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 Latusa Digital Ano 9 – N. 49 – Junho de 2012.
Helena Ignez, musa do cinema de vanguarda brasileiro
Entrevistada por Maria Noemi de Araujo
Em julho/2012, especialmente para Latusa Digital
Ícone do cinema vanguardista nacional, a soteropolitana,
carioca e paulista Helena Ignez tornou-se conhecida pela sua
capacidade de encarnar rupturas na vida e na linguagem
artística. No final dos anos 50, aos 17 anos, com o então
namorado Glauber Rocha, participa do que foi para nós a
preparação de uma revolução moderna, o Cinema Novo. No final dos anos 60, com
Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, investe na criação do Cinema Marginal. Cada
filme seu soava como ruptura em relação aos anteriores.
Algo precisou falhar na vida da jovem Helena Ignez Pinto Mello e Silva para
surgir o novo — ela não ganhou o título de Miss Bahia, ao tentar mostrar que uma
mulher poderia ser linda e intelectual. Teria talvez escandalizado com olhares fora do
padrão e atitudes intensas. “Eu era uma menina”, diz a atriz. Em seguida, venceu o
concurso “Glamour Girl” e usou o prêmio, um par de brincos de jade e algum dinheiro,
na produção de O Pátio (1959), primeiro filme de Glauber e seu, como atriz. Em 1960,
nasceu sua filha do casamento com Glauber, Paloma Rocha, cineasta e hoje diretora
do Tempo Glauber.
Como ex-mulher dos maiores expoentes do
cinema nacional, nos tempos do Cinema Novo —
Glauber, Joaquim Pedro — e do Cinema Marginal (que o
sucedeu) — Bressane e Sganzerla — Helena participou
do processo de criação dos primeiros filmes de cada um
eles. Mas consegue uma primeira síntese do seu
Helena hoje em São Paulo.
trabalho, no filme Mulher de Todos (Sganzerla, 1969), em que baila e gira em redor da
câmera — ou a faz girar em torno da sua habilidade em praguejar e rir, chutar e afagar
os homens amados.
O percurso dessa atriz, produtora e diretora a inscreveu na cultura
cinematográfica como uma mulher que “afrontou a ordem e os bons costumes da
direita e da esquerda”: “ousada”, “assombrosa”, “bem humorada”, “deslumbrante”,
“mignon”, “luminosa”, “um anjo sapeca”.
Helena Ignez, musa do cinema de vanguarda brasileiro
Entrevistada por Maria Noemi de Araujo Latusa Digital Ano 9 – N. 49 – Junho de 2012.
Seu “savoir y faire”? “Bailar com o objeto”, lembrando uma frase atribuída a
Alain Merlet, dita “en passant” numa conferência de Salvador. Na mesma cidade em
que décadas antes Helena teve um papel histórico importante como colunista social e
formadora de opinião, escandalizando ao tocar em temas tabu do universo feminino,
como nomear “clitóris”, pela primeira vez, na TV, em 1962. Sem modéstia, em 1970,
ela declara ao Pasquim “sou uma atriz maravilhosa” e, hoje, se define como “filha de
Brecht, e isso diz tudo”. Tais experiências lhe renderam singular notoriedade e fama.
Ainda calcada no papel de produtora, para criar, inventar e investir, Helena
sustenta, com as filhas Sinai e Djin Sganzerla, a Mercúrio Produções, que fundou com
o falecido marido Sganzerla. Como diretora e atriz, lançou, em maio 2012, seu último
filme, Luz nas Trevas, premiado internacionalmente e no Brasil. Destaco, nesse filme,
a criação da sua personagem “Madame Zero”, a ambientação e cena de reconciliação
com os homens, num mesmo espírito do cinema de vanguarda. Nessa cena, a diretora
transmitiu o desejo, um “querer fazer aquilo” com os poucos recursos materiais
existentes e a invenção marcada pela frase “uma ideia na cabeça e uma câmera na
mão” — que mudou o paradigma do cinema nacional junto com o manifesto de
Glauber, “Estética da Fome”, nos anos 60.
