficial, n.º 1, 7 de Janeiro de 1911, p. 1). “Assim, pode e deve, até, no Seminário, encontrar-se muitos padres bons; ainda que porém, todos os fossem, o Seminário não deixaria de ser, sempre, um fóco de infecção monárquica, uma fábrica de explosivos liberticidas, uma alta escola de traição à Pátria, um ninho de víboras que sugam o sangue da República, e que aguardam, anodinos, e humildes, ocasião propicia de ferrar o dente no seio dos que o sustentam, de envenenar e destruir o corpo sacrossanto da mãe Pátria; um aglomerado homogéneo, forte, que não deixará um só momento de exercer uma acção prejudicial à humanidade, instilando, na alma das gerações cuja educação lhe fôra confiada, o vírus dos fanatismos e das profundas aversões à Liberdade. (...) Há um ponto que não admite duas interpretações: o Seminário é irreconciliavel inimigo da Republica.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 109, 15 de Setembro de 1913, p. 1) O encerramento da instituição religiosa foi determinado pela Lei n.º 701, de 13 de Junho de 1917, marco do processo de laicização do ensino e da decadência da “Atenas cabo-verdiana”: “Artigo 1° São extintas na Província de Cabo Verde as Escolas Praticas de Aprendizagem (…). É também extinta a oficina em S. Vicente, criada pelo decreto de 19 de Junho de 1900; e fica igualmente extinto o Seminário que funciona na Ilha de S. Nicolau. Art. 2° Em substituição das escolas, da oficina e do seminário, mencionados no artigo anterior, é criado um liceu segundo as disposições da presente lei. § 1° Este liceu funcionará, provisóriameute no edifício do seminário extinto, aproveitando-se o respectivo material escolar. No mesmo edifício, funcionarão as aulas do curso profissional, consignadas nesta lei. (...) importante verba destinada ao custeio do seminario, o que a colocava em embaraços para elaborar os orçamentos com o encargo da instrucção primaria obrigatoria” (n.º 49, 22 de Julho, p.1). 278 Num auto de sindicância, o Vice-reitor do Seminário justificava “a proveniencia do deposito de 4:655$415 réis, (...) das economias resultantes da administração do subsidio com que é comtemplado o referido seminario pelo cofre da bulla da cruzada e da das quantias de 120$830 réis e 46$665 réis, ou seja 467$495 réis que recebe mensalmente do cofre da provincia para sustento dos alumnos gratuitos e para a meza dos supervisores e creados” (Portaria n.º 19, 16 de Janeiro de 1911. Boletim Oficial, nº 5, 19 de Fevereiro de 191l, p. 35). 221 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Art. 10° No edifício do seminário extinto, e em que passará a funcionar o liceu, será dado, sem prejuízo para a mais ampla higiene, instalação das aulas, museus, laboratórios, biblioteca e ginásio, alojamento aos professores que, não tendo família, assim o pretendam e bem assim aos alunos pobres que, naturais de outras ilhas, e sem encargo algum para o Estado obtenham permissão do reitor para o fazer.” (Boletim Oficial, n.º 27, 7 de Julho de 1917, p. 259) Três meses depois, o Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde, de 1917279 instituía duas Escolas Primárias Superiores (art. 6º), sendo “uma na Praia e outra em São Nicolau, no edifício do extinto seminário” (§ 1)280. O aniquilamento da instituição religiosa desencadeou reacções, que oscilaram entre manifestações de apologia e de indignação: “Além disso, a modernização do ensino exigia a sua laicização, e Cabo Verde sente-se com direito a possuir alguma coisa mais que um Seminário-Liceu, onde a educação, desenvolvendo, é certo, o intelecto, contudo, por muito monacal e sossegada, e sumamente teórica, não preparava homens para a luta pela vida, violenta e eriçada de guêts-à-pens, que é necessário defrontar e vencer.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 336, 25 de Março de 1918, p. 1) “De São Nicolau, a bela ilha hesperitana, (…) um brado de protesto281 digno dirigido a todos os caboverdeanos, em geral, e aos poderes públicos, em especial, pelo despreso a que foi votada a instrução naquela ilha que, ainda até poucos anos, era considerada a Atenas caboverdiana, «si parva licet componere magnis», como diria o mavioso poeta latino.” (O Correio d’África n.º 20, 15 de Dezembro de 1921, p. 1) Volvidos oito anos, José dos Reis Borges acusava: ”Foi o Seminário extinto... e contra essa extinção, que representa um gravíssimo êrro administrativo, para não dizer crime tremendo, protestámos na imprensa caboverdeana; mas a nossa voz era muito débil (...) Abafaram-no, infelizmente, as ondas do Atlântico...” (Boletim, n.º 45, Março de 1929, pp. 198-199). 279 Decreto nº 3.436, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 ao Boletim Oficial, nº 43, 30 de Outubro de 1917 (apêndice D). 280 Os professores do extinto seminário [passaram] a docentes da escola de Ensino Primário Superior de São Nicolau com o vencimento de exercício de 390$” (art. 33º). 281 O apelo para uma subscrição com o fim de se subsidiar a Escola Primária Superior, que funciona no edifício do Seminário, foi aprovado por unanimidade por representantes de todas as classes sociais de S. Nicolau, reunidos em Sessão Magna, 12 de Dezembro de 1921 (O Correio d´África, n.º 20, 15 de Dezembro de 1921, p. 1). 222 A construção do discurso educativo Extinto o Seminário-liceu, o edifício continuou a ser casa de educação. Foi escola primária elementar, complementar e superior282, Instituto de Instrução Secundária e Instituto Caboverdiano de Instrução. A comunidade letrada e uma parcela significativa da opinião pública pugnaram pela sobrevivência do Seminário, cujos caminhos se cruzavam com a disputa pela liderança estratégica do arquipélago: S. Nicolau? Mindelo? Praia? 282 Apesar da medida que extinguiu o Seminário, “como providência transitória de equitativo benefício”, foi permitido “que o internato que ali estava estabelecido funcione para os cursos de instrução primária complementar e instrução primária superior (1ª classe sómente) ainda durante o corrente ano lectivo, findo o qual será definitivamente encerrado” (Portaria n.º 414, 27 de Setembro de 1917. Boletim Oficial n.º 49, 8 de Dezembro de 1917, p. 444). 223 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 7.2. Os Institutos de Instrução Hoje, do nosso antigo Seminário Só resta em seu conjunto o edifício, Que se ergue como o altar dum sacrifício, Mas de Mória passando a ser Calvário... Da descrença dum tempo ingrato e vário A sua queda é um eloquente indício Que, ao menos, desse altar, a Deus propício Suba a chama dum círio funerário. E seja a gratidão, sentida e imensa, De quantos já beberam LUZ e CRENÇA! Os homens só pouparam os seus muros! Passando o mar Vermelho a pé enxuto Deram-lhe o novo nome de “Instituto”, Legando o outro aos séculos futuros... (José Lopes, Domus Mater283) Instituto de Instrução Secundária A reforma do sistema escolar (1918)284 – supressão do ensino primário superior e extinção do liceu – marca mais um episódio da conturbada história da casa do Dr. Júlio José Dias, que acolheu o Instituto de Instrução Secundária. “Art. 17° O ensino secundário e normal será ministrado no Instituto de Instrução Secundária que por este diploma é criado. § 1° Este Instituto funcionará provisoriamente e só enquanto a colónia não tenha alojamento próprio noutra ilha, no edifício do extinto Seminário da Ilha de S. Nicolau, aproveitando-se o respectivo material escolar, devendo também para lá remeter-se todo o material pertencente ao Liceu Nacional de S. Vicente, que fica extinto por êste diploma. (...) Art. 18° O ensino secundário ministrado no Instituto constará das matérias do Curso Geral dos Liceus da metrópole, abrangendo 5 classes, repartidas por duas secções, 283 José Lopes foi aluno do Seminário entre 1882 e 1887, dos dez aos quinze anos de idade (Silva, 1992. Notícias, 18 de Março de 1992, p. 15). 284 Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde. Portaria n.º 474, 27 de Dezembro de 1918. Supl. n.º 14 ao Boletim Oficial n.º 52, 31 de Dezembro de 1918 (apêndice D). 224 A construção do discurso educativo compreendendo a primeira secção as três primeira classes e a segunda as duas seguintes. § único. Nas 2ª e 3ª classes haverá, alem das disciplinas liceais e em dias alternados, uma cadeira prática de escrituração comercial, cadeira que também será ministrada uma vez por semana na 5ª classe.” O projecto do Instituto de Instrução Secundária foi efémero. Na casa do Seminário funcionaram, com regularidade, as aulas de instrução primária, com estatuto de “colégio partícular”: Figura 35. Na casa do Seminário, “um colégio particular como qualquer outro” (Nota anexa à carta do Vice-Reitor do Seminário, 30 de Junho de 1921285) 285 Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo. IAHN. 225 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A imprensa foi o repositório crítico do abandono “dos magníficos prédios do extinto seminário, que de dia para dia se vão deteriorando sem nenhuma utilidade, desaproveitados”. O articulista de O Manduco argumentava: “abandona-los aos ratos e à consumação do tempo é uma cousa que nos repugna escrever; mas utilisalos para a instalação do Liceu Nacional é um acto benemerente de govêrno; é uma prova de bom senso, de claro espírito de economia e nobre amor à instrução” (n.º 2, 1 de Setembro de 1923, p. 2). Instituto Cabo-verdiano de Instrução No ano de 1925, “nos edifícios e propriedades do Seminário” foi criado outro instituto, vocacionado para a instrução primária e secundária: “Artigo 1º É criado em S. Nicolau e nos edifícios e propriedades do antigo seminário, que o fim o Governo da colónia cede sem qualquer renda, o Instituto Caboverdiano de Instrução, com internato e externato, onde se professarão as disciplinas do curso geral dos liceus metropolitanos e com a adopção dos programas oficiais, além da instrução primária, segundo as leis vigentes na colónia.” (Portaria n.º 58. Boletim Oficial, n.º 30, 25 de Julho de 1925, p. 224) Era uma escola religiosa dirigida, inicialmente, pelo bispo da diocese e, mais tarde, pelo“cónego professor mais antigo, António José Bouças”. Os professores tinham pertencido ao corpo docente do extinto Seminário (Portaria de 6 de Novembro de 1925) 286. Foi reconhecida a necessidade de se criar “um internato onde as crianças melhor possam instruir-se e educar-se”, considerando que “tambêm das importantes e ricas colónias caboverdianas da América do Norte e Guiné, se têm representado no mesmo sentido” e que o “Estado possue na ilha de S. Nicolau importantes edifícios que se apropriam absolutamente para o fim em vista e que de nada estão servindo desde que foi extinta a Escola Primária Superior, que ali funcionava”287. O regulamento do Instituto Caboverdeano de Instrução (Boletim Oficial, n.º 47, 21 de Novembro de 1925, p. 356) dá-nos interessantes informações sobre a vida quotidiana de um internato: 286 Foi nomeado director o Cónego António José Bouças, ex-reitor do Seminário-Liceu. Pela mesma portaria foram nomeados professores: os cónegos Adriano Reimão de Serpa Pinto e José Correia e os cidadãos, Luís de Almeida Gominho, António José St. Aubyn e José da Encarnação Amaral (Portaria de 6 de Novembro de 1925. Boletim Oficial, nº 45, 7 de Novembro de 1925, p. 348). 287 A Portaria n.º 22 introduziu alterações ao diploma que criou o Instituto Caboverdeano de Instrução (Boletim Oficial, nº 41, 10 de Outubro de 1925, pp. 309-310). 226 A construção do discurso educativo “O enxoval de um aluno: Art. 6º Cada aluno interno terá, pelo menos, o seguinte enxoval: 8 camisas de dia, 3 colarinhos de gôma, 6 colarinhos moles, 3 camisas de dormir, 6 pares de ceroulas para banho, 4 camisolas, 12 pares de meias, 6 toalhas de cara, 2 toalhas de banho, 6 guardanapos, 1 fato preto, 2 fatos brancos de cotim, 3 fatos de côr, de kaki ou cotim, 2 pares de botas ou sapatos para sair, 2 pares de botas ou sapatos para recreio, 1 par de sapatos para andar por casa, 1 escova de fato, 1 escova para os dentes, 2 pentes, sendo um miúdo, 1 espelho pequeno, 1 calçadeira, 1 tesoura para unhas, 1 catre de linhagem ou de ferro, tendo este enxerga, colchão e ambos travesseiros e travesseirinhos e 4 fronhas, 6 lençois, 2 cobertores de chita e 1 de lã, 1 bacia de cama, 1 lavatório de ferro com bacia e jarro de ferro esmaltado e 1 talher completo. A dieta alimentar: Art. 7º Haverá 3 refeições diárias: 1ª Até ás 8 horas, pequeno-almoço composto de café ou chá com ou sem leite, conforme o haja ou não no mercado. 