A Construção Social Discurso Educativo em Cabo

Transcrição

A Construção Social Discurso Educativo em Cabo
A Construção Social do Discurso
Educativo em Cabo Verde (1911-26)
Um Contributo para a História da Educação
Ficha Técnica
Título
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde
(1911 – 1926): Um Contributo para a História da Educação
Autora
Maria Adriana Sousa Carvalho
Imagem da capa
Escola Grande da Praia, da autoria de Konstantin O. Richeter
Concepção da capa
Aristides Lopes da Silva
Composição Gráfica
Aristides Lopes da Silva
Edição
Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro de Cabo Verde
CP 464 – Tel. +238 2618482 Fax. +238 2618416
Praia – Cabo Verde – www.bn.cv
2007
Impressão
Gráfica do Mindelo
Tiragem
1000 exemplares
Todos os direitos reservados
Maria Adriana Sousa Carvalho
A Construção Social do Discurso
Educativo em Cabo Verde (1911-26)
Um Contributo para a História da Educação
Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro
Praia
2007
Índice geral
Prefácios....................................................................................................................... XV
Nota de apresentação ..............................................................................................XXVII
INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 1
Objecto de estudo ............................................................................................................. 2
Marco conceptual ............................................................................................................. 3
Problemática .................................................................................................................... 6
Questões metodológicas................................................................................................... 8
Fontes ............................................................................................................................. 10
I Parte
UMA SOCIEDADE (IN) CONFORMADA ........................................................................ 33
1. Relações coloniais ...................................................................................................... 35
2. Cultura e língua .......................................................................................................... 45
3. A luta contra a adversidade: emigração e ensino ....................................................... 51
II Parte
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO EDUCATIVO ........................................................... 59
1. Escolarização e analfabetismo ................................................................................... 61
2. Modelação do sistema educativo ............................................................................... 81
3. Desenvolvimento institucional ................................................................................... 97
3.1. Organização pedagógica e administração ............................................................... 97
3.2. Financiamento do ensino ...................................................................................... 108
3.3. Intervenção social ................................................................................................. 116
4. Rede escolar ............................................................................................................. 127
5. Manifestações internas da cultura escolar ................................................................ 147
5.1. (In) disciplina ........................................................................................................ 148
5.2. Inovações pedagógicas.......................................................................................... 152
5.3. Artefactos e livros escolares ................................................................................. 158
5.4. Avaliação da aprendizagem .................................................................................. 169
6. Identidade profissional do docente .......................................................................... 185
7. Edificação do ensino liceal ...................................................................................... 213
7.1. O Seminário-liceu ................................................................................................. 214
7.2. Os Institutos de Instrução ...................................................................................... 222
7.3. Finalmente, o Liceu .............................................................................................. 227
CONCLUSÕES .................................................................................................................. 245
FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................................................................ 253
1. Fontes ....................................................................................................................... 255
2. Referências Bibliográficas ....................................................................................... 265
APÊNDICES ...................................................................................................................... 269
A. Análise do corpus documental.................................................................................. 271
B. Jornais e revistas ....................................................................................................... 275
C. Legislação consultada ............................................................................................... 281
D. Planos Orgânicos da Instrução Pública na Província de Cabo Verde....................... 285
Índice de quadros
Quadro 1 – Peças consultadas no jornal A Voz de Cabo Verde, segundo a temática central –
1911/1919 ................................................................................................................ 14
Quadro 2 – Tipo de peças consultadas no jornal A Voz de Cabo Verde – 1911/1919 .......... 14
Quadro 3 – Peças consultadas no jornal O Independente, segundo a temática central –
1911/1913 ................................................................................................................ 15
Quadro 4 – Tipo de peças consultadas no jornal O Independente – 1911/1913 ................... 16
Quadro 5 – Peças consultadas no jornal O Progresso, segundo a temática central – 1912.. 16
Quadro 6 – Tipo de peças consultadas no jornal O Progresso – 1912 ................................. 17
Quadro 7 – Peças consultadas no jornal O Futuro de Cabo Verde, segundo a temática
central – 1913/16 ..................................................................................................... 19
Quadro 8 – Tipo de peças consultadas no jornal O Futuro de Cabo Verde – 1913/1916..... 19
Quadro 9 – Peças consultadas no jornal O Popular, segundo a temática central – 1914/1915
................................................................................................................................. 20
Quadro 10 – Tipo de peças consultadas no jornal O Popular – 1914/1915 ......................... 20
Quadro 11 – Peças consultadas no jornal O Caboverdeano, segundo a temática central –
1918 ......................................................................................................................... 21
Quadro 12 – Tipo de peças consultadas no jornal O Caboverdeano – 1918 ........................ 21
Quadro 13 – Peças consultadas no jornal O Manduco, segundo a temática central –
1923/1924 ................................................................................................................ 23
Quadro 14 – Tipo de peças consultadas no jornal O Manduco – 1923/1924 ....................... 23
Quadro 15 – Jornais consultados – 1911/24 ......................................................................... 24
Quadro 16 – Tipo de artigos analisados – 1911/1924 .......................................................... 24
Quadro 17 – Emigração para São Tomé, por níveis etários – 1913/1920 ........................... 53
Quadro 18 – Emigração forçada: número de emigrantes e relação com a população –
1910/1929 ................................................................................................................ 54
Quadro 19 – Emigração livre: número de emigrantes, segundo os territórios de destino –
1911/1920 ................................................................................................................ 55
Quadro 20 – Recenseamento escolar, concelho da Ribeira Grande – 1923/1924 ................ 66
Quadro 21 – Recenseamento escolar, ilha do Sal – 1923/1924 ............................................ 66
Quadro 22 – Frequência escolar: taxas de crescimento das matrículas, total e femininas –
1911/20 .................................................................................................................... 67
Quadro 23 – Número de alunos do ensino primário e percentagem de alunas matriculadas –
1911/1920 ................................................................................................................ 69
Quadro 24 – Número de alunos matriculados, segundo a raça – 1911/1920........................ 72
Quadro 25 – Matrículas no ensino primário e percentagem de alunos com frequência
irregular – 1910/17 ............................................................................................ 73
Quadro 26 – Distribuição dos alunos com frequência irregular – 1911/1916 ...................... 74
Quadro 27 – Evolução dos alfabetizados por níveis de literacia – 1912/1920. .................... 79
Quadro 28 – Evolução do analfabetismo por concelhos/ilhas – 1912 /1920 ........................ 79
Quadro 29 – Configuração curricular da instrução primária – 1915 .................................... 83
Quadro 30 – Planos curriculares do Curso de Ensino Primário Superior (Mindelo) e do
Ensino Primário Superior (Decreto de 29 de Março de 1911) ................................ 88
Quadro 31 – Movimento de alunos de «instrução secundária», Escola Primária Superior da
Praia – 1918 ............................................................................................................. 91
Quadro 32 – Efectivos escolares da Escola Primária Superior de S. Nicolau – 1918 .......... 91
Quadro 33 – Planos Orgânicos da Instrução Pública na província de Cabo Verde .............. 96
Quadro 34 – Legislação educacional emanada do Governo da República ........................... 99
Quadro 35 – Constituição do Conselho de Instrução Pública ............................................ 100
Quadro 36 – Domínios de intervenção do Governo Provincial ......................................... 101
Quadro 37 – Distribuição das despesas com a instrução pública – 1912/1920 .................. 111
Quadro 38 – Conta corrente de receitas e despesas, município da Praia – 1910/1917 ....... 113
Quadro 39 – Distribuição dos rendimentos obtidos com os impostos – 1922 .................... 114
Quadro 40 – Número de alunos do ensino particular, por concelhos/ilhas – 1911/1916 ... 124
Quadro 41 – Relação de postos de ensino – 1921/1922 ..................................................... 133
Quadro 42 – O mobiliário escolar de uma “escola bem organizada” e da escola caboverdiana ................................................................................................................. 139
Quadro 43 – Punições escolares ........................................................................................ 151
Quadro 44 – Equipamentos e artefactos escolares.............................................................. 160
Quadro 45 – Lista de livros escolares – 1910/1911 ............................................................ 161
Quadro 46 – Lista de livros escolares – 1925/1926 ............................................................ 163
Quadro 47 – Remunerações e regalias dos professores da instrução primária (metrópole e
colónia) ................................................................................................................. 190
Quadro 48 – Vencimentos anuais dos professores de instrução primária – 1917 .............. 195
Quadro 49 – Vencimentos anuais dos professores de instrução primária – 1917/18 ......... 195
Quadro 50 – Distribuição dos professores de instrução primária por categorias profissionais
1917/1926 .............................................................................................................. 200
Quadro 51 – Frequência escolar no Seminário-liceu de S. Nicolau – 1912/15 .................. 216
Quadro 52 – Disciplinas, classes e número de alunos do Seminário – 1912/ 1915 ............ 217
Quadro 53 – Liceu Nacional de Cabo Verde: professores e disciplinas – 1919 ................. 237
Quadro 54 – Liceu Nacional de Cabo Verde: professores e disciplinas – 1921 ................. 237
Índice de gráficos
Gráfico 1 – Frequência escolar: número de alunos no ensino primário – 1910/ 1920 ......... 67
Gráfico 2 – Evolução das matrículas de alunos e alunas – 1911/1919 ................................. 68
Gráfico 3 – Repartição dos alunos, segundo a origem étnica – 1911/1920 .......................... 71
Gráfico 4 – Frequência escolar regular e irregular – 1910/1917 .......................................... 74
Gráfico 5 – Evolução da alfabetização – 1912 /1920 ........................................................... 78
Gráfico 6 – Distribuição do orçamento para a instrução pública por concelhos/ilhas –
1912/1915 .............................................................................................................. 112
Gráfico 7 – Distribuição dos subsídios atribuídos ao Fundo de Instrução – 1922 ............. 113
Gráfico 8 – Evolução dos alunos do ensino particular – 1911/1916 .................................. 124
Gráfico 9 – Distribuição das escolas primárias segundo o número de alunos – 1910/11 ... 140
Gráfico 10 – Evolução do número de escolas de instrução primária – 1911/1926 ............ 141
Gráfico 11 – Evolução das escolas primárias nas regiões de Sotavento e Barlavento –
1911/1926 .............................................................................................................. 141
Gráfico 12 – Resultados da avaliação final, 1º grau ........................................................... 181
Gráfico 13 – Resultados da avaliação final, 2º grau ........................................................... 181
Gráfico 14 – Evolução das classificações de insuficiente, 1º grau ..................................... 182
Gráfico 15 – Evolução das classificações de insuficiente, 2º grau ..................................... 182
Gráfico 16 – Salários anuais de diferentes categorias profissionais – 1912 ....................... 192
Gráfico 17 – Salários anuais de diferentes categorias profissionais – 1919 ....................... 196
Gráfico 18 – Evolução dos docentes do ensino primário – 1911/1926 .............................. 198
Gráfico 19 – Evolução das professoras do ensino primário, total e interinas – 1917/26.... 199
Gráfico 20 – Evolução dos professores interinos – 1917/1926 .......................................... 200
Gráfico 21 – Evolução dos professores normalistas – 1917 /1926 ..................................... 208
Gráfico 22 – Frequência escolar do Seminário, segundo a raça – 1912/1915 .................... 216
Gráfico 23 – Liceu Nacional de Cabo Verde: frequência escolar total e masculina –
1917/1924 .................................................................................................... 238
Índice de figuras
Figura 1. O primeiro número do jornal A Voz de Cabo Verde ............................................. 12
Figura 2. Anúncio da Tipografia da “Voz de Cabo Verde”.................................................. 13
Figura 3. Cabeçalho do jornal O Manduco ........................................................................... 22
Figura 4. “Cabo Verde”, Os Lusíadas, Canto V ................................................................... 26
Figura 5. Primeiro Boletim Oficial de Cabo Verde .............................................................. 30
Figura 6. Desembarque do primeiro governador republicano em Mindelo, 1910 ................ 36
Figura 7. Eugénio Tavares e José Lopes em S. Vicente, 1927 ............................................. 47
Figura 8. “Se a América do Norte fechar os seus portos aos analfabetos” ........................... 64
Figura 9. Desenho de um aluno da instrução primária ......................................................... 86
Figura 10. Palácio do Governo, cidade da Praia, cerca de 1910......................................... 102
Figura 11. “Se a gramática não erra …” ............................................................................. 106
Figura 12. Anúncio de uma escola particular ..................................................................... 119
Figura 13. Anúncio da Escola João de Deus ...................................................................... 123
Figura 14. Postos de ensino e escolas primárias ................................................................. 130
Figura 15. Escola de S. Thiago – Cabo Verde, situada no largo do Guedes, Praia ............ 134
Figura 16. Carta escolar das ilhas Brava, S. Vicente, Sal e Maio....................................... 142
Figura 17. Carta escolar das ilhas Boavista e Fogo ............................................................ 143
Figura 18. Carta escolar das ilhas Santo Antão e S. Nicolau.............................................. 144
Figura 19. Carta escolar da ilha Santiago ........................................................................... 145
Figura 20. Página da Cartilha Maternal ............................................................................. 147
Figura 21. “O meu primeiro passeio escolar” ..................................................................... 155
Figura 22. Exercícios caligráficos ...................................................................................... 159
Figura 23. Anúncio de livros e mapas ................................................................................ 161
Figura 24. Lista de manuais escolares ............................................................................... 162
Figura 25. Um exercício de desenho .................................................................................. 166
Figura 26. Registo do acto do exame.................................................................................. 169
Figura 27. Prova escrita do exame de instrução primária do 1º grau.................................. 175
Figura 28. Prova escrita do exame de instrução primária do 2º grau.................................. 176
Figura 29. Resultados finais das provas escritas ................................................................ 178
Figura 30. Notícia de exames de instrução primária do 2º grau ......................................... 179
Figura 31. O perfil do professor de posto ........................................................................... 188
Figura 32. “Cabo Verde foi dotado de um liceu!” .............................................................. 213
Figura 33. “Vista do edifício do Seminário de Cabo-Verde” (1897) ................................. 214
Figura 34. Alunos internos e extrnos do Seminário (1895) ................................................ 215
Figura 35. Na casa do Seminário, “um colégio particular, como qualquer outro” ............. 223
Figura 36. Corpo discente do Instituto Caboverdeano de Instrução – 1925/1926 .............. 226
Figura 37. Estação Telegráfica – S. Vicente, cerca de 1910 .............................................. 235
Figura 38. Edifício onde o Liceu e os Correios foram instalados....................................... 236
Figura 39. Pedido de bolsa de estudos para o aluno Baltasar Lopes da Silva .................... 240
Siglas
BN
Biblioteca Nacional
BO
Boletim Oficial
CAT
Categoria conceptual
CCU
Contexto cultural
CPO
Contexto político
CSE
Contexto social e económico
CV
Cabo Verde
CXª
Caixa
DED
DG
FCV
IAHN
Desenvolvimernto educacional
Diário do Governo
Futuro de Cabo Verde
Instituto do Arquivo Histórico Nacional
INS
Insuficiente
RB
Raça branca
RM
Raça mista
RP
Raça preta
SSE
Situação do sistema educativo
SUF
Suficiente
SUPL
VCV
Suplemento
Voz de Cabo Verde
Prefácio 1
Desde que pisou terra cabo-verdiana creio que Maria Adriana Carvalho
manifestou um empenhado interesse pelos problemas de instrução pública e de
educação na jovem República. Conheci-a como professora nos primeiros anos de
Independência e desde logo detectei a sua sensibilidade para o carácter social da
tarefa que se levantava perante o povo e os dirigentes de Cabo Verde: substituir o
aparelho da educação nacional herdado do colonizador e ajustá-lo às acrescidas e
complexas necessidades dos novos tempos.
Entre as ex-colónias portuguesas, do mesmo modo que durante o período
colonial, Cabo Verde distinguia-se pelo elevado nível cultural da sua classe média
no contexto da África subsaariana. Cabo Verde dispunha de uma elite culta cujas
raízes mergulhavam numa tradição continuada. Nas instituições de ensino médio e
superior, no Continente europeu, não só em Lisboa como em Coimbra e no Porto,
havia estudantes de Cabo Verde. Creio que o Direito, designadamente em Coimbra,
absorvia parte substancial do estudantado crioulo. Creio que ainda existe na Praia
uma associação dos antigos alunos da Alma Mater coimbrã.
Por outro lado, sob o ponto de vista cultural, o arquipélago flagelado por secas e
fomes salientava-se na literatura portuguesa neorealista pela excelência dos seus
prosadores e dos seus poetas, e nela se desenrolava uma das experiências literárias
mais originais de que foi expoente o movimento Claridade.
A consciência de que os problemas sofridos pelo seu povo não eram apenas
expressão das contingências climáticas modelava o rosto profundamente humano
desta literatura em cujo chão o colonizador instalara um dos seus instrumentos de
repressão do pensamento e do sonho de uma terra livre: o campo de concentração
do Tarrafal.
Entretanto, se a camada mais letrada da sociedade cabo-verdiana procurava o
ensino até aos anos terminais do secundário, num sistema escolar socialmente
marcado, transferindo-se em seguida para a Universidade portuguesa e para as
escolas médias, de que a Escola de Regentes Agrícolas de Santarém era exemplo, a
verdade é que ele deixara de funcionar uma vez conquistada a Independência.
Imperativos sociais e pedagógicos que eram pontos fulcrais do programa da
República exigiam uma revisão profunda do sistema escolar: na base de tudo a
garantia do acesso de todos à educação básica, a revisão desse mesmo troço de
escolaridade de modo a satisfazer as necessidades sócio-económicas do
desenvolvimento e de promoção do trabalho e do emprego, a ampliação da base
XV
cultural de acesso ao ensino superior que deixara de ter Portugal como destinatário
único e passara a diversificar-se noutros países doadores que ampliavam a oferta de
bolsas de estudo no exterior.
Uma das questões específicas a que era necessário dar resposta tinha a ver com a
queda do ensino técnico-profissional em São Vicente, o que passava por um debate
em torno da permanência ou da extinção do mesmo ramo de ensino com a feição
que ele detivera em Cabo Verde durante décadas e o inegável prestígio de que
gozavam os seus antigos diplomados na consciência e memória pedagógica dos que
defendiam a sua permanência. Um dos aspectos relevantes que se colocavam tinha a
ver com a potencial criação de novos ramos escolares de ensino secundário
profissional e sua articulação com o ensino técnico do passado.
Lidar com este elenco de problemas e ainda com o debate em torno da questão
de saber se seria ou não adequada a criação de ensino superior em Cabo Verde foi
uma das experiências mais aliciantes que me foi dado viver.
O meu primeiro contacto com o sistema de ensino da República data de cerca de
1980, quando fiz parte de um grupo de trabalho que o Prof. Luís de Albuquerque,
grande amigo desta terra, se encarregara de ajudar a constituir. O grupo contava
com pessoas que conheciam razoavelmente o país e as suas instituições educativas,
tais como o Prof. Jorge Veiga, da Universidade de Coimbra. Passámos uma semana
na cidade da Praia, discutindo com altos funcionários ministeriais cabo-verdianos
numa das salas de aula do Liceu, entre os quais a Dr.ª Maria Luísa Ribeiro.
Sobre esse encontro, que permitia a quase todos nós a obtenção dos primeiros
conhecimentos sobre o conjunto e organização das instituições educativas, passaram
alguns anos, durante os quais ocorreram outras missões de avaliação promovidas
por outros países e instituições, até que o governo cabo-verdiano, obtido um
financiamento do Banco Africano de Desenvolvimento, teve possibilidades de
realizar uma análise mais aprofundada dos novos rumos a seguir. Enquanto uma
missão do Banco Mundial, liderada por Roberto Carneiro e por Pedro d’Orey, se
ocupava do ensino básico, uma segunda missão, de que fiz parte, estava
encarregada de reestruturar o ensino secundário.
Nas várias diligências empreendidas no quadro das actividades de pesquisa e
avaliação, tive ocasião de conhecer Maria Adriana Carvalho, cuja permanência em
Cabo Verde determinou o seu desvio da actividade docente ao nível secundário,
mas uma intervenção profissional constante ao nível da inovação e do planeamento
educativos, e mais tarde ao nível do ensino superior. Sem exagero nem favor, ela
tornara-se uma profunda conhecedora do sistema educativo e das suas ligações com
as necessidades e exigências sociais.
XVI
Ao mesmo tempo, tornou-se uma profunda conhecedora da cultura popular de
Cabo Verde e as suas publicações vieram comprová-lo por vezes em elegantes
edições em livro.
Concluída a minha participação no Projecto de reforma do sistema educativo, só
eventualmente encontrava Maria Adriana Carvalho, até que tive a grata surpresa de
a encontrar como aluna do Mestrado em Ciências da Educação (ramo História da
Educação) que a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da
Universidade de Lisboa assegura na Universidade de Lisboa. Mais uma vez, durante
a parte académica dessa pós-graduação, tive a oportunidade de observar a
persistência e organização do seu estudo e pesquisa.
Quando, tempos depois, tive a surpresa de ser convidado por Maria Adriana
Carvalho a orientar a elaboração da sua tese, logo verifiquei como o tema escolhido
se compaginava com a sua já longa experiência pessoal como técnica de educação.
O tema eleito por Maria Adriana Carvalho relacionou-se com a reconstituição
crítica de um discurso educativo produzido pela sociedade cabo-verdiana entre a 1ª
República e a Ditadura.
Conhecedora dos materiais susceptíveis de revelarem informações relevantes
sobre o sistema, Maria Adriana Carvalho firmou-se em fontes impressas e em
fontes manuscritas, em especial na imprensa local durante o período em
consideração no âmbito do tema. Assim, realizou uma primeira sondagem aos
retratos do passado, que os arquivos conservam em silêncio e que é preciso saber
interrogar. A significativa experiência pessoal da Autora no presente permite-lhe
colocar ao passado as questões que ele ajuda a responder. Assim procede Maria
Adriana Carvalho, começando por identificar na sociedade colonial anterior à
ditadura um quadro de relações que se entretecem entre a cultura, a língua e o
combate à adversidade (as estiagens e a fome): emigração e ensino, progresso social
e educação, tais foram as suas grandes linhas de actividade.
Este ponto introdutório do seu trabalho final de Mestrado coloca-nos perante
algumas evidências explicativas do recurso à educação como ferramenta de
sobrevivência.
Desse modo, Maria Adriana Carvalho põe-nos diante algumas evidências
explicativas do recurso à educação. Nesse espírito aborda problemas relativos ao
primeiro ensino: a questão do analfabetismo e da escolarização como ponto de
emergência de um sistema de ensino, o que significa a ultrapassagem da
informalidade na instrução pública e a manifestação da acção e da responsabilidade
do Estado relativamente às garantias do direito dos povos à educação e à cultura. A
XVII
educação é a arma criada pelo colonizador e pelo colonizado em ordem à
sobrevivência deste relativamente ao opressor.
Maria Adriana Carvalho passa em revista os diferentes graus de ensino, no
sentido da sua diversificação curricular, com base nas respectivas representações e
práticas: o ensino primário elementar e complementar, além do ensino primário
superior.
Sobre este quadro, a Autora procede a uma leitura critica da organização do
sistema escolar: a administração, o financiamento e a intervenção da sociedade.
Quanto às manifestações externas da cultura escolar, estudou minuciosamente a
rede das escolas primárias, ao passo que nas chamadas manifestações internas dessa
mesma cultura realizou a análise da disciplina, das inovações pedagógicas, do
mesmo modo que os artefactos e os manuais escolares, a avaliação da aprendizagem
assim como a formação identitária dos ensinantes.
A terceira parte da investigação de Maria Adriana Carvalho foi consagrada ao
ensino secundário. Semelhante estudo abrangeu uma série de grandes temas:
- Do Seminário-Liceu ao Instituto Caboverdeano de Instrução;
- A implantação do Liceu de São Vicente: O Liceu Nacional de Cabo Verde.
Em ambos os casos, perante a consciência sócio-cultural do cabo-verdiano,
tratava-se de um imperativo de Soberania
A investigação de Maria Adriana Carvalho foi coroada de êxito. Ela distingue-se
pela riqueza da informação obtida em primeira mão e pela organização do texto que
suporta a narrativa.
Ao contrário do que seria de supor, a narrativa de reconstrução, nas mãos da
Autora, não se compagina com uma gesta retórica de progresso, no seguimento do
positivismo histórico oitocentista que derivou de Augusto Comte1. Ela é cautelosa
na avaliação dos progressos e não se deixa prender pela paixão de um progresso
rectilíneo e invariável. Pelo contrário, é uma observadora atenta e crítica do curso
enleante da história da instrução e da educação públicas, nas suas continuidades e
descontinuidades, nos seus avanços e recuos.
Desse modo, Maria Adriana Carvalho mostrou-se à altura das tarefas de
investigação científica inerentes à escolha do seu tema, fortemente instigada pela
sua experiência de professora e técnica de ensino e pela consciência de que a
1
Não confundir, de qualquer modo, positivismo e positividade, como recomendava nos bancos da Faculdade de
Letras de Lisboa o meu falecido mestre Vieira de Almeida. O positivismo passara como doutrina mas a
positividade era uma atitude de espírito que se mantinha viva.
XVIII
formação não decorre num deserto social; senão que, pelo contrário, na
convivialidade física e espiritual do homem com os outros homens. A educação e a
instrução constituem, por isso, uma aventura humana que devemos acompanhar em
toda a extensão e profundidade.
O trabalho que vamos ler foi elaborado com rigor e honestidade. A Autora
procura comprovar as suas afirmações mercê do recurso à administração da prova, o
que, a seu turno, exige uma pesquisa criteriosa e fina, acompanhada de um
equilibrado senso crítico. O valor desta realização de Maria Adriana Carvalho não
decorre somente da comprovação de que o passado contribui para a compreensão do
presente e para o desenho do futuro: decorre também da comprovação de que a
demonstração nas ciências humanas tem regras diferentes da demonstração nas
ciências duras, sem que, por esse traço, a liberdade de opinião se confunda com a
opinião livre. Nas ciências humanas e sociais o investigador cinge-se à crítica dos
materiais empíricos para deles extrair o significado das acções e dos pensamentos
de quem no antecedeu.
As felicitações a endereçar a Maria Adriana Carvalho duplicam aquelas que lhe
enderecei no dia da discussão da sua tese de mestrado e no novo compromisso que
mutuamente assumimos de repetirmos a nossa experiência de orientação em nova
jornada.
Rogério Fernandes
Lisboa, 1 de Março de 2007
XIX
Prefácio 2
Geralmente supõe-se, e nem sempre sem fundamento, que o produto de uma
pesquisa levada a cabo com a finalidade de obtenção do grau académico de
mestrado ou doutoramento, tem como propósito natural ser um documento dirigido
apenas a um determinado público.
A nossa representação mental do texto constitui, frequentemente, uma sequência
de conceitos teóricos, seguida de um discurso hermético, praticamente codificado e
extraordinariamente complexo, cuja leitura, mais que um prazer é um acto
necessário para os especialistas da matéria em questão. Mas no caso da presente
obra, a Autora surpreende-nos porque, respeitando escrupulosamente os princípios
científicos e metodológicos que norteiam um trabalho desta natureza, apresenta-nos
um texto duma lisura admirável, que nos cativa e prende e onde somos literalmente
levados pela mão, a vivenciar e partilhar com as personagens da época, as
preocupações e representações individuais e colectivas sobre a situação, o papel e o
significado da educação.
A obra focaliza um momento extremamente importante na evolução da nação
cabo-verdiana, que ao mesmo tempo que suporta uma profunda crise económica,
exteriorizada no binómio seca/fome, está imersa na construção duma nova
estruturação social e familiar pós – esclavagista, que no que respeita à educação,
está simbolicamente marcada pela passagem de um modelo educativo próprio duma
sociedade escravizada, para um modelo, que a sociedade quer obrigatório e que
deseja se constitua num factor de progresso social e económico.
De uma forma hábil e amena, este trabalho apresenta questões complexas, tais
como a convergência de factores determinantes para o desenvolvimento de
sentimentos de pertença e de atitudes de intervenção, que ficam patentes na
ingerência activa da nossa intelectualidade nos assuntos que dizem respeito ao
futuro da nação e da educação. Se a independência é olhada como uma quimera, o
direito à igualdade com os cidadãos da metrópole reivindicado, tendo como
justificativa o ascendente cultural particular do cabo-verdiano, é um facto assumido.
Ao mesmo tempo, mostra a face das autoridades portuguesas, que confrontadas
com as contradições inerentes entre a sua condição de colonizadores e o ideal
humanista republicano, optam por uma remodelação cautelosa, onde os conteúdos
XXI
não levam em consideração as particularidades do arquipélago e a organização e
configuração do sistema e da rede não satisfazem as aspirações dos cabo-verdianos.
A apresentação de um panorama sócio político abrangente, profusamente
ilustrado com recurso ao discurso e a produção dos diferentes actores sociais da
época, lhe permitem apresentar os elementos que confluem para a construção social
do discurso educativo, com o rigor e a isenção inerentes à profissão de historiadora.
A sensibilidade e a cientificidade como pedagoga, manifestam-se ao colocar-nos
perante as representações sociais de questões tão relevantes como o papel da
educação, o status social do corpo docente, ou as práticas educativas,
particularmente as de ensino aprendizagem que privilegiam a memorização em
detrimento da reflexão, a forma de exercício da disciplina, os mecanismos de
avaliação e a organização da sala.
Além do contributo fundamental, para a construção da história da educação no
país, tendo em conta o estado da produção cientifica cabo-verdiana actual, a obra
apresenta-se como uma reflexão particularmente fecunda e bem sucedida, que
convida a novos estudos, porque descortina novas e estimulantes perspectivas de
trabalho.
A título de exemplo, mencionemos a possibilidade de nos situar numa
perspectiva histórica mais ampla, intimamente relacionada com o pensamento
humanista republicano da época de preocupação com o acesso à educação de
rapazes e raparigas, revelada na forma de recolha e apresentação dos dados
estatísticos, e que certamente, constituirá uma referência para estudos
especializados na área de género.
Uma outra vertente interessante a explorar é a ilustração duma situação,
geralmente escamoteada até agora nos estudos sobre a sociedade cabo-verdiana – o
factor raça como elemento pertinente ou relevante nas análises sociais.
Igualmente, os estudiosos dos processos de descentralização e das questões
relacionadas com a evolução na forma de encarar a língua cabo-verdiana,
encontrarão importantes referenciais.
Esta pesquisa, que supre uma lacuna importante em matéria de sistematização
histórica do percurso cabo-verdiano, que estende uma ponte entre a sociedade
imediatamente pós – escravocrata do último quartel do século XIX e o movimento
“Claridoso” do segundo quartel do século XX, ao não segregar os múltiplos
XXII
aspectos que confluem para a construção da consciência colectiva, pode suscitar
inquietação, pois aflora questões sagradas, difíceis de questionar no nosso
inconsciente colectivo, tais como o sentimento de cabo-verdianidade e seu
entrelaçamento com assuntos como raça, classe social e língua.
A presente obra está consubstanciada por uma sólida base teórica conceptual,
mas a sua qualidade e o seu brilho intrínseco, creditam por si mesma, a presente
publicação.
Maritza Rosabal
Praia, 18 de Março de 2007
XXIII
XXIV
Dedico este livro ao
Ildo Augusto, Ana e Pedro
XXV
XXVI
Nota de apresentação
Este livro é uma versão da dissertação de Mestrado em Ciências da Educação
(área de especialização em História da Educação), na Faculdade de Psicologia e de
Ciências da Educação, da Universidade de Lisboa.
Em múltiplas revisões procedi a alterações do texto, com o fito de o tornar
menos árido para eventuais leitores, aligeirando as marcas formais dos trabalhos
académicos2.
A inevitável deformação do meu percurso académico conduz, invariavelmente, à
tentação de contar a história de actos que transcendem o quotidiano. Este livro tem
uma curta história, que não resisto contar.
Como confesso na “Introdução”, a investigação, que conduziu ao presente
trabalho, surgiu em resposta ao desencanto e cansaço com os resultados (ou melhor,
os não resultados) de uma pesquisa inicial sobre “a história da educação em Cabo
Verde”, intuitiva e sem suporte académico. O reconhecimento de inesperadas
limitações – na convicção enganosa das virtualidades da minha experiência de
muitos anos – motivou a candidatura a um curso de Mestrado, na Universidade de
Lisboa. Fui seleccionada e, durante dois anos, vivi entre Praia e Lisboa, entre
afectos, estudo e obrigações profissionais.
Na Faculdade, sendo a mais “nova” da turma, reencontrei a solidariedade das/os
jovens, a partilha da convivência universitária e uma imensa ajuda das/os colegas
que guardavam apontamentos, bibliografia, textos (aquando das minhas escapadelas
a casa) e esclareciam muitas dúvidas. Encontrei uma tríade admirável de mestres:
Professor Rogério Fernandes (meu ilustre orientador de tese), Professor Justino de
Magalhães e Professor Jorge do Ó. A bolsa de estudos, concedida pela Fundação
Calouste Gulbenkian, deu o indispensável suporte material. Desta conjuntura
favorável resultou a dissertação A construção social do discurso educativo em Cabo
Verde (1911-26), defendida nos idos de Fevereiro de 2004.
A generosidade de um amigo – refiro-me a Manuel Brito Semedo – incitou-me à
candidatura, com a presente tese, ao Grande Prémio Cidade Velha (seríamos
concorrentes). Mais um desfecho favorável: dividimos, ex aequo, a menção honrosa
por uma obra – não resisto à imodéstia – que “empresta valência científica à cultura
2
Reduzi o número de gráficos, de tabelas, notas de rodapé e anexos. Traduzi as citações, originalmente, em
francês e inglês. Nos documentos transcritos conservei a grafia original.
XXVII
cabo-verdiana3”. Tamanha vaidade levou-me a retirar o estudo do isolamento e da
poeira da estante e procurar divulgá-lo. Se esta história teve mais um final feliz,
deve-se ao Presidente do Instituto da Biblioteca Nacional, que, desde a primeira
hora acreditou no projecto e aceitou o desafio da publicação da obra. Bem-haja!
Agradecimentos
Foi um privilégio ter sido aluna de Rogério Fernandes. O livro que aqui se traz a
público existe graças à esclarecida orientação científica e ao permanente estímulo e
encorajamento do Professor. As sessões de orientação foram ocasiões únicas de
aprendizagem e de debate com um historiador crítico, de vasta cultura humanista,
fino trato e uma generosidade sem limites.
Presto o meu público reconhecimento à Fundação Calouste Gulbenkian pela
bolsa de estudos que me atribuiu e pelo apoio financeiro à edição do livro. Ao
Professor Doutor Eduardo Marçal Grilo, Doutor Manuel Carmelo Rosa e Doutora
Margarida Abecassis a minha gratidão.
Os meus agradecimentos à Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, pelas
facilidades concedidas para a realização do trabalho e apoio à edição do livro.
Estou muito grata à Doutora Ondina Ferreira pela leitura atenta e paciente
revisão do texto.
O último agradecimento à colega e amiga Maritza Rosabal pelo gosto em
discutirmos, crítica e abertamente, as coisa da educação de hoje e do passado.
Roteiro da escrita
O livro A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-26),
que subtitulei Um Contributo para a História da Educação, está organizado em
duas partes e dez capítulos.
A Introdução anuncia o Objecto de Estudo e contém o Marco Conceptual, a
Problemática e as Questões Metodológicas. Fecha com a inventariação das Fontes.
A I parte, intitulada Uma Sociedade (In) conformada, abre com um capítulo
dedicado às Relações Colónias (1). O capítulo seguinte (2) incide no estudo da
3
In diploma da concessão da menção honrosa, 18 de Outubro de 2005.
XXVIII
Cultura e da Língua e o último (3), focaliza a Luta contra a Adversidade: Emigração
e Ensino.
A II parte da tese, a mais extensa, designa-se A Construção do Discurso
Educativo. Iniciada pelo estudo da Escolarização e Analfabetismo (1), apresenta o
processo de Modelação do Sistema Educativo (2) e o Desenvolvimento
Institucional. A cultura escolar é captada nas suas manifestações externas – a Rede
Escolar (4) e nas internas: a Disciplina, as Inovações Pedagógicas, os Artefactos
Escolares e a Avaliação da Aprendizagem (5). Seguidamente, a Identidade
Profissional dos Professores (6). O capítulo final (7) incide na problemática da
Edificação do Ensino Liceal.
As Conclusões estabelecem pontes entre a problemática e as hipóteses,
entendidas como pistas para futuros alargamentos da investigação.
O aparato crítico é integrado pelas Fontes e Referências Bibliográficas. A tese
fecha com um conjunto de Apêndices, com informações complementares ao
processo heurístico e documentação considerada relevante para o conhecimento do
sistema educacional cabo-verdiano.
Praia, 17 de Março de 2007
Maria Adriana Sousa Carvalho
XXIX
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Introdução
“Cumpre, pois, irmão, o dever iniludível de exercer os teus direitos
políticos, de mandar à escola os teus filhos, do trabalhador enveredando
para o campo que a moderna orientação abre, como uma Canaam, sob os
passos dos luctadores.
Educa-te; une-te; disciplina-te.” (Eugénio Tavares, 1910, p. 12)
“Art. 4º Direitos e deveres da educação:
1. Todo o cidadão tem o direito e o dever da educação.
2. A família, as comunidades e as autarquias locais têm o direito e o
dever de participarem nas diversas acções de promoção e realização da
educação.
Art. 5º Objectivos e princípios gerais do Sistema Educativo:
(…)
4. A educação deve contribuir para salvaguardar a identidade cultural,
como suporte da consciência e da dignidade nacionais e factor
estimulante do desenvolvimento harmonioso da sociedade.” (Lei de
Bases do Sistema Educativo de Cabo Verde, 19901)
O percurso de vida em Cabo Verde, pessoal e profissionalmente comprometido
com o ensino (do básico ao superior), articulado com a formação académica em
História, suscitou em nós a curiosidade pelo caminho percorrido entre o apelo do
poeta Eugénio Tavares pela educação, enquanto direito político (1910) e a sua
consagração, como direito e dever de todo o cidadão, volvidos oitenta anos (1990).
A curiosidade conduziu a uma pesquisa intuitiva e sem projecto, com a pretensão
de encontrar a verdade objectiva nos arquivos e, assim, reconstituir a história da
educação de Cabo Verde até ao dealbar da independência. A ilusão da
objectividade, o desencanto com as respostas obtidas e a perspectiva de uma
interminável pesquisa – para a legitimação de juízos definidos (e quiçá definitivos)
– despertaram a consciência de sérias limitações teóricas e metodológicas. Pedimos
ajuda. A ajuda veio sob a forma do curso de Mestrado em Ciências da Educação,
especialização em História da Educação, na Faculdade de Psicologia e de Ciências
da Educação, da Universidade de Lisboa.
A leitura de obras de referência nos campos da Nova História e da Sociologia,
desencadeou um renovado interesse pela História da Educação, situada na
intercepção dos campos científico e metodológico da História e das Ciências da
1
Lei n.º 103/III/90, 29 de Dezembro de 1990. Supl. ao Boletim Oficial n.º 52, pp. 21-22.
1
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Educação, provocando – pouco a pouco – uma abertura a abordagens diversificadas
a novos campos epistémicos, mas convergentes com a temática que continuava a
preocupar-nos.
Neste percurso desenrolou-se uma progressiva ruptura com preconceitos e ideias
feitas num processo, ainda, não concluído. O plano de investigação foi norteado
pela asserção de Gaston Bachelard, que resumiu o processo científico em três actos:
“conquistado sobre os preconceitos; construído pela razão; verificado pelos factos”
(Quivy & Campenhoudt, 1998, p. 25). O interesse pelo tema tornou-se pessoal e
quase compulsivo.
“Na medida em que toda a investigação tem a sua própria finalidade, deve alimentarse de uma curiosidade sempre renovada. Este aspecto obsessivo dificilmente poupa um
investimento pessoal, quase afectivo.
O historiador é um necrófago, ou pelo menos, um necrófilo: a exigência da história
nasce, frequentemente, de uma morte, ou de uma ruptura. Tenta-se aceitar esta ruptura,
se a vivemos mal, ou simplesmente, viramo-nos para a história para melhor
compreender o que se passa hoje: como se passou antes? A partir de quando houve
mudanças?” (Compère, 1995, p.89)
Objecto de estudo
O campo de estudo, o ensino colonial, inscreve-se na “listagem de temáticas que
podem contribuir para uma renovação dos estudos histórico-educativos” (Nóvoa,
1994, p. 164). Segundo António Nóvoa, “a historiografia portuguesa da educação
pode encontrar neste campo [estudos comparados] um importante ponto de
expansão e de renovação das suas práticas, nomeadamente por via de uma
referência ao espaço europeu, de uma cooperação no espaço latino-americano e de
uma ligação às realidades dos países africanos de expressão portuguesa” (1993, p.
18).
Para a delimitação do objecto de estudo e do campo de análise tivemos em linha
de conta “o reconhecimento de que a educação não decorre, nem decorreu nunca
num deserto social”:
“Pelo contrário, assim no presente como no passado, ela situa-se na intercepção de
factos histórico-sociais de diferente natureza. Deste modo, a História da Educação
definiu-se pelo seu carácter de História Social, procurando na contextualização dos
factos educativos e pedagógicos a explicação da sua génese e do respectivo processo
evolutivo. Desse modo, ainda que se trate da história das ideias ou das correntes
pedagógicas, ainda que o alvo seja a vida e a produção ideológica dos pedagogos, a
explicação terá de ser procurada noutra zona da realidade que não na própria
Pedagogia.” (Fernandes, 2004b, p. 796)
2
Introdução
Foi no campo da História Social e na confluência de motivações subjectivas e de
actualidade, que estabelecemos a temática: A construção social do discurso
educativo em Cabo Verde.
O aparente confronto entre o humanismo do projecto republicano2 e a situação
de dominação vivida na colónia, foi decisivo para o estabelecimento do arco
temporal do estudo, de 1911 a 1926. O discurso pedagógico republicano depositava
desmedida confiança no progresso social, atribuindo à educação e à escola um papel
decisivo na consecução das novas metas estabelecidas (Fernandes, 2004c, p. 596).
A compreensão do processo de transferência do discurso pedagógico republicano
para a colónia constituiu um desafio.
Reflectir sobre a acção educativa – ideias pedagógicas, práticas e representações
discursivas – percepcionada pela sociedade islena, na situação de submissão
colonial e reconstituir as realidades vividas, enquanto construções históricas de
actores individuais e colectivos, são os objectivos do presente estudo.
Marco conceptual
A investigação foi iniciada pela leitura da bibliografia de referência, em vários
domínios das Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia, Etnologia, História da
Educação), que se articulam, de forma interdisciplinar, com a História. A
apropriação teórica, mediante leituras, debates e reflexões, contribuiu para o
aprofundamento de conhecimentos sobre o objecto de estudo e para a orientação
metodológica.
Após o caos original3, num acervo de propostas teóricas e de conceitos, por
vezes contraditórios, procedemos ao levantamento de princípios especulativos
gerais e diferentes abordagens e problematizações, relacionados com a temática.
A fase seguinte consistiu na selecção de conceitos, que se foram relacionando
entre si e forneceram os parâmetros para o desenvolvimento da investigação.
2
“Educação interessada na criação e consolidação de uma nova maneira de ser português, capaz de expurgar a
Nação de quantos males a tinham mantido, arredada do progresso europeu, sem força, sem coragem, sem meios
para sacudir de si a sonolência em que mergulhara.” (Carvalho, 2001, p. 651)
3
Conceito utilizado por Raymond Quivy e Luc Van Campenhoudt no subtítulo do capítulo “Problemas de
método (o caos original... ou três maneiras de começar mal)” do Manual de investigação em Ciências Sociais:
trajectos (1998, p. 44).
3
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
História social
A intenção de recuperar a memória educativa de Cabo Verde, em inícios do
século XX, teve como cenário de fundo “a história [definida] como o inventário
explicativo, não dos homens nem das sociedades, mas do que há de social no
homem, ou mais precisamente das diferenças que apresenta este aspecto social”
(Veyne, 1989, p. 6). A história assume-se como uma epistemologia que elabora
processos de construção social das acções humanas, reportando-os a quadros
espacio-temporais determinados: Cabo Verde, no período de 1911 a 1926.
Construção social
Situamo-nos no “novo espaço de questões e de problemas”, o construtivismo
social, uma vez que a realidade tende a ser apreendida como construída (e não
como «natural» ou «dada» de uma vez por todas)” (Corcuff, 1995, p. 8). Para
Philippe Corcuff “se as perspectivas construtivistas, tal como as entendemos aqui,
supõem um momento de des-construção – quer dizer, de interrogação do que se
apresenta como «dado», «natural», «intemporal», «necessário» e/ou «homogéneo»
– elas exigem de seguida investigações sobre os processos de construção da
realidade social (momento de reconstrução)” (idem, p. 24).
Reprodução escolar
Ao analisar a realidade educativa, recorremos ao paradigma centrado no conceito
de produção simbólica como instrumento de dominação e de reprodução social.
Pierre Bourdieu estabelece a distinção entre capital económico, social e cultural e
considera que a posse do capital cultural confere aos jovens, que acedem ao sistema
escolar, grandes probabilidades de obterem um título de prestígio, que lhes dará
acesso a boas posições sociais e profissionais. A escola tem, assim, funções de
ratificação, justificação e integração:
“A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante
(assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindoos das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto
à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da
ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a
legitimação dessas distinções.” (1989, pp. 10-11)
4
Introdução
Nesta perspectiva, os sistemas educativos perpetuam e consolidam as
organizações hierárquicas da sociedade onde se inserem, através de mecanismos de
reprodução escolar.
“Escola, demónio de Maxwell4? (...)
Maxwell imagina um demónio que, entre as partículas em movimento mais ou menos
quentes, ou seja, mais ou menos rápidas, que se lhe apresentam, opera uma triagem,
enviando as mais rápidas para um recipiente, cuja temperatura aumenta, e as mais
lentas para outro, cuja temperatura baixa. Fazendo-o, mantém a diferença, a ordem,
que, de outro modo, tenderia a ser aniquilada. O sistema escolar age à maneira do
demónio de Maxwell: ao preço do dispêndio de energia que é necessário para realizar
a operação de triagem, mantém a ordem preexistente, quer dizer, a distância entre os
alunos dotados de quantidades desiguais de capital cultural. Mais precisamente,
através de toda uma série de operações de selecção, separa os detentores do capital
cultural herdado dos que são desprovidos dele. Sendo as diferentes aptidões
inseparáveis de diferenças sociais segundo o capital herdado, tende, desse modo, a
manter as diferenças sociais preexistentes.” (Bourdieu, 1989, p. 22)
Em contextos de dominação colonial, a escola exerceu, por excelência, estas
funções, constituindo-se caixa de ressonância do poder dominante. O conceito de
reprodução social encontra-se vinculado à teoria da legitimação da ideologia, como
domínio simbólico.
Poder
A tomada em consideração da dimensão simbólica da realidade social tem
consequências sobre a maneira de pensar as relações de dominação (assimetria de
recursos) entre indivíduos e grupos. É neste âmbito que emerge a noção de
violência simbólica (Corcuff, 1995, p. 44).
“As diversas formas de dominação, a menos que se recorra exclusiva e continuamente
à força bruta (que, aliás, supõe, ela própria uma dimensão simbólica, visto que é
apercebida e se expressa de uma certa maneira), devem ser legitimadas, reconhecidas
como legítimas, isto é, devem revestir-se de um sentido positivo ou, em todo o caso,
devem tornar-se «naturais», de maneira que os próprios dominados adiram à ordem
dominante, desconhecendo os seus mecanismos e o seu carácter arbitrário (não natural,
não necessário, portanto histórico e transformável). É este duplo processo de
reconhecimento e de desconhecimento que constitui o princípio da violência simbólica
e por isso da legitimação das diversas dominações.” (Bourdieu, 1977, citado em
Corcuff, 1995, p. 44)
4
Para explicar os mecanismos de reprodução escolar, Pierre Bourdieu evoca a imagem empregada pelo físico
Maxwell para fazer compreender como podia ficar em suspenso a eficácia da segunda lei da Termodinâmica.
5
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Michel Foucault reformulou o velho axioma iluminista, “o conhecimento exerce
poder, sublinhando que o poder produz conhecimento” (Nóvoa, 1996, p. 39). A
educação colonial consagrou o princípio que “para dominar era preciso acumular
informações, para poder tornava-se imprescindível saber” (Gomes, 1996, p. 154).
Assimilação
Constituiu o fundamento ideológico da educação colonial, ancorada em três
vectores: a mestiçagem biológica, a catequização e a aculturação linguística.
Segundo Gaston Mialaret e Jean Vial,
“Nos países onde preexistia uma cultura escrita e uma certa transmissão
institucionalizada desta cultura, foram quase sempre tentados compromissos,
empiricamente; mas a aculturação do país explorador e, portanto, o esbulho cultural,
predominaram sempre muito, considerada a finalidade prosseguida. Na ausência de
tais tradições, o favor acordado em escolarizar uma pequena parte da população
tomava um aspecto ainda maior.” (s. d., p. 103)
Na época colonial, os conceitos assimilação e aculturação foram legitimados
pelas Ciências Humanas, que “participam na construção desta imagem e a
autenticam, creditando a noção de hierarquia entre os indivíduos e os povos” e pelo
“ensino, [que] pela sua própria existência e pelo desenvolvimento relativo que
conheceu, é apresentado como o resultado mais aceitável e mais promissor do
empreendimento colonial, pelas ideias que difunde” (Léon, 1991, p. 37).
Problemática
Para Paul Veyne “a história apenas existe em relação às perguntas que lhe
fazemos”. Acrescenta que “materialmente, a história escreve-se com factos;
formalmente, com problemáticas e conceitos” e, consequentemente, “o historiador é
implicitamente um filósofo, pois que decide sobre o que se considera
antropologicamente interessante” (1989, p. 6). Porém, Popkewitze (1991) adverte
que “a recusa de uma teleologia da história obriga-nos a aceitar que nada pode ser
conhecido de forma segura” e considera que “é preciso considerar a história como
uma epistemologia social que interroga as relações entre o poder e o saber a partir
da sua localização num espaço e tempo precisos” (citado em Nóvoa, 1998, p. 19).
O quadro teórico conduziu ao seguinte modelo de análise: partimos de questões
concretas e de possibilidades teóricas, que foram modelando e delimitando o
6
Introdução
objecto de estudo e o campo de análise, ao longo da investigação, por aproximações
e verificações sucessivas.
Partindo do conhecimento do estádio actual da educação cabo-verdiana,
formulámos perguntas:
Como se processou a génese da educação em Cabo Verde?
Como foi percepcionada a educação, pela sociedade cabo-verdiana, num
contexto de dominação colonial?
Como é que o discurso educativo, durante o período republicano, absorveu e
sintetizou valores tão contraditórios, como os da solidariedade e da subjugação?
A problemática foi construída a partir das três questões. As respostas testadas por
hipóteses, reformuladas ao longo da investigação, constituem interpretações
antecipadas e provisórias. No decurso do processo heurístico inventariámos as
seguintes hipóteses analíticas:
A construção do discurso educativo, no arquipélago de Cabo Verde,
correspondeu a uma vontade social de desenvolvimento, assente na valência da
educação como fonte do progresso.
Os pressupostos redentores e utópicos da educação republicana não se
traduziram em medidas educativas capazes de romper com a inércia
administrativa e a distância (física e burocrática), que separavam a colónia da
metrópole.
A imprensa foi a imago mundi da afirmação de valores integradores da
identidade cabo-verdiana: a apetência pelo conhecimento e a vontade de
autonomia.
A resposta às adversidades naturais – seca e fome – e à governação colonial –
dominação e ineficácia – foi procurada por duas vias libertadoras: a emigração e
o ensino.
A escola cabo-verdiana exerceu as funções de ratificação, justificação e
integração da ideologia e cultura dominantes (modelação do escolar colonizado à
imagem-ideal do colonizador).
O sistema escolar assumiu a função de legitimação das diferenças sociais, sob
clivagens discriminatórias: classe, género, língua, raça, origem (rural/urbano;
colónia/metrópole).
7
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A substituição do ensino secundário religioso pelo ensino secundário laico
inscreveu-se num contexto de disputa da liderança regional, protagonizada pela
elite cabo-verdiana, que exercia o controlo económico, social e cultural.
Apesar da isonomia dos sistemas educativos (português e cabo-verdiano) surge –
de forma incipiente, mas firme – um discurso portador da vontade da diferença,
que não conseguiu forjar uma cultura escolar, marcada por práticas e saberes
genuínos.
Esperamos que o exercício de reconstrução do discurso educativo, na colónia de
Cabo Verde (1911 a 1926), proporcione respostas, ainda que provisórias, ao
questionamento inicial.
Questões metodológicas
“A familiaridade que temos com o passado é como aquela que temos
com os nossos avós; não existem em carne e osso, de modo que os dias
passam e não pensamos nunca que a sua biografia, que ignoramos quase
inteiramente, é povoada de acontecimentos tão apaixonantes como a
nossa e não se reconstrói à risca. A ciência é inacabada de jure, só a
história pode permitir-se ser lacunar de facto: porque não é um tecido,
não tem trama.” (Paul Veyne, 1983, p. 28)
Paul Veyne defende que “qualquer historiografia depende, por um lado, da
problemática que levantar, por outro, dos documentos de que dispuser” (1989, pp.
10-11). A natureza da problemática da presente investigação condicionou as regras
da metodologia. O modelo adoptado situa-se, essencialmente, no campo da
investigação qualitativa e da abertura interdisciplinar, a partir de uma lógica
interpretativa assente na análise dos materiais empíricos disponíveis. Utilizámos
também técnicas quantitativas de análise, nomeadamente a interpretação de dados
estatísticos.
A organização de uma estratégia de pesquisa foi norteada pela pergunta: que
fontes de informação estão potencialmente disponíveis e são adequadas ao objecto
de estudo?
8
Introdução
Após uma prospecção nos arquivos em Cabo Verde5 e na Biblioteca Nacional de
Lisboa, elegemos a imprensa cabo-verdiana e portuguesa (temática colonial), como
fonte primordial, por constituir um corpus documental portador de testemunhos
vivos do processo de socialização do discurso educativo. As fontes legislativas,
condensados no Boletim Oficial da Província de Cabo Verde, desvendaram a lógica
da administração e as representações formais e simbólicas do sistema escolar.
Captámos a ambiência cultural e o pulsar das relações coloniais em livros e
opúsculos coetâneos. Acedemos às manifestações comportamentais – práticas
quotidianas, tensões e conflitos – em fontes primárias, no Instituto do Arquivo
Histórico Nacional de Cabo Verde ("Secretaria Geral (1803-1927): repertório
numérico simples do Fundo Arquivístico", 1998).
Seguiu-se a organização do acervo documental, considerado adequado à temática
da dissertação e a validação das hipóteses formuladas, segundo uma perspectiva
pessoal, inevitavelmente, subjectiva.
A documentação foi ordenada em categorias conceptuais (contexto, sistema
escolar e desenvolvimento educacional), cujas significações dependem de relações
com categorias menores ou subcategorias (cf. modelos de tabelas analíticas, em
formato Excel 6).
Estamos conscientes que, em muitos casos, fizemos interpretações de
interpretações, dada a prevalência de fontes secundárias. Esta uma das limitações do
nosso trabalho. Marie-Madeleine Compère adverte: “A crítica histórica, desde a sua
origem, considera uma hierarquia de fontes, no fundo das quais estão os
documentos «de segunda mão», nos quais os factos são relatados, logo agenciados,
por um primeiro leitor «de primeira mão», que esteve em contacto com as fontes”
(1995, p. 80).
O processo heurístico foi, ainda, pautado pelo paradigma da Nova História, que
vira a sua atenção para as práticas discursivas e para a questão da intertextualidade:
“A relação do texto com o real (que pode talvez definir-se como aquilo que o próprio
texto apresenta como real, construindo-o como um referente situado no seu exterior)
constrói-se segundo modelos discursivos e delimitações intelectuais próprias de cada
situação escrita. (…) O que nos leva, em seguida, a considerar que os ‘materiaisdocumentos’ obedecem também a processos de construção onde se investem conceitos
e obsessões dos seus produtores e onde se estabelecem as regras da escrita próprias do
género de que emana o texto. São essas categorias de pensamento e esses princípios de
5
Além do Instituto do Arquivo Histórico Nacional, visitámos o arquivo do Liceu Ludgero Lima, em Mindelo e
um núcleo documental – armazenado num cubículo fechado – no edifício da “Escola Grande”, na Praia. Porém
o estado de elevada degradação dos referidos arquivos impossibilitou a consulta documental.
6
Consultar apêndice A.
9
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
escrita que é necessário actualizar antes de qualquer leitura ‘positiva’ do documento. O
real assume assim um novo sentido.” (Chartier, 1988, pp. 62-63)
Apesar da abundância de informações recolhidas – de per si sintoma do interesse
da sociedade pela educação –, sentimos a presença de factos e de situações
silenciados, o que relativizou muitas das interpretações que ousamos formular.
Rogério Fernandes alertou-nos para estas limitações e para a complexidade do
ofício de aprendiz de historiador, ao considerar que:
“Os conteúdos da cultura escolar traduzem-se pelos objectivos proclamados nos
planos de estudo, ou seja, nas disciplinas, assim como pelas actividades e saberes
académicos propostos ou exigidos, pelas práticas educativas instauradas, pelos
materiais didácticos adoptados, pelos normativos reguladores das acções, pelas
modalidades administrativas e gestionárias. Traduzem-se também pelas ausências e
silêncios, isto é pelos saberes excluídos ou que passam a estar nessa condição.”
(Citado em Proença, 1998, p. 24)
Neste sentido, ao pretendermos recuperar o discurso educativo (nas linhas e
entrelinhas) e questionar as histórias da história, as ausências e os silêncios,
esperamos contribuir para a preservação e divulgação de testemunhos da memória
(i)material de Cabo Verde.
Fontes
A inteligibilidade da narrativa histórica depende da confluência de fontes
primárias e secundárias, impressas e manuscritas. A intertextualidade das fontes
permitiu o contraponto entre a lógica do poder, as práticas educativas e as
representações simbólicas, filtrados pelo senso comum, que perpassavam na
imprensa e nos registos produzidos nas escolas, secretarias, municípios e na
sociedade.
No diálogo com as fontes apropriámo-nos de projectos, utopias e jogos de poder.
Na senda de explicações apercebemo-nos da compartimentação redutora e rígida
das antinomias: oficial-privado, autoridade-submissão, professor-aluno, ordemdesordem, disciplina-indisciplina, colonizador-colonizado, eu-outro.
A progressão na diagnose da realidade educativa foi proporcional ao crescendo
da problematização e da ilusão de apurar a verdade e atingir a objectividade.
Conscientes das restrições, impostas pelas fontes, a nossa ambição limitou-se ao
mapeamento da realidade educativa e ao estabelecimento de uma genealogia da
educação, em Cabo Verde, no dealbar do século XX.
10
Introdução
A imprensa cabo-verdiana
A imprensa cabo-verdiana nasceu no dia 1 de Outubro de 18777, com a
publicação, na Praia, do jornal Independente, que se apresentava como um “jornal
político, literário e comercial, dedicado aos interesses da província de Cabo Verde”
(Oliveira, 1998, p. 122).
Segundo João Nobre de Oliveira, “a história da imprensa em Cabo Verde parece
caracterizar-se pela existência de períodos de letargia separados por outros períodos
de intensa actividade jornalística” (idem, p. 22). O nosso estudo incide numa quadra
de intensa actividade jornalística, caracterizada pelo aumento do número de jornais
e pela expansão da actividade editorial às ilhas de Santiago, Fogo, Brava e S.
Vicente.
Uma das principais preocupações da República foi libertar a imprensa periódica
das peias legais que a limitavam, reconduzindo-a a situação idêntica à dos melhores
tempos do constitucionalismo (Tengarrinha, 1965, pp. 259-260). O Decreto de 28
de Outubro de 1910 regulamentou o exercício do direito de liberdade de imprensa:
“Regula-se pelas disposições deste decreto o direito de expressão de pensamento pela
imprensa, cujo exercício é livre, independente de caução, censura ou autorização
prévia, entendendo-se por imprensa qualquer forma de publicação graphica e por
imprensa periodica ou periodicos quaesqueres publicações que não tratem
exclusivamente de assuntos scientificos, literarios, artisticos ou religiosos, cuja
distribuição se faça em periodos determinados de tempo ou em series de exemplares
ou fasciculos.” (Art. 1º, Diário do Governo, n.º 21, 29 de Outubro de 1910, p. 28)8
7
No dia 24 de Agosto de 1842, tinha sido impresso o primeiro número do Boletim Oficial do Governo de Cabo
Verde, na ilha da Boavista. Guilherme Dantas, bibliotecário e jornalista considerava “De todas as possessões
portuguesas, duma certa classe, é Cabo Verde a única que ainda não possui uma publicação literária e
periódica... O Boletim – acrescentou – pelo exíguo do seu formato, pela sua mesma índole, não comporta nem
longos e sucessivos artigos, nem dissertações sobre todas as matérias, nem artigos de recreio para o público, tais
como romances, folhetins, etc. Ora, tudo isto se poderia reunir numa publicação mensal” (1998, p. 22).
8
No jornal O Popular defendia-se a aplicação deste decreto a Cabo Verde, com adaptações: “Ora em tal caso,
uma das prinicipaes alterações a introduzir no decreto de 28 de Outubro de 1910 é a supressão do seu art.º 28º,
não porque se condene o julgamento pelo jury dos crimes de liberdade de imprensa e das contravenções
respeitantes ao exercicio da mesma liberdade, mas pela simples razão de que não existindo o jury criminal entre
nós para o julgamento de crimes incomparavelemente muito mais graves que o abuso da liberdade de imprensa,
racional é que, por espírito de uniformidade, ele não exista para o julgamento deste ultimo crime. (...) Em Cabo
Verde, atento o progressivo estado da evolução mental, usos e costumes dos seus habitantes, podem
perfeitamente vigorar leis feitas para a Metropole com ligeiras modificações por vezes” (n.º 4, 5 de Novembro
de 1914, p. 1).
11
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A Voz de Cabo Verde
O jornal foi impresso e composto na Imprensa Nacional de Cabo Verde (Praia),
dirigido por Gustavo Carlos da Fonseca, teve como administrador Abílio Monteiro
de Macedo e como editor, João Maria Parreira. O poeta Eugénio Tavares foi
redactor durante os primeiros anos, embora o seu nome não figure no cabeçalho do
jornal (Oliveira, 1998, p. 281).
Figura 1. O primeiro número do jornal A Voz de Cabo Verde
Filiado na ideologia republicana, circulou entre 1 de Março de 1911 e 19 de
Maio de 1919 (n.º 369). O semanário esteve suspenso entre Julho e Novembro de
1911, devido ao bloqueio do Governador9, por discordância com a linha editorial
adoptada e a consequente proibição de ser composto na Imprensa Nacional.
A dependência ao Governo da Província foi superada quando o administrador
comprou o seu próprio prelo, tendo o periódico reaparecido, no dia 27 de Novembro
de 1911, com nova redacção10 (Figura 2).
9
Joaquim Pedro Vieira Júdice Bicker (1911-1915).
Abílio Macedo tornou-se director e editor e a administração do periódico foi assumida por Francisco Marques
Ferreira.
10
12
Introdução
Figura 2. Anúncio da Tipografia da “Voz de Cabo Verde”
(A Defesa, n.º 4, 15 de Outubro de 1913, p. 4)
Em 1915, a administração do jornal foi entregue a Isidoro José de Sousa (n.º 208,
23 de Agosto)11. Discordâncias entre os elementos da redacção, especificamente
entre Eugénio Tavares e Isidoro Graça, provocaram a saída do poeta e o regresso de
Abílio Macedo (primeiro administrador) que, a partir de Fevereiro de 1916 (n.º 231,
14 de Fevereiro), dirige o periódico. Eugénio Tavares, em carta dirigida ao Dr.
Henrique Vilhena, refere-se a esta situação:
“Eu ganhava quarenta escudos n’a VOZ; preferi ficar em péssimas circunstâncias,
pobre e sem colocação, a ter de prestar o concurso da minha actividade à imoralidade
dos açambarcamentos. Para viver lancei-me a escrever versos e a vendê-los. É-me
preferível vender maus versos, a estragar belos ideais com os prostituir comerciandoos.” (Monteiro, 1999, p. 23)
Em finais de 1916, “a censura militar [devido à deflagração da 1ª Guerra
Mundial] começou a cortar as notícias tidas como de importância militar e o jornal
passou a deixar em branco os espaços correspondentes aos textos censurados” e
“devido às dificuldades provocadas pela guerra (falta de papel), a direcção viu-se
obrigada a reduzir o tamanho do jornal” (Oliveira, 1998, p. 329). No ano de 1919, A
11
Director: General Sérvulo de Paula Medina e Vasconcelos.
13
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Voz liberta da censura12 (n.º 361, 17 de Março de 1919) retomou a defesa dos
interesses de Cabo Verde.
Após termos compulsado a colecção completa do periódico, na Biblioteca
Nacional de Lisboa, seleccionámos um total de 112 jornais, o que representa 31,1%
em relação ao total de números editados (Quadro 15). Analisámos 24 artigos sobre
o contexto sociocultural e 157 peças dedicadas à temática da educação.
Quadro 1 – Peças consultadas no jornal A Voz de Cabo Verde, segundo a temática central – 1911/1919
Temática central
Contexto
Educação
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
24
13,3%
157
86,7%
181
100,0%
Nos artigos analisados, 33% das notícias e das crónicas mereceram honras de
primeira página (18% editoriais) e apenas oito são ilustrados com fotografias
(0,4%).
Quadro 2 – Tipo de peças consultadas no jornal A Voz de Cabo Verde – 1911/1919
Tipo de peças
Descritivas
Analíticas
Opinativas
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
85
47,0%
33
18,2%
63
34,8%
181
100,0%
A predominância conjunta de peças analíticas (18,2%) e opinativas (34,8%)
demonstra o interesse pela inteligibilidade do processo educativo e contexto
envolvente, em detrimento da simples descrição dos factos (47,0%). Para além dos
editoriais, da responsabilidade da redacção do jornal, verificámos que 42,5% dos
artigos são assinados, em alguns casos, com pseudónimos e iniciais Alguns autores
identificados eram professores13.
12
A Voz de Cabo Verde, n.º 55, 2 de Setembro de 1912, refere-se, em editorial de José Lopes, a uma querela,
“que tinha sido vítima da lei das rolhas, lei retrógrada e reaccionária – de Lopo Vaz e João Franco – criada
expressamente para amordaçar a imprensa republicana, ao tempo”.
13
Consultar apêndice B4.
14
Introdução
O Independente
Gustavo Carlos da Fonseca14 foi editor e redactor da “folha republicana dedicada
aos interesses de Cabo Verde”. Propriedade de Luís Loff de Vasconcelos, o
periódico existiu entre 15 de Janeiro de 1912 e 16 de Outubro de 191315.
Inicialmente com periodicidade quinzenal, passou a trimestral, a partir do número
seis.
Tornou-se concorrente do jornal A Voz de Cabo Verde, não obstante as cordiais
relações publicamente ostentadas: “Agradecemos, em nome do autor do editorial
que publicamos, sob o título A Voz de Cabo Verde, as amáveis referências que nos
foram feitas por êste ilustre colega, e retribuímos reconhecidos o aperto de mão”
(n.º 35, 17 de Abril de 1913, p.1). As boas relações rapidamente se deterioraram em
“guerras de palavras, só que, às vezes, se passavam aos actos16” (Oliveira, 1998, p.
267).
O Independente apresentou-se como “um instrumento útil de educação,
ensinando, dentro da sua fraca capacidade, o povo caboverdeano a discutir com
cortezia, sem diatribes, sem empregar expressões violentas e impróprias de pessoas
bem educadas” (n.º 18, 27 de Setembro de 1912, p. 1).
Em 15 números, identificámos 20 artigos relacionadas com a educação e o
ambiente cultural e político.
Quadro 3 – Peças consultadas no jornal O Independente, segundo a temática central – 1911/1913
Temática central
Contexto
Educação
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
2
10,0%
18
90,0%
20
100,0%
Apenas três artigos, consagrados à causa da educação, aparecem na primeira
página, numa percentagem inferior à verificada no rival A Voz de Cabo Verde17.
Dois artigos analisados incidem no contexto social e cultural cabo-verdiano e 18
tratam de temas educativos.
14
Foi director do jornal A Voz de Cabo Verde até 31 de Maio de 1911.
Segundo Nobre de Oliveira, o jornal n.º 45, de 16 de Outubro “É o último exemplar existente na colecção do
IBNL, sendo impossível por ele saber se o jornal terá editado ainda mais alguns números ou se este foi
efectivamente o último” (1998, p. 269).
16
Referência a um duelo ocorrido nos subúrbios da Praia, entre Carlos Eugénio de Vasconcelos e Velhinho
Correia (O Independente, n.º 10, 27 de Maio de 1912).
17
Artigos sobre educação na primeira página: O Independente – 15%; A Voz de Cabo Verde – 33%.
15
15
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Quadro 4 – Tipo de peças consultadas no jornal O Independente – 1911/1913
Tipo de peças
Descritivas
Analíticas
Opinativas
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
4
20,0%
0
0,0%
16
80,0%
20
100,0%
Conforme os dados supra, predominaram os artigos de opinião, dando-se menor
importância à notícia. Os dois colaboradores identificados eram docentes18.
O Progresso
Sob a epígrafe “Justiça e verdade”, intitula-se um “Semanário republicano
dedicado aos interesses da província de Cabo Verde”. O corpo da redacção era
constituído por elementos da burguesia urbana de Cabo Verde19: Cezar de Sá
Nogueira e José do Sacramento Monteiro, directores; Simão Monteiro Levy, editor;
Carlos Eugénio Vasconcellos, secretário da redacção, e Francisco Xavier
Mascarenhas, administrador. Iniciado em 4 de Julho de 1912, sobreviveu até 23 de
Janeiro de 1913.
Quadro 5 – Peças consultadas no jornal O Progresso, segundo a temática central – 1912
Temática central
Contexto
Educação
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
6
28,6%
15
71,4%
21
100,0%
Na colecção disponível na Biblioteca Nacional de Lisboa (n.º 1, 4 de Julho de
1912 - n.º 23, 5 de Dezembro de 1912) consultámos 21 artigos com referências à
temática em questão. Nas notícias e crónicas sobre o contexto envolvente,
predomina a temática dedicada ao Nativismo20 (28,6%); os restantes artigos
18
Consultar apêndice B4.
Cezar de Sá Nogueira, comerciante; José do Sacramento Monteiro, secretário da Câmara da Praia; Simão
Monteiro Levy, comerciante; Carlos Eugenio Vasconcellos, funcionário aduaneiro e Francisco Xavier
Mascarenhas, funcionário administrativo (Oliveira, 1998, p. 269).
20
Movimento de ideias que defendia a identidade dos povos naturais das colónias. O periódico A Voz de Cabo
Verde definiu o Nativismo, como “o amor à nesga de terra onde se ergue a choupana, o orgulho de se ver um
conterrâneo subir às culminâncias de um lugar de destaque, a mágoa de se sentir desprezado como filhos
espúrios, mas, acima de tudo, com um acrisolado amor pela Pátria” (n.º 53, Agosto de 1912).
19
16
Introdução
(71,4%) tratam de questões educacionais. Foi concedido espaço, na página nobre, a
quatro dos artigos analisados.
Quadro 6 – Tipo de peças consultadas no jornal O Progresso – 1912
Tipo de peças
Descritivas
Analíticas
Opinativas
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
10
47,6%
4
19,1%
7
33,3%
21
100,0%
O Progresso valorizou a interpretação dos factos (peças opinativas: 33,3%;
analíticas: 19,1%). Não obstante contar com colaboradores regulares, apenas seis
dos artigos são assinados com pseudónimos, destacando-se a escrita de T’Chaka –
possivelmente inspirado no nome do rei dos Zulus – que alimentou uma polémica
com o jornal A Voz de Cabo Verde, em torno do Nativismo.
O Mindelense
No Simpósio sobre a Cultura e a Literatura Cabo-verdianas (Mindelo, 1986),
Félix Monteiro afirmou que “na ilha de São Vicente, os finalistas do Colégio
Municipal, encorajados pelo aplauso dos seus leitores, entre os quais Eugénio
Tavares, deliberaram saltar para a arena, mais a sério, com o Mindelense, impresso
a partir do seu segundo número, em 1913” (1986, p. 10).
Eis o cartão de apresentação do jornal de estudantes:
“Pequenino embora, serpenteando ainda no risonho bêrço da juventude académica,
formando os primeiros adejos para dobrar triunfantemente os umbrais do seu destino,
germinado no mais ardente patriotismo em que se apoiam os seus alicerces,
desabrochando-se com indizível fervôr para arreigar no coração de todos, notas de
estima, o jovem Mindelense não pode, por forma alguma, ser excluído da plêiade dos
que mais labutam pelos interesses da província, prosseguindo como, imparcialmente,
encetou a missão, expandindo-se com inflexível lialdade, alargando-se pela atmosfera
do seu lêma – Instruir, recriar.” (N.º 7, 15 de Julho de 1913, p. 1).
Com periodicidade quinzenal, foi dirigido por Raul do Rosário Ribeiro e
Francisco da Paula Mercês do Rosário e, a partir do n.º 7, apenas por Raul do
Rosário Ribeiro21.
21
A direcção do jornal ficou apenas entregue a Raul do Rosário Ribeiro, pois “por motivos alheios à sua
vontade este cooperador [Mercês do Rosário], amigo e ex-director do Mindelense não pode continuar fazendo
17
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
No Instituto do Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde tivemos acesso a três
números do jornal (7, 8 e 9) e analisámos três artigos sobre questões educacionais.
A Defesa
Com a redacção e a administração situadas na Vila de S. Filipe (ilha do Fogo), o
mensário foi dirigido por Manuel Dias da Cunha Ribeiro e impresso na Tipografia
“Voz de Cabo Verde”. Guilherme Monteiro Cardoso foi editor e Aníbal Henriques,
administrador.
A Biblioteca Nacional de Lisboa conserva o jornal n.º 4, de 15 de Outubro de
191322, com uma notícia do ensino na colónia, sem fonte identificada e dois
anúncios de cursos de ensino particular.
O jornal, que teria durado dois anos, teve uma edição regular, “conforme se pode
constatar pelo jornal da Praia (A Voz, n.º 153, de 20/Jul. /1914) que felicita o colega
de S. Filipe pelo seu 1.º aniversário” (Oliveira, 1998, p. 283).
O Futuro de Cabo Verde
O semanário “independente e defensor dos interesses do arquipélago” nasceu na
Praia, no dia 1 de Maio de 1913. Foi dirigido por José do Sacramento Monteiro,
secretário da Câmara Municipal da Praia e a edição e administração acumuladas por
Sebastião M. Moreira, director da Imprensa Nacional de Cabo Verde, onde o
periódico era composto e impresso.
Era um jornal pró-governamental, encarado com desconfiança e ironia pelo
periódico A Voz de Cabo Verde, que reagiu assim ao seu aparecimento: “Como a
pescada. O Futuro de Cabo Verde é um jornal que deve aparecer brevemente. Ainda
não apareceu, mas já tem grande circulação em toda a província! Tal qual a
pescada: antes de ser já o era!” (n.º 88, 21 de Abril de 1913, p. 1). Reflectia a
posição de uma parte da sociedade cabo-verdiana, mais precisamente aquela que
não se identificava com as posições, a princípio radicais da Voz (Oliveira, 1998, p.
332).
Foi suspenso no dia 29 de Outubro de 1916 (n.º 180). Mas, “se era um jornal
apoiado pelo governo da província porque este o deixara cair?” Nobre de Oliveira
responde à questão que ele próprio colocou:
parte da Direcção (...) deixa gratas impressões, e sua ausência saudade infinita” (n.º 7, 15 de Julho de 1913, p.
1).
22
Segundo João Nobre de Oliveira, “o 1.º número do jornal teria saído em (Julho?) de 1913 e o último número
em (Maio?) de 1915” (1998, p. 610).
