A PRAÇA DE GUERRA COMO CENÁRIO BARROCO

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A PRAÇA DE GUERRA COMO CENÁRIO BARROCO
A PRAÇA DE GUERRA COMO CENÁRIO BARROCO
Margarida Tavares da Conceição
(Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Portugal)
Sob vários pontos de vista, e pensando até a sua função estritamente
militar, a praça de guerra pode ser entendida como manifestação da cultura e
da mentalidade barrocas. Como modelo teórico, a praça de guerra começa por
ser uma cidade militar, unidade operativa inserida numa hierarquia de âmbito
territorial, constituindo sem dúvida um ícone representativo que resume a força
do braço militar do Estado Moderno. Ainda enquanto intenção ou projecto, com
um desenho mais ou menos sofisticado, experimentando uma geometria mais
ou menos complexa, pontuando sempre a linha de fronteira nas representações
cartográficas, a praça de guerra é, desde logo, uma afirmação da lógica
castrense do poder político nos séculos XVII e XVIII. Quando construída e
equipada no terreno, a praça de guerra adquire uma realidade material e
percepcional, cujo significado é também inequívoco. Independentemente da sua
maior ou menor operacionalidade militar, constitui o símbolo monumental da
pertença de um território a determinado poder. Sintetiza, por definição própria,
o palco do teatro de guerra, onde se inscrevem igualmente alguns traços
estilísticos indelevelmente barrocos na sua concepção. Uma tal intencionalidade
retórica ainda é mais perceptível num terceiro nível de análise, o da vivência
dos espaços. O vasto catálogo de exercícios militares invade o espaço urbano e
transforma a arquitectura utilitária ou de equipamento em boca de cena. Esse
sentido é especialmente visível num caso exemplar, que serviu de pretexto para
uma análise mais detalhada: as festas realizadas em meados do século XVIII na
Praça de Almeida, quando um quartel de infantaria foi utilizado como suporte
para os cenários e nas quais o denominado Ensaio Militar ou Ataque e Defesa
duma Praça Simulada, que encerrou este evento militar, reflecte claramente a
natureza barroca da praça de guerra e transforma-se numa súmula do seu
significado teatral. Portanto, mais do que demonstrar o uso efectivamente
festivo do espaço urbano militar, isto é, aquilo que reflecte a aparência mais
exuberantemente barroca, parece desenhar-se uma intenção teatral mais
profunda que poderá estar na própria raiz do conceito militar da praça de
guerra e que, por sucessivos reflexos no jogo especular da cultura barroca, nos
devolve o sentido da representação, como espectáculo, aparência e autoridade.
1 - O teatro da guerra no teatro do mundo: a montagem dos
cenários. A guerra é um tema omnipresente na cultura barroca. Na referência
aos assuntos militares, e nas mais diversas fontes documentais, é recorrente o
recurso às expressões teatro de guerra, teatro de operações e muitas outras que
remetem para o sentido de jogo táctico e de xadrez político. Metáforas teatrais
que servem amplamente a alegoria do poder, numa manipulação semântica que
as sociedades dos séculos XVII e XVIII elevaram à categoria de ciência militar,
ou mais reconhecidamente como arte militar barroca, um conceito
suficientemente assimilado na historiografia e que tende a referir-se aos
padrões da organização do exército e dos movimentos das tropas no terreno,
numa crescente codificação das técnicas de Ataque e de Defesa, componentes
indispensáveis nas matérias tratadísticas sobre fortificação.
A substância da fortificação, desde o seu quadro conceptual até à sua
realidade física, é legível através dos postulados racionalistas, firmemente
alicerçados no exercício das ciências matemáticas, em especial da geometria. No
entanto, a progressiva especialização das técnicas defensivas e dos (muito
cartesianamente) denominados métodos da fortificação mostra também, de
modo intrincado, mas sem contradição de princípios, uma ligação de sentido
barroco à sociedade que enforma o Estado Moderno. Nesse contexto convivem
os processos matemáticos da engenharia militar e o aparato das festas urbanas,
conformando-se no mesmo espectro cultural, apenas confirmando o celebrado e
organizado jogo de contrastes tão caro à definição do Barroco, definição
escudada já numa extensa bibliografia, onde se destacam os estudos de José
Antonio Maravall, clarificando a fixação do Barroco como estrutura cultural e
mental do Absolutismo Régio1.
Figura 1: Quartel de Infantaria, Almeida, 1957 (DGEMN)
Nesse sentido, o entendimento dos vectores militares obriga, ainda que
de forma breve, a recuar ao problema da formação do Estado Moderno,
formação aliás coeva do desenvolvimento da fortificação abaluartada, apoiandose em conceitos políticos de recorte clássico, mas anunciando de algum modo
os filões do pensamento racionalista pré-cartesiano. Ficou marcada, desde o
1 MARAVALL. José Antonio. A Cultura do Barroco. (1975). Lisboa. Instituto de Novas Profissões.
1997; Estado Moderno y Mentalidad Social . Madrid. Alianza. 1986.