2ª Até às 11 horas e meia horas, almoço composto de 2 pratos, sendo, sempre que possível, um de peixe. 3ª Até às 17 e meia horas, jantar composto de um prato de sôpa e dois pratos variados, sendo um de legumes e sobremesa de fruta sempre que se possa adquirir no mercado.” (Boletim Oficial, n.º 47, 21 de Novembro de 1925, p. 356) “Internato para meninas Recebem-se alunas em idade escolar que pretendam frequentar o Instituto Caboverdiano de Instrução estabelecido nesta ilha. Para informações dirigir-se a Maria da Conceição St’ Aubyn – S. Nicolau.” (Boletim Oficial, nº 46, 14 de Novembro de 1925, p. 354) No ano lectivo de 1925/26, o Instituto tinha 57 alunos, sendo 6, de instrução primária e 51, de instrução secundária. Apesar de aceitar meninas, a maioria dos alunos era do sexo masculino (82,4%). A caraterização dos alunos de instrução primária e secundária, em função dos indicadores de frequência (género, raça e aproveitamento escolar), foi apresentada no quadro “Movimento dos alunos no ano lectivo de 1925-1926”, publicado no Boletim Oficial n.º 39, 25 de Setembro de 1926. 227 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Figura 36. Corpo discente do Instituto Caboverdeano de Instrução As vicissitudes da casa do Seminário não terminaram com a fugaz história dos Institutos – o Instituto de Instrução Secundária e o Instituto Cabo-verdiano de Instrução. O futuro reservar-lhe-ia um destino ingrato, transformando-o em prisão. Em 1931 o edifício foi adaptado para receber uma leva de militares e civis portugueses que se tinham revoltado contra Salazar288. Foi então oficialmente designado “Campo de Concentração dos Deportados Políticos” (Oliveira, 1998, p. 82). João Nobre de Oliveira conclui com um desabafo: “Triste fim para um edifício que fora antes Templo do Saber! (Mas revelar-se-ia um campo «benévolo» e insuficiente. Poucos anos depois o regime construiria outro de raiz, no Tarrafal da ilha de Santiago)”. 288 “Revolta da Madeira”, no ano de 1931, “sob o comando de oficiais que aí se encontravam deportados, e que conseguiram resistir durante quase um mês” (A. H. de Oliveira Marques, 1986, p. 368). Um núcleo de exilados – de que se destacaram o Tenente Manuel Ferreira Camões e o Capitão Sílvio Pélico – apelou à revolta das unidades militares do continente, Açores e colónias. No rescaldo da revolta, os dois militares foram exilados em Cabo Verde, onde se radicaram (informação do Dr. Carlos Alberto Mendes Fonseca). 228 A construção do discurso educativo 7.3. Finalmente, o Liceu Liceu na Praia A Praia foi dotada de um Lyceo Nacional289 (1860), dois anos após ter sido elevada a cidade. A abertura solene das aulas efectuou-se, com desusada pompa no meio de salvas de canhão, no dia 7 de Janeiro de 1861, nos Paços do Concelho, onde o Liceu ficou instalado” (Silva, 1992, pp. 14-15). “Ficam estabelecidas na cidade da Praia, e reunidas em um mesmo edifício para esse fim adequado, as seguintes Cadeiras já existentes: Ensino Primário – Latim – Philosophia Racional e Moral – Teologia – ás quaes se addicionarão as de Francez – Inglez – Desenho – Mathematica Elementar – Rudimentos de Náutica.” (Art. 1º, Circular nº 313 – A, 15 de Dezembro de 1860) No ano de 1861 contava com a frequência de 35 alunos e, no ano seguinte, a frequência reduziu-se a 23 alunos290. A crise de ensino (com falta de professores291) explica a sua cessação formal em 1867. No início do século XX, por ocasião da visita do Príncipe Dom Luís Filipe à colónia de Cabo Verde, as crianças da Praia292 pediram ao Príncipe a criação de um liceu: “Augusto Príncipe! Sereníssima Alteza! Escutae a voz da innocencia e attendei, benigno à sua supplica que representa o mais vehemente desejo, mais lídima aspiração do povo caboverdeano de cujos sentimentos são interpretes esses pequeninos seres que ora se curvam perante vós, pedindo-vos a luz, implorando-vos o pão de espírito. (...) Por isso, Sereníssimo Senhor! Os abaixo assinados, convictos de que os gastos com a instrução nacional nunca são exaggerados de que prestam um valioso serviço ao paiz que tanto amam, impetram o alto patrocínio de Vossa Alteza Real para que n’esta Cidade da Praia seja criado um Lyceu (...), contribuindo, ao mesmo tempo, para justificar o aphorismo: «que um paiz vále o que vále a sua instrucção». (Seguem assignaturas de creanças)” (Cabo Verde, 1907, pp. 1-2). 289 Circular nº 313-A, 15 de Dezembro de 1860. Boletim Oficial, n.º 83, de 22 de Dezembro de 1860. Acolheu também alunos de instrução primária (1861:108; 1962: 119). Boletim Oficial, nº 10, 21 de Março de 1863; Boletim Oficial, nº 43, 7 de Novembro de 1863. 291 Demitiram-se os professores de Francês e Inglês (Portaria, 4 de Dezembro de 1861. Boletim Oficial nº 47, 7 de Dezembro de 1861) e de Latim (Portaria, 24 de Julho de 1863. Boletim Oficial nº 4, 7 de Fevereiro de 1863). Com a criação do Seminário-Liceu de S. Nicolau “foram chamados alguns professores (…) para desempenhar as funcções do seu cargo no seminário creado” (Boletim Oficial nº 4, 26 de Janeiro de 1867). 292 O pedido para a abertura de um liceu na cidade da Praia foi elaborado pelo cónego Duarte da Graça (Oliveira, 1998, p. 233). 290 229 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Projecto sociopolitico Em nossa opinião, o acesso a níveis elevados de saber é um dos traços da caboverdianidade. O ensino liceal – o patamar do conhecimento mais elevado e possível nas ilhas – era considerado um elemento fundamental de progresso. “Como poucos são aquelles que dispõem de meios sufficientes para enviar seus filhos para educar, e muitos os que os educariam dentro do archipelago, é obvio que, além das escolas primarias, deveria tambem crear-se um Lyceu Provincial de proporções modestas. (...) A creação do Lyceu acceleraria o progresso e o desenvolvimento local, vulgarisando os conhecimentos humanos na provincia, por meio de um curso facil, mas completo, adequado às necessidades do paiz.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 7, 12 de Abril de 1911, p. 2). “Cabo Verde precisa dum liceu. Já o devia ter, há muito tempo. Não é justo nem assenta bem no decôro nacional que a mais genuinamente portuguêsa de todas as Colonias, habitada por um povo inteligente, dócil, honesto e bom, não tenha ainda esse melhoramento, morando além disso tam proximo da Mãe Pátria. (...) Cabo Verde pede a instancias a criação dum liceu em condições de poder satisfazer as suas legítimas aspirações. É um pedido justissimo, um direito incontestavel, uma imperiosa necessidade. Todos o reconhecem.” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 89, 17 de Março de 1913, p. 2) O movimento cívico, promotor do ensino liceal, ultrapassou a retórica dos jornais e traduziu-se em iniciativas da sociedade civil e dos municípios. O projecto de Curso de Ensino Secundário, na ilha Brava, concretizou uma dessas iniciativas: “É creada, na mesma povoação [de São João Baptista], uma escola de instrucção secundaria para o sexo masculino, regida por professor diplomado, habilitado a leccionar as materias que constituem o 1º, 2º e 3º anno dos lyceus da metropole. O curso da escola de instrucção secundaria é destinado à instrução e educação dos filhos dos municipes da ilha Brava, podendo, comtudo, a falta do número de alumnos, ser preenchida com estranhos a este concelho. O curso de escola de instrucção secundaria será professado em tres annos e constituido pelas disciplinas do 1º, 2º e 3º anno dos lyceus da metropole.” (Boletim Oficial, n.º 27, 27 de Abril de 1912, p.159) O Colégio Esperança293, em Mindelo, era uma instituição particular “de educação e ensino neutro“ (art. 1º, Estatutos). Contemplava “o curso geral dos liceus, pelos programas da metrópole, sendo porêm mais intensos os exercícios práticos de composição e conversação em Português, Inglês e Francês, mais vasta a Educação 293 Na Parte II, Cap. 3, analisamos o curso de instrução primária do Colégio Esperança (págs. 121/22). 230 A construção do discurso educativo Física e Cívica, e mais prolongada e variado o ensino artístico e profissional a ambos os sexos” (art. 2º). Dividia-se em duas secções, compreendendo a 1ª (inferior), os três primeiros anos, e a 2ª (média), os últimos dois anos, ou classes do curso geral dos liceus oficiais” (Boletim Oficial, n.º 52, 26 de Dezembro de 1914, p. 474). A Comissão Municipal de São Nicolau, cônscia do eminente encerramento do Seminário-liceu, preparou o caminho para a instalação do ensino liceal laico: “Nesta sessão compareceram uma grande parte dos munícipes deste concelho e pelo cidadão Nicolau Ramos, escolhido de entre eles, foi dito que ao saberem que há da parte do Governo a intenção de criar um Liceu nesta Província, calcularam que tal instituição pode trazer como consequência a extinção do Seminário-Liceu que se acha estabelecido nesta ilha, onde tem prestado valiosos beneficios e onde o seu desaparecimento importaria um grande prejuízo. Nestas circunstâncias se apresentam a Exma. Comissão Municipal com o fim desta corporação, na qualidade de representante do povo, rogar ao Gôverno da Provincia queira conseguir do Governo da Metrópole que a não poder subsistir o Seminário-Liceu desta diocese e a ter de ser substituído por um Liceu, própriamente tal, o novo estabelecimento fique colocado nesta ilha.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 17, 31 de Agosto de 1913, p. 2) Augusto Vera-Cruz, senador pelo círculo de Cabo Verde (1912 a 1926), apresentou, no mesmo ano, um projecto de liceu e a proposta de extinção do Seminário e das Escolas de Aprendizagem: “Por esse projecto – artigo 1º – serão extinctas as Escolas de Aprendizagem e o Seminario de S. Nicolau, sendo criado em sua substituição, e naquela ilha, um liceu de organização idêntica à que, pelo Decreto de 23 de Agosto de 1906, foi mandado vigorar para os liceus instituídos em Gôa e em Macau. O curso professado será de cinco anos e compreende – artigo 2º – as seguintes disciplinas: Língua e Literatura Portuguesa, Língua Francesa, Língua Inglesa, Língua Latina, Geografia e História, Matemática e Geometria, Escrituração e Contabilidade Comercial, História Natural, Química e Física, Desenho. Estamos pois em face de uma iniciativa de um ilustre filho de Cabo Verde, que por todos os meios ao seu alcance se tem esforçado, com uma perseverança e actividade que o honram, por ser útil à sua província. A sua ex.ª apraz-nos patentear o quanto o arquipélago se tem interessado pelo seu trabalho, acompanhando a sua acção parlamentar. Vejamos, analisando rapidamente o projecto, quais são as vantagens que advirão do estabelecimento do liceu em S. Nicolau: a) Aproveitarem-se, economicamente, os actuais professores do seminário; b) Existir já um edifício quanto possível apropriado ao ensino liceal; c) A tradição escolar da ilha; d) A vida barata e a benignidade do clima. 231 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Agora os inconvenientes: As dificuldades que existem no recrutamento de professores, que sejam funcionários do Estado, estranhos à vida eclesiástica.