18
Introdução
“Talvez porque o Futuro deixara de ter utilidade política. Afinal de contas estando A
Voz de boas relações com o governador Fontoura23 esse não precisava de um órgão
para defender-se dos ataques deste jornal como fora, ao fim e ao cabo, o caso de seu
antecessor. A perda de apoio estatal marcou o início da sua agonia e a entrada de
Portugal na Guerra trouxe o aumento das dificuldades que conduziram ao seu fim.”
(1998, p. 332)
Consultámos a série completa de O Futuro de Cabo Verde e examinámos 248
artigos (em 114 números do jornal) sobre a ambiência social (8,1%) e temas
educativos (91,9%).
Quadro 7 – Peças consultadas no jornal O Futuro de Cabo Verde, segundo a temática central – 1913/1916
Temática central
Contexto
Educação
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
20
8,1%
228
91,9%
248
100,0%
Quadro 8 – Tipo de peças consultadas no jornal O Futuro de Cabo Verde – 1913/1916
Tipo de peças
Descritivas
Analíticas
Opinativas
Total
Peças consultadas
Número
Número
200
80,6%
18
7,3%
30
12,1%
248
100,0%
A maioria das peças é de carácter noticioso (80,6%), o que demonstra a ênfase
colocada na descrição dos factos. É de considerar que 17% dos artigos analisados
aparecem na primeira página (cerca de metade refere-se a questões educativas e
alguns são editoriais). O jornal demonstra rigor com a identificação das fontes (54
artigos assinados), não obstante o recurso a pseudónimos e a iniciais. Mais uma vez
se nota a participação activa de muitos professores24.
23
24
Governador de Cabo Verde, Comandante Abel Fontoura da Costa (1915-1918).
Consultar o apêndice B4.
19
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
O Popular
O jornal foi editado em S. Vicente (Outubro de 1914 a Abril de 1918), sob a
direcção do Dr. Mário Ferro e a administração de Augusto M. Miranda. A partir de
7 de Abril de 1916 foi suspenso e “publicou esporadicamente alguns (?) números
em 1917 e em Abril de 1918 publicou um suplemento” (Oliveira, 1998, p. 611).
“A ilha de S. Vicente, por um conjunto de razões de ordem moral e material, necessita
de um órgão que defenda simultaneamente os seus interesses e os das outras ilhas, suas
irmãs. Para isso se fundou “O Popular”, que será o defensor dos interesses
caboverdeanos e que fará o possível por se não desviar da trajectória traçada.” (N.º 1, 5
de Outubro de 1914, p. 1).
Consultámos, no Arquivo Histórico Nacional, um conjunto de 12 números (22
artigos), que se reportam ao contexto social (22,7%) e educativo (77,3%).
Quadro 9 – Peças consultadas no jornal O Popular, segundo a temática central – 1914/1915
Temática central
Peças consultadas
Número
Percentagem
5
22,7%
17
77,3%
22
100,0%
Contexto
Educação
Total
Prevaleceram as matérias opinativas (68,2%). O jornal deu espaço, na primeira
página, a cinco artigos dedicados ao ensino. Apenas dez artigos são assinados,
sendo patente a colaboração de professores25.
Quadro 10 – Tipo de peças consultadas no jornal O Popular – 1914/1915
Tipo de peças
Descritivas
Analíticas
Opinativas
Total
25
Consultar o apêndice B4.
20
Peças consultadas
Número
Percentagem
7
31,8%
0
0,0%
15
68,2%
22
100,0%
Introdução
O Caboverdeano
“Órgão republicano independente, defensor dos interesses da província”, foi
editado na Praia, nos anos de 1918 e 1919, com periodicidade quinzenal. O corpo
directivo era constituído por César Augusto Pereira Sá Nogueira (director) e José
M. M. Fragoso (administrador).
“É singelo e simples: Pugnar pelos interesses gerais da colónia; combater pelas
legitimas reivindicações das chamadas forças vivas do arquipélago, mormente pelo
comércio e pela agricultura; trabalhar pelo fomento económico de Cabo Verde, e
oferecer aos humildes, com devotamento, decidida protecção.
Não temos, nem os aceitamos, compromissos de política partidária; queremo-nos
absolutamente libertos, para, dentro da República e pela República, pormos a Pátria
acima dos partidos.” (N.º 1, 7 de Abril de 1918, p. 1).
A partir do n.º 22 (17 de Novembro de 1918) passou a ser impresso em formato
menor e adoptou a epígrafe “Defensor dos interesses regionais”. Fundado em pleno
período de censura militar, devido à 1.ª Guerra Mundial, não foi um jornal de
grandes alardes (...), a linguagem panfletária deu lugar a uma outra mais suave e
moderada (Oliveira, 1998, p. 346).
No Arquivo Histórico de Cabo Verde foi-nos facultada a consulta de oito
números, onde identificámos nove artigos dedicados à educação e ao
enquadramento social e político.
Quadro 11 – Peças consultadas no jornal O Caboverdeano, segundo a temática central – 1918
Temática central
Contexto
Educação
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
2
22,2%
7
77,8%
9
100,0%
Quadro 12 – Tipo de peças consultadas no jornal O Caboverdeano – 1918
Tipo de peças
Descritivas
Analíticas
Opinativas
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
2
22,2%
0
0,0%
7
77,8%
9
100,0%
21
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Três crónicas são assinadas (duas foram escritas por um inspector escolar). As
notícias tiveram uma expressão menor (22,2%) do que os artigos de opinião
(77,8%).
O Manduco
Pedro Monteiro Cardoso foi proprietário, director e editor de O Manduco, jornal
regional (ilha do Fogo), composto e impresso na Imprensa Nacional de Cabo Verde.
O cabeçalho dos primeiros cinco números transcreve o artigo 3º, n.º 13 da
Constituição Política Portuguesa: “A expressão do pensamento, seja qual fôr a sua
forma, é completamente livre, sem dependência de caução, censura ou autorização
prévia, mas o abuso dêste direito é punível, nos casos e pela forma que a lei
determinar”.
Figura 3. Cabeçalho do jornal O Manduco
O poeta Eugénio Tavares dirigiu o jornal (nove números). Nesta época, a
referência à Constituição Política Portuguesa foi substituída pela epígrafe “Orgão
defensor dos interêsses da Colónia”.
O nome do periódico evoca as crónicas de Pedro Monteiro Cardoso, sob o
pseudónimo Afro, no jornal A Voz de Cabo Verde, denominadas “A Manduco...”,
espaço de debate contra as injustiças sociais e pelo progresso de Cabo Verde.
O jornal deu relevo à literatura, a que não será estranha a colaboração do “trio de
notáveis que, desde o início do século, vinha enobrecendo o jornalismo e as letras
cabo-verdianas: Eugénio Tavares e José Lopes, juntos desde os jornais de Pinto
22
Introdução
Balsemão26 e da Revista de Cabo Verde27, e Pedro Cardoso que começou logo
depois” (Oliveira, 1998, p. 349).
O primeiro número data de 1 de Agosto de 1923. Após um aviso publicado no
Boletim Oficial, n.º 13, de 29 de Março de 1924, que comunicava a suspensão do
mensário, “a fim de efectuar os melhoramentos prometidos” (p. 357), reapareceu
fugazmente., para se extinguir no dia 30 de Junho desse ano.
Na Biblioteca Nacional de Lisboa, seleccionámos, em 11 números, 21 artigos
dedicados ao ambiente sociocultural (28,6%) e à educação na colónia (71,4%).
Quadro 13 – Peças consultadas no jornal O Manduco, segundo a temática central – 1923/1924
Temática central
Contexto
Educação
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
6
28,6%
15
71,4%
21
100,0%
Quadro 14 – Tipo de peças consultadas no jornal O Manduco – 1923/1924
Tipo de peças
Descritivas
Analíticas
Opinativas
Total
Peças consultadas
Número
Percentagem
10
47,6
7
33,3
4
19,1
21
100,0
O discurso jornalístico combina peças de índole descritiva (47,6%), analítica
(33,3%) e opinativa (19,1%). Foi concedido espaço, na página nobre, a 13 artigos
(quatro sobre a causa educativa).
26
Eduardo Augusto de Sá Nogueira Pinto de Balsemão (1837-1902) foi redactor do Boletim Oficial, que
reorganizou e ordenou, de forma mais prática, tendo dado uma vasta colaboração na parte não-oficial, quer
publicando artigos de opinião ou descrições de viagens, quer traduzindo do francês textos ou artigos que achava
serem de interesse para a província (principalmente de agricultura). Teve um papel de relevo no
desenvolvimento da primeira Biblioteca Pública de Cabo Verde. Foi defensor de uma colonização que tivesse
em conta os interesses dos nativos e desse maior autonomia governativa às colónias. (Oliveira, 1998, pp. 694695)
27
Revista de Cabo Verde, Mindelo, ilha de S. Vicente, 1899.
23
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Em síntese
Com o propósito de captarmos o retrato do ensino e o processo de edificação do
discurso educativo, em Cabo Verde, consultámos nove jornais impressos no
arquipélago, que caracterizámos de forma sucinta. Tratando-se de jornais
generalistas, dedicavam um espaço considerável a temas educativos. Parece-nos
lícito concluir que, na época, a educação era temática recorrente e com projecção
social.
As matérias são essencialmente descritivas (62,2%), embora, a imprensa
periódica tenha concedido espaço à opinião (25,4%) e à análise (12,4%), o que
denota o grau de intervenção social em questões educacionais.
Quadro 15 – Jornais consultados28 – 1911/192429
A Voz de CV
O Independente
O Progresso
O Futuro de CV
O Manduco
Total
Anos
1911
1912
1913
1914
1915
1916
1917
1918
1913
1923
1924
Total
Tot.
Cons.
%
Tot.
Cons.
%
19
52
51
51
46
50
51
31
9
11
12
15
13
20
12
14
12
3
57,9
23,1
29,4
25,5
43,5
24,0
27,5
38,7
33,3
24
9
13
2
54,2
22,2
360
112
31,1
Tot
23
Cons.
9
%
Tot
15
45,5
23
9
%
Tot.
Cons.
%
Tot.
Cons
%
77,8
80,0
78,6
43
84
86
104
98
90
51
31
9
9
5
610
24
23
36
44
55
39
14
12
3
7
4
261
55,8
27,4
41,9
42,3
56,1
43,3
27,5
38,7
33,3
77,8
80,0
42,8
39,1
35
53
52
40
33
Cons
.
39,1
180
21
31
35
27
114
60,0
58,5
67,3
67,5
63,3
9
5
14
7
4
11
Quadro 16 – Tipo de artigos analisados – 1911/1924
Jornal
A Voz de CV
O Independente
O Progresso
O Futuro de CV
O Caboverdeano
O Manduco
Total
Peças descritivas
Número
Percentagem
85
47,0
4
20,0
10
47,7
200
80,6
2
22,2
10
47,6
311
62,2
Peças analíticas
Número
Percentagem
33
18,2
0
0,0
4
19,0
18
7,3
0
0,0
7
33,3
62
12,4
Peças opinativas
Número Percentagem
63
34,8
16
80,0
7
33,3
30
12,1
7
77,8
4
19,0
127
25,4
Total
181
20
21
248
9
21
500
28
O quadro apresenta apenas os jornais com séries longas ou completas. Não apresenta dados dos jornais com
colecções rateadas: O Mindelense (1913), A Defesa (1913), O Popular (1915) e O Caboverdeano (1918).
29
Nos anos de 1925 e 1926, não foram editados jornais.
24
Introdução
António Nóvoa considera que “a escrita jornalística não foi ainda, muitas vezes,
depurada das imperfeições do quotidiano” e, por isso, revela quase sempre “o
quente, as questões essenciais”. De facto, a imprensa cabo-verdiana revelou-nos “o
quente, as questões essenciais que atravessaram o campo educativo”.
Sendo o arquipélago de Cabo Verde uma parcela do império colonial português,
poderemos falar de jornalistas cabo-verdianos? Quem escrevia e lia os jornais?
Cabo-verdianos? Portugueses?
“Em Cabo Verde (...) os leitores eram cabo-verdianos, interessados na metrópole mas
também interessados na sua terra e na defesa dos seus interesses mesmo que estes
fossem contrários aos da metrópole e, quanto aos jornalistas, estes eram na sua maioria
homens formados nas ilhas e que escreviam para as suas gentes.
E isto fez a diferença!
Explicando melhor. Não nasceu em Cabo Verde uma imprensa “colonial”
precisamente porque não havia colonos. (...) Em Cabo Verde, portugueses residentes
eram em número diminuto. Não justificavam a existência de um jornal só para si.
Ainda por cima, sendo Cabo Verde a colónia mais próxima da metrópole, recebiam os
jornais portugueses com um atraso aceitável.
Assim, um jornal em Cabo Verde só podia existir se contasse com o público leitor
cabo-verdiano e este, no ultimo quartel do século XIX, já existia, resultante do
desenvolvimento da educação, da actividade das sociedades recreativas, das
bibliotecas, etc. Por outro lado, portugueses homens de letras ligados ao jornalismo, só
esporadicamente, e normalmente por poucos anos se estabeleciam no arquipélago; a
pobreza da terra, os baixos salários, como observou Gabriel Mariano, afastavam-nos
das ilhas. Os salários e as perspectivas das outras colónias eram mais atractivas.”
(Oliveira, 1998, pp. 115-116)
O interesse da imprensa por questões educacionais e a participação actuante dos
seus escribas na acção cultural demonstram que a intelectualidade cabo-verdiana,
circunstancialmente dividida por interesses políticos, pugnou pela afirmação de uma
identidade cultural própria.
A imprensa portuguesa de temática colonial
A imprensa dedicada a assuntos coloniais, que deve muito aos estudantes
africanos que, com o entusiasmo, a abnegação e a militância próprias da idade,
estiveram sempre activos durante a 1ª República (Oliveira, 1998, p. 362), teve um
papel fundamental na difusão do movimento pan-africano30.
30
O pan-africanismo, que lutou pela dignificação do homem negro, pela equiparação das colónias às províncias
europeias e pelo direito dos “nativos” governarem a sua terra, “apareceu, como movimento organizado, depois
25
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
O Negro
Intitulou-se “órgão dos estudantes negros, dedicado à defesa dos valores do
homem africano e à luta contra a tirania colonial.” Era propriedade de Alberto José
da Costa e foi dirigido por J. Cunha Lisboa. Com uma existência efémera (de 9 de
Março a 23 de Outubro de 1911) denunciou, com veemência, a situação de
abandono de Cabo Verde e noticia os “primeiros symptomas da fome” (n.º 2, 21 de
Maio de 1911, p. 3).
Revista Colonial
Surgiu no ano de 1912 (seis números) e foi editada por A. Lopes de Figueiredo.
O primeiro número (único a que tivemos acesso na Biblioteca Nacional de Lisboa)
apresenta o projecto de organização administrativa da província de Cabo Verde (p.
10) e o projecto do Congresso Colonial (p. 11).
Figura 4. “Cabo Verde”, Os Lusíadas, Canto V
(N.º 10, 25 de Outubro de 1913, p. 8)
da proclamação da República e seria controlado pelos jovens oriundos dos arquipélagos de Cabo Verde e de São
Tomé e Príncipe” (Oliveira, 1999, p. 359).
26
Introdução
Em 25 de Janeiro de 1913, foi editada uma revista, com o mesmo nome,
propriedade da Agência Colonial. Teve como director o Dr. Sousa Ribeiro, antigo
Secretário Geral do Governo da província de S. Tomé e Príncipe e do Governo
Geral de Moçambique e editor, António Nunes Sequeira. Em nove números,
identificámos 12 artigos dedicados a Cabo Verde (11 notícias e uma crónica).
A Voz d’ África
Denominado “Órgão da Junta de Defesa dos Direitos d’ África”31, apresentou-se
como o jornal de maior circulação em África (1 de Setembro de 1912 a 21 de
Agosto de 1913). O quinzenário teve o seguinte conselho de redacção: director,
João de Castro e editor, Ayres de Meneses.
Nos números examinados identificámos 17 artigos sobre a vida social, cultural e
política de Cabo Verde. Os artigos – quatro tiveram o privilégio de primeira página
– são, predominantemente, analíticos e opinativos (notícias: 29%). O jornal contou
com a colaboração de cidadãos cabo-verdianos, conforme se pode atestar nas fontes
identificadas32.
Tribuna de África
Em 20 de Fevereiro de 1913 foi editado outro jornal intitulado “Órgão da Junta
de Defesa dos Direitos d’ África”. Foi, igualmente, uma publicação quinzenal
“dirigida pela mesma dupla de responsáveis do jornal anterior”, pelo que “não é de
estranhar que fosse em tudo uma duplicação da Voz d’ África, o mesmo tipo de
linguagem, as mesmas denúncias, etc.” (Oliveira, 1998, p. 364). De entre os
colaboradores cabo-verdianos destacaram-se Rafael Nobre de Melo33 e Cristiano
Monteiro de Melo34.
31
No primeiro número do jornal é noticiada a criação de Comités da Junta de Defesa dos Direitos d’ África em
Cabo Verde (1 de Setembro de 1912, p. 1). A Junta foi fundada, em Lisboa, no dia 8 de Agosto de 1912. Este
movimento, aliás, depressa seria controlado pelos jovens oriundos dos dois arquipélagos atlânticos: Cabo Verde
e S. Tomé e Príncipe. Politicamente, a nova geração de cabo-verdianos deixa de lutar pela adjacência das suas
ilhas e, fazendo coro com as outras ex-colónias, pede a transformação de todas as colónias em províncias
portuguesas com o mesmo estatuto que o Minho ou o Algarve. (Oliveira, 1998, p. 359)
32
Consultar o apêndice B4.
33
Rafael Nobre de Melo (sécs. XIX/XX), natural da ilha de Santo Antão, foi representante d’ A Voz de Cabo
Verde em Massachusetts, América, o 1º director do Ressurgimento e colaborou também no Tribuna d’África, de
Lisboa. (Oliveira, 1998, p. 767)
34
Cristiano Monteiro de Melo nasceu na ilha de Santo Antão. Foi funcionário do Serviço das Finanças de Cabo
Verde, tendo sido demitido por motivos políticos (1913) e depois readmitido. Foi correspondente da Voz
d’África e da Tribuna de África. (Oliveira, 1998, p. 767)
27
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
O Eco d’ África
Quinzenário defensor dos interesses de África (1914/1915), teve como
administrador e editor, Manuel Ranjel e como director, Lino Bayão. Acedemos aos
números cinco e seis (1914) e ao n.º 11 (1915), com um artigo dedicado à educação
no arquipélago e duas crónicas ilustrativas da situação da imprensa cabo-verdiana.
Correio de África
O semanário “defensor dos direitos africanos”, iniciado em 22 de Março de
1915, foi dirigido por Nicolau Santos Pinto, sendo a administração entregue a
Joaquim Monteiro de Macedo35 e a edição, a António Corsino Lopes da Silva.
O periódico alertou para “a crise de fome [que se] está agravando
constantemente”, advertindo que “não vindo os imediatos socorros repetidas vezes
pedidos à metrópole a hecatombe [será] horrível, recaindo as responsabilidades
exclusivamente sobre o governo central” (n.º 37, 13 de Abril de 1922, p. 2). A
primeira página do n.º 40 (4 de Maio de 1922) foi dedicada a “Cabo Verde, Terra
Mártir”.
Em sete números, analisámos 14 artigos de opinião. Destes artigos, oito foram
publicados na primeira página. O Correio d´África contou com a colaboração de
ilustres cabo-verdianos: Corsino Lopes, Joaquim Monteiro de Macedo, Pedro
Cardoso e José Lopes.
Gazeta das Colónias
Semanário de “propaganda e defeza das colonias” (propriedade da “Empreza de
Publicidade Colonial”) dedicou-se, entre 1924 e 1926, a veicular informações sobre
as colónias (para cada colónia, uma página), sem o carácter reivindicativo dos
periódicos anteriormente referidos. Assumiu um tom crítico, embora moderado, nas
crónicas intituladas “Cabo-Verde o que tem sido e o que deve ser”36, “Cabo-Verde
o que está feito e o que falta fazer”37 e “Cabo-Verde abusos a corrigir”38.
35
Joaquim Monteiro de Macedo (1894-1943) era cabo-verdiano (ilha do Fogo). Apoiado pela Liga Africana, foi
eleito deputado por Cabo Verde. (Oliveira, 1998, p. 754)
36
Nº 24, 19 de Junho de 1924, pp. 8-9.
37
N.º 7, 26 de Agosto de 1924, pp. 7-8; n.º 9, 9 de Outubro de 1924, pp. 7-8.
38
N.º 21, 25 de Abril de 1925, pp. 11-12; n.º 24, 10 de Agosto de 1925, pp. 15-16.
28
Introdução
Boletim
Nos primeiros números do Boletim, editado pela Agência Geral das Colónias (de
Julho de 1925 a Dezembro de 1931), obtivemos informações sobre a educação em
Cabo Verde (13 e 16). O Boletim n.º 45 (1929) – dedicado integralmente a Cabo
Verde – apesar de ultrapassar o âmbito cronológico do presente estudo é uma fonte
documental relevante, que nos situa no ambiente social, económico e cultural das
ilhas. No domínio educacional, destacamos as comunicações “O Seminário-liceu da
ilha de S. Nicolau de Cabo Verde”, da autoria de José dos Reis Borges e “A
instrução Pública”, de Adriano Duarte Silva39.
No termo da sucinta caracterização da imprensa portuguesa, de temática
colonial, sublinhamos a sua importância para o conhecimento da acção cívica dos
estudantes em Lisboa e da “intelectualidade das ilhas [que] fizera a descoberta da
africanidade cabo-verdiana e a ligação do destino de Cabo Verde ao das outras excolónias” (Oliveira, 1998, pp. 378-79).
Boletim Oficial de Cabo Verde
O primeiro e mais regular órgão de informação, impresso em Cabo Verde, foi o
Boletim Oficial. No cumprimento do Decreto de 7 de Dezembro de 1836, “sendo
Governador de Cabo Verde, Francisco de Paula Bastos, na quarta-feira dia 24 de
Agosto de 1842, imprimiu-se o primeiro número do Boletim Official do Governo
Geral de Cabo Verde, na vila de Sal-Rei, ilha da Boa Vista40” (Oliveira, 1998, p.
45).
As ambições deste órgão da imprensa estatal estão bem expressas no primeiro
número: “Raiou felizmente para esta Provincia uma nova era de illustração; o
Governo de SUA MAJESTADE sempre sollicitado pelo bem dos subditos da
mesma Augusta Senhora não podia por mais tempo consentir que continuasse a
ignorancia, em que o povo se achava engolfado” (24 de Agosto de 1842, p. 4).
Ultrapassadas as primeiras vicissitudes – a periodicidade começou a falhar na
segunda semana de vida, quando se suspendeu a sua publicação por quase cinco
39
Adriano Duarte Silva (1898-1961), licenciado em Direito e Ciências Sociais, pela Universidade de Lisboa,
ingressou na docência do Liceu Infante Dom Henrique e foi reitor do liceu (1924).
40
Em 1836, a vila de Sal Rei, na ilha da Boavista, tinha sido erigida, momentaneamente, em capital da
Província de Cabo Verde, durante a estadia do Governador.
29
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
meses41 – tornou-se um órgão de comunicação regular, como jornal oficial,
informativo e de divulgação de temática vária. Inicialmente bissemanal, a partir do
n.º 33 (27 de Maio de 1843), passou a semanário, periodicidade que mantém até à
actualidade.
Figura 5. Primeiro Boletim Oficial de Cabo Verde
O Boletim Oficial contém um corpus normativo de excepcional importância para
o conhecimento da educação cabo-verdiana, pois desvenda a retórica oficial e a
dimensão formal do sistema escolar. O cruzamento dos Boletins com os outros
jornais propicia uma permanente interacção normas-práticas, prescrições-realidades
e os contextos de aplicação dos diplomas legais na escola e na sociedade. Como
único órgão da imprensa, em períodos longos, cumpriu um papel informativo e
recreativo, à margem da couraça institucional que o enformava. A Parte Não Oficial
acolhia notícias, anúncios, avisos, relatórios, discursos e curiosidades.
41
Houve outras interrupções do Boletim Oficial: O n.º 193 do Boletim Oficial foi publicado em 26 de Junho de
1847 e só em 17 de Junho de 1848 saiu o n.º 194. Foi suspensa novamente a sua publicação até ao dia 21 de
Abril de 1849, data em que, com o n.º 195, recomeçou a sua publicação. Ou seja, num período de quase dois
anos, só se publicou um único número, o 194. Mas recomeçou a sua publicação por pouco tempo, pois,
dificuldades várias levaram a nova suspensão: tendo publicado o n.º 208, em 25 de Agosto de 1849, só retomou
a publicação em 10 de Novembro do mesmo ano, data em que saiu o n.º 209. Chegou a ser suspenso, pela
portaria de 21 de Agosto de 1851 que, depois, foi revogada. O Boletim teve uma nova interrupção, de 18 de
Janeiro a 25 de Outubro. (Oliveira, 1998, pp. 51-52)
30
Introdução
Compulsámos a série de Boletins Oficiais, de Outubro de 1910 a Dezembro de
1926, que se traduziu na recolha, tratamento, registo, análise e interpretação de
normas e informações em 844 números. Neste acervo documental examinámos
documentação de vária ordem: circulares, “notícias dos concelhos”, “publicações
úteis”, estatísticas, balancetes de contas, correspondência (cartas e telegramas),
avisos e anúncios, regulamentos, actas, contratos, alocuções e até poemas.
A leitura sistemática do jornal oficial permitiu-nos aceder aos sistemas de
decisão e de controlo, representados pelo normatismo burocrático, deixando
transparecer, sob a aridez da produção oficial, conflitos, tensões, ambiguidades e
mesmo (ir) racionalidades administrativas.
Documentos manuscritos
O projecto de recriação do discurso pedagógico, que se foi moldando na
província de Cabo Verde, exigiu a consulta de fontes primárias manuscritas,
produzidas por agentes directamente implicados no processo educativo: alunos,
professores, autoridades educativas, pais e outros cidadãos.
O Instituto do Arquivo Histórico Nacional de Cabo Verde disponibilizou um
importante acervo, que pertenceu à Secretaria Geral do Governo Provincial (18031927), organizado em oito séries: L. 1. Instrução Pública: Juntas Locais; L. 2.
Serviços de Instrução Pública; L. 3. Escola Principal de Instrução Pública; L. 4.
Liceu Nacional de Cabo Verde; L. 5. Instrução Pública: Conselho Inspector; L. 6.
Frequência e Exames; L. 7. Recenseamento Escolar e L. 8. Diversos.
Os documentos consultados revelaram-se fontes de excelência para a história
que pretendemos contar. São testemunhos que falam em directo, em relações de
contexto-intertexto com outras fontes documentais.
De forma abreviada, apresentamos as fontes manuscritas consultadas, ordenadas
em função dos actores que as produziram ou a que se reportam:
Alunos
Composições escritas, desenhos e provas do exame do 1º e 2º graus da instrução
primária elementar.
31
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Professores
Registos de actos administrativos relativos aos exames, provas de avaliação dos
conhecimentos dos alunos (exames); requisições de materiais didácticos e
equipamentos; listas de manuais escolares; guias de entrega de materiais didácticos
e equipamentos; requerimentos com pedidos de colocação e de transferência de
docentes; requerimento de uma professora com pedido de licença de parto;
relatórios; reclamações; actas de reuniões e correspondência diversa.
Outros cidadãos
Exposição com o pedido de manutenção do liceu na ilha de S. Vicente;
reclamação contra o Governador por ter proposto a redução do curso do Liceu
Nacional de Cabo Verde; projectos de integração dos professores do extinto
Seminário-liceu, das Escolas Normais e do Ensino Primário Superior no corpo
docente do Liceu Nacional de Cabo Verde; petição a favor da admissão de uma
professora e correspondência com pedidos de doação de livros escolares.
Autoridades educativas
Proposta de transferência do Seminário-liceu de S. Nicolau para a cidade da
Praia; correspondência sobre a adaptação do seminário a um liceu nacional; listas
dos manuais escolares adoptados e balanços da existência; correspondência diversa
sobre o analfabetismo, exames, manuais escolares e alunos pobres; informações
sobre o desempenho dos professores; registos de vários actos administrativos
relacionados com os professores; registos de vários actos administrativos
relacionados com os alunos; processo disciplinar aplicado a um inspector;
certificados de despesas; facturas; actas de reuniões; relatórios; regulamentos;
projectos de legislação; contratos de arrendamento de casas para serem adaptadas a
sala de aula; proposta de criação de um internato em Mindelo; projecto de um
estandarte para o liceu; mapas estatísticos e discursos.
Um olhar sobre a relação apresentada, em termos meramente quantitativos,
demonstra o desequilíbrio existente entre a voz, ainda marginal, da sociedade (os
cidadãos), a intervenção dos protagonistas directos do acto educativo (professores e
alunos) e a produção oficial omnipresente (autoridades educativas).
32
I Parte
Uma sociedade (in)
conformada
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
1.
Relações coloniais
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
“Aos olhos do mareante, o arquipélago lembra uma frota de galeões
dispersos e petrificados.
Projectadas na altura a maioria das ilhas quedam como estarrecidos
monstros, irradiando os denteados dôrsos de sáurios prehistóricos,
precipitando os vales augustos, projectando os picos solitários desde os
topes e crateras aos alicerces basálticos, à correnteza do mar.
O litoral, por vezes, é uma muralha inacessível. Na face queimada e
trágica, a riba desnuda, a ferida aberta de um desabamento, os cortes nos
montes de lava, são, da crónica milenária, páginas a memorar espanto, a
lembrar cataclismos. Os vulcões calaram-se. As crateras dormem. O
drama terciário está ali, presente, ainda, na bruteza da paisagem
dantesca.
Mas, aqui e além essa bruteza amansáram-na já as povoações, as terras
lavradas, os caminhos lentos. As encostas íngremes, a pique, suavizaram
o tempo e o esforço dos homens. (...)
Vivem nas ilhas do arquipélago portugueses: brancos, prêtos ou
mestiços. Chamam-se todos, com orgulho, creoulos.” (Augusto
Casimiro, 1935, pp. 5-6/11)
“Do ponto de vista social, cultural e psicológico não há cabo-verdianos
negros, nem cabo-verdianos brancos, nem cabo-verdianos mestiços.
Haverá, sim, cabo-verdianos ricos, pobres, remediados, miseráveis.
Cabo-verdianos de profissões humildes e prestigiadas.” (Manuel
Ferreira, 1967, p. 39)
A esperança na República
Eugénio Tavares, dirigindo-se «Ao povo caboverdiano» auspiciava “um dia, se a
Manhã da Liberdade te surprehender ainda vivo, os teus filhos te dirão isso; porque
antes de entrar na liça do trabalho, terão elles passado pela atmosféra depuradora da
Escola” (1910, p. 10).
Para muitos cabo-verdianos, a proclamação da República foi a “manhã da
liberdade”. O primeiro governador republicano, o oficial da marinha, Artur Marinha
35
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
de Campos42, foi recebido entusiasticamente no arquipélago. Na cidade da Praia,
numa manifestação popular, declarou:
“Eu pasmo como nem a fome de 1903-1904 fez aparecer entre vós um Aguinaldo43,
que esfarrapando o odioso trapo azul e branco (...) então repetisse aqui a notável
epopeia das Filipinas. Eu admiro como mais de vinte mil caboverdeanos morreram de
fome nesta ilha, em menos dum ano, sem um movimento de revolta que pusesse termo
a tanto sofrimento.
Eu ter-me-ia revoltado44.” (In Oliveira, 1998, p. 180)
Figura 6. Desembarque do primeiro governador republicano em Mindelo, 1910
Ed. Bazar Central Bonucci & Frusoni – S. Vicente (Loureiro, 1998, p. 18)
Após o entusiasmo inicial, a população cabo-verdiana torna-se cautelosa.
Eugénio Tavares, em carta ao amigo Inocêncio Cândido Simplício, avisava (8 de
42
Foi governador de Cabo Verde, nos anos 1910/1911, durante quatro meses, com uma administração
conturbada.
43
Manuel da Cunha Ribeiro (sécs. XIX-XX), que foi notário na Ilha do Fogo e director do jornal A Defesa,
escreveu, nos tempos da monarquia, com o pseudónimo de Aguinaldo, “em honra do herói filipino do mesmo
nome, e defendeu o recurso à luta armada «para conquistar a nossa independência»” (Oliveira, 1998, p. 785).
44
Estas palavras determinaram o fim do seu mandato: “na metrópole receara-se que ele quisesse ser aquele
Aguinaldo filipino na província de Cabo Verde e, demitindo-o, mandaram-no recolher sob prisão à metrópole,
onde devia entrar na fortaleza de S. Julião da Barra...” (Rocha Martins, citado em Oliveira, 1998, p. 181).
36
Uma sociedade (in) conformada
Fevereiro de 1913): “A República (...) não é para aí nenhuma milagrosa terma de N.
S. de Lourdes: não sara cancros, de repente, com um banho, dois copos de água e
três salve-rainhas” e sobre a governação colonial, indagava: “Política? Parafraseia
tu o verso de Hamlet – «to be or not be»: comer ou não comer, aí é que bate o
ponto! – “that is the question” terás a política deles” (in Monteiro, 1999, p. 158).
“Aspirações? Unicamente aquelas que estão ao alcance de um voo de galinha: possuir
a amizade do sr. governador; tomar chá com o sr. governador; jogar com o sr.
governador; ser o primeiro a atracar quando chega o sr. governador; ser o último a
largar quando parte o sr. governador; ler, em roda de amigos, roendo-se de ciúmes, as
cartas do sr. governador; classificar de adoráveis os erros de gramática do dr.
governador; e comentá-los, com uma pontinha de malícia finíssima e outra pitada de
benevolência superior: Este governador! E enfim, lisonjear o governador; orientar o
governador; iludir o governador; governar o governador.” (Tavares, 1913)
A imprensa desconstroi as bases da governação colonial, ao denunciar a inércia
governativa e as difíceis condições de vida da população:
“Tudo se espera das chuvas, sem que um poço artesiano consulte o coração da terra,
nem uma bomba eleve as aguas às ladeiras em que ella falta.
As artes como as sciencias são letra morta; nem podem deixar de o ser, não existindo
escolas nem lyceos onde se estudem. A industria é nulla, sem fórma, nem methodo
para poder competir nem mesmo concorrer com a identica d'outras colonias da Europa.
O commercio é reduzido e rachitico e, longe de se desenvolver, definha e atrophia-se
por não ser appoiado sobre a actividade local mas só depender de influencias
exteriores. A idéa da associação ainda aqui não penetrou. A sociedade vota-se ao
egoismo individual: cada um busca para si uma independencia hypothetica e saboreia
os prejuizos do seu semelhante.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 1, 1 de Março de 1911, p.
2)
Inconformada com o abandono a que foi votada, a sociedade exige protecção
especial da metrópole, legitimada por alegado ascendente cultural do caboverdiano: “Em todas as províncias ultramarinas da Costa Ocidental ainda ha gentios,
só Cabo Verde, mesmo no interior das suas ilhas não os tem, quasi todo o filho
desta província tem a cultura máxima que cá pode receber, é trabalhador, é honesto,
e homens assim devem ser protegidos pelos poderes metropolitanos” (O Futuro de
Cabo Verde, n.º 13, 24 de Julho de 1913, p.1).
O discurso indutor de um estatuto diferente, convivia com o sentimento de apego
à terra e a rejeição de pertença a outras partes do império: “E tanto que preferimos
para viver e para morrer, a aridez e a miséria de Cabo Verde, ao bucolismo do
Minho, por exemplo, ou às riquezas das nossas Áfricas. Isto será um crime?” (A Voz
de Cabo Verde, n.º 176, 28 de Dezembro de 1914, p. 1).
37
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Que modelo colonial?
A entrada de Portugal na Grande Guerra, para além do objectivo mais geral de
dar prestígio à posição do país no campo internacional, visava evitar que a paz se
fizesse à custa das possessões ultramarinas. A nova conjuntura internacional
fragilizou o modelo colonial lusitano.
Em alternativa surgiam novos paradigmas, “uma concepção muito
descentralizada do império, não apenas do ponto de vista administrativo, mas
também do económico-financeiro e mesmo do político45”(Alexandre, 1993, p.
1118) ou, em contraste, a “centralização, equilíbrio financeiro, predomínio dos
interesses metropolitanos (em nome de uma solidariedade que na prática significava
a subordinação das colónias)“ (idem, p. 1127).
No ano de 1914, a colónia foi dotada de autonomia administrativa e financeira. O
professor e poeta José Lopes reconhecia que a autonomia “representa em si mesmo,
subjectivamente, um passo gigantesco na senda do Progresso”, acrescentando “é
preciso que essa excelente medida seja bem aplicada, de modo que objectivamente
se traduza em resultados positivos de reais vantagens para as Colónias. Il faut savoir
faire” (A Voz de Cabo Verde, n. º 162, 21 de Setembro de 1914, p. 2).
“Era tempo. A civilização colonial não se compadecia com a nossa situação de tuteladas.
E tuteladas eram as Colónias, que não discutem os seus orçamentos minuciosamente; não o
expungem de todos os êrros do passado; não votam as suas receitas; não as aplicam em
fomentar e valorizar as suas riquezas, desprezadas umas, inexploradas outras e não possuem
«capacidade para adquirir, contratar e estar em juízo em seu próprio nome e sob a sua
responsabilidade».
Todo êsse passado de subserviência e servidão terminou com a aprovação da autonomia
administrativa e financeira das Colónias.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 62, 2 de Julho de
1914, p.1)
Nesse mesmo ano, o Ministro das Colónias divulgou uma carta do Secretário do
1º Congresso Universal das Raças46, com preceitos que visavam o respeito pelas
diferenças raciais:
45
Teoria defendida por Norton de Matos e “alguns dos seus colaboradores ou discípulos (entre outros, Ferreira
Dinis, Armando Cortesão e Augusto Casimiro)” (Alexandre, 1993, p. 1118).
46
“O primeiro Congresso de Raças Humanas realizou-se em Julho de 1911 e contou, entre os seus protectores,
com 35 presidentes de Parlamentos, a maioria dos vogais do Tribunal Permanente de Arbitragem e dos
delegados da segunda Conferência de Haia, uns 130 professores de Direito Internacional, os principais
antropologistas e sociólogos do mundo, e muitas outras personagens de distinção. No Reino-Unido, onde se
efectou êsse Congresso, o apoio que lhe foi dado não foi de menor valimento, nem menos cordial a maneira
como foi acolhido, pois na lista do seus Vice-Presidentes, contam-se o primeiro-ministro e outros membros do
gabinete, os leaders dos partidos Conservador e do Trabalho, representantes de todos os cultos religiosos e 15
38
Uma sociedade (in) conformada
“I. Respeitar e ser cortês para com os usos, costumes e pessoas de todas as raças;
II. Saber que diferenças, em civilização, não significa, necessariamente, inferioridade
ou superioridade;
III. Reconhecer quanto é ilusória e insustentável a prosápia que algumas nações teem
de que a sua civilização, a sua força, a sua sciência, os seus usos e costumes, são
superiores aos dos restantes povos da terra;
IV. Reconhecer o direito que cada nação tem de estudar, sem desprimores, as
civilizações, os usos e os costumes dos outros, povos; que, nas próprias civilizações
tidas como ínfimas, há muito que estudar e aprender; que todas as civilizações
merecem o nosso respeito pela base histórica em que devem assentar-se;
V. Reconhecer que as ideias, os usos e costumes dos povos de outras raças lhe devem
ser tão caros como os da sua própria raça e nacionalidade, e que tanto maior deve ser
êsse respeito quanto maior aquêle que exige que os outros vos tenham dos da sua raça
e nacionalidade;
VI. Deve reconhecer a solidariedade e a interdependência da Humanidade, e quanta
beleza encerra uma atitude serena, pacífica e fraternal perante todos os seres
humanos.” (Boletim Oficial, n.º 15, 11 de Abril de 1914, p. 138)
Nativismo
Não obstante estas disposições, a decepção com o regime republicano era
notória, conforme documenta o artigo “Instrução pública”: “Implantada a
República, em 1910, a instrução continuou, nesta província, no mesmo pé em que a
deixou o ancien regime, isto é, não sofreu até hoje a mais pequena remodelação no
sentido de a facilitar e desenvolver entre nós e melhorar a triste situação em que se
encontra a classe do professorado” (A Voz de Cabo Verde, n.º 257, 21 de Agosto de
1918, p. 2).
O descontentamento social foi difundido pela voz dos nativistas. O nativismo, o
orgulho de ser natural de Cabo Verde, está patente nas palavras do Senador Augusto
Vera-Cruz que, revoltado com a inércia da administração colonial, proclamava “Sou
português de sangue e coração, mas acima de tudo sou caboverdeano47”. Postura
idêntica tinha sido adoptada por Eugénio Tavares, que se declarava: “Português de
lei! Cabo-verdiano de alma!” (in Monteiro, 1999, p. 173). O Padre Duarte da
Graça48 não obstante ter hostilizado a ideologia republicana, nos primeiros tempos
do regime, declarou:
dos 18 vice-chanceleres das universidades.” (Carta do Secretário do 1.º Congresso Universal das Raças, 18 de
Novembro de 1913. Boletim Oficial, n º 15, 11 de Abril de 1914, p. 137)
47
Palavras proferidas em entrevista ao Correio d’África, n.º 3, 1924 (Oliveira, 1998, p. 183).
48
O padre António Duarte da Graça (1862-1923) foi cónego da Sé de Cabo Verde, professor primário de
prestígio e proprietário na ilha de Santiago. Depois da proclamação da República em Portugal, reagiu aos
ataques do governador Marinha de Campos contra a Igreja, tendo sido preso. Publicou “uma célebre brochura
39
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
“Ser nativista não é crime, nem o é tam pouco desejar alguém, simplesmente, a
independência da sua pátria. Poderia ser, quando muito, um sonho de um visionário,
quando essa pátria não tivesse recursos próprios ou elementos sólidos para constituir
sua independência e governar-se por si mesma (1911).”
No ano de 1915, António Corsino Lopes da Silva escrevia “pensar na
independência de Cabo Verde, para já, seria uma fraqueza do meu raciocínio” (A
Voz de Cabo Verde, n.º183, 15 de Fevereiro de 1915). Na perspectiva de Nobre de
Oliveira, “afastada a hipótese de independência, por impraticável, a luta pela
dignificação dos cabo-verdianos continuava a ser a luta pela igualdade com os
metropolitanos” (1998, p. 234).
Os periódicos A Voz de Cabo Verde e O Progresso envolveram-se numa disputa
em torno do nativismo, geradora de clivagens e tensões sociais.
“Tão desorientados têm andado crioulos e europeus, n’esta cidade da Praia, (pois que
nas outras ilhas e no interior d’esta, nem se lembram de semelhante cousa) que estes
chamam aos crioulos: - mata brancos, e aquelles aos metropolitanos mata pretos!
E o que é mais curioso e interessante, é que no grupo de mata brancos há muitos
metropolitanos, e no de mata pretos, muitíssimos caboverdeanos!!! E, de resto, há já
tanto tempo que se falla de mata brancos e mata pretos, e comtudo no meio de todos
esses estardalhaços de mortes e tiros de canhões e de synaiders, a punhal, à faca e até à
camuga, nenhum tem morrido! Mas... dar-se-há o caso da phrase crioula: - nem
matado és cá tá morré?!... (nem matado morrem?!) (A Voz de Cabo Verde, n.º 16, 4 de
Dezembro de 1911, p. 2)
A leitura dos artigos, que alimentaram a polémica, proporciona imagens e
representações diferenciadas do outro dominado, na perspectiva do eu dominador.
Parafraseando Rui Gomes, “é em nome de algumas semelhanças superficiais, num
universo de dissemelhanças, que o Estado vê nos indígenas não aquilo que são mas
aquilo que desejaria que fossem, cidadãos portugueses” (1996, p. 154).
“É por isso que os naturaes d’esta provincia de Cabo Verde foram sempre, e são, sem
excepção de côr, portuguezes na educação civica e moral, na indole doce e pacifica,
nos costumes e até, no sentimento, pois são bondosos, hospitaleiros e caritativos,
sentimentos que caracterisam o povo portuguez e o destinguem d’entre os demais da
Europa.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 16, 4 de Dezembro de 1911, p. 2)
Para Auguste Chevalier “o Negro cabo-verdiano permaneceu o negro bon-enfant
que conhecemos em África” e “o Branco quase-branco que vive à sua volta é que
foi, muitas vezes, aos encontro dos costumes dos Negros” (1935, p. 65). Esta visão,
em que não poupava o referido governador”, intitulada Quatro mezes e meio de uma administração ultramarina
a pontapés ou a administração do sr. Marinha de Campos, edição do autor, 1911. (Oliveira, 1998, pp. 740-741)
40
Uma sociedade (in) conformada
na óptica da política de assimilação, advinha do reconhecimento das similitudes e
diferenças entre colonizadores e colonizados, esbatidas pela acção civilizadora
lusitana. Em sentido diferente, o estereótipo do “indígena indolente, desleixado e
bêbado”, assente no conceito de raça inferior, numa lógica segregacionista:
“Os indígenas são indolentes, desleixados e bêbados? – Se assim fosse, a culpa seria
dos desleixados e indolentes que nos têem governado. (...)
Ora é com exemplos e com o ensino que o preto aprende a não ser desleixado e
bêbado, mas não com exemplos de brancos da tal terra que conhecemos, nem com
falta de escolas; pelo contrario; é criando estas e confiando a sua regência a
professores brancos ou pretos (a cor não importa) com competência profissional e
moral, e tornando obrigatória a sua frequência.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 36, 26 de
Abril de 1912, p. 2)
A imprensa deu voz a franjas da sociedade divididas entre o sentimento de
afirmação da sua terra (Cabo Verde) e de inserção no império colonial (Portugal).
Neste jogo de ambivalências, ambiguidades e conflitos surgiam sinais de (in)
conformismo, que se foram incorporando na matriz da cabo-verdianidade.
Apesar de sujeitos de identidades oprimidas, os cabo-verdianos assumiam a
“nobreza de carácter” e repudiavam o ónus de “frutos da conquista”: “Somos
colonos e mistos e não conquistados; pois a nossa origem é nobre e a nossa terra, há
pouco mais de quatro séculos, era deserta e os nossos antepassados a colonizaram.
Não somos fruto da conquista” (A Voz de Cabo Verde, n.º 218, 8 de Novembro de
1915, p.2).
Eugénio Tavares, em carta a D. Alexandre d´Almeida (1918)49, afirmava: “Cabo
Verde é um povo. E os povos têm aspirações que não se limitam à panela” (in
Monteiro, 1999, pp. 228-239).
A trajectória da cabo-verdianidade – com ciclos de crioulização/ assimilação –
iniciada pela afirmação individual (o nativo de Cabo Verde) conduziu à gradativa
consciência de uma comunidade, de um povo.
49
Alexandre d’ Almeida no jornal A Luta defendeu a teoria da “fixação do povo cabo-verdiano no seu seio”,
pelo aviltamento da emigração para a América. (Monteiro, 1999, pp. 228-239)
41
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Educação colonial
Em conformidade com Antoine Léon, “o aluno indígena é apresentado como um
ser à parte, sofrendo de diferentes limitações intelectuais ou culturais, mas
desfrutando, ao mesmo tempo, de algumas disposições auspiciosas” (1991, p. 37).
Idêntica imagem surge na imprensa cabo-verdiana:
“A creança preta é viva, esperta, engraçada, aprendendo facil e rapidamente, e até mais
rapidamente que a branca. Mas quando se espera vêr o prodigio desabrochar, temos
um desapontamento. Porquê? Porque a creança não é treinada em reflexões. A
faculdade da senso-percepção desenvolve-se, mas em prejuízo das outras. A memoria
é solida, retem facilmente as impressões recebidas, e os mestres satisfazem-se com
isso, o que constitue o erro fundamental.
O preto pequeno tem memoria de sobra, mas não tem a faculdade de comprehender o
que retem.
Ensina-se lhe a ler, e, com surpreza, ao chegar ao fim do livro de leitura, notamos que
elle repete de cór o livro todo, mas não sabe realmente lêr. O mestre em vez de ensinar
a creança a reflectir, ensinou-a a decorar. É uma experiencia facil de fazer com
qualquer rapaz das escolas.” (O Progresso, n.º 11, 12 de Setembro de 1912, p. 2)
O Progresso defendeu o modelo de relação colonial assente na
despersonalização do colonizado. Caía a máscara do humanismo e aparecia a
exploração económica e social, sob a forma de “encher a bolsa e pôr-se a andar”:
“Men must be judge, not by the tint of skin.
Mas é pelo miolo que se apreciam os homens; e miolo do indígena de qualquer paiz,
tem de soffrer uma demorada preparação, de passar pelo crisol do tempo, da
experiencia e do estudo, para entrar a produzir e para inspirar confiança. (...)
N’esta colonia, como de certo, em todas as colonias Portuguezas, as nossas relações
com o indígena, nos modernos tempos, são isentas de exageros, taes como o
lynchamento; mas como o branco não vem para a Africa para tratar da saude, mas para
fazer dinheiro, nem se preocupa com as ideias altruistas ou civilisadoras, nem com o
progresso real da colonia: - «encher a bolsa e pôr-se a andar», – este é o lemma. (…)
O preto nem possue originalidade, nem expontaneidade, nem intellegencia, nem
cultura sufficiente para sahir, sosinho, do labirynto em que a nossa civilisação o
lançou.” (N.º 9, 20 de Agosto de 1912, p.2)
A estratificação escolar, traduzida no nivelamento por baixo da oferta educativa
para os naturais das ilhas, controlava a mobilidade social e cristalizou as bases da
sociedade colonial:
42
Uma sociedade (in) conformada
“Os pretos costumam dizer: «façamos a panella emquanto o barro está mole»; e assim
é; se o deixarmos seccar, só conseguiremos panelas defeituosas e incapazes de serviço.
Que faremos, pois, para resolver o problema? Salvo melhor opinião:
1º O governo crear escolas preparatorias de mestres indígenas, nos centros mais
importantes, escolas d'onde saia gente capaz de ensinar agricultura, artes e officios.
2º Dar ao preto uma educação variada, mas simples; reduzindo a instrucção litteraria
ao minimo, deixando-nos de latins e de leituras classicas, que papaguearão sem as
comprehender.” (O Progresso, n.º 11, 12 de Setembro de 1912, p. 2)
Estas ideias causaram repulsa e indignação, tendo A Voz de Cabo Verde reagido,
pela voz de um cidadão, sob o pseudónimo Um preto: “A educação não estraga o
preto; aperfeiçoa-o, civiliza-o, e tanto mais rapidamente, quanto mais amigos, mais
leais, mais brandos forem os brancos para com ele” (n.º 58, 22 de Setembro de
1912, p. 3).
“Não é com explorações torpissimas, astucias, asperesas, despreso que se civilisa o
preto. Para o civilisar, é preciso que, a par da escola, o Evangelho do A B C, como
dizia Luciano Cordeiro, o tratemos como de igual para igual, não provocando nunca a
sua desconfiança. (...)
Acabem-se os abusos e criem-se escolas a valer e ver-se-á a Africa civilisada, em
poucas dezenas de anos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 58, 22 de Setembro de 1912, p.
3).
A educação colonial pautada pela trilogia “conhecer, adaptar e assimilar”
(Gomes, 1996, p. 155) reproduzia, de forma acentuada, as assimetrias e
desigualdades observadas nas escolas metropolitanas. Como expressa Antoine
León, “em termos de estatuto, o colonizado é o proletário do colonizador, isto é o
proletário dos proletários europeus” (1991, p. 8).
43
44
2.
Cultura e língua
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
“Os bailes são festas comuns em todas as ilhas.
A orchestra é acompanhada de rabeca e viola, acompanhadas do bater
do compasso com o pé no chão.
À porta estreita da habitação em que o baile tem logar, acumula-se o
povo, quando não pode já invadir a sala, e então entôa phrases e bate
palmas, em homenagem a este ou aquele par dançante com que
sympatisa.
É o que se chama um batuque. (...)
As danças predilectas do povo são a coladeira, a taca e o landum. A
primeira é licenciosa na forma e um tanto libertina na intenção. A taca é
uma dança sapateada diferindo n’ isso do landum. (...)
Nas classes mais civilizadas dançam-se as mornas que são
caracteristicas e originais de Cabo Verde e que estão sendo imitadas
agora na Europa, juntamente com o tango argentino tambem em moda.
A morna é typica e simples, traduz um mixto de sentimentalismo e
morbidez.” (Ernesto J. de C. e Vasconcellos, 1916, pp. 106-107).
Traços de cultura
Manuel Ferreira na obra A aventura crioula fala-nos do “tríptico completo:
poesia, música e dança – a poesia da morna, feita de coisas amorosas, impregnada
de morabeza e crecheu” e acrescenta que é na morna que o cabo-verdiano “encontra
todas as possibilidades de escape emocional e todos os caminhos do sonho e
integração” (1967, p. 58).
Além da “poesia da morna”, o cabo-verdiano realizou-se culturalmente na
literatura, com duas formas de expressão literária: o crioulo e a língua portuguesa.
O crioulo utilizado pelo povo inteiro, que nele tem uma criação amorosa, hoje
património da sua própria consciência, foi, contudo, por vezes, combatido e
contrariado. Pouco a pouco logrou adicionar à sua independência social a sua
independência literária (Ferreira, 1967, p. 231).
45
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Na expressão poética distinguiram-se Pedro Cardoso, Eugénio Tavares e José
Lopes que, para além da obra literária, foram cidadãos intervenientes pelo progresso
social e pela causa educativa50.
Pedro Cardoso, pioneiro da investigação do folclore cabo-verdiano, lutou pela
dignificação do crioulo. Defendendo, no entanto, a sua qualidade de cidadão
português, nem por isso enjeitava vozes remotas que lhe vinham segredar à tona da
consciência:
“África minha, das Esfinges berço
Já foste grande, poderosa e livre
....................................................”
(Jardim das Hespérides, citado em Ferreira, 1967, p. 170)
Eugénio Tavares, ”figura popular, muito querida numa terra onde o prestígio das
letras é uma das suas verdades sociais, espírito irrequieto, só em crioulo, se
realizando em plenitude como poeta, exerceu larga influência nos meios onde viveu
– e foi sem dúvida vulto de primeira plana na sua época” (Ferreira, 1967, p. 175).
Francisco Lopes da Silva, no texto “Lembrando Eugénio Tavares”, recorda-o como
o poeta do “amor pletórico, sensual, possessivo, impetuoso como uma corrente, e
irreverente perante as convenções sociais e as bocas do mundo, que ele desprezava”
(Notícias, 1 de Dezembro de 1990, p. 17).
Osório de Oliveira, que organizou o livro de poemas Mornas – Cantigas
crioulas51, assistiu às festividades da Semana dos Poetas52, na cidade de Mindelo
(1927) e descreveu a homenagem a Eugénio Tavares e José Lopes:
“Podeis imaginar o que seja uma multidão constituída por pessoas de todas as classes
sociais, mas, em grande parte, por gente do povo, de pé descalço, a vitoriar
incessantemente dois poetas? Compreendeis o que seja, para um europeu do século
XX, acostumado ao desprezo pelos intelectuais e pelos artistas, ver um povo inteiro a
gritar: «VIVAM OS NOSSOS POETAS»? Pois foi isso mesmo que eu vi, admirado,
entusiasmado e comovido, no dia em que chegaram a São Vicente, aonde não iam há
bastantes anos, os dois poetas mais queridos de Cabo Verde: Eugénio Tavares e José
Lopes, o poeta da Brava e o poeta de Santo Antão.” (Notícias, 1 de Dezembro de
1990, p. 17).
50
Vários testemunhos da intervenção cívica e do interesse pela educação de Pedro Cardoso, Eugénio Tavares e
José Lopes são referidos ao longo da dissertação.
51
A publicação deste livro deve-se a iniciativas e aos cuidados de Osório de Oliveira (Tavares, 1930, p. 109).
52
Em Outubro de 1927, o Governador, Coronel António Álvares Guedes Vaz convocou Eugénio Tavares, José
Lopes e Januário Leite para uma homenagem pública em Mindelo. Pedro Cardoso não foi notificado por estar
impedido. Só comparecerão Eugénio Tavares e José Lopes, este vindo da ilha de Santo Antão, onde estava
colocado como professor. (Notícias, 1 de Dezembro de 1990, p. 17)
46
Uma sociedade (in) conformada
Figura 7. Eugénio Tavares e José Lopes em S. Vicente, 1927
(Notícias, 1 Dez. 1990, p. 17)
Relativamente ao poeta José Lopes, Martinho Nobre de Melo53, no prefácio das
Hesperitanas, questionava: “Um romântico? Um clássico, um pensador, um
simbolista, um enamorado da forma e do ritmo? Nada disto é José Lopes, sendo de
tudo o bastante para nos desnortear, subjugar e encantar”54.
53
Martinho Nobre de Melo (1891-1985) natural da ilha de Santo Antão, formou-se em Direito pela
Universidade de Coimbra, seguiu a carreira académica e foi professor catedrático da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa. Foi Ministro da Justiça e dos Negócios Estrangeiros. Diplomata e escritor, colaborou
em vários jornais e dirigiu a Junta de Defesa dos Direitos de África. Nos anos vinte tornou-se um dos ideólogos
da direita portuguesa. Foi director do jornal A Reconquista (Lisboa), que apoiou o golpe militar de 28 de Maio
de 1926, que pôs fim à 1ª República. Notas baseadas em Oliveira, 1998, pp. 765-66.
54
Citado no prefácio das Poesias escolhidas de José Lopes (1972).
47
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Questão linguística
Dos universos simbólicos que impregnaram a cultura cabo-verdiana, a língua
“como condição de inteligibilidade da palavra, intermediária estruturada do que se
deve construir para se explicar a relação constante entre o som e o sentido”
(Bourdieu, 1989, p. 9), num contexto de diglossia, merece atenção especial.
Na obra Colonização, ensino e educação, no capítulo dedicado à língua de
ensino, Antoine Léon explica a correlação entre as combinações binárias
“jargões/línguas” e “selvagens/civilizados”55 e adianta que “o objectivo principal da
empresa colonial, a saber da dominação exercida pela Metrópole sobre os povos
subjugados, poderia ser teoricamente atingido privilegiando tanto a língua do
colonizado como a do colonizador” (1991, p. 55). No caso de Cabo Verde, a língua
crioula foi preterida56, sendo claramente privilegiada a língua portuguesa.
Baltasar Lopes da Silva, escritor e linguísta, assegurou que “a linguagem crioula,
essa, está tão arreigada no solo das ilhas, como o próprio indivíduo” (in Ferreira,
1967, p. 77). Num apontamento lido ao microfone da Rádio Barlavento, em
resposta às considerações de Gilberto Freire sobre esta matéria57, afirmou:
“Se não erro muito, o emprego constante do crioulo significa, em primeiro lugar, que,
por processos de enriquecimento lentos e subtis, ele está apto a servir em grau elevado
de veículo de comunicação entre os homens; e, em segundo lugar, que ele está
definitivamente integrado no corpo de ideias e sentimentos que formam a nossa
personalidade regional.” (1965, p. 35)
Antoine Léon, no contexto da colonização francesa, considerou a política
linguística um “altruísmo egoísta” (1991, p. 58). Também, em Cabo Verde, o
ensino da língua portuguesa foi um acto de “altruísmo egoísta”, o próprio substrato
da aculturação.
55
Antoine Léon cita uma afirmação de P. de Maupertuis.
O currículo dos cursos da Escola Colonial, na Sociedade de Geografia de Lisboa, destinada “a preparar o
pessoal que se destine ao funcionalismo ultramarino e a (...) auxiliar a propaganda dos interêsses coloniais
portugueses” incluia a cadeira de “Línguas coloniais”, onde aprendiam o fula ou mandinga (Guiné); fioti
(Angola), kimbundo (Angola), landim (ronga) (Moçambique), suahili (Moçambique), concani (Índia) e teto ou
galoli (Timor) (art. 10.º). Em § único é referido que “O ensino do crioulo de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé, Índia
ou Macau, bem como o doutras línguas indígenas, alêm das que já se ensinavam, será instituído à medida que as
necessidades públicas o exijam” (Boletim Oficial, n.º 33, 16 de Agosto de 1919, p. 298).
57
Gilberto Freire passou pelas ilhas e sobre elas discorreu em dois livros: Aventura e Rotina e Um Brasileiro em
Terras Portuguesas, em páginas que denunciam afirmações passíveis de controvérsia (Ferreira, 1967, p. 41).
56
48
Uma sociedade (in) conformada
“Procedendo assim [difundindo a instrução], reconhecia que a língua portugueza
atravez do continente negro, falada e escrita por 150 ou 200 milhões de habitantes, se
tornaria imorredoura e representava a conquista de um povo, intelectualmente, e por
tanto uma gloria para Portugal que teria a sua reflorescencia, o seu brilho nestas terras
tão longínquas de Africa!
Não se importando com esse problema tão magno para a vida de uma nação,
depreende-se que os seus governantes querem continuar com as suas expoliações,
despotismos, e essas barreiras separatorias que colocam o nativo, quer seja educado ou
não, abaixo do europeu analfabeto, porque aquele é um... negro e este um branco!
Misericórdia!” (Correio de África, 1 de Dezembro de 1922, p. 1)
Rodrigo de Sá Nogueira, no prólogo do livro de Baltasar Lopes da Silva, O
dialecto crioulo de Cabo Verde (1957), afirma que “a língua portuguesa não se
conservou, no verdadeiro sentido da expressão, nas ilhas de Cabo Verde: ela
metamorfoseou-se”. Sublinha que “não é o mesmo português da Metrópole, mas um
português cheio de lesões muito profundas, não só na sua fonética como na sua
morfologia, na sua semântica e na sua sintaxe” (Silva, 1984, p. 11). Acrescenta que
do contacto do crioulo com o português resultou “um impulso generalizado de
aristocratização fonética e vocabular” (idem, p. 43).
A convivência das línguas – materna e de ensino – teve implicações no ensino e
na aprendizagem:
“Que espécie de ensino poderá ministrar um professor, que mal saiba falar o
português e que o escreva incorrectamente? Qual de vós não reparou já que as
crianças, por essas ilhas fóra, falam na escola o crioulo umas com as outras e até com
os professores?” (O Caboverdeano, n.º 7, 18 de Maio de 1918, p. 1)
Os efeitos didácticos da interferência do crioulo na aprendizagem (em língua
portuguesa) fundamentaram a interdição do “uso da língua materna nas escolas”:
“Tendo na minha visita às escolas das diferentes ilhas dêste arquipélago notado, com
grande desgôsto, que em algumas delas o ensino se faz ainda em crioulo, ou mixto de
crioulo e português, e tendo sido informado pelo inspector escolar de que ao seu
conhecimento chegou a notícia de que êsse abuso têm sido levado ao ponto de alguns
interrogatórios dos exames, tanto do 1º como do 2º grau, se realizaram nesse dialecto,
o que é contra todas as disposições regulamentares em vigor na província;
Atendendo a que o ensino feito por essa forma não só é improfíquo como redunda em
alto prejuízo das populações escolares e, consequentemente, do povo caboverdeano:
Hei por conveniente proibir expressamente o uso do crioulo nas escolas e determinar
que a inobservância desta ordem seja considerada desobediência e, como tal, punidos
todos os professores que a infringiram.” (Portaria n.º 303. Boletim Oficial, n.º 19, 8 de
Maio de 1920, pp. 184-185)
49
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Eugénio Tavares, um dos paladinos da dignificação da língua cabo-verdiana,
afirmava que “o dialecto caboverdeano pode falar-se e grafar-se (...) [e] constitui a
documentação de uma das transformações mais felizes da língua portuguesa entre
os povos coloniais”:
“Mestiçada pelo contacto de duas raças diferentes, num consórcio de séculos;
ressentindo-se da influência exercida, em longas gerações de colonos, por multidões
de escravos; em breve a língua dos senhores tomou os vícios prosódicos dos escravos,
conservando, ao lado de arcaismos lusitanos, pitorescamente, fonalidades bárbaras de
muitos vocábulos sonoros, e de poucas expressões interjectivas.
Transformações de línguas, é de crer que se operam não só por circunstâncias de
tempo, como as que já distanciam a língua em que remoqueou Gil Vicente, da língua
em que cantou João de Deus; senão, tambêm, por circunstâncias de meio, como as de
que desviaram da língua em que fala o português continental, o dialecto em que se
exprime o português de Cabo Verde. E deve ser certo que o interêsse filológico que
leva ao estudo da língua em que nos chegaram as «Saudades» de Bernardim, não seja
maior que o interêsse glotológico que recomenda o estudo do dialecto em que as
deliciosas crioulas gorgeiam os seus amores.” (O Manduco, nº 11, 30 de Janeiro de
1924, p. 1)
Não obstante a proibição do crioulo na escola e o anátema de língua de pretos e
“estando o reinol (puro em contaminações tropicais) em nítida minoria, foi o
homem crioulo que teve a última palavra; e o reinol não teve outro remédio senão
«aculturar-se» idiomaticamente” (Baltasar Lopes, citado em Carreira, 1983, p. 73).
Porém, a força anímica do crioulo não destronou o português, como língua de
valorização pessoal e de expressão literária.
“Mas são as condições privadas em que [o crioulo] socialmente se move, sem
tratamento escolar, que tendem a limitá-lo à expressão literária popular, dado que a
todo o momento, e à mão, ali está, depurado e amestrado o idioma nacional. Pois a
língua portuguesa, e isto achamos dever realçar, ganha lugar de tal maneira sólido na
alma do cabo-verdiano que basta tratar-se de indivíduos de instrução mediana para ela
não esconder nenhum dos seus preciosos segredos. Eis, porque, em certa medida, é
quase lícito perguntar se o idioma português não é também a língua dessa «região
geográfica e psicológica», ou seja o leite materno dos escritores e poetas de Cabo
Verde.” (Ferreira, 1967, p. 115)
Em conclusão, as palavras de Manuel Ferreira (idem, p. 77): “o dialecto crioulo
de Cabo Verde, [foi] afinal seiva robusta de uma soberba cultura nova: a cultura
mestiça, simultaneamente garantia de uma transculturação de adaptação e quiçá a
mais extraordinária prova a que a língua portuguesa já foi submetida pelas cinco
partidas do mundo”.
50
3.
A luta contra a adversidade: emigração e ensino
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
“Pela sua posição geográfica, Cabo Verde marca a extremidade
ocidental da faixa do Sahel, caracterizada por condições climáticas de
aridez e semiaridez, na dependência de fenómenos que acompanham as
migrações anuais e seculares da convergência intertropical e seus efeitos
desastrosos quando, nos movimentos para norte, tal faixa pluviogénica
da circulação atmosférica não alcança as ilhas. Secas e crises têm sido
acontecimentos constantes no arquipélago, constituindo, só por si, os
maiores desafios para a população, que vive, fundamentalmente, da
agricultura pouco diferenciada e de algumas actividades com ela
ligadas.” (Ilídio do Amaral, 1991, p. 1)
Estiagens e fome
A pobreza natural das ilhas, dependentes de uma economia de subsistência muito
frágil, agravada pela persistente irregularidade das chuvas e prolongadas estiagens,
sujeita o cabo-verdiano a condições de vida extremamente duras. As secas
frequentes e prolongadas, “a bem dizer cíclicas (de 5 em 5 anos, de 7 em 7 e mais)”
(Carreira, 1983, p. 35), provocavam elevada mortalidade.
No primeiro quartel do século XX ocorreram graves crises alimentícias, com
especial incidência nos anos de 1911-13 e 1921-2358. O jornal português O Negro
noticiou: “Tem-se manifestado em Cabo Verde os primeiros symptomas da fome.
Ante este horror alguns negociantes pretendem explorar os caboverdianos,
augmentando o preço dos géneros de primeira necessidade. Pedem-se providências”
(n.º 2, 21 de Maio de 1911, p. 3).
A cena observada por um grupo de estudantes de Mindelo, em visita à ilha de
Santo Antão, é elucidativa:
“Pouco tempo depois despertou a nossa curiosidade um sino que tangeu na rua,
defronte da casa onde nos achávamos, aparecendo logo aos primeiros sons desferidos
uma multidão de mulheres e crianças, que levavam bules velhos, canecos, etc.
58
Ocorreram crises e houve escassez de colheitas nos anos de 1900, 1901-02, 1905, 1910, 1911-13, 1920 e
1921-23. (Amaral, 1991, p. 14)
51
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Tendo perguntado a que iam, fomos informados de que iam receber a cachupa, que
por ordem do governo lhes era distribuída diariamente por uma comissão composta
dos srs. Borja, enfermeiro e Pedro da S. Brito, guarda fiscal. Não nos poupamos ao
desejo de assistir a tal distribuição, a fim de sobre tudo informar os nossos leitores.
Notamos apenas dois homens no grupo, sendo as restantes pêssoas, mulheres e
crianças. Um dêstes homens estava magro, esquelético, os olhos sem brilho, as faces
encovadas e as pernas a tremerem-lhe. Notamos tambem uma póbre mulher cêga que
era conduzida por uma criança de 3 anos. As crianças estavam todas nuas e as
mulheres tam miseravelmente trajadas que se lhes divisava as formas do corpo. (...)
A cachupa consistia num milho fervido sem mistura nenhuma, não merecendo por isso
o nome de cachupa. Quanto à quantidade, vimos quatro latas das que servem de
vasilhame ao petróleo, cheias. Terminada a distribuição soubemos do sr. Borja que as
pessoas contempladas na distribuição eram em número de 200, sendo 140 crianças e
60 adultos.” (N.º 7, 15 de Julho de 1913, p. 1)
O Governo Provincial anunciou medidas “no sentido de eficazmente pôr-se
termo à lamentável e desastrosa marcha que tem sido adoptada para elevar-se a
excessos insofríveis o preço da alimentação dos pobres” (Portaria n.º 13, 14 de
Janeiro de 191659). As “Notícias dos concelhos” descrevem os efeitos das estiagens:
“Em Santo Antão, a ilha mais fustigada pela crise, há zonas de maior e menor
escassez. «No geral, a situação do povo é má; mas diga-se com justiça, muito menos
aflitiva do que no último ano». (...) «Fóme, na verdadeira acepção da palavra, só
existirá em Sam João Baptista; no Coculi e na Garça há bastante falta, lutando a
população com dificuldades, em vista do alto preço dos generos alimentícios: mas não
há fôme». (...)
«Cabe talvez, aqui, dizer que em Santo Antão paga-se mal ao trabalhador. No geral, o
proprietário não dá a cada trabalhador mais que $1460 por dia e, muitas vezes, pagam
em géneros. Às mulheres paga-se $08 a $10.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 246, 5 de
Junho de 1916, p. 1)
“[S. Vicente] População densa, com pouca higiene, pulmões traumatizados pelo pó de
carvão, fustigados pelas areias que a briza forte arrasta, enfraquecida pela sífilis e pelo
álcool, está em condições de fácil tuberculização. E para mais, parece ver-se ao longe
o aspecto da fome, ouvindo-se já rumores de protesto das classes desprotegidas. É que
falta o carvão, energia disto tudo, originando a dificuldade de comprar alimentos que
estão caríssimos, e a sua falta concorre também para que a comida seja mal cozinhada,
dura por isso, e com germens aos quais o calor mal combateu, mortificando e
embaraçando o estômago e intestinos, provocando infecções. Para pensar, e
muitíssimo, nesta crise de subsistências! (Boletim Oficial, n.º 27, 6 de Julho de 1918,
p. 240)
59
Supl. nº 1 ao Boletim Oficial n.º 2, 14 de Janeiro de 1916, p. 21.
O pagamento diário de um trabalhador ($14) dava apenas para comprar um quilo de batata inglesa; o salário
de uma mulher ($08 a $10) equivalia ao preço de um litro de feijão “pedra” ou um litro de favona (um tipo de
fava) (Cf. Edital de preços a retalho, 11 de Maio de 1916. Boletim Oficial, n.º 21, 20 de Maio de 1916, p. 174).
60
52
Uma sociedade (in) conformada
A seca prolongada, de 1921 a 1923, sentiu-se nas escolas, que “funcionavam
com regularidade, mas com uma frequência muito diminuta, nos pontos mais
acossados pela crise” (Boletim Oficial, n.º10, 11 de Março de 1922, p. 78).
Face às adversidades da natureza, “o cabo-verdiano torna-se o eterno emigrante
que busca em terra estranha aquilo que a sua lhe nega sistematicamente. E passado
algum tempo no «estrangeiro», ou amealhado modesto pecúlio, aí está de regresso
às suas ilhas onde espera outra estiagem para voltar a emigrar. É quase um ciclo
vicioso” (Carreira, 1983, p. 36).
O eterno emigrante
A solução adoptada na gestão das calamidades, pela administração colonial, foi a
emigração coerciva:
“Todo o indígena da província de Cabo Verde está sujeito à obrigação, moral e legal,
de procurar adquirir pelo trabalho, os meios que lhe faltem de subsistir e de melhorar a
própria condição social. (…) Tem plena liberdade para escolher o modo de cumprir
essa obrigação; mas se não a cumprir de modo algum, a autoridade pública pode
impor-lhe essa obrigação” (Regulamento do Trabalho Indígena61).
Com “plena liberdade” para conseguir os parcos meios de subsistência, o caboverdiano foi forçado a procurá-los na terra-longe. Mesmo em plena República,
nenhuma porta em aberto permitiu ao indígena escapar ao contrato, “sob a inovação
constante da necessidade de o educar e de o civilizar” (Carreira, 1983, p. 193).
Quadro 17 – Emigração para São Tomé, por níveis etários – 1913/1920
Grupos etários
Menos 14 anos
14 - 20 anos
21 - 30 anos
31 - 40 anos
Mais 40 anos
Total
Número
539
391
4.368
480
123
5.901
Homens
Percentagem
55,1%
68,2%
60,3%
67,4%
86,6%
61,2%
Número
439
182
2.876
232
19
3.748
Mulheres
Percentagem
44,9%
31,8%
39,7%
32,6%
13,4%
38,8%
Total
978
573
7.244
712
142
9.649
(Carreira, 1983, p. 238)
61
Supl. nº 2 ao Boletim Oficial n.º 9, 7 de Março de 1913, p.1.
53
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A emigração obrigou homens, mulheres (38,8%) e crianças (10,1%62) a
trabalharem nas roças das ilhas de S. Tomé e Príncipe.
Jerónimo Paiva de Carvalho63, no “depoimento sobre a questão dos serviçais de
São Tomé”, dá-nos um testemunho do trabalho forçado:
“Fala agora o serviçal mais inteligente que conhecemos no Príncipe. É um espírito
atilado, cara bondosa e leal, coração generoso. Alto e corpulento, olhar vivo e franco.
Chama-se João Antunes, de 30 anos de idade, casado, natural de Santa Catarina (Cabo
Verde). Serviçal contratado com a Empresa Agrícola do Príncipe. Às nossas perguntas
responde lucidamente: - O senhor curador conhece a minha situação como filho de
Cabo Verde. Sou casado, tenho cinco filhos e sei ler e escrever. Só a fome, que encheu
a minha terra, em 1903, podia arrastar-me a este inferno, onde, todavia, ganhei um
pecúlio regular devido à mais rigorosa economia e onde não deixei ficar a pele pela
coragem e tenacidade da minha fé no futuro e pelo sonho que me obcecava a todo o
momento de ver os meus filhos. Sofri variados tormentos. Magoaram a minha
dignidade. Cortaram, a chicote, o meu corpo. Mas vivo e isso é-me bastante. Onde
todos caíram, eu consegui ficar de pé! Tive sorte. E por isso parto tranquilo e alegre.
Nunca mais voltarei ao Príncipe. E nenhum dos meus patrícios terá vontade de o fazer.
Antes rebentar de fome à beira da estrada do que descer à vergonha que arrastei estes
anos de contrato.” (In Carreira, 1983, p. 178)
No primeiro decénio do século, o surto migratório para São Tomé e Príncipe,
ultrapassou 10.000 homens, mulheres e crianças, com picos nos anos de estiagem
(1911-1914: 4.542 saídas). Na década seguinte, registou-se a emigração de 6.798
cabo-verdianos64, valores praticamente circunscritos aos anos de 1920-1921, “com a
saída de 5.642 adultos, além de 479 crianças” (Carreira, 1983, p. 226).
