Cada um no seu lugar ou todos juntos e misturados?

Transcrição

Cada um no seu lugar ou todos juntos e misturados?
Cada um no seu lugar ou todos juntos e
misturados?
O diálogo com uma escuta verdadeira parece ser a única possibilidade que temos ao nosso
alcance para abrirmos novos caminhos
Maria Alice Setubal para El País
11/02/2016
Junho de 2013 marcou uma mudança de perspectiva no cenário político
brasileiro, quando mais de um milhão de pessoas, juntas e misturadas,
mobilizadas pelas redes sociais, saíram às ruas para demandar mais qualidade
de vida, sem as palavras de ordem de partidos ou movimentos sociais, mas
com a voz do protagonismo e a autoria da autonomia cidadã.
Essa mesma autonomia e protagonismo, no entanto, também geraram
verdadeira guerra durante a campanha presidencial de 2014, em torno de
posições governistas versus oposicionistas e, desde então, tem gerado
posturas rancorosas e violentas, que se espraiam sobretudo pelas redes
sociais, onde a falta de diálogo impede avanços na direção de saídas para as
crises que assolam o Brasil nesse momento.
A velocidade das mudanças tecnológicas do mundo atual, a quantidade sem
fim de informações, a pasteurização de um conhecimento descontextualizado,
a dispersão e a fragmentação das experiências adquirem concretude nas
inovações tecnológicas que permeiam o dia a dia das pessoas.
Considerada como libertária por alguns, a Internet passa a ser o centro de
gravidade da sociedade, onde se localizam a autonomia do indivíduo, sua autoorganização e a recusa de restrições coletivas. Configura-se como espaço para
democratização do conhecimento, que se torna acessível a todos, de modo a
quebrar barreiras antes intransponíveis.
A vida virtual possibilita também a diversidade de públicos, reunificados por
uma circulação mais fluida e aberta que gera uma multiplicação de enclaves,
grupos ou tribos que se reagrupam por novas lógicas que não a proximidade
espacial.
A democratização da palavra abre o espaço da visibilidade, especialmente, nas
redes sociais, onde a maioria dos novos emissores fala de si mesmos,
revelando o exibicionismo e o espetáculo, também característicos de nossa
era. É a transformação do universo anônimo em um espaço familiar na busca
de reconhecimento.
Comparada a um bazar que tem de tudo e de forma desordenada (Dominique
Cardon), a Internet possibilita, de um lado, o agrupamento de coletivos frágeis
e cooperações fracas; e de outro, mobilizações imprevistas de baixo para cima
e coletivos heterogêneos, que não querem obedecer a um centro nem repetir
palavras de ordem, como vimos em manifestações em diversas partes do
mundo e no Brasil, em junho de 2013, e, de certa forma, na ocupação das
escolas públicas no estado de São Paulo por estudantes, no segundo semestre
de 2015.
É justamente no contexto dessa contemporaneidade, marcada pela
modernidade líquida (Zygmunt Bauman), individualização, rapidez,
fragmentação, inovações tecnológicas e porosidade do espaço da
sociabilidade, que assistimos aos radicalismos de toda sorte. A Europa está
atravessada (literalmente) pelo acolhimento/repúdio aos imigrantes e
refugiados. Os Estados Unidos unem a temática dos imigrantes à dos negros
dentro da rivalidade entre republicanos e democratas na corrida eleitoral.
No Brasil, desde as eleições de 2014 assistimos à destilação de ódios que
opõem de forma concreta PT X PSDB, desdobrando-se em vários outros
radicalismos como: elite X povo; esquerda X direita; liberais X visão estatizante;
conservadores X progressistas; grandes X pequenos; privado X público ou
estatal, etc. A lista é extensa, chegando até a questões menores que, não raro,
ganham espaço desproporcional na mídia.
Várias são as hipóteses explicativas para esse fenômeno, tais como a perda
das tradições e do sentido de acolhimento e pertencimento do mundo
contemporâneo, que acabam por gerar essa necessidade de interação nas
redes sociais como paliativo para cobrir essa falta. Nas redes sociais,
localizamos pessoas e grupos que pensam e agem como nós, rompendo a
sensação de solidão e, ao mesmo tempo, nos fortalecendo e nos
empoderando.
Ao se sentirem fortes e reconhecidos e sem o peso da autoridade ‒ ao
contrário, com aval da sociedade, que dá autonomia, liberdade, garantindo a
máxima de que todos podem ‒, todos têm voz e espaço. Assim, a palavra nas
redes sociais por vezes adquire um traço extremamente agressivo, gerando
inúmeras situações de violência pública. Impera a total falta de diálogo, de
escuta do outro, que, ao ser taxado com algum rótulo, não tem legitimidade
perante o bloco opositor. Parecem ser em vão as tentativas de diálogo, de
esclarecimento, de debate de ideias, como ilustra o caso recente do bate boca
na rua com o cantor e compositor Chico Buarque.
Amartya Sen discute, de forma aprofundada, como as questões de identidades,