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 10, 3 de Julho de 1913, p.1) A discussão pública do projecto deu voz a duas correntes de pensamento, em torno da localização do liceu (pólo de desenvolvimento) e da natureza curricular (liceal, clássico versus técnico, profissional). A candidatura de S. Nicolau a sede do liceu laico teve o apoio do município e dos naturais da ilha, com ênfase para os intelectuais formados no Seminário. Entretanto, surgiram candidaturas das urbes da Praia e de Mindelo. “Põe-se agora, em vista da resolução do Sr. Dr. Almeida Ribeiro as seguintes questões: onde será colocado o liceu, e a quem será confiado o ensino? A nosso vêr, ainda que tenhamos já ouvido opinião divergente, que não nos convence, o liceu deverá ser colocado na Praia. As razões que militam a favor desta ilha são: a) É onde está a capital da província; b) A relativa barateza da vida; c) A de maior população. Pode-se, porêm, opinar que o clima é mau e depauperante. Quanto à malignidade do clima passou à história. Desde que se começou a tratar, a valer, do saneamento da cidade, êsse carácter doentio, que apresentava, desapareceu. O clima é, sem dúvida depauperante e sôbre tudo para os que não nasceram aqui; mas não é menos certo que a população escolar filha das restantes ilhas, indo a férias, encontrará nos dois meses do encerramento do liceu, o tempo preciso para adquirir novas energias para a labuta do novo ano lectivo.” (O Independente, n.º 36, 2 de Maio de 1913, p.3) “É evidente que houve factores de ordem económica que determinaram, em última análise, a implantação do liceu na ilha de S. Vicente, entre eles o desenvolvimento da navegação a vapor, a necessidade de telecomunicações rápidas e eficientes, a própria implementação do comércio, o que se explicava pela existência do Porto Grande, estrategicamente situado, na conjuntura mundial de então, nas rotas em demanda de portos situados nos quatro continentes – Europa, África, América, e Ásia. Embora a abertura do Canal Suez, em 1869, tivesse roubado muita navegação ao Porto Grande, um número avultado de barcos continuava a fazer a rota do Cabo, o que os obrigava a escalar a ilha de S. Vicente, para reabastecimento.” (Silva, 1992, p. 14) O ensino secundário oscilava entre dois paradigmas: (1) o liceal, associado à “alta cultura” e “ampla sciência” para “gente de carteira, de pena, cérebros cultos, intelectualidade preparadas” e (2) o técnico-profissional conveniente para as colónias e o bastante “para servir e amar os patrões”. 232 A construção do discurso educativo “Não são precisos liceus nas colónias, tal norma inalteravelmente se tem seguido, como se os povos, quaisquer que êles sejam, desde os que orientam e dirigem as sociedades, até os mais atrazados, não fossem dignos todos, uns de intensificar a alta cultura que possuem, e outros para enveredar pela estrada segura e ampla da sciência e da concorrência. Mas não; para as colónias convém apenas escólas praticas de ensino profissional, cabendo aos outros povos, aos que disfrutam, o dever de aproveitar os seus trabalhos. (...) Sim, já que não se pode criar, nestas ilhas, um liceu, venham, pelo menos, escolas de artes e ofícios, que deve ser o mesmo. Gente de carteira, de pena, cérebros cultos, intelectualidades preparadas; doutores, oficiais, chefes, patrões, comités, tudo nos pode vir de fora e, é tontice quererms para Cabo Verde, um liceu. A nós basta-nos saber ler, escrever e contar. Para servir e amar os patrões é o bastante. E já não é máu. Um pouco aviltante, e nada mais.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 10, 3 de Julho de 1913, p.1) Em contraste com a valorização social do liceu, as “escolas de artes e ofícios” respondiam a aspirações menos “elevadas” da população e a cargos de subalternidade “que ficam bem aos homens da nossa raça e côr” (A Voz de Cabo Verde, n.º 212, 20 de Setembro de 1915, p.2). Liceu Nacional de Cabo Verde A Voz de Cabo Verde, 2 de Julho de 1917, anunciava que “graças ao esforço inteligente e ao patriotismo dos seus representantes no Parlamento, Cabo Verde foi dotado de um Liceu!” (editorial). O liceu era apresentado como “um instituto de educação laica, livre do espírito religioso, em todos os tempos, caracterizadamente convenientista e despótico”. A primeira página do periódico reproduzia a Lei n.º 701, de 13 de Junho de 1917294, de que transcrevemos um excerto: “Art. 2° Em substituição das escolas, da oficina e do seminário, mencionados no artigo anterior, é criado um liceu segundo as disposições da presente lei. § 1° Este liceu funcionará, provisoriamente no edifício do seminário extinto295, aproveitando-se o respectivo material escolar. No mesmo edifício funcionarão as aulas do curso profissional, consignadas pela lei. Art. 3° O ensino deste liceu divide-se em dois cursos: geral e profissional. § 1° O curso geral é idêntico ao curso geral dos liceus, 1ª secção, completado pelo ensino de trabalhos manuais, como se vê no seguinte quadro: 294 Boletim Oficial, n.º 27, 7 de Julho de 1917, p. 260. O jornal explicava que “na impossibilidade de ser presentemente construído um edifício adequado para o liceu, que a lei determina esse aproveitamento [do Seminário], para que, o mais breve possível, talvez no princípio do próximo ano lectivo, entre esse estabelecimento de enino em laboração” (n.º 300, 2 de Julho de 1917, p. 1). 295 233 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Lições por semana Disciplinas Português Francês Inglês Geografia e História Sciências Físicas e Naturais Matemática Desenho Educação Física T. Manuais em cartão, madeira e ferro 1ª classe ou 1º ano 5 4 - 3 3 5 3 3 1 27 2ª classe ou 2º ano 4 3 4 3 2 4 3 3 1 27 3ª classe ou 3º ano 3 3 4 2 4 4 3 3 1 27 Total 12 10 8 8 9 13 9 9 3 81 Art. 4° O ensino neste liceu será ministrado por seis professores e dois mestres de oficina escolhidos em concurso documental, realizado no Ministério das Colónias, acumulando os professores o ensino das disciplinas pela seguinte forma: Português, Geografia e História – l professor: Francês e Inglês – l professor; Matemática, Física geral, materiais de construção e suas aplicações – l professor: Sciências físicas e naturais. Higiene e Educação física – l professor; Rudimentos de agricultura, Arboricultura e silvicultura, Escrituração e contabilidade agrícola, comercial e industrial – l professor; Desenho liceal e industrial, Trabalhos manuais, estudo de modelos e direcção de trabalhos oficinais – l professor.” A matriz curricular representava uma solução de compromisso entre as vias liceal e técnica do ensino secundário296. Na realidade foram ministradas, apenas, as disciplinas do modelo liceal297. A referência era o “liceu da metrópole”, tendo-se estabelecido “que o diploma do curso deste liceu [desse] ingresso à matrícula, no 4° ano do curso geral dos liceus na metrópole” (art. 8º). A acção parlamentar de Augusto Vera-Cruz foi decisiva para a instalação do liceu na cidade de Mindelo. Inconformado com a determinação legal da sua localização na ilha de S. Nicolau, removeu um dos alegados obstáculos à instalação do liceu na ilha do Porto Grande – a inexistência de edifício adequado – cedendo a sua própria casa, um palacete no centro da cidade298. 296 Disciplinas de cariz técnico: Rudimentos de Agricultura, Arboricultura e Silvicultura, Escrituração e Contabilidade Agrícola, Comercial e Industrial; Desenho Liceal e Industrial, Trabalhos Manuais, Estudo de Modelos e Direcção de Trabalhos Ofícinais. 297 Cf. Horário do Liceu Provincial, publicado no Boletim Oficial, n.º 49, 8 de Dezembro de 1917, p. 444. 298 Onde funcionou, mais tarde o Grémio Recreativo, a Rádio Barlavento e hoje é o Centro Nacional de Artesanato (Oliveira, 1998, p. 398). 234 A construção do discurso educativo O Plano Orgânico da Instrução Pública (1917)299 enquadrou o liceu no sistema educativo e legitimou a sua instalação na cidade de Mindelo. “Art. 11° O ensino secundário é ministrado no Liceu Nacional, criado pela Lei n.º 701, de 13 de Junho de 1917, com sede em S. Vicente. § único O curso liceal será a reprodução exacta do curso geral dos liceus metropolitanos, com exclusão do ensino de alemão. Designação Categoria 1 Reitor Professores efectivos: 2 1° grupo – Português e Latim 1 2° grupo – Português e Francês 1 3° grupo – Inglês 1 4° Grupo – Geografia e História 1 6° grupo – Sciências Naturais 1 7° Grupo – Sciências Fisico-Quimicas 1 8° grupo – Matemática 1 9° grupo – Desenho e Geometria 1 Professor de Ginástica 1 Secretário 2 Guardas 3 Serventes 600$ 600$ 600$ 600$ 600$ 600$ 600$ 600$ 600$ 150$ Vencimentos Exercício 600$ 600$ 600$ 600$ 600$ 600$ 600$ 600$ 300$ 120$ 150$ Total 1.200$ 1.200$ 1.200$ 1.200$ 1.200$ 1.200$ 1.200$ 1.200$ 900$ 120$ 300$ 180$ (Quadro dos professores e mais pessoal do Liceu Nacional e seus vencimentos300) O Liceu Nacional de Cabo Verde foi inaugurado no dia 19 de Novembro de 1917, em cerimónia que contou “com a assistência de S. Ex.ª o Governador301, Câmara Municipal, autoridades civis e militares, representantes do comércio e indústria, funcionários públicos, professores, alunos matriculados e outras pessoas” (Boletim Oficial, nº 47, 24 de Novembro de 1917, p. 426). Na sessão solene foram evocados o Senador Augusto Vera Cruz, que “com uma dedicada pertinácia de quatro anos, conseguiu que o Parlamento da Republica votasse a lei n.º 701” e o Ministro das Colónias, Comandante Ernesto Vilhena, que “reconheceu que Cabo Verde, a mais antiga jóia ultramarina e a mais genuinamente nacional das colónias portuguesas, merecia bem mais do que um liceu até à terceira classe”. O liceu abria pobremente em “casa alugada, pouco mobiliário escolar, nenhum material didáctico”, mas com “bons professores”, tendo sido anunciada a escolha de um “terreno para o liceu302”. 299 Decreto nº 3.345, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 Boletim Oficial, n.º 43, 30 de Outubro de 1917, pp. 1-4 (apêndice D). 300 Anexo ao Decreto n.º 3.345, 8 de Outubro de 1917. 301 Abel Fontoura da Costa (1915-1918). 302 Sobre a área do terreno para o liceu (120X110 metros, ou seja uma área de 13:200 metros quadrados), o Governador esclareceu: “admitindo que os edifícios possam abranger 2:500 a 3:000 metros quadrados, ainda 235 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Mal tinha nascido, foi legalmente extinto (Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde, de 1918)303 e substituído por um simulacro do Seminário, o Instituto de Instrução Secundária. O Dr. Mário Ferro, representante da ilha de S. Vicente no Conselho do Governo da Colónia304, contestou esta deliberação e defendeu a permanência do liceu em Mindelo. “O outro êrro concretiza-se em se ter votado a extinção do Liceu Nacional de Sam Vicente, embora o tivessem cometido, partindo do princípio falível de que a transferencia do ensino secundário para a ilha de Sam Nicolau é de caracter provisório. Uma vez estabelecido o Instituto de Instrução Secundária na ilha de Sam Nicolau, dada a nossa proverbial tendencia para deixar as cousas onde estão, nunca mais de lá sairá! Nem o regime de internato, nem o aproveitamento temporario do edifício do extinto Seminario-Liceu eram razões de seduzir, desde momento em que quiséssemos ponderar as diversas razões de ordem pedagógica e moral que aconselhavam a conservação do Liceu Nacional em Sam Vicente. Continuamos a afirmar que a ilha de Sam Vicente é o centro naturalmente indicado para a instalação do Liceu, já por ser o lugar onde as crianças podem adquirir o desenvolvimento de espírito necessário, já porque ali se pode imprimir ao ensino das línguas vivas uma feição prática, já porque é a ilha que mais comunicação tem com as restantes ilhas do arquipélago.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 342, 6 de Maio de 1918, p. 1) Esta tese contrariava a posição expressa na acta da 6ª sessão do Conselho do Governo, de que transcrevemos um excerto: “Estabelecer um liceu em Sam Vicente, cidade cosmopolita, com a depravação inerente a tais meios, esgôto das depravações e perversões da marinhagem de todos os países, é lançar as crianças no seio duma cloaca que não tardaria a infecta-las; o resultado era de prever: as farmácias a breve trecho povoam-se de liceais infectados pelo vírus venéreo que é o maior propulsor da decadência duma raça. É preciso, pois, desvia-lo daqueles meios de prostituição e pelo regime de internato proporcionar-lhes uma educação completa: fazer de rapazes acanhados, homens fortes física e moralmente, de vontade enérgica, e aptos a triunfarem na vida. É preciso empregar todos os meios para uma educação forte e criteriosa, bem para caracteres nêste meio, que como todos os tropicais imprime aos seus habitantes um feitio indolente e contemplativo.