Quadro 18 – Emigração forçada: número de emigrantes e relação com a população – 1910/1929
Anos
1910/19
1920/29
Total
Valor de cada decénio
Média anual
População recenseada
10.176
6.798
16.974
1.018
680
151.180
152.970
(Fonte: Carreira, 1983, p. 246)
62
Considerámos as crianças com menos de 15 anos.
Jerónimo Paiva de Carvalho foi curador dos Serviçais na ilha do Príncipe, em inícios do século XX e autor do
opúsculo Alma negra! Depoimento sobre a questão dos serviçais de S. Tomé (1912). (Carreira, 1983, p. 178)
64
Estes valores devem estar subestimados, devido “à inexistência de estatísticas da emigração forçada, a partir
de 1923 e até 1940” (Carreira, 1983, p. 227).
63
54
Uma sociedade (in) conformada
Mas porque ides, assim arrebanhada,
A essa maldita terra de desterro?
É a fome que vos leva acorrentada?
Aproveitai melhor a mocidade
E ide mais distante, ide à América
A terra do trabalho e liberdade!
(Eugénio Tavares)
O poeta, também emigrante65, questiona o êxodo para a “terra de desterro”,
contrapondo a emigração para “a terra do trabalho e da liberdade” (Lobo, 1996, p.
38).
Segundo o historiador António Carreira, a primeira corrente migratória caboverdiana data do final do século XVII ou dos primeiros anos do XVIII e foi
orientada para a América do Norte (1983, p. 85). O destino preferido foi a América,
com um peso de 75,6% em relação ao total dos territórios que recebiam a emigração
livre.
Quadro 19 – Emigração livre: número de emigrantes, segundo os territórios de destino – 1911/1920
Países ou territórios de destino
Ano
Estados
Unidos
1911
1912
1913
1914
1915
1916
1917
1918
1919
1920
Total
1.474
1.128
1.691
1.610
784
1.829
1.508
323
491
1.506
12.344
Brasil,
Argentina,
Uruguai,
Chile
186
333
302
134
32
32
52
22
144
298
1.535
Guiné
Angola,
Moçamb.
S. Tomé e
Príncipe
Dacar
Gambia
Lisboa,
Açores,
Madeira
Outros
países
Total
174
26
6
1
97
125
60
84
144
519
1.236
30
15
10
90
10
26
7
8
2
4
202
18
18
23
369
29
39
15
30
25
16
582
65
61
173
76
82
94
41
13
17
115
737
58
18
18
25
124
60
48
48
65
18
482
9
39
48
32
5
16
5
154
2.014
1.599
2.262
2.353
1.190
2.210
1.747
528
893
2.476
16.330
(Carreira, 1983, p. 110)
A emigração espontânea foi a alternativa para uma vida melhor. Contra a opinião
dos que advogavam a “teoria da fixação do povo cabo-verdiano no seu seio” 66 e,
65
Eugénio Tavares foi injustamente acusado de alcance, pelo que teve de fugir para a América do Norte, para
não ser preso. Em seu entender, não fugiu mas sim retirou-se. Porque – diz ele – “fugir é cobardia; retirar pode
ser, ainda, um ponto de táctica” (Monteiro, 1999, p. 19).
55
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
ante a perspectiva da diminuição do fluxo migratório devido à proibição da entrada
de analfabetos67 nos Estados Unidos, Eugénio Tavares enaltece as virtualidades da
emigração para o Mundo Novo:
“1.º Que o cabo-verdiano não vai à América apenas à cata de alimento.
2.º Que o cabo-verdiano, quando regressa, (pois que sempre regressa quem como ele
ama a família e a terra em que nasceu) traz, não só “dollars”, senão luzes; e, apresenta,
não só um exterior de civilizado, mas uma noção social por vezes mais justa que
aquela que de outra parte lhe seria impossível trazer.
3.º Que o cabo-verdiano, na América, modifica o seu modo de ser moral, erguendo-se
de um absoluto anonimato social, a consciente elemento de progresso.
4.º Que, açacalado no contacto do grande povo americano aprende a encarar a vida por
um prisma mais elevado; cria necessidades que lhe educam a vontade em lutas mais
nobres; integra-se na civilização, já se não adaptando dentro da exigência da cubata e
da cachupa; já dificilmente suportando as exigências de um trabalho humilhante e mal
remunerado, facto que já por mais de uma vez o contra-indicou, para as encomendas
de forças físicas periodicamente facturadas para S. Tomé e Príncipe.
5.º Que, finalmente, o cabo-verdiano pertence, como todos nós sabemos, a esse
número de homens cuja aspirações se não limitam à actividade mandibular.” (in
Monteiro, 1999, pp. 229-230)
“Proibir a emigração para os Estados Unidos é dirigirmo-nos ao povo cabo-verdiano, e
dizer-lhe:
Amigo tira os sapatos; despe o casaco; pega numa enxada e salta para os morgadios de
Santiago, do Fogo, de Santo Antão, onde há faltas de braços. Foste até aqui, o livre
trabalhador da América; de agora passas a ser uma espécie de contratado de S. Tomé.
Até hoje comeste à tua mesa, em pratos e com talheres, o pão que o suor do teu rosto
livremente fecundou e amadureceu; de hoje em diante irás comer, em gamelas de pau,
o pão da escravidão que o diabo amassa – dessa escravidão encamisada de liberdade,
que é um insulto à dignidade humana.” (Carta de 10 Junho 1918. In Monteiro, 1999, p.
230)
As medidas restritivas da emigração para a América provocaram o aumento das
saídas clandestinas. O ofício de 27 de Janeiro de 1916 refere que “a maior parte dos
portugueses que se apresentam a pedir socorros nos consulados de Portugal no
estrangeiro [são] indivíduos que nas colónias embarcam clandestinamente,
protegidos pelos capitães de navios” (Boletim Oficial, n.º 8, 19 de Fevereiro de
1916).
66
Opinião defendida por D. Alexandre d’ Almeida (Carta de Eugénio Tavares, 10 Junho 1918). (Monteiro,
1999, pp. 228-239)
67
Consultar II Parte, Capítulo 1 (págs. 63 a 65).
56
Uma sociedade (in) conformada
O bloqueio dos Estados Unidos da América à emigração de analfabetos
evidenciou, a par da correlação seca-fome-emigração, o binómio ensino-emigração.
A América era a terra das oportunidades, a alternativa para uma vida livre e culta:
“¿Porque não ha de ser grande a América, se ela é o tabernáculo da Luz, o sacrário da
Instrução e o santuário das liberdades individuais e colectivas? ¿Porque não estará ela
enfileirada na grande Photodotera do Progresso, se no cumprimento do mais solemne
dever coopera na colmeia das letras?” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 95, 18 de
Fevereiro de 1915, p. 3)
“Esta evidente ancia de se instruir, da raça preta na província, é concordante com o
brilhante fenómeno observado na América do Norte e mostra a alta consciência que
tem essa raça vilipendiada e desprezada, de que só na instrução poderá encontrar
meios para se dignificar e para se elevar na civilisação, ao lugar que ocupa a raça
branca! Só assim poderá combater o nefasto preconceito de raças, que mesmo entre
nós faz dizer a um ministro, que não promoveu um empregado, honesto, inteligente e
competente, por ser preto.” (O Progresso, n.º 26, 26 de Dezembro de 1912, p.1)
O historiador António Carreira defendeu a tese que “a ideia de emigrar
sedimentou-se no espírito dos insulares, designadamente pela tomada de
consciência da curteza de horizontes que a classe dominante procurava manter” e
colocou a hipótese de que “quando o preto e o mulato (em regra «filho de fora») se
lançou na senda da emigração para países desenvolvidos, talvez tivessem no
subconsciente a ideia de amealhar o suficiente, para, no retorno, se imporem à
classe dominante, e vingarem-se da «guerra» implacável que esta lhe moveu
sempre” (1983, p. 112).
Ensino e desenvolvimento
“A primeira necessidade em Cabo Verde para, fazendo resistencia ao actual estado das
cousas, poder desenvolver-se e progredir, é crear escolas muitas e muitas escolas bem
organisadas, com bons mestres, que ensinem instrucção primaria e um pouco de
secundaria, afim de que o homem fique habilitado a lêr e a comprehender. (...)
Supprimir a ignorancia, ou senão refreal-a é a estrada real que conduz a um futuro
próspero e risonho.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 1, 1 de Março de 1911, p. 2)
“Se, pois, n’este paiz se estuda, se os costumes são honestos, o homem torna-se
estudioso e morigerado; no caso contrario o homem segue o vicio e entrava a roda do
progresso.” (Idem, n.º 4, 22 de Março de 1911, p. 1)
57
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A interdição da entrada de analfabetos nos Estados Unidos da América foi
pretexto e ocasião para campanhas de promoção do ensino e de combate ao
analfabetismo. O inconformismo face às fatalidades e a intelecção do ensino como
factor de desenvolvimento marcou o discurso jornalístico.
José Lopes media “o grau de civilização de um povo, pelo número e estado das
suas escolas, pela capacidade moral e intelectual de seus professores e pelo valor
pedagógico dos livros didácticos” (A Voz de Cabo Verde, n.º 103, 4 de Agosto de
1913, p. 2).
“Fechar uma escola equivale a inaugurar uma prisão.
De todas as causas que tem patrocinado o homem, nenhuma ha mais sublime, que mais
dignifique, consolide e edifique do que a da Instrução. Nobilissima causa a da
Instrução! Quando vemos povos como os nipónicos, na máxima energia da sua
vitalidade, subirem numa vertigem ciclópica ao apogeu da glória, colocaram na
vanguarda da civilização, não podemos deixar de considerar que a escola, um germen
nos trâmites da evolução para a glória, é um dos coeficientes mais poderosos que
contribuem para enaltecer um povo e levantar uma nação a um nível de grandeza,
moralidade cívica e prestigio universal.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 95, 18 de
Fevereiro de 1915, p. 3)
Nota final
Ao fecharmos o capítulo Uma sociedade (in)conformada, retomamos o
encadeamento dos conceitos ensino – educação – progresso – civilização –
desenvolvimento, núcleo duro e denominador comum dos registos discursivos e
simbólicos.
Ao determinismo e à adversidade – fatalismo da natureza e da condição de
cidadão colonizado (e mal governado) – opunha-se o querer sair e voltar (ciclo
migratório) e a crença na capacidade do ensino gerar progresso social. A imagem da
escola, reflectida pelo “espelho dos colonizadores” (Nóvoa, 2000, p. 132), era a
suma aspiração da sociedade das ilhas.
A consciência do atraso civilizacional da colónia e do mundo que o português
criou68, gerou atitudes críticas ao referente educativo e cultural (oriundo da
metrópole), porventura caldeadas com o conhecimento de outros modelos, que a
abertura ao Mundo Novo proporcionou (pela emigração e evasão).
68
Expressão de Gilberto Freire.
58
II Parte
A construção do
discurso educativo
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
1.
Escolarização e analfabetismo
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
O ensino e a alfabetização, como condições de progresso social, integraram o
ideário cabo-verdiano, no primeiro quartel do século XX. Estas aspirações
encontraram eco no ambiente gerado pela implantação da República, que “trazia, na
sua bagagem revolucionária, o decidido projecto de reformar a mentalidade
portuguesa, propondo-se executá-lo por diversas vias e, em situação de realce, pela
via da instrução e da educação” (Carvalho, 2001, p. 651).
Importa, ab initio, precisar as noções de analfabetismo e iletrismo. Justino de
Magalhães, na obra Alquimias da escrita: alfabetização, história, desenvolvimento
no mundo ocidental do Antigo Regime, estabelece a distinção entre os conceitos:
“Analfabetismo e iletrismo constituem duas situações geradas num mesmo fenómeno
de incapacidade de utilização da cultura escrita, mas têm origens diferentes e a
resposta pedagógica também não é necessariamente a mesma. As situações de
iletrismo não traduzem uma ausência de escola, mas uma regressão nas capacidades
literácitas, originada, ou por uma desadequação da cultura escolar, ou por uma
insuficiente assimilação da mesma.
É em função da escolarização como processo histórico e pedagógico de ensinoaprendizagem que tende a definir-se e avaliar-se o conceito de alfabetismo e que tem
sido escrita a história da alfabetização. (...)
Há diferenças fundamentais entre os processos de alfabetização e a escolarização, quer
no nível do ensino/aprendizagem, quer no nível do funcionamento dos próprios
estímulos.” (1996, pp. 10/14-15)
Com a necessária cautela, para não transgredir o rigor conceptual, seleccionámos
um conjunto de opiniões sobre os caminhos da escolarização e da alfabetização em
Cabo Verde. A documentação consultada contém frequentes referências ao estigma
do analfabetismo e aos anseios de escolarização de crianças, jovens e adultos.
“Sim; não basta criar escolas; é preciso tornar efectiva a obrigação de as frequentar.
Essa obrigação tem, a nosso ver, dois fins: o de diminuir, quanto possivel, o numero de
analfabetos e o de habituar o futuro homem a ter umas tantas horas por dia, de
aplicação a algum trabalho util.
Costumamos, ver por aí, garotando em horas escolares, dezenas de rapazes, sem que
isso preocupe os pais, as autoridades, e os proprios professores com relação áqueles
rapazes que não estão matriculados.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 36, 26 de Abril de
1912, p. 2)
61
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A alfabetização era percepcionada como fenómeno comunicacional e
instrumento de desenvolvimento e de libertação.
“Sem instrução não há progresso nem civilisação. Os povos analfabetos são presa facil
de toda a especie de exploradores e de todas as superstições e preconceitos! Não
vivem, vegetam! Os seus indivíduos não são unidades de riqueza, mas sim de miséria,
pois não compreendem os seus justos interesses, são faltos de iniciativa, de
previdência dignidade! Os povos analfabetos são escravos.
A província de Cabo Verde ainda sob êste ponto de vista é pobre, porque a deficiência
da sua instrução é grande, os meios para a conquistar precários e mal organizados. Não
porque aos seus habitantes mingúe vontade de saber e de se elevarem, mas porque lhes
escasseiam os meios para a alcançar e ser um povo instruído.” (O Progresso, n.º 26, 26
de Dezembro de 1912, p. 1)
O estudo aprofundado do analfabetismo, em Cabo Verde, coloca questões que
ultrapassam o âmbito deste estudo: Qual a qualidade das práticas da leitura e da
escrita? Houve analfabetismo letrado?
Na coluna intitulada “A vol d’ oiseau” (A Voz de Cabo Verde), o advogado Loff
de Vasconcellos aborda esta problemática:
“Preconizar a instrução e a educação de um pôvo é já um lugar comum tão indigesto,
que nos abstemos de o fazer; mas o que é certo é que toda a gente fala da necessidade
desse pão espiritual, e cada vez mais essa necessidade vai aumentando na classe dos
analfabetos letrados, essa praga que tudo corroe numa sociedade, onde poucos sabem
lêr bem e tombent dans le pédantesque.
O analfabetismo iletrado é um mal – sem dúvida; mas que tem uma correcção natural
no bom senso intuitivo do pôvo, no seu critério simplista, na sua experiência atávica,
adquiridos e robustecidos pelo trabalho duro, pelas sábias lições da Natureza, esse
grande pedagôgo que, sem compêndios, sem estéreis prelecções, é e será sempre a
grande mestra da vida.” (N.º 354, 8 de Julho de 1918, p. 1)
A dimensão informal, à margem da cultura escolar institucional, pode ser
percebida em retratos do quotidiano captados pela imprensa: “É frequente observarse nas povoações numerosas crianças sentadas na rua, a quem professores
improvisados ensinam o que sabem” (O Progresso, n.º 26, 26 de Dezembro de
1912, p. 1).
Na I Parte (Capítulo 3) defendemos a premissa que a emigração e a alfabetização
foram realidades convergentes, com um vértice comum – o progresso social. O
domínio da escrita tornou-se “factor de auto controlo económico e jurídicoadministrativo, associado a uma complexificação económica e a uma maior
diversificação e especialização das forças produtivas” (Magalhães, 2001, p. 161).
62
A construção do discurso educativo
A conotação da ausência de cultura escrita com níveis socioprofissionais
desprestigiantes assoma no texto jornalístico: “O filho de Cabo Verde, que vai para
a América, destina-se ali a trabalhos braçais. Geralmente, emigra analfabeto, o que
o inibe de exercer outros mistéres numa terra onde todas as aptidões são
aproveitadas e largamente remuneradas” (A Voz de Cabo Verde, n.º 49, 22 de Julho
de 1912, p. 1).
Contrastando com o estádio de desenvolvimento limitado dos estados periféricos
– agravado em contextos de subjugação colonial –, o desenvolvimento tecnológico
dos Estados Unidos da América não era compatível com a força de trabalho
iletrada.
“O problema do analfabetismo é também um problema económico e disso tiveram
durissima demonstração os caboverdianos, para quem a emigração para os Estados
Unidos constitui uma fonte de riqueza e um meio de civilização: nos Estados Unidos
vai ser proibida por lei a entrada de emigrantes que não mostrem falar e escrever a sua
lingua.
Esta proibição equivale a estancar quasi completamente a emigração para os Estados
Unidos, porque a grande maioria da população deste Arquipelago é constituida por
analfabetos: segundo a estatistica oficial de 1911 publicada em 1912 no Boletim da
Província, a percentagem dos analfabetos atinge na quasi totalidade das freguezias
mais de 85%, chega a atingir 95% em algumas!
Urge provêr de remedio este gravissimo mal que, de mãos dadas com a fome, assola o
arquipelago de Cabo Verde.” (Revista da Educação, n.º 2, Julho de 1913, p. 140)
Nesta conjuntura, a Sociedade de Estudos Pedagógicos propôs ao Governo da
República69 “o desenvolvimento das escolas oficiais existentes, a criação de outras
nos locais mais afastados, a criação de escolas móveis e o recurso ao ensino
particular, estimulando-o com prémios pecuniários” (idem, p. 142).
A reacção do professor Augusto Miranda às limitações impostas à emigração
para os Estados Unidos da América foi contundente: “Alta administração,
iniciativas sensatas, economias necessárias e medidas rasgadas de fomento, eis os
planos a opor ao odioso gesto do Congresso Americano” (O Popular, n.º 14, 15 de
Fevereiro de 1915, p. 2).
69
A representação da Sociedade de Estudos Pedagógicos foi remetida, pelo Ministro das Colónias, ao
Governador da Província de Cabo Verde, com pedido de informação sobre as solicitações apresentadas (Ofício
n.º 261, 29 de Junho de 1913. Cx. 670, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN).
63
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Figura 8. “Se a América do Norte fechar os seus portos aos analfabetos…”
(Excerto do relatório sobre o movimento da Escola Oficial de S. Jorge da ilha do Fogo70)
O jornal oficial pronunciou-se sobre a questão: “Todavia, admitindo-se a
hipótese da possível aprovação do projecto proibindo a entrada de analfabetos dos
Estados Unidos, publica-se esta notícia, como prevenção aos habitantes do
arquipélago de Cabo Verde, que podem num futuro não distante vêr tolhida uma
emigração que até ao presente se lhe tem facilitado e de que tiravam vantagem”
(Boletim Oficial, n.º 15, 10 de Abril de 1915, p. 144).
A administração provincial, em circular às administrações de concelho, anunciou
um projecto de reforma do ensino, que viria “disseminar o mais possível a instrução
na colónia”:
70
Cx.ª 666, Fundo da Secretaria Geral do Governo, 1 de Setembro de 1916, IAHN.
64
A construção do discurso educativo
“Em vista do telegrama publicado neste Boletim, confirmando a noticia de haver sido
vedada a entrada de emigrantes analfabetos, nos Estados Unidos da América do Norte,
em nome de S. Ex.ª o Governador é recomendada às administrações de concelho a
circular publicada no Boletim Oficial n.º 18, de 5 do corrente, em que se exortou os
interessados a que procurem frequentar as escolas primárias, afim do aprenderem a lêr
e escrever.
Com o fim de disseminar o mais possível a instrução primária na colónia, tem o
Govêrno da Província, procurado providenciar, submetendo ao Govêrno da Metrópole,
em 1915, um projecto de reorganisação do ensino primário, que recentemente
renovou, e que tem por fim, não só melhorar as condições de tal serviço, – preparação
e admissão de professores e suas garantias – mas tambêm aumentar o número de
escolas e postos de ensino, estimulando, outro-sim, o leccionamento particular na
província, onde quer que êste seja susceptível de aproveitamento.” (Boletim Oficial,
n.º 21, 26 de Maio de 1917, p. 206)
O estímulo da alfabetização, praxis associada ao fenómeno migratório, era
considerado um desígnio patriótico: “Debaixo do ponto de vista nacional impõe-se
ao govêrno a obrigação de ensinar a ler aos caboverdeanos para evitar a sua
desnacionalização, para se não dar o facto de os vêr ir aprender a ler e escrever na
América o inglês antes de saberem o português” (O Caboverdeano, n.º 11, 23 de
Junho de 1918, p. 2).
Do ponto de vista do “interêsse nativista local”, era uma questão social:
“Não resta dúvida que convêm muito mais à provincia habilitar cada ano uns milhares
de seus filhos para a luta pela vida por êsse mundo fóra, a poderem emigrar e trabalhar
em melhores condições económicas, do que fazer anualmente quatro dezenas de
doutores à custa de quatro milhares de analfabetos. Económica e socialmente valem
mais para Cabo Verde, trazem mais vantagem coletiva material cem emigrantes da
América que dez doutores, e custa menos a ensinar a lêr a cem crianças, isto é, custa
menos sustentar uma escola de instrução primária um ano do que formar um bacharel.
(…)
Estão sem escola 22:785 crianças!
Correm o perigo do analfabetismo, 14:504 raparigas e 8:281 rapazes.
Bom povo de S. Vicente! Se o cónego Teixeira vos não disse isto fez muito mal.
Reparai que estas 22:785 crianças, e mais grande parte, a maior, das 6:564 que não
tiveram aproveitamento nas escolas, são os futuros escravos que o José Costa e outros
inimigos de Cabo Verde vão mandar para S. Tomé a um tanto por cabeça como quem
vende gado!” (O Caboverdeano, nº 11, 23 de Junho de 1918, p. 2)
65
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Frequência escolar assimétrica
A política de alfabetização centrou-se na escola e no modelo pedagógico formal.
Os resultados parcelares do recenseamento escolar71, no concelho da Ribeira
Grande, ilha de Santo Antão (40,3% de crianças não escolarizadas) e na ilha do Sal
(25,7%), dão-nos a dimensão das crianças não escolarizadas.
Quadro 20 – Recenseamento escolar, concelho da Ribeira Grande – 1923/1924
Freguesias
Nª Senhora do Livramento
Nª Senhora do Crucifixo
Santo Crucifixo
São Pedro Apóstolo
Total
Crianças
recenseadas
Masc.
Fem.
80
72
343
79
428
36
68
0
919
187
Crianças que recebem ensinam
Oficial
Particular/doméstico
Masc.
Fem.
Masc.
Fem.
78
72
2
0
223
54
0
0
177
17
0
0
33
0
0
0
511
143
2
Crianças que não
recebem ensino
Masc.
0
120
251
35
Fem.
0
25
19
0
406
44
0
(Boletim Oficial, n.º 45, 11 de Novembro de 1923, p. 359)
Quadro 21 – Recenseamento escolar, ilha do Sal – 1923/1924
Freguesias
Nª Senhora das Dores
Total
Crianças
recenseadas
Masc.
Fem.
63
38
63
38
Crianças que recebem ensinam
Oficial
Particular/doméstico
Masc.
Fem.
Masc.
Fem.
39
26
4
6
39
26
4
6
Crianças que não
recebem ensino
Masc.
20
Fem.
6
20
6
(Boletim Oficial, n.º 46, 17 de Novembro de 1923, p. 365)
A análise dos “Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas”,
apresentados pela Secretaria Geral do Governo da Província, com periodicidade
mensal72, permitiu-nos traçar o perfil da frequência escolar de 1910 a 192073
(Gráfico 1).
71
A Carta Orgânica da Província de Cabo Verde regulamentou o recenseamento escolar, atributo das Juntas
Locais de Instrução, que o realizava em “época prefixa” (art. 265º do Decreto n.º 3.108-B, Supl. nº 9 ao Boletim
Oficial n.º 25, 25 de Junho de 1917, p. 27). O recenseamento era organizado por uma comissão constituída, sob
a presidência dos administradores dos concelhos e seus delegados locais, pelas Juntas Locais de Instrução, por
professoras e professores, oficiais do Registo Civil e pelos párocos. (Boletim Oficial n.º 28, 13 de Julho de
1918, p. 249).
72
Consultámos a série publicada nos Boletins Oficiais, de 15 de Dezembro de 1910 (referentes a Outubro de
1910) a 31 de Março de 1917 (referentes a Janeiro de 1917).
73
Não tivemos acesso a dados estatísticos consistentes para o período de 1921 a 1926.
66
A construção do discurso educativo
Em conformidade com as informações estatísticas, condensadas em instrumentos
de quantificação, registou-se uma evolução positiva das crianças escolarizadas, com
uma quebra nos anos de 1914 a 1916, que poderá estar relacionada com a situação
económica gerada pela 1ª Guerra Mundial.
Gráfico 1 – Frequência escolar: número de alunos no ensino primário – 1910/ 1920
nº d e matrículas
8 .0 0 0
7.50 0
7.0 0 0
6 .50 0
6 .0 0 0
5.50 0
5.0 0 0
ano lectivo
Os indicadores de frequência escolar feminina indiciam uma cultura de género
discriminatória (Quadro 22 e Gráfico 2). Porém, enquanto que a taxa de variação da
frequência escolar (ambos os sexos) foi de 4,1%, o mesmo índice para o sexo
feminino elevou-se a 6,2%. Estes valores sugerem uma tendência para a atenuação
das diferenças de género.
Quadro 22 – Frequência escolar: taxas de crescimento das matrículas, total e femininas – 1911/192074
Anos lectvos
Taxa de crescimento das matrículas
1911-12
1912-13
1913-14
1914-15
1915-16
1916-17
1917-1920
2,1%
8,3%
20,0%
- 6,4%
- 3,9%
5,6%
9,9%
Taxa de crescimento das matrículas de
alunas
2,1%
8,8%
21,8%
- 6,9%
10,2%
- 0,2%
37,5%
(“Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde75)
74
Alunos matriculados na instrução primária: 1910-11(Total mat.: 5.548; Alunas: 18,7%); 1911-12 (Total mat.:
5.670; Alunas: 22,1%); 1912-13 (Total mat.: 6.144; Alunas: 22,2%); 1913-14 (Total mat.: 7.390; Alunas:
22,5%); 1914-15 (Total mat.: 6.911; Alunas: 22,4%); 1915-16 (Total mat.: 6.630; Alunas: 25,7%); 1916-17
(Total mat.: 7.002; Alunas: 24,3%) e 1920 (Total mat.: 7.701; Alunas: 30,3%). (“Mapas de movimento e
frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde)
67
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Gráfico 2 – Evolução das matrículas de alunos e alunas – 1911/1919
Nº de matrículas
85
75
65
55
45
35
25
15
% matrículas raparigas
% matrículas rapazes
% evolução frequência
feminina
1911-12
1913-14
1915-16
1918-1919
Anos lectivos
O professor José Lopes denunciou a discriminação da mulher no acesso a
oportunidades educativas:
“Se a educação da mulher portugueza, no geral, tem sido quasi totalmente esquecida, a
da caboverdeana, em particular, está por completo desprezada.
São em limitadissimo numero as escolas proprias do sexo feminino existentes na
Provincia e, as poucas que há, são todas primarias. Recebem, por conseguinte, uma
insignificantissima parte da população feminina. A grande maioria não participa do
beneficio que o Estado aliás deve a todos, beneficio que só se pode generalizar pela
creação de muitas mais escolas, ainda que não passem de femininas. A educação que
as caboverdeanas recebem é, quasi totalmente domestica e restricta aos costumes; mas
a instrução, essa rudimentar instrução que tão escassamente se lhes proporciona, só a
compartilham filhas de paes abastados e de medianos haveres ou de gente pobre a
quem succeda residir nas proximidades das escolas. (...)
Como salvar a mulher caboverdeana, “a do povo, [que] não sabe lêr, nem escrever,
nem contar e [a quem] esta dupla miseria intellectual e moral augmenta muito as
desgraças da sua classe?
75
Os dados referentes ao período de 1910 a 1917 foram extraídos dos “Mapas de movimento e frequência dos
alunos e alunas”, publicados nos Boletins Oficiais: n.º 45, 28 de Outubro de 1911, p. 390; n.º 42, 12 de Outubro
de 1912, p. 232; n.º 39, 27 de Setembro de 1913, p. 345; n.º 51,19 de Dezembro de 1914, p. 467; n.º 52, 25 de
Dezembro de 1915, p. 24; n.º 44, 28 de Outubro de 1916, p. 363 e n.º 13, 31 de Março de 1916, p. 131. Os
dados referentes a 1920 foram colectados na publicação Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1923),
pp. 116-117.
68
A construção do discurso educativo
Por toda a parte, em nossas ilhas, abundam infelizes mulheres que parece terem sido
chamadas a desempenhar uma função única, a degradante e triste função de satisfazer
os appetites de lascivia, das grandes victimas da prostituição, nas quaes a maternidade,
que sempre devia dignificar a mulher, é um crime, aliás imputável à sociedade.” (O
Independente, n.º 6, 30 de Março de 1912, p. 3)
Às assimetrias de género juntavam-se as diferenças sociais: “as filhas de paes
abastados e de medianos haveres”, com escassa instrução e a “mulher do povo, que
não sabe lêr”, associada à “triste função de satisfazer os appetites de lascivia”.
A cartografia da escolarização revela profundas desigualdades, com incidência
particular na escolarização feminina.
Quadro 23 – Número de alunos do ensino primário e percentagem de alunas matriculadas – 1911/1920
Concelhos
Ilhas
Praia, ilha de Santiago
Ilha do Maio
Santa Catarina, ilha Santiago
Tarrafal, ilha de Santiago
Ilha do Fogo
Mosteiros,76 ilha do Fogo
1911-12
1913-14
1915-16
1920
Total
Alunas
Total
Alunas
Total
Alunas
Total
Alunas
831
22,4%
1.224
19,4%
1.146
28,1%
1.166
26,1%
0
0,0%
0
0,0%
0
0,0%
100
22,0%
728
7,8%
992
6,8%
802
11,7%
473
26,2%
0
0,0%
0
0,0%
0
0,0%
427
3,9%
304
21,1%
544
20,4%
598
16,9%
415
16,6%
0
0,0%
0
0,0%
0
0,0%
187
0,0%
542
42,1%
554
44,4%
570
35,1%
587
50,8%
742
34, 6%
1.079
39,5%
975
41,1%
750
46,0%
1.509
13,5%
1.819
15,9%
1.522
20,8%
1.578
24,5%
0
0,0%
0
0,0%
0
0,0%
841
39,7%
Ilha de São Nicolau
743
24,4%
754
21,6%
684
24,7%
825
36,0%
Ilha da Boavista
212
25,9%
299
32,1%
281
27,8%
297
15,8%
Ilha do Sal
59
35,6%
66
37,9%
52
42,3%
55
43,6%
Ilha Brava
Ilha de São Vicente
Ilha de Santo Antão
77
Paul, ilha de Santo Antão
(Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde78)
76
A região de Mosteiros integrava o concelho do Fogo. Com a divisão administrativa de 1917, surge o concelho
irregular dos Mosteiros, abrangendo a freguesia de N.ª Sra. da Ajuda.
77
Após a divisão administrativa de 1917, o concelho de Santo Antão passou a designar-se concelho regular da
Ribeira Grande e surge um novo concelho: Paúl, que abrange as freguesias de Santo António das Pombas e de
S. João Baptista.
78
Os dados referentes ao período de 1910 a 1917 foram extraídos dos “Mapas de movimento e frequência dos
alunos e alunas”, publicados nos Boletins Oficiais: n.º 45, 28 de Outubro de 1911, p. 390; n.º 42, 12 de Outubro
de 1912, p. 232; n.º 39, 27 de Setembro de 1913, p. 345; n.º 51,19 de Dezembro de 1914, p. 467; n.º 52, 25 de
Dezembro de 1915, p. 24; n.º 44, 28 de Outubro de 1916, p. 363 e n.º 13, 31 de Março de 1916, p. 131. Os
69
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A ilha de Santiago apresenta clivagens entre a cidade e o meio rural: na Praia, a
taxa de frequência escolar feminina (1920) atingiu o percentual de 26,1, enquanto
que no Tarrafal, no mesmo ano, era de 3,9%. Contrariando a tendência geral, na ilha
do Fogo, a escolarização feminina regrediu ao longo do tempo (variação de menos
3,5%) e nos Mosteiros (1920), a frequência escolar era exclusivamente masculina.
A ilha Brava apresenta os melhores indicadores de escolarização feminina (1912:
42,1%), atingindo a equidade em 1920. Em Mindelo, as diferenças de género
foram-se atenuando (1920: 46% de meninas na escola). Registou-se uma evolução
positiva, em Santo Antão (no fim da década: 24,5%). Na ilha de S. Nicolau, após
uma redução inicial, o número de alunas cresceu (1920: 36%). Pelo contrário, na
ilha da Boavista a taxa de escolarização feminina diminuiu, a partir de 1913/14
(1920: 15,8%). Na ilha do Sal, com uma população escolar diminuta, as
desigualdades eram menos notórias (média, 39,9%).
As marcas discriminatórias não se esgotavam nas diferenças de condição social e
de sexo. A sociedade cabo-verdiana foi estigmatizada por heterogeneidades
fundamentadas em critérios étnicos:
“A província de Cabo Verde, pelo último recenseamento conta 143:257 habitantes –
desses são de cor 138:511 – brancos 4:736. Quer dizer que a raça branca representa a
trigésima parte da população. Póde pois dizer-se que a estatística incide, na sua quási
totalidade, sôbre a raça preta.
Boas ou más, as conclusões pertencem-lhe.” (O Progresso, n.º 26, 26 de Dezembro de
1912, p. 1)
Os censos e as estatísticas escolares consolidaram os níveis hierarquizados da
população, organizando-a em três grupos: raça branca, raça mista e raça preta79. A
classificação “era feita a olho, pelo que indivíduos mestiços com aparência de
brancos ou de negros podiam ou não ser classificados como mestiços, sendo
incluídos em qualquer dos outros dois grupos em caso negativo” (Oliveira, 1998, p.
392).
dados referentes a 1920 foram colectados na publicação Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1923),
pp. 116-117.
79
A classificação dependia assim da variação dos critérios utilizados e da experiência do «classificador». Isto
explica (para além das fomes é claro) as variações incongruentes do número de homens brancos, negros e
mestiços nas estatísticas. Certo mesmo é a progressiva diminuição dos brancos e “quase brancos” e o aumento,
tanto numérico como percentual, do grupo mestiço. (Oliveira, 1998, p. 392)
70
A construção do discurso educativo
Gráfico 3 – Repartição dos alunos, segundo a origem étnica – 1911/1920
Preta
Branca
Mista
No arco temporal do presente estudo, 64,6% das crianças escolarizadas era
classificada de “raça mista”, 8,3 % de “raça preta” e 27,1% de “raça branca”80.
De acordo com a distribuição regional dos efectivos escolares, segundo a origem
étnica, a maioria dos alunos de “origem europeia” concentrava-se na ilha Brava,
representando quase um quarto da população escolar (22,7%)81. Em situação
antagónica, as ilhas do Maio e de Santo Antão, sem registos de alunos brancos
(1920).
80
Alunos da instrução pública, por origem étnica: 1910-11(Total mat.: 5.548; RB: 8,4%, RM: 67,9%, RP:
23,6%); 1911-12 (Total mat.: 5.670; RB: 9,7%, RM: 61,8%, RP: 28,5%); 1912-13 (Total mat.: 6.134; RB:
7,7%, RM: 60%, RP:32,3%); 1913-14 (Total mat.: 7.390; RB: 6,3%, RM: 62,7%, RP: 31%); 1914-15 (Total
mat.: 6.911; RB: 6,1%, RM: 66,9%, RP: 27%); 1915-16 (Total mat.: 6.630; RB: 6,9%, RM: 60,9%, RP: 32,2%);
1920 (Total mat.: 7.591; RB: 4,5%, RM: 71,6%, RP: 23,9%). (“Mapas de movimento e frequência dos alunos e
alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde)
81
Alunos de raça branca, ilha Brava: 1911/12, 25,8%; 1913/14, 21,6%; 1915/16, 18,1%; 1920, 25,4%.
71
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Quadro 24 – Número de alunos matriculados, segundo a raça – 1911/1920
1912 - 1912
1913 - 1914
1915 - 1916
1920
Concelho
Ilha
Praia
Maio
Santa
Catarina
Tarrafal
Fogo
Mosteiros
Brava
S.Vicente
S. Antão
Paúl
Total
Branca
Mista
Preta
Total
Branca
Mista
Preta
Total
Branca
Mista
Preta
831
79
423
329
1.224
97
556
571
1.156
101
407
648
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
728
18
276
434
992
25
199
768
802
17
173
612
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
304
30
206
68
544
17
341
186
598
28
344
226
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
542
140
379
23
588
128
421
39
570
103
444
23
742
67
530
145
1104
74
870
160
975
86
717
172
1.509
177
989
343
1.819
90
1.508
221
1.522
106
1.185
231
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
Total
Branca
Mista
Preta
1.079
80
375
624
100
0
63
37
396
28
130
238
427
6
51
370
413
11
314
90
187
4
174
9
587
149
380
58
750
63
604
83
568
0
568
0
841
5
833
3
743
13
626
104
754
9
617
128
684
7
677
0
825
2
797
26
Boavista
212
15
45
152
299
12
86
201
281
8
70
203
214
3
81
130
Sal
59
10
28
21
66
10
35
21
52
3
24
25
55
3
40
12
S Nicolau
(Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde)
Apesar da legislação educacional consultada não ter consagrado o princípio da
obrigatoriedade escolar, a sociedade defendia a criação de medidas de estímulo à
escolarização das crianças. Leia-se o artigo “Instrução pública em Cabo Verde”
escrito pelo Engenheiro Armando Xavier da Fonseca82:
“O Estado, desde que se sacrifica a abrir escolas, para difundir a instrução, tem de
fazer exigências: quanto a nós, no que diz respeito à instrução, como em muita coisa
mais, não se pode ir com meias dóses de exigência; assim, onde existirem escolas que
já comportam a população escolar, deve-se tornar obrigatória a frequência de todas as
crianças dos 5 aos 10 anos, sob a pena de multa, em dinheiro ou trabalho, aplicado aos
pais, tutores ou curadores que não mandem os filhos à escola.” (O Futuro de Cabo
Verde n.º 63, 9 de Junho de 1914, p. 2).
O professor José da Fonseca Laje, colaborador assíduo de O Futuro de Cabo
Verde, após traçar o quadro ideal da missão do professorado, interrogava:
“¿Mas isto [os melhores e mais racionais métodos de ensino e os mais sabedores
professores] obtem-se em Cabo Verde sem que ponham em rigorosa execução a lei do
ensino obrigatório? Forte e cego engano!...
82
Armando Xavier da Fonseca (sécs. XIX-XX), engenheiro civil e de minas, colaborou no jornal A Voz de
Cabo Verde. Alvo de troça de Eugénio Tavares, tornou-se seu inimigo e fez uma campanha contra o poeta no
jornal O Futuro de Cabo Verde, de que era colaborador assíduo. Fonte: Oliveira, 1998, p. 773.
72
A construção do discurso educativo
Se o aluno não quer frequêntar a escola, a família, que bem reconhece que nenhuma
responsabilidade tem nesse arbítrio, não se opõe, e o menino vai, se quer, mas se não
quer ninguém o obriga. (...)
Aqui nota-se a omissão do Govêrno descurar a lei do ensino obrigatório e o
desinterêsse das sociedades e dos particulares: Clamam pela instrução, mas ficam
calados e sem instrução!” (N.º118, 29 de Julho de 1915, p. 3)
No ano seguinte, o professor José Maria Cabral de Azevedo apresentou uma
série de questões sobre o abandono escolar:
“Há alguns anos a esta parte que os habitantes daquela ribeira [Praia Branca, ilha de
São Nicolau] precipitaram-se numa tam degradante como abominavel inércia, que do
mês de Abril em diante não mandam os seus filhos para a escola, e os poucos que
mandam o fazem tardiamente e com tal frieza e indiferentismo que nem fornecem aos
filhos os utensílios indispensáveis e exigidos pelo professor; e se ele lhes pedir com
instancia, o descompôem confiados em que as autoridades não dão previdências.
Pergunto: ¿Porque é que o administrador do concelho não vai ali advertir e conduzir
aquela gente à ordem? (...)
O contribuinte, que se omite no pagamento da contribuição, é logo, com meios
coercivos, executado e muitas vezes confiscado.
¿E o aluno matriculado que, espontaneamente, ou com a permissão do pai, filho da sua
ignorancia, deixa de comparecer à escola ou se comparece, não se encontra munido de
livros e utensílios, o que se justifica ser causado pelo desmazelo repreensível do pai,
não é logo chamado e repreendido com advertencia, todavia sem se afastar da sã moral
que é a doutrina de bons costumes e que deve ter por princípio a bondade, e não deixar
ao talento dos ignorantes e desculpaveis pais e filhos o procederem como
entenderem?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 258, 28 de Agosto de 1916, p. 3)
Quadro 25 – Matrículas no ensino primário e percentagem de alunos com frequência irregular – 1911/1917
Anos lectivos
N.º total matrículas
1910-11
5.548
Percentagem de alunos com
frequência irregular
50,6%
1911-12
5.670
41,6%
1912-13
6.134
26,5%
1913-14
7.390
41,4%
1914-15
6.911
41,6%
1915-16
6.630
52,3%
1916-17
7.002
33,7%
(Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas” e Estatística Geral da Província de Cabo Verde83)
83
Os dados foram extraídos dos “Mapas de movimento e frequência dos alunos e alunas”, Secretaria-geral do
Governo, publicadas nos seguintes Boletins Oficiais: N.º 45, 28 Outubro 1911, p. 390; n.º 42, 12 de Outubro
1912, p. 232; n.º 39, 27 Setembro 1913, p.345; n.º 51, 19 Dezembro 1914, p. 467; n.º 52, 25 Dezembro 1915, p.
24; n.º 44, 28 Outubro 1916, p. 363; n.º 13, 31 de Março 1916, p. 131.
73
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Os indicadores de absentismo, em decréscimo no primeiro triénio, aumentaram
até 1915/16, atenuando-se nos anos seguintes. A frequência irregular é sintoma de
elevadas taxas de abandono escolar.
Gráfico 4 – Frequência escolar regular e irregular – 1910/1917
% alunos com frequência irregular
% alunos com frequência regular
nº de matrículas
70
60
50
40
30
20
1910-11
1911-12
1912-13
1913-14
1914-15
1915-16
1916-17
Ano lectivo
Quadro 26 – Distribuição dos alunos com frequência irregular ao longo do ano – 1911/191684
Meses
Outubro
Novembro
Dezembro
Janeiro
Fevereiro
Março
Abril
Maio
Junho
Julho
1911-12
26,2%
27,2%
28,7%
28,7%
41,5%
29,6%
30,4% 32,8%
36,9%
41,6%
1913-14
22,0%
25,5%
25,1%
27,6%
28,9%
30,6%
32,0% 32,8%
38,2%
41,3%
1915-16
20,1%
24,3%
25,8%
29,4%
30,9%
37,7%
37,4% 40,1%
45,8%
52,3%
Anos
As faltas às aulas acentuavam-se a partir do mês de Abril e culminavam no fim
do ano lectivo. Este comportamento poderá ser associado ao deficiente
aproveitamento e às características da rede escolar:
“As escholas de 1º
mantem frequencia
alumnos promptos
evidentemente, em
84
Ver nota anterior.
74
grau, com 60 alumnos, dos quaes em muito casos só metade
regular, chegando ao fim do anno lectivo com menos de 10
para exame e o resto com fracas noções do programma,
muitos logares não dão muito melhores resultados; e, se
A construção do discurso educativo
examinarmos o que produzem outras escholas, em que a frequencia é ainda reduzida
por difficuldades de viação, por grande dispersão de casaes, etc., facilmente se conclue
que um certo numero das escholas ruraes existentes na provincia poderiam, sem
desvantagem, ser supprimidos, substituindo-se-lhes a instrucção rudimentar livre,
subsidiada pelo processo preconizado na citada portaria provincial de 1889 (premios
de leccionadores que apresentassem creanças por elle ensinadas – tudo authenticado
segundo o regulamento).” (Boletim Oficial, n.º 23, 10 de Junho de 1911, p. 179)
Existe uma correlação entre aprendizagem mínima e abandono escolar. Nas
zonas rurais, muitas famílias queriam que os filhos “não aprendessem mais do que o
preciso para saberem escrever umas letras, os seus nomes ou uns numeros em casca
d’ abóbora (…), por effeito de necessidades da vida agricola local, que obrigam os
menores a ajudarem os paes em varios serviços do campo, em prejuizo do ensino
diurno” (idem).
Nas épocas de estiagem, as escolas ficavam desertas, como testemunha
Chiquinho85:
“Das ilhas chegavam notícias alarmantes. Por toda a parte a seca estendera as suas
garras insaciáveis. Em Santiago, a Praia enchera-se literalmente de gente fugida do
interior. (...)
A minha escola no Morro Brás morreu de inanição. Os alunos foram desaparecendo
um a um. O pão do espírito cedeu à necessidade mais imediata e absorvente da
cachupa do corpo.” (Lopes, 1970, pp. 273-274)
António Nóvoa considera que “a escola não é sentida, como uma necessidade ou
um progresso, na maior parte do território nacional, onde o analfabetismo é a regra
e não a excepção86” e admite que “o facto de se impor a escola é, muitas vezes,
percebido como uma violência, na medida em que impede as crianças de cumprirem
as tarefas agrícolas, situação que não agrada às famílias campesinas” (1987, p. 576).
Esta asserção, válida em Cabo Verde, contraria o paradigma escola, via da
promoção social, defendido pela elite letrada. O autor de Le temps des professeurs
defende que “se o slogan «via da promoção social» (difundido pelos republicanos)
pode fazer sentido entre as camadas da pequena burguesia, principalmente nas
cidades, no meio rural a possibilidade de seguir esta via é muito limitada e, por isso,
podemos interrogarmo-nos sobre as motivações para enviar as crianças à escola”
(idem).
85
86
Personagem do romance com o mesmo nome, da autoria de Baltasar Lopes.
Notas manuscritas de Alvaro V. Lemos (in Nóvoa, 1987, p. 576).
75
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Promover a escolarização
Como referimos, anteriormente, a Sociedade de Estudos Pedagógicos, em
representação ao Ministro das Colónias, propôs a criação de escolas móveis, em
Cabo Verde, como panaceia para o analfabetismo (1913). Idêntica proposta foi
ventilada na imprensa local:
“Admitindo que cada escola possa manter 60 alunos, que num ano podem ter bastante
aproveitamento, o número de escolas a criar, dado o número da população em idade
escolar, seria de: Praia – 56 escolas; Santa Catarina – 16; Brava – 8; Fogo – 30; São
Vicente – 12; São Nicolau – 16; Boa Vista – 1; Sal – 0; Santo Antão – 7.
Rematando êste exposto estatístico, diremos, que sendo as novas escolas a criar
destinadas a ensinar a lêr, escrever e contar, poderia ser reduzido a metade o número,
desde que fossem móveis, como se usa em Portugal87, tendo uma demora de seis
meses em cada lugar que garanta a frequência de 60 alunos.” (O Futuro de Cabo
Verde, n.º 59, 11 de Junho de 1914, p. 3)
A criação de cursos nocturnos visava, igualmente, reduzir o analfabetismo e
promover a escolarização de adultos, em particular, nas ilhas de emigração para a
América:
“Deve fundar-se nesta ilha [Brava] uma escola nocturna, para instrução popular e
aperfeiçoamento intelectual e moral das classes trabalhadoras que desejem matricularse, pedindo a Câmara Municipal um subsídio ao govêrno, visto a mesma Câmara não
ter verba necessária para fazer face à mesma despesa, nomeando-se um professor
habilitado para reger aquela cadeira.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 76, 8 de Outubro
de 1914, p. 3)
Uma das primeiras iniciativas legislativas, empreendidas pelos Republicanos, foi
a regulamentação da instrução militar preparatória, com o objectivo de “preparar,
desde a infância, as gerações militares, dotando-as com a alma e o saber preciso
para bem desempenharem a missão que lhes incumbe” (Carvalho, 2001, p. 654). A
organização de um batalhão escolar, em Cabo Verde, enquadrou-se na estratégia de
promoção da escolaridade elementar.
87
O Decreto de 29 de Março de 1911, primeira reforma de ensino após a instauração da República, criou
escolas móveis: “Não podendo, por quaesquer motivos, estabelecer-se, em determinadas freguesias, escolas
primarias fixas, (...) criar-se-hão cursos temporarios ou escolas moveis, que funccionarão, pelo menos, dez
meses consecutivos” (cap. IV, art. 28º. Diário do Governo, n.º 73, 30 de Março de 1911, p. 1.343).
76
A construção do discurso educativo
“Havendo n’ esta cidade e nos seus arrebaldes, dezenas de crianças que, por
inconsciencia propria ou pela ignorancia dos paes, se esquivam à matricula nas
escolas, e outra que por falta de segura e salutar direcção furtam-se à frequencia das
mesmas, este lamentavel facto suggeriu-me a ideia de congregar esforços para
promover-se a organização de um batalhão escolar (...).
Devo informar a v. Ex.ª que, por iniciativa do distincto professor municipal, nocturno,
Alvaro de Paiva Lereno, angariava-se há tempos, donativos, por meio de uma receita,
para compra de instrumentos para se formar uma charanga, composta pelos alumnos
das escolas nocturnas, a qual servia para o batalhão organizar, sob as bases expostas.”
(José Bernardo Alfama88. O Independente, n.º 12, 27 de Junho de 1912, p. 2)
A Associação de Assistência Escolar, que vivia de óbolos e das contribuições
dos seus consócios, organizou um “batalhão” de alunos, regido pelos valores da
disciplina militar.
“Ao marcial, passos cadenciados,
com o porte de treinados guerreiros,
parecem quaes soldados verdadeiros
aquelles tão pequeninos soldados.
Creou-se estimulo e disciplina,
aspirações mais nobres que o far niente,
entre os rapazes novos da cidade.
E o beneficio que assim se origina,
já mereceu o louvor de toda a gente,
para quem tão bem fez á mocidade”
(O Progresso, n.º 14, 3 de Outubro de 1912, p. 2)
O espírito laico, que caracterizou a educação republicana, explica o episódio
relatado no jornal A Voz de Cabo Verde:
“No domingo, 6 do corrente, compareceu na igreja, à hora da missa, o batalhão
escolar, ou, antes, uma grande parte dos alunos que o constituem, debaixo de forma.
Procuramos, imediatamente, informar-nos do que havia a tal respeito e soubemos que
era da exclusiva responsabilidade de alguns alunos que apenas tiveram em mira o
exibirem-se em publico e que os seus dirigentes nenhuma intervenção tiveram nesse
acto. Soubemos tambem que o aluno que tomou a iniciativa de levar os camaradas à
missa, e que os comandou, foi devidamente castigado pela Direcção da Associação da
Assistencia Escolar que tomou as necessarias providencias para que faltas de tal
natureza se não repitam. (...)
Mas assim como achamos justo o castigo ao aluno que cometeu a falta, não nos parece
menos justo que sejam louvados aqueles que se recusaram a tomar parte na formatura,
88
Funcionário autodidacta e republicano convicto, colaborou nos jornais A Voz de Cabo Verde e O
Independente. Foi presidente da Associação de Assistência Escolar.
77
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
o que, certamente, não passará despercebido á ilustre Direcção da Associação.” (N.º
61, 1 de Outubro de 1912, p. 2)
A instrução militar de crianças foi criticada por figuras de prestígio do regime
republicano português. Adolfo Coelho89, referindo-se a exercícios militares
nalgumas escolas municipais, reconhecia “que esses exercícios imbecilizavam os
rapazinhos” (Carvalho, 2001, p. 655).
Números da alfabetização
A Estatística Geral da Província de Cabo Verde organizou a população em três
categorias: (1) sabem ler e escrever, (2) sabem ler e (3) analfabetos. A distinção
entre as duas primeiras categorias reflecte comportamentos literácitos distintos:
“aquele que se iniciou e utiliza as bases da leitura e da escrita no seu quotidiano”
(Magalhães, 2001, p. 12) e o que possui capacidade para a recepção de textos pela
leitura e incapacidade de produção escrita.
Gráfico 5 – Evolução da alfabetização – 1912 /1920
nº alfab et izad o s
4 0 ,0 0 0
3 8 ,0 0 0
3 6 ,0 0 0
3 4 ,0 0 0
3 2 ,0 0 0
3 0 ,0 0 0
2 8 ,0 0 0
2 6 ,0 0 0
2 4 ,0 0 0
19 12
19 14
19 15
19 18
19 2 0
ano lect ivo
Entre 1912 e 1918, verificou-se um crescimento dos índices de alfabetização. Os
registos de 1920 revelam um agravamento (menos 4.440 alfabetizados em relação a
1918), que poderá ser explicado pelas dificuldades decorrentes da 1ª Guerra
Mundial. A diminuição do número dos que “sabem ler e escrever” coexiste com um
ligeiro acréscimo do número de pessoas com competências exclusivas para a leitura.
89
Adolfo Coelho foi mestre no Curso Superior de Letras, eminente filólogo e pessoa de sólida erudição
(Carvalho, 1986, p. 652). Foi autor das seguintes obras: A Questão do Ensino (1872), Reforma do Ensino
Público (1894), História da Instrução Popular (1895), Instrução Nacional. Parecer e Projecto (s. d.) e
Questões Pedagógicas (1911).
78
A construção do discurso educativo
Quadro 27 – Evolução dos alfabetizados por níveis de literacia – 1912/1920
Categoria
1912
Sabem ler e escrever
1914
1915
1918
1920
Número
%
Número
%
Número
%
Número
5
Número
%
23.465
92,8
25.864
92,7
32.142
91,1
34.090
90,0
26.639
79,7
Sabem ler
1.819
7,2
2.050
7,3
3.136
8,9
3.785
10,0
6.796
20,3
Alfabetizados
25.284
100,0
27.914
100,0
35.278
100,0
37.875
100,0
33.435
100,0
(Movimento da população por naturalidade, instrução e raças. Estatística Geral da Província de Cabo Verde,
1913-1916, 1918, 1925)
Quadro 28 – Evolução do analfabetismo por concelhos/ilhas – 1912 /1920
1912
Concelhos / Ilhas
Praia (Santiago)
90
1920
População
Analfabetos
Perc.
População
Analfabetos
Perc.
29.021
25.686
88,5%
32.150
27.075
84,2%
Nossa Senhora da Luz (Maio)
1.836
1.653
90,0%
2.082
1.696
81,5%
Santa Catarina (Santiago)
27.834
26.043
93,6%
21.329
18.685
87,6%
Tarrafal (Santiago)
91
-
-
-
18.674
17.675
94,7%
Brava
9.041
6.344
70,2%
6.383
4.017
62,9%
Fogo
17.744
15.510
87,4%
21.509
16.317
75,9%
S. Vicente
9.929
8.641
87,0%
14.639
10.405
71,1%
S. Nicolau
11.477
2.996
26,1%
10.753
3.427
31,9%
Boavista
2.727
1.943
71,3%
2.454
1.663
67,8%
620
458
73,8%
674
530
78,6%
Sal
Santo Antão
33.700
29.371
87,2%
28.973
24.752
85,4%
Total
143.929
118.645
82,4%
159.620
126.242
79,1%
(“Movimento da população por naturalidade, instrução e raças”. Estatística Geral de Cabo Verde (1913 e 1925).
A repartição regional dos indicadores de analfabetismo revela diferenças abissais
entre a ilha de S. Nicolau, sede do Seminário-liceu (1912: 26,1% de analfabetos) e o
concelho rural de Santa Catarina, na ilha de Santiago (1912: 93,6%). O crescimento
do analfabetismo, na ilha de S. Nicolau (em 8 anos, mais 5,8 pontos percentuais),
articula-se com a crise do ensino eclesiástico, que culminou com o encerramento do
90
A freguesia de Nossa Senhora da Luz, na ilha do Maio pertencia ao Concelho da Praia. Com a divisão
administrativa da província de Cabo Verde, fixada pela portaria n.º 327, de 11 de Outubro de 1917, a ilha do
Maio é classificada como um concelho irregular, abrangendo a freguesia de Nossa Senhora da Luz. (Supl. nº 17
ao Boletim Oficial n.º 40, 11 de Outubro de 1917, p. 1).
91
As freguesias de Santo Amaro Abade e de S. Miguel pertenciam ao Concelho de Santa Catarina. Com a
divisão administrativa da província de Cabo Verde, fixada pela Portaria n.º 327, de 11 de Outubro de 1917, a
região do Tarrafal é classificado como um concelho irregular (idem).
79
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Seminário, no ano de 1917. A análise da evolução da frequência escolar (ensino
formal) e da alfabetização, na mesma época, evidencia pontos comuns (crescimento
geral de efectivos) e uma discrepância, no segmento temporal de 1916 a 1920, com
uma curva ascendente das matrículas dos alunos da instrução primária (Gráfico 1)92
e um fluir descendente das taxas de alfabetização (Gráfico 5)93.
O Dr. Mário Ferro, no Conselho do Governo (1918), informava que a
percentagem de analfabetos “nesta província é de 78% e na Metrópole94 é de 70 a
72% aproximadamente, sendo de notar que antes da implantação do regime
republicano essa percentagem era maior” (A Voz de Cabo Verde, n.º 341, 29 de
Abril de 1918, p. 1). A taxa de analfabetismo em Portugal (população com idade
superior a 10 anos), segundo António Nóvoa95, diminuiu de 70,3% (1911) para
66,2% (1920). A comparação dos indicadores atesta uma tendência comum
decrescente, embora lenta, do analfabetismo (Portugal: menos 4,1%; Cabo Verde:
menos 3,3%96).
Em conclusão
O desenvolvimento histórico do alfabetismo e da escolarização – nas suas
representações e práticas (in) formais – tem de ser percebido nas dimensões
linguística, didáctica, antropológica e cultural. Conscientes da polissemia e
complexidade conceptuais, limitámo-nos a identificar comportamentos literácitos,
traços e marcas de comunicação e de participação social, que ultrapassaram a
exiguidade física do arquipélago, na senda da emigração para outros destinos.
92
Consultar pág. 67.
As fontes documentais consultadas não permitiram uma explicação para a discrepância identificada.
94
Em conformidade com os valores do Anuário Estatístico de Portugal [(1886?)-1939], em Portugal havia
4.478.078 analfabetos (75,1% da população), “números terríveis no seu significado social”(Carvalho,1986, p.
711).
95
António Nóvoa utilizou os dados estatísticos apresentados no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 38.968 de 27 de
Outubro 1952 (1987, p. 569).
96
Taxas de analfabetismo em Cabo Verde: 1912 – 82,4%; 1920 – 79,1 % (Quadro 30).
93
80
2.
Modelação do sistema educativo
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
“A instrucção publica em Cabo Verde além de não corresponder aos
fins que se propõe, não preenche os desejos e as aspirações dos
individuos nem dos metropolitanos que aqui residem.
A pedagogia, cujas doutrinas servem de base nos paizes civilizados aos
regulamentos especiaes e leis de educação e ensino, são n’este
archipelago, senão ignorados pelo menos desprezados, do que adveem
gravissimos prejuizos.” (António do Rincão, A Voz de Cabo Verde, n.º
1, 1 de Março de 1911, p. 2)
Ensino primário elementar
A representação social do ensino chega-nos pela escrita jornalística, que
apresentou projectos de reforma curricular:
“A escola de instrucção deve ficar dividida em duas partes.
À primeira pertenceria o estudo de soletração, leitura, escripta, solução das quatro
operações fundamentaes da arithmetica.À segunda o estudo de noções geraes de
grammatica, rudimentos de historia portugueza, com especial respeito ao governo e
administração de Cabo Verde; elementos de desenho graphico sobre a ardosia;
repetição das quatro operações arithmeticas, systema metrico decimal, operações
sobre quebrados decimaes, noções gerais sobre a hygiene do corpo.” (A Voz de Cabo
Verde, n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 2)
Em conformidade com a primeira reforma educativa republicana – Decreto de 29
de Março de 191197 – o ensino elementar era o primeiro grau do ensino primário,
seguindo-se o complementar e o superior (cap. I, art.4º). Com a duração de três anos
(art. 9º, § único), preceituava um plano de estudos complexo, que se distribuía “por
quatro grupos de intenções que poderíamos classificar como literárias, científicas,
artísticas e técnicas” (Carvalho, 2001, p. 670). Era considerado obrigatório para
97
O Decreto de 29 de Março de 1911 legislou sobre os ensinos infantil, primário e normal (Diário do Governo,
n.º 73, 30 de Março de 1911, pp. 1341-1347).
81
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
todas as crianças, de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os sete e os
quatorze anos98 (cap. V, art. 37º).
Rómulo de Carvalho considera esta reforma escolar “um documento
notabilíssimo que colocaria [Portugal] ao nível dos países mais avançados no
domínio da instrução se fosse minimamente executada” (2001 p. 666). Seria uma
reforma de sonho, em que se programa o que seria bom ver realizado, sem se
atender à situação real do país, à sua pobreza sem remédio, à impreparação dos seus
executores, à sonolência dos serviços do Estado, à inércia nacional (idem, p. 665).
A situação real da colónia não era compatível com a utopia da reforma que
concebeu “um ensino graduado, concêntrico e metódico, mantendo, numa harmonia
crescente, o desenvolvimento orgânico e fisiológico, e o desenvolvimento
intelectual e moral” (preâmbulo, Decreto de 29 de Março de 1911).
Em 1914, o professor José Rodrigues de Carvalho, em carta ao Inspector Escolar
de Cabo Verde, referia-se ao ensino primário, cujo “fim é proporcionar ao educando
os conhecimentos indispensáveis para a conquista do pão e torná-lo apto para
aperfeiçoar por iniciativa própria, em qualquer ramo de vida a que se dedicar” e
lamentava a falta de “um programa adequado, que delimite o campo da sua acção,
em harmonia com as exigências do tempo e do lugar” (O Futuro de Cabo Verde, nº
63, 9 de Julho de 1914, p. 2). O docente recordava que a instrução pública caboverdiana ainda se orientava pelo Regulamento de 1875, que “não satisfaz às
necessidades pedagógicas da actualidade, nem se coaduna com os modernos
processos do ensino, que devem ser, essencialmente práticos, utilitários e
intuitivos”.
Um projecto de reforma curricular, apresentado na sequência do convite para “a
remodelação dos serviços de instrução”, propunha que as “duas classes de instrução
primaria em Cabo Verde (…) [fossem] divididas em três cursos: preparatório,
elementar e médio, compreendendo as matérias dos programas do ensino primário
vigentes na Metrópole e uma preparação especial para a admissão aos licêus” (carta
de Simão José Berlenga, 25 de Agosto de 191599).
98
O artigo 37º acrescentava “são dispensadas da frequencia das escolas publicas as crianças que
recebem ensino particular ou domestico, e aquellas que residam a mais de 2 kilometros de distancia
de qualquer escola oficial ou particular gartuita”. Segundo o artigo 39º, §2º, “São dispensadas da
obrigatoriedade escolar as crianças que a inspecção reconheça impossibilitadas por doença ou
qualquer defeito orgânico ou mental”.
99
Cx.ª 670, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
82
A construção do discurso educativo
Em 1915, o jornal oficial publicou os “programas oficiais do ensino primário,
modelados pelos da metrópole” (Portaria n.º 264, 29 de Outubro de 1915)100. A
partir da estrutura programática, reconstituímos o plano curricular da instrução
primária, organizado em dois graus e quatro classes:
Quadro 29 – Configuração curricular da instrução primária – 1915
Áreas disciplinares
1ª Classe
Leitura
Escrita
Desenho
2ª Classe
Leitura
Escrita
Desenho
Aritmética
Aritmética
Sistema métrico
3ª Classe
Leitura
Escrita
Desenho
Rudimentos Agricultura
prática
Aritmética
Sistema métrico
Ginastica
Trabalho de agulha e
lavores
Ginastica
Trabalho de agulha e
lavores
Moral
Ginastica
Trabalho de agulha e
lavores
4ª Classe
Leitura e exercícios Língua Portuguesa
Escrita
Desenho
Rudimentos de Sciencias Naturais,
aplicáveis à Agricultura e Hygiene
Aritmética
Sistema métrico
Geometria prática elementar
Corografia
História pátria
Primeiras noções de Educação cívica
Ginástica
A publicação dos programas da instrução primária “veio preencher uma lacuna
importante do ensino que até então era insubsistente, arbitrário e incompleto” (O
Futuro de Cabo Verde, n.º 156, 23 de Abril de 1916, p. 1).
Programa de Leitura e Escrita
As orientações didácticas para o ensino da língua portuguesa apelavam a
exercícios de memorização e de raciocínio, baseados na tese da marcha graduada do
ensino, “no princípio pedagógico do fácil para o difícil, tendo especial cuidado em
não apresentar a matéria nova sem que a classe tenha conhecimento perfeito da que
a precedeu e em não sobrecarregar excessivamente as lições e exercícios, para que
possam ser proveitosos” (1ª classe, p. 1). Prescreviam que “o ensino [da Gramática]
deveria ser exclusivamente prático e limitar-se ao indispensável para que os alunos
se habilitem a compreender, espôr e escrever correctamente” (4ª classe, p. 3).
O programa estipulava “preceitos gerais relativos à posição do corpo no acto de
escrever, colocação do papel ou da ardósia e do tinteiro, modo de pegar na pena e
no lápis, lado de onde convém receber luz natural ou artificial” e a inclinação “tanto
da letra como dos algarismos, [que] deve ser de 45 graus”. A norma que “não deve
100
In Supl. nº 15 ao Boletim Oficial n.º 45, 6 de Novembro de 1915, pp. 1-4.
83
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
o professor consentir que os alunos se sirvam de fragmentos de lápis,
excessivamente curtos, que devem desviar os dedos da posição conveniente” atesta
o distanciamento entre o normativo e a realidade social, num meio de extrema
pobreza.
As considerações metodológicas faziam tábua rasa da situação linguística das
crianças cabo-verdianas. Recomendava-se, porém, que “os exercícios devem ser
acompanhados de correcção nos vícios de pronuncia que os alunos apresentam, até
haverem desaparecido esses vícios” (1ª classe, p. 1).
Para além do carácter instrumental, o ensino da língua deveria veicular
“preceitos morais ou conselhos sobre higiene” (2ª classe, p. 2).
Programa de Aritmética, Sistema Métrico e Geometria
A Aritmética era estudada ao longo das quatro classes. Na fase de iniciação
recomendavam-se “exercícios de cálculo mental concreto e abstracto”.
O Sistema Métrico (2ª e 3ª classes) era explicado pela “intuição das unidades de
medida e exercícios numerosos de uso comum”.
Fazendo jus à designação Geometria Prática Elementar, o programa
aconselhava o método intuitivo e a concretização dos saberes. Cita-se, a título de
exemplo, “traçar com um fio e um pedaço de giz uma linha recta em qualquer tábua
que se pretenda serrar” (4ª classe, p. 4). As actividades eram diferenciadas para
professores e professoras:
“Os professores podem mostrar também aos alunos, por meio de polígonos em cartão
de varias côres, que os triângulos hexágonos e quadrados, e estes combinados
octógonos regulares, podem unir-se sem deixar intervalos, e que estas formas
geométricas são muitas vezes aproveitadas para sobradar e ladrilhar pavimentos, etc.
As professoras poderão igualmente mostrar às suas alunas que para fazerem
coberturas, sacos, etc. podem aproveitar retalhos de fazenda, que não tenham outra
aplicação, com as quais, dando-lhes as indicadas formas geométricas podem obter um
objecto de uso doméstico, útil e de bonito aspecto.” (Programa, 4ª Classe)
Programa de Corografia, História Pátria e Educação Cívica
Na disciplina de Corografia apelava-se ao ensino prático, mediante a
“demonstração intuitiva da forma da terra” e a “intuição que os alunos tenham já
adquirido pelo conhecimento da localidade em que se acharem, ou das que tenham
visitado”. Recomendava-se aos docentes que “o ensino devia ser essencialmente
84
A construção do discurso educativo
intuitivo e feito nos mapas corográficos”, importando “menos a definição do que o
conhecimento perfeito definido” (3ª classe, p. 3).
Contrariamente ao princípio do “conhecimento da realidade”, os conteúdos
reportavam-se a um meio com “caminhos-de-ferro e rios navegáveis”.
Programa de Ciências da Natureza
Os pressupostos didácticos dos Rudimentos de Sciencias Naturaes,
especialmente aplicáveis à Agricultura e à Hygiene (4ª classe) preceituavam a
ordenação dos conteúdos “em lições de cousas”101 e a aprendizagem “por meio de
processos intuitivos, com o auxílio de estampas, na falta ou impossibilidade da
apresentação dos próprios objectos” (4ª classe, p. 3).
As aplicações práticas incidiam nos “prejuízos que resultam de abuso de bebidas
alcoólicas”, nas desinfestações que importa conhecer (com uma alusão específica à
varíola), nas necessidades da vacinação e inconvenientes da falta de limpeza.
Programa de Agricultura Prática
Os Rudimentos de Agricultura descrevem um universo alheio ao ambiente local:
“cultura e tratamento do pinheiro, sobreiro, castanheiro, oliveira; criação do bichoda-seda e das abelhas”.
“O estudo da Agricultura feito em face dos compêndios adoptados para a escola na
metrópole é sobremodo abstracto e estéril, por isso que os conhecimentos que exibem
não são aplicáveis à flora tropical, tornando-se necessário que o professor supra êsse
defeito com indicações ùteis sobre agricultura regional.
Assim é conveniente ensinar aos alunos os processos da fabricação da aguardente,
açúcar, sabão, extracção do oleo das sementes da purgueira, rícino, coco, etc.
A cultura da bananeira, café, cana de açúcar mandioca, mangue, coqueiro, diversos
cereais e legumes de primeira necessidade, deve merecer particular atenção ao
professor no ensino desta disciplina, que deve ser ministrado em lições de coisas, de
fórma a conseguir-se uma utilidade rial.” (O Futuro de Cabo Verde n.º 156, 23 de
Abril de 1916, p. 1)
101
No ensino elementar e complementar “são obrigatorias as lições de cousas, como meio de educação physica,
intellectual, moral e esthetica” (Art. 14º, Decreto de 29 de Março de 1911. Diário do Governo, n.º 73, de 30 de
Março de 1911, p. 576).
85
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Programa de Agulha e Lavores
Domínio exclusivamente feminino, acompanhava as alunas ao longo das quatro
classes. Os conteúdos e as práticas incidiam nas prendas domésticas: costura, malha
e croché.
Programa de Desenho
Leccionada nas quatro classes, o ensino da disciplina pautava-se por uma
percepção rígida e mecanicista da realidade. A criatividade era preterida por gestos
e repetições, num crescendo de complexidade: “cópia de estampas, representando
objectos de uso comum” e de “objectos existentes na escola: mesas, bancos,
quadros, balanças, pesos, medidas, etc., em dimensões pequenas” (1ª à 3ª classe).
Figura 9. Desenho de um aluno da instrução primária
(Prova escrita, 2º grau, Mosteiros, ilha do Fogo, 1920102)
Programa de Moral
A disciplina de Moral103 devia ser pragmática, uma conduta para a vida e um
instrumento de socialização, mediante “deveres para connosco, para com os
membros da família e para com os nossos similhantes” (3ª classe, p. 4).
102
Cx.ª 669. Fundo da Secretaria Geral, IAHN.
86
A construção do discurso educativo
“O ensino [da Moral] deve ter uma feição inteiramente prática, aproveitando-se para
êle as matérias contidas nos livros de leitura, história pátria e qualquer ensejo que se
ofereça no convivio com os alunos durante as aulas, corrigindo-lhes as tendências
contrárias aos bons costumes, incutindo-lhes no espírito a noção do dever e
despertando-lhes a consciência moral, por meio de exemplos.” (O Futuro de Cabo
Verde, nº 156, 23 de Abril de 1916, p. 1)
Programa de Ginástica
No termo da sequência programática, a indiciar subalternidade, o programa era
organizado sem distinção de classes e em função das diferenças de género. A
listagem dos exercícios remetia para a “instrução militar preparatória”, pois visava a
“adaptação dos alunos aos exercícios de ginástica e à escola do soldado sem arma”.
A ginástica feminina integrava-se no programa geral, “com excepção dos saltos”.
Os docentes eram instados a “não fatigar excessivamente os alunos”, considerando
que “a ginástica deve ser mais um recreio do que um trabalho”.
Ensino primário complementar
O ensino primário complementar, facultativo e gratuito (cap. V, art. 38º) tinha a
duração de dois anos (cap. II, art. 10.º, § único) (Decreto de 29 de Março de
1911104).
Encontrámos escassa informação sobre o ensino primário complementar, o “non
plus ultra da nossa produção literária” (A Voz de Cabo Verde n.º 63, 9 de Julho de
1914, p. 2), o que pode denotar uma fraca implantação no sistema escolar caboverdiano.
Embora designado “primário complementar”, funcionava como um ciclo
propedêutico ao ensino secundário: “Tem por objecto iniciar o educando no
conhecimento das generalidades das matérias professadas no ensino secundário, não
sendo, portanto admissível exigir, no exame do 2.º grau de Instrução Primaria, o
conhecimento profundo de materias do curso secundário” (A Voz de Cabo Verde,
n.º 107, 1 de Setembro de 1913, p. 3).
103
O programa de Moral marca uma ruptura com o passado (monarquia), apresentando, no espírito republicano
“uma escola sem Deus, enormidade escandalosa e arrepiante para mentalidades secularmente amparadas pelas
palavras da Igreja” (Carvalho, 2001, pp. 674-675).
104
Diário do Governo, nº 73, 30 de Março de 1911, p. 1343.
87
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Ensino primário superior
No ano de 1911, a Comissão Municipal de São Vicente criou o Curso Livre de
Ensino Primário Superior, com a duração de três anos, destinado “à educação dos
filhos dos municipes de S. Vicente, sendo todavia facultado aos estranhos a este
concelho” (Boletim Oficial, n.º 3, 20 de Janeiro de 1912, p. 30). A imprensa elogiou
o programa “bem elaborado e completo” (A Voz de Cabo Verde, n.º 55, 2 de
Setembro de 1912, p. 3) e vaticinava que “com os 3 annos de curso, os rapazes que
os frequentarem [ficariam] com uma bagagem de conhecimentos, que é uma
importante ferramenta na pratica da vida” (O Progresso, n.º 12, 19 de Setembro de
1912, p. 4).
O currículo do Curso Livre de Ensino Primário Superior aproximava-se do plano
de estudos do ensino primário superior, professado em três anos, estabelecido na
reforma educativa de 1911 (cap. II, art. 11º, Decreto de 29 de Março de 1911)105.
Quadro 30 – Planos curriculares do Curso de Ensino Primário Superior (Mindelo) e do Ensino Primário
Superior (Decreto de 29 de Março de 1911)
Curso Livre de Ensino Primário Superior
Língua portuguesa
Língua francesa
Língua inglesa
História geral
História pátria e das colónias
Geografia matemática
Geografia física
Geografia política
Aritmética, Geometria, Álgebra
Agrimensura
Escrituração e Contabilidade
Física
Química
História natural
Botânica
Mineralogia e Geologia
Desenho
105
88
Ensino Primário Superior, Decreto 29 de Março 1911
Língua portuguesa
Língua francesa
Língua inglesa
História, especialmente de Portugal
Geografia geral e especificamente de Portugal e das Colónias
Geografia económica
Moral
Instrução cívica
Nção de economia
Direito usual
Matemáticas elementares (Aritmética, Geometria, Álgebra e Agrimensura)
Contabilidade
Ciências físico-químicas e histórico-naturais e suas aplicações à agricultura,
ao comércio e às indústrias, consoante as necessidades de cada região
Higiene
Desenho
Prática em aulas-escritório, estenografia, oficinas, campos experimentais
Educação física, exercícios militares, ginástica, jogos, natação, remagem, etc.