Se a ideia era libertar ao mesmo tempo a criatividade e a câmera (antes muito
fixa no tripé), fazendo andar, girar, e testar limites, com os recursos materiais
disponíveis, Madame Zero aparece em cena para devolver ao protagonista principal, o
Bandido (Ney Matogrosso), um baú cheio de dinheiro, dizendo “isso lhe pertence”
(uma relíquia do cinema nacional?). Alegoria ou repetição simbólica, no sentido
freudiano do termo, daquilo que a atriz fez na vida real, no início de sua carreira,
quando deu ao cinema seu dinheiro ganho no concurso, recebido de um banqueiro?
Hoje, aos 70 anos, se organiza para fazer uma experiência com aquilo que ela chama
de “trans-imagens” ou “transcinema”. No teatro, dirige a filha Djin, em O belo
indiferente (Cocteau), e, com o grupo de Teatro Satyros, participa das comemorações
dos 100 anos de Nelson Rodrigues, fazendo Madame Clesci, na peça “Vestido de
Noiva” (estreia em agosto). Disciplinada, a artista revelou, durante a entrevista
concedida à Latusa Digital: “Tenho aula de Yoga”. Saímos caminhando pelo centro da
cidade que lhe concedeu mais um título — Cidadã Paulistana (2006). Entre a rua
Nestor Pestana e a praça da República, Helena só interrompia o seu passo
apressadinho para abraçar amigos do teatro que encontrava no caminho.
Helena Ignez, musa do cinema de vanguarda brasileiro
Entrevistada por Maria Noemi de Araujo Latusa Digital Ano 9 – N. 49 – Junho de 2012.
Helena em: O Padre e a Moça, Mulher de Todos e Bandido da Luz Vermelha
Entrevista
Latusa Digital - Em sua opinião, qual é o lugar da mulher no cinema?
Helena - Ela está no cinema como na vida, sendo sincera e dando um depoimento
pessoal como este. Nós não somos iguais aos homens. Temos experiências sociais e
psíquicas especiais.
L. D. - Você fez TV?
H. - Inicialmente, eu era apresentadora, na TV Rio e na Record, na Cultura, fiz teatro
filmado. Em 1970, quando eu poderia ir para Globo com os amigos, companheiros e
colegas, eu estava fazendo a peça Hair, escolhi fazer cinema na Belair, em 1970, e,
em seguida, saí do país com Rogério. Minha iniciação no teatro foi com Francisco
Julião, nas ligas camponesas, na peça de Vianinha.
L. D. - Das suas invenções no Cinema Marginal destacam-se as suas
performances, reflexões e apostas no olhar, o que não ocorreria no Cinema
Novo de Joaquim Pedro, em O Padre e a Moça (1964).
H. - Em O Bandido da Luz Vermelha [clássico do cinema nacional, de 1968, em que
faz a protagonista, Janete Jane], eu ainda não olhava mais fixamente para a câmera.
Em Mulher de Todos, do mesmo diretor, eu olho. Como diretor, Rogério valorizava a
figura, usava muito a técnica do “olhar de um lado para o outro”, como Carmem
Miranda e Caymmi.
L. D. - Você, que, em O Pátio e O Padre e a Moça, fazia tipos contemplativos e
angelicais, criou, depois, uma interpretação feminina irrequieta, como se
estivesse mexendo com a câmera. Isso influenciou outras atrizes?
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H. - Sim. Eu sabia que estava fazendo cinema moderno.
Tinha absoluta consciência de que se tratava de algo
grave, tinha encontrado em Rogério um companheiro
artístico, um cinema brechtiano. Pude fazer algo que
deveria ter feito antes com Glauber, que não foi possível
por causa da separação. Entrei nesse cinema querendo
descontar o tempo perdido, era um momento intenso.
L. D. - O que você chama de brechtiano?
H. - É um modo inteligente de fazer a ficção. Brecht nos ensinou que existem duas
realidades, pelo menos. Uma é a observação, e a outra é o objeto sendo visto com
distanciamento, como no aforismo indiano que diz haver um pássaro no galho de uma
árvore vendo outro da mesma espécie voar. O que vê olha o outro com
distanciamento, como objeto voador.