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 345, 27 de Maio de 1918, p. 2) nos ficará mais de um hectare, para jogos e desportos” (Boletim Oficial, nº 47, 24 de Novembro de 1917, p. 426). 303 Portaria nº 474, 27 de Dezembro de 1918. Supl. nº 14 ao Boletim Oficial, nº 52, 31 de Dezembro de 1918, pp. 1-5 (apêndice D). 304 Em 1917, o advogado Mário Ferro e o comerciante António Miguel e Carvalho foram eleitos para representar a Ilha de São Vicente no Conselho do Governo (Oliveira, 1998, p. 731). 236 A construção do discurso educativo Mário Ferro, em defesa do liceu, afiançava que “o perigo do excesso de diplomados não é de recear [porque] os quadros dos serviços públicos são até certo ponto reduzidos, e necessariamente teem de ser preenchidos, porque o funcionário publico longe de ser o ente parasitário que se imagina é elemento tão preciso ao regular o funcionamento do organismo social” (A Voz de Cabo Verde, n.º 341, 29 de Abril de 1918, p. 1). Um grupo de 68 cidadãos mindelenses – proprietários, maiores contribuintes, comerciantes e trabalhadores – subscreveram uma petição à Câmara Municipal para a continuidade do liceu na cidade, “perfeitamente indicada para a instalação conveniente do Liceu, tanto mais que o publico se encontra disposto para todos os sacrifícios, afim de que se mantenha um estabelecimento em S. Vicente (...), a mais conhecida de todas as suas irmãs, e onde nos tempos normais tocam estrangeiros de todo o mundo” (26 de Abril de 1918305). Figura 37. Estação Telegráfica – S. Vicente, cerca de 1910 Ed. Bazar Central Bonucci & Frusoni. (Loureiro, 1998, p. 18) 305 Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 237 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A sociedade mindelense impôs o seu querer. Para se compreender melhor a importância “da cidade do Porto Grande, é preciso ter em conta que era no Mindelo que se encontravam os melhores empregos, caso do Telégrafo Inglês (Western Telegraph Company), do Italcable, da maior Alfândega, da sede do BNU, – depois transferido para a Praia – das maiores casas comerciais, tanto nacionais, como estrangeiras, etc.” (Oliveira, 1998, p. 394). A casa cedida pelo Senador Augusto Vera-Cruz para a instalação do liceu foi uma solução provisória. Três anos decorridos, o reitor, Henrique Owen Pinto advertia: “O Liceu não tem edifício próprio; quando o proprietário exigir êste, ficaremos desalojados. Por todas as formas, oficial e extra oficialmente, tenho tentado, desde que me foi entregue a direcção desta escola, obter uma instalação destinada exclusivamente ao seu funcionamento. Grandes dificuldades tém impedido o Govêrno de o construir; não monetárias, rendimentos têm a Instrução; mas dificuldades de materiais, mão-de-obra e outras. E não há edifício. Um conheço eu, do Estado. Não é o ideal, mas, provisoriamente, satisfazia; a residência dos oficiais da 3ª zona. Inteiramente isolada do Quartel, utilizando, apenas, a parada exterior, para recreio dos rapazes, era aproveitável.” (Discurso, 5 de Outubro de 1920306) Figura 38. Edifício onde o Liceu e os Correios foram instalados (Loureiro, 1998, p. 26) 306 Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 238 A construção do discurso educativo O Reitor explicava o aumento de reprovações “pela desmoralização que os alunos têm sofrido pelas más condições da instalação desta escola” (relatório de actividades, 1922/23307), acrescentando que “os alunos devem ter um páteo interior onde se divirtam nos intervalos das aulas sob as vistas dos professores”, como tinham “na antiga casa ocupada pelo liceu”. O relatório de actividades refere, ainda, que “continuam sendo interinos os professores do Liceu”, acrescentando “é uma escola bem provisória!...” O reitor Owen Pinto propunha “a nomeação definitiva dos professores, para dar a esta instituição uma estabilidade que ela ainda não possui” (idem). Quadro 53 – Liceu Nacional de Cabo Verde: professores e disciplinas – 1919 Professores 1.º Tenente Henrique Owen Pinto Dr. João Gualberto Pinto Dr. Jaime Tomé Simão José Barbosa Alberto Atílio Leite Vicente António Martins Alferes Artur Rebelo Almeida Cadeiras que os professores regem 2ª classe Inglês e Desenho Sciências Naturais e Desenho Sciências Naturais Português Português e Matemática Francês Francês Geografia Geografia e Matemática Ginástica Ginástica 1ª classe 3ª classe Inglês e Matemática Sciências Naturais Português e Latim Desenho Francês e História Geografia Ginástica (Boletim Oficial, n.º 47, 22 de Novembro de 1919, pp. 417-418) Quadro 54 – Liceu Nacional de Cabo Verde: professores e disciplinas – 1921 Professores I classe II classe III classe IV classe 1.º Ten. Henrique Owen Pinto Dr. João Gualberto Pinto Português e Sciencias Naturais Inglês Sciências Naturais Dr. Dario Mendes Calisto Simão José Barbosa Alberto Atílio Leite Vicente António Martins Artur Rebelo de Almeida Acácio J. Rodrigues Lage Geografia Mat. e Ginástica Desenho, Francês Ginástica Inglês Sciências Naturais e Físico-Química Português e Latim Francês Geografia e História Desenho e Ginástica Matemática e Ginástica Inglês e Matemática Sciencias Naturais e Físico-Química Português e Latim Francês Geografia e História Desenho e Ginástica Ginástica Português Francês e Matemática Geografia Desenho Ginástica (Boletim Oficial, n.º 6, 5 de Fevereiro de 1921, p. 68) Em 1922/23, todas as disciplinas do plano curricular foram ministradas, com excepção da Ginástica308, falta “que prejudicou os alunos, que com tais exercícios se tornam mais disciplinados e submissos”. A gestão curricular polivalente – os docentes leccionavam disciplinas de grupos díspares, como Português e Ciências Naturais; Matemática e Inglês; Desenho, Francês e Ginástica – poderá ser explicada pela exiguidade do corpo docente e habituais restrições orçamentais. 307 308 Boletim Oficial, nº 37, 15 de Setembro de 1923, p. 282. Relatório do Reitor. Boletim Oficial, n.º 37, 15 de Setembro de 1923, p. 282. 239 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A concentração de um grande número de oficiais e praças das forças armadas no Mindelo não podia deixar de ter reflexos na terra, desde o campo social até ao cultural (1998, p. 395) e reflectia-se no corpo docente do liceu, na época, exclusivamente masculino, onde predominavam os militares309. A partir das informações estatísticas, contidas no relatório do reitor310 e no “Movimento de alunos de instrução secundária, segundo a raça e os sexos (1924)311 definimos as linhas evolutivas da frequência escolar. Gráfico 23 – Liceu Nacional de Cabo Verde: frequância escolar total e masculina – 1917/1924 312 100 91 90 83 80 70 65 60 70 71 1922-23 1923-24 52 51 50 66 43 40 42 30 31 37 29 30 1917-18 1918-19 1919-20 20 10 0 1920-21 1921-22 Após uma quebra de efectivos escolares no segundo ano da existência do liceu – primeira tentativa de extinção –, assiste-se a um crescimento regular dos alunos até ao ano 1922/23, com um retrocesso no ano seguinte. Durante sete anos, o liceu foi frequentado por 435 alunos (sexo masculino: 326; sexo feminino: 109). 309 No ano lectivo de 1918/19, os militares representavam 80% dos professores: Guilherme Pedro Street Caupers, Alferes de Cavalaria (3º grupo), Manuel Correia Modesto, Tenente de Infantaria (5º grupo), António Augusto da Veiga e Sousa, Capitão-médico (reitor e professor do 6º grupo) e Paulo Tomé Mendes, Capitão de Infantaria (8º grupo). O único professor civil era Simão José Barbosa (2º grupo). (Boletim Oficial, n.º 42, 19 de Outubro de 1918, p. 367) 310 Boletim Oficial, n.º 37, 15 de Setembro de 1923, p. 282. 311 Boletim Oficial, n.º 3, 17 de Janeiro de 1925, p. 23. 312 1917/18: masc. 31; fem. 11; 1918/19: masc. 29; fem. 8; 1919/20: masc. 30; fem. 21; 1920/21: masc. 43; fem. 22; 1921/22: masc. 52; fem. 14; 1922/23: masc. 70; fem. 21; 1923/24: masc. 71; fem. 21. Fonte: “Movimento de alunos de instrução secundária, segundo a raça e os sexos, ano lectivo de 1923-1924. Boletim Oficial, n.º3, 17 de Janeiro de 1925, p. 23. 240 A construção do discurso educativo Os documentos consultados revelam que o liceu se preocupava com os alunos pobres. Na sessão solene de abertura do ano lectivo, o reitor teceu as seguintes considerações: “Estão abertas as aulas e a sineta vai soar alegre a chamar-nos a todos ao nosso dever. Mas... alto! Vão os rapazes entrar na escola e fica um cá fora... Aquele não pode entrar; tem habilitações como os outros; tem a sua certidão. Que lhe falta, pois? A matrícula; uns escudos para pagar a propina. E a lei que dá gratuita a matrícula aos pobres? Mas êle não é pobre; é filho de um rico, que tem o rendimento colectável anual de... 24$00! É demasiado rico para a lei o proteger. Pede-se uma lei de excepção? Não; os rapazes novos têm alma grande. Nem o reitor o sabe... Não há uma hesitação entre os alunos; a Caixa Escolar oferece a matrícula ao condiscípulo, que não é bastante rico para a pagar, que não é bastante pobre para a receber do Estado.” (Owen Pinto, 5 de Outubro de 1920)313 A Associação Escolar do Liceu Nacional de Cabo Verde, com a divisa “Lutar é vencer» (Art. 1), desenvolveu actividades de solidariedade e dinamizou a vida académica. Eram fins da Associação: “a) Concessão de subsídios, empréstimo de livros de estudo, isenção do pagamento de cotas – secção de assistência; b) Leituras, conferências, palestras scientificas e publicações, ensino de dança, da arte de dizer e do desenho artístico, audição e execução de música vocal e instrumental, representação de pequenas obras de teatro escolar, exposições e festas escolares, aprendizagens úteis, tais como taquigrafia e dactilografia – secção literária, scientífica e artística; c) Visitas e excursões de estudo, completadas pela fotografia e cinematografia – secção de excursões; d) Cultura física, com vista à educação da vontade e à formação do caracter – secção desportiva; e) Sustentação de cantinas, venda de artigos escolares – secção de cooperativa; f) Cultiva a economia como virtude – Caixa económica.” (Boletim Oficial n.º 19, 7 de Maio de 1921, pp. 190-192) Como o liceu não oferecia o curso completo do ensino secundário314, em carta de 7 de Junho de 1923, o reitor solicitou ao Secretário Geral do Governo, um subsídio para o aluno Baltasar Lopes da Silva – que seria um dos mais consagrados escritores cabo-verdianos – frequentar um liceu na metrópole, para completar o 313 Cx.ª 666, 5 de Outubro de 1920. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. A partir do ano de 1928/29, o Liceu passou a ter os 6º e 7º anos. A criação destes dois anos foi devida aos esforços do seu reitor Dr. Adriano Duarte Silva e do próprio gov. Guedes de Vaz (1926-31), que se revelava cada vez mais um promotor da cultura cabo-verdiana (Oliveira, 1998, pp. 402-403). 314 241 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) ensino secundário. A carta recebeu resposta desfavorável, “por não haver disposição legal aplicável”315. Figura 39. Pedido de bolsa de estudos para o aluno Baltasar Lopes da Silva (Carta 7 de Julho de 1922316) 315 Em 1926 foi autorizada a concessão de “uma pensão anual de 800$ a dois alunos, por ano, que provem terem concluído o quinto ano do Liceu de Cabo Verde, com a classificação nunca inferior a bom, para pagamento de propinas e aquisição de livros, até completarem o curso dos Liceus Centrais da Metrópole” (Art.º 1º. Portaria n.º 9. Boletim Oficial, n.º 17, 25 de Abril de 1926). 316 Cx.ª 667. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 242 A construção do discurso educativo O Liceu Nacional de Cabo Verde, em 1924, sofreu mais um revés, com a medida de redução do plano curricular a dois anos, facto que provocou nova onda de solidariedade da sociedade e do município mindelenses: “TELEGRAMA – MINISTRO – COLÓNIAS: – CÂMARA – MUNICIPAL – REUNIDA – EXTRAORDINARIAMENTE – PEDIDO – MAIORES – CONTRIBUINTES – COMÉRCIO – PROPRIETÁRIOS – PAIS – ALUNOS – PROPRIETÁRIOS – FUNCIONALISMO – RESPEITOSAMENTE – PEDE – VOSSÊNCIA – NÃO – APROVAÇÃO – PROPOSTA – REDUÇÃO – CURSO – LICEU – DESTA – COLÓNIA – CONTRARIAMENTE – DESEJA – ELEVAÇÃO – LICEU – CENTRAL – CONSTRUÇÃO – EDIFICIO – PRÓPRIO – COM – INTERNATO – POIS – COLÓNIA – TEM – RECURSOS – ESPECIAIS – PONTO – PARA – TRANQUILIDADE – POPULAÇÃO – AGRADECEMOS – VEXA – FINEZA – RESPOSTA – CÂMARA – MUNICIPAL. (Telegrama assinado pelo Senador Vera Cruz e outros deputados, Câmara Municipal, maiores contribuintes, comerciantes, pais e alunos. Acta da Sessão Extraordinária da Câmara Municipal de S. Vicente, 25 Agosto 1924)”317. Liceu Infante Dom Henrique A impregnação da escola com o ideário nacionalista, no fim da República, conduziu à mudança do nome do liceu. Perdeu, simbolicamente, a componente “Nacional de Cabo Verde” e ganhou o nome de uma figura paradigmática do Império Português, o “Infante Dom Henrique” (Diploma legislativo n.º 92, 6 de Fevereiro de 1926). “Ex.mo Senhor, Sendo praxe dar aos principais estabelecimentos de ensino, liceus, ou colégios, nomes de varões ilustres a cuja memória se deve prestar homenagem, e não tendo ainda este liceu nome algum, tenho a honra de propor a V. Ex.ª, com o acôrdo unânime dos Professores desta escola, que seja dado ao Liceu o nome do “INFANTE D. HENRIQUE”, a cuja memória nunca são exageradas todas as homenagens que a Pátria possa prestar. SAÚDE E FRATERNIDADE Liceu Nacional de Cabo Verde, em S. Vicente, 12 de Maio de 1925. Ex.mo Senhor Presidente do Conselho de Instrução Pública. O Reitor, Owen Pinto”318 317 318 Cx.ª 667, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. Cx.ª 667, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN. 243 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) “Atendendo ao que me representaram o governador e o Conselho Superior de Instrução Pública da província de Cabo Verde; (…) Hei por bem decretar, sob proposta do Ministro das Colónias, que ao Liceu Nacional da referida colónia, criado pela Lei n.º 701, de 13 de Junho de 1917, seja dado o nome de Infante D. Henrique. O Ministro das Colónias assim o tenha entendido e faça executar. Paços do Governo da Republica, 15 de Janeiro de 1926. – Bernardino Machado – Ernesto Maria Vieira da Rocha. (Boletim Oficial, n.º 6, 6 de Fevereiro de 1926, p. 49) Na senda da deocratização do ensino O autor da obra A imprensa cabo-verdiana 1820-1975, no capítulo “A hora do Mindelo: o liceu”, coloca as seguintes questões: “Mas pode-se perguntar hoje, porque foi este liceu assim tão importante no contexto cabo-verdiano? Ou mesmo, porque foi tão importante no contexto do império português319? A diferença é que os liceus das outras ex-colónias eram frequentados quase exclusivamente pelos filhos dos colonos, dos funcionários civis e dos militares portugueses. Eram frequentados, por assim dizer, quase que exclusivamente por alunos brancos, enquanto que o Liceu de Cabo Verde desde o seu início teve uma maioria de alunos negros e mulatos.” (Oliveira, 1998, p. 405) João Nobre de Oliveira defende a tese que o liceu cabo-verdiano “democratizou” o acesso ao ensino (idem, pp. 410/11). Democratização económica Já não eram apenas os filhos dos mais abastados ou dos protegidos da Igreja Católica que podiam estudar, também os menos remediados320, podiam aspirar a que os filhos tivessem pelo menos o curso dos liceus, “cursos universitários logo se veria...” 319 Nobre de Oliveira explica que “em Angola, Moçambiquye, Índia e Macau também havia liceus que no caso das colónias asiáticas, vinham do século passado. O liceu em Mindelo, aparentemente, só tinha a primazia em África (o de Luanda foi fundado em 1918)” (1998, p. 405). 320 Num edital do Liceu Nacional de Cabo Verde, 20 Agosto 1923, sobre a abertura das matrículas, refere-se ao “recibo do pagamento de 4$ na Repartição da Fazenda, como primeira prestação da respectiva propina para 5$ para a 2ª e 3ª classe e de 5$ para a 4ª e 5ª” (4º), embora para “os alunos que provarem a sua pobreza” seja dispensado o pagamento das propinas (Boletim Oficial, n.º 37, 15 de Setembro de 1923, p. 311). 244 A construção do discurso educativo Democratização étnica Se no Seminário-Liceu “a maioria dos alunos já era de cor, com o liceu essa maioria torna-se esmagadora reflectindo melhor a sociedade cabo-verdiana”. Conforme o “Movimento anual dos alunos nos quatro anos decorridos desde a fundação”, o liceu registava 192 estudantes “africanos” e apenas 3 “europeus” (Boletim Oficial, n.º 18, 6 de Maio de 1922, p. 133). Democratização de género O ensino era igual para ambos os sexos, “pelo que as meninas já não ficam limitadas ao ensino primário e ao que aprendiam em casa com as avós ou ao estudo do francês e do piano nos colégios de Lisboa”. Porém, a taxa de frequência feminina era reduzida (25,1%). Democratização curricular No liceu “os jovens aprendem a pensar sem o freio da religião”. Por outro lado, “estando os jovens num meio urbano e não num rural, isto permitia uma vida académica diferente, que não se limitava ao espaço escolar, com um convívio entre jovens de ambos os sexos e contacto com pessoas que era de todo impossível dentro dos muros do seminário”. Fechamos o capítulo dedicado à edificação do ensino liceal, com as belas palavras do escritor Teixeira de Sousa, proferidas na cerimónia comemorativa 75º aniversário da criação do Liceu de Cabo Verde: “O liceu veio naturalmente abrir as janelas e portas à aquisição dum leque mais alargado de conhecimentos, os professores diversificavam as informações, havia-os religiosos, havia-os agnósticos; havia-os sonhadores, havia-os pragmáticos; havia-os rigorosos, havia-os tolerantes; havia-os, em suma, de todas as cores e de todos os paladares, num mosaico de interesses, tendências, conhecimentos, sensibilidades, que as distanciam enormemente daquela uniformidade seminarista, uniformidade contrária ao borbulhar da mocidade que a Virgílio Ferreira inspirou o magnifico romance Manhã Submersa. Pelos postigos, janelas e portas do novo estabelecimento de ensino, entrou luz, entrou ar lavado, entrou a vida em todas as dimensões. Entrou mais, entraram os ecos do mundo por se haver colocado o liceu na ilha de S. Vicente, cujo porto, então pejado de barcos de todas as nacionalidades, era a boca pela qual penetravam os nutrientes da civilização. Excelente visão tiveram quantos lutaram para que fosse colocado em S. Vicente e não em S. Nicolau, segundo o citado decreto, meio este dum ruralismo primário, onde os horizontes esbarram com as montanhas abruptas que aprisionam o vale da Ribeira Brava.” (1992) 245 ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Conclusões ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Acto final da escrita No acto final da escrita impõe-se o ritual de palavras conclusivas. Sem a pretensão de transgredir normas, gostaríamos que as conclusões fossem tidas como questionamentos. Onde se escreve conclusões leia-se tendências e possíveis itinerários futuros. O termo de um ciclo – a convivência diária com os testemunhos da construção social do discurso educativo, em Cabo Verde, de 1911 a 1926 – conduziu-nos à problemática inicial: Como foi percepcionada a educação pela sociedade caboverdiana, num contexto de dominação colonial? O trabalho exploratório desvendou inúmeras variáveis explicativas, que careciam de sistematização. Urdimos o fio condutor da pesquisa em torno de hipóteses, que tentámos comprovar pela verificação empírica. Neste momento de balanço, comparámos produtos esperados com resultados apurados. Primeira hipótese A construção de um discurso educativo, no arquipélago de Cabo Verde, correspondeu a uma vontade social de desenvolvimento, assente na valência da educação como fonte do progresso. O centralismo da educação, na produção retórica da elite cabo-verdiana, demonstra de per si a relevância social do tema. A sociedade islena (pré)ocupou-se com os problemas tradicionais do ensino – o analfabetismo, a precariedade da rede escolar e a deficiente formação dos professores. O discurso é pigmentado com múltiplas referências ao contexto sociopolitico – o atraso endémico do ensino na colónia, incrustado no tradicional atraso português e na incúria da governação colonial. A imprensa cabo-verdiana deu visibilidade a projectos educacionais, gizados por cidadãos – a título individual ou sob égide municipal –, enquanto as reformas tardavam a chegar às ilhas. A vontade social de desenvolvimento não se esgotou no texto jornalístico. Teve expressão na arena política, em instâncias consultivas e de decisão, como as Comissões Municipais e o Conselho do Governo Provincial. 249 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Segunda hipótese Os pressupostos redentores e utópicos da educação republicana não se traduziram em medidas educativas capazes de romper com a inércia administrativa e a distância (física e burocrática) que separava a colónia da metrópole. À desmedida confiança na República, “a luz que vinha «rasgar» as trevas da monarquia”, sob o estandarte da “liberdade pela qual luctamos sempre, igualdade perante a lei, fraternidade, pois que todos os homens são irmãos, filhos da mesma mãe, a Terra!”321, sucedeu o desencanto. A esperada igualdade transmudou-se no pesadelo da emigração forçada de homens, mulheres e crianças para as roças de S. Tomé e Príncipe. Para a opinião pública, os progressos na educação ficaram muito aquém do desejado. Terceira hipótese A imprensa foi a imago mundi da afirmação de valores integradores da identidade cabo-verdiana: a apetência pelo conhecimento e a vontade de autonomia. Os jornais cabo-verdianos e a imprensa portuguesa (de temática colonial) deram destaque às questões sociais e educativas. Como bem disse Nobre de Oliveira, os leitores eram cabo-verdianos interessados na sua terra e os jornalistas, homens formados nas ilhas, que escreviam para as suas gentes. A imprensa constituiu-se em instância mediadora entre a dimensão oficial do sistema escolar, os significados apropriados pelo senso comum e as práticas do quotidiano. A escrita tornou-se um acto de cidadania, ao reflectir sobre a (i)legitimidade do poder, o nativismo, as aspirações de autonomia, a vontade de diferença (em relação às outras colónias e à sede do império). Escrever era uma forma de interferir na história. 321 A Voz de Cabo Verde, n.º 1, 1 de Março de 1911. 250 Conclusões Quarta hipótese A resposta às adversidades naturais – seca e fome – e à governação colonial – dominação e ineficácia – foi procurada por duas vias libertadoras: a emigração e o ensino (aquisição do saber condicionador de status social). A incompetência governamental na gestão das crises cíclicas foi tema caro na imprensa. O Senador Augusto Vera-Cruz, eminente defensor da causa educativa, a propósito de uma longa estiagem que provocou mais de 20.000 mortos, reclamava que as receitas dos Correios e Telégrafos de Cabo Verde ficassem nas ilhas e não fossem desviadas para a Metrópole, advertindo: “Sou português de sangue e coração, mas acima de tudo sou caboverdeano”322. O bloqueio à emigração de analfabetos para a América, portanto de muitos caboverdianos, foi entendido como ameaça ao desenvolvimento (pelas expectativas culturais frustradas e divisas que não entrariam nas ilhas). No imaginário cabo-verdiano, a libertação das adversidades (naturais e políticas) realizava-se pela evasão e pela cultura letrada (à imagem das terras de emigração). A valorização do capital escolar contrariava as lógicas de conformação social. O ensino post primário foi percepcionado como espaço de mobilidade social, de produção de indivíduos qualificados e com aceitação social. As polémicas em torno do ensino primário superior e do liceu ilustram esta asserção. Quinta hipótese A escola cabo-verdiana exerceu as funções de ratificação, justificação e integração da ideologia e da cultura dominantes (modelação do escolar colonizado à imagem-ideal do colonizador). Teoricamente, a matriz da escola portuguesa enformou o sistema escolar caboverdiano. Na realidade, as reformas republicanas chegavam tardiamente e truncadas. A transferência de saberes ocorria (na maior parte dos casos) em escolaspardieiros, com docentes não qualificados e mal pagos (salários inferiores aos colegas metropolitanos). A língua portuguesa era ensinada como “numa escola do Minho ou do Algarve”, ignorando a língua materna (proibida na escola). 