Música e canto coral
Diário do Governo, nº 73, 30 de Março de 1911, p. 1.343.
A construção do discurso educativo
O curso municipal privilegiou os domínios cognitivos em detrimento das
competências e habilidades profissionalizantes, que caracterizaram as “escolas
primárias superiores” criadas pela reforma de 1911106.
A iniciativa dos cidadãos mindelenses respondia aos anseios de transgressão da
aprendizagem mínima, imposta pelo poder colonial. Os requisitos de acesso a este
nível de ensino e a textura curricular tornavam o ensino primário superior
equivalente ao patamar inicial do ensino secundário, com uma componente
vocacional.
“Quando por iniciativa de um vogal da Comissão Municipal de S. Vicente, se pensou
em criar o Curso Primário Superior, em Outubro de 1911, a ideia teve o apoio formal,
decisivo, enérgico, entusiástico, do presidente Sr. Borja Araújo, ilustre ornamento da
marinha de guerra portuguesa. E foi tanto mais apreciável esta cooperação,
eficacíssima, quanto o trabalho retrógrado de alguns elementos adversos do progresso,
se alastrava na sombra, no sentido de desviar o Govêrno da Província da aprovação do
plano. (...)
Criando tal curso no meio de oposições sistemáticas, o município tem razões fortes
para se orgulhar da sua excelente obra, pois que, quanto aos que têem seguido de
perto, observadores, o desenvolvimento dos alunos do Curso, sincera e calorosamente
aplaudem o empreendimento que, confesso, excedeu a minha espectativa.” (O Futuro
de Cabo Verde, n.º 15, 7 de Agosto de 1913, p. 3)
As “oposições sistemáticas” surtiram efeito, pois o Curso Livre de Ensino
Primário Superior foi extinto, por alegadas dificuldades financeiras:
“Abrir uma escola será
talvez fechar uma prisão.
«A reconstituição mental da nação é o mais sagrado dever
e será a suprema glória da Republica» Adães Bermudes 107
O Município de S. Vicente, no louvável empenho de interpretar êsse passo do
progresso, criou ha dois anos, o Curso Primário Superior, que, com o elementar e
complementar, segundo diz o Dr. F. Adolfo Coelho, «estendendo-se ao todo por 8
anos, como a escola popular de diversos países, será a base futura para o ensino
industrial e comercial elementar». (…)
106
As “escolas primárias superiores” criadas pela reforma educativa de 1911, só foram implementadas com a
reorganização da educação em 1919 (Araújo, 200, p. 178).
107
Arnaldo Redondo Adães Bermudes (1883 a 1947) foi arquitecto, pintor e professor. A sua intervenção no
domínio da arquitectura escolar teve início em 1898 quando obtém o primeiro prémio no concurso para
projectos-tipo de escolas primárias. Enquanto director das construções escolares (1901-1906) foi responsável
por cerca de trezentos edifícios escolares. Os trabalhos apresentados por Adães Bermudes, e que foram
posteriormente premiados com a medalha de ouro na secção da arquitectura escolar na Exposição Universal de
Paris de 1900, traduzem “um dos primeiros projectos entendidos em sentido moderno, prevendo as variantes e
as combinações que os tornavam adaptativos às várias situações de programa e de dimensão” (Fernando
Moreira Marques, 2003, pp. 168-172)
89
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Como o Curso Primário Superior representa uma dessas despesas [não suportadas
pelas receitas camarárias], foi êle um dos imolados na constituição orçamental do
município.
É certo que a vereação propõe a criação de duas escolas infantis e um liceu hipotético,
em substituição do Curso. Francamente: discordamos muito dessa opinião. Quanto
àquela, não é mau o plano: mas seria melhor criarem-se duas escolas de instrução
primaria elementar e complementar, pois as tres oficiais e municipais desta natureza
teem uma frequência superior a 330 alunos, e a infantil contem cêrca de 130 crianças.”
(O Futuro de Cabo Verde, n.º 30, 22 de Novembro de 1913, p. 3)
Em 1914, os professores deste curso, “criado e extinto pela última comissão
municipal, ofereceram-se à actual câmara para, gratuitamente, regerem o 3º ano do
curso” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 41 de 5 de Fevereiro de 1914, p. 5).
O Conselho Inspector da Instrução Pública, no ano seguinte, reunido sob a
presidência do Governador Fontoura da Costa, anunciou a criação de “um curso
superior na Praia e em S. Vicente, na impossibilidade material da criação de um
liceu” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 130, 21 de Outubro de 1915, p. 2).
As Escolas Primárias Superiores
O ensino primário superior foi institucionalizado pelo primeiro Plano Orgânico
da Instrução Pública de Cabo Verde, de 1917108, com escolas na cidade da Praia e
em S. Nicolau.
A Escola Primária Superior da Praia funcionou, provisoriamente, no antigo
edifício do correio e foi dirigida pelo coronel-médico, Júlio Barbosa Nunes Pereira.
A direcção da Escola Primária Superior de S. Nicolau foi atribuída ao antigo Reitor
do Seminário, Cónego António José de Oliveira Bouças (Portaria n.º 386, 16 de
Novembro de 1917109).
“Aos dezanove dias do mês de Novembro do ano de mil novecentos e dezassete, se
reuniu em sessão na sala das aulas da Escola Superior Primária, o corpo docente da
mesma escola. (...).
Aberta a sessão às quinze horas, pelo presidente foi dito que o fim desta sessão era:
primeiro, distribuir as disciplinas pelos professores; segundo, formular o horário da
escola; terceiro, estabelecer o modo de proceder à matrícula dos alunos.
As disciplinas foram distribuídas pela forma seguinte: ao bacharel Jacinto Amado
Vasconcelos Raposo foi incumbida a regência das cadeiras de Português e Educação
108
Decreto n.º3.435, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18, ao Boletim Oficial n.º 43, 30 de Outubro de 1917, pp.
1-4. Consultar apêndice D.
109
Boletim Oficial, n.º 46, 17 de Novembro de 1917, p. 414.
90
A construção do discurso educativo
Física; ao capitão Jorge Figueiredo de Barros, das de Inglês, Francês, e Sciências
Físico-Químicas e Historico-Naturais; ao bacharel António Soares de Campos, das de
Matemática Elementar e Desenho; ao reverendo Rodrigo José Milheiro, das de
História e Geografia Geral e Económica, Moral e Instrução Cívica, Trabalhos Práticos,
e Musica e Canto Coral. Praia, 23 de Novembro de 1917. O secretário, Rodrigo José
Milheiro.” (Boletim Oficial, n.º 47, 24 de Novembro de 1924, pp. 426-427)
Quadro 31 – Movimento de alunos de «instrução secundária», na Escola Primária Superior da Praia – 1918
Alunos externos
Total
Branca
Mista
Preta
Total
Distintos
Aprovados
Adiados
Total
Branca
Mista
Preta
Total
Distintos
Aprovados
Adiados
Examinados
Examinados
Raças
Matriculados
Examinados
Reprovados
Raças
Aprovados
1ª
Classe
Alunos internos
Total
Matriculados
Disciplinas
classes
Total geral
de examinados
56
20
-
56
20
56
7
16
33
56
8
12
36
-
-
-
-
-
-
-
-
(Estatística Geral da Província de Cabo Verde, 1920, p. 19)
Quadro 32 – Efectivos escolares da Escola Primária Superior de S. Nicolau – 1918
Alunos
Matriculados
Perderam o ano por faltas
Não se habilitaram
Fizeram exame
Distintos
Aprovados
Adiados
Internos
13
13
2
11
-
Externos
11
2
1
8
1
7
-
Total
24
2
1
21
3
18
-
(Estatística Geral da Província de Cabo Verde, 1920, p. 18)
O ensino primário superior foi socialmente prestigiado e percepcionado como
ensino secundário de curta duração, preparando os jovens para funções de
enquadramento médio. É elucidativo o facto da Estatística Geral da Província de
Cabp Verde considerar os estudantes deste nível de ensino, como alunos de
«instrução secundária» (Quadro 31).
Este grau de instrução não consta do sistema escolar definido pelo Plano
Orgânico de Instrução Pública, de 1918110. As escolas estavam condenadas a fechar.
110
Segundo o Plano Orgânico de 1918 “o ensino em Cabo Verde compreende: I – o ensino primário; II – o
ensino secundário e normal primário e III – o ensino profissional. Portaria nº 474, 27 de Dezembro de 1918.
Supl. nº 14 ao Boletim Oficial nº 52, 31 de Dezembro de 1918, pp. 1-5. Consultar apêndice D.
91
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
“Tendo o Conselho de Instrução Publica, em sua sessão de 4 de Junho findo, resolvido
que os alunos da Escola Primária Superior da cidade da Praia fossem submetidos a um
exame final das matérias leccionadas durante o corrente ano lectivo — lº do curso, —
a fim de que os aprovados possam exibir um documento para admissão no 2° ano do
curso no liceu provincial, resolução que foi tomada pelo motivo de na proposta do
novo Plano Orgânico de Instrução Publica, aprovado em Conselho do Governo e
submetido à apreciação de Sua Ex.ª o Ministro das Colónias, ser eliminada a Escola
Superior da Praia.
Visto o programa para os exames referidos, apresentado pelo Conselho Escolar e que
foi aprovado pelo Conselho de Instrução Pública, em sua sessão de 7 do corrente:
Hei por conveniente determinar:
1.° Que as aulas da referida escola fechem amanhã, 20;
2.° Que os exames comecem no próximo dia 22;
3.° Que se observe o programa aprovado pelo Conselho de Instrução Publica e que
será a seguir publicado em suplemento ao Boletim Oficial.” (Boletim Oficial n.º 29, 20
de Julho de 1918, p. 255)
Em sessão do Conselho do Governo, foi debatida a supressão do ensino primário
superior. O vogal do Conselho, Dr. Mário Ferro interrogava:
“¿Porque é que, em Cabo Verde, uma das nossas poucas colónias de civilização
relativamente adiantada, não se deverá ministrar este ensino, tanto mais que já está
decretado e em princípio de execução?
Estas escólas devem ter uma feição prática; o seu programa, como se viu, não se reduz
a um ensino meramente teórico e abstracto.
Em Cabo Verde, perguntamos novamente, ¿porque é que não deve existir o ensino
primário superior?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 342, 6 de Maio de 1918, p 1)
Os bons resultados dos alunos da Escola Primária Superior da Praia, em
precárias condições de aprendizagem, foram razões justificativas da manutenção da
escola, qua não assumia o epíteto de “paródia de liceu”:
“Iniciaram-se, há dias, os exames na Escola Primária Superior desta cidade. De
cinquenta e um alunos matriculados, estão prestando provas vinte e dois.
É inegável que este facto constitue o melhor argumento de que podem lançar mão
aqueles que, como nós, defendem o direito que assiste à capital da provincia, de
possuir esse estabelecimento de ensino que, violentamente, por razões de politiquice
rasteira, e de curtas vistas, vai ser extinto, mas não antes de professores e alunos terem,
pelo resultado obtido ao fim do primeiro ano lectivo, sem material, sem livros, por
elogioso esforço próprio, evidenciando implicitamente a sua razão de existência, a sua
utilidade, as suas condições de profunda vitalidade.
Nenhum outro argumento nos pode servir melhor para provarmos que a Escola
Primária Superior da Praia não é uma paródia de liceu. Poderá, sê-lo, sim, na parte que
respeita ao mise-en-scene escolar, na falta condenável de material, de apetrechos, de
92
A construção do discurso educativo
livros, etc., mas de tal só serão culpados aqueles que lhe entravaram a util e eficaz
colaboração. (...)
Não se esperou pela experiência desse primeiro ano lectivo para se resolver em face
dela; não se atendeu ao transtorno que a extinção vai causar a este alunos que viram os
seus esforços escolares coroados de uma aprovação; a coisa alguma se prestou uma
atenção estudiosa, sensata. Era preciso extinguir-se! Extinguiu-se.” (A Voz de Cabo
Verde, n.º 354, 20 de Julho de 1918, p. 1)
Os argumentos a favor da eliminação do ensino primário superior,
fundamentados com a política de contenção orçamental e um possível excesso de
diplomados, foram refutados por Mário Ferro:
“Como é notório, o novo plano de instrução primária eliminava tal ensino [primário
superior], invocando-se, para justificar semelhante supressão, o déficit orçamental de
119 contos. (...)
¿A que critério obedeceu a extinção da Escola Primária Superior da Praia?
Admitindo-se como aceitável o argumento da economia para o equilíbrio orçamental,
produziu-se este, porventura? Não. O orçamento viu-se sobrecarregado com outros
encargos que foram buscar a sua sustentação nas economias feitas com a Instrução!
Excelente critério e bela norma de aplicação da sciencia colonial!
Apresentou-se tambem outro argumento (…) o do perigo de uma praga idêntica à dos
bachareis na metropole. Calcule-se que grande perigo poderá constituir para a
província o facto de, entre umas dezenas de milhares de habitantes, existirem umas
centenas de cabo-verdeanos habilitados a poderem exercer cargos burocráticos,
resultando disso uma bôa economia – que tanto se tem procurado –; habilitados a
poderem, conscientemente, aumentar o desenvolvimento agrícola, comercial e
industrial; habilitados a irem, nos nossos vastos territórios coloniais, dispender a sua
actividade, em proveito de toda a nacionalidade.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 355, 5 de
Agosto de 1918, p. 1)
A Escola Primária Superior da capital foi restabelecida111, sob a direcção do
bacharel António Soares Costa (Portaria n.º 560-A, 10 de Dezembro de 1919112),
sendo, definitivamente, encerrada no ano de 1921 (Portaria n.º 249, 27 de
Setembro):
“Considerando que, durante o ano lectivo se matricularam na 1ª e 2ª classes da dita
Escola apenas 22 alunos de ambos os sexos;
Considerando que daqueles 22 alunos, apenas 7 aproveitaram o ano, tendo-o perdido,
por faltas, 15;
Considerando que tendo a referida escola 3 anos de funcionamento, não houve alunos
para a frequência da 3ª classe;
Considerando que dos 6 professores nomeados para tão diminuta frequência, apenas
havia uma professora ordinária – provida mediante concurso;
111
112
Portaria n.º 632, 21 de Novembro de 1919. Boletim Oficial, n.º 47, 23 de Novembro de 1919.
Boletim Oficial, n.º 5, 23 de Janeiro de 1920, p. 46.
93
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Considerando que êste pessoal docente produz o encargo para a província de perto de
3 contos mensais;
Considerando que é de presumir que, em face da situação proveniente da crise de fome
que flagela este arquipélago, para o futuro a frequência de tal escola, não aumente,
antes diminua; Considerando que o estado financeiro da província não permite que,
para benefício de 7 alunos, se esteja despendendo uma avultada soma para pagamento
a 6 professores; (…)
Artigo 1º Fica extinta a Escola Primária Superior da Praia, cujo mobiliário e material
de ensino será distribuído pelas escolas primárias oficiais que mais necessitem.
(Boletim Oficial, n.º 40, 1 de Outubro de 1921, p. 364)
A trajectória da Escola de Ensino Primário Superior de S. Nicolau foi,
igualmente, conturbada. Considerada insubsistente (Portaria nº 632, de 21 de
Novembro de 1919113) funcionou até finais do ano lectivo 1919/20. No Correio
d’África “apelava-se para o patriotismo dos seus irmãos da província, com cuja
colaboração contam para a consecução dos seguintes objectivos de capital interesse
colectivo”:
“1º Secundarem uma subscrição aberta aqui, para subsidiar particularmente a escola
que funciona no edifício do Seminário, já aberta por iniciativa particular;
2º Insistirem, reclamando, junto dos poderes superiores da província ou da metrópole,
para que a mesma escola venha a readquirir todas as prerrogativas oficiaes, necessarias
para a sua dotação e consequente valorização dos seus estudos. S. Nicolau, 14 de
Novembro de 1921.” (N.º 20, 15 de Dezembro de 1921, p. 1)
Apesar da “insubsistência” da escola de S. Nicolau ter sido declarada sem
efeito114, o estabelecimento de ensino fechou, por força da lei (Portaria n.º 153, 20
de Setembro de 1922)115.
O golpe definitivo no ensino primário superior foi desferido pela Portaria n.º 28,
12 de Março de 1924116, que “considerando que na Metrópole se extinguiram as
escolas primárias superiores117, declarava “extintas as Escolas Primárias Superiores
criadas pelo Decreto n.º 3.435 de 8 de Outubro de 1917, bem como a Escola
Normal Primária, as primeiras das quais, de facto deixaram há muito de existir e a
última nunca chegou a organizar-se”.
Antes de concluirmos o percurso do ensino primário superior na colónia, importa
perguntar: Qual a natureza curricular deste nível de ensino? Complementou o
113
Boletim Oficial, n.º 47, 22 de Novembro de 1919, p 417.
Portaria n.º 16, 20 de Janeiro de 1922.
115
Boletim Oficial, n.º 38, 25 de Setembro de 1922, p. 289.
116
Boletim Oficial, n.º 11, 16 de Março de 1924, p. 85.
117
A proposta curricular do Ministro [João José da Conceição] Camoesas excluía o ensino primário superior
(Carvalho, 2001, p. 701).
114
94
A construção do discurso educativo
ensino primário e fechou um ciclo? Foi uma modalidade de ensino profissional?
Um sucedâneo do ensino secundário? Uma paródia de liceu?
De acordo com Rogério Fernandes (1983), as escolas primárias superiores
“originalmente, pretendiam ser um ensino polivalente, integrando a preparação
académica para prosseguimento de estudos e objectivos de natureza
profissionalizante (…), passaram a assumir, sobretudo o carácter de escolas
técnicas” (citado em Araújo, 2000, p. 178).
A tumultuosa história das escolas primárias superiores, em Cabo Verde, não se
deve apenas a incoerências normativas e nem sequer foi original. Reproduz “a
turbulenta existência do ensino primário superior e, as políticas contraditórias de
que foi alvo revelam o conflito inerente aos vários projectos de «ensino de
continuação»118, sobretudo entre 1921-1926” (Araújo, 2000, p. 179).
Organização sistémica
A necessidade de “reformar a instrução na província de Cabo Verde, por forma a
satisfazer as aspirações da sua população” e conferir “a unidade e a concordância de
esforços indispensáveis ao seu progressivo desenvolvimento”, conduziram à
aprovação do Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde (Decreto n.º
3.435, de 8 de Outubro de 1917119). Transitava-se de iniciativas avulsas e sem
sistematização para a estruturação de um sistema escolar.
Em conformidade com o Plano Orgânico, o sistema escolar compreendia (1) o
ensino primário e normal, (2) o ensino secundário e (3) o ensino profissional (tít. I,
art. 1º). O ensino primário abrangia “três graus, compreendendo as matérias dos
programas do ensino primario elementar, complementar e superior adoptado na
metrópole” (tít. II, cap. I, art. 3º). O primeiro ordenamento da instrução pública
cabo-verdiana teve vida efémera.
Em sessão do Conselho do Governo foi aprovado outro Plano Orgânico (Portaria
n.º 474, 27 de Dezembro de 1918120), que reconfigurou a instrução, que passou a
compreender (1) o ensino primário, (2) o ensino secundário e normal primário e (3)
o ensino profissional. O ensino primário retornou à configuração em dois graus:
elementar e complementar (tít. II, cap. I, art. 3º).
118
Expressão usada por António Sérgio (Araújo, 2000, p. 179).
Supl. nº 18 ao Boletim Oficial n.º 43, 30 de Outubro de 1917 (apêndice D).
120
Supl. nº 14 ao Boletim Oficial n.º 52, 31 de Dezembro de 1918 (apêndice D).
119
95
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Quadro 33 – Planos Orgânicos da Instrução Pública na Província de Cabo Verde
1917
Sistema escolar:
- Ensino primário e normal
- Ensino secundário
- Ensino profissional
O ensino primário abrange três graus:
- Ensino primário elementar
- Ensino primário complementar
- Ensino primário superior
1918
Sistema escolar:
- Ensino primário
- Ensino secundário e normal primário
- Ensino profissional
O ensino primário abrange dois graus:
- Ensino primário elementar
- Ensino primário complementar
Contempla o ensino particular e doméstico
As expectativas de adaptação do ensino às aspirações dos cabo-verdianos
(flexibilização dos programas e contextualização à realidade local) encontraram eco
no primeiro Plano Orgânico, que, além de prever a “necessária adaptação do ensino
agrícola e cívico”, consagrava um “maior desenvolvimento do ensino da língua
portuguesa e da história e geografia caboverdeanas” (Decreto nº 3.435, tít. II, cap. 1,
art. 3º). O segundo Plano Orgânico limitava-se a mencionar a necessidade de “maior
desenvolvimento da língua portuguesa e da educação cívica” (Portaria nº 474, tít. II,
cap. 1, art. 3º), sem aludir às especificidades locais.
“Perguntar-se-á: Se ainda há seis meses que se pôs em vigor nesta malfadada província
um plano de ensino, com o consenso unânime da opinião pública, se as circunstâncias
financeiras provinciais permanecem invariaveis, se as necessidades da instrução
públicas são as mesmas que existiam há meses, se a evolução social, progressiva ou
regressiva, nunca pode ser de uma instantaneidade tal que hoje as exigências de uma
sociedade, de um pôvo, sejam umas, e amanhã outras, de uma variabilidade semestral,
como se compreende que o Decreto de 8 de Outubro de 1917, que satisfez velhas
aspirações do pôvo caboverdeano, com condições de adaptabilidade ao modo de ser
mental e social da população destas ilhas, já necessite que se lhe introduzam
modificações sensíveis nas suas bases estruturais?” (Mário Ferro, A Voz de Cabo
Verde, n.º 342, 6 de Maio de 1918, p. 1)
A sucessão das reformas, num lapso de tempo tão curto, reflecte inconsistências
da política educativa, numa conjuntura marcada pelas sequelas do bloqueio do
Congresso Americano à emigração de analfabetos (1915) e pelo controverso
encerramento do Seminário-liceu de S. Nicolau (1917). O sistema educativo caboverdiano foi modelado, num contexto de pressão social e inoperância
administrativa, mediante uma profusão de planos, decretos e portarias, por vezes,
contarditórios, efémeros e em permanente mutação.
96
3.
Desenvolvimento institucional
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
3.1. Organização pedagógica e administração
A modelação do sistema escolar consolida-se com a organização em conjuntos
funcionais – cursos, graus e classes e com a divisão do currículo em programas
anuais “concêntricos”, ajustando tudo isto a um correcto emprego do tempo, com
horários semanais e diários (Barroso, 1995, p. 98). A organização escolar
subordinou-se às três regras da tragédia clássica: unidade de acção, de tempo e de
espaço (Gloton, citado em Barroso, 1995, p. 11). O modelo centrado na classe
graduada possibilitou o ensino simultâneo, com práticas uniformes para o mesmo
grupo de alunos. O espaço estruturou-se com tecnologias específicas.
O Plano Orgânico da Instrução Pública (1917)121, que estratificou a instrução
primária, não especifica as idades de permanência dos alunos em cada grau122. A
configuração do espaço (ratio aluno/classe/sala de aula) dependia da oferta
escolar.
“A eloquencia dos numeros que antecedem123 prova que o brutal excesso de alunos
nas diversas escolas oficiais, municipais e particulares do 1º e 2º graus, algumas com
mais do dobro de número de alunos permitidos por lei, é a causa do fracasso do
aproveitamento dos respectivos alunos, deixando mal colocados os professores por se
lhe querer atribuir toda a responsabilidade do desastre dos exames e da vergonha do
analfabetismo.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 170, 16 de Novembro de 1914, p. 1)
A organização da classe (o paradigma continuava a ser a relação face a face do
mestre com os discípulos) obedecia ao princípio da separação de alunos de sexos
121
Decreto n.º3.435, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18,ao Boletim Oficial, n.º 43, 30 de Outubro de 1917, pp.
1-4. Consultar o apêndice D.
122
Conforme o Decreto de 29 de Março de 1911, publicado na metrópole, “as escolas de ensino primario
elementar e complementar destinam-se a educar as crianças cuja idade se ache comprehendida entre os sete e
os quatorze annos, ministrando-lhes o ensino geral que sirva para revelar as aprtidões naturaes e preparar para
qualquer profissão” (cap. III, art. 25º) (Diário do Governo, nº 73, 30 de Março de 1911, p. 1343).
123
Referência às médias de aproveitamento dos alunos do 1º e 2º graus da instrução primária (Bom –
18,665%; Suf. – 29,104%) e aos resultados dos exames finais (aprovados: 8,902%).
97
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
diferentes. Admitia-se a classe mista em casos de baixa densidade da população
escolar124.
“Usando da faculdade que me confére o artigo 47º, n.º 3, da Constituição Política da
República Portuguesa: hei por bem, sobre proposta do Ministro das Colónias, e nos
termos do artigo 15º do decreto, com fôrça de lei, de 30 de Novembro de 1869,
decretar o seguinte:
Artigo 1º São criadas três escolas de instrução primária na Província de Cabo Verde,
sendo uma para o sexo masculino no lugar de S. Jorge, da freguesia de S. Lourenço,
da Ilha do Fogo, outra para os alunos do sexo feminino no lugar do Galinheiro, da
mesma freguesia e ilha, e outra para ambos os sexos na Povoação Velha, da Ilha da
Boa Vista. (...)
Art. 3º A escola para ambos os sexos, da Povoação Velha, da ilha da Boa Vista, será,
em regra, dirigida por uma professora.” (Boletim Oficial, n.º 12, 22 de Março de
1913, p. 102)
Os jornais alertavam para as distorções da rede escolar. A Voz de Cabo Verde
chama a atenção para a insuficiência de escolas para meninas:
“Não me parece, no referente ao concelho do Tarrafal, que a distribuição das escolas
e postos de ensino seja equitativa. A criação de uma escola do sexo feminino, na
Calheta, a povoação mais importante da freguesia de Sam Miguel e a segunda do
concelho, em população e movimento comercial, mais não foi que um acto de justiça,
porque era vergonhoso que numa freguesia de sete mil almas não existisse uma só
escola para o sexo feminino. Nos Flamengos, de há muito que se pugnava pela
abertura do posto de ensino para o sexo feminino ou mixto (...); hoje, porém, vejo
que em vez de um posto de ensino para o sexo feminino ou mixto, foi criado um
posto para o sexo masculino naquela localidade, quando é certo que na Calheta, Sam
Miguel e Saltos, de que Flamengos constitui, por assim dizer, o centro onde existem
escolas para o sexo masculino.” (N.º 321, 13 de Dezembro de 1917, p. 2)
A classe, “um conjunto organizado” e “um lugar institucional” (Ardoino, 1977,
p. 47), está na origem da gestão escolar, que observou os princípios da
racionalização e da eficiência: ensinar ao maior número de alunos, com o menor
dispêndio de meios.
124
As crianças do ensino primário elementar e complementar deviam ser ensinadas em escolas de um só sexo.
Todavia, o art. 26º, § único, determinava: “quando, porem, em virtude da exigua densidade da população
escolar, não puder fundar-se uma escola para cada sexo, criar-se-ha uma escola mista”. A diferenciação foi,
também, adoptada na docência: “As escolas primarias para o sexo masculino são regidas por professores; as
mesmas escolas para o sexo femininas e as mistas são regidas por professoras” (art. 29º). Nas escolas
primárias superiores vigorava a “co-educação dos sexos” (art. 32º § 1) (Decreto de 29 de Março de 1911, tít.
III, cap. IV, p. 1.343).
98
A construção do discurso educativo
O cúmulo organizativo foi conseguido com a “divisão funcional do trabalho
(director, professores de cada classe, alunos), prescrita através de regulamentos
escritos que possam ser postos em prática, qualquer que seja a escola e qualquer
que seja o professor” (Barroso, 1995, p. 401).
Poder central
O poder político e administrativo normalizou as relações sociais e os jogos de
conduta no campo educacional. A acção governativa, “o domínio prático e teórico
em que a acção humana se verga às regras do cálculo, da medida e da
comparação” (Ó, 2003, p. 33), exercia uma acção de vigilância a partir de Lisboa,
centro do império.
Quadro 34 – Legislação educacional emanada do Governo da República
Diploma
Decreto de 22/2/1913
(Paços do Governo da República)
Boletim Oficial
N.º 12, 22/3/1913
Decreto n.º 2.349/354, 19/12/1913
(Direcção Geral das Colónias)
N.º 1 3/1/1914
Decreto n.º 22/179, 30/6/1914
(Paços do Governo da República)
N.º 29, 18/7/1914
Decreto n.º 888, 24/9/1914
(Paços do Governo da República)
Lei n.º 701, 13/6/1917
(Ministro das Colónias)
Assunto
Criação de três escolas primárias.
Autorização do estabelecimento de um curso de ensino
particular de instrução secundária, Mindelo,
alegando-se “falta de lei ou regulamento em vigor na
província”.
Declaração de nulidade da portaria provincial de 1 de
Janeiro de 1911, que suspendeu o presbítero e
professor do Seminário-Liceu de Cabo Verde, do
exercício docente e do vencimento, “por ter atacado
num sermão a lei do divórcio”.
N.º 42, 17/10/1914
Torna extensivo o direito de aposentação aos
professores das escolas municipais ultramarinas.
N.º 27, 7/7/1917
Extingue as Escolas Práticas de Aprendizagem e cria
um Liceu.
Decreto n.º 3.435, 8/10/1917
(Ministro das Colónias)
Supl. nº 43, 30/10/1917
Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde
Decreto n.º 6.132, 12/12/1919
(Ministro da Instrução Pública)
Supl. nº 49, 12/12/1919
Programas das disciplinas do curso geral e do curso
complementar do Liceu.
Trata-se de uma simbiose de actos rotineiros (criação/extinção de escolas e
nomeação de professores) e de normativos de regulação e reforma (planos
orgânico e programas de ensino).
A governação colonial a distância implicou a criação de uma plataforma de
poder, localizada na capital da província. A Carta Orgânica da Província de Cabo
99
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Verde, de 25 de Junho de 1917125, definiu os princípios do governo provincial, que
“desfruta de autonomia administrativa e financeira nas condições definidas pelo
diploma, sob a superintendência e fiscalização da metrópole” (art. 1º).
A província era administrada por um governador que tinha, entre outras
competências, as de “nomear, promover, confirmar, transferir dentro da província,
aposentar e exonerar, nos termos legais, os funcionários da mesma, que não
tenham nomeação do Govêrno da Metrópole” (art. 43º, 9. Carta Orgânica, 25 de
Junho de 1917) e, com o voto afirmativo do Conselho do Governo, “aprovar os
estatutos das associações e institutos de recreio, instrução pública, educação (...),
bem como os seus regulamentos orgânicos e dos estabelecimentos que
administrem” (art. 44º, 4). O Conselho do Governo era constituído por vogais
funcionários e eleitos126, uns e outros habitantes da colónia, representando os
eleitos, a população para os efeitos de promover e defender os seus interesses
legítimos e exprimir a sua opinião” (art. 63º). A gestão dos assuntos “de instrução
pública” (art. 98º, 2) e “o serviço de estatística geral da Província” (art. 5º) eram
encargos do Secretário Geral.
Segundo os Planos Orgânicos de Instrução Pública, de 1917 e 1918 (Decreto n.º
3.433 e Portaria n.º 474127), a direcção e a fiscalização do ensino eram exercidas
pelo Conselho de Instrução Pública, com composição diferente nos dois
normativos.
Quadro 35 – Constituição do Conselho de Instrução Pública
Plano Orgânico, de 1917
Governador
Secretário Geral
Director das Obras Públicas
Capitão dos Portos128
Chefe de Repartição de Agricultura e Pecuária
Inspector do Ensino Primário e Normal de Sotavento
Cinco cidadãos eleitos e residentes na Praia129
125
Plano Orgânico, de 1918
Governador
Vice-Presidente do Conselho do Governo
Inspector do Ensino Primário
Dois cidadãos eleitos e residentes na Praia130
Decreto n.º 3.108-B. Supl. nº 9 ao Boletim Oficial n..º 45, 25 de Junho de 1917, pp. 1-31.
Vogais eleitos do Conselho do Governo: um representante da população de cada ilha, eleito pelos vogais
dos corpos administrativos (art. 63º, b).
127
Consultar o apêndice D.
128
Coordenavam as acções respeitantes à Escola Profissional de Pilotagem.
129
Cinco cidadãos de reconhecida competência, residentes na Praia, eleitos, um pelo Consêlho do Governo de
entre os seus membros não funcionários, um pela Câmara Municipal da Praia, um pela Câmara Municipal de
S. Vicente e os dois restantes, respectivamente, pelos municípios de Sotavento e Barlavento, ainda não
representados (art. 24º). O período de exercício dos vogais eleitos era de três anos.
130
Dois cidadãos de reconhecida competência, residentes na Praia, eleitos trienalmente, um pelas Câmaras
Municipais das ilhas de Sotavento e outro pelas Câmaras das ilhas de Barlavento (art. 44.º).
126
100
A construção do discurso educativo
A composição deste organismo colegial foi simplificada, em 1918, com perda
de membros com conhecimentos especializados (Náutica, Obras Públicas e
Agricultura) e redução do número de cidadãos eleitos.
O quadro seguinte elenca os domínios de intervenção do poder provincial:
acção educativa quotidiana, gestão do corpo docente, regulação da carta escolar,
controlo da intervenção social e produção/divulgação de sistemas de informações.
Quadro 36 – Domínios de intervenção do Governo Provincial
Domínios
Nomeação de comissões para a reforma do ensino
Concurso documental para o lugar de professor
Mobilidade do corpo docente
Louvores a professores
Medidas disciplinares
Nomeação de directores de escolas e reitores do liceu
Criação, conversão, transferência, e extinção de escolas
Reforço de verbas no orçamento da província
Abertura das aulas nos estabelecimentos de ensino
Proibição da utilização do crioulo nas escolas
Assistência aos alunos pobres
Criação do dia da árvore
Estatísticas gerais e educacionais
Constituição dos júris de exames
Instruções relativas aos actos de exame
Abertura das matrículas nos estabelecimentos de ensino
Classificação dos professores
Selecção dos membros dos júris de exames
Selecção e nomeação de professores
Autorização e fiscalização do ensino privado
Aprovação dos horários do liceu
Entidade
Governador
Governador
Governador
Governador
Governador
Governador
Governador
Governador
Governador
Governador
Governador
Governador
Secretaria Geral
Secretaria Geral
Secretaria Geral
Secretaria Geral
Secretaria Geral
Conselho de Instrução Pública
Conselho de Instrução Pública
Conselho de Instrução Pública
Conselho de Instrução Pública
Tipo de diploma
Portaria
Anúncio
Portaria
Portaria
Portaria
Portaria
Portaria
Portaria
Portaria
Portaria
Portaria
Portaria
Mapa
Publicação
Publicação
Anúncio
Portaria
Publicação
Portaria
Despacho
Publicação
O exercício governativo era objecto de apreciação crítica pela sociedade: “Em
Cabo Verde temos, é certo, um chamado Conselho Inspector de Instrução Pública.
Mas de organização acanhada, restrita e obsoleta, está actualmente muito longe de
satisfazer a um fim útil e progressivo” (O Futuro de Cabo Verde n.º 17, 31 de
Agosto de 1913, p. 5). O inspector escolar, no ano 1919/20131, numa apreciação
sobre “o estado dos serviços escolares” afirmava que “tem sido muito criticada e
por vezes com excessiva severidade, em discussões publicas, a acção do governo
131
Não conseguimos datar com precisão o relatório do inspector escolar. Deduzimos que foi redigido em fins
de 1919, pois o autor refere-se ao ano do seu com o afastamento temporario da sede do Governo, “de que tanto
necessitava a minha deprimida saude”. Segundo o Boletim Oficial, n.º 41, 10 de Outubro de 1925, p. 307, o
inspector partiu para Portugal com licença disciplinar, no dia 7 de Novembro de 1919.
101
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
central e do governo provincial no que respeita à instrução primaria nesta colonia”
(relatório, s.d.132).
132
Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
102
A construção do discurso educativo
Figura 10. Palácio do Governo, cidade da Praia, cerca de 1910
Ed. União Postal Universal (Loureiro, 1998, p. 55)
Poder local
O poder local era exercido, nas “sedes das paróquias civis ou ainda em outras
povoações”, por juntas constituídas por três vogais eleitos (art. 264º, Carta
Orgânica, 25 de Junho de 1917) e “se na localidade houver professor de escola
pública primária e o número de elegíveis fôr inferior a trinta, mas não a vinte,
funcionará a junta, constituindo-se com o professor e dois membros eleitos” (§ 1).
As juntas reunidas “no edificio da escola ou em qualquer casa de despacho que
escolher” (art. 269º, § 2) deviam “fazer, em época pré-fixa, o recenseamento
escolar da respectiva área e enviá-lo, em tempo oportuno, à autoridade
competente” (art. 265º, 6.º).
Se a situação do ensino primário corria mal no sistema de centralização,
igualmente mal continuou a correr com a descentralização (Carvalho, 2001, p.
679).
“Em qual das ilhas é que a tua vontade é consultada? Em que os direitos do
município constituem um facto?
Desde S. Vicente onde campeia o sinecurismo; desde a Praia, onde a Salvé Rainha na
pontinha da língua, é a melhor bitola nos exames de instrucção primária: até à
pequenina Brava, onde a imbecilidade deu leis – passando por todas as ilhas –, onde
103
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
é que tu, meu grande pedaço d’asno, exerces o teu jus sufragii, e conservas o aprumo
levantado do povo livre, que a lei te confere e que os teus capatazes to negam?
Não te parece, isto, esta reles pandega, um fim de festa, na qual, os convivas tardios
e insaciados estejam engulindo sem mastigar, na cega inconsciencia d’uma
voracidade de tubarões?” (Tavares, 1910, p. 15).
“A existencia das Comissões Municipais, cujos membros se arranjam ou se tiram por
uma simples portaria para representarem a vontade do povo, é não só ilegal mas sim
vexatória, para o nosso grau da civilisação.
Como se pode ser interprete da vontade do povo, quem ele não escolheu e nenhum
interesse tem na administração dos seus negocios?
Quando é que veremos o povo representado por uma Câmara electiva, que zele os
seus interesses, que defenda os seus direitos e que dignifique a sua missão, tão
humanitária?!!” (Voz de África, nº 18, 15 de Maio de 1913, p. 3)
Nem sempre a opinião pública verberou o municipalismo. Estimulou a acção
municipal, em prol da escolarização, com a parceria de cidadãos e de entidades
privadas (ex. Comissão Municipal de S. Vicente133). Por iniciativa do Governo
Provincial, “os presidentes das corporações municipais, ou delegados das
corporação” foram chamados para opinarem sobre “a remodelação e
desenvolvimento do ensino primário nesta província, deliberar sôbre a escolha dos
respectivos livros e sôbre a possível criação de mais escolas, mediante um imposto
equitativo e quanto possível distribuído por toda a população” (Boletim Oficial, n.º
41, 9 de Outubro 1915, p. 348).
As limitações financeiras colocavam os municípios sob o arbítrio do poder central.
“Enquanto as camaras municipais não poderem tomar todos os encargos resultantes
do ensino primario, e mesmo quando assim suceder, para que haja a necessaria
uniformidade em todas as questões do ensino nos diferentes, as camaras não devem
tomar resoluções deliberativas sobre assuntos desta natureza, sem o voto afirmativo
do Conselho Inspector. (...)
Quanto a vencimentos, as camaras municipais não deverão em caso algum, elevar ou
diminuir, seja a que titulo for, os vencimentos dos professores nem atribuir-lhes, sob
qualquer pretexto, gratificação alguma, a não ser, pelo que respeita à diminuição, que
um caso de força maior, como seja a falta de rendimentos ou contribuições, se
imponha como medida. Neste caso a medida deverá ser extensiva a todos os serviços
camararios.” (Relatório, 13 Outubro 1914134)
133
134
Criação do Curso Livre de Ensino Primário Superior (1912).
Cx.ª 664. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
104
A construção do discurso educativo
Dispositivos de vigilância
O tempo e espaço escolares eram geridos com dispositivos de coordenação,
controlo e fiscalização, como o calendário escolar e o horário-tipo. O ciclo da vida
escolar – ano lectivo – era simbolicamente iniciado em cerimoniais, que
congregavam as forças vivas da sociedade islena.
“É talvez o primeiro caso de um governador ordenar oficialmente que a abertura das
aulas seja feita com a maior solenidade. Apoiado o govêrno que assim procede! É
rialmente indispensavel que a abertura duma escola retumbe no espírito geral como
um dos maiores progressos acontecidos entre a comunidade! Até hoje êste acto de
uma significação encantadora, passava desapercebido em quási todos os povos. E
porquê? É que a escola primária era uma mendiga andrajosa e suja, de quem não
valia a pena fazer caso: o edificio era pequeno esburacado e imundo; tinha apenas as
quatro paredes despidas com portas velhas, carunchosas, e com janelas a
desconjuntarem-se, sem a mais modesta vidraça. Alêm, a um canto semi-escuro,
jazia uma mesa pequena, encebada, com um tinteiro sêco e uma caneta sem aparo, a
ornamenta-la! Uns bancos trôpegos e algo desconjuntados formavam o complemento
de todo aquele luxo e de toda aquela grandeza.
A escola primária, no passado, foi um escárneo, porque os felizes tubarões uma vez
saídos dela, iam depois deprimi-la assim como ao mártir professor que os tinha
pacientemente ensinado!
Essa época tenebrosa acabou. O luminoso tempo da democracia varreu toda a
iniquidade dos tempos idos para festejar o sol esplêndido que no horisonte apareceu,
aquecendo com seu calor de caridade os menos favorecidos da fortuna e os que mais
trabalham em benefício da humanidade.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 177, 24 de
Setembro de 1916, p.1)
À Inspecção Escolar incumbia o controlo externo. Em 1917, foram nomeados
“dois inspectores, um para o Círculo de Sotavento, com sede na Praia, e outro para
o de Barlavento, com sede em S. Vicente, os quais percorrerão as escolas durante
os meses do ano lectivo, fiscalizando, dirigindo e aperfeiçoando os professores,
uniformizando os métodos e os processos de ensino, e elevando assim o nível
pedagógico das escolas” (art. 10º, Plano Orgânico da Instrução Pública, de
1917135).
A inspecção, que devia actuar in situ, era exercida por “inspectores da
metrópole”.
135
O Plano Orgânico de 1918 limitou a acção inspectiva, ficando um só inspector, “um dos dois que já estão
na provincia, ficando o outro a servir como professor de Pedagogia no Instituto de Instrução Secundária”
(Portaria nº 474, tít. II, cap. 2, art. 16º, § 1). Consultar o apêndice D.
105
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
“Um inspector que não inspecciona.
Se não estamos em erro há mais de 18 anos que a província paga a uma certa pessôa
500$00 anuais, como inspector das escolas primarias. Ora durante êsse longo lapso
de tempo, não nos lembra que o Sr. inspector uma só vez as tenha inspecionado.
Logo durante êsse período, tem a província gasto a bagatela de escudos 9.000 com
um funcionario que recebe os vencimentos sem trabalhar. Não pode continuar… ou
então comam todos.” (A Defesa, n.º 4, 15 de Outubro de 1913, p. 2)
“Ainda sobre a inspecção às escolas: tem acontecido, escolher-se um apaniguado e
mandal'o mediante boa massa, já se deixa ver, proceder à inspecção às escolas, que
seria melhor mandal'o passear à custa dos pobres contribuintes, sem nada fazer (...).
O célebre inspector teve o descaro de dizer-me, lembro-me disto ainda com horror:
que me não matasse com o ensino porque não convinha que se ilustrassem os
humildes, aliás seríamos mal servidos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 232, 1 de Março
de 1916, p. 3)
O inspector do círculo de Sotavento, não obstante o carácter fugaz da sua
missão136, apresentou um relato do estado da instrução e um perfil do cargo
inspectivo:
“Assim, dadas as condições imperfeitas, mesmo bastante defeituosas, do ensino
primario em Cabo Verde; a deficiente preparação de muitos dos professores,
portanto, o pouco rendimento útil das escolas; - reconhecida também a necessidade
de imprimir-se ao ensino uma orientação quanto possível progressiva e em que sejam
aproveitados e seguidos processos modernos de cultura das creanças : afigura-se-me
que a provincia deve, antes ter um serviço de inspecção e escola movel «para
professores», ou seja contractar um individuo competente: - primeiro para instrui-los
em mettodo e sistemas de ensino uniforme, mediante um programa que lhes faça
distribuir, contendo preceitos dos mais praticamente experimentados a que se
subordinem o ensino e trato de cultura dos alunos; depois, para verificar, em
inspecção directa das escolas, se tal programa é fielmente interpretado e executado, e
se os resultados obtidos na sua aplicação recomendam a definitiva nomeação dos
professores interinos ou provisorios susceptiveis de provimento, e, de modo geral,
qualquer procedimento tendente a melhorar o que porventura se acuse de menos
proveitoso pela referida inspecção. É assim que me parece mais util e pratica a
missão de um inspector de escolas, e não assimilando-se essa tarefa ao cargo de
secretario geral, que é, por via de regra, o repositorio vago, no ultramar portuguez, de
todos os serviços que teem responsável definido ou técnico; do que resulta para o
caso presente, um inevitavel prejuizo para tal inspecção, e pouco beneficio, de facto,
para a instrução publica, visto não ser precisamente um pedagogo e um mestre, com
competencia e autoridade profissional para dirigir o professorado primário, conforme
atraz referi” (Relatório, s.d.137)
136
Tendo-se retirado para a metrópole em 7 de Novembro do mesmo ano [1919] com 60 dias de licença
disciplinar nunca mais voltou à província (Boletim Oficial, n.º 41, 10 de Outubro de 1925, p. 307).
137
Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
106
A construção do discurso educativo
O inspector do círculo de Barlavento foi arguido, num processo de inquirição,
pelo Administrador do Concelho da Ribeira Grande, Guilherme Reginaldo
Morbey:
“O inspector não se demorava nas aulas, fazendo visitas rápidas, não assistindo as
leccionações, interrogando raramente os alunos e que nas suas visitas, tratava
primordial e quasi exclusivamente da escripturação escolar. (...)
Tampouco, como o determina o § único, desse artigo [96.º do Regulamento
Provisório de Instrução Pública], nunca assistiu a toda a aula, em qualquer escola, e
só, por vezes, como mero desfastio fez algumas perguntas aos alunos. Não consta
que tivesse feito lições, nas escolas, por onde passou. (....)
O seu extremo cuidado e zelo, como nitidamente ressalta da declaração dos
professores, era tão sómente dedicado à inspecção da escrituração escolar, porventura
porque como ele declara, na reprimenda que deu à professora (...) é pela estatística
geral e especial de cada escola, pela qual se avalia o progresso do ensino num país,
numa região ou numa escóla e à qual os pedagogistas modernos dão grande valor.”
(Relatório, 29 de Julho de 1919, f. 14v/15138)
O teor da inquirição demonstra o descrédito da acção inspectiva, “[onde
cometeu] tais erros, tais gafes, tais defecções em frente dos professores, [que]
depõem muito contra a sua competencia, fazem ressaltar a sua incapacidade
tecnica e profissional para o cargo que vinha desempenhando” (idem, fv. 17).
Figura 11. “Se a gramática não erra…”
(Excerto de relatório, 29 de Julho de 1919, Santo Antão)
138
Cx.ª 671. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
107
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Em 1920, foi criado o lugar de Secretário da Inspecção Escolar, “em virtude
dos múltiplos assuntos que, além do serviço de fiscalização e orientação do ensino,
são cometidas ao inspector” (Boletim Oficial, n.º 28, de 10 de Julho de 1920, p.
288). Dois anos mais tarde, O Correio de África noticiava a nomeação de um
inspector cabo-verdiano, “o nosso ilustre compatriota e distinto professor primario
sr. José dos Reis Borges“ (n.º 51, 1 de Setembro de 1922, p. 2).
“Convencido de que um inspector escolar, por mais hábil que seja e por maiores que
sejam as suas faculdades de trabalho, pouco poderá produzir, agindo isoladamente,
isto é, sem o concurso de professores; convencido também de que o professorado
primário de Cabo Verde possui elementos valiosos, quer sob o ponto de vista moral,
quer sob o ponto de vista intelectual e animado dos melhores desejos de trabalhar e
de sempre acertar, venho confiadamente, como amigo e como colega, solicitar o
valioso concurso de V. Ex.ª no sentido de elevarmos por uma educação bem
orientada, o nível intelectual e moral do povo de Cabo Verde. E para isso basta que
encaremos muito a sério a nossa missão, que é das mais honrosas e das mais
sublimes; que o professorado se una sinceramente em tôrno do inspector, e que,
finalmente, tenhamos por divisa – Ordem e Trabalho.” O inspector escolar, interino,
José dos Reis Borges.” (Boletim Oficial n.º 7, 18 de Fevereiro de 1921, p 54)
No ano de 1923 foi criada uma secção de Instrução Pública, na Secretaria Geral
do Governo (Diploma Legislativo n.º 38, 26 de Fevereiro), com a prestação de
serviço de um professor primário que se ocupava da fiscalização do sistema
escolar. Esta medida não foi duradoira e as competências inspectivas foram
cometidas “ao Secretário Geral do Governo de Cabo Verde, que as exercerá em
todo o arquipélago”, com a argumentação que os serviços de instrução pública “se
encontram defeituosos, havendo escolas em que os professores não primam pela
competência nem pela assiduidade”139 (Boletim Oficial, n.º 41, 10 de Outubro de
1925, p. 307).
As sucessivas identidades da fiscalização do ensino demonstram as hesitações
entre a visão pedagógica, em sede de escola e a visão administrativa, centrada no
poder político. O contacto directo dos inspectores, que “percorrerão as escolas
durante os meses do ano lectivo, fiscalizando, dirigindo e aperfeiçoando os
professores, uniformizando os métodos de ensino, e elevando assim o nível
pedagógico das escolas140”, foi substituído pelo controlo indirecto através de
processos, relatórios, cadastros e demais registos, em diferido, da vida escolar.
139
No relato do estado da instrução o inspector de Sotavento advertia quanto à possibilidade da atribuição do
cargo de inspector ao Secretário Geral do Governo, visto “não ser precisamente um pedagogo e um mestre”
(p. 105).
140
Apêndice D.
108
A construção do discurso educativo
3.2. Financiamento do ensino
Quem geria os recursos financeiros?
A resposta a esta questão foi procurada na produção discursiva (imprensa) e no
legado normativo dos decisores (Boletins Oficiais).
Enquanto que na metrópole foi fixado o quadro normativo do financiamento da
instrução pública (Decreto de 29 de Março de 1911141), em Cabo Verde, a gestão
de despesas e receitas para a instrução era regida por medidas avulsas.
“Das corporações municipais, sobrecarregadas com despesas que melhor cabem ao
govêrno, como a da renda de casa, mobiliário e custiamento das escolas, apenas a
Comissão Municipal da Praia, por proposta do seu ilustre presidente, sr. Guilherme
de Meneses, mostrou interessar-se pela causa do ensino, propondo em sessão da
edilidade um aumento de impostos, consagrado integralmente ao ensino, proposta
que está pendente da resolução ulterior.
Trata-se da criação de um imposto de 10% sôbre as contribuições predial e industrial
cobradas pelo Estado, e sôbre as taxas de licença passadas pela Câmara Municipal,
sendo êste imposto cobrado conjuntamente com os 10% que a câmara actualmente
cobra, mas a sua inscrição no orçamento municipal far-se-há em separado. Isto é, a
sua aplicação será única e exclusivamente destinada ao custeio de 7 escolas de
instrução primária do 1º grau, distribuidas por êste concêlho, que são as que o
aumento das receitas preveem.
Com esses impostos, cujo fim altamente patriótico não podemos deixar de encarecer,
a Comissão Municipal propõe-se, quanto em si caiba, difundir a instrução pelo
concelho, desanuviando o futuro desventuroso, que espera a todos os que, não
sabendo ler nem escrever a língua nacional, pensem em ir moirejar a vida pela
América. Êsses impostos, pela sua relativa modicidade, demonstram abertamente que
não são gravosos e não dificultam, por conseguinte, até a embaraçar, a vida
141
Art. 52º As despesas com o serviço da instrução pública são pagas pelo Estado e pelas Câmaras
Municipais. § 1.º O Estado paga as despesas relativas á direcção, fiscalização e administração do ensino
normal e à direcção do ensino primário.
§ 2º As Câmaras Municipais pagam as despesas de administração do ensino primário de todas as categorias, e
que digam respeito aos seguintes encargos: a) rendas de casa das escolas e habitações dos professores; b)
subsídios de renda de casa; c) aquisição de material didáctico; d) reparação e conservação dos edifícios
escolares; e) prémio de seguro dos mesmos edifícios; f) expediente e limpeza das escolas; g) despesas com os
exames de instrução primária e h) ordenados aos professores.
Art. 53º Para os effeitos do pagamento das despesas com os serviços da administração do ensino primario é
criado, junto de cada um dos municipios da Republica, um fundo escolar. (Diário do Governo, nº 73, 30 de
Março de 1911, p. 1.344)
109
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
económica dos cidadãos. Pelo contrário, vem beneficiá-la, não para já, mas para
daqui a algum tempo, porque, fechando a emigração para os Estados Unidos, a
Província ressentir-se-ia grandemente dêste desvio da corrente emigratória, pela
cessação da drenagem de oiro que da América chega anualmente.” (O Futuro de
Cabo Verde, n.º 5, 29 de Maio de 1913, p.1)
As receitas obtidas com a contribuição de cidadãos (impostos) eram
administradas pelo poder provincial e pelos municípios. O binómio
ensino/emigração ressurge com o projecto de criação de um imposto “que se
pretendia mais equitativo: (...) seria o de 5$000 réis por cada emigrante que
regresse da América do Sul ou do Norte, à entrada na província e que se destinaria
à criação e manutenção de escolas primárias” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 6, 5 de
Junho de 1913, p. 1).
A angariação de receitas para a educação dependia da iniciativa dos “filhos
dilectos desta terra”:
“Foi êste filho dilecto desta terra [Viriato Gomes da Fonseca, major de artilharia],
que elevou a verba da instrução, que era de 1.280$00 escudos, a 2.079$00, criando
no orçamento, que então elaborou, um tributo sobre as licenças da venda da
aguardente, desse veneno tam prejudicial à instrução da sua terra.
Depois o sucessor dêste notável homem, no Senado camarário, o eminente sábio e
abalisado professor José Lopes, elevou também a verba da instrução, que era de
2.079$00 para 2.390$00 escudos, o que foi um valente impulso para a beneficência
pública; mas José Pereira Serra, eleito presidente, a seguir ao Lopes, ainda encontrou
maneira de ampliar esta dotação da educação juvenil, alongando-a para 2.668$69
escudos!” (A Voz de Cabo Verde, n.º 186, 1 de Março de 1915, p. 3)
O ordenamento da instrução pública, no Plano Orgânico (1917), contemplou as
bases da gestão orçamental e definiu os procedimentos de mobilização e de
administração dos recursos financeiros:
“Art. 26° São obrigadas as câmaras municipais a destinar aos encargos de instrução,
pelas forças das suas receitas, quantias pelo menos iguais às que actualmente
dispendem com o ensino primário, devendo essas quantias ser entregues
trimestralmente nas recebedorias de fazenda concelhias, à ordem do govêrno da
província.
§ único. Efectuada a nova divisão administrativa da província, as câmaras municipais
dos concelhos cuja área for alterada, e bem assim as comissões municipais dos novos
concelhos irregulares, são obrigadas a destinar aos encargos de instrução, pelas
forças das suas receitas, quantias pelo menos iguais às que lhe competiriam na
divisão das que actualmente dispendem as Câmaras dos concelhos antes de divididos.
Estas quantias terão o destino indicado no corpo deste artigo.
Art. 27° É criado o imposto de 3% ad-valorem sôbre todas as mercadorias
importadas pelas alfândegas de Cabo Verde, com excepção do carvão; e de $00 (l)
por quilograma sôbre a purgueira, exportada pelas mesmas alfândegas.
110
A construção do discurso educativo
Art. 28° É lançado um imposto de consumo de $10 por litro sôbre a aguardente
produzida na colónia ou nela importada.
Art. 29° Constituem fundo especial com aplicação exclusiva aos serviços de
instrução da colónia:
1º - Uma subvenção a inscrever anualmente no orçamento da província, nunca
inferior a 24.000$00;
2° - Uma subvenção a inscrever anualmente no orçamento da Junta de
Melhoramentos de Agricultura e Pecuária, nunca inferior a 5.000$00;
3° - As receitas provenientes das Câmaras e Comissões municipais, indicadas no
artigo 26° deste diploma e seu parágrafo único;
4° - O produto dos impostos criados pelos artigos 27° e 28°;
5° - Os saldos do fundo criado por este artigo e que existam à data de 30 de Junho do
ano económico anterior;
6° - Os donativos de entidades oficiais ou particulares, o produto das propinas; o das
multas provenientes da embriaguês e da prática de jogos ilícitos, e o de quaisquer
outras fontes especiais de receitas que com êsse destino forem criadas.
Art. 30° O fundo especial criado pelo artigo antecedente será distribuído segundo as
necessidades do ensino em orçamento de ano económico, que será elaborado pelo
Conselho de Instrução Pública e sujeito à aprovação do Conselho do Govêrno da
Colónia.
Art. 31º É autorizado o Governador da Província, ouvido o Conselho do Govêrno, a
contratar com um estabelecimento de crédito português, e com destino a construções
escolares, um empréstimo até à quantia de 60:000$ não devendo a taxa de juro
exceder 6%, e o prazo de amortização não ir além de 20 anos.” (Decreto nº 3.435, 8
de Outubro de 1917, p. 3142)
O segundo Plano Orgânico (1918) introduziu mudanças em matéria fiscal.
Criou novos impostos: $02 por litro sobre o vinho comum e bebidas fermentadas;
$04 por litro sobre os vinhos licorosos, espumosos, vermutes e champanhe,
importados pelas alfândegas da província e 5% ad-valorem sobre os metais
preciosos em obras (excluída a moeda), tabacos e tecidos de seda e $01 por quilo
de café143 (tít. VII, art. 48º e 50º, Portaria nº 474, 27 de Dezembro)144.
A política de expansão do sistema educativo assentou no agravamento contínuo
das tributações:
“O orçamento da Instrução Pública está desequilibradíssimo. O seu deficit sobe a uns
duzentos contos. Não obstante são frequentes as exigências para que se criem novas
escolas, pois que a população escolar excede muito da lotação das existentes.
Sustentar, porêm, o que existe é já impossível, se não criarem receitas.
142
Supl. nº 18 ao Boletim Oficial nº 43, 30 de Outubro de 1917, p. 3 (apêndice D).
Manteve os impostos de 3% ad valorem sobre as mercadorias importadas, de 00,1 por quilograma
sobre a purgueira e de consumo de $10 por litro sobre a aguardente (art. 49º).
144
Supl. nº 14 ao Boletim Oficial nº 52, 31 de Dezembro de 1918, p. 4 (apêndice D).
143
111
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Atendendo a esta necessidade, o Conselho Legislativo, aprovou e o Govêrno da
Colónia dá o seu assentimento ao seguinte, que fica provisóriamente em vigor, nos
termos da secção 2ª da base 30ª do decreto n.º 7:008, de 9 de Outubro de 1920:
Artigo 1º O imposto de consumo de aguardente produzida na província, destinado ao
fundo de instrução e criado por decreto n.º 3:435, de 8 de Outubro de 1920, é elevado
de $10 para 1$;
Artigo 2º É igualmente elevado de $10 para 3$, o imposto de consumo de aguardente
importada na província de portos estrangeiros ou nacionais, com destino ao fundo de
instrução.” (Boletim Oficial, n.º 51, 23 de Dezembro de 1922, p. 383)
O debate em torno do financiamento da instrução não se esgotou no
agenciamento de recursos. Incidia, também, no controlo da aplicação das receitas.
“O vogal snr. José Costa pergunta o que é feito da verba da instrução e daquele saldo
que sobejou do orçamento transacto, e diz que então se a verba não é gasta na
Instrução não compreende como estejamos a pagar 3% sobre tudo quanto comemos,
bebemos e vestimos. O snr. Secretário Geral explica que se já estivesse realisado o
emprestimo que a provincia pediu, teriamos dinheiro, para as importantes despesas
que compete ao desenvolvimento da Instrução Primária, mas assim é impossível
realisar um certo numero de melhoramentos devido à falta de recursos.” (Acta de 6
de Novembro de 1918145)
Para uma melhor compreensão dos custos da educação, procedemos à análise
das receitas e despesas destinadas ao ensino146.
A ponderação das despesas face ao total orçamentado, revela um decréscimo
dos gastos com o ensino no período de 1914 a 1915, fenómeno coerente com a
quebra de efectivos escolares na mesma época (menos 6,9%147). Seguiu-se um
período de crescimento de 1915 a 1920.
Quadro 37 – Distribuição das despesas com a instrução pública – 1912/1920
Despesas com a instrução
Anos
Orçamento
Valor em escudos
%
1912
381.073$041
21.389$965
5,61
1914
636.591$352
18.762$70
2,95
1915
476.982$89
18.225$56
3,82
1920
1.077.283$73
100.635$81
9,34
(Estatística Geral da População, 1913, 1915, 1918 e 1925)
145
Cx.ª 668. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
Deparámo-nos com limitações, de que destacamos a utilização de fontes de origens distintas e de séries
estatísticas incompletas (1910-1920) ou indisponíveis (1921-1926).
147
Consultar Quadro 22 (pág. 67).
146
112
A construção do discurso educativo
A evolução temporal148 das despesas consignadas para a instrução pública e a
sua distribuição espacial dão-nos uma ideia das assimetrias regionais no
desenvolvimento educacional.
Gráfico 6 – Distribuição do orçamento para a instrução pública, por concelhos/ilhas – 1912/1915
1912
35%
1914
1915
30%
25%
20%
15%
10%
5%
a
Bo
av
i st
Sa
l
S.
V
ic
en
te
S.
A
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ão
S.
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Br
av
a
Fo
go
ar
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a
ai
o
M
S.
Ca
t
Pr
ai
a
0%
A capital detinha a maior fatia orçamental149. Assiste-se a uma redução dos
custos da educação150 na ilha de S. Nicolau (1914/15), devido à decadência do
Seminário, que seria extinto em 1917. As dotações para o ensino, nas ilhas do
Fogo, Brava, Boavista e S. Vicente151 apresentam uma tendência ascendente.
A tributação foi a principal fonte de receitas. Apesar da variedade de projectos
de impostos, cujas receitas se destinavam à instrução pública, segundo as fontes
consultadas apenas se efectivaram os seguintes: 3% ad valorem sobre as
mercadorias importadas e 10% sobre as contribuições e as licenças para escolas.
148
Não incluímos o ano de 1920, pois os dados colhidos na Estatística Geral da Província de Cabo Verde
(ed.1925) não são congruentes com os dados referentes a anos anteriores e não fornecem informações sobre os
concelhos de Santa Catarina, S. Vicente, S. Nicolau e Boavista.
149
Em 1912, o orçamento global, para o ensino, foi de 21.389$965 e o concelho da Praia recebeu a dotação de
5.516$255.
150
Em 1912, em S. Nicolau, o orçamento para o ensino, no valor de 5.119$715, tinha um peso de 23,9%
(total: 21.389$965); em 1914, a dotação desceu para 1.110$30, equivalente a 5,9% (total: 18.762$661).
151
Na ilha de S. Vicente, no ano 1912, as despesas com o ensino foram orçadas em 1.662$100 (7,7%) e
no ano 1914, o orçamento ascendeu a 2.296$00 (12,2%).
113
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Quadro 38 – Conta corrente de receitas e despesas, município da Praia – 1910/1917
Receitas
Ano
Despesas
Designação
Valor Esc.
1910
Imposto 3% ad valorem sobre a importação
2.164$06
1912
Imposto 3% ad valorem sobre a importação
1.485$93
10% sobre as contribuições
Imposto 3% ad valorem sobre a importação
Total
10% sobre as contribuições
10% sobre as licenças para escolas
Imposto 3% ad valorem sobre a importação
Total
270$26
4.916$22
5.186$48
1 671$17
331$81
9.132$03
11.135$01
1915
1917
Perc.
Designação
Instrução Primária e apoio
a institutos152
Instrução Primária e apoio
a institutos153
Valor Esc.
1.595$18
Perc.
2.232$12
58,6%
Instrução primária
3.657$45
41,4%
73,7%
Instrução primária
3.966$10
26,3%
(Boletim Oficial n.º 9, 4 Março de 1911, p. 64; n.º 6, 8 de Fevereiro de 1913, p. 53; n.º 10, 4 de Março de
1916, p. 81; n.º 10, 9 de Março de 1918, p. 93)
A tabela apresenta os valores das receitas e despesas do ensino, geridas pelo
município da Praia. Verifica-se que as receitas, provenientes da tributação, eram
superiores às despesas (à excepção do ano de 1912), o que não é compatível com
as alegadas dificuldades financeiras, mas pode revelar uma deficiente gestão
orçamental.
Gráfico 7 – Distribuição dos subsídios atribuídos ao Fundo de Instrução – 1922
S. Vicente
33,9%
Praia
22,6%
Fogo
8,1%
Santa Catarina
Ribeira Grande
6,5%
Tarrafal
Brava
S. Nicolau
4,8%
3,2%
Paúl
Mosteiros
Boa Vista
0,8%
Sal
Maio
152
O total de despesas reportava-se a: Instrução primária – 1295$18; Instituto Ultramarino – 150$00; Instituto
Médico-Tropical – 150$00.
153
O total de despesas reportava-se a: Instrução primária – 1954$38; Instituto Ultramarino – 138$86; Instituto
Médico-Tropical – 138$87.
114
A construção do discurso educativo
O governo provincial fixou “os subsídios com que as câmaras e as comissões
municipais devem contribuir para o fundo especial de instrução pública”, no
montante global de 62.000$00 (Portaria n.º 99, 29 de Maio de 1922)154. A ilha de
S. Vicente contou com o subsídio mais avultado (21.000$00), o que se explica
pelo desenvolvimento no campo académico após a instalação do liceu. Seguem-se,
por ordem decrescente, as quotas dos municípios da Praia (14.000$00), de Santa
Catarina e da ilha do Fogo (5.000$00). Às ilhas do Sal e do Maio não foi exigido
qualquer subsídio, sintoma de níveis baixos de desenvolvimento educacional
(Gráfico 7).
A distribuição dos recursos, obtidos com os impostos destinados ao
financiamento da educação, demonstra que a ilha de S. Vicente liderava a
arrecadação de receitas (56,8%), seguida da cidade da Praia (25,4%).
Quadro 39 – Distribuição dos rendimentos obtidos com os impostos – 1922
Valor dos rendimentos
Círculos aduaneiros
3% ad valorem
Praia
Ribeira da Barca155
Tarrafal
Fogo
Brava
Maio
São Vicente
Santo Antão
São Nicolau
Sal
Boavista
Total
Imposto sobre a aguardente
Valor em escudos
Percentagem
6.963$47
58$20
750$89
1.907$37
2.032$44
19$50
6.982$97
58$20
750$89
1.907$37
2.032$44
13.800$45
37$35
107$22
1.846$80
15.647$25
37$35
107$22
25,4%
0,2%
2,7%
6,9%
7,4%
0,0%
56,8%
0,1%
0,4%
0,0%
0,1%
100,0%
18$17
25.675$56
1.866$30
18$17
27.541$86
(Resumo do rendimento no mês de Fevereiro de 1922. Administração do Círculo Aduaneiro, Praia156)
Não obstante as notórias dificuldades com a obtenção de recursos para a
educação, as verbas destinadas à instrução pública foram utilizadas para outros
fins, incluindo a aquisição de bens para o palácio do governador:
154
Boletim Oficial, n.º 22, 3 de Junho de 1922, p. 173.
Porto do concelho de Santa Catarina.
156
Boletim Oficial, n.º 24, 17 de Junho de 1922.
155
115
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
“Sendo insuficientes os saldos existentes no capitulo 1º do quadro das despesas
ordinárias do corrente ano económico, na verba da secção 3ª do artigo 1º «aquisição e
concerto de mobília dos palácios do governo», e na verba 1º da secção 2ª do artigo 7º
«material para serviços agrícolas, experimentais e exploração» para ocorrer até ao
fim da actual gerência aos pagamentos de caracter inadiável; (...)
Hei por conveniente determinar
Que dentro do capítulo 1º do quadro da despesa ordinária da colónia, em vigor no
corrente ano económico, se façam as transferências seguintes:
a) Da secção 2ª do artigo 3º «instrução pública», cem escudos (100$) para a secção 3ª
do artigo 1º «aquisição e concerto das mobilias do palácio do Governo».
b) Da secção 5ª do artigo 3º «instrução pública», tresentos escudos (300$) para a
verba 1ª da secção 2ª do artigo 7º «material para serviços agrícolas, experimentais e
explorados».
c) Da secção 1ª do artigo 7º «para pagamento de ajudas de custos», quatrocentos
escudos (400$) para verba 1.ª secção 2ª do mesmo artigo «material para serviços
agrícolas, experimentais e explorações».
As autoridades e mais pessoas, a quem o conhecimento e execução da presente
competir, assim o tenham entendido e cumprem.” (Portaria n.º 104, Boletim Oficial,
n.º 17, 24 de Abril de 1915, p. 157)
Ao findarmos a análise retrospectiva do financiamento da instrução pública –
em determinações legais, números esparsos ou organizados em séries estatísticas e
pela voz crítica da imprensa – inferimos que a gestão educacional se caracterizou
por desequilíbrios orçamentais gravosos para a educação, num contexto de
“descentralização controlada”157 pelo poder colonial.
157
Expressão utilizada por João Barroso (1995, p. 725).
116
A construção do discurso educativo
3.3. Intervenção social
No período republicano, a expansão da oferta educativa exigia uma forte
intervenção estatal. A ineficácia da governação redundou num panorama educativo
degradado, caracterizado pela precariedade das escolas, distorção da rede escolar e
estratificação social: escolas para alunos e para alunas (em clara minoria); alunos
brancos, mistos e pretos; da cidade e do interior; remediados e pobres.
Nas ilhas de Cabo Verde, a pobreza visível e sentida158 era um flagelo que se
agudizava nas cíclicas e frequentes crises alimentares:
“A Comissão Central de Assistência, instituída em face da pavorosa crise que assola
as ilhas de Cabo Verde, motivada pela absoluta falta de chuvas e agravada pela
escassês e carestia dos transportes marítimos, certa de que nem um só coração
deixará de se abrir aos lamentosos ais de todo um povo que se contorce numa horrida
e cruel agonia, vem, esperançada nos seus sentimentos generosos e em nome dos
laços que prendem toda a humanidade, solicitar de V. Ex.ª o valioso auxílio da
abertura de uma subscrição entre as pessoas das suas relações, nos jornais, e em todas
as instituições em que exerça influência, a fim de, com o seu produto minorar a crise
horrível, que algumas vítimas está causando. (...)
Bem maior que as forças da Comissão é sem dúvida a impetuosidade do flagelo que
abala a Sociedade nos seus próprios alicerces, enervando e desorientando energias
que seriam úteis à barreira de resistência tão carente de refôrço e de novas dedicações
extremadas. Bem sabe a Comissão que é triste, mesmo muitíssimo horroroso, o
assistir ao cortejo macabro das vítimas da fome, rua fóra, de mãos súplices à caridade
pública umas, e direitas à vala comum, terminus de um sofrimento atroz, aqueles que
menos puderam resistir.” (Boletim Oficial, n.º 15, 9 de Abril de 1921, pp. 151-152)
Cynthia Greive Veiga, no texto Alunos pobres no Brasil, século XIX: uma
condição de infância, refere que a pobreza oficial está patente “nos registros de
matrículas, na relação de pais omissos e nas listagens de alunos pobres” (s. d.,
p.32). Também, em Cabo Verde, a pobreza é omnipresente na produção
burocrática e discursiva. Parca em palavras surge em alusões colaterais e silêncios.
Os alunos pobres raramente aparecem como sujeitos, mas sim como objectos de
medidas reparadoras, sob a égide do assistencialismo social.
158
Em Alunos pobres no Brasil, século XIX: uma condição de infância, Cynthia Greive Veiga propõe três
conceitos de pobreza: oficial, visível e sentida. Texto elaborado a partir da pesquisa “História social da
infância: crianças pobres, negras, pardas e mestiças na institucionalização da instrução elementar em Minas
Gerais, século XIX”, sob a orientação da Prof.ª Maria Luiza Marcílio, em programa de pós-doutoramento na
Universidade de São Paulo (s. d.).
117
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
“Para realisar tão humanitarios fins [distribuição gratuita de livros e vestuários aos
alunos pobres], carecemos do auxilio das pessoas generosas, pelo que vimos solicitar
a valiosa coadjuvação de V. Ex.ª, pedindo-lhe se inscreva como socio da Associação
de Assistencia Escolar, cujas quotas são de 100 ou 200 réis mensais, à escolha.” (A
Voz de Cabo Verde, n.º 55, 2 de Setembro de 1912, p. 1)
O Plano Orgânico de Instrução Pública de Cabo Verde (1917) estipulava “para
a assistência escolar anualmente uma verba não inferior a 1.000$” (tít. VII, art.
32º, Decreto nº 3:485). No segundo Plano Orgânico (1918) o valor triplicou,
sendo destinado à “distribuição de livros e material escolar aos alunos pobres,
pelo sustento e ensino destes no Instituto de Instrução Secundária159, e pela
distribuição de uma ração diária a 90 alunos das escolas profissionais da Praia e
de S. Jorge dos Órgãos” (tít. VIII, art. 55º, Portaria nº 474, 27 de Dezembro).
O Presidente da Câmara Municipal da Praia, em carta ao Secretário Geral do
Governo, aludia a “abusos na venda de manuais e mudança constante de títulos”
e inscreveu no orçamento, a verba de 20$00, para a compra de livros para os
alunos pobres. Era uma verba irrisória para a capital da província160.
Em 1918, foi constituída a associação “O vintém das escolas”, para a qual
convergiram apoios do governo, dos municípios e da sociedade:
“Foi apresentada a nota número 131 de 18 de Junho findo da Administração do
Concelho da Brava, solicitando o abono de um subsídio ao Govêrno para se acudir à
distribuição de livros, papel e roupa às creanças pobres, para refôrço da verba com
que já hoje contam para o mesmo fim e que provêm de uma Associação com o título
«O vintém das escolas», organizado pelo presidente da Junta Local de Instrução a
convite do Inspector Primário de Barlavento.” (Acta da Sessão do Conselho de
Instrução Pública, 3 de Julho de 1918161)
A desproporção entre as sequelas sociais da pobreza, corolário das estiagens e
as referências discretas à pobreza dos alunos, permite-nos concluir que o discurso
dominante sugeria, mais do que desvendava, a pobreza vivida e sentida pelas
crianças do arquipélago.
159
Consultar Parte II, Subcapítulo 7.2. (págs. 221-223).
Numa factura datada de 20 de Fevereiro de 1915, constam os seguintes preços: 100 livros de leitura, 1.ª
classe – 12$00; 50 livros de leitura, 2.ª e 3:ª classes – 15$00; 50 livros de leitura, 4.ª classe – 15$00; 100
Sistemas Métricos – 15$00; 100 gramáticas – 25$00; 100 livros de Educação Cívica – 12$00; 100 livros de
História – 20$00; 100 livros de Aritmética – 28$00; 100 caligrafias – 24$30; 100 livros de Corografia –
25$00; 100 livros de Agricultura – 25$00 e 150 Cartilhas escolares – 7$50. (Cx.ª 670. Fundo da Secretaria
Geral do Governo, IAHN)
161
Cx.ª 668. Fundo da Secretaria Geral do Governo, 3 de Julho de 1918, IAHN.
160
118
A construção do discurso educativo
Ensino particular
Os estabelecimentos de ensino eram classificados em escolas oficiais,
municipais, particulares e religiosas. As fronteiras da nomenclatura situam-se na
delimitação da propriedade e no grau de regulação estatal e de intervenção da
sociedade.
O ensino particular complementava o ensino público, cuja administração
prometeu mais do que a vontade e as finanças conseguiam realizar.