L. D. - Mulher de Glauber?
H. - Eu era uma menina. Éramos colegas na Faculdade de
Direito, curso que abandonamos para fazer teatro na
primeira Faculdade de Arte Dramática do Brasil (UFBa).
Após a realização d’O Pátio (1959), nasceu Paloma,
pouco depois, nos separamos.
Casamento com Glauber Rocha L. D. - A mulher do padre: entre a sensualidade e a santidade?
H. - Joaquim Pedro foi um diretor, um homem extraordinário e um namorado.
L. D. - Mulher do Bandido?
H. - Eu gosto! Acho simpático esse título Mostra Helena Ignez, a mulher do Bandido
(2007) [com mais de 20 filmes]. O Bandido é o Cinema, nesse caso, como disse a
curadora da mostra.
L. D. - Mulher de Todos: debochada e extravagante?
H. - É muito bom. Talvez esse seja o filme mais sofisticado e divertido de Rogério. É
um filme precioso que comunica porque toca no popular. Como esse filme vem sendo
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muito homenageado, certo dia, um jovem me perguntou se eu não me sentia ofendida
de rirem tanto no filme. Respondi que o filme é pra isso mesmo. Entrei nessa para
descontar tudo o que estava vivendo. Ângela Carne Osso [protagonista feminina de
Mulher de Todos] fuma charuto e, é claro, isso é um símbolo fálico. A mãe do Rogério,
que morava em Joaçaba (SC), achava minhas roupas esquisitas. Eu comprava tudo
fora, as saias eram muito curtas e diferentes.
L. D. - Você se inspirou na feminilidade de alguma atriz?
H. - Minha formação, desde adolescente, se deu vendo cinema americano. Minha atriz
favorita sempre foi Marilyn Monroe, a elegi como um signo dessa arte de encantar.
Pela tragédia da sua vida e total incompreensão, permito-me ser
apaixonada pela Marilyn. É uma mulher trágica. Talvez o trágico
seja feminino.
L. D. - Os personagens femininos que você criou, no final dos
anos 60, tinham uma conexão direta com os acontecimentos
de Maio de 68, na Europa.
H. - Acompanhávamos, na Bahia, tudo que acontecia lá fora, lendo os filósofos
franceses, como Sartre. Jack Kerouac (On the Road), por exemplo, lemos, em 1957, e
os primeiros filmes de Kubrick, como Killer's Kiss (1955), assistimos pouco depois de
lançado nos EUA. Nossa educação era requintada porque nós queríamos aquilo. No
meu caso, venho de uma família média, sem riqueza social, mas bem educada, todos
precisavam “trabalhar para dar certo”, minha mãe era sensível, gostava de línguas,
tocava piano.
L. D. - O que deu certo na sua vida?
H. - Na vida, com alguma felicidade de ter vivido tudo, como vivi a cada segundo e
com consciência, sim. É isso que importa. Se perder a consciência
disso, perde-se tudo.
L. D. - A mulher da Belair e de Júlio Bressane?
H. - Júlio foi antes, um namorado de três anos e meio. Belair é a
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produtora que pertenceu a Júlio, Rogério e a mim [foram sete filmes experimentais,
produzidos com poucos recursos financeiros, em apenas quatro meses, em 1970].
L. D. - Sganzerla?
H. - Tive o prazer de viver e trabalhar com ele durante 35 anos.
L. D. - Em que momento você cruzou com os tropicalistas?
H. - No início dos anos 70, fomos praticamente juntos para Londres, onde vivemos
dois anos, somos amigos até hoje.
L. D. - Uma amiga?
H. - Adriana Prieto, colega e amiga. Nunca tive turma, mas muitos amigos homens,
que me tratam bem, como Péricles, Peres, Abujamra, Caetano, Gil, que acabou de
ceder todas as músicas para meu último filme, sem problemas. Nélson Rodrigues, que
escreveu um artigo sobre o peso do meu nome; Zé Agrippino – aliás, na homenagem,
agora, eu era a única mulher no programa, será que ele não tinha outras amigas?