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célebre paradigma do Príncipe maquiavelista, a preocupação pela fixação das
regras do bom governo da República, reinaugurando uma abundantíssima
literatura política lida pelos mesmos homens que coleccionavam tratados de
fortificação, que praticavam a guerra e que comandavam a construção das
defesas. Os numerosos escritos de teoria política e sua diversificada tipologia2,
revelam, sobretudo na transição para o século XVII, o repetido cuidado no
aconselhamento do Monarca com vista à reforma e Conservação das
Monarquias, uma expressão presente em numerosas obras, numa fase em que o
ideal da República vai sendo substituído pela ideia de Estado. A própria difusão
do conceito de Razão de Estado demonstra uma valorização de fórmulas
pragmáticas na organização institucional, que tendem a ganhar relevância
sobre o elenco das virtudes ideais de fundo renascentista3. Abre-se assim a
argumentação acerca da soberania do Estado, necessariamente exercida sobre
um espaço circunscrito, isto é, sobre um território delimitado pelas respectivas
fronteiras, território esse potencialmente organizável, governável, mensurável,
até mesmo manipulável, entrevisto através das descrições geográficas, ou mais
propriamente corográficas, tomadas como escala obrigatória da grandeza
política do soberano, na procura da adequação do espaço ao exercício do poder
absoluto4, aspecto que a cartografia irá tornando cada vez mais explícito e
preciso.
Nessa procura, de faces múltiplas, o Estado Moderno (ou a sua
encarnação na figura do Monarca Absoluto) vê-se forçado a recorrer a um vasto
naipe de adereços e mecanismos persuasores no exercício da sua autoridade, o
que, como quase sempre se diz (e é difícil não repetir esta expressão
determinante), acabará por conduzir à construção mental do Barroco como
máquina de propaganda do poder. Tais mecanismos de persuasão encontram-se
quase sempre associados à natureza da Retórica, na maior parte das vezes
usada enquanto recurso metafórico, daí despontando o sentido da
representação e do teatro, e seus correlativos aspectos cénicos. Representação e
encenação, logo vivência teatral, duplamente confundidos e profundamente
alicerçados no que se poderia designar, talvez abusivamente, por uma ontologia
barroca, cujo fundo permite compreender o significado integrador desse tema
na Época Moderna. O conceito, aliás muito conhecido e mencionado, de Teatro
do Mundo, ou mesmo de Praça Universal, organiza a denominada cosmovisão
barroca, dominada pela noção do carácter transitório da vida, da mutabilidade
do mundo e da inevitabilidade da aparência, supondo os homens como actores
que se movimentam num palco, ainda que geometricamente ordenado.
Portanto, generalizando o sentido da vida como representação-encenação, em
que tudo é aparência e espectáculo, aparência dramática ou festiva. Contudo,
este mundo de aparências, por um lado de ecos platónicos, em que os
personagens operam num cenário ou jogo de ilusões e reflexos, não chega a
negar o valor da substância das coisas, numa cultura ainda maioritariamente
2 Vide BEBIANO. Rui. A Pena de Marte. Escrita da Guerra em Portugal e na Europa (Séc.s XVI XVIII). Coimbra. Minerva. 2000.
3 CURTO. Diogo Ramada. A Cultura Política em Portugal (1578-1642). Comportamentos, Ritos e
Negócios. Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas . Lisboa. 1994. p. 410.
4 CURTO. Diogo Ramada. O Discurso Político em Portugal (1600-1650). Lisboa. Universidade
Aberta. 1988. p. 177.
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fundamentada na tradição escolástica de raiz aristotélica. Será, de algum modo,
uma resposta colectiva face à perplexidade causada pelos paulatinos avanços
científicos e pela valorização da experiência, que enquanto observação empírica
ou percepção é ela própria enganosa, engendrando uma angústia apenas
ultrapassável na decifração desse jogo das aparências5.
A partir de uma tal noção de Teatro do Mundo poderemos entrever o
alcance do próprio conceito de Teatro da Guerra e do pathos marcial, numa
época em que os conflitos armados se tornaram uma constante ciclíca,
provocando extensos fenómenos de violência colectiva. A guerra como
instrumento indispensável à conservação do Estado, como garante da soberania
do território, da inviolabilidade das fronteiras e da submissão dos súbditos,
serviu-se de todos os recursos técnicos e avanços científicos nas suas múltiplas
demonstrações de poder, expondo-se numa sucessão de metáforas
mecanicistas. Sendo a fortificação parte essencial da máquina de guerra, tornase também signo da fronteira política entre os estados. Os exércitos e as praças
fortes passam a ser entendidas, projectadas e construídas como instrumentos
práticos e emblemas retóricos da máquina do poder, instrumentos de disciplina
e de violência, cujo teatro das operações resume assim o primeiro sentido do
teatro da vida. Concomitantemente, os vários aspectos da vida militar, das
cidades sitiadas às arquitecturas castrenses, servem esse mesmo desígnio do
poder absoluto e encenam até ao limite a representação do ritual da guerra, de
fundo primordial, mas nos séculos XVII e XVIII objecto de uma rigorosa
codificação de regras de encenação e actuação. Neste primeiro plano de
enquadramento na época barroca, a praça forte é, por si mesma, um cenário de
/ e para a guerra.
Deste modo, a cidade militar e respectivo aparato defensivo constitui-se
facilmente como prefiguração do palco da guerra, mesmo ainda ao nível da sua
representação gráfica, em desenhos dos mais variados tipos. Com efeito, desde
o elenco das incontáveis peças desenhadas feitas por engenheiros militares,
entre levantamentos, projectos, álbuns cartográficos e tratados, até à
representação iconográfica das cidades e suas defesas, permanece indelével a
imagem do poder encomendador, estabelecendo-se um primeiro grau da
retórica visual e da emblemática do barroco militar.