“E o mal [do ensino] é gravissimo, carece de remedio urgente. É preciso que o
caboverdiano saiba ler e escrever a sua lingua para que não lhe vedem a entrada nos
paizes onde tantos vão procurar trabalho, buscar o sustento e a civilização.
Procurava dar esse remedio pronto e eficaz a portaria n.º 126 publicada no Boletim
da Província, n.º 13 de 30 de Março de 1889.
Era o recurso ao ensino particular, estimulado por meio de premios pecuniários, cujo
quantitativo por aluno seria fixado devidamente, sendo os fundos para estes premios
provenientes de três origens: verbas abonadas pelo cofre da Província; verbas
votadas pelas Camaras Municipais; donativos obtidos pelas juntas locais por meio de
subscrição permanente. Era o Estado auxiliado pelo Municipio e pela iniciativa
privada.
A Sociedade de Estudos Pedagógicos cumpre o seu dever representando ao Governo
da Republica para que atenda à necessidade de combater o analfabetismo na
Província de Cabo Verde, promovendo (...) o recurso, para já, ao ensino particular,
estimulando-o com premios pecuniarios nos termos da portaria citada.” (Revista de
Educação, n.º 2, Julho de 1913, pp. 141-142)
A liberdade de ensino era um valor caro aos Republicanos. A reforma educativa
(1911) consagrou o ensino particular livre, embora sujeito à fiscalização do ensino
oficial.
“Art. 48º O ensino particular é livre, mas só pode ser exercido profissionalmente por
individuos que tenham a competencia estabelecida na lei, para o exercicio do
magisterio primario oficial.
Art. 49º É livre a instituição de qualquer escola particular ou curso particular de
ensino primario, ficando, contudo, essa escola ou curso sujeita à fiscalização oficial,
para garantia da competencia legal dos professores e das prescrições da hygiene
escolar. (...)
Art. 50º As camaras municipais, e bem assim o Governo, podem subsidiar as escolas
de iniciativa particular, quando reconhecidamente uteis, desde que funccionem em
localidades onde não haja escolas officiaes do mesmo grau, ou havendo-as, não
sejam sufficientes para as necessidades do ensino; e em especial se destinam ao
ensino infantil e ao ensino elementar.
119
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Art. 51º Será prohibido o exercicio do magisterio primario particular aos cidadãos
que ensinarem doutrinas contrarias às leis do Estado, à liberdade dos cidadãos e à
moral social.” (Decreto de 29 de Março de 1911)162.
Na óptica de J. Stewart e S. Ranson, “o dilema para o sector privado está no
facto de que o domínio público estabelece as próprias condições de que o sector
privado depende” e “o dilema para o sector público está, por sua vez, no facto de,
ainda que detenha em si a sua própria justificação, ele deve incluir o sector
privado” (citados em Estêvão, 1998, p. 53).
Na colónia de Cabo Verde, foi o domínio público que estabeleceu as regras de
funcionamento do ensino particular (Plano Orgânico, de 1918):
“Art. 43º É permitido livremente o ensino particular e doméstico, ficando porêm o
primeiro sujeito à inspecção escolar.
§ único. Os indivíduos, corporações ou associações, que pretendam estabelecer
quaisquer cursos, colégios ou escolas de ensino particular onde se ensinem as
matérias professadas no Instituto Secundário podem faze-lo sem qualquer
formalidade legal, ficando porem obrigados a enviar até 1 de Junho ao Conselho de
Instrução Pública uma nota dos alunos que propõem para exame e enviando até ao
dia 30 de Junho à Secretaria do Instituto a sua informação acerca do valor intelectual
e da habilitação dos seus alunos.” (Portaria n.º 474, 27 de Dezembro de 1918)
Figura 12. Anúncio de uma escola particular
(O Futuro de Cabo Verde, n.º 10, 3 Julho 1913, p. 5)
162
Diário do Governo, n.º 73, 30 de Março de 1911, p. 1.344.
120
A construção do discurso educativo
Anúncios de cursos do ensino particular, na imprensa periódica e nos Boletins
Oficiais, testemunham a existência do ensino privado, anteriormente à sua inserção
no sistema escolar (1918).
Da iniciativa de cidadãos – professores, militares, funcionários públicos e
clérigos –, os cursos eram pagos (constituíam uma fonte de rendimento supletiva
ao exercício profissional) e apresentavam-se com os seguintes atributos:
“leccionados com qualidade”, “ensino cuidadoso e garantido”, “com professores
bastante habilitados e com larga pratica de ensino em Lisboa”. Surgiam alusões a
metodologias de referência: “Dinorah Moreira de Aguiar, professora diplomada
pela Escola Normal de Lisboa, lecciona em sua casa pelo método legográfico de
D. Amália Luazes163” (A Voz de Cabo Verde, n.º 221, 20 de Novembro de 1915, p.
3).
O ensino particular foi, por vezes, subvencionado pelo Governo, mediante a
concessão de gratificações aos professores, estabelecidas em função do número de
alunos apresentados a exame:
“Que por cada aluno que fôr apresentado a exame, apenas sabendo lêr,
(especialmente manuscritos), escrever, e as quatro operações, sejam os seus
professores gratificados com um escudo por cada aluno; e, dos que fizeram exame de
1º e 2º graus com a gratificação de 2 escudos e 50 centavos, por cada. É permitido ao
professorado particular, que seja autorizado pelo inspector das escolas, e por cada
aluno apresentado pelos professores particulares, sejam estes gratificados com a
quantia de 5 escudos, por cada aluno que apresentem a exame no primeiro caso,
acima especificado, e 8 escudos, no segundo caso.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 73,
17 de Setembro de 1914, p. 3)
“A portaria provincial n.º 23, de 17 de Janeiro de 1918 – Boletim n.º 3 – mantendo a
gratificação de 15$00 mensais ao professor José Lopes da Silva164, determinou que o
respectivo pagamento se fizesse pela verba orçamental destinada a professores
particulares, por falta de dotação especial para esse fim.” (Despacho de 28 Junho de
1921165)
163
Amália Luazes (1865-1938) fundou o Instituto do Professorado Primário Oficial Português (Lisboa, 1916).
Professora primária e formadora de professores, atribuía à educação um elevado papel de regeneração social,
pela dissipação das trevas da ignorância e pelo combate ao analfabetismo, que considerava a maior vergonha
entre as nações cultas. Interessou-se pelos métodos de ensino da leitura e da escrita, tendo publicado Método
legográfico Luazes – Guia maternal, em que expôs um método analítico-sintético, designado “legográfico”.
(Felgueiras, 2003, pp. 800-804)
164
O professor José Lopes manteve, desde 1910, na ilha de Sto Antão uma escola particular do ensino das
línguas francesa e inglesa e de História e Geografia (Oliveira, 1998, p. 803-804).
165
Cx.ª 665. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
121
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Na colónia de Cabo Verde, o ensino particular não se circunscreveu ao ensino
doméstico e a cursos de explicações. Tivemos notícias de um colégio formalmente
organizadas e legitimado.
O Colégio Esperança, fundado pelo cónego capitular António Manuel da Costa
Teixeira, foi criado pela Portaria n.º 402, de 14 de Dezembro 1914166, como
“instituto particular português, de educação e ensino neutro, com internato” (art.
1.º). O jornal O Popular anunciava o movimento escolar do Colégio, no mês de
Outubro: “Instrução Primária, 35 matriculas. Instrução Secundária, 400 matriculas,
sendo: 45 em Português, Inglês e Ginástica; 30 em Francês, Física, Desenho,
Matemática, História e Geografia; 35 em Escrituração Comercial, 10 em Córte e
Costura, e 40 em Musica. Total dos alunos, 80; total das matriculas singulares,
435; total de professores, 12” (n.º 5, 15 de Novembro de 1914, p. 2).
Colégio Esperança
CURSO PRIMARIO 167
= 1ª Sèção: - Ensino Preliminar: =
Ensino Escóla infantil, mista, 3 tostões, –
para meninos e meninas de 4 a 7 anos, –
sob a regencia de professôras – segundo o
programa oficial de 23- 8-1911.
Art. 2º – Escóla rudimentar, 5 tostões,
preparação a exames, limitada ao estudo
de – Leitura, Escrita, Desenho e Contas –
Uma aula para cada sexo.
= 2ª sèção: - Ensino Elementar: =
Art. 3.º – Escóla de 1º e 2º grau, 1
escudo, Habilitação a exames finais (6
professôres) – segundo os programas
oficiais – Uma aula para cada sexo.
3ª sèção: Ensino Especial:
Art. 4º – Escóla Comercial, 1 ½ escudo.
Aulas nocturnas, para o sexo masculino –
1º ano: Habilitações: - Portuguêz, Inglêz,
Comércio, Expediente.
Art. 5.º – Escóla Artística 1 ½ Escudo –
para o sexo feminino – Música: Canto,
Piano, Recitação; Desenho; Trabalho:
Lavôres, Costura, Corte e Pintura;
Educação: Lições práticas de Português e
Francês.
Art. 6.º – Ensino individual e doméstico:
Português, à colónia estrangeira; e lições
separadas, em casa, ou nas horas vagas,
para qualquer habilitação especial….
(contrato). (...)
Mindêlo, 12 de Setembro de 1914
O Secretario do Colégio, Abilio Augusto
Mendes (O Popular, n.º 1, 5 de Outubro
de 1914, p. 4)
Pautado pelos “programas da metrópole”, o Colégio propunha adaptá-los ao
contexto local, “sendo mais intensos os exercícios práticos de composição e
conversão em Português, Inglês e Francês, mais vasta a Educação Física e Cívica,
e mais prolongado e variado o Ensino Artístico e Profissional para ambos os
166
Boletim Oficial, n.º 52, 26 de Dezembro de 1914, pp. 474-476.
Ver referências ao curso do ensino secundário, ministrado no Colégio Esperança, no subcapítulo 7.4. (pág.
228).
167
122
A construção do discurso educativo
sexos”. (Boletim Oficial, nº 52, 26 de Dezembro de 1914, p. 472). Os planos
pedagógicos e regulamentares observavam as condicionantes impostas pelo Estado
para a legalização do ensino particular: neutralidade em matéria doutrinal e
submissão às normas da administração pública. A sobrevivência financeira
advinha “de subsídios, ofertas ou doações; e de quaisquer outros meios legítimos,
como bazares a benefício de alunos pobres, venda de bilhetes-postais ilustrados
privativos; récitas e publicações literárias, em benefício do Instituto” e da
mensalidade dos alunos: “Escola mixta infantil – $30 (trinta centavos); Escola
rudimentar – $50 (cinquenta centavos); Escola elementar – (1.º ou 2.º grau) – 1$
(um escudo); Comércio (nocturna); Lavores; Musica – 1$50 (um escudo e
cinquenta centavos); Ensino de português a estrangeiro; ou doméstico, contracto”
(idem). Sendo propriedade da “colectividade dos professores, reunidos em
Conselho Escolar”, não dispunha de edifício próprio, funcionando “como simples
externato escolar, leccionando-se regularmente em salões que, na cidade, se
possam obter em melhores condições pedagógicas”. Dos “cooperadores iniciais” e
“compartícipes dos lucros do colégio”, a maioria era constituída por professores
municipais (seis) e de entre os restantes, havia dois médicos, um capitão-de-fragata
e dois guarda-livros (idem, p. 475). Na observância da tradição académica, o
colégio era representado por um conjunto de símbolos identitários: o emblema –
“uma ancora verde, sôbre o escudo nacional inserido numa estrela de cinco raios
em azul e amarelo, com fundo vermelho nas insígnias, e, branco, circular, na
bandeira, que é das côres nacionais” (art. 4.º); e os uniformes, sendo para o sexo
feminino “vestido branco, cinto verde no curso primário e faixa verde, a tiracólo,
no curso secundário” e para o sexo masculino “vestido branco, preto, mixto e
campal, com boné emblemado e com o distintivo dos cursos e dos graus
conquistados” (idem, p. 476).
A educação particular acentuava as diferenças sociais, pela capacidade de
seleccionar os melhores meios de ensino para a obtenção de melhores resultados,
numa lógica de mercado. A igualdade de oportunidades de ensino, é condicionada
pela livre oferta de ensino, “em virtude [do ensino particular tender] a transformarse em fonte de desigualdades sociais, em benefícios de grupos económica e
socialmente mais favorecidos” (Estêvão, 2001, p. 70).
Encontrámos marcas de ensino particular operador de diferenciação social, no
arquipélago (Colégio Esperança) e também, em Lisboa, numa instituição de
referência, a Escola João de Deus, que recebia alunos do arquipélago.
“Escola João de Deus
Mais uma vez temos o agradável ensejo de nos referirmos a êste colégio, que, de ano
para ano, progride extraordinariamente, acentuando cada vez mais, os sólidos
créditos de que vem gozando desde a sua fundação, em 1909. (...)
123
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Tanto nos exames do 1º e 2º grau, como nos do Conservatório e do Curso dos Liceus,
os alunos da Escola João de Deus, que a êles se submeteram, obtiveram na
generalidade classificações elevadas, o que só póde atribuir-se à competência do seu
escolhido corpo docente e da sua Directora sr.ª D. Izabel dos Santos, irmã do nosso
amigo sr. Albino dos Santos, gerente da importante casa deste arquipélago, Manuel
Gomes Madeira & Filha, Sucessora Luzia de Andrade.
Depois do que fica exposto não temos dúvida em recomendar êste colégio aos nossos
leitores, os quais, para informações, podem dirigir-se áquele nosso amigo, em S.
Vicente, ou à Direcção da Escola João de Deus – rua Ferreira Borges 30, 1.º –
Lisboa.” (O Futuro de Cabo Verde n.º 125, 16 de Setembro de 1915, p. 3)
Figura 13. Anúncio da Escola João de Deus
(A Voz de Cabo Verde, n.º 212, 20 de Setembro de 1915, p. 3)
“Tivemos o prazer de vêr as fotografias de duas crianças cabo-verdeanas nele
internadas desde há um ano, – uma filha e um filho do nosso amigo sr. Filipe dos
Santos Silva, do Fogo, e francamente o aspecto delas é de tal modo atraente que não
podemos deixar de elogiar o tratamento cuidado e higiénico que naquele colegio é
dispensado aos alunos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 300, 2 de Julho de 1917, p. 3).
124
A construção do discurso educativo
Completamos o roteiro pelo ensino particular com uma avaliação quantitativa,
no período de 1911 a 1926.
Gráfico 8 – Evolução dos alunos do ensino particular – 1911/1916
700
600
500
400
300
200
100
1915-16
1913-14
1911-12
0
Quadro 40 – Número de alunos do ensino particular, por concelhos/ilhas – 1911/1916
Concelhos/ Ilhas
Masc.
Praia
Santa Catarina
Ilha Brava
Ilha de S. Vicente
Ilha de S. Antão
Ilha de S. Nicolau
Total
45
191
64
0
170
0
470
1911-1912
Fem.
Total
87
0
0
0
38
0
125
132
191
64
0
208
0
595
Masc.
55
33
34
25
0
77
224
1913-1914
Fem.
Total
46
0
0
0
0
0
46
101
33
34
25
0
77
270
Masc.
23
9
14
52
0
0
98
1915-1916
Fem.
Total
70
0
0
0
0
0
70
93
9
14
52
0
0
168
(“Mapas de movimento e frequência de alunos e alunas”, 12 de Outubro de 1912; 19 de Dezembro de 1914;
28 de Dezembro de 1916168)
O ensino particular não acompanhou a expansão dos efectivos das escolas
públicas, tendo sofrido uma redução de 595 (1911/12) a 168 alunos (1915/16), no
período em análise. A discriminação das meninas, acentuada nos primeiros anos
(frequência feminina, 21%), evoluiu no sentido de maior equidade (1915/16:
41,7%). O perfil da distribuição geográfica atesta a perda de importância do ensino
168
Boletim Oficial, n.º 42, 12 de Outubro de1912, p. 232; n.º 51, 19 de Dezembro de 1914, p. 467; n.º 44, 28
de Outubro de 1916, p. 363.
125
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
particular na ilha de Santo Antão (nos primeiros anos do decénio, 35% dos
efectivos escolares), a evolução decrescente em Santa Catarina, na Brava e em S.
Nicolau e a tendência de crescimento na cidade de Mindelo, a partir de 1913/14
(Quadro 40).
No termo desta análise, sublinhamos a relevância da intervenção social na
educação, que contribuiu para a liberdade de ensino, para a constituição de
parcerias de entidades privadas com o aparelho estatal, com mais similitudes que
diferenças, graças à sujeição do ensino particular ao papel regulador do Estado.
126
A construção do discurso educativo
127
4.
Rede escolar
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Como expusemos, em capítulo anterior, o desenvolvimento educacional
enfrentava dificuldades com as limitações severas, em recursos humanos e
materiais, vividas na colónia. De entre os constrangimentos de ordem material,
destacamos as insuficiências e assimetrias da rede escolar.
A expansão do parque escolar era tema recorrente na imprensa periódica. Os
jornais não só denunciavam situações de sobrelotação e degradação dos espaços,
como debatiam critérios para a criação, transferência e extinção de estabelecimentos
de ensino.
A confiança na educação republicana augurava progressos na instrução, “dos
tempos da monarquia, com 1 escola para 3:529 almas” deveria evoluir-se para o
ratio de uma escola para “60 famílias” ou “300 indivíduos”169 (A Voz de Cabo
Verde, n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 3):
“Em 4 seculos e meio, apenas 17 escolas officiaes! Dezassete escolas para uma
população de mais de 60.000 almas! (...)
Dividindo o numero de almas pelo de escolas, teremos, em media, 1 escola para 3:529
almas. Bello serviço prestado pelo governo da monarchia à instrucção em S. Thiago de
Cabo Verde, durante largo espaço de 451 annos! (...)
Verão agora os leitores que, brevemente, o governo da republica nos dotará com as
seguintes escolas, assim distribuídas: mais 4 na freguezia de Santa Catharina, que com
14 mil almas, tem apenas 3 escolas officiaes; mais 3 na freguezia de S. Miguel, que
tem mais de 8 mil almas e apenas 1 escola official da 1.ª classe; mais 2 na freguezia de
S. Thiago Maior, que com quasi 6:000 almas, tem somente 1 escola official.” (A Voz
de Cabo Verde, n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 3)
“A tal respeito, ainda no outro dia... afirmava o sr. Afro170, o seguinte, nas colunas da
Voz: «Quantas escolas há na provincia? 50 oficiais, 15 municipais e 2 paroquiais (S.
Nicolau). Ao todo 67 para 160 mil habitantes». (...)
169
Em inícios dos anos 30, “a proporção entre, de um lado, o número de escolas primárias, e, do outro, a
população e a superfície do país, coloca Portugal no último rang dos países europeus: uma escola primária
pública por 883 habitantes; uma escola primária pública por 12 km2” (Nóvoa, 1987, p. 578).
170
Pedro Cardoso utilizou, no jornalismo e na política, o pseudónimo “Afro”, que em si mesmo já é indicador
de outro cavalo de batalha de Cardoso, pois ele foi um ardente defensor do continente negro e dignificação do
homem africano. Levaria a sua militância ao ponto de baptizar um filho, falecido em 1927, com o nome de Afro
(Oliveira, 1998, p. 712).
128
A construção do discurso educativo
Mas, ainda assim, isto é, contadas todas, não poderemos deixar de reconhecer que é
insuficentissimo o numero de escolas de que dispõe a nossa provincia. E, senão, vede:
suponhamos que o n.º 67, depois de se lhe adicionar o numero das escolas acima
apontadas, sobe a 80, aproximadamente; qual ficará sendo, neste caso, a percentagem
das escolas em relação ao numero dos habitantes do arquipélago? Uma escola para
dois mil habitantes! E bastaria isso? Claro que não, di-lo aquele nosso pontinho de
admiração.
Já o douto sr. Rincão (ao qual terei muitas vezes ocasião de me referir) na série de
artigos por ele iniciada com o primeiro numero deste mesmo semanario e sobre o
mesmissimo assunto de que ora me ocupo, lembrava a conveniencia de serem criadas
escolas «em todos os lugares onde houvesse de 60 familias para cima».
Plenamente de acordo; mas como é muito variavel o numero de pessoas de que possa
constituir-se cada familia, diremos que seria conveniente criar-se uma escola em todo
e qualquer ponto do arquipelago onde houvesse 300 individuos, aproximadamente,
com residencia fixa e constituindo familia.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 68, 2 de
Dezembro de 1912, pp. 2-3)
A rede escolar caracterizava-se pela dispersão e “distancias a que ficam da sede
da escola oficial os núcleos de população espalhados pelas dez ilhas do arquipélago:
(...) [que] são na maioria dos casos superiores a 4 km, chegam a atingir 10, 11, 12 e
15 km” (Revista de Educação, Julho de 1913, p. 14). Os sacrifícios dos alunos, que
calcorreavam caminhos distantes e íngremes, constituíram móbil para a expansão
do parque escolar:
“São insuficientissimas estas escolas para accudirem às necessidades dos povoados tão
distanciados, como são Ribeira de Mendes Faleiro, Fontes e Ribeirão Chiqueiro, –
portanto a creação de mais uma escola para sexo masculino n’esta freguezia, não seria
de mais, assim como outra para sexo feminino, aliás de muita vantagem, porque sendo
ellas estabelecidas em Mendes Faleiro que é de maior população, pouparia aos
alumnos uma fastidiosa jornada de todos os dias de mais de 3 kilometros para a séde
da freguezia, onde se acham as unicas escolas, e teriam sem duvida a concorrencia de
todos, que maior parte, não as frequentam pela demorada distancia.” (A Voz de Cabo
Verde, n.º 12, 17 de Maio de 1911, p. 3)
“Em João Gonçalves, proximidades de Mangue171 hospedei-me há dias em casa de um
honrado proprietário e, em conversa com êle, soube que um filho seu frequentava a
escola da Calheta, regida pelo senhor António S. Gonçalves, que fica
aproximadamente a uma distancia de tantos dez quilómetros que, com outros tantos
quilómetros de regresso, perfazem vinte, distancia que a pobre criança, de treze anos
apenas, palmilha diariamente para poder aprender a ler.” (A Voz de Cabo Verde, n.º
321, 3 de Dezembro de 1917, p. 2)
171
Concelho do Tarrafal, ilha de Santiago.
129
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Os critérios de localização das escolas, comprometidos com interesses políticos e
pessoais, eram objecto de crítica social:
“D’antes havia uma escola no sítio «Capela» da Ribeira do Engenho, mas essa escola,
que era municipal, mudou mais tarde para a Assomada, d’onde desapareceu há...
(ilegível) annos, para reaparecer agora na Ribeira da Barca com o mesmo professor,
onde a frequencia de alumnos deve ser bem menor.
Será a influencia politica d’algum grande proprietario do «Engenho», a quem não
convenha que o povo tenha luz para conhecer os seus direitos, não encomodando os
srs. Feudaes d’aquella região, quando despoticamente fazem suas gentilezas,
atropelando a lei e o direito da liberdade de acção?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 22, 15
de Janeiro de 1912, p. 3)
“Quer sim, quer não, cumprimos o nosso dever de jornalistas chamando a atenção para
os defeitos, lacunas e êrros que viviam os serviços públicos.
Exemplificando: quanto à instrução, é preciso que na distribuição das escolas rurais
não se atenda exclusivamente às conveniências do professor e aos interêsses do
senhorio; é preciso aliviar os alunos dos anti-higiénicos passeios forçados, de léguas
em cada dia...” (O Manduco, n.º 3, 30 de Setembro de 1923, p. 1)
Escolas de primeira e de segunda
João Barroso traça a evolução etimológica da palavra escola, que “considera
elucidativa das várias representações que foi tendo a relação educativa: «scholê»,
em grego, começou por significar o descanso, a terminação das fadigas físicas e, por
extensão, o momento propício para a actividade do espírito, para a leitura e o
estudo; depois com a palavra latina “schola”, significa já o local destinado ao
estudo, aos exercícios intelectuais” (1995, p. 124).
A terminologia oficial distingue escola e posto de ensino. A diferenciação não é
meramente semântica, mas patenteia clivagens na qualidade da “casa da escola”172.
“Art. 4º O ensino primário elementar será ministrado em postos de ensino e em escolas
de ensino primário elementar.
Art. 5° O ensino primário complementar será ministrado, somente em escolas de
ensino primário complementar.
Art. 6° O ensino primário superior será ministrado em escolas de ensino primário
superior.” (Plano Orgânico da Instrução Pública, tít. II, cap. 1173)
172
No século XIX, o edifício onde funciona a escola era designado “casa da escola” (Barroso, 1995, p. 124).
Decreto n.º 3.435, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 ao Boletim Oficial, nº 43, 30 de Outubro de 1917, p. 1
(apêndice D).
173
130
A construção do discurso educativo
Estas disposições mantidas no Plano Orgânico da Instrução Pública, de 1918174,
introduziram a classificação de espaços escolares baseada em níveis de
escolarização e na implantação geográfica.
Na metrópole, os postos de ensino (denominados, mais tarde, postos escolares),
foram criados em Novembro de 1931 e constituíram o regresso «a um passado
deploravelmente triste» (Nóvoa, 1987, p. 559). Na colónia, a criação precoce dos
postos de ensino (14 anos antes) inscreveu-se na estratégia expansionista da rede
escolar, com recursos humanos e materiais de reduzido valor. Os professores
auferiam metade do vencimento de um “professor primário em exercício de 1ª
classe”, 60% do valor do salário de um “professor de 2ª classe” e 75% do salário de
um “professor de 3.ª classe” (Plano Orgânico da Instrução Pública, tabela A175).
Conforme o “Mapa demonstrativo do número de escolas que existiam pela antiga
lei e passam a existir nos termos do decreto n.º 3:345, 8 de Outubro de 1917”,
funcionaram postos escolares, por iniciativa municipal ou oficial, antes do seu
enquadramento no Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde.
Figura 14. Postos de ensino e escolas primárias
(Supl. nº 21 ao Boletim Oficial n.º 45 de 1917, p. 5)
174
Art. 4º, Portaria nº 474, 27 de Dezembro de 1918. Supl. nº 14 ao Boletim Oficial, nº 52, 31 de Dezembro de
1918, p. 1 (apêndice D).
175
Decreto nº 3.485, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 ao Boletim Oficial, nº 43, 30 de Outubro de 1917, p.
4 (apêndice D).
131
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A rede física escolar alargou-se graças à multiplicação de postos de ensino (taxa
de crescimento, 64,5%) e ao incremento mitigado das escolas (taxa de crescimento,
8,3%).
A criação de escolas de segunda, nas povoações rurais, não foi consensual,
conforme o debate no Conselho de Instrução Pública, em 3 de Julho de 1918, a
propósito da revisão do Regulamento Provisório da Instrução Primária:
“Os postos de ensino serão estabelecidos nas povoações rurais devendo tornar-se
mistos os menos frequentados. (...)
O Inspector de Barlavento troca impressões com o seu colega acêrca da nova redacção
dada ao artigo 15º, discordando com a designação de postos de ensino estabelecidos
nas povoações rurais de 3ª classe, pois é sua opinião que tais postos não devem existir,
mas sim só escolas. Os vogais Snrs. Barjona de Freitas e José Costa concordaram em
absoluto com a nova redacção dada ao artigo 15º pelo Inspector de Sotavento. O Snr.
Secretário Geral, presidindo, disse que tambêm concordava com a alteração apontada,
mas isso, a seu vêr, trazia como consequência não encontrarem as crianças onde
aprender as primeiras letras. Entendia que o que se deveria procurar fazer era melhorar
os postos de ensino. O vogal General Medina disse que tambêm não concordava com a
designação de postos de ensino e menos ainda com a remuneração dos professores
destas escolas. Entendia que todos os professores devem ter as mesmas garantias
sejam elas destinadas ao ensino das primeiras letras seja ao 1º e 2º grau. O snr.
Inspector de Sotavento (...) propusera a sua transformação em escolas móveis176. O
Snr. Inspector de Barlavento disse que a transformação dos postos de ensino em
escolas móveis traria aumento de despesa, visto que os professores destas escolas
devem ser melhor remunerados tal qualmente como se procede na Metrópole. Disse
mais que tais escolas não têm dado os resultados que se tinha em mira quando foram
criadas, pêlo Ministro da Instrução”. (Acta da sessão, 3 de Julho de 1918, pp. 4-5177)
A burocratização do sistema escolar é visível nas “Instruções para a criação,
conversão, transferência ou supressão de escolas e postos de ensino” (1918),
determinadas pelo Governador, com o parecer do Conselho de Instrução Pública:
“1. Quando se tratar da criação, conversão, supressão ou transferência de escolas de instrução
primária e postos de ensino, as Juntas Locais de Instrução Pública organizarão um processo
instruído com os seguintes documentos:
a) Para a criação de escolas:
Cópia do recenseamento escolar respectivo;
Indicação da casa onde se projecta instalar a escola;
Relação do mobiliário escolar e fórma de o adquirir o mais economicamente possível;
176
O último ponto tratado na acta “preconiza a conveniência da vinda a esta Província de duas missões das
Escolas Móveis João de Deus, que na Metrópole tem percorrido Portugal – continental e insular, colhendo
sempre os melhores resultados” (Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, Praia, 3 de Julho de 1918, p.
10).
177
Cx.ª 668. Fundo da Secretaria Geral do Governo, 3 Julho 1918, IAHN.
132
A construção do discurso educativo
b) Para a conversão ou supressão de escolas:
Cópia do recenseamento escolar respectivo;
Mapas estatísticos do ano lectivo anterior, e de frequência e aproveitamento dos meses do ano
lectivo corrente;
Indicação da casa e do local para onde deve ser transferida a escola. (...)
Concluída a organização do processo, pela Junta Local de Instrução, deverá ser êste enviado
ao inspector do respectivo círculo escolar, que, depois de o ter completado com as instruções
que constam do número anterior, o submeterá à apreciação do Conselho de Instrução
Pública.” (Boletim Oficial, n.º 48, 30 de Novembro de 1918, p. 402)
A pavorosa fome que assolou o arquipélago, no dealbar dos anos vinte, reflectiuse no abandono escolar e justificou a extinção de postos de ensino:
“Atendendo à diminuta frequência escolar, em quási todos os postos de ensino da
província, devido à grave crise que êste arquipélago atravessa;
Atendendo a que a maior parte dos postos, principalmente os da ilha de Santiago
estiveram encerrados, por falta de frequência, durante o ano lectivo findo;
Atendendo ao actual estado financeiro da província e ao pouco aproveitamento dos
alunos que frequentam êsses postos de ensino;
Atendendo a que os professores das escolas actualmente existentes em toda a
província, são suficientes para administrar o ensino aos alunos que há:
Hei por conveniente, em vista da proposta do Conselho de Instrução Pública, baseado
na proposta da Inspecção Escolar, determinar que sejam encerrados todos os postos de
ensino da Província de Cabo Verde, com excepção dos seguintes: n.º 10, da Cidade
Velha; n.º 23, de Pedra Badejo; n.º 29, de Jalalo Ramos no concelho da Praia; n.º 6, do
concelho de S. Nicolau; n.º 12, do concelho do Paul; e n.º 13 do concelho da Ribeira
Grande.” (Portaria n.º 257. Boletim Oficial, n.º 41, 8 de Outubro de 1921, p. 371)
Foram reabertos alguns postos escolares, atendendo a reclamações da população,
dado que “o estado financeiro da província não permite, por ora, a criação de mais
escolas” (Portaria n.º 85. Boletim Oficial n.º 19, 13 de Maio de 1922, p. 143).
“Tendo a Comissão Municipal do Concelho da ilha de S. Vicente, solicitado a criação
de um posto de ensino mixto na aldeia de Ribeira Bota, em vista das instantes
reclamações dos moradores daquela localidade, alegando que as escolas existentes não
comportam os alunos que as frequentam, sem grave prejuízo da higiene, tendo ainda
em vista a necessidade de derramar a instrução na população infantil, em idade
escolar, naquela aldeia, que, pela distância a que se encontra, não pode frequentar as
escolas primárias da cidade;
Considerando que na tabela orçamental em vigor, foram consignados mais cinco
postos de ensino, alêm dos que já existiam, com o fim de se atender pedidos desta
natureza:
Hei por conveniente, (...) a criação de um posto de ensino mixto, na aldeia de Ribeira
Bota, da freguesia de Nossa Senhora da Luz do concelho da ilha de São Vicente, o
qual fica na respectiva lista com o n.º 16.” (Portaria n.º 105. Boletim Oficial, n.º 39, 29
de Setembro de 1923, p. 324).
133
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Quadro 41 – Relação de postos de ensino – 1921/1922
N.º
Localidade
Fundamentação da criação
Portaria
Boletim
Oficial
6
7
11
Furna
Monte
Clara Gonçalves
(ilha Brava)
Nª Sª da Conceição
(ilha do Fogo)
Figueira da Horta
(ilha do Maio)
Trindade, Praia
(ilha de Santiago)
“Densidade populacional do concelho da Brava”;
“encerramento da escola particular da Congregação
Pentecostal, ficando sem matrícula cerca de 120 crianças”.
N.º 127
16/12/21
N.º 47
19/11/21
Existir “apenas uma escola do sexo feminino”, na ilha do
Fogo, na vila de São Filipe.
“Uma frequência média de 13 alunos e, que portanto se acha
justo que o mesmo pôsto comece a funcionar”.
“Uma frequência média de 20 alunos e com um professor
remunerado pelo Director do Pôsto Zootécnico”.
“[Concelho] mais povoado do arquipélago, que a sua
população, antes da crise que está flagelando a província, era
superior a 15:000 almas, e que, apesar de ter decrescido essa
população há ainda um núcleo de crianças para frequentar
regularmente mais de duas escolas para o sexo feminino, que
são as únicas existentes no referido concelho”.
N.º 290
05/12/21
N.º 23
02/02/22
N.º 24
02/02/22
N.º 50
10/12/21
N.º 6
11/02/22
N.º 6
11/02/22
N.º 71
24/04/22
N.º 17
29/02/22
“Foram encerrados postos de ensino em locais cuja
população escolar, querendo receber as luzes benéficas da
instrução, terá de percorrer quilómetros e quilómetros para
frequentar a escola mais próxima”.
N.º 85
11/05/22
N.º 19
13/05/22
5
4
8
7
Achada Lém, Santa
Catarina
(ilha de Santiago)
9
11
Praia Branca
Queimadas
(ilha de S. Nicolau)
Ponta do Sol
Carvoeiros, Paul
(ilha de Santo Antão)
Fontes
S. Domingos
Rui Vaz
(ilha de Santiago)
3
13
16
17
22
A casa da escola
A cultura escolar transparece na casa da escola. As pedras e edificios escolares
falam; também os pátios e os lugares de encontro da ambiência escolar nos querem
dizer algo, (...) são elementos de intermediação social e cultural (Benito & Diaz,
2002, p. 225).
Segundo Justino de Magalhães, uma das características da escola moderna é a
“criação de espaços fechados para a educação” e “a arquitectura escolar, quando
existente, torna-se inteiramente cativa de dois factores ordem/disciplina e da
comunicação vertical entre os seus membros” (1996, p. 22).
Os edifícios projectados para o ensino reflectiam o universo de protecção e de
recolhimento dos alunos.
134
A construção do discurso educativo
Figura 15. Escola de S. Thiago – Cabo Verde, situada no largo do Guedes, Praia
(Oliveira, 1998, p. 71)
O espaço arquitectónico – salas rectangulares, corredores rectilíneos, janelas
altas, pátio interior – favoreciam a vigilância e a disciplina. Na expressão de Carlos
Manique Silva, as normas reguladoras dos espaços escolares “incidirão de modo
muito particular a sua atenção sobre a sala de «classe» no capítulo das obrigações
higienistas (ventilação, iluminação, cubagem...), não influindo notoriamente no tipo
de edifício” (2000, p. 16).
“É de toda a conveniência que, tanto as escolas como os postos de ensino, sejam
instalados, em casas próprias; que assegurem a permanência do seu funcionamento em
condições proveitosas; e quando, porém, não se poder adquirir, construir ou apropriar
outra, arrendar-se há provisoriamente uma que satisfaça, tanto quanto possível, as
condições higiénicas e pedagógicas que a lei exige.” (Boletim Oficial nº 48, 30 de
Novembro de 1918, p. 402)
Não obstante a institucionalização de projectos arquitectónicos específicos, a
matriz predominante da escola colonial cabo-verdiana era a escola pardieiro.
O edifício escolar, onde ocorrem os rituais de passagem da criança a aluno, é um
objecto histórico, carregado de memórias. Agustín Escolano Benito, em conferência
na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa (6
de Maio de 2004), afirmou “ não sendo possível espreitar a escola do passado pelo
buraco da fechadura”, podemos “vê-la” através das fontes etnohistóricas.
135
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Perscrutámos as memórias da escola pardieiro nas fontes documentais e
iconográficas. Entrevimos:
Casas acanhadas, sem recreio e higiene
“Lecciona-se em casas acanhadas, não há recreio, não há hygiene. Por isso os filhos
sahem da escola sem desenvolvimento physico nem moral, e de memoria cançada por
decorarem um punhado de palavras, cujo significado ignoram.” (A Voz de Cabo Verde,
n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 2)
Cobertas de colmo
“O estado da casa onde funcciona a escola é pessimo. A casa é arrendada, coberta de
côlmo e não tem cubbagem sufficiente para o numero de alumnos que a frequentam.
(...) A mobilia não é sufficiente e está em mau estado. Aqui não há casa em condição
para a escola.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 9, 26 de Abril de 1911, p. 3)
Com o aspecto singular de latas de sardinha
“Em caso nenhum a superfície interna de uma aula pode ter menos de 50 metros
quadrados, devendo regular-se um metro quadrado por cada aluno. Trata-se aqui
apenas do número mínimo de metros quadrados que deve ter uma aula, apezar de quasi
todas as escolas desta ilha matricularem, anualmente, mais de cem alunos.
Ora, a aula oficial da Cidade Velha tem só 12 metros quadrados de superfície interna,
não obstante ter uma frequência de 35 alunos, cabendo portanto a cada um o
acanhadíssimo espaço de 0,33m2 – o que dá ao recinto escolar o aspecto singular de
latas de sardinhas.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 41, 5 de Fevereiro de 1914, p.3)
Paredes meias com cavalos e burros
“Os edifícios onde funcionam as escólas desta ilha – vergonha é dizê-lo – na sua
grande maioria, são pouco melhores que cavalariças, vivendo nalguns, alunos e
professôres, paredes meias com cavalos e burros (...). Outros, pequenos, cobertos de
colmo, térreos, paredes negras, não teem a suficiente capacidade para conter o elevado
número de alunos que frequentam as escolas neles instaladas.” (A Voz de Cabo Verde,
n.º 257, 21 de Agosto de 1916, p. 2)
Salas alugadas, contíguas ao quarto
“Durante as horas em que devem funcionar as escolas, obriga-se o arrendatário a
manter boa ordem no quarto contíguo a essa sala, ocupado por sua família, não
136
A construção do discurso educativo
podendo arrendar a extranho esse quarto ou dar-lhe destino diferente.” (Contrato
provisório de arrendamento, cláusula 4ª, Ribeira Grande, 11 de Dezembro de 1918178)
Pedagogia e higiene
A sociedade cabo-verdiana, pela voz da imprensa, defendia o princípio “que para
se estabelecer uma escola é indispensável que o edifício seja deveras apropriado em
dimensões, luz, ar e localidade (...) com toda a mobília escolar, adaptada, conforme
ordena a moderna pedagogia, aos progresso do ensino” (O Futuro de Cabo Verde,
n.º 118, 29 de Julho de 1915, p. 2).
Num discurso frontal imputava a responsabilidade do “deplorável” estado dos
edifícios escolares à administração colonial e invocava “os inalienáveis direitos do
povo” para reclamar “edifícios que sob todos os pontos de vista se encontrem em
condições de cabalmente preencherem o importantíssimo fim a que são destinados”:
“Vá entretanto, de passagem, uma observação: em vista do exposto parecerá natural e
provavel a muita gente, que nós, os caboverdeanos, nos dariamos por satisfeitos com a
melhoria das condições das palhoças, visto que já seria muito o mandar assoalhá-las,
trastejá-las e substituir-lhe a cobertura de colmo pela de telha; mas... tenham paciencia,
meus senhores: se na provincia nos faltam bons edificios escolares, a culpa não é
nossa, e sim daqueles que nos governam ou governaram; e se é ainda deploravel o
estado em que se encontra a instrução nesta malfadada provincia de Cabo Verde, não
se diga que por aí se possa ou deva aquilatar o grau de civilisação do bom povo
caboverdeano; tal afirmativa não poderemos deixar de reputá-la injusta, a todos os
respeitos, se bem atentarmos no estado relativamente adiantado de civilisação e
progresso a que o nosso povo já conseguiu chegar, póde-se dizer que à custa do seu
proprio esforço e por expontanea vontade sempre animada de nobres aspirações.
Mas por isso mesmo, por ser dotado de tendencias progressivas e faculdades capazes
de assimilar os resultados sociais de todos os modernos progressos, é que o povo
caboverdeano não se limita a pedir, como pede uma esmola ou solicita um favor, que
lhe mandem concertar e trastejar as palhoças destinadas à instalação das escolas
primarias; não; - o povo quer, pede e reclama, dentro da esfera dos seus inalienaveis
direitos, que lhe deem para as suas modestas escolas, edificios que sob todos os pontos
de vista se encontrem em condições de cabalmente prencherem o importantíssimo fim
a que são destinados.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 74, 13 de Janeiro de 1913, pp. 3-4)
178
Cx.ª 668, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
137
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A administração procurou corresponder ao apelo da sociedade com a construção
de edifícios escolares179 e o recurso, menos oneroso, de aluguer de casas de
habitação. Para o efeito, o inspector deveria “indicar os trabalhos de apropriação
que julgar necessários para a adaptação conveniente do edifício aos fins a que se
destina” e tratando-se “de casas cedidas por particulares, dar o seu parecer sôbre as
garantias de duração que pode oferecer essa cedência, juntando uma descrição
circunstanciada, das suas condições higiénicas e pedagógicas” (Boletim Oficial n.º
48, 30 de Novembro de 1918, p. 402).
De acordo com os princípios pedagógicos e higienistas da época, surgem novas
concepções do ambiente escolar:
“Nota n.º 185 de 26 de Setembro ultimo acompanhada do resumo das deliberações
tomadas pela Junta Local de Instrução da Ilha Brava, em sua sessão de 18 do mesmo
mês, tratando do arrendamento de 272 metros quadrados de terreno anexo à Escola
Central daquéla ilha para jardim da mesma escola. O Conselho foi de opinião que
naquêla ilha – cujas povoações são geralmente ajardinadas – era dispensável o jardim
privativo da Escola em projecto.” (Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 8
de Novembro de 1918, p. 7180)
“O vogal, sr. dr. Barbosa [coronel médico, Júlio Barbosa Nunes Pereira] aponta a
conveniência de se aplicarem “chuveiros” nas dependencias da escola [Escola Central,
do sexo feminino, a ser instalada na sala onde funciona a Biblioteca Pública], para as
crianças que necessitam de banhos de limpesa, medida esta que reputa muito higiénica
e bastante benéfica. Aprovado.” (Acta da sessão do Conselho de Instrução Pública, 21
de Outubro de 1918, p. 3181)
Representações iconográficas
A relação aluno/professor foi determinante na organização espacial da classe e
na tipologia e ordenação do mobiliário escolar. O interior da sala de aula tinha a
racionalidade própria dos espaços concentracionários, com a mesa do professor
179
Em 1920, o orçamento para a educação contemplava a verba de 13.021$61 para construções escolares, o que
equivalia a 12,9% do total.
180
Cx.ª 668, 8 de Novembro de 1918. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
181
Cx.ª 668, 8 de Novembro de 1918. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
138
A construção do discurso educativo
assente num estrado elevado, que permitia a vigilância total e as carteiras dos alunos
dispostas em filas, em plano inferior.
De acordo com os testemunhos documentais coevos:
Ver o interior de uma escola causa comoção
“É uma lástima: bancos velhíssimos flanqueados por uma esburacada carteira que, pela
sua feição antidiluviana e descomunal mais parece um grande esquife de que um
móvel escolar, onde as crianças são obrigadas a escrever de pé, por ser relativamente
alta, e os bancos demaziadamente baixos para os conter assentadas.
A secretária do professor é uma obra que se fôsse mandada para alguma exposição de
curiosidades coloniais estamos certo que obteria o primeiro prémio, em atenção ao seu
estado de decrepitude e mais particularidades assombrosas que a caracterizam.
Não se póde fazer um retrato ao vivo do que ela seja, – Só vendo-a; e vê-la causa
comoção. As escolas mais rudimentares e medianas da Guiné Portuguesa são mais
bem servidas em objectos de mobília, do que esta.
Todos os artigos do mobiliário existentes carecem de pintura, mas as requisições do
professor infelizmente nunca são atendidas na íntegra, sucedendo-se isso mesmo com
aquelas que pertencem ao expediente e serviço ordinário da escola.” (O Futuro de
Cabo Verde, n.º 163, 11 de Junho de 1916, p.3)
Como carteira uma tábua e quatro bancos
“Ex.mo Sr. – A casa escolar d’esta freguezia é muito pequena e coberta de palha. Tem
como carteira uma taboa, sobre que os meninos escrevem, e quatro bancos de regular
comprimento e muito estreitos. – (assinado) Pedro Rodrigues Tavares.” (A Voz de
Cabo Verde, n.º 232, 1 de Março de 1916, p. 3)
Não se podem chamar sequer escolas
“Com certeza 2/3 das escólas existentes na Província não medem mais do que 5 m de
comprido por 4 de largo, não são soalhadas e não teem mobiliário, apezar de deverem
ser freqùentadas por mais de 50 alunos; portanto não se pódem chamar sequer
escolas.” (O Caboverdeano, n.º 7, 18 de Maio de 1918, p. 2)
Esta a situação degradante do mobiliário escolar.
139
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
No espólio documental da Secretaria Geral do Governo encontrámos vestígios de
equipamento escolar convencional, segundo o padrão de “escola bem organizada”,
gizado por Mariano Ghira, no século XIX (citado em Silva, 2002, p. 51).
Quadro 42 – O mobiliário escolar de uma “escola bem organizada” e da escola cabo-verdiana
Mobiliário escolar (Cabo Verde)
Mobiliário
“Escola bem organizada” (Ghira)
Estrado e mesa do professor
Quadro preto
Bancadas para os alunos (carteiras
e bancos ligados)
Peças
Estrado (comp. 1,50 m; larg. 1,50; alt. 0,25 m.)
e mesa do professor (comp. 1,20 m; larg. 0,70;
alt. 0,85 m.)
Quadro preto e respectivo estrado (comp. 1,20
m; larg. 0,80m.)
Carteiras para os alunos.
Bancos (comp. 2,80 m; larg. 0,40; alt. 0, 50 m.)
Mesa grande (chata) para o exercício da escrita
(comp. 3,50 m.; larg. 1,10; alt. 0,85)
Crucifixo
Busto ou retrato do rei
Contador mecânico com 100
esferas
Contador mecânico
Fontes 182
Relação de objectos, Rabil,
16/09/1918
Documentação vária (imprensa).
Relação de objectos, Rabil,
16/09/1918
VCV, n.º 128, 08/12/1915, p. 3;
Relatório de 01/09/1916
Requisição, Sal-Rei, 06/12/1918.
Relógio
Relógio
Mapa de Portugal
Quadro do novo sistema legal de
pesos e medidas e correspondentes
modelos representativos
Pote com torneira para água, copo
ou púcaro de metal
Mapas de Portugal e das Colónias
Relatório 01/09/1916.Idem.
Mapas de pesos e medidas
VCV, n.º 128, 08/12/1915, p. 3;
Requisição 06-12-1918
Pote de barro e alguidar para o pote
Púcaro de ferro esmaltado
Máquina «Singer» para lições de costura
Lavatório
Cabides numerados para bonés,
capas...
Livros para empréstimos aos alunos
mais pobres
Exemplares para escrita e cadernos
para escrita e contas
182
Cabides
Escarradores
Nota dos artigos fornecidos,
Ponta do Sol, 21/02/1919
Lista de material escolar da
Irmandade, 03/01/1919
Requisição, Sal-Rei, 06/12/1918
Requisição da Escola Primária
Superior da Praia 22/11/1917
Requisição da Escola Primária
Superior da Praia 22/11/1917
As fontes não referidas, na tabela, foram consultadas no IAHN (Cx.ª 666, Fundo da Secretaria Geral do
Governo).
140
A construção do discurso educativo
Carta escolar
No ano de 1910-1911, a rede escolar primária era constituída por 51 escolas
oficiais (64,6%), 17 municipais (21,5%) e 11 particulares (13,9%). A maioria das
escolas comportava grupos com mais de 40 alunos: cerca de 26,6% dos
estabelecimentos de ensino congregava grupos de dimensão média (41 a 60 alunos)
e 20,3% das escolas, grupos numerosos (superiores a 100 alunos). O número de
estabelecimentos de ensino, com uma população escolar reduzida, era diminuto
(11,4%: menos de 21 alunos e 15,2%, menos de 41 alunos)183.
Gráfico 9 – Distribuição das escolas primárias segundo o número de alunos – 1910/1911184
26,60%
16,50%
15,20%
11,40%
10,10%
11,40%
3,80%
< 21 alunos
21 - 40
alunos
41 - 60
alunos
61 - 80
alunos
81 - 100
alunos
101 - 120
alunos
121 - 140
alunos
5,10%
> 140
alunos
A rede escolar sofreu um aumento exponencial entre 1911 (79 escolas) e 1920
(160 escolas), decrescendo de 1921 a 1926185, num contexto de crise social,
provocado por secas prolongadas (Gráfico 10).
183
Escolas com menos de 21 alunos: 9 (11,4%); 21-40 alunos: 12 (15,2%); 41-60 alunos: 21 (26,6%); 61-80
alunos: 13 (16,5%); 81-100 alunos: 8 (10,1%); 101-121 alunos: 9 (11,4%); 121-140 alunos: 3 (3,8%) e mais de
140 alunos: 4 (5,1%).
184
Fonte: “Mapas de frequência de alumos e alumnas”, 1910-11. Apenso n.º 8 aos Boletins Oficiais de 1911,
pp. 2-4.
185
Número de estabelecimentos de ensino primário: 1911 – 79; 1917 – 158; 1921 – 160; 1926 – 150.
141
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Gráfico 10 – Evolução do número de escolas de instrução primária – 1911/ 1926
170
160
150
140
130
120
110
100
90
80
70
1911
1917
1921
1926
Em 1911, a maioria das escolas concentrava-se na região de Barlavento (com um
peso de 57%), tendência que se alterou a partir de 1917, com uma maior
concentração de escolas em Sotavento (1917: 56,6%; 1921: 56,3%; 1926:
51,7%)186.
Gráfico 11 – Evolução das escolas primárias, nas regiões de Sotavento e Barlavento – 1911/1926
Sotavento
100
Barlavento
90
90
90
77
80
70
69
70
1917
1921
73
60
50
40
45
34
30
20
1911
186
1926
A supremacia da região de Sotavento, quanto ao número de escolas, era relativa, considerando-se o peso
demográfico das ilhas do sul. População do arquipélago de Cabo Verde, por regiões: 1910: Sotavento: 84.835
habitantes; Barlavento: 57.717 habitantes; 1920: Sotavento: 101.390 habitantes; Barlavento: 57.493 habitantes.
(Estatística da Província de Cabo Verde, 1915 e 1923).
142
A construção do discurso educativo
Tomando como referência o ano de 1915, apresentamos a cartografia escolar de
Cabo Verde187, com a localização dos postos de ensino e das escolas primárias com
frequência feminina, masculina e mista188.
Figura 16. Carta escolar das ilhas Brava, São Vicente, Sal e Maio
Escala 1: 250 000
E♂ = Escola masculina
P♂ = Posto de ensino masculino
E♀ = Escola feminina
P♀ = Posto de ensino feminino
E♂♀ = Escola mista
P♂♀ = Posto de ensino misto
187
Fonte: “Mappas de frequência de alumnos e alumnas”, 1915 e Estatísticas da Província de Cabo Verde,
1915.
143
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Figura 17. Carta escolar das ilhas Boavista e Fogo
Escala 1: 250 000
144
A construção do discurso educativo
Figura 18. Carta escolar das ilhas Santo Antão e São Nicolau
Escala 1: 250 000
145
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Figura 19. Carta escolar da ilha de Santiago
Escala 1: 250 000
146
A construção do discurso educativo
147
5.
Manifestações internas da cultura escolar
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
A cultura escolar manifesta-se por “um conjunto de normas que definem
conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que
permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos” (Julia, 1995, p. 356). A heurística ajudou-nos a recuperar as
manifestações internas da cultura escolar cabo-verdiana: rotinas e inovações,
cerimónias e rituais (exames), protagonizadas por actores educativos, reguladas
pelo poder e reelaboradas pela sociedade, num contexto de subjugação.
Figura 20. Página da Cartilha Maternal
(Deus, 1995, p. 6)
148
A construção do discurso educativo
5.1. (In) disciplina
A administração escolar estabeleceu estratégias e tácticas, cujas matrizes básicas
foram “o horário, o exercício, o dever e o respeito” (Magalhães, 1996, p. 19). A
obediência, a submissão e a disciplina eram condutas a inculcar.
“A escola deve ser a fábrica de cidadãos: ¿que cidadãos, ou antes que espécie de
cidadão poderá vir a ser um aluno que hoje responde torto ao professor, que o não
respeita, que não é aplicado?
¿E, no inverso, por que ruas do desprestígio não andará um professor que
desobedecido expulsou um aluno ao receber ordem para de novo receber êsse aluno?
É de todo o ponto conveniente e nisso insistimos, que seja modernisado o regulamento
escolar de 1875, de forma que fique efectivamente proibido ao professorado aplicar
castigos corporais nos alunos, desde que para isso não sejam devidamente autorisados
pelos pais ou tutores, mas, onde, se estabeleça, que por motivos de desobediência,
faltas de educação, poderão os professores aplicar períodos de 3, 10, 15, 20 e 30 dias
de expulsão aos alunos, e correspondentemente que essas faltas corresponderão à
multa diária de $20, que os pais, tutores ou curadores dos alunos terão de pagar, ou em
trabalho, ou em dinheiro que reverterá para um fundo especial de assistência escolar.
Isto impõe-se em absoluto. O regulamento escolar existente é deficientíssimo e
antiquado.“ (O Futuro de Cabo Verde, n.º 63, 9 de Junho de 1914, p. 2)
A transformação das crianças em escolares passava pela vigilância e acção
disciplinar, confiadas pelas famílias aos professores.
“Escrevem-nos do Fogo dizendo que o professor municipal José Gomes Barbosa foi
processado por ter castigado paternalmente um alumno seu.
Ignoramos como os factos se passaram, mas ainda assim não deixaremos de pedir, a
quem competir, um lance d’olhos para esta questão – a abolição dos castigos corporais
nas escolas primarias – que trouxe como consequencia a transformação do discipulo
n’uma sensitiva, em que não se pode tocar, sob pena de processo. Os castigos
corporaes, sempre paternaes, deverão ser de novo inscriptos na legislação escolar
caboverdeana, se é que se pretende prestigiar o professor, que, com expulsões não
consegue manter os alumnos no espirito do respeito e da disciplina, que em casa não
recebem e na escola não querem seguir, por lhes ser mais commodo e facil saltar,
brincar e depois recorrer aos tribunaes para castigar o professor que se lembrou que as
orelhas serviam para mais alguma coisa do que para ouvir.” (O Independente, n.º 4, 20
de Fevereiro de 1912, p. 3)
A reflexão sobre a disciplina remete-nos ao pensamento de Foucault: “Na
oficina, na escola, no exército é exercida uma micropenalização do tempo (atrasos,
faltas, interrupção de tarefas), da actividade (desatenção, negligência, falta de zelo),
149
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
da maneira de estar (indelicadeza, desobediência), do discurso (tagarelice,
insolência), do corpo (atitudes «incorrectas», gestos não conformes, falta de asseio),
da sexualidade (imodéstia, indecência)“ (1975, pp. 209-210). A punição torna-se
elemento de um “sistema duplo: gratificação-sanção“ (idem, p. 212).
“Um regulamento especial de instrucção publica devia regular as horas de ensino e
prescrever quaes os dias uteis e os feriados.
O ensino às creanças deve ser ministrado com intermittencias: cada hora de estudo
seguida de quinze minutos de recreio, sob as vistas do professor. Uma tal distribuição
de tempo, a creação de premios e outros estimulos, só podem efficazmente supprimir o
uso e abuso da palmatoria, das orelhas de burro e de outros castigos antiquados que
moem os orgãos das creanças e lhe obcecam o espirito, dando-lhe o habito da
humildade requintada até ao abjecto, e ensinando-lhe a obediência desarrazoada e
servil”. (A Voz de Cabo Verde, n.º 5, 29 de Março de 1911, p. 2)
“É quanto a nós, absolutamente necessário tambêm, recomendar ao professorado, que
lhe é absolutamente vedado aplicar castigos corporais aos alunos, por falta de
dedicação ao estudo, falta à escola, desobediência ou mau comportamento, ainda que
com o consentimento dos pais, mas legisle-se de forma que, os pais, tutores e
curadores, sejam responsáveis pelas faltas à escola, falta de dedicação, desobediência e
mau comportamento, dos seus filhos, tutorados ou curados, com multa efectiva de 20
centavos por cada falta, paga em dinheiro ou em trabalho. (…)
A educação recebe-se em casa e a instrução na escola, e poupava-se ao público
consciente o espectáculo indecoroso que se observa em muitas escolas, da província,
em que os alunos, como se num curral estivessem, perturbem a ordem, cuspam nas
paredes, risquem paredes e carteiras, sendo os professores impotentes para domarem
uma orda miuda de malcriados, a quem os pais nada dizem, e os professores nada
podem fazer. Regulado êste assunto de capital importância, conseguia-se o que é
mister, haver disciplina.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 63, 9 de Junho de 1914, p.2)
O campo semântico da expressão disciplina é vasto. O discurso educativo é
pautado por conceitos-chave: autoridade, obediência, vergonha e submissão.
“A educação da voz é uma tarefa árdua que tem o professor, principalmente rural:
sabe-se que os meninos do campo, acostumados a ouvir uma linguagem brusca e
muitas vezes brutal, adquirem uma voz rouquenha e fastidiosa que necessariamente
deve ser corrigida. Trazê-la a uma tonalidade pura é empresa dificílima.
Nunca estão de pé sem se encostar a uma parede ou a uma porta, ou a uma mesa, etc.
perguntando-lhe qualquer cousa levam logo a mão à cabeça ou põem-se sôbre um pé
coçando qualquer parte do corpo. São defeitos que o professôr deve sufocar
impreterivelmente.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 248, 19 de Junho de 1916, p. 3)
Assistimos a uma cena de controlo disciplinar que “não consiste simplesmente
em ensinar ou em impôr uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação
150
A construção do discurso educativo
entre um gesto e a atitude global do corpo, condição de eficácia e de rapidez”
(Foucault, 1975, p. 178).
Luís Romano, em Cabo Verde: Renascença de uma Civilização no Atlântico
Médio descreve os instrumentos de castigo mais usados no controlo disciplinar:
“Palmatória: o pesadelo dos meninos-de-escola! Instrumento de madeira dura, com
um furo no centro para doer mais e «cantar». A palmatória ou «palmate» também é
cortada na pele do tubarão. Foi ela que endireitou muito menino «andejo», abriu a
memória às cabeças-duras na cartilha e constribuíu bastante para que, amedrontados
aprendêssemos depressa as quatro operações, os ditados, e soubéssemos cuidar dos
nossos «bibes», cadernos e livros. Os companheiros, moradores nos regadios,
conheciam um insecto chamado «nagóia» que moído e esfregado nas mãos, tinha o
poder de quebrar a «diaba» em duas partes, ante o pasmo dos professores!
Vara-de-marmelo: É o remédio infalível para acabar com as «terribezas» ou
terribilidades da criançada mais travessa. Companheira da palmatória, nas escolas e
mesmo nas casas de «gente branco», menino que tivesse «seita» ou teimosia mudava
de opinião quando a vara de marmeleiro era empregada, principalmente na barriga das
pernas ou na alma das costas. O certo é que todos fomos criados no respeito, sem os
complexos e as taras que a moderna pedagogia procura resolver com meios mais
suaves e civilizados, geralmente pouco eficientes, ante o descalabro da moderna
geração.” (1970, p. 83)
A escrita sobre a disciplina está matizada de representações ambíguas. O senso
comum, ao mesmo tempo que recriminava os castigos escolares, legitimava-os
como métodos de persuasão nas dualidades punição-eficácia e pedagogiaineficácia.
“Ante os discipulos, não se vinca a fronte, por maior que seja a sua contrariedade, por
mais funda que seja a mágua que na alma sente; porque sabe que as crianças são
impressionáveis e que, em torno delas, só deve reinar alegria.
Instrui e educa, não pelo temor, mas pelo amôr. Não quer isto dizer que não castiga ou
que não deva castigar.
¿Qual é o pai (o verdadeiro professôr é bem um segundo pai) que, por maior amôr que
aos filhos consagre, não os castiga, que moral, quer fisicamente, quantos castigos
merecem? O bom professôr castiga, sim, e até fisicamente. Quando insuficientes todos
os castigos morais, recorre, moderadamente é claro aos chamados «castigos
corporais», porque «há seres de uma atenção tam movel, que só ao castigo físico são
capazes de obedecer.»
Um ilustre pedagogista, referindo-se, num Tratado de Pedagogia, aos castigos físicos,
disse que o «erro não está em usa-los; está em abusar deles e em os inscrever na
cabeça do rol».” (A Voz de Cabo Verde, n.º 333, 1 de Março de 1918, p. 1)
“Afigura-se-me, pois, essencial e primordial necessidade canalisar os bons impulsos
naturaes das creanças, desde os mais tenros anos (e não são esses impulsos o que falta
na indole dócil dos povos caboverdeanos) e é ainda de mais essencial e primordial
151
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
interesse para a educação desses pequenos sêres, que hão-de continuar ámanhã as
obras de progresso da provincia, segundo a direcção e preparação que, a tempo e
conscientemente lhes fôr dada: - por um lado não os brutalisar com maus tratos em
que, as mais das vezes, se descarrégam injustamente as contrariedades e amarguras
dos pais ou dos outros parentes; por outro lado, não cair-se no excesso oposto a esse,
que é o de estragar as creanças, cumulando-as de prazeres impróprios das suas idades,
contrariantes da higiene, deprimentos do desenvolvimento equilibrado das forças dos
musculos e do cerebro, e que às creanças dão a ideia falsíssima das realidades duras,
que veem a mostrar-lhes mais tarde o quanto a vida real carece de uma preparação
mais bem compreendida.” (Relatório do inspector escolar, s. d.189)
No acervo documental reconstituímos as práticas punitivas mais frequentes na
escola cabo-verdiana:
Quadro 43 – Punições escolares
Punição
Citação
Fonte
Advertência
“A educação da criança não consiste em ralhar e bater (...), mas sim em influir
por meio de palavras com timbre de respeito.”
“Orelhas de burro e outros castigos antiquados que moem os orgãos das
creanças”
“Palmatória: o pesadelo dos meninos-de-escola!”
“Vara-de-marmelo: é o remédio infalível para acabar com as «terribezas» ou
terribilidades da criançada mais travessa”
“Períodos de 3, 10, 15, 20 dias de expulsão aos alunos”
FCV, n.º 129
14/10/1915
VCV, n.º 5
29/03/1911
Romano, 1970,
p. 3
FCV, n.º 63
09/06/1914
Vexame
Castigos corporais
Expulsão
A recriação das práticas de submissão e de obediência, nas páginas do romance
O Chiquinho de Baltasar Lopes, conclui a reflexão sobre a (in) disciplina escolar:
“- Vocês leiam!
Toda a classe leu em voz alta. O joão-da-camâra190 tinha trechos muito bonitos. O Sr.
José Martins ficava de pé no estrado, com o ponteiro encostado ao ombro, a ouvir a
leitura em coro.
- Dick, estás lendo com uma voz muito fina. Um homem deve ter voz de homem...
A sala era pequena e não chegava para tanta gente. Eu, como era novo na classe,
ficava com os outros junto da porta, quase na rua.
- Maninho, não sabes ainda a lição que te passei anteontem.
Seis palmatoriadas. Nasolino foi cumprir a ordem do professor. Os rapazes da 3ª classe
faziam-nos bioco, a troçar da nossa leitura. Um garoto veio condenar um companheiro
que lhe estava tirando penico nas pernas. Quatro palmatoriadas. Nasolino cumpriu. Os
decuriões foram tomar lições aos mais atrasados.
Sr. José, dá licença para eu ir fazer um serviço na rua?” (1970, pp. 51-52)
189
Cx.ª 671. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
Livro de leitura para as escolas de instrução primária para a 4ª classe, da autoria de João da Câmara,
Maximiliano de Azevedo e Raul Brandão.
190
152
A construção do discurso educativo
5.2. Inovações pedagógicas
No primeiro subcapítulo referimo-nos ao acto de ensinar, mediante a coacção de
estímulos externos – a disciplina e a punição. Em contraposição, o paradigma da
Escola Nova transformou a disciplina “num exercício crescentemente solitário e
associado à independência ideal do aluno”, com regras que “já não se impõem pela
violência das sanções, pela rigidez dos princípios” (Ó, 2003, p. 112).
O isolamento geográfico e cultural de Cabo Verde e a submissão política
ilhavam a educação da influência das novidades pedagógicas. Porém, a elite crioula
conseguia romper o cerceamento físico e político e aceder a ideias novas, aos
princípios da Pedagogia.
“[O ensino] além de não corresponder aos fins que se propõe, não preenche os desejos
e as aspirações dos individuos nem dos metropolitanos que aqui residem. A
Pedagogia, cujas doutrinas servem de base nos paizes civilizados aos regulamentos
especiaes e leis de educação e ensino, são n’este archipelago, senão ignorados pelo
menos desprezados, do que adveem gravissimos prejuizos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º
1, 1 de Março de 1911, p. 2)
“Ao mais humilde dos discipulos de Froebel ou de Pestallozzi repugnar-lhe-ia entrar
em algumas ou em muitas das escolas primarias da Provincia de Cabo Verde, e um
mestre-escola suiço, alemão, escandinavo, japonês teria para nós lágrimas de
comiseração se pudesse um dia comtemplar a miseria que caracteriza quasi geralmente
o professorado primario e as escolas, essas duas cousas que entre nós nenhuma
atenção tem merecido, atraves dos seculos, aos poderes; essas duas cousas que nos
seus respectivos paises se impõem, ao contrario, como um dogma, ante o qual se
ajoelham governos e povos” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 103, 4 de Agosto
de 1913, p. 2)
Pela janela da imprensa, os métodos pedagógicos de Pestalozzi e Froebel – que
defendiam a autonomia da aprendizagem, de acordo com a evolução, as aptidões e
as necessidades das crianças – chegavam ao conhecimento da classe docente.
Embora de forma empírica, os professores aplicaram metodologias activas, que
contrariavam as tradicionais abordagens do ensino: “saber ensinar, especialmente
crianças, é abstrair da grande soma e da generalidade de conhecimentos adquiridos,
ensinando-as gradualmente, sem sobressaltos, sem asperesas, de maneira que dum
conhecimento resulte o outro e a soma de todos seja uma unidade completa e
integrada” (O Futuro de Cabo Verde n.º 69, 20 de Agosto de 1914, p. 3).
153
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A obra pedagógica de João de Deus e o método “racional, simples e fácil”
(Nóvoa, 2003, p. 467) eram populares191. A Cartilha Maternal192 e Os deveres dos
filhos com seus pais integravam a relação de manuais adoptados. A Voz de Cabo
Verde noticiou que o Dr. João de Deus Ramos, filho do poeta João de Deus, se tinha
prontificado “a vir tratar da instrução em Cabo Verde”, conforme extracto de uma
carta transcrita no periódico:
“Ontem vim no comboio com o João de Deus Ramos, governador civil da Guarda.
Falámos a respeito da instrução em Cabo Verde e ele mostrou-me desejo de ir estudar
o assunto e promover a fundação de jardins escola e estabelecimentos congéneres,
como já aqui fez, com um belo... (ilegível), em Coimbra, Porto, Lisboa, Figueira e
Guarda.
O rapaz é muito competente e isso vê-se pelo que já tem feito. Seria um belo serviço à
provincia a ida dele aí.
Para tal, basta que de aí o convidem. Disse-me que não aceita remuneração alguma e
que, quando muito, lhe paguem a viagem de ida e volta.” (N.º 40, 22 de Julho de 1912,
p. 1)
A notícia acrescenta que, “se atentarmos à provada competência do Dr. João de
Deus Ramos, ao desvelado amor que vota à instrução, a persistência e tenacidade
com que se dedica a todos os problemas e trabalhos que à mesma digam respeito”, o
governo deveria promover a missão, considerando que “a despesa com as passagens
[que] é insignificante (...), será largamente compensada com os benefícios que a
vinda daquele ilustre pedagogo trará à instrucção publica” (idem). Não
conseguimos apurar se o Dr. João de Deus Ramos visitou o arquipélago, mas o
método João de Deus193 era conhecido e aplicado.
“Tomou êste senhor [professor José da Fonseca Lage] em seguida a palavra, e por
espaço de uma hora, depois de dirigir afectuosos cumprimentos aos colegas, à Câmara,
à Administração e ao Gôverno, poz em relevo o grande serviço prestado pela Câmara
Municipal à instrução, atendendo o seu apêlo e dos seus colegas para que o ensino
fôsse uniformizado com o maravilhoso método João de Deus. Depois descreveu as
vantagens dêste método, que desde já adopta na sua escola, e continuou descrevendo
as vantagens da instrução nesta província, com que se fará um prodigioso
levantamento moral na juventude, que agora desperta para vida.” (O Futuro de Cabo
Verde, n.º 94, 11 de Fevereiro de 1915, p. 2)
191
A Cartilha foi traduzida para línguas indígenas africanas (de Angola e Moçambique) e língua
concani de Nova Goa (Nóvoa, 2003, p. 277).
192
Ver Figura 20 (pág. 147).
193
O método João de Deus tinha “dois recursos fundamentais: um livro, a Cartilha, «manual»
destinado ao ensino individual ou doméstico das crianças ou adultos; os «quadros parietais», placas
de grande dimensão destinadas a serem utilizadas no ensino colectivo” (Nóvoa, 2003, p. 446).
154
A construção do discurso educativo
A produção epistemológica sobre educação conduziu à “necessidade duma
escola nova, em cujas paredes todos os métodos e técnicas educativas se veriam
adaptados à realidade particular de cada criança, às suas ideias inatas” (Ó, 2003, p.
126). Um relatório da inspecção local recomendava os processos Montessori194,
assentes nos princípios da individualidade, da liberdade e da educação dos sentidos
como base da vida intelectual” (Sérgio, 1915, p. 252):
“A esse respeito [da acção colaboradora das famílias para a educação das crianças]
muito ha a aprender com as reformas do ensino infantil preconisadas e levadas já à
prática com grande exito, por exemplo, em Roma, pela Dra. italiana Maria Montessori
(Vidé Revue – fasciculo n.º 7 de 1 de Abril de 1914). A divulgação, em língua
portuguesa, das notícias referindo trabalhos realisados por esta reformadora da cultura
e educação das creanças seria desejavel, para já, como elemento de grande utilidade
para meditação de professores e professoras actuaes do ensino primario entre nós, que
estamos sensivelmente em grande atraso nessa materia. Ao governo da província, com
a devida vénia, lembro a conveniencia de tal tradução e divulgação, e da de todos os
escritos deste genero que desenvolvam nas suas minuciosidades os processos da
cultura infantil a que me refiro – que tendem a esclarecer o professorado primario para
este melhor exercer a sua missão de ensinar crenças; e propagando-se tambem,
simultaneamente, nas familias os preceitos e metodos de uma tal educação sadia e
benéfica, que devem contribuir tanto para as alegrias do lar como para as
prosperidades da região.” (Relatório do inspector escolar, s. d.195)
A comemoração anual da Festa da Árvore, na época das chuvas, era ocasião para
a prática do ensino pela natureza, com o envolvimento de docentes e discentes.
“Foi instituída esta festa com o intuito de incutir no animo das crianças, especialmente,
e no da população em geral, o amor pela árvore cuja utilidade é tão grande.
Não creio, porém, que consiga os seus fins em Cabo Verde, onde o que salta aos olhos
é, em vez do amor e carinho na sua conservação, a sua destruição inconsiderada, se
não fôr longamente preparada de antemão, na escola, pela lição do professor,
demonstrando cabalmente que da sua conservação ou exploração regular virão maiores
proveitos que da sua destruição.
A conservação da árvore é um dever cívico, pois é de utilidade pública.” (Boletim
Oficial n.º 27, 7 de Julho de 1917, p. 263)
António Sérgio defendia que “a escola devia ser simples” e valorava “não a casa,
mas a cerca, onde estavam os objectos a estudar: a terra, as plantas, os animais” (A
Águia, n.º 85-87, Janeiro-Março de 1919, p. 26).
194
Os processos Montessori, segundo António Sérgio, resumem-se em três ideias directrizes “o princípio da
individualidade; o princípio da liberdade; o princípio da educação dos sentidos como base da vida intelectual”
(A Águia, n.º 42, Junho de 1915, p. 252).
195
Cx.ª 671. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
155
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Figura 21. “O meu primeiro passeio escolar”
(Excerto do repertório, Escola Oficial do Maio, 1 de Maio de 1917196)
Eram recomendadas as “lições práticas de cousas” em visitas de estudo:
“Determinou S. Ex.ª o Governador que os professores do ensino primário, em alguns
dos dias feriados, ministrassem aos seus alunos lições práticas de cousas em passeios
nos arredores das sédes das respectivas escolas. Estes exercícios reconhecidamente
úteis e necessários ao desenvolvimento demonstrativo das teorias professadas nas
196
Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
156
A construção do discurso educativo
aulas, carecem de ser quanto possível amenizados ou tornados agradáveis a
professores e alunos, e isso pode por vezes depender da cooperação de boa vontade de
moradores dos concelhos, cujas propriedades sejam visitadas pelos excursionistas: é
essa cooperação e boa vontade que S. Ex.ª espera dos cidadãos, donos ou gerentes de
tais propriedades, confiando tambêm em que as autoridades administrativas locais
procurarão, por sua parte fazer compreender nos moradores o interesse que há em que
seja apoiada e secundada no que deles dependa a execução regular dos exercícios
práticos de ensino, referidos. Tal auxílio consiste principalmente no bom agasalho que
dispensem ao pessoal das escolas, facilitando-lhe qualquer meio de conforto sem
sacrifício, e relevando às crianças algumas turbulências inevitáveis que a vigilância
dos professores, acaso não possa prevenir.” (Boletim Oficial n.º 17, 28 de Abril de
1917, p. 1)
A educação cívica e o método da cidade-escola foram objecto de crónicas
jornalísticas. De universo concentracionário, a escola transmudava-se em instância
de socialização.
“O método da cidade-escola consiste em considerar a escola como uma cidade e as
diversas classes como outros tantos bairros. Cada classe tem os seus funcionários
especiais e o conjunto de todas, formando a cidade-escola, tem o seu governador civil,
câmara municipal, presidente de tribunal, juizes, policias, prisões. Todos os
funcionários são nomeados pelos próprios alunos, exactamente como acontece na vida
pública. Habituam-se assim as crianças a servirem-se de voto. Uma outra vantagem
que se assinala é que os funcionários da cidade-escola asseguram eficazmente a
disciplina. São êles quem velam pela manutenção da ordem nas classes e fora delas.
Os recalcitrantes são levados ao tribunal e êste, depois de ter conferenciado com os
professores, aplica-lhes as penas conforme as faltas cometidas.” (O Manduco, n.º 10,
15 de Janeiro de 1924, p. 3)
António Sérgio defendeu a tese do self-government escolar: “A cidade escolar
organiza a sociedade dos estudantes à maneira de um município; (...) numa
organização semelhante às de um estado norte-americano, com suas câmaras, seu
presidente, etc., vários estados podem reunir-se numa nação ou confederação”
(1984, pp. 44-45). A obra sergiana não era desconhecida em Cabo Verde, conforme
se depreende da notícia da “ascensão do ilustre escritor pedagogista ao elevado
cargo de ministro (…), talento de elite, dispondo de excepcionais faculdades de
trabalho e visão ampla e segura, o novo ministro da Instrução197 é, como tal, the
right man in right place” (O Manduco, n.º 11, 30 de Janeiro de 1924, p. 1)
197
António Sérgio foi Ministro da Instrução Pública, em Portugal (18 de Dezembro de 1923 a 28 de Fevereiro
de 1924).