L. D. - Consta, nos créditos do filme Luz nas Trevas, que
a feitura do filme contou com muitas mãos femininas.
H. - É uma brincadeira com o filme O Bandido da Luz
Vermelha, que tem uma tradição no cinema. Luz nas Trevas
é um filme feminino, é para todos, não é elitista, não tem
sangue, nem armas de fogo e nem tiro, é alegre e tem um
derramamento excessivo de cor vermelha. Ao final, há um
incêndio que está no roteiro de outro modo, considero fogo
altamente cinematográfico.
L. D. - Luz nas Trevas tocou jovens, uma menina de 13 anos me disse ter
gostado dos diálogos.
H. - Fico contente! Os diálogos e as ideias foram o gancho inicial para filmar Luz, sem
Rogério. A reflexão filosófica tratada com leveza é uma qualidade do cinema de
Rogério, o que não é normal de se encontrar noutro cinema. Ele pensou em tudo,
estava trabalhando nesse roteiro, quando soube do câncer, e faleceu em menos de
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um ano [2004]. No filme, há uma nostalgia niilista, um contato com a realidade e
humor, um abandono do passado.
L. D. - A montagem e a trilha são pontos fortes no filme.
H. - A trilha é profundamente feminina. Considero um avanço a linguagem dessa trilha
criada por Sinai Sganzerla, com rigor e ousadia. Nossa briga [mãe e filhas] era a de
realizar o melhor possível. Sem falsas modéstias, ficou um filmaço, de cinema. Na
Belair, já havia uma linguagem de montagem [construção narrativa] sganzerliana. Na
montagem e finalização de Luz, também contei com as mãos femininas de Sinai, que
tinha feito com o pai a trilha sonora de Signo do caos.
L. D. - Você dirigiu Djin, ela não aparece nua em primeiro plano; nem imita
Helena.
H. - Isso tudo foi pensado. Optei por um afastamento na composição dos tipos, e Djin
ocupou o seu lugar no filme. Como numa chanchada brechtiana, nesse filme, os tipos
são compostos com roupas, cenários, gestos, diálogos, não há uma identificação da
personagem com o ator, mas uma apresentação crítica. Djin sofreu muito com a
história dos cabelos vermelhos para fazer a cena nua com o filho do Bandido. Rogério
pedia (no roteiro) os cabelos em três tons de vermelho, os pelos pubianos também
vermelhos em forma de coração e a pele do protagonista muito bronzeada. Recebi
vários elogios pelo uso excessivo do vermelho, da paixão. Fizemos como ele pediu,
mas a realização foi difícil, os atores sofreram muito para chegar naquela composição
dos tipos.
L. D. - Nesse filme você criou um gesto feminino de desapego para seu
personagem, a Madame Zero?
H. - Gosto muito dessa cena. Ela nem existia no roteiro, mas é um clímax. A aparição
de Madame Zero é pontual, ela vem solucionar um problema do filme ao passar “a
mala identidade” do Bandido (Ney Matogrosso). A mala cheia de dinheiro é a
redistribuição da renda por conta própria, diz Madame, tal como está no roteiro. Aí
realmente é a presença da mulher, humilde e sem querer aparecer. Talvez eu não
quisesse fazer Madame. Ela é a que se desprende do objeto, entrega o baú ao
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Bandido, que só queria comprar uma padaria de Cuiabá, e o dinheiro era um elemento
pra isso acontecer, e, ao recebê-lo, o personagem se despede daquela história, pega
a mala, diz ser luz divina, dá adeus a todos os adeuses e, numa cena doloridíssima,
fala: “A vida é uma sucessão de adeuses”. Pensei muito se cortava ou não essa cena.
Madame guardou aquilo tanto tempo para lhe dar, como aquela deusa que faz um
brinde à eternidade. Madame está só, é amorosa, apaixonada, mas ela é sua examante
intergaláctica,
sem
existência
psicológica,
e
as
coisas
passam
independentemente dela. Mas é ela que o Bandido veio procurar, ao sair da cadeia.
Talvez ela seja uma daquelas que o visitou na prisão.
L. D. - Você conheceu João Acácio, o verdadeiro bandido da luz vermelha, que
inspirou o filme de Rogério?