O desenho militar constitui uma configuração fundamental da imagem
política do monarca, até mesmo pela necessidade de tornar presentes
realidades quase sempre geograficamente distantes. Por outro lado, se os
levantamentos das fortificações foram durante muito tempo segredo de Estado,
entraram depois nas galerias palacianas, sobretudo no que se refere a tipos de
representação menos pormenorizada, mapas geográficos e perspectivas
urbanas, organizando espaços de exaltação heróica e constituindo mais um
processo de publicitação da imagem do poder político. Muito nomeada, no caso
português, é a Sala das Batalhas do Palácio Fronteira (Lisboa, 1670), revestida
por painéis azulejares glorificando as Batalhas da Restauração, onde, a par dos
personagens em exercícios militares, figuram as fortalezas, sobrepondo uma
5 Cf. MARAVALL. Op. Cit.. 1997. pp. 261-262. GOUVEIA. António Camões. “Estratégias de
Interiorização da Disciplina”. in MATTOSO. José (dir.). História de Portugal . Lisboa. Círculo de Leitores.
1993. vol. 4. p. 423.
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dimensão ao mesmo tempo épica, didáctica e lúdica6. Nos desenhos que usam
a perspectiva aérea ou na representação estritamente planimétrica, a cintura
abaluartada, cujos contornos geométricos se prestam facilmente a jogos visuais,
resume a imagem da praça de guerra. Não raramente, a figura da cidade
definida pelo seu perímetro abaluartado transforma-se em ícone da autoridade
e da força da Nação.
Torna-se também evidente uma cada vez mais exemplar conjugação do
rigor matemático com o máximo de eficácia figurativa. E isto principalmente
depois do contributo da escola holandesa seiscentista, de significativa
influência na Península Ibérica. Associando magistralmente a dimensão
científica com a dimensão retórica, a iconografia / cartografia militar tornou-se
num cotado instrumento de poder, reproduzindo simbolicamente a posse do
território assim representado7.
Deste entendimento da representação gráfica de fortificações, cidades e
territórios, facilmente se deduz, por ampliação, um concomitante desempenho
emblemático da arquitectura e urbanismo militares enquanto execução
material, como obras solidamente construídas no terreno. E, nesse sentido,
quer a implantação de fortalezas e cidades nos Novos Mundos, quer a adaptação
e modernização efectuada na defesa de cidades preexistentes do território
metropolitano, explicam a praça de guerra como elo de uma cadeia de acções
que objectivam uma manipulação política do espaço. Do ponto de vista da
estratégia militar, a implantação territorial das obras de defesa ou a
urbanização de terras inóspitas tem um fim basilar e uno: a definição e
conservação da fronteira, a conformação do território ao exercício do poder.
Qualquer que seja o recorte geográfico com que se desenhe o Império
Português, fisicamente descontínuo, observa-se que cada fronteira carecia de
consolidação e visibilidade. Mais ou menos estabilizada, mas disputada, no
território metropolitano, ou por conquistar, conhecer e desenhar nos confins
americanos, a questão fronteiriça tem idêntico sentido, fundindo num nexo
comum fortificação e urbanização. Do Algarve ao Minho, na sucessão de praças
de guerra na fronteira terrestre, da linha quase contínua de fortes marítimos
aos esforços de demarcação e urbanização do território brasileiro, a finalidade
permanece concordante: a garantia da soberania portuguesa através da
implantação estratégica de cidades, praças de guerra e fortes que procuram, no
limite da própria utopia, fechar todo o território, muralhar a totalidade da
fronteira8.
Também por isso, para além da própria capacidade defensiva, um
requisito básico, a praça de guerra funciona como peça de um xadrez mais
vasto e só pode ser entendida em termos de representatividade territorial, uma
vez que numa perspectiva estritamente operacional a cidade não se defende
6 ALMEIDA. Lilian Pestre d’. “O Teatro da Guerra da Restauração Portuguesa”. Monumentos.
Lisboa. nº 7. 1997, p. 77.
7 Cf. BUISSERET. David (dir.). Monarchs, Ministers and Maps. Chicago. University of Chicago
Press. 1992. SETA. Cesare de (dir.). Città d'Europa, Iconografia e Vedutismo dal XV al XIX Secolo. Nápoles.
Electa. 1996. BUENO. Beatriz. “Desenho e Desígnio - o Brasil dos Engenheiros Militares”. in Oceanos.
Lisboa. nº 41. 2000. pp. 40-59.
8 Nesse sentido é significativa a fronteira ocidental brasileira, formando uma “muralha virtual”,
segundo ARAUJO. Renata Malcher de. A Urbanização do Mato Grosso no Século XVIII, Discurso e Método.
Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa. 2000. p. 330.
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apenas a si própria, mas actua em rede na protecção da totalidade do espaço
nacional. Deste modo, é lícita, senão mesmo óbvia, a sua leitura como
Monumento, padrão construído na marcação e defesa dos limites. As praças de
guerra assumem, por isso, um valor de símbolo de soberania que consagra a
posse do espaço de que é representante e representação, enquanto forma
construída e enquanto emblema heráldico. À escala territorial, as praças fortes
são também as armas do rei9.