322 Correio d’África, n.º 3, 1924. In Oliveira, 1998, p. 183. 251 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) A educação colonial, à luz dos textos lidos, cumpriu de facto uma tripla missão: o conhecimento (elementar), a adaptação e a assimilação. Sexta hipótese O sistema escolar assumiu a função de legitimação das diferenças sociais, sob clivagens discriminatórias: a classe, o género, a língua, a raça, a origem (rural/urbano; colónia/metrópole). Os textos pedagógicos e as estatísticas educacionais desvendam um cenário de assimetrias na distribuição social da educação. A escola (formal e informal) era selectiva e absorveu somente um segmento reduzido da população escolarizável (1912 a 1920: 19,5% de alfabetizados). Além das desigualdades de género (1912: 17% de meninos e 4% de meninas na instrução elementar)323, registaram-se outros factores de exclusão social, como o insucesso escolar (1911: 1º grau, 56,9%; 2º grau, 49%) e o absentismo (1911: 50,6% de alunos com frequência escolar irregular). A discriminação dos alunos, em categorias definidas pela cor da pele, reflecte preconceitos e práticas de exclusão, numa sociedade profundamente miscigenada. Sétima hipótese A substituição do ensino secundário religioso por um ensino secundário laico inscreveu-se num contexto de disputa da liderança regional, protagonizada pela elite cabo-verdiana, que exercia o controlo económico, social e cultural. O Seminário-liceu foi a instituição de referência, onde se formou a inteligentzia que conduziu à cabo-verdianização do funcionalismo público e à “emancipação administrativa da colónia a nível do pessoal, pois que a nível institucional nunca o arquipélago teve qualquer autonomia em relação à metrópole”324. 323 Segundo um artigo publicado no jornal O Progresso “a média de frequência em 7 anos é de 5:000 almas; 4:000 rapazes e 1:000 raparigas, respectivamente, 17 e 4% da população escolarizável” (n.º 26, 26 de Dezembro de 1912). Não conseguimos comprovar as taxas de frequência escolar, devido a incongruências entre os dados demográficos e as estatísticas escolares. A Estatística Geral da Província de Cabo Verde (ed. Secretaria Geral do Governo), regista o movimento da população por idades, sendo as primeiras seriações: “até 10 anos”, e “dos 10 aos 20 anos”. A distribuição da população escolar por níveis etários assenta num escalonamento diferente: “até 9 anos”, “dos 9 aos 12 anos”, “dos 12 aos 16 anos” e “mais de 16 anos”. A disparidade de critérios na seriação dos dados impossibilitou o cálculo das taxas de frequência escolar. 324 Oliveira, 1998, p. 80. 252 Conclusões A morte anunciada do Seminário foi tema mediático, numa conjuntura histórica propícia à transformação de utopias em realidades: um sistema não confinado ao ensino elementar e a criação de um liceu nacional. Defendemos que o liceu laico emerge como um imperativo de cidadania, uma manifestação do querer da burguesia mindelense que se organizou, solidária e colectivamente, em momentos-chave. Oitava e última hipótese Apesar da isonomia dos sistemas (português e cabo-verdiano) surge – de forma incipiente, mas firme – um discurso portador da vontade da diferença, que não conseguiu forjar uma cultura escolar, marcada por práticas e saberes genuínos. A frequência e intensidade das intervenções sobre o ensino (numa imprensa generalista) não escondem as fragilidades no campo epistémico. No discurso educativo predominou a descrição e a denúncia, em detrimento da reflexão. Não obstante, os intelectuais cabo-verdianos tinham consciência da inadequação do sistema de ensino (sucedâneo do modelo metropolitano) e acentuavam – enfaticamente – as diferenças. O texto educativo contém intencionalidades de mudança conceptual, sem a necessária sedimentação teórica para gerar uma cultura escolar genuína. Prevaleceu a cultura empírica e faltou “a cultura pedagógica, que se constrói e difunde nos âmbitos académicos e de investigação”325. Contra a posição oficial que visava “dar ao preto uma educação variada, mas simples”326, a sociedade abriu uma frente de combate por oportunidades de conhecimento adequadas à formação mais avançada do cabo-verdiano. Proclamar que “convém ensinar antes a plantar mandioca, a fabricar o açúcar e a tratar o cafeeiro, do que a plantar cepas, a enxertar a oliveira e fabricar vinhos e azeites”327, é criar o lastro da cultura escolar cabo-verdiana. Temos de terminar. A nossa dificuldade em transformar as hipóteses enunciadas em resultados comprovados, explica-se pelo carácter abrangente do estudo e por novas – e inesperadas – perspectivas, ao longo do itinerário percorrido. 325 Escolano Benito, 2000, p. 211. O Progresso, 12 de Setembro de 1912. 327 O Manduco, 30 de Dezembro de 1923. 326 253 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) No desfecho, um certo desencanto. Sentimos que as respostas procuradas geraram um conjunto maior de novos problemas, que nos instigam a começar tudo de novo. Um desafio e um convite: Aos meus colegas, aos aprendizes de historiadores da educação, não nos resta outra alternativa senão estudar, conhecer, investigar e palmilhar os caminhos da educação em Cabo Verde. Transformemos a investigação em acção e a individualidade em projecto colectivo. 254 ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Fontes e Bibliografia 1. Fontes ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Estatísticas Anuário Estatístico de Portugal (1886? – 1939). Lisboa: Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria. Repartição da Estatística. Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1913). Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde. Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1914). Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde. Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1915). Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde. Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1918). Praia: Imprensa Nacional de Cabo Verde. Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1925). 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Vicente, 25/6/1911. - Correspondência de um professor da ilha Brava, José Martins Vera-Cruz presidente do júri de exames, 30/8/1912. - Correspondência que acompanha um memorial sobre a realização de exames em Santo Antão, Administrador do Concelho, 14/6/1913. - Correspondência endereçada ao Inspector escolar com pedido de manuais escolares e materiais didácticos, assinatura ilegível, 24/12/1913. - Acta de exames (provas escritas), escola oficial de Porto Inglês, professores Armando Xavier da Fonseca, José Boaventura Spencer e João António Raimundo Martins, 15/8/1913. - Correspondência com apreciações às propostas da Câmara Municipal de Santa Catarina, José Fernandes Duarte, 13/10/1914. - Relatório escolar, Escola Primária n.º 1, Ponta do Sol, Ilha de Santo Antão, José Lopes da Silva, 23 /3/1918. - Proposta de inscrição de uma verba na rubrica de Instrução Pública para a instalação e manutenção da Escola de Trabalho em S. Vicente, 26/2/1921. - Proposta de abertura de um crédito para a instrução pública, 6/12/1921. 261 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Caixa 665 - Requisição de mobiliário para a escola oficial de Porto Inglês, Ilha do Maio, João António Miranda Castro, 20/8/1914. - Relatório sobre o movimento da Escola Oficial de S. Jorge, Ilha do Fogo e seus resultados, Manuel de Moraes, 1/9/1916. - Acta da sessão solene da abertura das escolas do concelho da Vila de Ponta do Sol, Ilha de Santo Antão, 16/10/1916. - Contrato de arrendamento de uma sala em Coculi, Ilha de Santo Antão, Comissão Municipal, 11/12/1918. - Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, Junta Local, 4/10/1920. - Informação sobre o desempenho profissional de um professor, Inspector Escolar, 18/10/1920. - Requerimentos de José Lopes com pedido de admissão ao lugar de professor, 1/2/1921. - Exposição do professor José Lopes da Silva ao Presidente da Junta de Instrução Pública da Ribeira Grande, Ilha de Santo Antão, 28/6/1921. - Acta da sessão ordinária da Junta Local da Ribeira Grande, Presidente da Junta, 14/9/1921. - Pedido de aquisição de mobiliário para “uma escola que se pretende abrir em S. Vicente”, Comissão Municipal, Presidente do Conselho de Instrução Pública, 14/1/1922. - Requerimento da professora Matilde de Noronha, a requerer licença de parto, 29/4/1922 e informação favorável á concessão de dois meses de licença, Inspector Escolar Interino, 29/4/1922. - Resumo das deliberações tomadas na sessão da Junta Local de Instrução do Concelho da Ribeira Grande, 16/10/1922. - Informação sobre uma reclamação contra o professor Manuel Júlio do Rosário, Secretário Geral, 28/1/1923. Caixa 666 - Exposição da professora da ilha do Maio, Elvira da Conceição Ribeiro Ferreira Chaves, 15 /8/1916. 262 - Relatório sobre o movimento da Escola Oficial de S, Jorge, ilha do Fogo, 1/9/1916. - Exposição do professor de Ponta do Sol, ilha de Santo Antão, José Lopes da Silva, 10/12 1917. - Reportório sobre o meu primeiro passeio escolar, escola oficial da Ilha do Maio, 1/5/1917. - Comunicado que anuncia a abertura solene do Liceu Nacional de Cabo Verde, Reitor, 19/11/1917. - Petição da manutenção do liceu na ilha de São Vicente, cidadãos mindelenses, 26/4/1918. - Correspondência do professor Manuel de Moraes, S. Jorge, 4/6/1918. - Regulamento Provisório da Instrução Secundária, com o visto da Direcção dos Serviços da Fazenda, 4/7/1918. - Relação de materiais didácticos e equipamentos para a escola oficial da Rabil, Ilha da Boavista, 16/9/1918. - Requisição de mobiliário para a escola oficial da Vila Sal Rei, Ilha da Boavista, 3/12/1918. - Lista de material escolar e outros artigos necessários para as escolas de S. Nicolau, Comissão Municipal, 3/1/1919. - Nota dos artigos de mobília e utensílios fornecidos a escolas do concelho de Vila de Ponta do Sol, Guilherme Reginaldo Morbey, Administrador do Concelho, 21/2/1919. - Projecto de legislação sobre os exames de admissão ao liceu, 12/6/1920. - Discurso do reitor do Liceu Nacional de Cabo Verde, por ocasião da abertura solene das aulas no ano lectivo de 1920-1921, 5/10/1920. - Correspondência com pedido de autorização para a realização de obras no quartel para a instalação do liceu, 17/11/1920. - Horário das aulas do liceu e constituição do corpo docente, ano lectivo 1921-1922, Reitor, 17/12/1921. - Proposta de criação de uma escola comercial e industrial, no Liceu Nacional de Cabo Verde, Reitor, 9/9/1922. - Proposta do estandarte do Liceu Nacional de Cabo Verde, Reitor, 30/1/1923. 