157
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Outro símbolo da modernidade, o cinema educativo, chegou às ilhas em 1926,
por iniciativa da Biblioteca Escolar Rosariense. Rogério Fernandes situa o
aparecimento do cinema educativo “numa época de extremo optimismo (1914)198,
talvez realçado por aquilo que o cinema representava, em princípio, como reacção
contra a escola que se fechava ao contacto da experiência e se furtava à investida
revitalizante do espírito científico” (2004e, p. 657).
“Expondo a êste Govêrno a presidência da comissão directora da Biblioteca Escolar
Rosariense, da ilha de Santo Antão, a conveniência de se introduzir o cinema na
Escola Central da Vila da Ribeira Grande, como complemento auxiliar ao ensino pela
exibição de filmes pedagógicos, históricos, geográficos e outros que tendam a
demonstrações instrutivas que facilitem os conhecimentos da instrução aos respectivos
alunos, pedindo para a sua importação a isenção dos direitos e mais impostos;
Considerando que é de apoiar êste alvitre pela facilidade que imprime nos alunos os
conhecimentos que, sómente pela parte teórica lhes são impossíveis aduzir da ideia
real, concorrendo assim para a melhor apreensão dos assuntos que versem os seus
temas habilitando-os conscientemente, o que já em países estrangeiros vem sendo
pôsto em prática com bons resultados;
O Conselho Legislativo aprovou e o Govêrno da Colónia de Cabo Verde determina o
seguinte, com a sanção expressa do Poder Executivo, em ofício n.º 63, de 23 de
Setembro findo, da Direcção Geral das Colónias do Ocidente:
Artigo 1.º Fica isento de direitos e de todos os mais impostos actualmente criados para
o Estado e para quaisquer outras entidades ou organismos municipais a importação,
pela Delegação Aduaneira de Santo Antão, de um cinematógrafo completo,
compreendendo os filmes ou fitas que o acompanharem e os que posteriormente forem
importados pela direcção da Biblioteca Escolar Rosariense e cujos assuntos dos
mesmos contenham apenas a matéria instrutiva apropriada ao ensino histórico,
geográfico e demonstrativo relativos ao grau da instrução professada na Escola Central
daquela vila e à qual se destinam.” (Boletim Oficial, n.º 45, 6 de Novembro de 1926, p.
431)
198
A primeira referência à possibilidade de aplicar o cinema na escola, entre outros meios audiovisuais, surge
na obra de Adolfo de Lima, Educação e Ensino, editada em 1914 (Fernandes, 2004c, p. 657).
158
A construção do discurso educativo
5.3. Artefactos e livros escolares
A compreensão histórica do vacilante percurso da modernidade pedagógica, na
colónia, entre reformas, ideias novas, imposições, rotinas, representações e práticas,
pressupõe um olhar sobre os artefactos e livros escolares.
A penúria de materiais didácticos, nas salas de aula, patenteia o abissal
distanciamento entre projectos e realidade.
“Há sete meses que venho representando, perante o município da Praia, o papel de
pedinte, e o seu mentor o de usurário sempre refractário às minhas súplicas.
Não admito que ninguém espezinhe os meus direitos, porque dêles tem uma perfeita
noção como qualquer.... (ilegível) da mula russa, peito de pau, alma de aço, que julga
trazer no ventre o Júpiter Tonante para o espanto e terror da humanidade.
Estou farto de perseguições!... Estou farto dos coices da besta-féra e bem prevenido
para me defender à sombra da lei.
Eis os materiais escolares que a secretaria do município tem fornecido à Escola Oficial
de 2ª classe, da Praia, durante 7 meses:
3 lápis de gis – $03; 1 caneta – $02; $02; 1 lápis – $02; ½ frasco de coisa parecida com
tinta – $02; 5 cadernos de papel almaço – $20; 3 aparos – $03. Soma – $32.
É com estes materiais escolares, no valor de 320 réis, que tenho de me desempenhar
dos meus deveres de professor, não sei por quanto tempo, porque de cinco requisições,
nenhuma me foi satisfeita. Não faço milagres e se não fosse a generosidade dos srs.
Sérgio de Carvalho e Abílio Monteiro de Macedo, que são os protectores da minha
escola, não sei como havia de exercer proficuamente o meu cargo.” (A Voz de Cabo
Verde, n.º 120, 1 de Janeiro de 1913, p. 3)
Ardósia, pena e lápis
A ardósia, a pena e o lápis possibilitaram a aprendizagem simultânea da leitura e
da escrita, por serem materiais facilmente adquiridos pelos alunos. Sendo, embora,
recursos fundamentais para a aprendizagem, escasseavam nas escolas:
“Os livros, a ardósia, o papel e outros utensílios indispensáveis para os exercícios
escolares, nunca o aluno os leva na sua totalidade, passando-se meses e meses sem que
êle possa treinar nesta especialidade de ensino, o que o atraza um, dois e mais anos na
preparação dos seus exames. E da fórma como as coisas do ensino correm, qual o
professor que pode evitar tais desregramentos? Nenhum.” (O Futuro de Cabo Verde,
n.º 118, 29 de Julho de 1915, p. 3)
Para evitarem “deformações graves na caixa torácica e nos órgãos que encerra e
desvios da coluna vertebral e miopia”, os alunos eram aconselhados a praticarem
“de preferência na ardósia, sob a direcção do professor, os necessários exercícios
159
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
tendentes a educar-lhes os dedos para o manejo da pena e do lápis” (Programa de
leitura, 1ª classe199).
Quadro preto
No ensino rudimentar da leitura pode o professor “servir-se do quadro preto,
onde escreverá tantas lições e exercícios variados, quantos o seu engenho e
conhecimento pedagógico lhes sugeriam, ou empregar tabelas impressas,
litografadas ou manuscritas, em tipo bem nítido e visível, e ainda letras móveis com
as quais possa comparar sílabas e palavras” (idem).
Caderno diário
Era o espelho da aplicação diária do aluno, em cada dia, em cada período
escolar, em cada ano lectivo (Ó, 2003, p. 324). O programa de língua portuguesa
recomendava que os “exercícios [caligráficos deviam ser] feitos a lápis ou a tinta,
sôbre papel pautado a principio tendo as linhas para a inclinação das letras, copiadas
do quadro preto” (programa de leitura, 1ª classe).
Figura 22. Exercícios caligráficos 200
199
200
Supl. nº 15 ao Boletim Oficial, n.º 45, Novembro de 1915, p. 1.
Acervo documental da Biblioteca Nacional de Lisboa.
160
A construção do discurso educativo
Mapas e contador mecânico
“A única mobília consiste em uns bancos toscos e imundos, uma mesa carunchosa,
um estrado velho a cair de pedaços e duas cadeiras. – Material: um mapa de pezos e
medidas, um quadro de esqueleto humanos, dois mapas de Portugal, sendo um deles
em relevo, mapas de províncias ultramarinas e um contador mecânico.” (A Voz de
Cabo Verde, n.º 218, 8 de Novembro de 1915, p. 2)
Caixa métrica
“ [A escola] apresentava a seguinte requisição: um contador de parede ou de pé, uma
caixa métrica contendo: metro de fanqueiro, fio de prumo, nível de bolha d’ar, 6
solidos geometricos, transferidor, compasso, esquadro, regua e esquadro T, cadeia
metrica, decimetro quadrado, decimetro cubico, capacidade do decimetro cubico,
duplo decimetro, colecção de medidas para secos, colecção de 7 medidas para
líquidos, colecção de pesos de ferro até um kilo, colecção de pesos de latão fazendo
200 gramas, balança de pratos de um kilo, etc.” (Relatório sobre o movimento da
Escola Oficial de S. Jorge, ilha do Fogo, 1 Setembro 1916, fv. 3201)
Quadro 44 – Equipamentos e artefactos escolares
Designação
Ardósia e lápis de pedra
Caneta
Aparos
Pena
Caderno diário
Letras móveis
Carta geográfica de Portugal e das colónias
Quadro de História de Portugal
Mapa de Ciências Naturais
Quadro do esqueleto humano
Caixa métrica
Esfera terrestre
Mapa de pesos e medidas
Termómetro
Colecção “Atitudes escolares”208
Máquina de costura «Singer»
Fonte
FCV, n.º 118, 29/7/1915, p.3; Lista de material , 3/1/1919202
VCV, n.º 120, 1/12/1913, p. 3
VCV, n.º 120, 1/12/1913, p. 3
Programas do Ensino Primário 203
Acervo documental da BN.
Programas do Ensino Primário
Relatório, Escola Oficial de S. Jorge, ilha do Fogo, 1/9/1916204
Acta Sessão Conselho de Instrução Pública, 6/11/1918205
Programas do Ensino Primário
VCV, n.º 128, 8/12/1915, p. 3
Idem.
Requisição de mobiliário, Escola de Rabil, Boavista 3/12/1918206
VCV n.º 218, 8/11/1915, p. 3
Nota dos artigos de mobília, Ponta do Sol, S. Antão, 21/2/1919207
Idem.
Requisição de mobiliário, Escola de Rabil, Boavista 3/12/1918
201
Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
Cx.ª 671. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
203
Supl. nº 15 ao Boletim Oficial, n.º 45, 6 de Novembro de 1915.
204
Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
205
Cx.ª 668. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
206
Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
207
Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
208
Materiais elaborados a partir do livro de leitura intitulado Deveres dos filhos (tradução e adaptação de uma
obra francesa feita por João de Deus) (Nóvoa, 2003, p. 466).
202
161
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
As práticas educacionais reconstituídas, no arco temporal de 1911 a 1926,
desvendaram os equipamentos e artefactos do quotidiano escolar (Quadro anterior).
Livros escolares
Os manuais tiveram uma importância decisiva como suporte, por excelência, do
ensino “verbalista, descritivo e mnemónico” (Sérgio, 1939). Funcionaram como
instrumentos de uniformização da linguagem e dos valores.
Figura 23. Anúncio de livros e mapas
(O Futuro de Cabo Verde, n.º 130, 21 de Outubro de 1915, p. 2)
No início da década, foram adoptados os livros escolares constantes da tabela
seguinte (Portaria n.º 361, 11 de Dezembro de 1907):
Quadro 45 – Lista de livros escolares – 1910/1911
Títulos
Cartilhas das escólas
Livro de leitura, 1ª classe
Livro de leitura, 2ª e 3ª classes
Livro de leitura para a 4ª classe
Synopses Grammaticaes [e Conjugação de Verbos]
Mathematica, Systema metrico e Geometria
Chorografia portugueza
[O] Desenho das Escolas Primárias], 1ª, 2ª e 3ª classes
[Compêndio de] Desenho, 4ª classe
Educação Cívica
Moral e Doutrina Christã
História de Portugal
162
Autores
Agostinho Nunes Ribeiro Teixeira
José de Carvalho e Silva
João da Câmara
João da Câmara, [Maximiliano de Azevedo e Raul Brandão]
Albino Pereira Magno
[Eugénio da Silveira] Ulisses Machado
[José Nicolau] Raposo Botelho
Angelo [Coelho de Magalhães] Vidal
José Vicente de Freitas
Almeida Nogueira
Manoel Anaquim
Acácio Guimarães
A construção do discurso educativo
Agricultura
António Xavier Pereira Coutinho
Em meados do decénio, as listas de livros em vigor209 e as facturas de aquisição
de manuais comprovam a utilização de outros livros escolares: a Cartilha Maternal
de João de Deus e a Gramática Portuguesa de José Relvas. Mudou o manual de
Educação Cívica (substituído pelo livro de Albino Pereira Magno). O livro de
Moral e Doutrina Christã, usado no tempo da monarquia, foi retirado.
Figura 24. Lista de manuais escolares
(Factura, 20 de Fevereiro de 1915210)
Os professores da ilha de Santiago manifestaram-se “acerca da necessidade
instante de se adoptar um compêndio de Moral e Civilidade, pois nenhum existe e o
doutrinamento das classes, está sujeito à acção pessoal, pura e simples, dos
professores de Moral” (parecer, 22 de Junho de 1915211). No mesmo ano, os
professores de São Vicente propuseram, à Junta Local de Instrução Pública, a
209
Lista de livros do professor Reis Borges e facturas diversas.
Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
211
Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
210
163
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
abertura de um concurso especial para a concepção dos manuais, em seguida,
designados:
“1º Para Português:
Um método gradual de Leitura
Uma Gramática Portuguesa Prática
2º Para a Agricultura:
Um pequeno manual compreendendo principalmente as especies caboverdianas, sua
utilidade economica, sanitaria e comercial. (...)
3º Para a Educação Cívica:
Um fascículo, abrangendo, sumariamente, as principais obrigações morais, familiares,
escolares, sociais e cívicas, ensinando-se a substancia dos artigos da Constituição, do
Código e do Registo Civil, do Codigo Penal e das Leis Tributárias, que em geral a
todo o cidadão importa conhecer, cumprir ou evitar.” (Parecêr, 1 de Julho de 1915212)
No ano escolar 1925/26, a listagem de manuais mantinha a maioria dos títulos e
autores213:
Quadro 46 – Lista de livros escolares – 1925/1926
Títulos
Cartilha maternal, 1ª e 2ª partes
Livro de leitura, 2ª, 3ª e 4ª classes
Gramática portuguesa
Aritmética prática e Geometria elementar
Noções elementares de Corografia portuguêsa
Sciências naturais
Compêndio de Desenho
Educação cívica
Moral
História de Portugal
Cadernos caligráficos
Rudimentos de Botânica e Agricultura
Autores
João de Deus
[Eugénio da Silveira] Ulisses Machado214
B. A. dos Santos Martins215
Ulisses Machado216
José Nicolau Raposo Coelho
Eduardo Andrêa e Albino Pereira Magno
Albino Pereira Magno217
Albino Pereira Magno
Albino Pereira Magno
Chagas Franco e Aníbal Magno
José Nunes dos Santos
António Xavier Pereira Coutinho
Os juízos de valor sobre a qualidade dos manuais eram severos: “condenando-os
a todos quási (...) pelas faltas ortográficas que neste ou naquele se notam a cada
passo”, por conterem ”os mais imperdoáveis solecismos ou êrros ortográficos aqui e
212
Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
Boletim Oficial, n.º 45, 7 de Novembro de 1925, p. 349.
214
O livro de leitura de Ulisses Machado, em vigor desde 1915, substituiu os manuais de João da Câmara.
215
Substituiu as Sinopses gramaticais de Albino Pereira Magno.
216
Substituiu a Aritmética prática de J. L. Travassos Lopes.
217
Substituiu o compêndio da autoria de Angelo Vidal.
213
164
A construção do discurso educativo
ali enquistados nos compêndios, tanto mais se o professor não tiver de filologia os
conhecimentos bastantes para emendar tais êrros e esclarecer os discípulos” (José
Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 189, 20 de Março de 1915, p. 2).
165
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Manuais de Língua Portuguesa
Na opinião do professor José Lopes, os manuais de Português “não satisfazem
nem aos requesitos da qualidade nem aos fins da quantidade” (A Voz de Cabo
Verde, n.º 189, 20 de Março de 1915, p. 2). Eram omissos sobre a realidade caboverdiana. O livro de leitura de João da Câmara afirmava: “o sólo das ilhas [de Cabo
Verde] é fértil”, questionando “que quer dizer que um solo218 é fértil e um clima é
sadio?”
As Synopses Gramamaticaes foram “consideradas insuficientes para o ensino da
Língua Portuguesa, nas colónias” (Parecer dos professores de S. Vicente, 1 de
Junho de 1915219).
Conforme um aviso publicado no jornal oficial (30 de Novembro de 1925220),
foram adoptadas, ainda, a Gramática portuguesa de José Relvas (1910) e a
Gramática de B. A. dos Santos Martins (1925).
“A gramática adoptada agora é uma sinopse muito rudimentar. Deveras lacónica de
definições só tem de importante a nomenclatura dos determinativos e dos verbos.
Destes apresenta uma lista satisfatória dos irregulares bem como quadros completos de
conjugações dos... (ilegível) dos regulares. Mas isto não basta para o ensino das
crianças. É necessário ministrar-lhes lições mais desenvolvidas do idioma nacional. A
simplificação dos meios didácticos, assim exagerada, não convém nas escolas
primárias da Província. Só se poderia admitir nos meios escolares onde o aluno,
passando aos liceus ou outros estabelecimentos congéneres, vai concluir os seus
estudos de português. O aluno das nossas escolas, como já dissemos, não aprende mais
nada, sendo portanto preciso dar-lhe um livro mais desenvolvido que uma simples
sinopse gramatical, útil não obstante sob certos pontos de vista.
Os nossos discípulos de outrora aprendiam mais português. Os respectivos
compêndios eram mais explícitos, menos deficientes, contendo matérias e definições
quantitativamente mais próprias para instruir os estudantes e até mesmo para
esclarecer, em muitos casos, os professores. Em muitos exames vimos fazer a alunos
de vários colegas nossos uma análise gramatical como a não faria melhor um aluno de
qualquer liceu produzindo provas orais em matérias do primeiro ano de português,
perante um júri exigente. Podemos afoutadamente afirmar este facto em homenagem
ao professorado primário da Província, em geral tam laborioso ainda que mal
remunerado.” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 191, 12 de Abril de 1915, p 2)
218
Repare-se que a palavra solo apresenta grafias distintas: “sólo” e “solo”.
Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
220
Boletim Oficial, n.º 45, 7 de Novembro de 1925.
219
166
A construção do discurso educativo
Manual de Aritmética
Os alunos desta geração estudaram Aritmética nos livros escolares de Ulisses
Machado:
“[O manual] é deficiente, ainda assim, relativamente às exigências do ensino primário
do segundo gráu. Neste deve o aluno, por força, instruir-se no conhecimento, ao menos
rudimentar, das regras de três simples e composta, regras de companhia, operações
sobre números fraccionários, decomposição de números em factores primos, noções de
máximo divisor comum, e menor múltiplo comum, potências, etc. (...)
É portanto conveniente adoptar no segundo gráu, livros que preencham tais lacunas, e
a verdade é que já os houve, sendo por consequência lícito e natural perguntar se a
nossa orientação consiste em retroceder em vez de progredir.” (José Lopes. A Voz de
Cabo Verde, n.º 180, 25 de Janeiro de 1915, p. 2)
Manual de Corografia Portuguesa
Segundo António Nóvoa, os compêndios de José Nicolau Raposo Botelho “que
não são particularmente inovadores, revelam os seus conhecimentos
enciclopédicos” (2003, p. 183).
“O ensino da corografia nacional consta dum livro que satisfaz bastante no que se
refere à Metrópole, mas pouco no que se relaciona com as Colónias. Nesta parte
deveria ser mais desenvolvido para em tudo ser um cânon.
A descrição geográfica dos nossos domínios ultramarinos deve ser tam minuciosa
como a da Mãe Pátria, quer na parte física, quer na parte política221. (...)
Porém, ao passo que o compêndio descreve até às particularidades por vezes mais
insignificantes a Metrópole, já na ordém fisica, já na política, limita-se em geral a dar
sucinta notícia de Portugal Colonial omitindo salutares indicações que, pelo contrário,
deveriam habilitar a mocidade a conhecer bem os países onde se enraíza o futuro da
nossa raça, estas terras, algumas riquíssimas e vastas, onde pompeia a nossa gloriosa
bandeira.” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º 181, 1 de Fevereiro de 1915, p. 3)
Manual de História de Portugal
Da autoria de Chagas Franco e Aníbal Magno, contém uma referência a Cabo
Verde (descoberta das ilhas), resumida a uma linha (p. 64). Na opinião de José
Lopes, a história de Portugal é “um livrinho muito resumido, que por isso não
satisfaz de modo algum os fins a que devia destinar-se”:
221
Dedicou três páginas ao arquipélago de Cabo Verde.
167
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Dir-se-ia que foi adoptado sómente para os alunos nada ficarem sabendo da sua
nacionalidade além de um ou outro facto notável, um ou outro nome mais ilustre de
estadista, guerreiro, descobridor, escritor ou poeta, com simples menção desta ou
daquela batalha, descobrimento ou conquista. É, afinal, uma lista de reis que
governaram Portugal.
É absolutamente necessário adoptar um outro compêndio que ensine à mocidade das
escolas primárias a história de Portugal, quer dizer, a história da nacionalidade
portuguesa, que é a nossa, de todos nós, que nela estamos integrados. Só assim poderá
crescer a infância instruída verdadeiramente nos princípios que os formem cidadãos
conscientes do que são e do que devem à pátria.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 181, 1 de
Fevereiro de 1915, p. 3)
Manual de Desenho
As crianças cabo-verdianas aprenderam a desenhar no compêndio de Ângelo
Coelho de Magalhães Vidal, “considerado um dos «fundadores» do ensino do
Desenho, pelo menos na perspectiva da sua vulgarização no espaço curricular do
primário e do secundário” (Nóvoa, 2003, p. 1438).
Figura 25. Um exercício de desenho
168
A construção do discurso educativo
Manual de Educação Cívica
Os professores de Santo Antão, reunidos para se pronunciarem sobre os livros
escolares, recomendaram o manual de Albino Pereira Magno222, por “ser modelado
segundo o caracter das novas instituições [republicanas]”, reclamando, porém, “a
necessidade instante de se mandar adoptar um compêndio de Moral e Civilidade”
(parecer dos professores de S. Vicente, 1 de Junho de 1915223).
Manual de Agricultura
O estudo da Agricultura era baseado no manual de António Xavier Pereira
Coutinho. Na opinião do professor José Rodrigues de Carvalho,
“O estudo da Agricultura feito em face dos compêndios adoptados para a escola
metrópole é sobremodo abstracto e estéril, por isso que os conhecimentos que exibem
não são aplicáveis à flora tropical, tornando-se necessário que o professor supra êsse
defeito com indicações ùteis sobre agricultura regional.
Assim é conveniente ensinar aos alunos os processos da fabricação da aguardente,
açúcar, sabão, extracção do oleo das sementes da purgueira, rícino, coco, etc.
A cultura da bananeira, café, cana de açúcar, mandioca, mangue, coqueiro, diversos
cereais e legumes de primeira necessidade, deve merecer particular atenção ao
professor no ensino desta disciplina, que deve ser ministrado em lições de coisas, de
fórma a conseguir-se uma utilidade rial. É por isso que mais de uma vez temos
afirmado a necessidade de se confeccionar um compêndio de Agricultura prática em
harmonia com as circunstâncias especiais desta província.” (O Futuro de Cabo Verde,
n.º 156, 23 de Abril de 1916, p. 2)
O verdadeiro livro é o professor
O manual era um recurso inacessível para muitos alunos, tendo em conta o
reduzido poder de compra das famílias (1919, preço médio: 0$39224). Por este
motivo, um professor da ilha de S. Nicolau propôs a “supressão dos compêndios”:
222
António Nóvoa considera que Albino Pereira Magno “revelou sempre uma atitude profissional, fazendo
parte de uma geração que procurou difundir a «escola obrigatória» na sociedade portuguesa” (2003, p. 852).
223
Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
224
O valor médio de um manual equivalia ao preço de um quilo de carne de carneiro, de um quilo de arroz «da
Guiné» ou de um litro de petróleo (Tabela de preços máximos de géneros alimentícios e outros de primeira
necessidade no concelho do Tarrafal. Boletim Oficial,, n.º 10, 8 de Março de 1919, p. 65).
169
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
“Há um outro obstáculo que tenazmente põe estorvo ao progresso da instrução nestas
terras pobres onde o dinheiro parece que foge da gente, causando gravíssimos
transtornos aos pais dos alunos: isto de o governo estar sempre com mudanças de
livros de ensino. Por exemplo, um pobre pai sacrifica-se em outubro e compra livros
para um filho, e sucede que depois de se sacrificar com uma despesa de 2$00 escudos,
o governo manda distribuir circulares para os professores proibindo-lhes, sob pena de
procedimento, ensinar por tais compêndios; ¿onde irá o pobre filho de Adão colher
dinheiro para realizar a compra de novos livros? (...)
Atendendo à pobresa que é tão persistente em todo o Cabo Verde, os professores
deveriam ser autorisados a suprirem os compêndios, contando que houvesse
uniformidade, lembrando-se que tanto os que aprenderam ao língua de Vieira pela
gramática de Bento José de Oliveira como os que a estudaram pelas de Caldas Aulete
ou Epifanio Dias, etc., todos, do mesmo modo, sabem igualmente o mesmo idioma e
podem ensiná-lo por qualquer dos compêndios que vão aparecendo por cá.” (José
Maria C. de Azevedo. A Voz de Cabo Verde, n.º 211, 13 de Setembro de 1915, p. 3)
A desvalorização do manual escolar pode, ainda, estar associada com a
descontextualização dos conteúdos, alheados da realidade cabo-verdiana. Neste
sentido, O Manduco (nº 9, 30 de Dezembro de 1923, p. 1) instava: “Convém ensinar
antes a plantar mandioca, a fabricar o açúcar e a tratar o cafeeiro, do que a plantar
cepas, a enxertar a oliveira e a fabricar vinhos e azeite” e defendia um livro feito
por cabo-verdianos para cabo-verdianos, questionando “¿Não haverá dentro ou fora
do professorado quem ouse arcar com as dificuldades da emprêsa?”
170
A construção do discurso educativo
5.4. Avaliação da aprendizagem
A avaliação da aprendizagem, processo de seriação e comparação de
conhecimentos e capacidades culminava na época dos exames. Na óptica
foucaultiana, o exame combina as técnicas da hierarquia, que vigia e as da sanção,
que normaliza:
“É um olhar normalizador, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir.
Dá aos indivíduos uma visibilidade através da qual os diferencia e os sanciona. É por
isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele
confluem a cerimónia do poder e a forma da disciplina, o aparato da força e o
estabelecimento da verdade. No coração dos procedimentos de disciplina, manifesta a
submissão dos submissos. A sobreposição das relações de poder e das relações do
saber têm no exame toda a ostentação visível.” (Foucault, 1975, p. 217).
O acto do exame, “fixação ao mesmo tempo ritual e científica das diferenças
individuais é uma modalidade nova de poder” (idem, p. 225), exercida por forças de
coerção externas ao acto educativo.
Figura 26. Registo de acto do exame
(Excerto de acta, ilha do Maio, 15 de Agosto de 1913225)
225
Cx.ª 664, 15 de Agosto de 1913. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
171
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Os procedimentos desvendam um aparato organizacional, com “jurys
constituídos, em cada séde do concelho, vogaes amoviveis designados pelos
respectivos presidentes, de entre os nomeados” (Boletim Oficial, n.º 28, 15 de Julho
de 1911, p. 237), sem a presença dos professores dos alunos avaliados.
“Acontece a cada passo que, nos exames feitos actualmente, as pobres crianças deixam
de satisfazer a perguntas várias sobre matérias que aliás não ignoram.
O examinador propôs-lhes as questões a resolver, por exemplo, mas dum modo muitas
vezes inteiramente diverso daquêle a que estão habituadas e não teem o
desenvolvimento bastante para raciocinarem sobre o caso, distinguirem o sentido das
palavras e frases e apreenderem portanto o sentido das interrogações formuladas. E, as
pobres crianças inculcam assim ignorar o que aliás não desconhecem muitas vezes.”
(A Voz de Cabo Verde, n.º 164, 5 de Maio de 1914, p. 3)
Podemos assistir ao cerimonial do “primeiro dia de exames das meninas”,
através do jornal A Voz de Cabo Verde:
“Fomos, no dia 10, assistir ao primeiro dia de exames das meninas. A sala estava cheia
de senhoras e crianças de ambos os sexos, o que dava ao recinto um aspecto alegre e
encantador. No fundo da sala, abancados a uma mesa, o júri, em frente a este, como
pequeninas rés que esperam julgamento, sete criancinhas, qual delas mais interessante,
risonhas, despreocupadas, dando ao publico e aos pais presentes a certeza de que
sairão triunfantes das provas por que iam passar. Começou o exame pouco depois das
12 horas.
A distintíssima professora D. Kilda Vieira Teixeira, atenta aos mais pequenos
pormenores e palavras da examinanda, fixa-a como se lhe quizesse transmitir toda a
sua inteligencia e se a examinanda lhe dirige um olhar, depois de satisfazer uma
exigencia do júri, ela sorri maternalmente, sorriso que traduz estas palavras:
- Vais bem, estou contente contigo.
E a criança animada, desembaraçada, satisfaz cabalmente todas as provas exigidas
pelo juri.
É chamada outra. Saberei corresponder ao sacrificio e trabalho que teve por mim?
E a professora, acariciando-a com o seu olhar, sorri e, com um pequeno movimento de
cabeça, parece dizer:
- Tenho plena confiança em ti.
A terceira examinanda, tão pequenina é, que foi preciso por-lhe um banquinho para
chegar à pedra!
Concluiram os exames das sete alunas pelas 16 horas, sendo todas classificadas
merecidamente com distinção.
Vamos agora a umas notas tristes e outras ridiculas.
Depois de começarem os exames entrou na sala a professora municipal da freguezia de
N.ª Sr.ª do Monte, acompanhada de uma discipula, que oportunamente, será tambem,
submetida a exame.
O aparecimento dessa aluna foi motivo de risota por parte de algumas meninas, risota
contagiante que se comunicou a mais crianças.
172
A construção do discurso educativo
A atitude reprovativa de várias senhoras conteve essa nota desagradavel de falta de
educação.
Perguntamos a uma menina, qual o motivo da hilariedade.
- É porque ela, naturalmente acabado o exame, vai casar.
- A única razão, pois, do riso, é não ser a aluna uma criança pequenina!
Inquirindo, soubemos que a camponeza apesar do seu desenvolvimento, contava
apenas 15 anos! Essa é a nota triste. A ridicula é a que se segue.
Tinha-nos passado a má impressão da risota, quando no meio do silêncio, que o acto
exigia, ouvimos na rua, junto à porta, umas vozes de comando. Voz rouca, de
laringe..... (ilegível), um soldado e um polícia civil, ladeando a porta da entrada.
Tivemos a impressão de que era a defunta guarda municipal, cercando uma casa de
batota!
Pouco depois, entrava, triunfante, cheio de si mesmo... e de muito mais, o soba da
localidade!
Entrou e saiu por três vezes, mostrando-se, mas sempre com as mesmas vestes e
caracterização. (…)
Começaram no dia 13 os exames do 2.º gráu.
O sr. João Feijó, que é um dos examinadores, e cujo procedimento tem merecido a
aprovação do público, teve um gesto digno de elogio. Interrogando um aluno sobre a
corografia, apresentou-lhe a carta de Portugal, ao cimo da qual estava esse pastel, que
se chamou corôa. Indicando aquilo ao examinando, perguntou-lhe:
- Sabe o que é isto?
Antes que o aluno tivesse tempo de responder, disse:
- Não é coisa alguma, nem cá devia estar.
E, com a ponta de um canivete fez desaparecer o pastel.
Estiveram tentados a aplaudir o procedimento com um bravo, mas contivemo-nos para
não perturbar o exame.” (N.º 55, 2 de Setembro de 1912, p. 3)
A encenação está dividida em quatro actos. No prelúdio, assistimos à prova de
avaliação das “pequeninas rés que esperam julgamento”, perante o júri “abancado a
uma mesa, no fundo da sala”, onde se cruzam relações de cumplicidade entre alunas
e professoras, mediante um conjunto de códigos: olhares, sorrisos maternais,
aparente despreocupação das meninas. Não falta o momento emotivo,
protagonizado pela “terceira examinada, tão pequenina, que foi preciso por-lhe um
banquinho para chegar á pedra!” No segundo acto, em tom de tragicomédia, a
menina-mulher apresenta-se a exame. No terceiro, o poder irrompe pela sala
“sempre com as mesmas vestes e caracterização”. O epílogo é marcado pela
bajulação ao poder, com os “aplausos contidos para não perturbar a solenidade do
exame”.
Sobre as arbitrariedades cometidas nos exames, O Independente defendia que “as
pobres crianças não podem ser victimas das malquerenças ou das invejas d’esta ou
d’aquella personalidade” (n.º 16, 27 de Agosto de 1912, p. 4).
173
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
O papel do professor no processo de avaliação dos alunos (incluindo o acto
exame) foi matéria de debate. Questionava-se também a atribuição de recompensas
pecuniárias aos docentes, pelo desempenho dos alunos, traduzido em aprovações no
fim do ano lectivo.
“Em princípio, deverei diser que não concordo com a distribuição de premios
pecuniarios aos professores por cada aprovação que obtiverem para os seus alunos.
Estes premios, instituídos por decreto de 17 de Agosto de 1912 para os professores
diplomados pelas escolas da metropole e por portaria provincial nº 239 de 1 de
Desembro de 1909 para os outros professores, muito embora satisfaçam ao fim para
que foram creados, isto é, evidenciar e animar o zelo dos professores e servir-lhes de
estimulo e torna-los diligentes, recáe por veses no abuso de se submeteram a exame,
alunos que vão procurar aprovação unicamente fiados no bamburrio da sorte.” (Ofício
da Câmara Municipal de Santa Catarina, 14 de Junho de 1913, pp. 1-2)226
“Nos ultimos anos, o governo tem mandado adoptar como norma, nos exames finais
de instrução primária, a exclusão dos professores dos alunos examinandos na
constituição dos respectivos júris. Assim nenhum professor pode examinar os seus
discípulos.
Reconhecemos que uma bôa intenção ditou essa regra ultimamente introduzida na
constituição dos júris, no intuito de evitar favoritismos ou escandalosas protecções,
dado que pudessem ter lugar.
Prevenir possíveis abusos ou entendimentos prejudiciais em actos de tal ordem
representa uma bôa praxe, digna de louvor, se considerarmos o caso sob o ponto de
vista da sua significação intrínseca. Contudo seguimos opinião contrária. Entendemos
que tal norma se devia adoptar nos exames de instrução secundária e não dos da
primária. (...)
A criança, que faz os seus exames primários não pode, bem apreciadas as cousas,
dispensar a intervenção, nos júris, do respectivo professor. Este conviveu com ela
muito tempo, estudou-lhe as qualidades escolares, mediu-lhe bem a capacidade
absoluta ou relativa, ficou conhecendo as suas tendências ou aptidões, penetrou, às
vezes, todos os segredos da sua mentalidade, em evolução, seguindo de perto o
desabrochar das suas faculdades, e adquiriu um conhecimento mais seguro, pela
observação constante e íntima, da sua psicologia. Só o seu mestre sabe o que ela pode
dar. Ensinou-a, segundo um dado método na sua preparação, habituou-a a um certo
método de interrogar e de expôr. Só seu mestre lhe conhece os segredos; êle e só êle é
capaz de a fazer brilhar, num exame público, em toda a plenitude do seu saber
incipiente; êle e só êle, sabe arrancar scintilações a êsse cérebro infantil, êle, cujo
espírito foi como que o sol criador e vivificante que operou a primeira eclosão dessa
flôr melindrosa.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 164, 5 de Maio de 1914, p. 3)
226
Cx.ª 664. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
174
A construção do discurso educativo
A querela desencadeada suscitou questões deontológicas, que foram modelando
a identidade profissional do docente: “boa praxe”/ética profissional versus
“favoritismo”/ venalidade.
O ritual do exame pautava-se por normas e prescrições inclusas nas “Instruções
relativas aos exames” (25 de Junho de 1915; 11 de Junho de 1918):
“I – Os exames do lº e 2º graus são dirigidos pelo professor proponente, quando o
aluno for de escolas oficiais e por um professor oficial, nomeado pelo delegado do
Inspector de Instrução Pública quando se tratar de aluno estranho as ditas escolas; e
versarão sobre exercícios de ler, escrever o contar. Estes delegados assistirão sempre
aos actos de exame.
Quando o aluno for apresentado a exame por professor não oficial, não fará o
professor proponente parte do júri, podendo assistir ao exame sem intervir.
Os delegados do inspector são aos administradores dos concelhos, ou os substitutos
destes, nas sedes respectivas; fóra dessas sédes, as pessoas que os mesmos
administradores designarem.
II – Quando pelo número de alunos a examinar se verificar que não podem estar
terminados os exames no último dia útil do mês de Agosto, poderão os júris nomeados
duplicar em cada dia o serviço; bem como poderão funcionar duas mesas nas sedes
dos concelhos onde for grande o numero de examinandos, se o inspector ou o seu
delegado assim entenderem necessário. Quando os alunos a examinar sejam do sexo
feminino fara parte do júri a respectiva professora, sendo oficial.
III – Perante cada júri devem ser examinados por dia de provas escritas tantos alunos
quantos forem compatíveis com a capacidade da sala e a conveniente separação que se
deve manter nestes casos, devendo as provas ser prestadas no turno da manhã, entre as
8 e 11 horas; ao mesmo tempo, poderão prestar provas orais os alunos que já tenham
satisfeito à prova escrita; serão chamados pela ordem da sua inscrição na pauta.” (Supl.
nº 10 ao Boletim Oficial, n.º 25, 26 de Junho de 1917, pp. 2-3)
O exame sancionava a avaliação dos alunos e o desempenho profissional dos
mestres. A (des) valorização e a reputação do professor, dimensionadas pelos
resultados dos alunos, constituíam matéria noticiosa. Em caso de insucesso, mau
desempenho profissional:
“A escola municipal que funciona na povoação da Ribeira da Barca, freguesia de
Santa Catarina, durante três anos lectivos, consecutivos, apenas habilitou dois alunos
que submeteu a exame, por isso chamo a atenção da Câmara e da Junta Local da
Instrução deste concelho para o que vou escrever, que demonstra que não tem o
professor da referida escóla correspondido ao sacrifício que a Câmara vem fazendo
para manter a escola a seu cargo. Alunos apresentados a exame em 1914/1915 – 2;
idem 1915/1916 – 0; idem 1916-1917 – 0. Despesas com a escola:
Ordenado do professor em 1914-1915 …………..…. 300$00
48$00
Renda de casa no mesmo ano ……………...……….
6$00
Gratificação por 2 alunos …………………...………
175
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Ordenado do professor em 1915-1916 …………...… 300$00
Renda de casa no mesmo ano ………………………
48$00
Ordenado do professor em 1916-1917 ………...…… 300$00
Renda de casa no mesmo ano ………………………
48$00
Total …………………………………...…………… 1050$00
Ou sejam 525$00 por cada aluno apresentado a exame pelo professor da escola
municipal da Ribeira da Barca, não entrando em conta a despesa feita com o
expediente da mesma escola, durante esse período. Que uma escóla aberta num ponto
onde, anteriormente, não existia escóla, deixe de apresentar, em dois anos
consecutivos, alunos a exame, tolera-se: mas que um professor que vem regendo uma
escóla, durante alguns anos, sem gosar licença, deixe de apresentar alunos a exame,
não se compreende e muito menos se deve ainda admitir que a Câmara da presidência
do sr. Alfredo Alves Neves, conhecedora do assunto e sem que possa ser acusada de
favoritismos, tenha conservado sôbre essa escóla tam profundo e condenável silêncio.
¿Um professor nestas condições tem direito a pedir ao govêrno a sua confirmação?” (A
Voz de Cabo Verde, n.º 313, 5 de Outubro de 1917, p. 3)
Em caso de bons resultados no exame, a família expressava reconhecimento:
“José Rodrigues Mascarenhas vem por este meio testemunhar os seus sentimentos de
gratidão à ex.ma sr.ª D. Margarida Gomes Correia, digníssima professora municipal da
freguesia de S. Lourenço dos Órgãos, pela maneira desinteressada como se dignou
tratar e leccionar a sua filha Palmira, na qualidade de sua aluna interna, pois que em
tão curto espaço de tempo se desenvolveu consideravelmente, tendo ficado distinta no
seu primeiro exame ultimamente realisado na Praia, de que obteve 16 valores. E
sumamente reconhecido vem em publico patentear a sua gratidão.
Tambem estou altamente reconhecido ao ex.mo sr. Francisco Carvalhal pelo empenho
e boa vontade com que leccionou seus filhos Manuel e Frederico, durante nove meses,
habilitando-os ao exame, de que ficaram aprovados, vem em publico
reconhecidamente patentear por este meio a sua eterna gratidão. Achada do Mato, 28
de Agosto de 1914.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 71, 3 de Setembro de 1914, p. 3)
O poder político detentor do sistema duplo de gratificação-sanção, ao mesmo
tempo que penalizava os professores pelos deficientes resultados (reprovações),
homenageava-os com louvores, em caso de êxito dos discípulos (aprovações).
“Tendo em consideração o que me representou o presidente da Junta Local de
Instrução do concelho da Ilha de S. Vicente acerca dos bons ofícios prestados pela
professora de 2.ª classe, Olímpia Esmeralda Lima, que ao serviço da Instrução Pública
tem dedicado todo o seu zêlo e interêsse, leccionando fora das horas regulamentares,
tendo apresentado a exame 14 crianças, das quais 9 ficaram distintas e 5 plenamente
aprovadas.
Hei por conveniente, ouvido o Conselho de Instrução Pública, louvar a mencionada
professora de 2.ª classe, Olímpia Esmeralda Lima, pelo zêlo e interêsse que tem
dispensado ao serviço de Instrução Pública, na cidade de Mindêlo.” (Boletim Oficial,
n.º 2, 10 Janeiro 1925, p. 15)
176
A construção do discurso educativo
Classificar e sancionar
Os exames de instrução primária, no termo do 1º e do 2º grau da instrução
primária, constavam de provas escritas e orais. As provas escritas (1º grau)
precediam as orais e eram prestadas no mesmo dia. As provas escritas (2º grau)
precediam as orais, mas eram prestadas em dias distintos (Instruções relativas aos
exames de instrução primária, V, 11 de Junho de 1918227).
Figura 27. Prova escrita do exame de instrução primária do 1º grau 228
Instruções relativas aos exames do 1º
grau229:
•
Escrita por ditado de um trecho de
dez até quinze linhas
•
Caligrafia em cursivo
•
Prática de uma divisão de números
decimais com a respectiva prova
227
Supl. nº 9 ao Boletim Oficial, n.º 23, 12 de Junho 1918, pp. 2-3.
Cx.ª 669. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
229
Os modelos de exames de instrução primária estão descritos nas “Instruções relativas aos exames”, VI e XII.
228
177
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Figura 28. Prova escrita do exame de instrução primária do 2º grau 230
Instruções relativas aos exames do 2º grau:
•
Escrita por ditado de um trecho de dez até
quinze linhas
•
Caligrafia em cursivo
•
Resolução de um problema de uso
comum, de enunciado claro, e de uma
divisão de números inteiros ou decimais
com as respectivas provas
•
Cópia em papel quadriculado ou
ponteado de uma das figuras dos
exemplares adoptados para o ensino do
desenho.
230
Cx.ª 669. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
178
A construção do discurso educativo
“As provas orais231 [do exame de instrução primária de 1.º grau] constavam de:
a) Leitura corrente em voz alta, de vinte a trinta linhas de um trecho do livro adoptado
para exercícios de leitura na 3.ª classe.
b) Interpretação do texto lido, sentido das palavras, divisão em sílabas, classificação
das palavras quanto ao número de sílabas, divisão das sílabas em fonemas e valor
dêstes.
c) Exercícios práticos no quadro preto e interrogatório sôbre aritmética e sistema
métrico.
d) Interrogatório, o mais prático possível, sôbre agricultura, referente às culturas da
região onde os exames se realizarem.” (Instruções relativas aos exames).
“As provas orais [do exame de instrução primária de 2.ºgrau] constavam de:
a) Leitura correcta, em voz alta, de um trecho de vinte a trinta linhas do livro adoptado
para os exercícios de leitura corrente na 4.ª classe do ensino primário.
b) Inteligência do sentido das palavras e frases, de alguns periodos do trecho lido e
correlativo exercício de gramática prático e elementar.
c) Exercícios práticos no quadro preto e interrogatório sôbre aritmética, geometria e
sistema métrico.
d) Interrogatório sôbre corografia e história pátria, acompanhado de indicações no
mapa do território da República, ilhas adjacentes e possessões ultramarinas, ou nos
quadros adoptados para o ensino dessas matérias.
e) Interrogatório sôbre rudimentos de sciências naturais com aplicação à agricultura e
à higiene.
f) Interrogatório sôbre preceitos de moral e instrução cívica.” (Idem)
O processo avaliativo era suportado por dispositivos de produção de distinções e
hierarquias sociais, num sistema de registo de notas valorativas (quantitativas e
qualitativas). O julgamento das provas de exame contemplava um escalonamento
preciso, com os correspondentes juízos de valor.
“[Nas provas escritas] os examinandos serão classificados de optimo, bom, suficiente e
reprovado.
a) Terá classificação de optimo o que obtiver a maioria de optimos em ambas as provas
tendo sido as outras classificadas de bom.
b) Terá classificação de bom o que tiver alcançado maioria de bons, embora tenha
alguma com a classificação de optimo e as restantes de suficiente.
c) Terá classificação de suficiente o que alcançar maioria de notas de suficiente,
embora tenha algumas de bom ou optimo, mas nenhuma classificada de mediocre ou
mau.
d) Fica reprovado o examinando que obtiver a classificação de mau ou mediocre (…).
e) O resultado da votação é lançado na prova escrita respectiva que será rubricada por
todos os membros do júri e tornado publico por meio de editais.” (Instruções, X)
231
Segundo as Instruções relativas aos exames, XXIV, as provas orais não eram públicas, “podem, porém,
assistir os pais, tutores ou pessôas encarregadas da educação dos alunos sujeitos ao exame”.
179
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
O processo culminava com a atribuição de uma nota final: reprovado, aprovado
e aprovado com distinção.
Figura 29 Resultados finais das provas escritas
(Provas escritas de exames do 1º e 2º graus da instrução primária232)
O exame faz a individualidade entrar num novo campo documental (Ó, 2003, p.
49) e deixa atrás de si “um arquivo ordenado e minucioso que se constitui no plano
dos corpos e dos dias” (Foucault, 1975, pp. 221-222). Desde as propostas de provas
de exame aos registos dos resultados finais, os procedimentos foram constituindo
um cúmulo processual:
“O resultado final das votações é lançado no livro dos termos dos exames de instrução
primária e assinado pelo júri e é, em nota assinada pelo presidente, fixado à porta do
edifício, onde se realizam as provas, lavrando os respectivos termos de exame o
professor oficial assistente.
As provas escritas destes exames, bem como as respectivas pautas, serão enviadas no
fim dos exames à Secretaria Geral, na capital da província, e as administrações de
232
Cx.ª 669. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
180
A construção do discurso educativo
concelho nas demais ilhas, em cujos arquivos respectivamente serão conservados
durante dois anos.
Os livros dos termos de exames são arquivados na Secretaria Geral, e secretarias das
respectivas administrações de concelho, e serão, durante a época dos mesmos exames,
confiados à responsabilidade e guarda dos delegados do Inspector.
Todos os livros serão rubricados e assinados nas folhas de abertura e encerramento, na
capital da província pelo Secretário Geral, Inspector da Instrução Pública, e nos
demais concelhos pêlos delegados do mesmo Inspector, indicados nas presentes
instruções; dêsses livros serão extraídas as certidões que forem requisitadas.” (Supl. nº
10 ao Boletim Oficial, n.º 25, 26 de Junho de 1917, pp. 2-3)
Acontecimento social
O exame tinha centralidade social e estatuto de evento, com honras de
divulgação nos jornais, com particular incidência nos meses de Julho a Setembro233:
Figura 30. Notícia de exames de instrução primária do 2º grau
(O Independente, 27 de Agosto de 1912, p. 4)
233
Em artigo na revista Contacto (Ed. Universidade Jean Piaget de Cabo Verde), apurámos que as notícias
sobre a avaliação da aprendizagem eram sazonais. Notícias publicadas nos meses de Julho e Setembro: O
Futuro de Cabo Verde: 75%; A Voz de Cabo Verde: 71,4% (Carvalho, 2006).
181
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A imprensa concedia destaque especial aos exames concluídos com distinção,
por “gentis meninos e meninas”, concedendo um tratamento diferenciado, em
função da classe social de origem.
“Fez exame de instrução primária, 1º grau, ficando aprovado com distinção, 15
valores, o menino Sotto Barbosa da Silva, filho do nosso amigo, Sr. José Roberto da
Silva.
Também fiou aprovado com 16 valores, o menino António Monteiro Lopes filho do
nosso amigo, Sr. tenente Lopes.
No Porto fizeram exames de 1.º grau, as meninas Maria e Isaura, gentis filhitas do
nosso amigo Sr. alferes Salvador Guimarães.
Ficou aprovado com 14 valores o menino Cândido Medina Vasconcelos, filho do
nosso amigo, Sr. Luiz Barbosa Vasconcellos.
A todos os nossos parabéns.” (O Progresso, n.º 7, 15 de Agosto de 1912, p. 3)
Surge uma nova modalidade de poder em que cada um recebe como status a sua
própria individualidade (Foucault, 1999, p. 154). A projecção social do exame –
pelo aparato organizativo – conferia-lhe “dignidade” de evento prestigiante para as
comunidades, que disputavam a sua realização.
“A requerimento dos pais dos alunos da escola oficial do Paul, regida pelo professor
Manuel Silva Almeida, determinou o Govêrno que os exames fossem feitos nesta
localidade. Com efeito e com grande satisfação dos paulenses a êles se procederam
nos dias 14, 15, 16, 18 e 19 dêste mês, tendo-se examinado 41 alunos, que durante o
ano lectivo foram lecionados pelo referido professor, que exuberantemente tem
provado a sua competência e vocação para o magistério. Em igual mês do ano
passado, examinaram-se, na séde do concelho, na Ponta do Sol, 19 alunos de 1º e 2º
graus de instrução primária, dando o mais profícuo resultado, pois havia assumido o
cargo em Fevereiro do dito ano e achara os estudantes em grande atrazo, devido aos
impedimentos do professor transato; nêste ano, arremessou para a banca dos exames
42 alunos de ambos os sexos, dos quais 41 foram examinados. (...)
Presidiu o júri o muito sério e brioso capitão Serafim José de Oliveira, caracterisado
sôbre tudo pela independência com que ha em todos os actos da sua vida, sendo
substituído, no dia 16, pelo competentíssimo dr. Colaço.
Faz parte do júri o professor municipal, o sr. João Miranda, que argumenta com
clareza e sciência, mostrando que possui conhecimentos mais que ordinários.
Tão grande trabalho – habilitar 42 alunos, em um ano, – é facto virgem na história das
escolas desta ilha, por isso, sr. redactor, trago êste facto ás colunas do seu acreditado
jornal, e peço-lhe, em nome do povo do Paul, faço valer esta razão perante os poderes
superiores para que vejam que é dêstes professores que nós queremos e nos convém, e
se compenetrem e premiem tão relevante serviço. Santo Antão, Paul, 30-8-912.” (O
Futuro de Cabo Verde, n.º 20, 11 de Setembro de 1913 p.3)
182
A construção do discurso educativo
O clima emocional, que envolvia o acto do exame, foi recriado por Baltasar
Lopes, no romance Chiquinho:
“Tói Mulato andava muito triste por não ter fato novo para vestir no dia do exame, na
vila. Ele mesmo botou umas chapas nas calças de cotim militar. Nos últimos dias o
professor dava-nos aulas extraordinárias à tarde, intensificando a nossa preparação em
Aritmética e História. Levei para Estância calção azul e blusa branca, em que mamãe
bordou os emblemas da fé, esperança e caridade.
Todos os meus companheiros se reuniram em nossa casa para irmos juntos para a vila.
Os pais dos alunos connosco. Vestiam os seus trajos domingueiros, os homens de fato
de casimira, vindos da América (...).
Tói Mulato é que foi o herói do dia. (...)
À tarde tivemos festa de exame. E como Nhá Totonha não podia festejar a Distinção
de Tói Mulato, ele comeu um bolo de mel em nossa casa, guardou outro para ela e foi
cedo para casa porque a dona era velha e não podia ficar muito tempo sòzinha.” (1970,
pp. 72-73)
Indicadores de (in) sucesso
Na instrução primária, o insucesso era elevado. No 1º grau, a taxa de
classificações de insuficiente (com consequência na retenção dos alunos) atingiu
56,9%234 (1911). Os alunos do 2º grau representavam, apenas, 8% do total dos
efectivos do ensino elementar, o que atesta a dimensão das desistências, abandonos
e reprovações. Após esta depuração, a percentagem de notas de insuficiente235, no 2º
grau, diminuiu ligeiramente (49,2%).
Gráfico 12 – Resultados da avaliação final, 1º grau
Gráfico 13 – Resultados da avaliação final, 2º grau
13,3%
26,5%
Bom
Sof
56,9%
29,8%
Bom
49,2%
Sof
Insuf
Insuf
24,2%
234
235
Resultados dos alunos do 1.º grau: Bom – 649; Sofrível – 1.455 e Insuficiente – 2.780.
Resultados dos alunos do 2.º grau: Bom – 104; Sofrível – 95 e insuficiente – 193.
183
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A transição desigual a outra classe era obtida por mecanismos de filtragem e de
exclusão até ao acto final do exame, propiciado a uma minoria das crianças
escolarizadas. Com os dados fornecidos pelos mapas estatísticos, traçámos o perfil
evolutivo dos resultados da avaliação, no fim do ano escolar, com marcos
referenciais nos anos de 1912, 1914 e 1916:
Gráfico 14 – Evolução das classificações de insuficiente, 1º grau
raparigas
rapazes
0,8
0,6
0,4
0,2
0
1912
1914
1915
Gráfico 15 – Evolução das classificações de insuficiente, 2º grau
raparigas
rapazes
0,5
0,3
0,1
1912
1914
1915
-0,1
No 1º grau da instrução primária, as meninas conseguiram melhores resultados
(taxa média de insuficiente: 48,5%). Similar situação no 2º grau (1911/12), que se
alterou, a posteriori, tendo os alunos do sexo masculino um melhor aproveitamento
escolar (média de insuficiente: alunas, 33,1%; alunos, 30,5%).
184
A construção do discurso educativo
“As meninas, sobretudo, distinguiram-se. Notou-se isto com verdadeiro espírito de
justiça, sendo, pois, de crêr que a digna professora se sinta justamente recompensada
nos eficazes esforços que decerto não deixaram de empregar para o conseguimento
dos brilhantes resultados obtidos: houve 6 distinções, tendo ficado com 16 valores uma
examinanda no 1º grau, a pequenita Irene.
Quanto aos rapazes, ninguém deixaria de notar que, em grande parte, manifestaram
algum embaraço e acanhamento. Tem-se verificado que os rapazes, geralmente, são
mais acanhados e têem menos vivacidade de espirito que as meninas, e esta
circunstancia mais se revela quando se trate de exames; o que, de resto, não admira;
porque parece estar fisiologicamente provado que nos rapazes é mais moroso que nas
meninas o desenvolvimento fisico e intelectual. Feito entretanto o desconto do natural
acanhamento dos examinandos, pareceu-me, ainda assim estarem melhor habilitadas as
examinandas.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 58, 22 de Setembro de 1912, p. 3)
No termo de uma depuração muito selectiva, os exames – com projecção social –
apresentavam baixas taxas de reprovação (6,4%), cabendo às meninas os melhores
resultados (reprovações, 1,2%).
Em síntese
O quinto capítulo, que rematamos, apresenta o mapeamento das manifestações
internas da cultura escolar, perspectivadas numa pluralidade de dimensões e
significados: o discurso sobre a (in) disciplina (5.1.), patente nas representações e
práticas da acção educativa, nas rotinas e inovações (5.2.), recriadas em aparatos
pedagógicos (5.3), que condicionaram os mecanismos de diferenciação e de
exclusão dos alunos (5.4.).
185
6.
Identidade profissional do docente
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Abrimos o capítulo com o pensamento de Gramsci (evocado por Rogério
Fernandes), que considera o professor “um intelectual orgânico da sociedade civil,
seja da cultura hegemónica em que é amassada a cultura escolar, seja da cultura não
hegemónica que, produzida no exterior da escola, exerce sobre a cultura escolar
uma acção pressionante, acabando a prazo por contribuir para a sua transformação”
(2004a, p. 733). O perfil do professor é, portanto, tributário de duas dimensões
culturais: “hegemónica” na escola e “não hegemónica” na sociedade.
António Nóvoa situa a construção da identidade profissional dos docentes num
“tempo de muitas certezas e de poucas hesitações, sobretudo no que diz respeito a
uma crença quase ilimitada nas potencialidades da escola”:
“A educação pode tudo, pois ela até consegue fazer com que «os ursos dancem». Esta
frase emblemática de Leibnitz pode bem servir de ilustração à confiança total que os
pedagogos portugueses dos finais do século passado [século XIX] /princípios deste
século depositavam na educação escolar. É a época da consolidação do estatuto
profissional dos professores, consolidação que se faz em simultâneo com a
institucionalização do modelo estatal de ensino, tal como existe ainda nos nossos dias.
O estatuto dos professores constrói-se neste período histórico em que a uma visão da
evolução impregnada da ideologia de um progresso constante e inexorável,
correspondia uma imagem da escola como «templo da luz» e «redentora da
humanidade»” (1991, p. 6)
Em Cabo Verde prevalecia a imagem da escola, “um templo da luz”, do
magistério, “um verdadeiro sacerdócio” e do professor primário, “um apóstolo do
bem”:
“Augusto Miranda é um espirito de combate, é um lutador incansavel; mas luta pelo
mais sublime das ideias e pela mais nobre das causas: o engrandecimento da sua terra
e o progresso do seu povo.
É um apóstolo do Bem.
E por isso ao terminarmos estas modestas linhas que aqui lhe consagramos em
homenagem de admiração a que tem jús pelo seu mérito absoluto e pelo seu valor real,
como o Dante lhe diremos: Segue il tuo corso, lascia dire al gente.” (O Futuro de
Cabo Verde, n.º 12, 17 de Julho de 1913, p. 3)
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
“O cargo do professor não póde nem deve ser uma sinecura para afilhados
incompetentes, o magistério – onde, felizmente, até hoje teem predominado os
caracteres nobres, que dignificam e exaltam o seu cargo – não póde nem deve
transformar-se em vasadoiro de desqualificados, de crapulosos e de ignorantes. O
magistério deve ser um verdadeiro sacerdócio e, como tal, deverá ser desempenhado
por quem tenha, além da idoneidade moral, que é essencial, a capacidade profissional,
que é indispensável. Não póde quem quer arvorar-se em professor, mas sim quem
tenha para isso o critério superior do ensino, a dedicação extrema pelos filhos da sua
terra – e nesta designação englobâmos todos os portugueses, sejam quais forem as
latitudes em que hajam nascido –, a tenacidade e a paciência precisas para cultivar as
inteligências juvenis, que lhe são confiadas como flores em botão. O magistério não é
uma sinecura em que se deva investir o primeiro parvenu, porque necessita de uma
colocação, de ganhar a vida, de mais uma achega para arredondar o bolo dos seus
proventos: – é uma profissão nobilissima que apenas se deve dar a quem de direito.”
(O Futuro de Cabo Verde, nº 7, 12 de Junho de 1913, p.1)
Os docentes detinham prestígio social, particularmente no meio rural. Sob a
acção da Revolução de 1910, vão tornar-se sérios concorrentes dos curas e disputar
pouco a pouco a influência que estes detinham na vida das populações (Nóvoa,
1987, p. 606).
“Ensinai com advertencia aos vossos filhos, pupilos ou criados, o módo como devem
comportar-se na escóla e sôbre a maneira respeitosa com que êles devem permanecer
diante do seu professôr, instruindo-os com persistencia que o mestre é o segundo pai, e
que assim como o céu clama vingança e punição contra aqueles que desobedecem aos
seus pais que são os autores dos seus dias, assim tambem o faz contra os que causam
desespero ao seu mestre e que, se aqueles os alimentam com o pão corporal, este os
sustenta com o salutaríssimo pão do espírito que jamais os abandonará, e lhes limpará
as sendas que conduzem para a eternidade.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 248, 19 de
Junho de 1916, pp. 2-3)
Os professores tradicionalmente representados nas fileiras da corrente liberal
mais pura e generosa (Fernandes, 2004d, p. 770) interpretaram o advento da
República, como a era do progresso. Docentes como Pedro Cardoso, José Lopes,
Hugo Reis Borges, para não falar das gerações mais novas, estudantes em Coimbra
como Mário Ferro (...), todos se tornaram republicanos (Oliveira, 1998, p. 237).
O mito da escola, factor de evolução social, modelou um novo perfil
profissional: “um dos maiores propulsores do progresso, com a “missão sagrada,
sublime, nobilíssima; mas laboriosa e árdua de formar o homem novo” (A Voz de
Cabo Verde, n.º 333, 1 de Março de 1918, p. 1).
“O professor ocupa um lugar de destaque na escala da vida social. É êle que tem por
dever e encargo do enfadonho e espinhoso mister de preparar os homens de amanhã; é
êle que se incumbe de lançar a pedra fundamental da sociedade futura, apontando, com
188
A construção do discurso educativo
desvelo, aqueles que nos hão-de suceder tanto no campo moral como material; é ele
que nos centros das povoações, nos campos e nos lugarejos, à semelhança de um faról
como um facho luminôso, espalha os brilhantes raios em todos os sentidos, ilumina os
espíritos ainda nascentes das criancinhas pobres e ricas, ilucidando-as com nitidez
para, no futuro, virem a ser bons funcionários da República, bons espôsos e cidadãos,
capazes de se sacrificarem em pról da Pátria.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 232, 1 de
Março de 1916, p. 3)
No 1º Congresso da Associação de Professores de Portugal (1924), Álvaro Viana
de Lemos caracterizou o docente como “uma espécie de mediador (ou de
regulador) da actividade social” (Nóvoa, 1987, p. 608). O novo paradigma
pressupunha competências profissionais específicas: ser psicólogo e higienista.
“Psicólogo, conhece bem a fundo o grau de inteligencia dos educandos, as suas
qualidades, os seus defeitos, tanto físicos como intelectuais e morais, a sua
sensibilidade, a sua tendência, o seu caracter.
Higienista, distribui trabalhos, designa jogos, lecciona ginástica, tudo em proporção
com a idade, estado de saúde, robustês e desenvolvimento intelectual e físico de cada
um.
Pobre professor primário! Raras são as vozes que se levantam, clamando por que se
lhe dê uma remuneração condigna; mas ouve-se dizer e leem-se a cada passo, ácêrca
dele, frazes com estas:
«É a alavanca do progresso».
«É o educador dos homens de amanhã».
«É o alicerce de um grande edifício».
«O professor primário tem o seu quinhão em todas as glórias da Pátria» etc., etc., etc»”
(A Voz de Cabo Verde, n.º 333, 1 de Março de 1918, p. 1)
A realidade contrapunha-se à “utopia educativa”: nem o professor assumiu o
papel de sacerdote da razão236, nem a sociedade foi expurgada da imagem do
mestre-escola (à qual está associada a miséria e a incompetência, a submissão aos
poderes religiosos e aos notáveis locais, a ausência de um estatuto e de um
reconhecimento social)” (Nóvoa, 1989, p. 587).
Na selecção dos professores campeava o favoritismo, com desrespeito pelas
qualidades morais e cívicas inerentes ao exercício profissional.
“Hoje viemos, não atacar a classe do professorado, que tem elementos a todos os
titulos respeitaveis, homens que pela sua inteligencia, honradez e comportamento
moral e civil estão acima de qualquer suspeita da nossa parte, mas sim demonstrar que
a par dêsses homens que honram o professorado cabo-verdiano, existem outros que
são a vergonha e a desonra de tão nobre classe, para a qual só deveriam ser nomeados
236
Expressão usada por António Nóvoa em O tempo de ser professor (1991), p. 12.
189
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
individuos que apresentassem limpa a certidão do registo criminal e que tivessem
algumas habilitações literarias.
Tal não se tem observado nesta ilha, como passamos a provar: (...) crime de estupro de
uma menor, tendo cumprido sómente parte da prisão, na cadeia civil desta cidade, por
ter aproveitado de um indulto no tempo da Monarquia... Professor e regedor! Cumpriu
degredo em Angola por ter assassinado um conterrâneo... e outros, pela sua
incompetência, não tendo alguns mais do que a instrução primaria, e dos quais não
citamos os nomes porque êles não teem culpa, mas sim quem os nomeou.
Agora cabe-nos a vez de perguntar para que se exigem certidões de registo criminal e
de comportamento moral e civil, nos concursos para provimento dos logares de
professores? Será sómente para dar a ganhar êsses cobres ao escrivão, ou para o júri
classificador ver?...” (O Eco d’África, n.º 11, 15 de Fevereiro de 1915, p. 2)
Figura 31. O perfil do professor de posto
(Excerto de relatório, S. Jorge, ilha do Fogo, 1 de Setembro de 1916237)
A política republicana em matéria religiosa238 não destronou a hegemonia social
dos párocos. A Voz de Cabo Verde noticiou situações de abuso de poder e
influências lesivas da dimensão ético-profissional:
“A escola de 2º grau é frequentada por meia duzia de alumnos, leccionadas pelo filho
do professor padre José António dos Santos. O filho d’este professor não tem
competencia para leccionar o 2º grau, e por isso, só lecciona o primeiro. Isto assim não
pode continuar, e visto o proprietario do logar não poder, por motivo que ignoramos,
cumprir o seu cargo pelo qual percebe a quantia de 25$000 réis mensaes, compete ao
governo acabar com este abuso, substituindo quanto antes este professor.” (A Voz de
Cabo Verde, n.º 17, 11 de Dezembro de 1911, p. 2)
237
Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
Em 27 de Outubro de 1910, foi determinada a extinção do ensino da doutrina cristã nas escolas primárias e
normais primárias (Carvalho, 2001, p. 660).
238
190
A construção do discurso educativo
“O professorado, em Cabo Verde, é um emprego cujo fim é oferecer esteios
económicos a rapazes mais ou menos simpáticos ou influentes. É magra a côngrua da
ilha de Santa Luzia? Faz-se o padre professor e, com uns tantos reis, já o nosso
prestante e amável reverendo, bem visto no paço episcopal, com parentela rija em
eleições, póde desafogadamente fazer face aos encargos domésticos...” (Eugénio
Tavares. A Voz de Cabo Verde, n.º 217, 1 de Novembro de 1915, p. 1)
Condição de funcionário público
O mito da igualdade de oportunidades e da democratização pela escola, era mais
forte que nunca e os professores não aceitavam a condição de “humildes
funcionários públicos” (Nóvoa, 1987, p. 588).
A reforma educativa de 1911 prometia “aumentos sucessivos que aos professores
primarios a Republica irá fazendo nos seus ordenados, [que] contribuirão
grandemente para tornar mais solida, mais respeitavel e mais bella, a sua acção
moral, dentro da escola” (preâmbulo, III, Decreto de 29 de Março239).
Na colónia de Cabo Verde, o corpo docente da instrução primária foi fixado pelo
Decreto de 17 de Agosto de 1912:
“Artigo 1º É fixado em quarenta o numero de professores e em onze o de professoras
do ensino primario da provincia de Cabo Verde, sendo os vencimentos de categoria,
respectivamente, de 300$000 réis e 240$000 réis.
(...)
Art. 4º Aos professores e professoras diplomados pelas escolas da metrópole, que não
habitem em edifícios da escola ou casas fornecidas pelo Estado, será abonado um
subsídio para renda de casa, abono que obedecerá ao preceituado na portaria provincial
n.º 321, de 15 de Setembro de 1911.
Art. 5º Aos professores e professoras diplomados pelas escolas da metropole será
abonada a gratificação de 5$000 réis por cada alumno que annualmente apresentarem
a exame e ficar approvado.” (Boletim Oficial n.º 38, 21 de Setembro de 1912, p. 1)
A análise comparativa do estatuto remuneratório da classe docente, na metrópole
e na colónia, evidencia a subalternidade dos professores cabo-verdianos.
239
Diário do Governo, n.º 73, 30 de Março de 1911, p. 1.342.
191
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Quadro 47 – Remunerações e regalias dos professores da instrução primária (metrópole e colónia)
Matéria
Quadro provisório da classe docente
(Decreto de 29 de Março de 1911)
Hierarquização
Divisão dos professores em três classes
Vencimentos
1ª classe
Categoria: 250$000; exercício: 50$000
2ª classe
Categoria: 200$000; exercício: 40$000
3ª classe
Categoria: 150$000; exercício: 30$000
Diferenciação de género
Subsídios
Quadro docente de Cabo Verde
(Decreto de 17 de Agosto de 1912)
Vencimentos de categoria240:
Professores: 300$000
Professoras: 240$000
Párocos: gratificação anual de 300$000
Composição: 40 professores e 11
professoras
Salários das professoras: redução de 25%.
Subsídios de residência: 30$000
Subsídios para renda de casa:
50$000 (sedes dos concelhos, 1.ª classe)
30$000 (sedes de outros concelhos)
25$000 (outras localidades).
Subsídios de renda de casa para os
professores diplomados pelas escolas da
metrópole, que não habitem em edifícios
das escolas ou casas fornecidas pelo Estado
No caso português, “a ausência de discriminação entre os salários dos homens e
das mulheres favoreceu a feminização do corpo docente primário” (Nóvoa, 1987, p.
596). Contrariamente, em Cabo Verde prevaleciam desigualdades no corpo docente,
predominantemente masculino (1911: 74%; 1926: 61%). A mulher era vista como
mão-de-obra barata: “Uma professora não diplomada, satisfaria plenamente, e esta
podia-se obter ali mesmo na ilha, com a pequena gratificação de 15$000 réis
mensais” (A Voz de Cabo Verde, n.º 70, 16 de Dezembro de 1912, p. 2).
“Fixa o citado decreto os vencimentos de categoria de professores em 300$000 réis e o
das professoras em 240$000 réis.
Não se comprehende esta distinção de vencimento, que, em nosso humilde entender,
deviam ser perfeitamente eguaes para os professores dos dois sexos. A elles, sem
excepção, se exigem as mesmas habilitações para o ensino, as mesmas
responsabilidades; estão sujeitos aos mesmos regulamentos. Não podemos, pois,
perceber porque uns recebem mais e outros menos vencimentos.
As diferenças de vencimentos entre classes de funccionarios de categorias e de
serviços idênticos, não póde mesmo justificar-se nem ser justa.” (O Progresso, nº 14, 3
de Outubro de 1912, p. 2)
240
Segundo Aúrea Adão, “insistentemente, o professorado requer a unificação [dos vencimentos de categoria e
de exercício], porque esta diferenciação traz-lhe prejuízos elevados, quando em situação de inactividade quer
por doença, quer por aposentação” (1984, p. 199).
192
A construção do discurso educativo
“Não vemos tambem razão plausível para que a professora primária tenha de ordenado
apenas 205 escudos por mês. O serviço que ela presta é tam importante como o que se
exige ao professor, sendo mesmo certo que sob o ponto de vista moral a missão da
professora é ainda mais dificultoza e cheia de exigencias, se tivermos de atender ao
principio de que pela educação da mulher é que se há de efectuar a grande obra da
nossa vida futura de nação culta e livre. É pois justo que se estabeleça um ordenado
igual ao do professor, tanto mais que o numero de escolas para o sexo feminino é
muito maior que o de iguais estabelecimentos para o ensino de meninas.” (José Lopes.
A Voz de Cabo Verde, n.º 155, 3 de Agosto de 1914, pp. 2-3)
Ser cabo-verdiano ou metropolitano fazia, igualmente, diferença:
“Nota-se outra excepção no decreto citado, que é menos equitativa. Referimo-nos no
artigo 5º que manda abonar a gratificação de 5$000 réis por cada alumno que os
professores ou professoras diplomados pela escola da metropole annualmente
apresentarem a exame e ficar approvado. Ao passo que se dá aos professores
diplomados pela metropole 5$000 réis, a gratificação estabelecida para os outros é de
3$000 réis, sujeita ainda a rateio, se o numero de alumnos aprovados no concelho,
apresentar quantia superior à verba inscripta no orçamento municipal, porque n’ esse
caso tem de ser distribuida pelos professores, e, assim, ser muito inferior a réis 3$000.
Como estímulo para o ensino público, estas gratificações deviam ser perfeitamente
eguaes. Aos professores e professoras diplomadas pelas escolas da metropole é
abonado o subsídio para renda de casa, que é de 10$000 mensaes, nos termos da
portaria provincial n.º 321 de 15 de Setembro de 1911. Outra excepção para os
restantes professores da provincia.
Estas disparidades representam, em média, um augmento de vencimento para os
professores ou professoras diplomadas de 140$000 a 160$000 réis.
Nada d´isto é justo nem provoca incentivos para o bom exercício do magisterio, a não
ser muito excepcionalmente, n´aquelles que se veem peor retribuidos em um serviço
perfeitamente egual e de responsabilidade identica.” (O Progresso, nº 14, 3 de
Outubro de 1912, p. 2)
Pese o desagrado face às diferenças, questionava-se: “Quem vai tirar um curso
superior ou mesmo dos liceus, ou de escolas normais, para vir para Africa receber
25$000 réis por mês?” (A Voz de Cabo Verde, n.º 82, 10 de Março de 1913, p. 3).
A docência, como profissão-refúgio241, acolhia qualquer cidadão sem
habilitações profissionais, mediante “concursos documentais e não de provas
públicas”, prevalecendo os professores nicados242.
241
Expressão de António Nóvoa, no contexto da situação educacional portuguesa, no século XIX (1987, p.
597).
242
Professor interino. Consultar artigo de A Voz de Cabo Verde, n.º 85, 31 de Março de 1913 (pág.
193).
193
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
“Ao que nos consta, de boa origem, pela Repartição de Fazenda foram processados,
com referência do mês findo, apenas dois terços dos respectivos vencimentos pouco
mais de 16$000 réis – à maior parte dos actuais professores desta ilha – e naturalmente
de todo o arquipélago. Motivo? Porque os professores alvejados – que o são de
instrução primária, vá o esclarecimento, por causa das dúvidas – não obtiveram nos
respectivos concursos – que são documentais e não de provas públicas, a classificação
necessária para o provimento do cargo, sendo necessário nomea-los, com o caracter de
interinidade, para que as escolas não ficassem desertas, em consequência da respectiva
lei, que exige para o magistério primário – e sob a irrosória paga de 25$000 réis
mensais – habilitações superiores, que a maioria dos nossos concidadãos não possuem.
Mas, enfim, apesar de tudo, a maioria dos nossos professores, embora não possuam as
habilitações – documentais – exigidas pela lei, exerce o magistério com a maior
proficiência, apezar das péssimas condições – sem edifícios, sem mobiliário escolar,
etc., – em que tem de ensinar.” (O Independente, nº 19, 12 de Outubro de 1912, p.3)
“Há, em todo o arquipélago muitos professores, dezenas, talvez, englobados na nova
classe [professores interinos]. Só nesta ilha [Santiago] existem 6, não contando os
municipais que parecem não sofrerem cortes nos seus vencimentos, mesmo quando
«provisorios», no verdadeiro significado do termo. Há ainda a esclarecer que quanto
maior é o número de professores interinos menor é o de efectivos, o que traduz uma
economia que teoricamente se recomenda, sabido como é que os interinos ganham
16.000 e poucos mais reais e os efectivos 23$000 réis. Logo – suntuosa calamidade! –,
a redução das despesas orçamentais é, em Cabo Verde, proporcional ao aumento de
professores interinos.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 82, 10 de Março de 1913, p. 3)
Gráfico 16 – Salários anuais de diferentes categorias profissionais – 1912
1.300
720
540
480
252
300
180
Director da
Imprensa
Nacional
Amanuense Oficial maior
(S.G.
Governo)
Porteiro
Compositor
1ª classe
Aprendiz 1ª
classe
(Imprensa)
Professor
240
Professora
(Decreto de 17 de Agosto 1912243)
243
Supl. ao Boletim Oficial, nº 38, 21 de Setembro de 1912, pp. 1-2.
194
A construção do discurso educativo
Se confrontarmos os salários dos docentes da instrução primária (1912) com os
de outras categorias profissionais, apuramos que a remuneração do professor era
inferior ao salário do amanuense e do compositor da Imprensa Nacional e que uma
professora recebia um salário similar ao de um aprendiz e, ligeiramente superior, ao
do porteiro (Gráfico 16).