Construídas no terreno, expostas na sua materialidade plena, não
deixam ainda de transportar caracteres formais, estes estilisticamente mais
aproximáveis ao Barroco, como se torna explícito nos portais, onde se adensam
os conteúdos alegóricos10, e não será por acaso que o frontispício de grande
parte dos manuais de fortificação e dos álbuns de desenhos exibe a figuração de
portais ostentando uma por vezes desmesurada heráldica militar.
As portas da fortaleza são os elementos defensivos que maior conteúdo
urbano encerram e aqueles que mais influem na organização da rede viária e no
posicionamento da praça de armas. Surgindo na cintura fortificada pela
inevitável necessidade de comunicação com o exterior, são os pontos de maior
fragilidade defensiva, objecto de um cauteloso projecto e de requisitos
minuciosamente codificados na tratadística. Se a porta começa por dar resposta
a um conjunto de exigências funcionais, é também pensada e desenhada como
materialização alegórica, recomendando-se canonicamente o uso da ordem
toscana (sentido de fortaleza) ou dórica (sentido de gravidade), isto numa
intenção explicitamente retórica, porque “(…) deve ser no aspecto exterior algum
tanto rude para que represente austeridade, & horror significando assim ser a
Praça invencivel, & formidavel a seus inimigos.”11, vincando a pretendida
acentuação do furor marcial. Todos os tratados reproduzem idêntica
recomendação, mas na realidade, embora se observe um razoável cumprimento
destas prescrições, isso não parece revelar-se demasiado rígido. Com efeito, nos
territórios portugueses regista-se uma grande diversidade formal e tipológica,
até mesmo num único conjunto fortificado e até entre portas cronologicamente
aproximadas.
Do clássico arco pleno, ladeado por pilastras ou colunas, almofadadas ou
rusticadas, duplas ou escalonadas, aos entablamentos complexos, frontões
triangulares ou interrompidos, mísulas, nichos e volutas, sai reforçado um jogo
volumétrico de saliências e reentrâncias. Sempre rematada pelas armas reais,
presentes em muitos outros edifícios de equipamento militar, a porta serve, por
vocação, de suporte heráldico e quase pode ser lida como arco triunfal. É este o
veículo que converte a porta em signo identificador do lugar e sua categoria,
complementado propagandisticamente pela iconografia das armas reais,
apoiadas nos atributos militares figurados em canhões, tambores, balas e
estandartes, organizando composições de maior ou menor complexidade, de
9 Veja-se o Forte do Príncipe da Beira (Mato Grosso), aquele que melhor expõe o sentido de
“Monumento no Território”, tal como Renata Malcher de Araujo o qualificou (Op. Cit.. pp. 318-330).
10 MOREIRA. Rafael.“Do Rigor Teórico à Urgência Prática”. in História da Arte em Portugal - O
Limiar do Barroco. Lisboa. Alfa. 1986. p. 75.
11 PIMENTEL. Luís Serrão. Methodo Lusitanico de Desenhar as Fortificaçoens das Praças
Regulares, & Irregulares … Lisboa. Antonio Craesbeeck de Mello. 1680. p. 318.
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maior ou menor exuberância. A porta é, como tal, a primeira etapa para aceder
à boca de cena e penetrar no cenário.
2.- O uso ritualizado do cenário urbano: o teatro na praça de guerra.
Na imediata sequência das portas, portanto, na confluência com a estrada de
armas, é da boa regra da organização de uma praça de guerra existirem praças
de armas secundárias, preferencialmente de planta rectangular, integradas
hierarquicamente na rede viária subordinada à praça de armas principal,
idealmente impantada no centro geométrico da fortaleza. As praças de armas
secundárias, quase sempre terreiros de vastas proporções, “(…) são necessarias
para no tempo do assalto poderem estar formados os soldados, & promptos sem
as confusões, & embaraços que causão os apertos dos lugares em semelhantes
occasioens.”12. Mais até do que a praça de armas principal, onde se implantam
os equipamentos militares mais representativos, como a Casa do Governo das
Armas, e que por isso se prestam a um uso cerimonial mais solene, as praças
de armas secundárias são quase sempre o lugar de eleição para a formação das
paradas militares.
Como se sabe, a instituição de exércitos organizados, inscrevendo corpos
permanentes, decorre ao longo da Época Moderna, obrigando ao treino regular
dos contingentes, cuja movimentação no terreno é alvo de uma precisa
codificação fixada nos muito divulgados manuais de castrametação e de
opugnação. O tema da disciplina do exército, recrutamento, organização e
treino, é preocupação quase obsessiva dos governadores e oficiais. Assentes no
princípio da hierarquia, os corpos militares apresentam-se uniformizados, em
todas as acepções da palavra, devendo ser submetidos a treinos quotidianos,
entre exercícios, paradas e marchas, produzindo movimentações de carácter
quase coreográfico, com ritmos de forte componente sonora —os gritos de
guerra, o rufar dos tambores ou o toque dos metais, sons igualmente
codificados— de óbvio impacto na população civil.