263 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) - Petição a favor da admissão da professora Maria da Encarnação Oliveira numa escola da Ribeira Grande, 2/2/1923, acompanhado do requerimento da professora, 9/2/1923. - Reclamação da transformação de escolas em postos de ensino, Centro Escolar Fontoura da Costa, 10/4/1923. - Proposta de um subsídio para o aluno Baltazar Lopes frequentar um liceu na metrópole, Reitor, 7/7/1923. - Relação de livros do ensino secundário existentes no depósito de materiais escolares, Alfredo Ferro, 9/6/1923. - Proposta de transcrição no Boletim Oficial do Regulamento de Instrução Secundária, Reitor, 5/12/1923. - Relatório do Secretário Geral sobre a organização do ensino primário, Maio de 1924. - Apontamentos sobre a origem e funcionamento do Liceu Nacional de Cabo Verde, Secretário Geral, 25/4/1924. - Mapa estatístico dos alunos matriculados no Liceu Nacional de Cabo Verde e seu aproveitamento, Reitor, 28/6/1924. - Acta da sessão extraordinária da Câmara Municipal de S. Vicente, com um protesto pelo comunicado do Governador, pela rádio, uma proposta de redução do curso do Liceu Nacional, Secretário da Câmara Municipal, 26/8/1924. - Proposta de mudança do nome do liceu para “Infante Dom Henrique”, 12/5/1925. - Correspondência da mãe de um aluno pobre, com pedido de doação de livros escolares, Henriqueta Nazaré Gomes, 23/8/1926. - Exposição sobre a situação do liceu e pedido de autorização para a contratação de professores, Reitor, 29/9/1926. - Relatório das actividades do Liceu Infante Dom Henrique, Reitor, Setembro de 1926. - Proposta de nomeação de directores de classe no liceu, 6/12/1926. Caixa 668 - Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 12 /6/1918. - Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 3/7/1918. 264 - Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 21/10/1918. - Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 8/11/1918. Caixa 669 - Quadro demonstrativo dos resultados dos exames finais, escola oficial da Vila de Ponta do Sol, Ilha de Santo Antão, professor José Lopes da Silva, 16/08/1915. - Redações de alunos do ensino elementar, 1917. - Carta de um professor de S. Vicente (assinatura ilegível), 28/9/1919. - Proposta de apresentação de alunos a exame (1º e 2º graus), 1920/1921. - Provas escritas dos exames de instrução primaria do 1º e 2º grau, 1920, 1921, 1922, 1923. Caixa 670 - Proposta de transferência do Seminário-liceu de S. Nicolau para a Praia, Diocese de Cabo Verde, 19/6/1906. - Correspondência sobre a adaptação do Seminário-liceu a um liceu nacional, Governador, 7/3/1910. - Relação dos manuais escolares adoptados para o ensino primário e balanço da existência, Secretário Geral, 20/6/1910. - Relação dos manuais escolares adoptados para o ensino primário, 1º e 2º grau, José Reis Borges, 7/10/1910. - Correspondência relativa ao analfabetismo em Cabo Verde, Sociedade de Estudos Pedagógicos, 29 de Junho de 1913. - Correspondência do Presidente da Câmara Municipal da Praia sobre a doação de manuais escolares a alunos pobres, 19/3/1915. - Parecer dos professores sobre os manuais escolares do ensino primário e lista de livros adoptados, Administrador do Concelho, 22/6/1915. - Correspondência de Simão José Berlenga sobre a remodelação dos serviços de instrução primária, 25 /8/1915. - Facturas de aquisição de manuais escolares, Inspector Escolar, 20/2/1915. 265 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) - Requisição de verbas, professor Herculano de Noronha, escola de Achada Falcão, 6/4/1915. - Parecer de professores de S. Vicente sobre a adopção de novos livros, 1/6/1915. - Correspondência do Reitor do Seminário de S. Nicolau e mapas da frequência escolar, 12/10/1915. - Orçamento anual da Câmara Municipal de Santa Catarina, Instrução Pública, 2/10/1917. - Requisição de mobiliário para a Escola Superior da Praia, Director, 22/11/1917. - Relação de livros e materiais didácticos recebidos de S. Vicente, 26/4/1918; - Proposta de criação do internato da cidade de Mindelo, em substituição da Escola de Artes e Ofícios, 15/7/1918. - Questionários com dados biográficos e profissionais de professores, 30/7/1918. - Ofício do Governador com proposta de orçamento, 28/10/1918. - Requisição de manuais escolares, Escola Central de São Vicente, professora Clementina Maria Barros Évora, 21/11/1918. - Requisição de manuais escolares, professora Elizabeth Fermino Silva, Escola de Ponta do Sol, 11/1/1919. - Requisição de livros para alunos pobres, Secretário Geral, 12/7/1919. - Relação dos livros e materiais didácticos do Fundo Especial de Instrução Escolar, Administrador do Concelho, 7/8/1919. - Correspondência do inspector sobre o estado dos serviços escolares, 1919/1920. - Projecto de integração dos professores do Seminário, das Escolas Normais e do Ensino Primário Superior no corpo docente do Liceu, Mário Ferro, 11/9/1922. Caixa 671 - Relatório referente à inquirição dos actos do inspector escolar Ernesto de Sousa Coelho, instruído por Viriato Gomes da Fonseca, ilha de Santo Antão, 29 /7/1919. - Guia de entrega de verbas provenientes da venda de manuais escolares, professor Manuel Ramos de Sousa, 23/7/1919. 266 2. Referências Bibliográficas ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Adão, Área. (1984). O estatuto sócio-profissional do professor primário em Portugal (1901-1951). Oeiras: Fundação Calouste Gulbenkian, Instituto Gulbenkian de Ciência. Alexandre, Valentim. (1993). Ideologia, economia e política: a questão colnial na implantação do Estado Novo. 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Migrações nas ilhas de Cabo Verde. Praia: Instituto Cabo-verdiano do Livro. Carvalho, Rómulo de. (2001). História do ensino em Portugal: Desde a fundação da nacionalidade até ao fim do regime de Salazar (3.ª ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Chartier, Roger. (1988). A história cultural: Entre práticas e representações. Lisboa: Difel. Compère, Marie Madeleine. (1995). L'histoire de l'éducation en Europe: essai comparatif sur la façon dont elle s'écrit. New York et Paris: Peter Lang e INRP. 267 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) Corcuff, Philippe. (1995). As novas sociologias. A realidade social em construção. Sintra: Vral, Lda. Deus, João de. (1995). Cartilha maternal. Lisboa: Federação de Mulheres Empresárias e Profissionais de Portugal (edição especial). Felgueiras, Margarida Louro. (2003). Luazes dos Santos Monteiro Leite, Amália. In A. Nóvoa (Dir.), Dicionário dos Educadores Portugueses (pp. 800-804). Porto: Edições ASA. Fernandes, Rogério. (2004a). Contributo para a história da profissão docente em Portugal. In M. L. Felgueiras & M. C. Menezes (Eds.), Questionar a sociedade, interrogar a História, (re)pensar a educação (pp. 731-444). Porto: Edições Afrontamento/FPCEUP. Fernandes, Rogério. (2004b). A história da educação e o saber histórico. In M. L. F. e. M. C. Menezes (Ed.), Rogério Fernandes: Questionar a sociedade, interrogar a história, (re) pensar a educação. Porto: Edições Afrontamento/FPCEUP. Fernandes, Rogério. (2004c). História das inovações educativas (1875-1936). In M. L. Felgueiras & M. C. Menezes (Eds.), Questionar a sociedade, interrogar a História, (re)pensar a educação. Lisboa: Edições Afrontamento/FPCEUP. Fernandes, Rogério. (2004d). Opções políticas e perseguições ao professorado nas primeiras décadas do liberalismo. In M. L. Felgueiras & M. C. Menezes (Eds.), Rogério Fernandes: questionar a sociedade, interrogar a História, (re)pensar a educação. Porto: Edições Afrontamento/FPCEUP. Fernandes, Rogério. (2004e). Para a história dos meios audiovisuais na escola portuguesa. In M. L. Felgueiras & M. C. Menezes (Eds.), Questionar a sociedade, interrogar a História, (re)pensar a educação (pp. 647-694). Porto: Edições Afrontamento/FPCEUP. Ferreira, Manuel. (1967). A aventura crioula. Lisboa: Editora Ulisseia. Filho, Luciano Mendes de faria. (2002). O jornal e outras fontes para a história da educação mineira do século XX. In J. C. S. Araujo & D. G. Jr (Eds.), Novos temas em história da educação brasileira (pp. 133-149). Campinas, S. Paulo, Autores Associados; Uberlândia, MG: Edufu. Gomes, Rui. (1996). Percursos da educação colonial no Estado Novo (1950-1964). In A. Nóvoa, M. Depaepe, E. V. Johanningmeir & D. S. Arango (Eds.), Para uma história colonial. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação e Educa. Julia, Dominique. (1995). «La culture scolaire comme objet historique». In A. Nóvoa, M. Depaepe & E. V. Johanningmeir (Eds.), The colonial experience in education: Gent, Paedagogica Historica, Supl. Series, 1. 268 Léon, Antoine. (1991). Colonisation, enseignement et education. Paris: L'Harmattan. Lobo, Maria Isabel (Org.). (1996). Eugénio Tavares – poesias, contos, textos (1996) Praia: Instituto caboverdiano do Livro e do Disco. Loureiro, João. (1998). Postais antigos de Cabo Verde. Macau: Fundação Macau. Marques, A. H. de Oliveira. (1986). História de Portugal (Vol. III). Lisboa: Palas Ediora. Marques, Fernando Moreira. (2003). Bermudes, Arnaldo Redondo Adães. In A. Nóvoa (Dir.), Dicionário de Educadores Portugueses (pp. 168-172). Porto: Edições ASA. Mialaret, Gaston, & Vial, Jean. (s. d.). História mundial da educação. De 1815 a 1945 (Vol. III). Braga: Rés Monteiro, Felix. (1999). Eugénio Tavares: viagens tormentos cartas e postais. Praia: Instituto de Promoção Cultural. Nóvoa. (1994). História da educação. Lisboa: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação. Nóvoa. (1996). 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In Comemorações do 75º aniversário da criação do Liceu de Cabo Verde. Lisboa: Associação dos Antigos Estudantes do Ensino Secundário de Cabo Verde. Tengarrinha, José. (1965). História da imprensa periódica portuguesa. Lisboa: Caminho. Veiga, Cynthia Greive. (s. d.). Alunos pobres no Brasil, século XIX: uma condição da infância. Texto elaborado a partir da pesquisa em desenvolvimento "História social da infância: crinaças pobres, negras, pardas e mestiças na institucionalização da instrução elementar em Minas Gerais, século XIX, sob orientação da Prof.ª Maria Luiza Marcílio, em programa de pósdoutoramento na USP.). Veyne, Paul. (1989). O inventário das diferenças. Lisboa: Gradiva. 270 ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Apêndices A. Análise do corpus documental ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 1. Campos de pesquisa e categorias conceptuais Campos Categorias CSE Adversidades naturais Contexto CPO Questão linguística Relações sociais Valores Actores educativos Ensino primário Ensino religioso Ensino secundário Finalidades da educação Manifestações internas e externas da cultura escolar Representações e práticas Sistema escolar Expectativas sociais Reformas educativas CCU Sistema escolar SSE Desenvolvimento educacional DED Subcategorias Afirmação da identidade Emigração Fome Nativismo Regionalismo Relação colonial Seca Situação económica Situação social Cabo-verdianos notáveis Educação / Progresso Língua Administração Alunos Analfabetismo Assistência escolar Avaliação Currículo Desigualdades Ensino colonial Ensino municipal Ensino religioso Ensino primário elementar Ensino primário complementar Ensino primário superior Ensino público Ensino particular Ensino profissional Ensino secundário Financiamento Género Materiais didácticos Práticas didácticas Professores Rede escolar Seminário-Liceu Inovações pedagógicas Projectos Reformas 273 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 2. Modelos de grelha de recolha e análise das fontes 274 275 B. Jornais e revistas ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 1. Relação dos periódicos cabo-verdianos (1877 – 1907) Ano 1877-1879 1880-1881 1880 1881 1889 1898 1901 1902-1903 1902 1902-1903 1904 1907 Título Independente A Imprensa A Cidade da Praia A Justiça Revista de Cabo Verde Almanach Luso-Africano A Esperança A Liberdade Salve A Opinião O Espectro Cabo Verde Local de edição Praia, Ilha de Santiago Praia, Ilha de Santiago Praia, Ilha de Santiago Praia, Ilha de Santiago Mindelo, Ilha de São Vicente Vila Ribeira Brava, Ilha de São Nicolau Vila Ribeira Brava, Ilha de São Nicolau Mindelo, Ilha de São Vicente Mindelo, Ilha de São Vicente Mindelo, Ilha de São Vicente Mindelo, Ilha de São Vicente Praia, Ilha de Santiago 2. Relação dos periódicos cabo-verdianos (1911 – 1924) Ano 1911-1919 1912-1913 1912-1913 1913 1913 1913 1913-1916 1915 1915 1918-1919 1923-1924 Título A Voz de Cabo Verde O Independente O Progresso O Mindelense A Tribuna A Defesa O Futuro de Cabo Verde O Popular A Esperança O Caboverdeano O Manduco Local de edição Praia, Ilha de Santiago Praia, Ilha de Santiago Praia, Ilha de Santiago Mindelo, Ilha de São Vicente Ilha Brava São Filipe, Ilha do Fogo Praia, Ilha de Santiago Mindelo, Ilha de São Vicente Vila da Ribeira Brava, Ilha São Nicolau Praia, Ilha de Santiago São Filipe, Ilha do Fogo 277 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 3. Relação dos jornais portugueses de temática colonial (1911 – 1926) Anos 1911 1912 1912-1913 1913 1914-1915 1915 1921-1923 1921 1924-1926 1925-1926329 Título O Negro Revista Colonial A Voz d’ África Tribuna d’ África O Eco d’ África Portugal Novo328 Correio de África O Protesto Indígena Gazeta das Colónias Boletim Geral das Colónias Local de edição Lisboa Lisboa Lisboa Lisboa Lisboa Lisboa Lisboa Lisboa Lisboa Lisboa 4. Autores dos artigos dos jornais cabo-verdianos consultados 4.1. O Independente (1911 – 1913) Autor Não mencionado José Bernardo Alfama José Lopes Um assignante Identificação Presidente da Associação Escolar Poeta e professor Total Frequência 16 2 1 1 20 4.2. O Progresso (1912) Autor Identificação Não mencionado Astróide Atchim T’Chaka Total 328 Frequência 15 1 1 4 21 Não tivemos acesso aos jornais Portugal Novo e O Protesto Indígena. O Boletim Geral das Colónias foi publicado entre 1925 e 1931. Considerámos, apenas, os anos de 1925 e 1926, em conformidade com o arco temporal da investigação. 