“Apenas para amostra, sine qua non do escandalo burocratico da provincia, basta
colocar em paralelo, sob todas as modalidades, os amanuenses da Secretaria Geral e os
professores efectivos. O serviço daqueles é pago com 40$000 réis, o destes com
25$000 réis. Querem agora crêr numa verdade?
Pela metropole, seja em que repartição fôr, um amanuense ganha apenas 12$000 réis,
quinze o máximo. Pois, ao lado dêle, com renda de casa suficiente e contínuo
sortimento de artigos de expediente, vence o professor primario (interino ou efectivo)
15, 18, e 25$000 réis, conforme a classe que lhe couber. É de admirar, não é?
Façamos de contas que o que lá existe chegará daqui a meio ano a Cabo Verde. (...)
Pelo que respeita a nós, aos professores interinos nicados, já que falei nos efectivos,
nem tenho veios por onde serenamente possam passar mais algumas verdades. O que
Cerveira de Albuquerque, de concerto com os velhos compadres do Conselho
Colonial, cortou às nossas refeições diárias, se é que cortou, só traduz intuitos
ridicularizadores, um escarneo completo, uma perfeita troça que briga com todos os
principios, conjugada em incompreensiveis agressões.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 85,
31 de Março de 1913, p. 2)
Numa terra assolada por secas e fomes frequentes, a sobrevivência era
particularmente difícil. Em tom crítico à governação colonial, ”que coloca o povo
português ao nível dos povos mais ignorantes”, A Tribuna d’África denunciava:
“O diminuto ganho dos professores, 25$000 réis mensais ainda sujeitos a descontos,
em terras onde a vida é caríssima, afastados do povoado, fazem com que o
professorado em tão precaria situação, tendo de ministrar o ensino em horriveis e
nojentos antros onde ele nunca desejaria colocar os pés, tão insalubres e medonhas são
que tiram tambem ao alumno a vontade de ali se apresentar, não sinta forças nem
vontade de exercer a sua missão redentora, habilitando à luta pela vida este povo que
só pela desgraça tem sido acarinhado. (...)
Nesta infeliz terra, tão dizimada pela fome que por assim dizer incessantemente a
persegue, tendo tantos recursos naturais e condições necessarias para a sua riqueza,
pela incúria e desleixo dos governantes, encontra-se reduzida ao unico recurso que lhe
resta que é a emigração.” (Nº 2, 7 de Março de 1913, p. 1)
A precariedade profissional dos professores de posto foi assunto de debate
público, sob diversas percepções.
195
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Na óptica da administração:
“Tive, é certo – no intuito de intensificar a difusão da instrução pelo concelho; e de
conseguir, por conseguinte diminuir o numero considerável de analfabetos que se
encontram na área desta Municipalidade –, a iniciativa de propôr uma pequena
redução nos vencimentos dos professores dos Postos de ensino primários, nomeados à
sombra de recursos creados pelo agravamento das contribuições.
O fim a que eu visava? Evidentemente o de criar mais Postos de ensino. E tive essa
iniciativa, propu-la e advoguei-a em sessão, porque se torna indispensável criar, junto
de núcleos da população, centros de actividade escolar limitada ao ensino das
primeiras letras e da escrita. (...)
Quanto a vencimentos: Propus e foi aprovado que os vencimentos, que eram de vinte
escudos mensais, passassem a 15. Isto é, houve um córte de 5 escudos, com que, no
meu entender, a Câmara deverá criar mais Postos de ensino, como de facto foram
criados mais dois, sendo um do sexo masculino e outro do sexo feminino – e com que
não ficariam na miséria os professores desses Postos.
Os Postos de ensino ficam em povoações, onde a carestia de vida se não faz sentir tão
profundamente, que os 15 escudos actuais não deem para cachupa e para um passadio
muito regular, ajuntando-se mais a particularidade de, pelo meio que vive, não carecer
o professor destes Postos de ensino, de uma representação a que é compelido o
professor duma escola, numa cidade ou numa vila.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 160, 7
de Setembro de 1914, p. 4).
Na óptica dos professores:
“Em Setembro do ano passado um gesto infeliz reduziu a quinze escudos mensais o
minguado ordenado desses beneméritos obreiros da geração nova, que era de 25$00.
Essa deliberação não obedeceu a nenhum princípio digno de ponderação, pois que a
Câmara tinha em cofre um saldo importante.
E o que torna mais vexatória essa deliberação cabralina é que nem todos os
professores, que prestam o mesmo árduo serviço, foram atingidos com a redução
acima mencionada, continuando a perceber 25$00 o professor da Calheta, o de Achada
Lém, o da Ribeira da Barca e o da escola nocturna da Assomada. Semelhante
disparidade não devia consentir-se, tal atentado contra os direitos de uma classe que
melhores subsídios presta para a reconstituição social não podia continuar.” (A Voz de
Cabo Verde, n.º 214, 11 de Outubro de 1915, p. 3)
Os vencimentos dos “levitas da instrução [eram] tão variados que parece, Cabo
Verde a este respeito, uma Babilónia” (A Voz de Cabo Verde, 13 de Setembro de
1915, p. 3). O Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde244 disciplinou
esta situação e fixou o quadro docente do ensino primário elementar e
complementar, em 1917, ano em “que se registou [na metrópole] um aumento
salarial dos professores, entre 20 e 30%” (Adão, 1984, p. 203).
244
Decreto nº 3.435, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 ao Boletim Oficial nº 43, 30 de Outubro de 1917, p. 5
(apêndice D).
196
A construção do discurso educativo
Quadro 48 – Vencimentos dos professores de instrução primária – 1917
Designação
1ª classe – 20 professores
2ª classe – 40 professores
3ª classe – número indeterminado
Subsídio de residência245: Praia ou Mindelo
Outras sédes de concelhos regulares
Outros locais
Aos professores diplomados pelas Escolas Normais da metrópole
Aos professores que rejam mais de uma turma
Aos professores dos postos de ensino
Vencimentos
Categoria
Vencimentos
Exercício
Total
300$
252$
204$
60$
48$
36$
360$
300$
240$
130$
75$
60$
210$
120$
180$
120$
180$
(Tabela anexa ao Plano Orgânico da Instrução Pública, 8 de Outubro de 1917, p. 3)
Tendo-se conseguido uma equiparação aos salários dos docentes metropolitanos,
persistiam desigualdades nas remunerações dos professores menos qualificados: em
Portugal os professores interinos ganhavam 240$00246, enquanto que, em Cabo
Verde, os professores de posto de ensino auferiam o vencimento de 180$00.
O segundo Plano Orgânico da Instrução Pública247 introduziu ligeiras alterações
nas remunerações dos professores:
Quadro 49 – Vencimentos dos professores de instrução primária – 1917/1918
Ano de 1917
Vencimentos
Professor de 1.ª classe
Professor de 2.ª classe
Professor de 3.ª classe
Professor de Posto Ensino
Professor temporário
Subsídio de renda casa a)
Subsídio de renda casa b)
Subsídio de renda casa c)
Subsídio professor da metrópole
Subsídio professor + 1 turma
Ano de 1918
Diferença
Categoria
Exercício
Total
Categoria
Exercício
Total
Percentagem
300$
252$
204$
60$
48$
36$
180$
180$
360$
300$
240$
180$
180$
130$
75$
60$
210$
120$
300$
252$
204$
84$
72$
60$
384$
324$
264$
+ 6,7 %
+ 8,0%
+ 10,0%
=
120$
72$
48$
- 7,7%
- 4,0%
- 20,0%
120$
(Tabelas anexas ao Decreto n.º 3.435, 8 de Outubro de 1917 e à Portaria n.º 474, 27 de Dezembro de 1918)
245
Os professores, a quem fosse dada residência oficial, não recebeiam o subsídio de residência.
Vencimentos ilíquidos anuais concedidos a partir de 1917: Interinos – 240$00; 3ª classe – 240$00; 2ª classe
– 300$00; 1ª classe – 360$00 (Adão, 1984, p. 204).
247
Portaria nº 474, 27 de Dezembro de 1918. Supl. nº 14 ao Boletim Oficial nº 52, 31 de Dezembro de 1918, p.
5.
246
197
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Durante a 1ª Guerra Mundial, os preços dos produtos alimentícios aumentaram
consideravelmente. Em Portugal, perante o crescente ritmo da inflação, a União do
Professorado lançou uma campanha, a nível nacional, com vista a pressionar o
Governo a uma revisão imediata dos ordenados (Adão, 1984, p. 205). Em 1919, na
província de Cabo Verde registou-se uma melhoria salarial do funcionalismo
público248. Os professores continuavam aquém do nível atingido por outras
categorias da função pública: os docentes mais qualificados auferiam salários
inferiores aos dos amanuenses e compositores da Imprensa Nacional e um porteiro
ganhava mais do que um professor de posto de ensino.
Gráfico 17 – Salários anuais de diferentes categorias profissionais – 1919
3.000
2.400
2.500
2.000 1.600
1.500
1.000
500
840
840
384
360
720 600
540
300
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No ano de 1924 registou-se uma nova subida dos salários249, acrescidos da
subvenção colonial e do subsídio eventual. Na perspectiva de António Nóvoa “os
anos entre o fim da Guerra e a implantação do Estado Novo constituem o único
248
Salários dos professores efectivos, com o curso normal: 1ª classe, categoria – 500$00; 1ª classe, exercício –
220$00; 2.ª classe – 720$00. Salários dos professores efectivos, sem o curso normal: 1ª classe, categoria –
400$00; 1ª classe, exercício – 200$00; 2.ª classe – 600$00. Salários dos professores de 3ª classe, categoria –
360$00; exercício – 180$00. Professores interinos – 360$00. Professores de postos de ensino – 300$00.
Professores de cursos nocturnos – 180$00. Subsídios de residência Praia e Mindelo – 120$00; outras sédes de
concelhos regulares – 60$00; outros locais – 30$00. (Supl. nº 14 ao Boletim Oficial, nº 39, 29 de Setembro de
1919, pp. 24/25)
249
O diploma legislativo de 12 de Março de 1924 fixou os vencimentos dos professores de 1ª classe nos
seguintes valores: Categoria – 1.833$30; exercício – 3.483$27; subvenção colonial – 870$71 e subsídio
eventual – 8.359$82. Fixou, ainda, a gratificação anual aos professores que regerem mais de uma turma, no
valor de 960$. (Boletim Oficial, n.º 11, 15 de Março de 1924, p. 84)
198
A construção do discurso educativo
período durante o qual os professores parecem estar satisfeitos com as suas
remunerações” e “pela primeira vez, há alguns decénios, um documento
internacional sobre a «situação dos professores no mundo» não colocava Portugal
na cauda da classificação“ (1987, p.625).
Em Cabo Verde, a difícil sobrevivência do professor explica a frequente
acumulação do serviço docente oficial com outras tarefas remuneradas.
“Todavia, fazendo-se na carta referida uma acusação concreta, para ella chamaremos a
attenção de quem competir. É a seguinte: que nas estatisticas officiaes, da instrução
publica, referentes aos annos de 1909-1910 e 1910-1911 estão englobados, como se
fossem todos da mesma escola, os alumnos officiaes e particulares (sendo estes em
numero muito mais elevado segundo afirma o auctor da carta), leccionados pelo sr.
professor Heitor Fermino, o que impede o poder apreciar-se, com justiça, a qual das
escolas, à official ou à particular, serve elle com maior proficiencia.” (O Independente,
nº 13, 11 de Julho de 1912, p.3)
A conjugação de funções docentes e político-administrativas, próximas do
caciquismo, era objecto de reparos: “Recebedor do concelho, professor municipal,
thesoureiro da camara, e que tambem é substituto do administrador do concelho.
Francamente é muita cousa junta” (A Voz de Cabo Verde, nº 4, 22 de Março de
1911, p. 1). Os párocos podiam acumular o exercício pastoral com a leccionação,
recebendo “uma gratificação anual de réis 300$000” (art. 2º, Decreto de 17 de
Agosto de 1912)250.
A imprensa verberou, com indignação, a acumulação de funções que maculava o
bom desempenho profissional:
“É professor oficial e delegado ao Govêrno, que também é chefe da delegação
aduaneira, encarregado do correio, da arborização, etc.
A incompatibilidade nestes diversos empregos é tão manifesta que o público vê
sacrificados, ao egoísmo duma só entidade, os seus interesses mais legítimos. Não se
pode servir a dois senhores, porque sucederá que um ou ambos ficam mal servidos.”
(O Futuro de Cabo Verde, n.º 81, 12 de Novembro de 1914, p. 3)
“Apezar dela [a queixa] ter chegado ao conhecimento do encarregado do correio, não
se modificou absolutamente nada para melhor, apenas um progresso de caranguejo,
porque o encarregado que tambem é «professor em letras», fez constar depois que o
correio estaria aberto das 9 e meia às 12 e meia, exactamente as horas em que se ele se
encontra na escola, onde vai garantir o seu belo ordenado.” (O Futuro de Cabo Verde,
n.º 69, 20 de Agosto de 1914, p. 3)
250
Supl. nº 11 ao Boletim Oficial n.º 38, 21 de Setembro de 1912, p. 1.
199
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A imagem social do professor convivia mal com as privações, num quotidiano de
dificuldades. José da Fonseca Lage, professor e jornalista, traça o retrato da pobreza
envergonhada da classe:
“O professor, em toda a parte, mas especialmente nas ilhas, é sempre um funcionário
de destaque, de fina e utilíssima representação, tendo por dever do seu cargo e decôro
de sua pessoa, apresentar-se muito decente e correcto no trajar. Alêm disso a pobreza
das ilhas, que é imensa, vê no professor um ricaço, a quem constantemente pede
esmola com a convicção de que êste não tem direito a negar-lha; e se lha nega, está
sujeito e expõe-se a apreciações bem inconvenientes e alêm disso, deprimentes para a
ocupação em que oficialmente vive.
Mas se o professor é o mais infeliz de todos, porque a forçada pobreza o não deixa
gozar uma única hora de alegria!... O que tem para dar, se a miséria o não deixa ter
para viver?!” (O Futuro de Cabo Verde, nº 118, 29 de Julho de 1915, p.3)
Trajectórias da classe
O número de docentes do ensino primário evoluiu, de 1911 a 1926, com a taxa
de crescimento médio anual de 3,9%, num ritmo mais acentuado para as professoras
(6,9 %), o que demonstra a inserção gradativa da profissão no universo feminino.
Gráfico 18 – Evolução dos docentes do ensino primário – 1911/1926 251
T otal
Masc.
Fem.
256
206
156
106
56
6
-44
1911
1917
1921
1926
251
Taxas de feminização da classe docente: 1911– 25,9% (total, 85; sexo feminino, 22), 1917 – 26,5% (total,
113; sexo feminino, 30), 1921 – 35,2% (total, 128; sexo feminino, 45), 1926 – 38,6% (total, 145; sexo feminino,
56).
200
A construção do discurso educativo
A supremacia de homens na classe docente, além de espelhar desigualdades de
género, reflecte o elevado desemprego que atingia a sociedade das ilhas, sendo a
docência, como profissão-refúgio, destinada preferencialmente ao tradicional chefe
de família. Outro sintoma de discriminação radica no facto das professoras
tenderem a ocupar os níveis mais baixos da profissão. O perfil de crescimento
mostra uma evolução mais acentuada no escalão das professoras interinas.
Gráfico 19 – Evolução das professoras do ensino primário: total e interinas 252 – 1917/1926
60%
Total
Professoras
Professoras
Interinas
50%
40%
30%
20%
10%
0%
1917
1921
1926
As condições de acesso à profissão docente foram estipuladas no Plano
Orgânico, de 1918253: “título de habilitação legal conferido pelas escolas normais ou
de habilitação para o magistério primário da metrópole ou dessa colónia” e “só na
falta absoluta dêstes, se nomearão, depois de aberto concurso público, os indivíduos
mais idóneos e que se sujeitem primeiramente a um exame” (tít. II, cap. 1, art. 5º).
“A graduação dos candidatos, far-se há tendo em consideração:
I. Boa classificação de serviço prestado como professor oficial durante 5 anos pelo
menos;
II. Classificação final do diploma e maioria de habilitações literárias;
III. Tempo de serviço efectivo como professor de uma escola oficial (incluídas as
antigas escolas municipais);
IV. Tempo de serviço temporário como professor de uma escola oficial ou das antigas
municipais.” (Tít. II, cap. 1, art. 11º § 1)
252
Professores interinos: 1917 – 30% (total, 80; sexo feminino, 24); 1921 – 53,7% (total, 67, sexo feminino,
36); 1926 – 58, 4% (total, 77; sexo feminino, 41). (Listas provisórias das escolas e dos seus professores, 1917,
1921 e 1926)
253
Plano Orgânico da Instrução Pública da Província de Cabo Verde. Portaria n.º 474, de 27 de Dezembro de
1918. Supl. n.º 14 ao Boletim Oficial nº 52, 31 Dezembro de 1918, pp. 1-2. (apêndice D).
201
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Quadro 50 – Distribuição dos professores de instrução primária por categorias profissionais – 1917/1926
Categorias
1917
1921
1926
Número
Percentagem
Número
Percentagem
Número
Percentagem
Interinos
80
70,8%
67
52,3%
77
53,1%
3ª classe
25
22,1%
38
29,7%
20
13,8%
2ª classe
8
7,1%
23
18,0%
30
20,7%
1ª classe
0
0,0%
0
0,0%
18
Total
113
100,0%
128
100,0%
145
12,4%
100,0%
Fonte: Supl. nº 21 ao Boletim Oficial n.º 45, 15 de Dezembro de 1917, pp. 1-5; n.º 50, 10 de Dezembro de 1921,
p. 434; n.º 52, 25 Dezembro 1926, pp. 491-493.
De 1917 a 1921 verificou-se uma evolução positiva dos professores de 3ª classe
(mais 7,6%), decrescendo no quinquénio seguinte (menos 15,9%), facto que pode
ser explicado pela promoção de docentes para a 2ª classe254.
Gráfico 20 – Evolução dos professores interinos255 – 1917/1926
80%
70,80%
52,34%
53,10%
1926
60%
1921
70%
50%
40%
30%
1917
20%
254
Distribuição dos professores qualificados (60), por anos de serviço (1921): mais de 30 anos – 1 (1,7%); 25 a
30 anos – 5 (8,3%); 20 a 24 anos – 6 (10%); 15 a 19 anos – 4 (6,7%); 10 a 14 anos – 8 (13,3%); 5 a 9 anos – 10
(16,7%); 1 a 5 anos – 7 (11,7%); 1 ano – 19 (31,7%).
255
Distribuição dos professores interinos: 1917 – 113 (80 interinos, 70,8%); 1921 – 128 (67 interinos, 52,3%);
1926 – 145 (77 interinos, 53,1 %). Fonte: Listas provisórias das escolas e dos seus professores, 1917, 1921 e
1926.
202
A construção do discurso educativo
O panorama educacional era dominado, como temos referido, por professores
interinos (1917-26: 58,7%), sem habilitações profissionais e menos onerosos para o
erário público. Admitia-se a mobilidade destes professores que, após aprovação em
exame de habilitações para a docência, podiam ser promovidos a docentes de 3ª
classe:
“Tendo sido aprovados nos exames a que foram submetidos nesta cidade e na da Praia,
nos termos do artigo 56° do Regulamento provisório de Instrução Primária, aprovado
por portaria provincial n.º 368 A, de 30 de Outubro último, os professores interinos,
abaixo mencionados:
Hei por conveniente, vista a proposta do Conselho de Instrução Pública (…) promover
à 3ª classe, os seguintes professores:
Augusto Manuel Miranda, Guilherme Pedro Lima e João Manuel Miranda, com direito
à diferença de vencimento desde 7 de Dezembro do ano findo; Maria da Conceição
Carvalho Ferreira Santos, Maria Nobre de Melo, Olímpia Esmeraldo Lima, António
Joaquim de Oliveira e Pedro Rodrigues de Castro, com direito a diferença de
vencimentos desde 8 do referido mês de Dezembro; Teodoro Almada, com direito a
diferença de vencimento desde 1 de Dezembro; Hugo dos Reis Borges, João Maria
Feijóo e Pedro Rodrigues Tavares, com direito à diferença de vencimento desde 15 do
mesmo mês; Kilda Amália Benicio Vieira Teixeira, com direito à diferença de
vencimento desde 19 de Dezembro.” (Portaria n.º 47. Boletim Oficial, n.º 5, 2 de
Fevereiro de 1918, p. 50)
A República torna obrigatória a aposentação para todos os professores que
completem 70 anos de idade, limite que veio a ser reduzido para 65 anos (Adão,
1984, p. 231). Inicialmente concedido apenas aos professores oficiais, este direito
foi outorgado, a posteriori, aos professores municipais ultramarinos:
“Tendo alguns professores do ensino primário municipais ultramarinos (…) solicitado
que lhes sejam extensivas as garantias consignadas no decreto com fôrça de lei de 30
de Julho de 1910, que concedeu o direito de aposentação aos professores municipais,
habilitados nos termos do referido decreto de 1901.
Considerando que não é justo privar aqueles professores do direito de aposentação,
pois que, não são habilitados conforme o mesmo decreto, tal não depende de culpa
sua, visto a nomeação ser anterior, e então não se exigir similhantes habilitações. (...)
Hei por bem, sobre proposta do Ministro das Colónias, decretar o seguinte:
Artigo 1.º É tornado extensivo aos professores das escolas municipais ultramarinas,
nomeados anteriormente ao decreto com fôrça de lei de 17 de Agosto de 1901, o
direito de aposentação, nos termos do decreto, com fôrça de lei de 30 de Julho de
1910.
§ único. Também gozarão do direito, a que se refere êste artigo, os professores que já
estejam separados do serviço, por terem sido julgados incapazes, contanto que
tivessem servido pelo menos, até 30 de julho de 1910.” (Decreto n.º 888. Boletim
Oficial, n.º 42, 17 de Outubro de 1914, p. 364)
203
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A classe docente beneficiava de assistência médico-cirúrgica, na metrópole,
quando se esgotavam os recursos locais de atendimento:
“Portaria n.º 175: Permittindo, em vista do parecer da Junta de Saude da Provincia,
que a professora official da Villa da Ponta do Sol, da ilha de Santo Antão, Joaquina da
Conceição Ferreira, siga para Lisboa, a fim de ser presente à Junta de Saude das
Colonias.” (Boletim Oficial, n.º 21, 23 de Maio de 1912, p. 196)
As professoras, por ocasião do parto, tinham direito a dispensa do serviço
docente, sem perda de vencimentos:
“Hei por bem determinar que as professoras de instrucção primaria sejam dispensadas
do serviço por espaço de dois meses, durante o ultimo periodo da gravidez e em
seguida ao parto, abonando-se-lhes todos os seus vencimentos de categoria e exercicio,
bastando apenas que esse facto seja devidamente comprovado por attestado medico
perante o respectivo sub-inspector”. (Diário do Governo, n.º 6, 9 de Janeiro de 1911,
p. 6)
“Estatuindo o decreto do 7 de Janeiro de 1911, em vigor na Metrópole, que às
professoras, por ocasião de parto, seja garantido o repouso necessário:
Visto o disposto no artigo 108º do Regulamento dos Serviços de Instrução Pública,
aprovado pela portaria provincial n. ° 308-A de 30 do Outubro do ano findo, que
manda observar, em casos omissos do mesmo regulamento, os preceitos vigentes na
Metrópole; Atendendo ao que requereu a este Governo e comprovou devidamente, a
professora diplomada da escola n.° 4, do sexo feminino da cidade da Praia, Dinorah
Alice Moreira de Aguiar de Meneses;
Hei por conveniente, concordando com o parecer emitido a este respeito pelo
Conselho de Instrução Publica, conceder à referida professora 30 dias de licença, sem
perda dos seus vencimentos, nos termos do citado decreto, encarregando
transitoriamente da mesma escola, Margarida Gabriela de Quental Mendes.” (Portaria
n.º 146. Boletim Oficial n.º 12, 23 de Março de 1919, p. 109)
Carreira e formação profissional
O acesso e a promoção na carreira docente exigiam formação específica para o
magistério. Com efeito, desde 1901 – com excepção para algumas situações que
provêm do século XIX ou de certos casos pontuais – ninguém será nomeado sem
apresentar prova do diploma da escola normal (Nóvoa, 1987, pp. 632-633).
204
A construção do discurso educativo
Na colónia, a realidade era bem diferente: os normalistas256 tinham uma
expressão pouco significativa no corpo docente (1917-26: média, 14,7%257),
embora, com tendência de crescimento (1917, 3,5%; 1926, 23,4%) (Gráfico 21258).
A habilitação legal para a docência exigida tinha largo espectro: além dos diplomas
das Escolas Normais, abrangia um conjunto de habilitações não específicas para o
magistério.
As candidaturas à docência realizavam-se por concurso público documental,
aberto por um período de 60 dias, por iniciativa do Governo Provincial ou das
Comissões Municipais, consoante se tratasse de “dar provimento” em escolas
oficiais ou em escolas municipais. O processo documental integrava:
“I. Diploma de habilitação legal, nos termos do artigo 3º do citado decreto de 17 de
Agosto de 1901, e que são:
Approvação em qualquer curso de instrucção superior;
Approvação no curso complementar ou elementar das escholas normaes;
Approvação nos cursos de escholas de habilitação para o magisterio primario;
Approvação nos cursos d’instrucção secundaria dos lyceus;
Estudos preparatorios do seminario-lyceu de Cabo Verde, nos termos do officio n.º
236, de 4 de Outubro de 1906, publicado no Boletim Official n.º 2, de 1907.
II. Attestado de bons costumes.
III. Attestado medico com que provem não soffrer de molestia contagiosa.
IV. Quaesquer documentos ou habilitações litterarias.
V. Certidão de edade, comprovativa, de não terem menos de 21 annos.
VI. Certificado do registo criminal.” (Anúncio, 25 Maio 1912. Boletim Oficial, n.º 23,
8 de Junho de 1912, p. 219)
Em 1920 solicitava-se ainda um “atestado, passado pelas autoridades ou corpos
administrativos da residência do candidato, da sua franca adesão à República e
acatamento às suas leis” (anúncio, 11 de Agosto de 1920259), comprovativo da
interferência do poder político na colocação dos professores.
Era corrente a reabertura dos concursos documentais, dada a inexistência de
candidatos detentores das habilitações e critérios exigidos. Em caso de persistir a
ausência de candidaturas, verificavam-se duas possibilidades: a selecção do
concorrente “que melhores e mais documentos litterarios apresentou” (Portaria n.º
256
Diplomados para o exercício do magistério primário. Expressão utilizada nas “Listas provisórias das escolas
e dos seus professores” (Supl. nº 21 ao Boletim Oficial, n.º 45, de 1917, pp. 3-4; Boletim Oficial, n.º 51, 17 de
Dezembro de 1921, pp. 442-444 e Boletim Oficial, n.º 52, 25 de Dezembro de 1926, pp. 491-492).
257
Distribuição dos professores diplomados pelas Escolas Normais: 1917 – 113 (4 normalistas, 3,5%); 1921 –
128 (22 normalistas, 17,2%); 1926 – 145 (34 normalistas, 23,4%). (Listas provisórias das escolas e dos seus
professores”, 1917, 1921 e 1926)
258
Consultar pág. 208.
259
Boletim Oficial, n.º 33, 14 de Agosto de 1920, p. 340.
205
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
340, 7 de Outubro de 1911260) ou a abertura de “concursos na metrópole, como está
determinado pelo Ministério das Colónias” (Boletim Oficial, n.º 47, 21 de
Novembro de 1914, p. 417).
O aparato processual não impedia a ocorrência de arbitrariedades:
“É um acto em que, entendo, as autoridades deviam ser muito escrupulosas,
lembrando-se que nem todos nasceram para exercer tam árdua como espinhosa missão
de instruir e educar; pois há pessoas muito instruídas e como tal carregadas de
documentos de numerosos exames, em que ficaram aprovados, sem todavia, possuirem
a habilidade de ensinar a uma criancinha o abecedário; e, pelo contrário, outros que,
tendo cursado pouco, são dotados de inigualável aptidão, a vontade inquebrantavel.
(...) O provimento das cadeiras faz-se por meio de nomeação provisória, interina e
vitalícia. As duas primeiras nomeações convem que saibam os leitores que nunca são
efectuadas senão por meio da infame politiquice, que é o mesmo que fazer favores a
amigos e afilhados. ¿É a frase significativa de tais nomeações infelizmente?
Intercalo aqui um facto que acaba de suceder neste concelho:
– Tendo, há pouco tempo, ido pescar o exímio professor Eugénio Manuel dos Santos,
o infeliz caiu, por acaso ao mar e morreu, fatalmente, afogado; no dia seguinte – oh!
política! – o Presidente da Câmara chamou José Ramos Mota e nomeou-o para
substituir o extinto, e o Administrador, opondo-se, alegou que, em vez de se fazer tal
nomeação, para o efeito da economia, devia-se nomear um outro professor, para,
mediante uma pequena gratificação, reger a escola vaga durante os ultimos meses do
ano lectivo, e no mês de outubro p. f. se nomearia um qualquer indivíduo habilitado.
Passêmos agora a resolver o binomio -solução:
1º – O Presidente é pai do único professor municipal existente nesta vila; o lugar tem
que ser, infalivelmente, posto a concurso documental; o nomeado provisorio tem curso
completo do liceu e concorreria inevitavelmente, e venceria infalivelmente o filho, que
tem pequeníssimo curso; está, pois, demonstrado o fim porque teve pressa em colocar
o elemento terrorista.
2º – O senhor Administrador hospedou-se em casa do mesmo professor municipal e,
portanto, deve-lhe finezas, por isso quis ele dar-lhe tal gratificação.
É isto que se chama gratidão à custa do dinheiro público. Muito teria que dizer caso o
plano me permitisse, sem temer um desmentido. Calemo-nos por aqui. Sam Nicolau, 1
de Julho de 1916.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 256, 14 de Agosto de 1916, p. 2)
Além dos Cursos Elementar e Complementar das Escolas Normais e do Curso da
Escola de Habilitação para o Magistério Primário, constituíam habilitação para a
docência: os diplomas de “qualquer curso de instrução superior”, a “aprovação nos
cursos de instrução secundaria dos liceus” e os “Estudos Preparatórios do
Seminário-liceu de Cabo Verde” (anúncio, 24 de Maio de 1912261).
260
261
Boletim Oficial, n.º 28, 25 de Novembro de 1911, p. 428
Boletim Oficial, n.º 23, 8 de Junho de 1912, p. 219.
206
A construção do discurso educativo
“Como se sabe não possuimos professores diplomados em Cabo Verde, por nos
faltarem escolas normais onde se habilitarem.
Possuimos tam somente o Seminário que ensina para o fim de saber e não de ensinar;
portanto só com um exame rigoroso em que o metodo e a aptidão entrariam como
principais disciplinas, se poderia fazer uma pura e bem definida escolha de quem se
encarregaria da nobre missão de ensinar e educar como se fazia no meu tempo.
Tenhamos sempre em vista que entre vinte candidatos nomeados é impossível
encontrar-se dez que se prestem para o fim.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 258, 28 de
Agosto de 1916, p. 2)
Apesar do prestígio do Seminário de S. Nicolau, instituido “para o fim de saber e
não de ensinar”, impunha-se a criação de uma Escola Normal. O poder provincial –
amparado pelo governo central – tentou materializar esta aspiração, num percurso
de projectos e leis não cumpridos. A falência da escola normal, no arquipélago, foi
interpretada como “fechar-nos as portas, a nós que somos naturais do arquipélago,
abrindo-as aos continentais”:
“Em primeiro lugar, devemos lembrar que não é o diploma (seja ele dimanado das
propriamente chamadas escolas-normais), o que dá competência ao professor. Na
candidatura a tais diplomas só há duas condições imprescindíveis, ao que nos conste:
inteligência clara e algum geito para ensinar crianças.
Em segundo lugar, devemos ter bem presente que, embora pudesse um diploma
representar competência, e incompetência a falta dele, não é lógico nem é justo exigirnos o Govêrno, para desempenho de certos cargos, conhecimentos que só na
Metrópole podem ser adquiridos; demais, não nos facultando meio de tal conseguir
sem um sensivel sacrificio.
Isso equivale a fechar-nos as portas, a nós que somos naturais do arquipélago, abrindoas aos continentais. Qual o fito?
Estreitar mais e mais as relações de cordialidade que devem existir entre os
portugueses caboverdeanos e os continentais?
Procurar arreigar na colónia por todos os meios possíveis, os hábitos e costumes
europeus?
Promover que a classe dos professores esteja sempre decentemente representada?
Estimular, com a necessidade de largos estudos, os naturais da colónia?
Talvez que tudo isso e muita cousa mais, que aliás se conseguiria por processos de
melhor eficácia.” (O Popular, n.º 18, 25 de Março de 1915, p. 2)
As interrogações enfáticas, cobertas de sarcasmo, demonstram o espírito crítico e
o desagrado face à governação colonial.
O processo de edificação de uma escola normal cabo-verdiana entrecruzou-se
com as histórias do seminário e do liceu262. A escola normal – que não passou de
262
Consultar Parte II, Capítulo 7.
207
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
projecto – foi instituída na sequência da extinção do Seminário de S. Nicolau e
herdou o património da reputada casa de ensino:
“Art. 8° É criado na escola de ensino primário superior de S. Nicolau um curso de
ensino normal primário.
§ l° Este curso compreenderá, além de quaisquer outras disciplinas que o Conselho de
Instrução Pública deliberar estabelecer, o aperfeiçoamento das matérias de ensino
primário complementar e o estudo da pedagogia.
§ 2° Este curso durará três anos, devendo o seu primeiro ano ser o de ensino primário
superior, e aproveitar-se dos outros dois anos deste ensino as disciplinas que o
regulamento indicar. O último ano é destinado, especialmente, a prática, simultânea do
ensino nas escolas primárias locais, sob a direcção do professor de pedagogia.
Art. 9° O quadro dos professores do 2° e 3° anos do curso normal primário e seus
vencimentos vão indicados na tabela C263.” (Tít. II, cap. II, Decreto nº 3.435, 8 de
Outubro de 1917264)
As disposições transitórias da lei determinavam que os professores do Seminário
passariam “a professores da escola de Ensino Primário Superior de São Nicolau e
do Curso Normal, com o vencimento de exercício de 390$” (tít. VII, art. 33.º) e
possibilitavam “aos indivíduos que possuam o actual curso completo do seminário,
matricular-se no último ano do Curso Normal” (tít. VII, art. 35°).
Estas medidas não se concretizaram e, em Maio do ano seguinte, O
Caboverdeano apelava para a urgência de “nesta colónia, [se desenvolver] ao
máximo a instrução primária e instituir um curso normal onde os que pretendessem
dedicar-se ao magistério se fossem preparar” (n.º 7, 18 de Maio de 1918, p. 1). O
Plano Orgânico da Instrução Pública, de 1918, criou de novo o Curso de Ensino
Normal, inserindo-o no Instituto de Instrução Secundária, instalado no edifício do
Seminário.
“Art. 17° § 1.° Este Instituto [de Instrução Secundária] funcionará provisoriamente e
só enquanto a colónia não tenha alojamento próprio noutra ilha, no edifício do extinto
Seminário da Ilha de S. Nicolau, aproveitando-se o respectivo material escolar,
devendo também para lá remeter-se todo o material pertencente ao Liceu Nacional de
S. Vicente, que fica extinto por êste diploma. (...)
Art. 20° É criado no Instituto de Instrução Secundaria um curso de ensino normal, que
terá o regime de coeducação dos sexos, a fim de preparar nesta colónia candidatos
devidamente habilitados ao magistério primário.
§ 1° Este curso durará dois anos, frequentando os alunos no primeiro ano uma cadeira
de pedagogia geral e história da pedagogia, outra de legislação especialmente escolar e
263
O quadro do pessoal era constituído por um director, 2 professores ordinários, 3 professores agregados, 3
professores dos cursos práticos, 4 secretários e 2 serventes.
264
Supl. nº 18 ao Boletim Oficial, n.º 43, 30 de Outubro de 1917, p. 2.
208
A construção do discurso educativo
economia política (noções gerais), e outra que será um resumo de conhecimentos
adquiridos no Liceu sobre história, geografia, gramática e matemática; e no 2° ano
uma cadeira de pedologia e metodologia do ensino primário e literatura portuguesa, e
outra três vezes por semana de psicofisiologia, destinando-se especialmente este
segundo ano à pratica simultânea do ensino das escolas primárias locais, sob a
direcção do professor de pedagogia.
Art. 21° Os indivíduos que pretenderem matricular-se neste curso devem satisfazer às
condições seguintes:
I. Terem 15 anos de idade completos;
II. Apresentarem certidão de passagem na terceira classe do curso liceal;
III. Apresentarem atestado, passado por médico, de não sofrerem de moléstia
contagiosa e serem vacinados.
§ único. Podem tambêm frequentar o curso normal independentemente da
apresentação da certidão de passagem na terceira classe do curso liceal, todos os
indivíduos que, sujeitando-se a um exame que versará sobre tais matérias e
principalmente sobre conhecimentos da língua, história e geografia pátrias, ficarem
aprovados, podendo também ser admitidos à frequência do 2° ano os professores
interinos e particulares, existentes à data da publicação deste decreto, que queiram
munir-se do respectivo diploma.
Art. 22° Os programas do curso normal e do exame de admissão a que se refere o §
único do artigo 21° serão estabelecidos pelo Conselho de Instrução Pública, fazendose só um exame no fim do curso e representando a certidão de aprovação o respectivo
diploma.
Art. 23° Os alunos pobres são dispensados do pagamento de propina.
Art. 24° Os professores de tal curso são os do curso liceal, à excepção do de
pedagogia, que será recrutado entre os professores das escolas normais metropolitanas
e com os mesmos vencimentos e vantagens daqueles.
§ único. O primeiro professor de Pedagogia será um dos inspectores dos que estão já
na província.
Art. 25° Na falta dos professores efectivos do instituto serão nomeados pelo Governo
da Província, ouvido o Conselho de Instrução Pública, professores interinos, que terão
apenas uma gratificação igual ao vencimento de exercício quando tenham outros
vencimentos pagos pelo Estado ou outras corporações públicas, e igual ao vencimento
de exercício e dois terços do de categoria quando não tenham outros vencimentos265”.
(Tít. III, Portaria n.º 474, 27 de Dezembro de1918266)
O Instituto de Instrução Secundária simbolizou a tentativa de permanência do
ensino religioso e de aniquilação do projecto de liceu laico. Nesta confluência de
interesses, representativos de forças sociais em confronto, radica a génese da
formação de professores em Cabo Verde.
265
Pessoal do Instituto de Instrução Secundária: 1 reitor (professor), 7 professores efectivos, 3 professores do
antigo Seminário, 1 secretário (professor), 2 prefeitos (professores com residência e comida) e pessoal menor.
266
Supl. nº 14 ao Boletim Oficial, n.º 52, 31 de Dezembro de 1918, pp. 1-2.
209
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Gráfico 21 – Evolução dos professores normalistas – 1917 /1926
30%
25%
23,45%
20%
17,19%
15%
10%
5%
3,54%
1926
1921
1917
0%
Ainda que a formação de professores, em Cabo Verde, não tenha passado de
desígnio, as estatísticas escolares mostram progressos na capacitação de docentes
(índice de crescimento dos normalistas: 19,9%).
A identidade profissional forjou-se na união do professorado e em movimentos
associativos. Durante o período republicano, em Portugal, o associativismo activo
exerceu uma acção com dois intuitos: primeiramente, criando um espírito colectivo,
uma atitude de solidariedade, no seio dos «profissionais da mesma profissão»; em
seguida, melhorando o estatuto socio-económico e conferindo uma certa dignidade
à profissão de professor de instrução primária” (Nóvoa, 1987, p. 692).
Na documentação consultada encontrámos referências a uma associação de
professores: o Centro Escolar Fontoura da Costa, na vila da Ribeira Brava, ilha de
S. Nicolau (1922), preocupado com a formação pedagógica do corpo docente:
“Estatuto do «Centro Escolar Fontoura da Costa»
Artigo 1º É constituída, nos termos dêstes Estatutos, uma associação de classe que
representa, para todos os efeitos, o produto da união do professorado primário de S.
Nicolau.
Art. 2º Essa associação denominar-se há «Centro Escolar Fontoura da Costa» e terá
sua séde em Vila da Ribeira Brava. (...)
Art.12º Compete à Direcção:
1º Trabalhar afincadamente a favor da classe para bem merecer a confiança dela;
210
A construção do discurso educativo
2º Procurar estreitar os laços da união do professorado, já desta ilha, já de toda a
província;
3º Fazer uma propaganda constante nesse sentido por toda ela e da forma que julgar
conveniente;
4º Adquirir para os seus associados, dentro dos limites da possibilidade, órgãos de
classe e revistas pedagógicas que se publicam no continente e noutros países;
5º Fazer que na primeira ocasião propícia se funde um jornal para defender os direitos
e interêsses do professorado caboverdeano;
6º Fazer sentir à Junta Local de Instrução Pública as deficiências que digam respeito à
classe e à escola;
7º Tornar público, pelos jornais de Cabo Verde, caso ela não providenciar, o seu
indiferentismo pelo ensino; (...)
11º Promover conferências pedagógicas, regulamentando-as previamente; (…)
20º Fazer, em suma, para que se adopte e se cumpra a divisa, «todos por um e um por
todos».” (Portaria n.º 12. Boletim Oficial, nº 4, 28 de Janeiro de 1922, pp. 28-29)
No estatuto do Centro Escolar encontrámos linhas de acção que merecem ser
sublinhadas:
“Procurar estreitar os laços da união do professorado, já desta ilha, já de toda a
província”. Não seria por acaso que esta iniciativa surgiu na ilha de S. Nicolau,
o primeiro centro académico do arquipélago, que pugnou pelo primado de
referência intelectual nas ilhas.
“Adquirir para os seus associados, dentro dos limites da possibilidade, órgãos de
classe e revistas pedagógicas que se publicam no continente e noutros países e
promover conferências pedagógicas”. Eram aspirações indicativas da vontade
de actualização do corpo docente.
“Fazer que na primeira ocasião propícia se funde um jornal para defender os
direitos e interêsses do professorado caboverdeano e tornar público, pelos
jornais de Cabo Verde, caso ela [Junta Local de Instrução Pública] não
providenciar o seu indiferentismo pelo ensino”. O programa de intenções da
Associação de Professores teve em consideração o papel da imprensa local,
numa luta persistente – quase teimosa – pela dignificação do homem caboverdiano e do seu bem mais precioso, a educação.
No fecho das considerações sobre “a identidade profissional do docente”
recorremos, uma vez mais, a António Nóvoa que delineou o modelo conceptual do
professor, em torno de um eixo central, duas dimensões e quatro etapas (1986,
pp.12-13):
211
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Eixo central: evolução do estatuto social e económico dos professores
O professor cabo-verdiano com atributos de mediação comunitária e,
circunstancialmente, de liderança vigiada foi plasmando a sua identidade
profissional, num contexto de submissão política.
Primeira dimensão: a construção de um corpo de conhecimentos e de técnicas
próprio e específico da profissão docente
A circulação de ideias (com destaque para a imprensa), a aceitação de inovações
e as manifestações de vontade de formação pedagógica foram, em nosso entender,
mais aspirações do que realidades.
Segunda dimensão: a organização (explícita ou implícita) de um conjunto de
normas e de valores que devem pautar o exercício da profissão docente
O exercício da docência foi regulado por um constructo de procedimentos,
práticas e posturas, substrato ético e deontológico da profissão.
Primeira etapa: exercício a tempo inteiro (ou como ocupação principal) da
actividade docente
À medida que se foi modelando o sistema educativo, constituiu-se um corpo de
profissionais, com consciência dos seus direitos e deveres, das diferenças no seio da
classe docente, em relação a outros grupos profissionais e aos professores
metropolitanos.
Segunda etapa: estabelecimento de um suporte legal para o exercício da actividade
docente
A actividade docente foi enquadrada por normas e prescrições (in) eficazes,
espelho do quadro institucional dominante. A distância entre Praia e Lisboa –
reformas, direitos e regalias profissionais – era superior à lonjura física, separada
por um oceano de esquecimentos, prepotências e desigualdades.
212
A construção do discurso educativo
Terceira etapa: criação de instituições específicas para a formação de professores (...)
através de um “role-transition”267 e não de “role-reversal”268
A luta pela formação de professores, em Cabo Verde, não foi vencida em tempo,
dada a incapacidade de dar corpo aos cursos normais projectados. Mas as sementes
foram lançadas.
Quarta etapa: Constituição de associações profissionais de professores (...) que
desempenham um papel fulcral no desenvolvimento de um espírito de corpo
Embora com uma experiência associativa incipiente, o professor cabo-verdiano
desenvolveu, pela escrita jornalística, um espírito de corpo, em defesa dos seus
direitos e de uma educação condigna.
267
268
Passagem do papel de aluno ao papel de professor (Nóvoa, 1986, p. 13).
Como a maioria das outras profissões (idem).
213
7.
Edificação do ensino liceal
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Na perspectiva de António Nóvoa, a operação histórica, que desenvolve a ideia
de liceu, assenta em dois elementos: a emergência de práticas de autogoverno, que
estimula uma disciplina que vem de dentro, juntando a liberdade à responsabilidade
e a afirmação de um projecto sociopolítico que encara a cidadania, “uma cidadania
consciente e esclarecida”, como elemento central do progresso (2005, p. 71). O
liceu emerge, nas ilhas, como um projecto sociopolítico e um imperativo de
cidadania.
Nobre de Oliveira recorda que “foram muitas as pessoas, tanto cabo-verdianos
como portugueses ligados a Cabo Verde, tanto nos jornais como no parlamento
português, que levantaram a sua voz a favor da criação do liceu” e que “depois da
proclamação da República, o combate recrudesceu e sobressaíram, entre outros,
Sena Barcelos, Roberto Duarte Silva, Simão Barbosa, Eugénio Tavares, Abílio
Macedo, Carlos Vasconcelos, Torquato Fonseca e Frank Martins, transformando a
criação deste liceu num dos grandes combates políticos de Cabo Verde” (1998, p.
398).
Figura 32. “Cabo Verde foi dotado de um liceu!”
(A Voz de Cabo Verde, n.º 300, 2 de Julho de 1917, p. 1)
O ensino liceal laico constituía a instância mais elevada do saber científico,
pedagógico e cívico no território cabo-verdiano, desde os tempos da extinção do
Seminário-liceu de S. Nicolau.
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
7.1. O Seminário-liceu
O Seminário Eclesiástico da diocese de Cabo Verde foi criado em 1866, com o
curso geral de estudos dividido em “estudos preparatórios e estudos ecclesiasticos”
e duas classes de alunos: “dos que se destinam ao estudo ecclesiastico; dos que
quizerem estudar no mesmo estabelecimento sem se destinarem à vida
ecclesiastica” (Boletim Official, n.º 44, 3 de Novembro de 1886).
O Seminário ficou instalado na “casa solarenga da vila da Ribeira Brava”, por
cortesia do Dr. Júlio José Dias que se mudou “para uma moradia mais modesta que
tinha no Cachaço” (Silva, 1990 citado em Artiletra, n.º 59/60, Outubro de 2004, p.
III).
Figura 33. “Vista do edifício do Seminário de Cabo-Verde” (1897)
(Silva, 1899, p. 161269)
269
Fotografia cedida pelo Sr. Padre Boaventura Lopes, Pároco da freguesia de Nossa Senhora do Socorro, Praia,
a quem agradecemos.
216
A construção do discurso educativo
A dupla formação religiosa e laica inspirou a linguagem metafórica do Dr. João
Augusto Martins – que pertenceu ao corpo docente do Seminário –, ao desejar “que
haja nesse estabelecimento, como uma única revolução solar, a noite e o dia, que se
completem”. A noite, “a secção dos seminaristas, vestidos de togas negras,
elevando-se nas ideias do sacrifício...” e o dia, “a secção dos seculares, animada
pelo entusiasmo rubro da infância, aprendendo nas lutas pela vida as rudes lições do
dever” (1891, p. 153).
Figura 34. Alunos internos e externos do Seminário (1895)
Phot. de R. Bayao (Silva, 1899, p. 193270)
A notoriedade do Seminário, “um dos acontecimentos mais felizes da história
caboverdeana, porque é dêle que partiu a luz que mais intensamente iluminou Cabo
Verde”, está reflectida nas palavras do professor José dos Reis Borges:
“Foi, pois, ao calor vivificante da suave luz da fé e moral cristãs, de mistura com as
beneficentes luzes do a b c, de que eram portadores os padres saídos do Seminário de
S. Nicolau, que mais se formou, e de todo se depurou, o carácter franco, leal, pacífico
e hospitaleiro dos caboverdeanos. Mas o Seminário que também era Liceu, preparava
igualmente para a vida civil, e nesta qualidade aleitou ao seu úbero seio, filhos que cá
e lá fora o estão honrando nos diversos ramos da actividade humana, sobretudo nas
letras, na burocracia e no magistério.” (Boletim, n.º 45, Março de 1929, p. 198)
270
Ver nota anterior.
217
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
No período republicano, a frequência escolar ultrapassou a centena de alunos
internos e externos. Registou-me um crescimento dos efectivos escolares até 1914,
seguindo-se uma redução de efectivos (menos 25) com perdas nos alunos internos
(menos 32) e um ligeiro acréscimo nos alunos externos (mais 7).
Quadro 51 – Frequência escolar no Seminário-liceu de S. Nicolau – 1912/15
Anos
Alunos internos
Número
Alunos externos
Número
Percentagem
Número
Percentagem
1912
103
57
55,3%
46
44,7%
1914
135
75
55,6%
60
44,4%
1915
110
43
39,1%
67
60,9%
(Estatística Geral da População, 1913/14; mapa anexo a uma carta do Reitor, Dom José Alves Martins, 12 de
Outubro de 1915271)
Na época analisada, em consonância com a configuração demográfica272, o
Seminário era frequentado por uma maioria de alunos de “raça mista” (85,5%)273.
Gráfico 22 – Frequência escolar do Seminário, segundo a raça – 1912/1915
Branca
9,7
72,8
17,5
1912
271
Mista
Preta
0,0
3,0
87,4
96,4
9,6
3,6
1914
1915
Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
População mista em 1910: 61.2% (Fonte: Oliveira, 1998, p. 393).
273
Dados da Estatística Geral da População relativos à frequência do Seminário: 1912 – RB: 18 (17,5%); RM:
75 (72,8%); RP: 10 (9,7%); 1914 – RB: 13 (9,6%); RM: 118 (87,4%); RP: 4 (3,0%); 1915 – RB: 4 (3,6%); RM:
106 (96,4%); RP: 0 (0,0%). (Cx.ª 670, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN)
272
218
A construção do discurso educativo
De acordo com as fontes consultadas, os professores do Seminário leccionaram
as disciplinas, que se apresentam no quadro seguinte:
Quadro 52 – Disciplinas, classes e número de alunos do Seminário – 1912/1915
1912
Disciplinas e classes
Português, 1.º ano
Português, 2.º ano
Latim, 1.º ano
Latim, 2.º ano
Latim, 3.º ano
Francês, 1.º ano
Francês, 2.º ano
Inglês
Geografia
Literatura
Aritmética
Geometria
Introdução
Desenho
Teologia
Cantochão e Música
N.º Alunos
20
12
10
3
1
17
7
5
2
5
7
1
2
4
1
6
1914
Disciplinas e classes
Português, 1.º ano
Português, 2.º ano
Latim, 2.º ano
Latim, 3.º ano
Latim, 4.º ano
Francês, 1.º ano
Francês, 2.º ano
Nº Alunos
32
12
4
1
1
Geografia
28
13
9
Aritmética
5
Introdução
Desenho
Teologia
4
19
1
História
5
Teologia
1
1915
Disciplinas e classes
Português, 1.º ano
Português, 2.º ano
Latim, 1.º ano
N.º Alunos
20
12
12
Latim, 3.º ano
3
Francês, 1.º ano
Francês, 2.º ano
18
13
Geografia
Literatura
Aritmética
Geometria
9
6
8
5
Filosofia
4
(Estatística Geral da Província de Cabo Verde (1913, 1918); “Movimento de alunos de instrução secundária,
segundo a raça,” 30 de Setembro de 1915274)
Henrique Teixeira de Sousa, em comunicação apresentada por ocasião do
aniversário do Liceu de S. Vicente em Cabo Verde (Lisboa, 1992), recordou o
ensino ministrado no Seminário-Liceu, pela memória de Pedro Cardoso:
“Contou-nos Pedro Cardoso que muito dificilmente conseguiam obter a propaganda
republicana, acesa, ao tempo. Que era através das gretas do portão que lhes era
passado material subversivo, o qual liam nas camaratas, à luz duma vela. O mesmo se
passava com a circulação de determinados livros, adentro dos muros. Eça de Queiroz,
por exemplo, era um dos autores malditos. Quando entrava um livro desconhecido,
esse livro era primeiro examinado por alguém do corpo docente, antes de ser
autorizada a sua leitura. Daí que os jovens ali educados, saíam fortes em humanidades,
porém, ignorantes em matéria dos valores culturais da época. Dizia, por exemplo, o
Dr. Baltazar Lopes da Silva que o Latim que tinha aprendido no seminário foi latim
que lhe valeu até terminar o curso de Românicas. (...)
274
Cx.ª 670, 30 de Setembro de 1915. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
219
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A História Universal era outra disciplina que os seminaristas estudavam com
desenvolvimento, especialmente a Antiguidade Clássica (Grécia e Roma). Os antigos
alunos do Seminário, gostavam de citar episódios daquelas duas civilizações,
ignorando que alguns conseguiam franquear o círculo das humanidades e atingir a
contemporaneidade. Raros o conseguiam.” (1992, pp. 46-47)
Baltasar Lopes da Silva, no conto Muminha vai à escola, revive “um momento
emocionadíssimo” na aula de História:
“A este respeito, dizia eu, recordo uma aula em que ele [o professor] nos falava do 9
de Abril e de como os alemães vinham com grande poderio de homens e artilharia,
mas os soldados portugueses lá se foram aguentando o mais que era humanamente
possível nos campos da Flandres, e ali defenderam gloriosamente os «pergaminhos da
raça».
A certa altura, ele que era já velho, de cabeça toda branca, levantou-se no estrado
(coisa rara e pormenor que me ficou, porque os cónegos do Seminário passavam o
tempo todo da lição sentados na cátedra) e afiançou-nos que, se tivesse estado lá, se
não fosse com tiro era com a coronha da espingarda, se não fosse com a coronha da
espingarda era com a mão, com os dentes, com o que o diabo quisesse.
Foi um momento emocionadíssimo na aula – o velho alçado no estrado, os olhos
acesos, e brandindo o ponteiro, que as mãos enclavinhavam belicosamente. Quando
saímos, ainda possuídos pela violenta emoção recebida na aula de História, achámos (e
nisso recorremos às nossas noções de Estilística) que a figura do nosso velho, quando
nos fazia a narrativa do combate heróico e nos transmitia a lição de honra e
patriotismo que ela continha, era a imagem de D. Afonso Henriques, hirto sobre o seu
cavalo de guerra e de espada alta, desancando nos mouros.” (1997, p. 41)
João Lopes Filho considera que “com o advento da República ficou traçado o
destino do Seminário-Liceu de S. Nicolau e o prelúdio do seu desaparecimento”
(2002, p. 225).
O Decreto de 8 de Outubro de 1910275 determinava que “os membros das
companhias276, congregações, conventos, colégios, associações, missões ou casas de
religiosos pertencentes a ordens regulares serão também expulsos do território da
República” (art. 6º). Embora a Lei da Separação da Igreja e do Estado não tenha
tido aplicação imediata, na colónia277, o Seminário foi objecto de uma campanha
275
Diário do Governo, nº 4, 10 de Outubro de 1910, pp. 17/18.
Referência à Companhia de Jesus, a congregação religiosa mais penalizada, em virtude de ter sido retomada
a legislação setecentista que provocou a expulsão dos Jesuítas de Portugal: “continua também a vigorar como lei
da Republica Portuguesa a de 28 de agosto de 1767, igualmente promulgado sob o regime absoluto, que
«explicando e ampliando» a referida lei de 3 de Setembro de 1759, determinou que os membros da chamda
Companhia de Jesus, ou jesuitras, fossem obrigados a sair imediatamente para fora do país e seus domínios”
(Decreto de 8 de Outubro de 1910, art. 2º).
277
Em 1912, A Voz de Cabo Verde informava: “Na provincia, a Lei da Separação não foi posta em vigor, de
modo que a comissão [para tratar da reorganização da instrução primária] não sabia se devia contar com a
276
220
A construção do discurso educativo
persecutória. Após a instauração do regime republicano foi notória a desconfiança
das autoridades em relação a esta instituição, tendo sido “nomeado o administrador
do concelho da ilha de S. Nicolau, capitão Guilherme Reginald Morbey, para
syndicar a administração do Seminario de S. Nicolau, e designadamente averiguar
qual a proveniencia do deposito de 4:655$415 réis que, por conta da administração
do dito seminário, existia na casa «Pedro Coelho Serra & C.ª» de Lisboa”278
(Portaria n.º 2. Boletim Oficial, n.º 1, 7 de Janeiro de 1911, p. 1).
“Assim, pode e deve, até, no Seminário, encontrar-se muitos padres bons; ainda que
porém, todos os fossem, o Seminário não deixaria de ser, sempre, um fóco de infecção
monárquica, uma fábrica de explosivos liberticidas, uma alta escola de traição à Pátria,
um ninho de víboras que sugam o sangue da República, e que aguardam, anodinos, e
humildes, ocasião propicia de ferrar o dente no seio dos que o sustentam, de envenenar
e destruir o corpo sacrossanto da mãe Pátria; um aglomerado homogéneo, forte, que
não deixará um só momento de exercer uma acção prejudicial à humanidade,
instilando, na alma das gerações cuja educação lhe fôra confiada, o vírus dos
fanatismos e das profundas aversões à Liberdade. (...)
Há um ponto que não admite duas interpretações: o Seminário é irreconciliavel
inimigo da Republica.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 109, 15 de Setembro de 1913, p. 1)
O encerramento da instituição religiosa foi determinado pela Lei n.º 701, de 13
de Junho de 1917, marco do processo de laicização do ensino e da decadência da
“Atenas cabo-verdiana”:
“Artigo 1° São extintas na Província de Cabo Verde as Escolas Praticas de
Aprendizagem (…). É também extinta a oficina em S. Vicente, criada pelo decreto de
19 de Junho de 1900; e fica igualmente extinto o Seminário que funciona na Ilha de S.
Nicolau.
Art. 2° Em substituição das escolas, da oficina e do seminário, mencionados no artigo
anterior, é criado um liceu segundo as disposições da presente lei.
§ 1° Este liceu funcionará, provisóriameute no edifício do seminário extinto,
aproveitando-se o respectivo material escolar. No mesmo edifício, funcionarão as
aulas do curso profissional, consignadas nesta lei. (...)
importante verba destinada ao custeio do seminario, o que a colocava em embaraços para elaborar os
orçamentos com o encargo da instrucção primaria obrigatoria” (n.º 49, 22 de Julho, p.1).
278
Num auto de sindicância, o Vice-reitor do Seminário justificava “a proveniencia do deposito de 4:655$415
réis, (...) das economias resultantes da administração do subsidio com que é comtemplado o referido seminario
pelo cofre da bulla da cruzada e da das quantias de 120$830 réis e 46$665 réis, ou seja 467$495 réis que recebe
mensalmente do cofre da provincia para sustento dos alumnos gratuitos e para a meza dos supervisores e
creados” (Portaria n.º 19, 16 de Janeiro de 1911. Boletim Oficial, nº 5, 19 de Fevereiro de 191l, p. 35).
221
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Art. 10° No edifício do seminário extinto, e em que passará a funcionar o liceu, será
dado, sem prejuízo para a mais ampla higiene, instalação das aulas, museus,
laboratórios, biblioteca e ginásio, alojamento aos professores que, não tendo família,
assim o pretendam e bem assim aos alunos pobres que, naturais de outras ilhas, e sem
encargo algum para o Estado obtenham permissão do reitor para o fazer.” (Boletim
Oficial, n.º 27, 7 de Julho de 1917, p. 259)
Três meses depois, o Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde, de
1917279 instituía duas Escolas Primárias Superiores (art. 6º), sendo “uma na Praia e
outra em São Nicolau, no edifício do extinto seminário” (§ 1)280.
O aniquilamento da instituição religiosa desencadeou reacções, que oscilaram
entre manifestações de apologia e de indignação:
“Além disso, a modernização do ensino exigia a sua laicização, e Cabo Verde sente-se
com direito a possuir alguma coisa mais que um Seminário-Liceu, onde a educação,
desenvolvendo, é certo, o intelecto, contudo, por muito monacal e sossegada, e
sumamente teórica, não preparava homens para a luta pela vida, violenta e eriçada de
guêts-à-pens, que é necessário defrontar e vencer.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 336, 25
de Março de 1918, p. 1)
“De São Nicolau, a bela ilha hesperitana, (…) um brado de protesto281 digno dirigido a
todos os caboverdeanos, em geral, e aos poderes públicos, em especial, pelo despreso a
que foi votada a instrução naquela ilha que, ainda até poucos anos, era considerada a
Atenas caboverdiana, «si parva licet componere magnis», como diria o mavioso poeta
latino.” (O Correio d’África n.º 20, 15 de Dezembro de 1921, p. 1)
Volvidos oito anos, José dos Reis Borges acusava: ”Foi o Seminário extinto... e
contra essa extinção, que representa um gravíssimo êrro administrativo, para não
dizer crime tremendo, protestámos na imprensa caboverdeana; mas a nossa voz era
muito débil (...) Abafaram-no, infelizmente, as ondas do Atlântico...” (Boletim, n.º
45, Março de 1929, pp. 198-199).
279
Decreto nº 3.436, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 ao Boletim Oficial, nº 43, 30 de Outubro de 1917
(apêndice D).
280
Os professores do extinto seminário [passaram] a docentes da escola de Ensino Primário Superior de São
Nicolau com o vencimento de exercício de 390$” (art. 33º).
281
O apelo para uma subscrição com o fim de se subsidiar a Escola Primária Superior, que funciona no edifício
do Seminário, foi aprovado por unanimidade por representantes de todas as classes sociais de S. Nicolau,
reunidos em Sessão Magna, 12 de Dezembro de 1921 (O Correio d´África, n.º 20, 15 de Dezembro de 1921, p.
1).
222
A construção do discurso educativo
Extinto o Seminário-liceu, o edifício continuou a ser casa de educação. Foi
escola primária elementar, complementar e superior282, Instituto de Instrução
Secundária e Instituto Caboverdiano de Instrução.
A comunidade letrada e uma parcela significativa da opinião pública pugnaram
pela sobrevivência do Seminário, cujos caminhos se cruzavam com a disputa pela
liderança estratégica do arquipélago: S. Nicolau? Mindelo? Praia?
282
Apesar da medida que extinguiu o Seminário, “como providência transitória de equitativo benefício”, foi
permitido “que o internato que ali estava estabelecido funcione para os cursos de instrução primária
complementar e instrução primária superior (1ª classe sómente) ainda durante o corrente ano lectivo, findo o
qual será definitivamente encerrado” (Portaria n.º 414, 27 de Setembro de 1917. Boletim Oficial n.º 49, 8 de
Dezembro de 1917, p. 444).
223
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
7.2. Os Institutos de Instrução
Hoje, do nosso antigo Seminário
Só resta em seu conjunto o edifício,
Que se ergue como o altar dum sacrifício,
Mas de Mória passando a ser Calvário...
Da descrença dum tempo ingrato e vário
A sua queda é um eloquente indício
Que, ao menos, desse altar, a Deus propício
Suba a chama dum círio funerário.
E seja a gratidão, sentida e imensa,
De quantos já beberam LUZ e CRENÇA!
Os homens só pouparam os seus muros!
Passando o mar Vermelho a pé enxuto
Deram-lhe o novo nome de “Instituto”,
Legando o outro aos séculos futuros...
(José Lopes, Domus Mater283)
Instituto de Instrução Secundária
A reforma do sistema escolar (1918)284 – supressão do ensino primário superior e
extinção do liceu – marca mais um episódio da conturbada história da casa do Dr.
Júlio José Dias, que acolheu o Instituto de Instrução Secundária.
“Art. 17° O ensino secundário e normal será ministrado no Instituto de Instrução
Secundária que por este diploma é criado.
§ 1° Este Instituto funcionará provisoriamente e só enquanto a colónia não tenha
alojamento próprio noutra ilha, no edifício do extinto Seminário da Ilha de S. Nicolau,
aproveitando-se o respectivo material escolar, devendo também para lá remeter-se
todo o material pertencente ao Liceu Nacional de S. Vicente, que fica extinto por êste
diploma. (...)
Art. 18° O ensino secundário ministrado no Instituto constará das matérias do Curso
Geral dos Liceus da metrópole, abrangendo 5 classes, repartidas por duas secções,
283
José Lopes foi aluno do Seminário entre 1882 e 1887, dos dez aos quinze anos de idade (Silva, 1992.
Notícias, 18 de Março de 1992, p. 15).
284
Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde. Portaria n.º 474, 27 de Dezembro de 1918. Supl. n.º 14
ao Boletim Oficial n.º 52, 31 de Dezembro de 1918 (apêndice D).
224
A construção do discurso educativo
compreendendo a primeira secção as três primeira classes e a segunda as duas
seguintes.
§ único. Nas 2ª e 3ª classes haverá, alem das disciplinas liceais e em dias alternados,
uma cadeira prática de escrituração comercial, cadeira que também será ministrada
uma vez por semana na 5ª classe.”
O projecto do Instituto de Instrução Secundária foi efémero. Na casa do
Seminário funcionaram, com regularidade, as aulas de instrução primária, com
estatuto de “colégio partícular”:
Figura 35. Na casa do Seminário, “um colégio particular como qualquer outro”
(Nota anexa à carta do Vice-Reitor do Seminário, 30 de Junho de 1921285)
285
Cx.ª 670. Fundo da Secretaria Geral do Governo. IAHN.
225
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A imprensa foi o repositório crítico do abandono “dos magníficos prédios do
extinto seminário, que de dia para dia se vão deteriorando sem nenhuma utilidade,
desaproveitados”. O articulista de O Manduco argumentava: “abandona-los aos
ratos e à consumação do tempo é uma cousa que nos repugna escrever; mas utilisalos para a instalação do Liceu Nacional é um acto benemerente de govêrno; é uma
prova de bom senso, de claro espírito de economia e nobre amor à instrução” (n.º 2,
1 de Setembro de 1923, p. 2).
Instituto Cabo-verdiano de Instrução
No ano de 1925, “nos edifícios e propriedades do Seminário” foi criado outro
instituto, vocacionado para a instrução primária e secundária:
“Artigo 1º É criado em S. Nicolau e nos edifícios e propriedades do antigo seminário,
que o fim o Governo da colónia cede sem qualquer renda, o Instituto Caboverdiano de
Instrução, com internato e externato, onde se professarão as disciplinas do curso geral
dos liceus metropolitanos e com a adopção dos programas oficiais, além da instrução
primária, segundo as leis vigentes na colónia.” (Portaria n.º 58. Boletim Oficial, n.º 30,
25 de Julho de 1925, p. 224)
Era uma escola religiosa dirigida, inicialmente, pelo bispo da diocese e, mais
tarde, pelo“cónego professor mais antigo, António José Bouças”. Os professores
tinham pertencido ao corpo docente do extinto Seminário (Portaria de 6 de
Novembro de 1925) 286.
Foi reconhecida a necessidade de se criar “um internato onde as crianças melhor
possam instruir-se e educar-se”, considerando que “tambêm das importantes e ricas
colónias caboverdianas da América do Norte e Guiné, se têm representado no
mesmo sentido” e que o “Estado possue na ilha de S. Nicolau importantes edifícios
que se apropriam absolutamente para o fim em vista e que de nada estão servindo
desde que foi extinta a Escola Primária Superior, que ali funcionava”287.
O regulamento do Instituto Caboverdeano de Instrução (Boletim Oficial, n.º 47,
21 de Novembro de 1925, p. 356) dá-nos interessantes informações sobre a vida
quotidiana de um internato:
286
Foi nomeado director o Cónego António José Bouças, ex-reitor do Seminário-Liceu. Pela mesma portaria
foram nomeados professores: os cónegos Adriano Reimão de Serpa Pinto e José Correia e os cidadãos, Luís de
Almeida Gominho, António José St. Aubyn e José da Encarnação Amaral (Portaria de 6 de Novembro de 1925.
Boletim Oficial, nº 45, 7 de Novembro de 1925, p. 348).
287
A Portaria n.º 22 introduziu alterações ao diploma que criou o Instituto Caboverdeano de Instrução (Boletim
Oficial, nº 41, 10 de Outubro de 1925, pp. 309-310).
226
A construção do discurso educativo
“O enxoval de um aluno:
Art. 6º Cada aluno interno terá, pelo menos, o seguinte enxoval: 8 camisas de dia, 3
colarinhos de gôma, 6 colarinhos moles, 3 camisas de dormir, 6 pares de ceroulas para
banho, 4 camisolas, 12 pares de meias, 6 toalhas de cara, 2 toalhas de banho, 6
guardanapos, 1 fato preto, 2 fatos brancos de cotim, 3 fatos de côr, de kaki ou cotim, 2
pares de botas ou sapatos para sair, 2 pares de botas ou sapatos para recreio, 1 par de
sapatos para andar por casa, 1 escova de fato, 1 escova para os dentes, 2 pentes, sendo
um miúdo, 1 espelho pequeno, 1 calçadeira, 1 tesoura para unhas, 1 catre de linhagem
ou de ferro, tendo este enxerga, colchão e ambos travesseiros e travesseirinhos e 4
fronhas, 6 lençois, 2 cobertores de chita e 1 de lã, 1 bacia de cama, 1 lavatório de ferro
com bacia e jarro de ferro esmaltado e 1 talher completo.
A dieta alimentar:
Art. 7º Haverá 3 refeições diárias:
1ª Até ás 8 horas, pequeno-almoço composto de café ou chá com ou sem leite,
conforme o haja ou não no mercado.
2ª Até às 11 horas e meia horas, almoço composto de 2 pratos, sendo, sempre que
possível, um de peixe.
3ª Até às 17 e meia horas, jantar composto de um prato de sôpa e dois pratos variados,
sendo um de legumes e sobremesa de fruta sempre que se possa adquirir no mercado.”
(Boletim Oficial, n.º 47, 21 de Novembro de 1925, p. 356)
“Internato para meninas
Recebem-se alunas em idade escolar que pretendam frequentar o Instituto Caboverdiano de
Instrução estabelecido nesta ilha. Para informações dirigir-se a Maria da Conceição St’
Aubyn – S. Nicolau.”
(Boletim Oficial, nº 46, 14 de Novembro de 1925, p. 354)
No ano lectivo de 1925/26, o Instituto tinha 57 alunos, sendo 6, de instrução
primária e 51, de instrução secundária. Apesar de aceitar meninas, a maioria dos
alunos era do sexo masculino (82,4%).
A caraterização dos alunos de instrução primária e secundária, em função dos
indicadores de frequência (género, raça e aproveitamento escolar), foi apresentada
no quadro “Movimento dos alunos no ano lectivo de 1925-1926”, publicado no
Boletim Oficial n.º 39, 25 de Setembro de 1926.
227
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Figura 36. Corpo discente do Instituto Caboverdeano de Instrução
As vicissitudes da casa do Seminário não terminaram com a fugaz história dos
Institutos – o Instituto de Instrução Secundária e o Instituto Cabo-verdiano de
Instrução.
O futuro reservar-lhe-ia um destino ingrato, transformando-o em prisão. Em
1931 o edifício foi adaptado para receber uma leva de militares e civis portugueses
que se tinham revoltado contra Salazar288. Foi então oficialmente designado
“Campo de Concentração dos Deportados Políticos” (Oliveira, 1998, p. 82).
João Nobre de Oliveira conclui com um desabafo: “Triste fim para um edifício
que fora antes Templo do Saber! (Mas revelar-se-ia um campo «benévolo» e
insuficiente. Poucos anos depois o regime construiria outro de raiz, no Tarrafal da
ilha de Santiago)”.
288
“Revolta da Madeira”, no ano de 1931, “sob o comando de oficiais que aí se encontravam deportados, e que
conseguiram resistir durante quase um mês” (A. H. de Oliveira Marques, 1986, p. 368). Um núcleo de exilados
– de que se destacaram o Tenente Manuel Ferreira Camões e o Capitão Sílvio Pélico – apelou à revolta das
unidades militares do continente, Açores e colónias. No rescaldo da revolta, os dois militares foram exilados em
Cabo Verde, onde se radicaram (informação do Dr. Carlos Alberto Mendes Fonseca).
228
A construção do discurso educativo
7.3. Finalmente, o Liceu
Liceu na Praia
A Praia foi dotada de um Lyceo Nacional289 (1860), dois anos após ter sido
elevada a cidade. A abertura solene das aulas efectuou-se, com desusada pompa no
meio de salvas de canhão, no dia 7 de Janeiro de 1861, nos Paços do Concelho,
onde o Liceu ficou instalado” (Silva, 1992, pp. 14-15).
“Ficam estabelecidas na cidade da Praia, e reunidas em um mesmo edifício para esse
fim adequado, as seguintes Cadeiras já existentes: Ensino Primário – Latim –
Philosophia Racional e Moral – Teologia – ás quaes se addicionarão as de Francez –
Inglez – Desenho – Mathematica Elementar – Rudimentos de Náutica.” (Art. 1º,
Circular nº 313 – A, 15 de Dezembro de 1860)
No ano de 1861 contava com a frequência de 35 alunos e, no ano seguinte, a
frequência reduziu-se a 23 alunos290. A crise de ensino (com falta de professores291)
explica a sua cessação formal em 1867.
No início do século XX, por ocasião da visita do Príncipe Dom Luís Filipe à
colónia de Cabo Verde, as crianças da Praia292 pediram ao Príncipe a criação de um
liceu:
“Augusto Príncipe! Sereníssima Alteza!
Escutae a voz da innocencia e attendei, benigno à sua supplica que representa o mais
vehemente desejo, mais lídima aspiração do povo caboverdeano de cujos sentimentos
são interpretes esses pequeninos seres que ora se curvam perante vós, pedindo-vos a
luz, implorando-vos o pão de espírito. (...)
Por isso, Sereníssimo Senhor! Os abaixo assinados, convictos de que os gastos com a
instrução nacional nunca são exaggerados de que prestam um valioso serviço ao paiz
que tanto amam, impetram o alto patrocínio de Vossa Alteza Real para que n’esta
Cidade da Praia seja criado um Lyceu (...), contribuindo, ao mesmo tempo, para
justificar o aphorismo: «que um paiz vále o que vále a sua instrucção». (Seguem
assignaturas de creanças)” (Cabo Verde, 1907, pp. 1-2).
289
Circular nº 313-A, 15 de Dezembro de 1860. Boletim Oficial, n.º 83, de 22 de Dezembro de 1860.
Acolheu também alunos de instrução primária (1861:108; 1962: 119). Boletim Oficial, nº 10, 21 de Março de
1863; Boletim Oficial, nº 43, 7 de Novembro de 1863.
291
Demitiram-se os professores de Francês e Inglês (Portaria, 4 de Dezembro de 1861. Boletim Oficial nº 47, 7
de Dezembro de 1861) e de Latim (Portaria, 24 de Julho de 1863. Boletim Oficial nº 4, 7 de Fevereiro de 1863).
Com a criação do Seminário-Liceu de S. Nicolau “foram chamados alguns professores (…) para desempenhar
as funcções do seu cargo no seminário creado” (Boletim Oficial nº 4, 26 de Janeiro de 1867).
292
O pedido para a abertura de um liceu na cidade da Praia foi elaborado pelo cónego Duarte da Graça
(Oliveira, 1998, p. 233).
290
229
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Projecto sociopolitico
Em nossa opinião, o acesso a níveis elevados de saber é um dos traços da caboverdianidade. O ensino liceal – o patamar do conhecimento mais elevado e possível
nas ilhas – era considerado um elemento fundamental de progresso.