Mais frequentemente em períodos de paz, e em particular depois do ciclo
das Guerras da Restauração, terminado em 1668, o exército é regularmente
convocado para participar nas cerimónias e festas públicas, num quadro
mental onde o valor da heroicidade guerreira e o prestígio social do militar
parecem manter-se intactos desde tempos ancestrais. Na verdade, a mudança
não estará tanto na valorização do tema da guerra, mas nas formas e amplitude
da sua demonstração, a maneira de fazer a guerra, a maneira de fortificar, a
forma de actuação dos soldados e oficiais, a sua apresentação pública, cada vez
mais disciplinada, sublimando o acto da guerra como espectáculo, na exacta
medida em que é encenado e visualizado. A parada militar nos séculos XVII e
XVIII converte-se, portanto, numa forma pública de representação do poder, de
afirmação da hierarquia política e social e, tal como outros rituais públicos do
Antigo Regime, está sujeita a uma normativa e enquadra-se nos objectivos
disciplinadores próprios do Absolutismo Régio13.
12 PIMENTEL. Luís Serrão. Op. Cit.. p.322.
13 Cf. BEBIANO. Rui. “Guerra”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal . Lisboa. Presença.
1989. pp. 216-217. CURTO. Diogo Ramada. Op. Cit.. 1994. p. 19.
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São em grande parte conhecidos o significado e os mecanismos de
montagem das festas celebrativas nesta época, prática internacional com
apreciáveis manifestações no caso português, aspecto que, em si mesmo, não
será avaliado neste texto, procurando-se antes perscrutar o modo particular
como decorre esse tipo de celebração numa praça de guerra e, principalmente,
a forma como a severidade da mentalidade castrense parece adequar-se à
exuberância do espectáculo e ao imaginário barroco. Um dado importante a
sublinhar é que, se a comemoração tem o seu centro em Lisboa, a capital do
Império, está igualmente presente em lugares periféricos em todo o espaço
português e, do mesmo modo que se documenta uma festa na praça de Almeida
na fronteira da Beira, o mesmo acontece, por exemplo, na fronteira brasileira
mais ocidental, nos confins do Mato Grosso, onde Vila Bela exibia mesmo uma
“casa de ópera” e os militares participavam activamente na preparação das
representações teatrais, numa evidente expressão de sentido civilizador14.
Nesta perspectiva o minucioso relato dos festejos organizados em
Almeida em 1760, em pleno período pombalino, por ocasião do casamento entre
a Princesa do Brasil D. Maria e o Infante D. Pedro, constitui uma síntese
exemplar da convivência estreita e intrincada entre as esferas civil e militar.
Apresentando um programa estereotipado, afastada da solenidade da Corte e
numa vila de fronteira, sede da Província das Armas da Beira, a celebração do
casamento régio assume aqui algumas especificidades significativas.
As festividades, que decorreram durante os meses estivais, não foram
organizadas pelo Senado da Câmara, como seria habitual, mas pelo próprio
Governo Militar, então dirigido pelo Mestre de Campo General Manuel Freire de
Andrade, a quem devemos uma pormenorizada descrição15. Esse facto não
deixa de ser dissimuladamente referido, contando o governador que “(...) sem
perda de tempo, annunciou esta feliz nova á Nobreza, Clero, Corpo Regular das
Tropas, e por carta ao Senado (…).”16. Ou seja, é o poder politicamente mais
forte e activo que encabeça a organização do evento e que o publicita, facto que
já antes tinha acontecido em Almeida, em 1759, pela ocasão das festas de
regozijo pelo fracassado atentado contra D. José17.
As festas de 1760 encontram-se unicamente documentadas pela relação
feita pelo governador, sem qualquer ilustração, mas contendo uma extensa
narrativa (136 páginas), que inclui apêndices com a reprodução das peças
representadas. Portanto, o que conhecemos é através do seu ponto de vista,
numa prosa que podemos perceber típica das descrições laudatórias, onde
abundam os adjectivos superlativos e o exagero deslumbrado pela
excepcionalidade do evento. Entre a realidade e a simulação, fixando um ponto
onde a descrição da festa tenta perpetuar a memória do que é por natureza
14 Cf. ARAUJO, Renata Malcher de. Op. Cit.. pp. 574-580.
15 ANDRADE. Manuel Freire de. Diário das Festas com que na Praça de Almeida se Festejou a
Feliz Notícia do Faustíssimo Despozório, Celebrado no dia 6 de Junho do Presente Anno, entre a
Augustissima Senhora Princeza do Brasil, Nossa Senhora, e seu tio o Serenissimo Senhor Infante Dom
Pedro… Coimbra. Real Officina da Universidade. 1761. Parcialmente estudado por TEDIM. José Manuel.
“Uma Festa Militar em Almeida na 2ª Metade do Séc. XVIII”. in Revista de Ciências Sociais da
Universidade Portucalense Infante D. Henrique. Porto. vol. VI. 1991. pp. 229-243.
16 ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. p. 3.
17 Gazeta de Lisboa, 4 Janeiro 1759, citado por TÉRCIO. Daniel. Dança e Azulejo no Teatro do
Mundo. Lisboa. Inapa. 1999. p. 67.
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efémero, funde-se o contraste entre o civil e o militar, entre uma alegria festiva e
uma solenidade mais severa, denunciando uma dinâmica profundamente
barroca e urbana.