329 278 4.3. A Voz de Cabo Verde (1911 – 1919) Autor Identificação Não mencionado A Assinaturas devidamente reconhecidas Afro [pseudónimo de Pedro Cardoso] Poeta e colaborador do jornal António do Rincão Balbino Tavares Ben Nartico Belmiro Xavier Alfama Professor e coordenador do Batalhão Escolar Bernardino Rodrigues Pereira De Bafatá, Guiné Cótê Da ilha do Maio E. F. Egídio Barbosa Barros e outros Cidadãos da Cidade Velha Eugénio Tavares Poeta e redactor do jornal Gustavo da Fonseca Director do jornal José Bernardo Alfama Presidente da Associação Escolar José Maria Cabral d’ Azevedo Professor de São Nicolau José da Fonseca Laje Professor José Lopes Poeta e professor José Lopes Monte José Polónio José Rodrigues de Carvalho Professor e colaborador do jornal L. Évora Colaborador do jornal Lélé Luís Loff de Vasconcelos Político e jornalista M. Mário Ferro Político e colaborador do jornal N. Nantes O jornal “A Tribuna”, Brava O jornal “O Século” Professor do Tarrafal Professor Reis Borges Professor Solerte Menestrel Um incognito Um preto Um professor interino Professor Total Frequência 104 1 1 6 6 1 1 1 1 1 1 1 3 3 2 8 3 11 1 1 1 1 1 1 1 2 1 2 1 1 1 3 1 4 1 3 181 279 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 4.4. O Futuro de Cabo Verde (1913 – 1916) Autor Não mencionado António Corsino Lopes da Silva Armando Xavier da Fonseca António José de Almeida Augusto Manuel Miranda Augusto Pereira Vera-Cruz Candóca Carlos Parreira Correspondente E. F. Ignotus Ivo João Ninguém Joaquim Duarte Silva José Bernardo Alfama José Fonseca Lage José Maria Cabral de Azevedo José Rodrigues de Carvalho Manga de Alpaca Manuel M. Braga Júnior Mestre Gabriel Nicolau Ramos Um amigo do Bem Um assinante Um professor Um professor primário Um verdadeiro X. Z. Identificação 194 Professor, colaborador do jornal e redactor da secção do jornal, a “Folha de S. Vicente”. Colaborador do jornal Tribuno Professor, colaborador e redactor da secção “Folha de S. Vicente” Senador pelo Círculo de S. Vicente Colaborador Jornalista e historiador Presidente da Associação Escolar Professor e colaborador Professor e correspondente em S. Nicolau Professor e colaborador do jornal Total 280 Frequência 1 1 1 2 1 1 1 18 1 2 1 1 1 1 2 1 4 2 1 1 1 1 1 2 1 1 3 1 248 4.5. O Popular (1914 – 1915) Identificação Autor Não mencionado Augusto Manuel Miranda José Fonseca Lage M. C. Mário Pinto Professor e colaborador do jornal. Professor e colaborador do jornal Poeta e colaborador em vários jornais Total Frequência 12 2 1 1 6 22 4.6. O Manduco (1923 – 1924) Autor Não mencionado Dos Anais de A. de E. Livres 330 Augusto Pereira Vera-Cruz Eugénio Tavares José d’África José Lopes X. R. Identificação Senador pelo Círculo de S. Vicente Poeta e colaborador Poeta e colaborador Total Frequência 15 1 1 1 1 1 1 21 330 Anais da Academia de Estudos Livres (1916), publicação da Universidade Popular, que contou com a colaboração de António Sérgio. 281 C. Legislação consultada ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Legislação portuguesa 1910 (10 de Outubro) – Decreto nº 4 (D. G. de 8/10) Continua a vigorar a legislação que obrigou os Jesuítas a saírem de Portugal. 1910 (28 de Outubro) – Decreto de (D.G. n.º 21 de 29/10) Regula o exercício do direito da liberdade de imprensa. 1911 (29 de Março) – Decreto de (D.G. n.º 73 de 30/3) Reforma do ensino infantil, primário e normal. 1926 (29 de Março) – Decreto n.º 12.008 (D.G. n.º 167) Regula o exercício do direito da liberdade de imprensa. Legislação publicada nos Boletins Oficiais 1860 (15 de Dezembro) – Circular nº 313 – A (B. O. nº 83 de 22/12) Criou o Liceu Nacional da Província de Cabo Verde. 1866 (3 de Setembro) – Decreto (B. O. nº 44 de 3/11) Criou o Seminário Eclesiástico da Diocese de Cabo Verde. 1912 (21 de Setembro) – Publicação (B. O. n.º 3 de 20/1) Divulga o programa de um Curso Livre de Ensino Primário Superior em Mindelo. 1913 (7 de Março) – [B. O. (Supl.) n.º 2 – 9, 7/3] Regulamento do trabalho indígena na província de Cabo Verde. 1913 (7 de Julho) – Lei n.º 12 (B. O. n.º 31 de 2/8) Cria o Ministério da Instrução Pública. 1913 (13 de Outubro) – Decreto n.º 159 (B. O. n.º 45 de 8/11) Estabelece os serviços e estabelecimentos de ensino que ficam integrados e dependem directamente do Ministério da Instrução Pública. 1914 (30 de Junho) – N.º 22/179 (B O. n.º 29 de 18/7) Declaração de nulidade da portaria provincial de 1 de Janeiro de 1911, que suspendeu o presbítero e professor do Seminário-Liceu de Cabo Verde. 1914 (24 de Setembro) – Decreto n.º 888 (B. O. n.º 42 de 17/10) Torna extensivo aos professores das escolas municipais ultramarinas, o direito de aposentação. 283 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 1914 (19 de Dezembro 1913) – N.º 2.349/354 (B. O. n.º 1 3 de 1/1) Autorização do estabelecimento em Mindelo, ilha de S. Vicente, de um curso de ensino particular de instrução secundária. 1914 (14 de Dezembro) – Portaria n.º 402 (B. O. n.º 52 de 26/12) Estatutos do Colégio Esperança, na cidade de Mindelo. 1915 (24 de Abril) – Portaria n.º 104 (B. O. N.º 17 de 24/4) Autoriza a transferência de verbas da rubrica “Instrução Pública”. 1915 (29 de Outubro) – Portaria n.º 264 [B.O. (Supl.) n.º 15 - 45, 6/11] Publica os programas oficiais do Ensino Primário, que são modelados pelos da metrópole. 1916 (14 de Janeiro) – Portaria n.º 13 [B.O. (Supl.) n.º 1, 14/1] Põe termo à elevação a excessos insofríveis dos preços de alimentos. 1917 (25 de Abril) – Decreto n.º 3108-B [B.O. (Supl.) n.º 9 - 25, 5/6] Carta Orgânica da província de Cabo Verde 1917 (13 de Junho) – Lei n.º 701 (B. O. n.º 27, de 7/7) Extingue as escolas práticas de aprendizagem e cria um liceu na Província de Cabo Verde. 1917 (30 de Junho) – Circular (B.O. n.º 26 de 30/6) Determina aos professores a apresentação de relatórios mensais. 1917 (13 de Julho) – Despacho (comunicado por telegrama) (B.O. n.º 28 de 4/7) Extinção do liceu na ilha de S. Nicolau. 1917 (25 de Julho) – Publicação [B.O. (Supl.) n.º 10, 25/7] Instruções relativas ao exame de instrução primária do 1º e 2º graus. 1917 (4 de Setembro) – (B.O. n.º 36 de 7/9) Plano de estudos do Curso Geral do Ensino Secundário, Liceu Nacional de Cabo Verde. 1917 (27 de Setembro) – Publicação n.º 414 (B.O. n.º 49, 8/12) Permite o funcionamento do internato do Seminário-Liceu de S. Nicolau, com os cursos de Instrução Primária e de Instrução Primária Superior, “durante o presente ano lectivo, findo qual será definitivamente encerrado”. 1917 (11 de Outubro) – Portaria n.º 327 [B.O. (Supl.) n.º 17 - 40, 11/10] Determina a divisão administrativa da província de Cabo Verde. 1917 (8 de Outubro) – Decreto n.º 3.435 [B.O. (Supl.) n.º 18 - 43, 30/10] Aprova o Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde 1917 (16 de Novembro) – Portaria n.º 386 (B. O. n.º 46 de 17/11) Nomeação dos directores da Escola Primária Superior da Praia e da Escola Primária Superior de S. Nicolau. 1918 (1 de Junho) – Portaria n.º 474 [B.O. (Supl.) n.º 14 - 52, 31/12] Substitui o Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde (1917) e 284 publica um novo Plano Orgânico da Instrução Pública. 1918 (13 de Julho) – Publicação (B. O. n.º 28 de 13/7) Determina as Instruções para a organização do recenseamento escolar 1918 (20 de Julho) – Portaria n.º 311 (B. O. n.º 29, 20/7) Encerramento das aulas na Escola Primária Superior da Praia. 1918 (30 de Novembro) – (B. O. n.º 48, 30/11) Instruções para a criação, conversão, transferência ou supressão de escolas e postos de ensino. 1919 (21 de Novembro) – Portaria n.º 632 (B. O. n.º 47 de 22/11) Declara que subsiste a organização e localização, na cidade de Mindelo, do liceu. Restabelece a Escola Primária Superior da Praia e considera insubsistentes a Escola Normal e a Escola do Ensino Primário Superior, localizadas na ilha de S. Nicolau, bem como o liceu. 1919 (10 de Dezembro) – Portaria n.º 560 – A (B. O. n.º 5 de 22/11) Nomeação de um director para a Escola Primária Superior da Praia. 1919 (12 de Dezembro) – Decreto n.º 6.132 da Instrução Pública [B.O. (Supl.) n.º 20 - 49, 12/12] Aprova os programas e quadros de distribuição das disciplinas do Curso Geral e Complementar do Liceu Nacional de Cabo Verde. 1920 (8 de Maio) – Portaria n.º 303 (B. O. n.º 19 de 8/5) Proíbe expressamente o uso do crioulo nas escolas. 1920 (8 de Julho) – Portaria n.º 503 (B. O. n.º 28 de 10/7) Cria o lugar de Secretário do Inspector Escolar. 1921 (27 de Setembro) – Portaria n.º 249 (B. O. n.º 40 de 1/10) Determina a extinção da Escola Primária Superior da Praia. 1921 (3 de Outubro) – Portaria n.º 257 (B. O. n.º 41 de 8/10) Atendendo à diminuta frequência escolar, extingue postos de ensino. 1922 (11 de Maio) – Portaria nº 85 (B. O. n.º 19 de 13/5) Reabre postos de ensino atendendo a que o estado financeiro da província, não permite a criação de mais escolas. 1922 (29 de Maio) – Portaria nº 29 (B. O. n.º 22 de 3/6) Fixa os subsídios com que as Câmaras e as Comissões Municipais devem contribuir para o fundo especial de instrução pública. 1922 (17 de Fevereiro) – Circular (B. O. n.º 7 de 18/2) Comunicado aos professores do primeiro inspector escolar cabo-verdiano. 1922 (20 de Setembro) – Portaria n.º 153 (B. O. n.º 38 de 25/9) Determina a extinção da Escola Primária Superior de S. Nicolau. 1923 (22 de Setembro) – Portaria n.º 105 (B. O. n.º 39 de 29/9) Cria uma escola mista em Ribeira Bota, ilha de S. Vicente. 1924 (12 de Março) – Portaria n.º 28 (B. O. n.º 38 de 25/9) 285 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 1924 1925 1925 1926 1990 286 Declara a extinção das Escolas Primárias Superiores em Cabo Verde. (12 de Junho) – Portaria n.º 412 (B. O. n.º 24 de 12/6) Louva um cidadão pela propaganda a favor da Assistência Escolar e organização da associação «O vintém das escola». (25 de Julho) – Portaria n.º 58 (B. O. n.º 30 de 25/7) Cria o Instituto Caboverdiano de Instrução. (21 de Novembro) – Publicação (B. O. n.º 47 de 21/11) Regulamento do Instituto Caboverdiano de Instrução. (5 de Agosto) – Diploma legislativo colonial nº 20 (B. O. n.º 45 de 6/11) Isente de direitos e impostos a importação pela Delegação Aduaneira de Santo Antão de um cinematógrafo completo. (29 Dezembro) – Lei n.º 103/III/90 [B. O. (Supl.) n.º 52] Lei de Bases do Sistema Educativo. D. Planos Orgânicos de Instrução Pública na Província de Cabo Verde ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 287 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 288 289 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 290 130 291 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 292 293 A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926) 294 295