que geram violência, se multiplicaram no mundo inteiro. A identidade pode ser
fonte de generosidade e riqueza e, ao mesmo tempo, de violência e terror,
como vimos recentemente com as ações do Estado Islâmico e da Al-Qaeda.
Cada pessoa pertence a vários grupos como parte de instituições, tais como
família, escola, clubes, associações, trabalho etc., onde desempenha
identidades específicas. Ora, nenhuma delas isoladamente pode ser
considerada a única daquela pessoa. A liberdade de decidir nossas lealdades e
prioridades aos diferentes grupos aos quais possamos pertencer é uma
liberdade especialmente importante, que temos razão para reconhecer, prezar
e defender.
Nossas identidades estão apoiadas na pluralidade do mundo hoje, e a
importância de uma identidade não elimina a importância da outra. Mesmo
dentro de uma mesma cultura vamos encontrar variações internas, diferentes
atitudes, comportamentos e convicções. Pertencer a uma comunidade pode ser
forte, mas isso não elimina outras identidades. É preciso respeito às várias
identidades que o sujeito possui (e sempre possuirá) simultaneamente.
Sabemos que a cultura não é um elemento determinante, estanque e imóvel,
mas que interage com outras determinantes da percepção e ação social. A
liberdade aumenta as escolhas e as possibilidades de pertencer a várias
culturas e identidades. Nesse contexto, os radicalismos devem ser debatidos,
abrindo-se as possibilidades de escolha.
Nos tempos atuais, parece prevalecer a determinante de CADA UM NO SEU
LUGAR E COM OS SEUS, e no Brasil isso não é diferente. Exemplos variados
nos dão conta disso, desde as grades que cercam e separam os condomínios
de alto luxo, passando pelo enfrentamento aos “rolezinhos” de jovens
moradores de periferia, que buscam fazer valer seu direito à cidade, até casos
pessoais, como durante a campanha presidencial de 2014, quando grupos
diversos tentaram desconstruir minha trajetória profissional na educação e nas
ciências sociais, afirmando que minha história familiar (vista como única
identidade possível) não me permitia superar uma visão de classe na luta por
mais justiça social em uma sociedade sustentável.
Nesse contexto, estão presentes a falta de pensamento, o vazio
contemporâneo propulsor de agressividade e violência e a necessidade de
preservação de um espaço comum, ou seja, um espaço público de
convivência. Um espaço de interações entre singularidades diferentes.
Márcia Tiburi, ao falar desse vazio geral, destaca que estamos evitando os
questionamentos e o diálogo pelo isolamento dentro das comunidades virtuais,
pois as pessoas sentem verdadeiro desespero em se verem navegando em
mar aberto. Todos preferem ancorar na ilha que já conhecem, em nome do
mito da segurança ou do conservadorismo. Dessa forma, o outro ameaça
nossas certezas, exige demais e põe em cheque nossos valores e afetividades.
Ouvir o outro é insuportável nos dias de hoje, revelando nossa impotência para
o diálogo. Conversamos com nossos pares e saímos felizes, pois somos
contemplados narcisicamente.
Essa impotência para o diálogo, para ouvir o diferente precisa ser quebrada, ao
menos por aqueles que não pretendem ficar ilhados, olhando o barco afundar,
mas ainda acreditam em utopias e insistem na busca por alternativas. Uma
citação de Isak Dinesen aponta para a recuperação da narrativa nos dias
atuais, quando ele diz que todas as mágoas são suportáveis quando fazemos
delas uma história, ou contamos uma história a respeito.
A narrativa pressupõe um narrador e um ouvinte, é o espaço entre as pessoas,
da interação social, do espaço do público do mundo comum, apontado por
Hannah Arendt. Narrativas têm o poder de fazer pensar, ler, lembrar.
Apresentam o potencial não apenas de contribuir para a inteligibilidade e o
conhecimento do mundo, mas sobretudo de possibilitar o encontro com o
sentido do mundo, com seu legado, com as pessoas em suas ações e palavras
que nos antecederam, assim como com seus conhecimentos. Hannah Arendt
enfatiza que narrativas permitem o encontro com o passado, não para trazê-lo
de volta, exatamente como era, mas a fim de descobrir o sentido, como pérolas
que nos são trazidas e apresentadas após o mergulho na nossa herança
simbólica cultural e histórica.
Nossa busca incessante pelo sentido das coisas, por um lugar de
pertencimento ao mundo passa por pensar o mundo no espaço público, isto é,
a partir do ponto de vista do outro, no espaço entre as pessoas, na interação
com o outro, a partir das nossas diferentes identidades, como apontou Amartya
Sen. O diálogo com uma escuta verdadeira parece ser a única possibilidade
que temos ao nosso alcance para abrirmos novos caminhos possíveis para
alcançarmos uma melhor qualidade de vida como gritaram milhares de
pessoas em junho de 2013, mas com a utopia de todos juntos e misturados.

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