Figura 2: Escadas do Quartel de Infantaria, Almeida, 1995
A sequência dos festejos mostra o recurso a um programa já testado e
habitual neste tipo de celebrações. Feito o pregão em Junho e afixado o
calendário das festas no pelourinho, seguiram-se três noites de luminárias,
ficando a guarnição responsável pelas salvas de tiros. Formaram-se três coros,
os tambores foram colocados no alto das Portas de Santo António e no Baluarte
de Santa Bárbara, os timbales e clarins nas Portas de S. Francisco, delimitando
o coincidente perímetro urbano e defensivo. Os edifícios mais importantes (a
Igreja Matriz, o Convento das Religiosas, a Casa da Câmara, o Pelourinho, o
Hospital Militar, a Vedoria) e em geral toda a praça “(...) se illuminou com a
melhor symetria, e gravidade, que já mais se vio nella: (…) formavão as ruas
illuminadas (…) a mais grata, e deleitavel perspectiva que póde fingir a mais
fecunda imaginação.”18. Este espectáculo, onde a iluminação artificiosa se
misturava com uma musicalidade militar, enfatiza claramente a força dos sons
militares, normalmente presentes na festa barroca, mas obviamente acentuados
numa vila cuja população era na maioria composta por militares e que era um
dos palcos oficiais da guerra.
18 ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. p. 5.
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O programa prosseguia depois com a habitual animação dos bailes,
“máscaras, danças, entremezes, e toda a diversão séria, e burlesca que podia
excogitar a curiozidade, e o gosto”19. Seguiram-se os eventos que exigiam maior
preparação, que decorreram em Agosto e Setembro, três dias de Comédias,
obrigatórias nas festas barrocas, três dias para Touros, três dias para
Cavalhadas, e a apoteose final, três dias para o Ataque e Defensa de huma
Praça artificial ou Ensayo Militar. Evidentemente, cada uma destas etapas foi
descrita passo a passo, demonstrando o empenho entusiástico de todos os
participantes, maioritariamente militares, bem como uma hábil utilização, e
disfarce, do espaço urbano. Por exemplo, à porta do Trem de Artilharia
concentraram-se “(...) mais de outenta mascarados, galhardamente vestidos de
homem, e mulher, segundo diversas figuras que reprezentavão; e entre ellas
huma dança de Pretos, tão propria como engraçada.”20. Seguiu-se depois o
desfile pelas ruas principais, percorrendo a Rua Direita até à Praça, e daí para o
Terreiro das Freiras ou Terreiro da Parada, a praça de armas secundária aberta
junto às Portas de S. Francisco.
Este último local foi o escolhido para palco principal dos festejos, uma
vez que constituía o espaço simultaneamente mais amplo e versátil, sem deixar
de ser um ponto de referência urbana e militar. Localizava-se aí, para além da
Igreja da Misericórdia e do Convento do Loreto21, o Quartel de Infantaria com
maiores dimensões na Praça de Almeida. O aproveitamento cénico deste espaço
e deste edifício merece uma análise mais detalhada. Na verdade, reflecte-se aqui
um uso barroco de edifícios utilitários e militares e, talvez até mais do que isso:
observam-se construções que, privilegiando a solidez, a funcionalidade e a
simplicidade, revelam também pequenos pormenores na sua concepção que as
habilita facilmente a este tipo de usos, expondo o próprio sentido militar da
solenidade.
A construção deste quartel de infantaria situa-se entre 1736 e 1749,
sendo provavelmente projecto do próprio Engenheiro-mor do Reino, Manuel de
Azevedo Fortes, assistido pelo Capitão Engenheiro José Fernandes Pinto de
Alpoim. Posicionando-se como objecto final de uma série de quartéis de
infantaria existentes nas praças portuguesas, apresenta um desenho
excepcional, bastante mais complexo do que a sua aparência revela22.
Resumidamente, o quartel tem uma planta rectangular alongada e dois pisos,
sendo composto por dois volumes sobrepostos de modo escalonado. Cada piso
compreende 21 módulos transversais, subdivididos em duas casetas. Definemse assim dois alçados muito compridos, destacados no piso térreo através de
uma arcada contínua, rematada por uma varanda para acesso ao piso superior,
onde o ritmo das aberturas se torna mais simples. Os alçados correspondentes
aos lados menores da planta comportam-se de maneira a iludir a classificação
19 Ibidem, p. 6.
20 Ibidem, p. 7.
21 Depois da destruição provocada pelo cerco de 1762 o convento foi transformado em Hospital
Militar e Quartel de Infantaria (cf. CONCEIÇÃO. Margarida Tavares da. Formação do Espaço Urbano em
Almeida (séculos XVI - XVIII). Da Vila Cercada à Praça de Guerra. Dissertação de Mestrado, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas. Lisboa. 1997. pp. 391-394).
22 Para mais pormenores e acerca da tipologia dos quartéis veja-se CONCEIÇÃO, Margarida
Tavares da. Op. Cit.. pp. 407-420.
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de uma fachada principal. O alçado virado para o terreiro é aquele que mais se
aproxima dessa qualidade, servindo de suporte à escadaria desenvolvida em
três lanços, vincando um ressalto na contenção planimétrica do edifício e
truncando em parte a regularidade do terreiro, preterida em face de um sentido
mais espectacular e cenográfico, catalisando o efeito de surpresa e potenciando
o aproveitamento para o aparato teatral, tal como de facto aconteceu. É de
notar que todo o edifício se prestava a tal uso. Este fenómeno de apropriação
barroca de um objecto arquitectónico é particularmente notável na medida em
que o Quartel de Infantaria constitui uma antítese da arquitectura
estilisticamente convencionada como barroca. Esta interpretação fixa-se
principalmente na escadaria, no diálogo que estabelece com o terreiro e no
modo como funciona enquanto ponto de partida, indutor de vários percursos
circulares.