“Como poucos são aquelles que dispõem de meios sufficientes para enviar seus filhos
para educar, e muitos os que os educariam dentro do archipelago, é obvio que, além
das escolas primarias, deveria tambem crear-se um Lyceu Provincial de proporções
modestas. (...)
A creação do Lyceu acceleraria o progresso e o desenvolvimento local, vulgarisando
os conhecimentos humanos na provincia, por meio de um curso facil, mas completo,
adequado às necessidades do paiz.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 7, 12 de Abril de 1911,
p. 2).
“Cabo Verde precisa dum liceu. Já o devia ter, há muito tempo. Não é justo nem
assenta bem no decôro nacional que a mais genuinamente portuguêsa de todas as
Colonias, habitada por um povo inteligente, dócil, honesto e bom, não tenha ainda esse
melhoramento, morando além disso tam proximo da Mãe Pátria. (...)
Cabo Verde pede a instancias a criação dum liceu em condições de poder satisfazer as
suas legítimas aspirações. É um pedido justissimo, um direito incontestavel, uma
imperiosa necessidade. Todos o reconhecem.” (José Lopes. A Voz de Cabo Verde, n.º
89, 17 de Março de 1913, p. 2)
O movimento cívico, promotor do ensino liceal, ultrapassou a retórica dos
jornais e traduziu-se em iniciativas da sociedade civil e dos municípios. O projecto
de Curso de Ensino Secundário, na ilha Brava, concretizou uma dessas iniciativas:
“É creada, na mesma povoação [de São João Baptista], uma escola de instrucção
secundaria para o sexo masculino, regida por professor diplomado, habilitado a
leccionar as materias que constituem o 1º, 2º e 3º anno dos lyceus da metropole.
O curso da escola de instrucção secundaria é destinado à instrução e educação dos
filhos dos municipes da ilha Brava, podendo, comtudo, a falta do número de alumnos,
ser preenchida com estranhos a este concelho.
O curso de escola de instrucção secundaria será professado em tres annos e constituido
pelas disciplinas do 1º, 2º e 3º anno dos lyceus da metropole.” (Boletim Oficial, n.º 27,
27 de Abril de 1912, p.159)
O Colégio Esperança293, em Mindelo, era uma instituição particular “de educação
e ensino neutro“ (art. 1º, Estatutos). Contemplava “o curso geral dos liceus, pelos
programas da metrópole, sendo porêm mais intensos os exercícios práticos de
composição e conversação em Português, Inglês e Francês, mais vasta a Educação
293
Na Parte II, Cap. 3, analisamos o curso de instrução primária do Colégio Esperança (págs. 121/22).
230
A construção do discurso educativo
Física e Cívica, e mais prolongada e variado o ensino artístico e profissional a
ambos os sexos” (art. 2º). Dividia-se em duas secções, compreendendo a 1ª
(inferior), os três primeiros anos, e a 2ª (média), os últimos dois anos, ou classes do
curso geral dos liceus oficiais” (Boletim Oficial, n.º 52, 26 de Dezembro de 1914, p.
474).
A Comissão Municipal de São Nicolau, cônscia do eminente encerramento do
Seminário-liceu, preparou o caminho para a instalação do ensino liceal laico:
“Nesta sessão compareceram uma grande parte dos munícipes deste concelho e pelo
cidadão Nicolau Ramos, escolhido de entre eles, foi dito que ao saberem que há da
parte do Governo a intenção de criar um Liceu nesta Província, calcularam que tal
instituição pode trazer como consequência a extinção do Seminário-Liceu que se acha
estabelecido nesta ilha, onde tem prestado valiosos beneficios e onde o seu
desaparecimento importaria um grande prejuízo. Nestas circunstâncias se apresentam a
Exma. Comissão Municipal com o fim desta corporação, na qualidade de representante
do povo, rogar ao Gôverno da Provincia queira conseguir do Governo da Metrópole
que a não poder subsistir o Seminário-Liceu desta diocese e a ter de ser substituído por
um Liceu, própriamente tal, o novo estabelecimento fique colocado nesta ilha.” (O
Futuro de Cabo Verde, n.º 17, 31 de Agosto de 1913, p. 2)
Augusto Vera-Cruz, senador pelo círculo de Cabo Verde (1912 a 1926),
apresentou, no mesmo ano, um projecto de liceu e a proposta de extinção do
Seminário e das Escolas de Aprendizagem:
“Por esse projecto – artigo 1º – serão extinctas as Escolas de Aprendizagem e o
Seminario de S. Nicolau, sendo criado em sua substituição, e naquela ilha, um liceu de
organização idêntica à que, pelo Decreto de 23 de Agosto de 1906, foi mandado
vigorar para os liceus instituídos em Gôa e em Macau. O curso professado será de
cinco anos e compreende – artigo 2º – as seguintes disciplinas: Língua e Literatura
Portuguesa, Língua Francesa, Língua Inglesa, Língua Latina, Geografia e História,
Matemática e Geometria, Escrituração e Contabilidade Comercial, História Natural,
Química e Física, Desenho.
Estamos pois em face de uma iniciativa de um ilustre filho de Cabo Verde, que por
todos os meios ao seu alcance se tem esforçado, com uma perseverança e actividade
que o honram, por ser útil à sua província. A sua ex.ª apraz-nos patentear o quanto o
arquipélago se tem interessado pelo seu trabalho, acompanhando a sua acção
parlamentar.
Vejamos, analisando rapidamente o projecto, quais são as vantagens que advirão do
estabelecimento do liceu em S. Nicolau:
a) Aproveitarem-se, economicamente, os actuais professores do seminário;
b) Existir já um edifício quanto possível apropriado ao ensino liceal;
c) A tradição escolar da ilha;
d) A vida barata e a benignidade do clima.
231
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Agora os inconvenientes: As dificuldades que existem no recrutamento de professores,
que sejam funcionários do Estado, estranhos à vida eclesiástica.” (O Futuro de Cabo
Verde, n.º 10, 3 de Julho de 1913, p.1)
A discussão pública do projecto deu voz a duas correntes de pensamento, em
torno da localização do liceu (pólo de desenvolvimento) e da natureza curricular
(liceal, clássico versus técnico, profissional).
A candidatura de S. Nicolau a sede do liceu laico teve o apoio do município e
dos naturais da ilha, com ênfase para os intelectuais formados no Seminário.
Entretanto, surgiram candidaturas das urbes da Praia e de Mindelo.
“Põe-se agora, em vista da resolução do Sr. Dr. Almeida Ribeiro as seguintes
questões: onde será colocado o liceu, e a quem será confiado o ensino?
A nosso vêr, ainda que tenhamos já ouvido opinião divergente, que não nos convence,
o liceu deverá ser colocado na Praia. As razões que militam a favor desta ilha são:
a) É onde está a capital da província;
b) A relativa barateza da vida;
c) A de maior população.
Pode-se, porêm, opinar que o clima é mau e depauperante.
Quanto à malignidade do clima passou à história. Desde que se começou a tratar, a
valer, do saneamento da cidade, êsse carácter doentio, que apresentava, desapareceu.
O clima é, sem dúvida depauperante e sôbre tudo para os que não nasceram aqui; mas
não é menos certo que a população escolar filha das restantes ilhas, indo a férias,
encontrará nos dois meses do encerramento do liceu, o tempo preciso para adquirir
novas energias para a labuta do novo ano lectivo.” (O Independente, n.º 36, 2 de Maio
de 1913, p.3)
“É evidente que houve factores de ordem económica que determinaram, em última
análise, a implantação do liceu na ilha de S. Vicente, entre eles o desenvolvimento da
navegação a vapor, a necessidade de telecomunicações rápidas e eficientes, a própria
implementação do comércio, o que se explicava pela existência do Porto Grande,
estrategicamente situado, na conjuntura mundial de então, nas rotas em demanda de
portos situados nos quatro continentes – Europa, África, América, e Ásia. Embora a
abertura do Canal Suez, em 1869, tivesse roubado muita navegação ao Porto Grande,
um número avultado de barcos continuava a fazer a rota do Cabo, o que os obrigava a
escalar a ilha de S. Vicente, para reabastecimento.” (Silva, 1992, p. 14)
O ensino secundário oscilava entre dois paradigmas: (1) o liceal, associado à
“alta cultura” e “ampla sciência” para “gente de carteira, de pena, cérebros cultos,
intelectualidade preparadas” e (2) o técnico-profissional conveniente para as
colónias e o bastante “para servir e amar os patrões”.
232
A construção do discurso educativo
“Não são precisos liceus nas colónias, tal norma inalteravelmente se tem seguido,
como se os povos, quaisquer que êles sejam, desde os que orientam e dirigem as
sociedades, até os mais atrazados, não fossem dignos todos, uns de intensificar a alta
cultura que possuem, e outros para enveredar pela estrada segura e ampla da sciência e
da concorrência. Mas não; para as colónias convém apenas escólas praticas de ensino
profissional, cabendo aos outros povos, aos que disfrutam, o dever de aproveitar os
seus trabalhos. (...)
Sim, já que não se pode criar, nestas ilhas, um liceu, venham, pelo menos, escolas de
artes e ofícios, que deve ser o mesmo. Gente de carteira, de pena, cérebros cultos,
intelectualidades preparadas; doutores, oficiais, chefes, patrões, comités, tudo nos
pode vir de fora e, é tontice quererms para Cabo Verde, um liceu. A nós basta-nos
saber ler, escrever e contar. Para servir e amar os patrões é o bastante. E já não é máu.
Um pouco aviltante, e nada mais.” (O Futuro de Cabo Verde, n.º 10, 3 de Julho de
1913, p.1)
Em contraste com a valorização social do liceu, as “escolas de artes e ofícios”
respondiam a aspirações menos “elevadas” da população e a cargos de
subalternidade “que ficam bem aos homens da nossa raça e côr” (A Voz de Cabo
Verde, n.º 212, 20 de Setembro de 1915, p.2).
Liceu Nacional de Cabo Verde
A Voz de Cabo Verde, 2 de Julho de 1917, anunciava que “graças ao esforço
inteligente e ao patriotismo dos seus representantes no Parlamento, Cabo Verde foi
dotado de um Liceu!” (editorial). O liceu era apresentado como “um instituto de
educação laica, livre do espírito religioso, em todos os tempos, caracterizadamente
convenientista e despótico”. A primeira página do periódico reproduzia a Lei n.º
701, de 13 de Junho de 1917294, de que transcrevemos um excerto:
“Art. 2° Em substituição das escolas, da oficina e do seminário, mencionados no artigo
anterior, é criado um liceu segundo as disposições da presente lei.
§ 1° Este liceu funcionará, provisoriamente no edifício do seminário extinto295,
aproveitando-se o respectivo material escolar. No mesmo edifício funcionarão as aulas
do curso profissional, consignadas pela lei.
Art. 3° O ensino deste liceu divide-se em dois cursos: geral e profissional.
§ 1° O curso geral é idêntico ao curso geral dos liceus, 1ª secção, completado pelo
ensino de trabalhos manuais, como se vê no seguinte quadro:
294
Boletim Oficial, n.º 27, 7 de Julho de 1917, p. 260.
O jornal explicava que “na impossibilidade de ser presentemente construído um edifício adequado para o
liceu, que a lei determina esse aproveitamento [do Seminário], para que, o mais breve possível, talvez no
princípio do próximo ano lectivo, entre esse estabelecimento de enino em laboração” (n.º 300, 2 de Julho de
1917, p. 1).
295
233
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Lições por semana
Disciplinas
Português
Francês
Inglês
Geografia e História
Sciências Físicas e Naturais
Matemática
Desenho
Educação Física
T. Manuais em cartão, madeira e ferro
1ª classe
ou 1º ano
5
4
-
3
3
5
3
3
1
27
2ª classe
ou 2º ano
4
3
4
3
2
4
3
3
1
27
3ª classe
ou 3º ano
3
3
4
2
4
4
3
3
1
27
Total
12
10
8
8
9
13
9
9
3
81
Art. 4° O ensino neste liceu será ministrado por seis professores e dois mestres de
oficina escolhidos em concurso documental, realizado no Ministério das Colónias,
acumulando os professores o ensino das disciplinas pela seguinte forma:
Português, Geografia e História – l professor:
Francês e Inglês – l professor;
Matemática, Física geral, materiais de construção e suas aplicações – l professor:
Sciências físicas e naturais. Higiene e Educação física – l professor;
Rudimentos de agricultura, Arboricultura e silvicultura, Escrituração e contabilidade
agrícola, comercial e industrial – l professor;
Desenho liceal e industrial, Trabalhos manuais, estudo de modelos e direcção de
trabalhos oficinais – l professor.”
A matriz curricular representava uma solução de compromisso entre as vias
liceal e técnica do ensino secundário296. Na realidade foram ministradas, apenas, as
disciplinas do modelo liceal297. A referência era o “liceu da metrópole”, tendo-se
estabelecido “que o diploma do curso deste liceu [desse] ingresso à matrícula, no 4°
ano do curso geral dos liceus na metrópole” (art. 8º).
A acção parlamentar de Augusto Vera-Cruz foi decisiva para a instalação do
liceu na cidade de Mindelo. Inconformado com a determinação legal da sua
localização na ilha de S. Nicolau, removeu um dos alegados obstáculos à instalação
do liceu na ilha do Porto Grande – a inexistência de edifício adequado – cedendo a
sua própria casa, um palacete no centro da cidade298.
296
Disciplinas de cariz técnico: Rudimentos de Agricultura, Arboricultura e Silvicultura, Escrituração e
Contabilidade Agrícola, Comercial e Industrial; Desenho Liceal e Industrial, Trabalhos Manuais, Estudo de
Modelos e Direcção de Trabalhos Ofícinais.
297
Cf. Horário do Liceu Provincial, publicado no Boletim Oficial, n.º 49, 8 de Dezembro de 1917, p. 444.
298
Onde funcionou, mais tarde o Grémio Recreativo, a Rádio Barlavento e hoje é o Centro Nacional de
Artesanato (Oliveira, 1998, p. 398).
234
A construção do discurso educativo
O Plano Orgânico da Instrução Pública (1917)299 enquadrou o liceu no sistema
educativo e legitimou a sua instalação na cidade de Mindelo.
“Art. 11° O ensino secundário é ministrado no Liceu Nacional, criado pela Lei n.º 701,
de 13 de Junho de 1917, com sede em S. Vicente.
§ único O curso liceal será a reprodução exacta do curso geral dos liceus
metropolitanos, com exclusão do ensino de alemão.
Designação
Categoria
1 Reitor
Professores efectivos:
2 1° grupo – Português e Latim
1 2° grupo – Português e Francês
1 3° grupo – Inglês
1 4° Grupo – Geografia e História
1 6° grupo – Sciências Naturais
1 7° Grupo – Sciências Fisico-Quimicas
1 8° grupo – Matemática
1 9° grupo – Desenho e Geometria
1 Professor de Ginástica
1 Secretário
2 Guardas
3 Serventes
600$
600$
600$
600$
600$
600$
600$
600$
600$
150$
Vencimentos
Exercício
600$
600$
600$
600$
600$
600$
600$
600$
300$
120$
150$
Total
1.200$
1.200$
1.200$
1.200$
1.200$
1.200$
1.200$
1.200$
900$
120$
300$
180$
(Quadro dos professores e mais pessoal do Liceu Nacional e seus vencimentos300)
O Liceu Nacional de Cabo Verde foi inaugurado no dia 19 de Novembro de
1917, em cerimónia que contou “com a assistência de S. Ex.ª o Governador301,
Câmara Municipal, autoridades civis e militares, representantes do comércio e
indústria, funcionários públicos, professores, alunos matriculados e outras pessoas”
(Boletim Oficial, nº 47, 24 de Novembro de 1917, p. 426). Na sessão solene foram
evocados o Senador Augusto Vera Cruz, que “com uma dedicada pertinácia de
quatro anos, conseguiu que o Parlamento da Republica votasse a lei n.º 701” e o
Ministro das Colónias, Comandante Ernesto Vilhena, que “reconheceu que Cabo
Verde, a mais antiga jóia ultramarina e a mais genuinamente nacional das colónias
portuguesas, merecia bem mais do que um liceu até à terceira classe”. O liceu abria
pobremente em “casa alugada, pouco mobiliário escolar, nenhum material
didáctico”, mas com “bons professores”, tendo sido anunciada a escolha de um
“terreno para o liceu302”.
299
Decreto nº 3.345, 8 de Outubro de 1917. Supl. nº 18 Boletim Oficial, n.º 43, 30 de Outubro de 1917, pp. 1-4
(apêndice D).
300
Anexo ao Decreto n.º 3.345, 8 de Outubro de 1917.
301
Abel Fontoura da Costa (1915-1918).
302
Sobre a área do terreno para o liceu (120X110 metros, ou seja uma área de 13:200 metros quadrados), o
Governador esclareceu: “admitindo que os edifícios possam abranger 2:500 a 3:000 metros quadrados, ainda
235
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Mal tinha nascido, foi legalmente extinto (Plano Orgânico da Instrução Pública
de Cabo Verde, de 1918)303 e substituído por um simulacro do Seminário, o
Instituto de Instrução Secundária. O Dr. Mário Ferro, representante da ilha de S.
Vicente no Conselho do Governo da Colónia304, contestou esta deliberação e
defendeu a permanência do liceu em Mindelo.
“O outro êrro concretiza-se em se ter votado a extinção do Liceu Nacional de Sam
Vicente, embora o tivessem cometido, partindo do princípio falível de que a
transferencia do ensino secundário para a ilha de Sam Nicolau é de caracter provisório.
Uma vez estabelecido o Instituto de Instrução Secundária na ilha de Sam Nicolau,
dada a nossa proverbial tendencia para deixar as cousas onde estão, nunca mais de lá
sairá! Nem o regime de internato, nem o aproveitamento temporario do edifício do
extinto Seminario-Liceu eram razões de seduzir, desde momento em que quiséssemos
ponderar as diversas razões de ordem pedagógica e moral que aconselhavam a
conservação do Liceu Nacional em Sam Vicente. Continuamos a afirmar que a ilha de
Sam Vicente é o centro naturalmente indicado para a instalação do Liceu, já por ser o
lugar onde as crianças podem adquirir o desenvolvimento de espírito necessário, já
porque ali se pode imprimir ao ensino das línguas vivas uma feição prática, já porque é
a ilha que mais comunicação tem com as restantes ilhas do arquipélago.” (A Voz de
Cabo Verde, n.º 342, 6 de Maio de 1918, p. 1)
Esta tese contrariava a posição expressa na acta da 6ª sessão do Conselho do
Governo, de que transcrevemos um excerto:
“Estabelecer um liceu em Sam Vicente, cidade cosmopolita, com a depravação
inerente a tais meios, esgôto das depravações e perversões da marinhagem de todos os
países, é lançar as crianças no seio duma cloaca que não tardaria a infecta-las; o
resultado era de prever: as farmácias a breve trecho povoam-se de liceais infectados
pelo vírus venéreo que é o maior propulsor da decadência duma raça.
É preciso, pois, desvia-lo daqueles meios de prostituição e pelo regime de internato
proporcionar-lhes uma educação completa: fazer de rapazes acanhados, homens fortes
física e moralmente, de vontade enérgica, e aptos a triunfarem na vida. É preciso
empregar todos os meios para uma educação forte e criteriosa, bem para caracteres
nêste meio, que como todos os tropicais imprime aos seus habitantes um feitio
indolente e contemplativo.” (A Voz de Cabo Verde, n.º 345, 27 de Maio de 1918, p. 2)
nos ficará mais de um hectare, para jogos e desportos” (Boletim Oficial, nº 47, 24 de Novembro de 1917, p.
426).
303
Portaria nº 474, 27 de Dezembro de 1918. Supl. nº 14 ao Boletim Oficial, nº 52, 31 de Dezembro de 1918,
pp. 1-5 (apêndice D).
304
Em 1917, o advogado Mário Ferro e o comerciante António Miguel e Carvalho foram eleitos para
representar a Ilha de São Vicente no Conselho do Governo (Oliveira, 1998, p. 731).
236
A construção do discurso educativo
Mário Ferro, em defesa do liceu, afiançava que “o perigo do excesso de
diplomados não é de recear [porque] os quadros dos serviços públicos são até certo
ponto reduzidos, e necessariamente teem de ser preenchidos, porque o funcionário
publico longe de ser o ente parasitário que se imagina é elemento tão preciso ao
regular o funcionamento do organismo social” (A Voz de Cabo Verde, n.º 341, 29 de
Abril de 1918, p. 1).
Um grupo de 68 cidadãos mindelenses – proprietários, maiores contribuintes,
comerciantes e trabalhadores – subscreveram uma petição à Câmara Municipal para
a continuidade do liceu na cidade, “perfeitamente indicada para a instalação
conveniente do Liceu, tanto mais que o publico se encontra disposto para todos os
sacrifícios, afim de que se mantenha um estabelecimento em S. Vicente (...), a mais
conhecida de todas as suas irmãs, e onde nos tempos normais tocam estrangeiros de
todo o mundo” (26 de Abril de 1918305).
Figura 37. Estação Telegráfica – S. Vicente, cerca de 1910
Ed. Bazar Central Bonucci & Frusoni. (Loureiro, 1998, p. 18)
305
Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
237
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A sociedade mindelense impôs o seu querer. Para se compreender melhor a
importância “da cidade do Porto Grande, é preciso ter em conta que era no Mindelo
que se encontravam os melhores empregos, caso do Telégrafo Inglês (Western
Telegraph Company), do Italcable, da maior Alfândega, da sede do BNU, – depois
transferido para a Praia – das maiores casas comerciais, tanto nacionais, como
estrangeiras, etc.” (Oliveira, 1998, p. 394).
A casa cedida pelo Senador Augusto Vera-Cruz para a instalação do liceu foi
uma solução provisória. Três anos decorridos, o reitor, Henrique Owen Pinto
advertia:
“O Liceu não tem edifício próprio; quando o proprietário exigir êste, ficaremos
desalojados. Por todas as formas, oficial e extra oficialmente, tenho tentado, desde que
me foi entregue a direcção desta escola, obter uma instalação destinada
exclusivamente ao seu funcionamento. Grandes dificuldades tém impedido o Govêrno
de o construir; não monetárias, rendimentos têm a Instrução; mas dificuldades de
materiais, mão-de-obra e outras. E não há edifício. Um conheço eu, do Estado. Não é o
ideal, mas, provisoriamente, satisfazia; a residência dos oficiais da 3ª zona.
Inteiramente isolada do Quartel, utilizando, apenas, a parada exterior, para recreio dos
rapazes, era aproveitável.” (Discurso, 5 de Outubro de 1920306)
Figura 38. Edifício onde o Liceu e os Correios foram instalados
(Loureiro, 1998, p. 26)
306
Cx.ª 666. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
238
A construção do discurso educativo
O Reitor explicava o aumento de reprovações “pela desmoralização que os
alunos têm sofrido pelas más condições da instalação desta escola” (relatório de
actividades, 1922/23307), acrescentando que “os alunos devem ter um páteo interior
onde se divirtam nos intervalos das aulas sob as vistas dos professores”, como
tinham “na antiga casa ocupada pelo liceu”. O relatório de actividades refere, ainda,
que “continuam sendo interinos os professores do Liceu”, acrescentando “é uma
escola bem provisória!...” O reitor Owen Pinto propunha “a nomeação definitiva
dos professores, para dar a esta instituição uma estabilidade que ela ainda não
possui” (idem).
Quadro 53 – Liceu Nacional de Cabo Verde: professores e disciplinas – 1919
Professores
1.º Tenente Henrique Owen Pinto
Dr. João Gualberto Pinto
Dr. Jaime Tomé
Simão José Barbosa
Alberto Atílio Leite
Vicente António Martins
Alferes Artur Rebelo Almeida
Cadeiras que os professores regem
2ª classe
Inglês e Desenho
Sciências Naturais e Desenho
Sciências Naturais
Português
Português e Matemática
Francês
Francês
Geografia
Geografia e Matemática
Ginástica
Ginástica
1ª classe
3ª classe
Inglês e Matemática
Sciências Naturais
Português e Latim
Desenho
Francês e História
Geografia
Ginástica
(Boletim Oficial, n.º 47, 22 de Novembro de 1919, pp. 417-418)
Quadro 54 – Liceu Nacional de Cabo Verde: professores e disciplinas – 1921
Professores
I classe
II classe
III classe
IV classe
1.º Ten. Henrique Owen
Pinto
Dr. João Gualberto Pinto
Português e
Sciencias Naturais
Inglês
Sciências Naturais
Dr. Dario Mendes Calisto
Simão José Barbosa
Alberto Atílio Leite
Vicente António Martins
Artur Rebelo de Almeida
Acácio J. Rodrigues Lage
Geografia
Mat. e Ginástica
Desenho, Francês
Ginástica
Inglês
Sciências Naturais e
Físico-Química
Português e Latim
Francês
Geografia e História
Desenho e Ginástica
Matemática e
Ginástica
Inglês e Matemática
Sciencias Naturais e
Físico-Química
Português e Latim
Francês
Geografia e História
Desenho e Ginástica
Ginástica
Português
Francês e
Matemática
Geografia
Desenho
Ginástica
(Boletim Oficial, n.º 6, 5 de Fevereiro de 1921, p. 68)
Em 1922/23, todas as disciplinas do plano curricular foram ministradas, com
excepção da Ginástica308, falta “que prejudicou os alunos, que com tais exercícios
se tornam mais disciplinados e submissos”. A gestão curricular polivalente – os
docentes leccionavam disciplinas de grupos díspares, como Português e Ciências
Naturais; Matemática e Inglês; Desenho, Francês e Ginástica – poderá ser explicada
pela exiguidade do corpo docente e habituais restrições orçamentais.
307
308
Boletim Oficial, nº 37, 15 de Setembro de 1923, p. 282.
Relatório do Reitor. Boletim Oficial, n.º 37, 15 de Setembro de 1923, p. 282.
239
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A concentração de um grande número de oficiais e praças das forças armadas no
Mindelo não podia deixar de ter reflexos na terra, desde o campo social até ao
cultural (1998, p. 395) e reflectia-se no corpo docente do liceu, na época,
exclusivamente masculino, onde predominavam os militares309.
A partir das informações estatísticas, contidas no relatório do reitor310 e no
“Movimento de alunos de instrução secundária, segundo a raça e os sexos (1924)311
definimos as linhas evolutivas da frequência escolar.
Gráfico 23 – Liceu Nacional de Cabo Verde: frequância escolar total e masculina – 1917/1924 312
100
91
90
83
80
70
65
60
70
71
1922-23
1923-24
52
51
50
66
43
40
42
30
31
37
29
30
1917-18
1918-19
1919-20
20
10
0
1920-21
1921-22
Após uma quebra de efectivos escolares no segundo ano da existência do liceu –
primeira tentativa de extinção –, assiste-se a um crescimento regular dos alunos até
ao ano 1922/23, com um retrocesso no ano seguinte. Durante sete anos, o liceu foi
frequentado por 435 alunos (sexo masculino: 326; sexo feminino: 109).
309
No ano lectivo de 1918/19, os militares representavam 80% dos professores: Guilherme Pedro Street
Caupers, Alferes de Cavalaria (3º grupo), Manuel Correia Modesto, Tenente de Infantaria (5º grupo), António
Augusto da Veiga e Sousa, Capitão-médico (reitor e professor do 6º grupo) e Paulo Tomé Mendes, Capitão de
Infantaria (8º grupo). O único professor civil era Simão José Barbosa (2º grupo). (Boletim Oficial, n.º 42, 19 de
Outubro de 1918, p. 367)
310
Boletim Oficial, n.º 37, 15 de Setembro de 1923, p. 282.
311
Boletim Oficial, n.º 3, 17 de Janeiro de 1925, p. 23.
312
1917/18: masc. 31; fem. 11; 1918/19: masc. 29; fem. 8; 1919/20: masc. 30; fem. 21; 1920/21: masc. 43; fem.
22; 1921/22: masc. 52; fem. 14; 1922/23: masc. 70; fem. 21; 1923/24: masc. 71; fem. 21. Fonte: “Movimento de
alunos de instrução secundária, segundo a raça e os sexos, ano lectivo de 1923-1924. Boletim Oficial, n.º3, 17
de Janeiro de 1925, p. 23.
240
A construção do discurso educativo
Os documentos consultados revelam que o liceu se preocupava com os alunos
pobres. Na sessão solene de abertura do ano lectivo, o reitor teceu as seguintes
considerações:
“Estão abertas as aulas e a sineta vai soar alegre a chamar-nos a todos ao nosso dever.
Mas... alto! Vão os rapazes entrar na escola e fica um cá fora... Aquele não pode
entrar; tem habilitações como os outros; tem a sua certidão. Que lhe falta, pois? A
matrícula; uns escudos para pagar a propina. E a lei que dá gratuita a matrícula aos
pobres? Mas êle não é pobre; é filho de um rico, que tem o rendimento colectável
anual de... 24$00! É demasiado rico para a lei o proteger. Pede-se uma lei de
excepção? Não; os rapazes novos têm alma grande. Nem o reitor o sabe... Não há uma
hesitação entre os alunos; a Caixa Escolar oferece a matrícula ao condiscípulo, que
não é bastante rico para a pagar, que não é bastante pobre para a receber do Estado.”
(Owen Pinto, 5 de Outubro de 1920)313
A Associação Escolar do Liceu Nacional de Cabo Verde, com a divisa “Lutar é
vencer» (Art. 1), desenvolveu actividades de solidariedade e dinamizou a vida
académica. Eram fins da Associação:
“a) Concessão de subsídios, empréstimo de livros de estudo, isenção do pagamento de
cotas – secção de assistência;
b) Leituras, conferências, palestras scientificas e publicações, ensino de dança, da arte
de dizer e do desenho artístico, audição e execução de música vocal e instrumental,
representação de pequenas obras de teatro escolar, exposições e festas escolares,
aprendizagens úteis, tais como taquigrafia e dactilografia – secção literária, scientífica
e artística;
c) Visitas e excursões de estudo, completadas pela fotografia e cinematografia –
secção de excursões;
d) Cultura física, com vista à educação da vontade e à formação do caracter – secção
desportiva;
e) Sustentação de cantinas, venda de artigos escolares – secção de cooperativa;
f) Cultiva a economia como virtude – Caixa económica.” (Boletim Oficial n.º 19, 7 de
Maio de 1921, pp. 190-192)
Como o liceu não oferecia o curso completo do ensino secundário314, em carta de
7 de Junho de 1923, o reitor solicitou ao Secretário Geral do Governo, um subsídio
para o aluno Baltasar Lopes da Silva – que seria um dos mais consagrados
escritores cabo-verdianos – frequentar um liceu na metrópole, para completar o
313
Cx.ª 666, 5 de Outubro de 1920. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
A partir do ano de 1928/29, o Liceu passou a ter os 6º e 7º anos. A criação destes dois anos foi devida aos
esforços do seu reitor Dr. Adriano Duarte Silva e do próprio gov. Guedes de Vaz (1926-31), que se revelava
cada vez mais um promotor da cultura cabo-verdiana (Oliveira, 1998, pp. 402-403).
314
241
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
ensino secundário. A carta recebeu resposta desfavorável, “por não haver disposição
legal aplicável”315.
Figura 39. Pedido de bolsa de estudos para o aluno Baltasar Lopes da Silva
(Carta 7 de Julho de 1922316)
315
Em 1926 foi autorizada a concessão de “uma pensão anual de 800$ a dois alunos, por ano, que provem terem
concluído o quinto ano do Liceu de Cabo Verde, com a classificação nunca inferior a bom, para pagamento de
propinas e aquisição de livros, até completarem o curso dos Liceus Centrais da Metrópole” (Art.º 1º. Portaria n.º
9. Boletim Oficial, n.º 17, 25 de Abril de 1926).
316
Cx.ª 667. Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
242
A construção do discurso educativo
O Liceu Nacional de Cabo Verde, em 1924, sofreu mais um revés, com a medida
de redução do plano curricular a dois anos, facto que provocou nova onda de
solidariedade da sociedade e do município mindelenses:
“TELEGRAMA – MINISTRO – COLÓNIAS: – CÂMARA – MUNICIPAL –
REUNIDA – EXTRAORDINARIAMENTE – PEDIDO – MAIORES –
CONTRIBUINTES – COMÉRCIO – PROPRIETÁRIOS – PAIS – ALUNOS –
PROPRIETÁRIOS – FUNCIONALISMO – RESPEITOSAMENTE – PEDE –
VOSSÊNCIA – NÃO – APROVAÇÃO – PROPOSTA – REDUÇÃO – CURSO –
LICEU – DESTA – COLÓNIA – CONTRARIAMENTE – DESEJA – ELEVAÇÃO –
LICEU – CENTRAL – CONSTRUÇÃO – EDIFICIO – PRÓPRIO – COM –
INTERNATO – POIS – COLÓNIA – TEM – RECURSOS – ESPECIAIS – PONTO –
PARA – TRANQUILIDADE – POPULAÇÃO – AGRADECEMOS – VEXA –
FINEZA – RESPOSTA – CÂMARA – MUNICIPAL.
(Telegrama assinado pelo Senador Vera Cruz e outros deputados, Câmara Municipal,
maiores contribuintes, comerciantes, pais e alunos. Acta da Sessão Extraordinária da
Câmara Municipal de S. Vicente, 25 Agosto 1924)”317.
Liceu Infante Dom Henrique
A impregnação da escola com o ideário nacionalista, no fim da República,
conduziu à mudança do nome do liceu. Perdeu, simbolicamente, a componente
“Nacional de Cabo Verde” e ganhou o nome de uma figura paradigmática do
Império Português, o “Infante Dom Henrique” (Diploma legislativo n.º 92, 6 de
Fevereiro de 1926).
“Ex.mo Senhor,
Sendo praxe dar aos principais estabelecimentos de ensino, liceus, ou colégios, nomes de varões
ilustres a cuja memória se deve prestar homenagem, e não tendo ainda este liceu nome algum,
tenho a honra de propor a V. Ex.ª, com o acôrdo unânime dos Professores desta escola, que seja
dado ao Liceu o nome do “INFANTE D. HENRIQUE”, a cuja memória nunca são exageradas
todas as homenagens que a Pátria possa prestar.
SAÚDE E FRATERNIDADE
Liceu Nacional de Cabo Verde, em S. Vicente, 12 de Maio de 1925.
Ex.mo Senhor Presidente do Conselho de Instrução Pública.
O Reitor, Owen Pinto”318
317
318
Cx.ª 667, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
Cx.ª 667, Fundo da Secretaria Geral do Governo, IAHN.
243
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
“Atendendo ao que me representaram o governador e o Conselho Superior de
Instrução Pública da província de Cabo Verde; (…)
Hei por bem decretar, sob proposta do Ministro das Colónias, que ao Liceu Nacional
da referida colónia, criado pela Lei n.º 701, de 13 de Junho de 1917, seja dado o nome
de Infante D. Henrique.
O Ministro das Colónias assim o tenha entendido e faça executar. Paços do Governo
da Republica, 15 de Janeiro de 1926. – Bernardino Machado – Ernesto Maria Vieira
da Rocha. (Boletim Oficial, n.º 6, 6 de Fevereiro de 1926, p. 49)
Na senda da deocratização do ensino
O autor da obra A imprensa cabo-verdiana 1820-1975, no capítulo “A hora do
Mindelo: o liceu”, coloca as seguintes questões:
“Mas pode-se perguntar hoje, porque foi este liceu assim tão importante no contexto
cabo-verdiano? Ou mesmo, porque foi tão importante no contexto do império
português319?
A diferença é que os liceus das outras ex-colónias eram frequentados quase
exclusivamente pelos filhos dos colonos, dos funcionários civis e dos militares
portugueses. Eram frequentados, por assim dizer, quase que exclusivamente por alunos
brancos, enquanto que o Liceu de Cabo Verde desde o seu início teve uma maioria de
alunos negros e mulatos.” (Oliveira, 1998, p. 405)
João Nobre de Oliveira defende a tese que o liceu cabo-verdiano “democratizou”
o acesso ao ensino (idem, pp. 410/11).
Democratização económica
Já não eram apenas os filhos dos mais abastados ou dos protegidos da Igreja
Católica que podiam estudar, também os menos remediados320, podiam aspirar a
que os filhos tivessem pelo menos o curso dos liceus, “cursos universitários logo se
veria...”
319
Nobre de Oliveira explica que “em Angola, Moçambiquye, Índia e Macau também havia liceus que no caso
das colónias asiáticas, vinham do século passado. O liceu em Mindelo, aparentemente, só tinha a primazia em
África (o de Luanda foi fundado em 1918)” (1998, p. 405).
320
Num edital do Liceu Nacional de Cabo Verde, 20 Agosto 1923, sobre a abertura das matrículas, refere-se ao
“recibo do pagamento de 4$ na Repartição da Fazenda, como primeira prestação da respectiva propina para 5$
para a 2ª e 3ª classe e de 5$ para a 4ª e 5ª” (4º), embora para “os alunos que provarem a sua pobreza” seja
dispensado o pagamento das propinas (Boletim Oficial, n.º 37, 15 de Setembro de 1923, p. 311).
244
A construção do discurso educativo
Democratização étnica
Se no Seminário-Liceu “a maioria dos alunos já era de cor, com o liceu essa
maioria torna-se esmagadora reflectindo melhor a sociedade cabo-verdiana”.
Conforme o “Movimento anual dos alunos nos quatro anos decorridos desde a
fundação”, o liceu registava 192 estudantes “africanos” e apenas 3 “europeus”
(Boletim Oficial, n.º 18, 6 de Maio de 1922, p. 133).
Democratização de género
O ensino era igual para ambos os sexos, “pelo que as meninas já não ficam
limitadas ao ensino primário e ao que aprendiam em casa com as avós ou ao estudo
do francês e do piano nos colégios de Lisboa”. Porém, a taxa de frequência
feminina era reduzida (25,1%).
Democratização curricular
No liceu “os jovens aprendem a pensar sem o freio da religião”. Por outro lado,
“estando os jovens num meio urbano e não num rural, isto permitia uma vida
académica diferente, que não se limitava ao espaço escolar, com um convívio entre
jovens de ambos os sexos e contacto com pessoas que era de todo impossível dentro
dos muros do seminário”.
Fechamos o capítulo dedicado à edificação do ensino liceal, com as belas
palavras do escritor Teixeira de Sousa, proferidas na cerimónia comemorativa 75º
aniversário da criação do Liceu de Cabo Verde:
“O liceu veio naturalmente abrir as janelas e portas à aquisição dum leque mais
alargado de conhecimentos, os professores diversificavam as informações, havia-os
religiosos, havia-os agnósticos; havia-os sonhadores, havia-os pragmáticos; havia-os
rigorosos, havia-os tolerantes; havia-os, em suma, de todas as cores e de todos os
paladares, num mosaico de interesses, tendências, conhecimentos, sensibilidades, que
as distanciam enormemente daquela uniformidade seminarista, uniformidade contrária
ao borbulhar da mocidade que a Virgílio Ferreira inspirou o magnifico romance
Manhã Submersa. Pelos postigos, janelas e portas do novo estabelecimento de ensino,
entrou luz, entrou ar lavado, entrou a vida em todas as dimensões. Entrou mais,
entraram os ecos do mundo por se haver colocado o liceu na ilha de S. Vicente, cujo
porto, então pejado de barcos de todas as nacionalidades, era a boca pela qual
penetravam os nutrientes da civilização. Excelente visão tiveram quantos lutaram para
que fosse colocado em S. Vicente e não em S. Nicolau, segundo o citado decreto, meio
este dum ruralismo primário, onde os horizontes esbarram com as montanhas abruptas
que aprisionam o vale da Ribeira Brava.” (1992)
245
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Conclusões
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Acto final da escrita
No acto final da escrita impõe-se o ritual de palavras conclusivas. Sem a
pretensão de transgredir normas, gostaríamos que as conclusões fossem tidas como
questionamentos. Onde se escreve conclusões leia-se tendências e possíveis
itinerários futuros.
O termo de um ciclo – a convivência diária com os testemunhos da construção
social do discurso educativo, em Cabo Verde, de 1911 a 1926 – conduziu-nos à
problemática inicial: Como foi percepcionada a educação pela sociedade caboverdiana, num contexto de dominação colonial?
O trabalho exploratório desvendou inúmeras variáveis explicativas, que careciam
de sistematização. Urdimos o fio condutor da pesquisa em torno de hipóteses, que
tentámos comprovar pela verificação empírica.
Neste momento de balanço, comparámos produtos esperados com resultados
apurados.
Primeira hipótese
A construção de um discurso educativo, no arquipélago de Cabo Verde,
correspondeu a uma vontade social de desenvolvimento, assente na valência da
educação como fonte do progresso.
O centralismo da educação, na produção retórica da elite cabo-verdiana,
demonstra de per si a relevância social do tema. A sociedade islena (pré)ocupou-se
com os problemas tradicionais do ensino – o analfabetismo, a precariedade da rede
escolar e a deficiente formação dos professores. O discurso é pigmentado com
múltiplas referências ao contexto sociopolitico – o atraso endémico do ensino na
colónia, incrustado no tradicional atraso português e na incúria da governação
colonial.
A imprensa cabo-verdiana deu visibilidade a projectos educacionais, gizados por
cidadãos – a título individual ou sob égide municipal –, enquanto as reformas
tardavam a chegar às ilhas. A vontade social de desenvolvimento não se esgotou no
texto jornalístico. Teve expressão na arena política, em instâncias consultivas e de
decisão, como as Comissões Municipais e o Conselho do Governo Provincial.
249
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
Segunda hipótese
Os pressupostos redentores e utópicos da educação republicana não se
traduziram em medidas educativas capazes de romper com a inércia administrativa
e a distância (física e burocrática) que separava a colónia da metrópole.
À desmedida confiança na República, “a luz que vinha «rasgar» as trevas da
monarquia”, sob o estandarte da “liberdade pela qual luctamos sempre, igualdade
perante a lei, fraternidade, pois que todos os homens são irmãos, filhos da mesma
mãe, a Terra!”321, sucedeu o desencanto.
A esperada igualdade transmudou-se no pesadelo da emigração forçada de
homens, mulheres e crianças para as roças de S. Tomé e Príncipe.
Para a opinião pública, os progressos na educação ficaram muito aquém do
desejado.
Terceira hipótese
A imprensa foi a imago mundi da afirmação de valores integradores da
identidade cabo-verdiana: a apetência pelo conhecimento e a vontade de
autonomia.
Os jornais cabo-verdianos e a imprensa portuguesa (de temática colonial) deram
destaque às questões sociais e educativas. Como bem disse Nobre de Oliveira, os
leitores eram cabo-verdianos interessados na sua terra e os jornalistas, homens
formados nas ilhas, que escreviam para as suas gentes.
A imprensa constituiu-se em instância mediadora entre a dimensão oficial do
sistema escolar, os significados apropriados pelo senso comum e as práticas do
quotidiano.
A escrita tornou-se um acto de cidadania, ao reflectir sobre a (i)legitimidade do
poder, o nativismo, as aspirações de autonomia, a vontade de diferença (em relação
às outras colónias e à sede do império). Escrever era uma forma de interferir na
história.
321
A Voz de Cabo Verde, n.º 1, 1 de Março de 1911.
250
Conclusões
Quarta hipótese
A resposta às adversidades naturais – seca e fome – e à governação colonial –
dominação e ineficácia – foi procurada por duas vias libertadoras: a emigração e o
ensino (aquisição do saber condicionador de status social).
A incompetência governamental na gestão das crises cíclicas foi tema caro na
imprensa. O Senador Augusto Vera-Cruz, eminente defensor da causa educativa, a
propósito de uma longa estiagem que provocou mais de 20.000 mortos, reclamava
que as receitas dos Correios e Telégrafos de Cabo Verde ficassem nas ilhas e não
fossem desviadas para a Metrópole, advertindo: “Sou português de sangue e
coração, mas acima de tudo sou caboverdeano”322.
O bloqueio à emigração de analfabetos para a América, portanto de muitos caboverdianos, foi entendido como ameaça ao desenvolvimento (pelas expectativas
culturais frustradas e divisas que não entrariam nas ilhas).
No imaginário cabo-verdiano, a libertação das adversidades (naturais e políticas)
realizava-se pela evasão e pela cultura letrada (à imagem das terras de emigração).
A valorização do capital escolar contrariava as lógicas de conformação social. O
ensino post primário foi percepcionado como espaço de mobilidade social, de
produção de indivíduos qualificados e com aceitação social. As polémicas em torno
do ensino primário superior e do liceu ilustram esta asserção.
Quinta hipótese
A escola cabo-verdiana exerceu as funções de ratificação, justificação e
integração da ideologia e da cultura dominantes (modelação do escolar colonizado
à imagem-ideal do colonizador).
Teoricamente, a matriz da escola portuguesa enformou o sistema escolar caboverdiano. Na realidade, as reformas republicanas chegavam tardiamente e
truncadas. A transferência de saberes ocorria (na maior parte dos casos) em escolaspardieiros, com docentes não qualificados e mal pagos (salários inferiores aos
colegas metropolitanos).
A língua portuguesa era ensinada como “numa escola do Minho ou do Algarve”,
ignorando a língua materna (proibida na escola).
322
Correio d’África, n.º 3, 1924. In Oliveira, 1998, p. 183.
251
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
A educação colonial, à luz dos textos lidos, cumpriu de facto uma tripla missão:
o conhecimento (elementar), a adaptação e a assimilação.
Sexta hipótese
O sistema escolar assumiu a função de legitimação das diferenças sociais, sob
clivagens discriminatórias: a classe, o género, a língua, a raça, a origem
(rural/urbano; colónia/metrópole).
Os textos pedagógicos e as estatísticas educacionais desvendam um cenário de
assimetrias na distribuição social da educação. A escola (formal e informal) era
selectiva e absorveu somente um segmento reduzido da população escolarizável
(1912 a 1920: 19,5% de alfabetizados).
Além das desigualdades de género (1912: 17% de meninos e 4% de meninas na
instrução elementar)323, registaram-se outros factores de exclusão social, como o
insucesso escolar (1911: 1º grau, 56,9%; 2º grau, 49%) e o absentismo (1911:
50,6% de alunos com frequência escolar irregular).
A discriminação dos alunos, em categorias definidas pela cor da pele, reflecte
preconceitos e práticas de exclusão, numa sociedade profundamente miscigenada.
Sétima hipótese
A substituição do ensino secundário religioso por um ensino secundário laico
inscreveu-se num contexto de disputa da liderança regional, protagonizada pela
elite cabo-verdiana, que exercia o controlo económico, social e cultural.
O Seminário-liceu foi a instituição de referência, onde se formou a inteligentzia
que conduziu à cabo-verdianização do funcionalismo público e à “emancipação
administrativa da colónia a nível do pessoal, pois que a nível institucional nunca o
arquipélago teve qualquer autonomia em relação à metrópole”324.
323
Segundo um artigo publicado no jornal O Progresso “a média de frequência em 7 anos é de 5:000 almas;
4:000 rapazes e 1:000 raparigas, respectivamente, 17 e 4% da população escolarizável” (n.º 26, 26 de Dezembro
de 1912). Não conseguimos comprovar as taxas de frequência escolar, devido a incongruências entre os dados
demográficos e as estatísticas escolares. A Estatística Geral da Província de Cabo Verde (ed. Secretaria Geral
do Governo), regista o movimento da população por idades, sendo as primeiras seriações: “até 10 anos”, e “dos
10 aos 20 anos”. A distribuição da população escolar por níveis etários assenta num escalonamento diferente:
“até 9 anos”, “dos 9 aos 12 anos”, “dos 12 aos 16 anos” e “mais de 16 anos”. A disparidade de critérios na
seriação dos dados impossibilitou o cálculo das taxas de frequência escolar.
324
Oliveira, 1998, p. 80.
252
Conclusões
A morte anunciada do Seminário foi tema mediático, numa conjuntura histórica
propícia à transformação de utopias em realidades: um sistema não confinado ao
ensino elementar e a criação de um liceu nacional.
Defendemos que o liceu laico emerge como um imperativo de cidadania, uma
manifestação do querer da burguesia mindelense que se organizou, solidária e
colectivamente, em momentos-chave.
Oitava e última hipótese
Apesar da isonomia dos sistemas (português e cabo-verdiano) surge – de forma
incipiente, mas firme – um discurso portador da vontade da diferença, que não
conseguiu forjar uma cultura escolar, marcada por práticas e saberes genuínos.
A frequência e intensidade das intervenções sobre o ensino (numa imprensa
generalista) não escondem as fragilidades no campo epistémico. No discurso
educativo predominou a descrição e a denúncia, em detrimento da reflexão.
Não obstante, os intelectuais cabo-verdianos tinham consciência da inadequação
do sistema de ensino (sucedâneo do modelo metropolitano) e acentuavam –
enfaticamente – as diferenças.
O texto educativo contém intencionalidades de mudança conceptual, sem a
necessária sedimentação teórica para gerar uma cultura escolar genuína. Prevaleceu
a cultura empírica e faltou “a cultura pedagógica, que se constrói e difunde nos
âmbitos académicos e de investigação”325.
Contra a posição oficial que visava “dar ao preto uma educação variada, mas
simples”326, a sociedade abriu uma frente de combate por oportunidades de
conhecimento adequadas à formação mais avançada do cabo-verdiano.
Proclamar que “convém ensinar antes a plantar mandioca, a fabricar o açúcar e a
tratar o cafeeiro, do que a plantar cepas, a enxertar a oliveira e fabricar vinhos e
azeites”327, é criar o lastro da cultura escolar cabo-verdiana.
Temos de terminar. A nossa dificuldade em transformar as hipóteses enunciadas
em resultados comprovados, explica-se pelo carácter abrangente do estudo e por
novas – e inesperadas – perspectivas, ao longo do itinerário percorrido.
325
Escolano Benito, 2000, p. 211.
O Progresso, 12 de Setembro de 1912.
327
O Manduco, 30 de Dezembro de 1923.
326
253
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
No desfecho, um certo desencanto. Sentimos que as respostas procuradas
geraram um conjunto maior de novos problemas, que nos instigam a começar tudo
de novo.
Um desafio e um convite:
Aos meus colegas, aos aprendizes de historiadores da educação, não nos resta
outra alternativa senão estudar, conhecer, investigar e palmilhar os caminhos da
educação em Cabo Verde.
Transformemos a investigação em acção e a individualidade em projecto
colectivo.
254
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Fontes e Bibliografia
1.
Fontes
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- Requerimentos de José Lopes com pedido de admissão ao lugar de professor,
1/2/1921.
- Exposição do professor José Lopes da Silva ao Presidente da Junta de Instrução
Pública da Ribeira Grande, Ilha de Santo Antão, 28/6/1921.
- Acta da sessão ordinária da Junta Local da Ribeira Grande, Presidente da Junta,
14/9/1921.
- Pedido de aquisição de mobiliário para “uma escola que se pretende abrir em S.
Vicente”, Comissão Municipal, Presidente do Conselho de Instrução Pública,
14/1/1922.
- Requerimento da professora Matilde de Noronha, a requerer licença de parto,
29/4/1922 e informação favorável á concessão de dois meses de licença, Inspector
Escolar Interino, 29/4/1922.
- Resumo das deliberações tomadas na sessão da Junta Local de Instrução do
Concelho da Ribeira Grande, 16/10/1922.
- Informação sobre uma reclamação contra o professor Manuel Júlio do Rosário,
Secretário Geral, 28/1/1923.
Caixa 666
- Exposição da professora da ilha do Maio, Elvira da Conceição Ribeiro Ferreira
Chaves, 15 /8/1916.
262
- Relatório sobre o movimento da Escola Oficial de S, Jorge, ilha do Fogo,
1/9/1916.
- Exposição do professor de Ponta do Sol, ilha de Santo Antão, José Lopes da Silva,
10/12 1917.
- Reportório sobre o meu primeiro passeio escolar, escola oficial da Ilha do Maio,
1/5/1917.
- Comunicado que anuncia a abertura solene do Liceu Nacional de Cabo Verde,
Reitor, 19/11/1917.
- Petição da manutenção do liceu na ilha de São Vicente, cidadãos mindelenses,
26/4/1918.
- Correspondência do professor Manuel de Moraes, S. Jorge, 4/6/1918.
- Regulamento Provisório da Instrução Secundária, com o visto da Direcção dos
Serviços da Fazenda, 4/7/1918.
- Relação de materiais didácticos e equipamentos para a escola oficial da Rabil, Ilha
da Boavista, 16/9/1918.
- Requisição de mobiliário para a escola oficial da Vila Sal Rei, Ilha da Boavista,
3/12/1918.
- Lista de material escolar e outros artigos necessários para as escolas de S. Nicolau,
Comissão Municipal, 3/1/1919.
- Nota dos artigos de mobília e utensílios fornecidos a escolas do concelho de Vila
de Ponta do Sol, Guilherme Reginaldo Morbey, Administrador do Concelho,
21/2/1919.
- Projecto de legislação sobre os exames de admissão ao liceu, 12/6/1920.
- Discurso do reitor do Liceu Nacional de Cabo Verde, por ocasião da abertura
solene das aulas no ano lectivo de 1920-1921, 5/10/1920.
- Correspondência com pedido de autorização para a realização de obras no quartel
para a instalação do liceu, 17/11/1920.
- Horário das aulas do liceu e constituição do corpo docente, ano lectivo 1921-1922,
Reitor, 17/12/1921.
- Proposta de criação de uma escola comercial e industrial, no Liceu Nacional de
Cabo Verde, Reitor, 9/9/1922.
- Proposta do estandarte do Liceu Nacional de Cabo Verde, Reitor, 30/1/1923.
263
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
- Petição a favor da admissão da professora Maria da Encarnação Oliveira numa
escola da Ribeira Grande, 2/2/1923, acompanhado do requerimento da professora,
9/2/1923.
- Reclamação da transformação de escolas em postos de ensino, Centro Escolar
Fontoura da Costa, 10/4/1923.
- Proposta de um subsídio para o aluno Baltazar Lopes frequentar um liceu na
metrópole, Reitor, 7/7/1923.
- Relação de livros do ensino secundário existentes no depósito de materiais
escolares, Alfredo Ferro, 9/6/1923.
- Proposta de transcrição no Boletim Oficial do Regulamento de Instrução
Secundária, Reitor, 5/12/1923.
- Relatório do Secretário Geral sobre a organização do ensino primário, Maio de
1924.
- Apontamentos sobre a origem e funcionamento do Liceu Nacional de Cabo Verde,
Secretário Geral, 25/4/1924.
- Mapa estatístico dos alunos matriculados no Liceu Nacional de Cabo Verde e seu
aproveitamento, Reitor, 28/6/1924.
- Acta da sessão extraordinária da Câmara Municipal de S. Vicente, com um
protesto pelo comunicado do Governador, pela rádio, uma proposta de redução do
curso do Liceu Nacional, Secretário da Câmara Municipal, 26/8/1924.
- Proposta de mudança do nome do liceu para “Infante Dom Henrique”, 12/5/1925.
- Correspondência da mãe de um aluno pobre, com pedido de doação de livros
escolares, Henriqueta Nazaré Gomes, 23/8/1926.
- Exposição sobre a situação do liceu e pedido de autorização para a contratação de
professores, Reitor, 29/9/1926.
- Relatório das actividades do Liceu Infante Dom Henrique, Reitor, Setembro de
1926.
- Proposta de nomeação de directores de classe no liceu, 6/12/1926.
Caixa 668
- Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 12 /6/1918.
- Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 3/7/1918.
264
- Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 21/10/1918.
- Acta da Sessão do Conselho de Instrução Pública, 8/11/1918.
Caixa 669
- Quadro demonstrativo dos resultados dos exames finais, escola oficial da Vila de
Ponta do Sol, Ilha de Santo Antão, professor José Lopes da Silva, 16/08/1915.
- Redações de alunos do ensino elementar, 1917.
- Carta de um professor de S. Vicente (assinatura ilegível), 28/9/1919.
- Proposta de apresentação de alunos a exame (1º e 2º graus), 1920/1921.
- Provas escritas dos exames de instrução primaria do 1º e 2º grau, 1920, 1921,
1922, 1923.
Caixa 670
- Proposta de transferência do Seminário-liceu de S. Nicolau para a Praia, Diocese
de Cabo Verde, 19/6/1906.
- Correspondência sobre a adaptação do Seminário-liceu a um liceu nacional,
Governador, 7/3/1910.
- Relação dos manuais escolares adoptados para o ensino primário e balanço da
existência, Secretário Geral, 20/6/1910.
- Relação dos manuais escolares adoptados para o ensino primário, 1º e 2º grau,
José Reis Borges, 7/10/1910.
- Correspondência relativa ao analfabetismo em Cabo Verde, Sociedade de Estudos
Pedagógicos, 29 de Junho de 1913.
- Correspondência do Presidente da Câmara Municipal da Praia sobre a doação de
manuais escolares a alunos pobres, 19/3/1915.
- Parecer dos professores sobre os manuais escolares do ensino primário e lista de
livros adoptados, Administrador do Concelho, 22/6/1915.
- Correspondência de Simão José Berlenga sobre a remodelação dos serviços de
instrução primária, 25 /8/1915.
- Facturas de aquisição de manuais escolares, Inspector Escolar, 20/2/1915.
265
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
- Requisição de verbas, professor Herculano de Noronha, escola de Achada Falcão,
6/4/1915.
- Parecer de professores de S. Vicente sobre a adopção de novos livros, 1/6/1915.
- Correspondência do Reitor do Seminário de S. Nicolau e mapas da frequência
escolar, 12/10/1915.
- Orçamento anual da Câmara Municipal de Santa Catarina, Instrução Pública,
2/10/1917.
- Requisição de mobiliário para a Escola Superior da Praia, Director, 22/11/1917.
- Relação de livros e materiais didácticos recebidos de S. Vicente, 26/4/1918;
- Proposta de criação do internato da cidade de Mindelo, em substituição da Escola
de Artes e Ofícios, 15/7/1918.
- Questionários com dados biográficos e profissionais de professores, 30/7/1918.
- Ofício do Governador com proposta de orçamento, 28/10/1918.
- Requisição de manuais escolares, Escola Central de São Vicente, professora
Clementina Maria Barros Évora, 21/11/1918.
- Requisição de manuais escolares, professora Elizabeth Fermino Silva, Escola de
Ponta do Sol, 11/1/1919.
- Requisição de livros para alunos pobres, Secretário Geral, 12/7/1919.
- Relação dos livros e materiais didácticos do Fundo Especial de Instrução Escolar,
Administrador do Concelho, 7/8/1919.
- Correspondência do inspector sobre o estado dos serviços escolares, 1919/1920.
- Projecto de integração dos professores do Seminário, das Escolas Normais e do
Ensino Primário Superior no corpo docente do Liceu, Mário Ferro, 11/9/1922.
Caixa 671
- Relatório referente à inquirição dos actos do inspector escolar Ernesto de Sousa
Coelho, instruído por Viriato Gomes da Fonseca, ilha de Santo Antão, 29 /7/1919.
- Guia de entrega de verbas provenientes da venda de manuais escolares, professor
Manuel Ramos de Sousa, 23/7/1919.
266
2.
Referências Bibliográficas
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____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Apêndices
A.
Análise do corpus documental
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
1. Campos de pesquisa e categorias conceptuais
Campos
Categorias
CSE
Adversidades naturais
Contexto
CPO
Questão linguística
Relações sociais
Valores
Actores educativos
Ensino primário
Ensino religioso
Ensino secundário
Finalidades da educação
Manifestações internas e externas da
cultura escolar
Representações e práticas
Sistema escolar
Expectativas sociais
Reformas educativas
CCU
Sistema escolar
SSE
Desenvolvimento
educacional
DED
Subcategorias
Afirmação da identidade
Emigração
Fome
Nativismo
Regionalismo
Relação colonial
Seca
Situação económica
Situação social
Cabo-verdianos notáveis
Educação / Progresso
Língua
Administração
Alunos
Analfabetismo
Assistência escolar
Avaliação
Currículo
Desigualdades
Ensino colonial
Ensino municipal
Ensino religioso
Ensino primário elementar
Ensino primário complementar
Ensino primário superior
Ensino público
Ensino particular
Ensino profissional
Ensino secundário
Financiamento
Género
Materiais didácticos
Práticas didácticas
Professores
Rede escolar
Seminário-Liceu
Inovações pedagógicas
Projectos
Reformas
273
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
2. Modelos de grelha de recolha e análise das fontes
274
275
B.
Jornais e revistas
____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
1. Relação dos periódicos cabo-verdianos (1877 – 1907)
Ano
1877-1879
1880-1881
1880
1881
1889
1898
1901
1902-1903
1902
1902-1903
1904
1907
Título
Independente
A Imprensa
A Cidade da Praia
A Justiça
Revista de Cabo Verde
Almanach Luso-Africano
A Esperança
A Liberdade
Salve
A Opinião
O Espectro
Cabo Verde
Local de edição
Praia, Ilha de Santiago
Praia, Ilha de Santiago
Praia, Ilha de Santiago
Praia, Ilha de Santiago
Mindelo, Ilha de São Vicente
Vila Ribeira Brava, Ilha de São Nicolau
Vila Ribeira Brava, Ilha de São Nicolau
Mindelo, Ilha de São Vicente
Mindelo, Ilha de São Vicente
Mindelo, Ilha de São Vicente
Mindelo, Ilha de São Vicente
Praia, Ilha de Santiago
2. Relação dos periódicos cabo-verdianos (1911 – 1924)
Ano
1911-1919
1912-1913
1912-1913
1913
1913
1913
1913-1916
1915
1915
1918-1919
1923-1924
Título
A Voz de Cabo Verde
O Independente
O Progresso
O Mindelense
A Tribuna
A Defesa
O Futuro de Cabo Verde
O Popular
A Esperança
O Caboverdeano
O Manduco
Local de edição
Praia, Ilha de Santiago
Praia, Ilha de Santiago
Praia, Ilha de Santiago
Mindelo, Ilha de São Vicente
Ilha Brava
São Filipe, Ilha do Fogo
Praia, Ilha de Santiago
Mindelo, Ilha de São Vicente
Vila da Ribeira Brava, Ilha São Nicolau
Praia, Ilha de Santiago
São Filipe, Ilha do Fogo
277
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
3. Relação dos jornais portugueses de temática colonial (1911 – 1926)
Anos
1911
1912
1912-1913
1913
1914-1915
1915
1921-1923
1921
1924-1926
1925-1926329
Título
O Negro
Revista Colonial
A Voz d’ África
Tribuna d’ África
O Eco d’ África
Portugal Novo328
Correio de África
O Protesto Indígena
Gazeta das Colónias
Boletim Geral das Colónias
Local de edição
Lisboa
Lisboa
Lisboa
Lisboa
Lisboa
Lisboa
Lisboa
Lisboa
Lisboa
Lisboa
4. Autores dos artigos dos jornais cabo-verdianos consultados
4.1. O Independente (1911 – 1913)
Autor
Não mencionado
José Bernardo Alfama
José Lopes
Um assignante
Identificação
Presidente da Associação Escolar
Poeta e professor
Total
Frequência
16
2
1
1
20
4.2. O Progresso (1912)
Autor
Identificação
Não mencionado
Astróide
Atchim
T’Chaka
Total
328
Frequência
15
1
1
4
21
Não tivemos acesso aos jornais Portugal Novo e O Protesto Indígena.
O Boletim Geral das Colónias foi publicado entre 1925 e 1931. Considerámos, apenas, os anos de 1925 e
1926, em conformidade com o arco temporal da investigação.
329
278
4.3. A Voz de Cabo Verde (1911 – 1919)
Autor
Identificação
Não mencionado
A
Assinaturas devidamente reconhecidas
Afro [pseudónimo de Pedro Cardoso] Poeta e colaborador do jornal
António do Rincão
Balbino Tavares
Ben Nartico
Belmiro Xavier Alfama
Professor e coordenador do Batalhão
Escolar
Bernardino Rodrigues Pereira
De Bafatá, Guiné
Cótê
Da ilha do Maio
E. F.
Egídio Barbosa Barros e outros
Cidadãos da Cidade Velha
Eugénio Tavares
Poeta e redactor do jornal
Gustavo da Fonseca
Director do jornal
José Bernardo Alfama
Presidente da Associação Escolar
José Maria Cabral d’ Azevedo
Professor de São Nicolau
José da Fonseca Laje
Professor
José Lopes
Poeta e professor
José Lopes Monte
José Polónio
José Rodrigues de Carvalho
Professor e colaborador do jornal
L. Évora
Colaborador do jornal
Lélé
Luís Loff de Vasconcelos
Político e jornalista
M.
Mário Ferro
Político e colaborador do jornal
N.
Nantes
O jornal “A Tribuna”, Brava
O jornal “O Século”
Professor do Tarrafal
Professor
Reis Borges
Professor
Solerte Menestrel
Um incognito
Um preto
Um professor interino
Professor
Total
Frequência
104
1
1
6
6
1
1
1
1
1
1
1
3
3
2
8
3
11
1
1
1
1
1
1
1
2
1
2
1
1
1
3
1
4
1
3
181
279
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
4.4. O Futuro de Cabo Verde (1913 – 1916)
Autor
Não mencionado
António Corsino Lopes da
Silva
Armando Xavier da Fonseca
António José de Almeida
Augusto Manuel Miranda
Augusto Pereira Vera-Cruz
Candóca
Carlos Parreira
Correspondente
E. F.
Ignotus
Ivo
João Ninguém
Joaquim Duarte Silva
José Bernardo Alfama
José Fonseca Lage
José Maria Cabral de Azevedo
José Rodrigues de Carvalho
Manga de Alpaca
Manuel M. Braga Júnior
Mestre Gabriel
Nicolau Ramos
Um amigo do Bem
Um assinante
Um professor
Um professor primário
Um verdadeiro
X.
Z.
Identificação
194
Professor, colaborador do jornal e redactor
da secção do jornal, a “Folha de S. Vicente”.
Colaborador do jornal
Tribuno
Professor, colaborador e redactor da secção
“Folha de S. Vicente”
Senador pelo Círculo de S. Vicente
Colaborador
Jornalista e historiador
Presidente da Associação Escolar
Professor e colaborador
Professor e correspondente em S. Nicolau
Professor e colaborador do jornal
Total
280
Frequência
1
1
1
2
1
1
1
18
1
2
1
1
1
1
2
1
4
2
1
1
1
1
1
2
1
1
3
1
248
4.5. O Popular (1914 – 1915)
Identificação
Autor
Não mencionado
Augusto Manuel Miranda
José Fonseca Lage
M. C.
Mário Pinto
Professor e colaborador do jornal.
Professor e colaborador do jornal
Poeta e colaborador em vários jornais
Total
Frequência
12
2
1
1
6
22
4.6. O Manduco (1923 – 1924)
Autor
Não mencionado
Dos Anais de A. de E. Livres 330
Augusto Pereira Vera-Cruz
Eugénio Tavares
José d’África
José Lopes
X. R.
Identificação
Senador pelo Círculo de S. Vicente
Poeta e colaborador
Poeta e colaborador
Total
Frequência
15
1
1
1
1
1
1
21
330
Anais da Academia de Estudos Livres (1916), publicação da Universidade Popular, que contou com a
colaboração de António Sérgio.
281
C.
Legislação consultada
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Legislação portuguesa
1910 (10 de Outubro) – Decreto nº 4 (D. G. de 8/10)
Continua a vigorar a legislação que obrigou os Jesuítas a saírem de
Portugal.
1910 (28 de Outubro) – Decreto de (D.G. n.º 21 de 29/10)
Regula o exercício do direito da liberdade de imprensa.
1911 (29 de Março) – Decreto de (D.G. n.º 73 de 30/3)
Reforma do ensino infantil, primário e normal.
1926 (29 de Março) – Decreto n.º 12.008 (D.G. n.º 167)
Regula o exercício do direito da liberdade de imprensa.
Legislação publicada nos Boletins Oficiais
1860 (15 de Dezembro) – Circular nº 313 – A (B. O. nº 83 de 22/12)
Criou o Liceu Nacional da Província de Cabo Verde.
1866 (3 de Setembro) – Decreto (B. O. nº 44 de 3/11)
Criou o Seminário Eclesiástico da Diocese de Cabo Verde.
1912 (21 de Setembro) – Publicação (B. O. n.º 3 de 20/1)
Divulga o programa de um Curso Livre de Ensino Primário Superior em
Mindelo.
1913 (7 de Março) – [B. O. (Supl.) n.º 2 – 9, 7/3]
Regulamento do trabalho indígena na província de Cabo Verde.
1913 (7 de Julho) – Lei n.º 12 (B. O. n.º 31 de 2/8)
Cria o Ministério da Instrução Pública.
1913 (13 de Outubro) – Decreto n.º 159 (B. O. n.º 45 de 8/11)
Estabelece os serviços e estabelecimentos de ensino que ficam integrados e
dependem directamente do Ministério da Instrução Pública.
1914 (30 de Junho) – N.º 22/179 (B O. n.º 29 de 18/7)
Declaração de nulidade da portaria provincial de 1 de Janeiro de 1911, que
suspendeu o presbítero e professor do Seminário-Liceu de Cabo Verde.
1914 (24 de Setembro) – Decreto n.º 888 (B. O. n.º 42 de 17/10)
Torna extensivo aos professores das escolas municipais ultramarinas, o
direito de aposentação.
283
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
1914 (19 de Dezembro 1913) – N.º 2.349/354 (B. O. n.º 1 3 de 1/1)
Autorização do estabelecimento em Mindelo, ilha de S. Vicente, de um
curso de ensino particular de instrução secundária.
1914 (14 de Dezembro) – Portaria n.º 402 (B. O. n.º 52 de 26/12)
Estatutos do Colégio Esperança, na cidade de Mindelo.
1915 (24 de Abril) – Portaria n.º 104 (B. O. N.º 17 de 24/4)
Autoriza a transferência de verbas da rubrica “Instrução Pública”.
1915 (29 de Outubro) – Portaria n.º 264 [B.O. (Supl.) n.º 15 - 45, 6/11]
Publica os programas oficiais do Ensino Primário, que são modelados pelos
da metrópole.
1916 (14 de Janeiro) – Portaria n.º 13 [B.O. (Supl.) n.º 1, 14/1]
Põe termo à elevação a excessos insofríveis dos preços de alimentos.
1917 (25 de Abril) – Decreto n.º 3108-B [B.O. (Supl.) n.º 9 - 25, 5/6]
Carta Orgânica da província de Cabo Verde
1917 (13 de Junho) – Lei n.º 701 (B. O. n.º 27, de 7/7)
Extingue as escolas práticas de aprendizagem e cria um liceu na Província
de Cabo Verde.
1917 (30 de Junho) – Circular (B.O. n.º 26 de 30/6)
Determina aos professores a apresentação de relatórios mensais.
1917 (13 de Julho) – Despacho (comunicado por telegrama) (B.O. n.º 28 de 4/7)
Extinção do liceu na ilha de S. Nicolau.
1917 (25 de Julho) – Publicação [B.O. (Supl.) n.º 10, 25/7]
Instruções relativas ao exame de instrução primária do 1º e 2º graus.
1917 (4 de Setembro) – (B.O. n.º 36 de 7/9)
Plano de estudos do Curso Geral do Ensino Secundário, Liceu Nacional de
Cabo Verde.
1917 (27 de Setembro) – Publicação n.º 414 (B.O. n.º 49, 8/12)
Permite o funcionamento do internato do Seminário-Liceu de S. Nicolau,
com os cursos de Instrução Primária e de Instrução Primária Superior,
“durante o presente ano lectivo, findo qual será definitivamente encerrado”.
1917 (11 de Outubro) – Portaria n.º 327 [B.O. (Supl.) n.º 17 - 40, 11/10]
Determina a divisão administrativa da província de Cabo Verde.
1917 (8 de Outubro) – Decreto n.º 3.435 [B.O. (Supl.) n.º 18 - 43, 30/10]
Aprova o Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde
1917 (16 de Novembro) – Portaria n.º 386 (B. O. n.º 46 de 17/11)
Nomeação dos directores da Escola Primária Superior da Praia e da Escola
Primária Superior de S. Nicolau.
1918 (1 de Junho) – Portaria n.º 474 [B.O. (Supl.) n.º 14 - 52, 31/12]
Substitui o Plano Orgânico da Instrução Pública de Cabo Verde (1917) e
284
publica um novo Plano Orgânico da Instrução Pública.
1918 (13 de Julho) – Publicação (B. O. n.º 28 de 13/7)
Determina as Instruções para a organização do recenseamento escolar
1918 (20 de Julho) – Portaria n.º 311 (B. O. n.º 29, 20/7)
Encerramento das aulas na Escola Primária Superior da Praia.
1918 (30 de Novembro) – (B. O. n.º 48, 30/11)
Instruções para a criação, conversão, transferência ou supressão de escolas
e postos de ensino.
1919 (21 de Novembro) – Portaria n.º 632 (B. O. n.º 47 de 22/11)
Declara que subsiste a organização e localização, na cidade de Mindelo, do
liceu. Restabelece a Escola Primária Superior da Praia e considera
insubsistentes a Escola Normal e a Escola do Ensino Primário Superior,
localizadas na ilha de S. Nicolau, bem como o liceu.
1919 (10 de Dezembro) – Portaria n.º 560 – A (B. O. n.º 5 de 22/11)
Nomeação de um director para a Escola Primária Superior da Praia.
1919 (12 de Dezembro) – Decreto n.º 6.132 da Instrução Pública [B.O. (Supl.)
n.º 20 - 49, 12/12]
Aprova os programas e quadros de distribuição das disciplinas do Curso
Geral e Complementar do Liceu Nacional de Cabo Verde.
1920 (8 de Maio) – Portaria n.º 303 (B. O. n.º 19 de 8/5)
Proíbe expressamente o uso do crioulo nas escolas.
1920 (8 de Julho) – Portaria n.º 503 (B. O. n.º 28 de 10/7)
Cria o lugar de Secretário do Inspector Escolar.
1921 (27 de Setembro) – Portaria n.º 249 (B. O. n.º 40 de 1/10)
Determina a extinção da Escola Primária Superior da Praia.
1921 (3 de Outubro) – Portaria n.º 257 (B. O. n.º 41 de 8/10)
Atendendo à diminuta frequência escolar, extingue postos de ensino.
1922 (11 de Maio) – Portaria nº 85 (B. O. n.º 19 de 13/5)
Reabre postos de ensino atendendo a que o estado financeiro da província,
não permite a criação de mais escolas.
1922 (29 de Maio) – Portaria nº 29 (B. O. n.º 22 de 3/6)
Fixa os subsídios com que as Câmaras e as Comissões Municipais devem
contribuir para o fundo especial de instrução pública.
1922 (17 de Fevereiro) – Circular (B. O. n.º 7 de 18/2)
Comunicado aos professores do primeiro inspector escolar cabo-verdiano.
1922 (20 de Setembro) – Portaria n.º 153 (B. O. n.º 38 de 25/9)
Determina a extinção da Escola Primária Superior de S. Nicolau.
1923 (22 de Setembro) – Portaria n.º 105 (B. O. n.º 39 de 29/9)
Cria uma escola mista em Ribeira Bota, ilha de S. Vicente.
1924 (12 de Março) – Portaria n.º 28 (B. O. n.º 38 de 25/9)
285
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
1924
1925
1925
1926
1990
286
Declara a extinção das Escolas Primárias Superiores em Cabo Verde.
(12 de Junho) – Portaria n.º 412 (B. O. n.º 24 de 12/6)
Louva um cidadão pela propaganda a favor da Assistência Escolar e
organização da associação «O vintém das escola».
(25 de Julho) – Portaria n.º 58 (B. O. n.º 30 de 25/7)
Cria o Instituto Caboverdiano de Instrução.
(21 de Novembro) – Publicação (B. O. n.º 47 de 21/11)
Regulamento do Instituto Caboverdiano de Instrução.
(5 de Agosto) – Diploma legislativo colonial nº 20 (B. O. n.º 45 de 6/11)
Isente de direitos e impostos a importação pela Delegação Aduaneira de
Santo Antão de um cinematógrafo completo.
(29 Dezembro) – Lei n.º 103/III/90 [B. O. (Supl.) n.º 52]
Lei de Bases do Sistema Educativo.
D.
Planos Orgânicos de Instrução Pública na Província de
Cabo Verde
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287
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
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289
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
290
130
291
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
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293
A Construção Social do Discurso Educativo em Cabo Verde (1911-1926)
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