H. - Não. Para fazer Luz, filmamos um apartamento na Avenida Paulista que foi
assaltada por Acácio, nos anos 60. Uma senhora veio assistir, dizendo que ele
assaltou sua casa duas vezes, quando ela tinha 14 anos, e que, durante anos a fio, ela
alimentou a seguinte fantasia: “Será que hoje ele vem?”.
Esquisito passar por aquela experiência, não? Como o
americano Caryl Chessman, ele entrava nas casas armado,
com a lanterna e o lenço vermelhos, bonito, bem vestido. Se
passando por gentil, seduzia para roubar as mulheres. Tudo
que roubava gastava com as mulheres, na baixada santista.
Bandido, 1968. L. D. - Maternidade?
H. - A maternidade existe, é forte e nos ensina o que é o amar sem preço e sem
cobranças. Não tenho muita prática de avó porque minhas filhas tomam conta das
netas, mas sou muito maternal, e ser avó é ser mãe pela segunda vez.
L. D. - Feminino?
H. - É o novo, o contemporâneo, uma sensibilidade que precisa ser educada e
desenvolvida, uma linguagem tem que ser bem trabalhada. Se o feminino for
abrangente, um grande coração onde tudo cabe, ele tem a ver com o amor das
pessoas.
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L. D. - Virgindade?
H. - A virgindade era bem diferente porque era algo que só deveria ser perdida no
casamento, e aí a representação e a hipocrisia social que era muito forte. Isso deixava
as pessoas com menos possibilidade de ser feliz, de se desenvolver, porque elas
tinham que viver como mandava o figurino. Hoje, ter que ser feliz como está no
figurino é outra “bobajada”.
L. D. - Tabus: ao nomear ‘clitóris’, pela primeira vez, na TV, você tinha
consciência do significado disso na sociedade?
H. - Além da minha coluna social “Crista”, que tinha o sentido de dizer coisas não
muito faladas, me convidaram para apresentar um programa, O Mundo da Mulher, na
TV dos Diários Associados, após aquele concurso de Miss Bahia. Evidentemente que
eu sabia que citar Simone de Beauvoir, com quem descobrimos o significado do
clitóris, não passaria despercebido, causaria alguma ação interna nas pessoas, na
sociedade, porque isso não era ensinado. O assunto é que era um escândalo, e não
eu, uma entrevistadora já famosa, aos 20 anos, casada e com uma filha de dois anos:
ninguém ia me agredir, eu tinha um espaço, me impus, nunca admiti muita
aproximação, excessiva. No outro dia, corriam os comentários no boca-a-boca, “vocês
viram, se falou em clitóris no programa da Helena”. O programa continuou no ar
porque falei isso junto com o médico e diretor da Faculdade de Medicina da UFBa,
Estácio Lima, e isso não era qualquer coisa. O Mundo da Mulher tinha um nível
intelectual muito bom, convidávamos filósofos, intelectuais e cientista que tocavam em
questões da mulher, do feminino, de outra maneira, tinha um “envolto”, com uma
linguagem diferente. Hoje, para um cineasta chocar, ele tem que dizer que é
simpatizante do nazismo, como Lars von Triers o fez, em Cannes, em 2011, enquanto
sabemos que ele não é isso.
L. D. - Orgasmo feminino?
H. - Naquela época, havia um interesse real de conhecer o próprio corpo, falar disso,
naquele momento, era um impulso, mas era consciente também, precisávamos
entender “o que é ser uma mulher” da maneira mais profunda. Sei lá, talvez o orgasmo
seja uma das coisas mais profundas que a gente pode atingir. Não sei se todas as
mulheres, só por serem mulheres, conhecem o orgasmo, ou se querem saber. No jogo
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dos sexos, a mulher entrou muito na representação, no sentido de ter que agradar. Se
ela se mostrasse fria, estava perdida. A frieza era atribuída a ela e não à relação. Mas
as mulheres jogam pesado contra elas mesmas, ao tentar não decepcionar o cara. Em
muitos casos, são as mulheres que fazem o machismo aflorar de modo negativo.
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