O Terreiro da Parada e o Quartel de Infantaria constituíram o local de
eleição para os acontecimentos mais significativos do programa das festas. Para
a representação das comédias, “se erigio hum soberbo Theatro, encostado ás
escadas dos Quarteis”, um cenário desenhado pelo Ajudante de Cavalaria com
exercício de Engenheiro João Bernardo Real da Fonseca, a trabalhar em
Almeida desde 1757. A descrição do teatro é eloquente, na combinação entre o
rigor descritivo e o deslumbramento da decoração: “Teve de boca 72 palmos, e
de fundo até às primeiras portas, 32. O prospecto, no primeiro andar, se
compunha de nove portadas, oito á primeira face, e a do meio em figura
convexa; todos os seus cortinados erão de Damasco côr de ouro, com franja de
requife pelo gosto moderno; e as divizões entre porta, e porta, que fingião as
paredes, de damasco carmezi. O Segundo andar formava huma galaria, que se
dividia do primeiro por hum pano de matís verde alcachofrado de ouro. As
paredes deste segundo andar erão forradas de Damasco da mesma côr de ouro,
e os cortinados, e sanefas de melania encarnada, agaloadas, e franjadas de
ouro, tudo na mais regular symetria. Nas tres janellas grandes do meyo se
acomodarão tres vazos de flores. O terceiro andar de cima rematava em hum
soberbo Pavilhão, encarnado, guarnecido de franjões, que descendo pelos lados,
acompanhava todo o frontespicio até o primeiro andar, tomadas as quartellas
ou festões com cordões e borlas de ouro. No meyo desta fachada e debaixo do
Pavilhão que lhe servia de docél, se acommodou huma tarja de onze palmos de
altura, em que estavão as Armas Reaes, orladas de instrumentos belicos pelo
gosto Frances Moderno (…). Nos dous lados pendião os estandartes Reaes da
Camera e Védoria. (…). Nas duas varandas dos Quartéis que correspondião por
hum e outro lado a esta fachada, se formarão dous Coretos; o da direita para os
Clarins, Timbáles, Trompas e Abués; e o da esquerda para todos os Tambores
da Guarnição, Forrados de damasco por diante; o que tudo formava o mais
deleitozo objecto á vista, em que he diminuto todo o encarecimento.”23.
Esta transcrição justificar-se-á pelo modo como se conjugam aqui quase
todas as características dos relatos deste género de eventos. Torna-se evidente
um deslumbramento pela cor e riqueza dos tecidos, pelo ornato e sua
composição na “mais regular simetria”, não esquecendo o governador a
referência ao “gosto Francês moderno”. A boca de cena é descrita até à
exaustão, mostrando-se o governador completamente fascinado com os efeitos
23 ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. pp. 11-12.
1290
conseguidos, e muito especialmente com o guarda-roupa, dispensando-lhe
abundantes páginas, num óbvio deslumbramento pelo luxo da sumptuária
têxtil.
Enquanto isso, as peças teatrais evidenciam um tom ao mesmo tempo
jocoso e cortesão, sendo os vários papéis desempenhados por oficiais do
exército e da vedoria. As peças principais eram antecedidas por uma loa, na
qual um alferes fazia de Minerva, um engenheiro de Vénus, um tenente de
Délio, um outro alferes de Reino de Portugal e um oficial da vedoria de Oriente.
Portanto, o habitual recurso aos temas mitológicos de fundo classicizante e o
profundo gosto pelas manipulações alegóricas. Seguiram-se as comédias Duelos
de amor y lealdad , Para vencer Amor querer vencerle e Darlo todo, y nò dar nada
e, como sempre, nunca se fala do valor literário de tais representações. Tanto os
galãs como as damas foram representados por um tenente, um alferes, um
comissário de mostras e um oficial da vedoria, e ainda pelo médico da praça. Os
papéis secundários foram atribuídos aos filhos de vários oficiais do exército. É
de extremo significado a participação activa dos militares como actores, afinal a
guarnição quase utilizada como companhia teatral, em que o engenheiro se
transfigura em cenógrafo. Contudo, noutros contextos, existem também
referências à participação de engenheiros militares e matémáticos na
construção de arquitecturas efémeras24. A componente civil da vila é
claramente secundarizada: o narrador tem ainda o cuidado de indicar que os
camarotes da primeira fila ficaram reservados para as autoridades e “outras
Pessoas de distinção”, enquanto lateralmente, junto ao tablado, se situavam os
destinados ao Senado da Câmara e aos particulares.
Após as representações foi necessário desmontar o teatro para dar
continuidade ao programa das festas. No mesmo Terreiro da Parada construiuse então uma arena para as touradas, formando um recinto de “figura
quadrada”. As touradas eram regidas por um cerimonial rigoroso, ao contrário
das cavalhadas, espécie de torneios livres, de gosto mais popular e que eram
alternadas com danças e mascaradas de grande complexidade cénica, fazendo
amplo recurso, uma vez mais, à guarnição militar.
Numa fase de plena maturidade do complexo desenvolvimento das
técnicas de aparato teatral, percebemos que, dentro da panóplia de efeitos e
estruturas para-arquitectónicas documentadas, a celebração em Almeida não
terá sido das mais sofiscadas: não foram construídos arcos triunfais, nem
carros alegóricos e os espectáculos não foram dos mais engenhosos na
concepção de artefactos inusitados ou de surpreendentes maquinismos.
Sabemos ainda, que após as representações se seguia à noite o fogo de artifício
preso, “(…) fogo festivo de corda, montantes, carretilhas, brigas e outros de
igual natureza prezos, prohibindo o nosso prudente e cauteloso general se
24 Como exemplo, cite-se o caso de João dos Reis ou Johan Koening, jesuíta alemão e
matemático, que desenhou a arquitectura efémera reunida no manuscrito Copia dos Reaes Aparatos e
obras que se ficerãm em Lixboa na occasiãm da Entrada e dos Desponzorios de Suas Maiestades. Lisboa.
1687 (BN. Ms. AT 317). Outro exemplo é o pavilhão construído em 1729 para a cerimónia da Troca das
Princesas , do sargento-mor engenheiro Francisco Pereira da Fonseca (cf. TEDIM. José Manuel. Festa
Régia no Tempo de D. João V. Poder. Espectáculo. Arte Efémera. Dissertação de Doutoramento,
Universidade Portucalense Infante D. Henrique. Porto. 1999. Cap. 7).
1291
saltasse o do ar, lembrado dos tragicos sucessos que tem experimentado esta
Praça, Guarnição, e moradores, ateando-se o fogo nos Armazens da polvora.”25.
Estudo recente 26 demonstra a importância do fogo de artíficio como
componente indispensável ao aparato da festa barroca, objecto até de manuais
da especialidade. Salienta ainda o seu sentido profundamente marcial, usando
a pólvora com fins espectaculares, onde pontifica a ilusão da vitória e onde se
não dispensa a participação dos artilheiros. Até finais do século XVII a
encenação de carácter militar é uma constante nos espectáculos pirotécnicos,
traduzindo-se na simulação de combates navais ou ataques a castelos e
fortalezas, com a construção de peças de arquitectura militar efémera.
Documentado em vários casos portugueses, o motivo dos chamados “castelos
de fogo” era frequente, simbolizando a luta contra os inimigos da Fé, através
dos quais eram glosadas cenas guerreiras míticas, da tradição clássica (as
Guerras de Tróia, o mito de Vulcano) ou cristã (Babel, David e Golias),
actualizadas depois nos combates contra os Turcos27, na persistência de um
simplismo maniqueísta onde ecoam velhas tradições de luta ritual entre as
forças do bem e do mal28.
Figura 3: Manuel Freire de Andrade, Attaque e Deffença das Praças em geral …Vila Viçosa.
1753, estampa 19ª (BN Pomb 188)
25 ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. p. 17.
26 CORREIA. Ana Paula Rebelo. “Fogos de artíficio e artíficios de fogo nos séculos XVII e XVIII: a
mais efémera das artes efémeras”. in Arte Efémera em Portugal . Lisboa. Museu Calouste Gulbenkian.
2001, pp. 101-141.
27 Como por exemplo em 1686, na festa do casamento de D. Pedro II com D. Maria Sofia de
Neuburgo, quando decorreu uma simulação de um combate entre turcos e cristãos, construindo-se um
forte abaluartado em madeira. Cf. COSTA, António Rodrigues, Embaixada que fes o Excellentissimo
Senhor Conde de Villar-Maior (…) Conduçam da Rainha Nossa Senhora a estes Reinos… Lisboa. Oficina de
Miguel Manescal. 1694.
28 BONET CORREA. Antonio. Fiesta, Poder y Arquitectura. Aproximaciones al Barroco Español.
Madrid. Akal. 1990. p. 23.
1292
Finalmente, o Ensaio militar ou ataque e defesa duma praça simulada e
ocupada por 63 Turcos encerrou as festas, destacando um acto final de sentido
ritual e aparatoso, uma cerimónia solene, mas também um espectáculo de
intenção pedagógica e propagandística, como veremos. O evento foi anunciado
através da recitação de um Romance Heroico, da autoria de um alferes de
cavalaria, por ocasião da cerimónia do Levantar do Mastro, espécie de cortejo,
onde se convocavam as “iras formidáveis” de Marte, desenrolando-se um desfile
tão solene, quanto burlesco, aliás, uma noção igualmente muito cara à
paradoxal mentalidade barroca.
Destaca-se em Almeida a óbvia particularidade de não ser necessária a
construção de qualquer arquitectura efémera para este acontecimento. O
cenário era a praça de guerra real e tratava-se apenas de representar a peça,
que neste caso preciso se confunde profundamente com o sentido de exercício
militar, o que a própria designação do evento, ensaio militar, torna explícito.
Ainda assim, sentiu-se necessidade de um determinado arranjo espacial, que
fizesse a diferença entre os exercícios quotidianos e os dias de festa,
preparando-se o terreiro para a exibição. Foi montado um camarote onde o
governador e o general assitiram ao espectáculo, enquadrado por um jardim
fingido concebido pelo Prior do Hospital Militar. É de sublinhar o recurso
frequente ao verbo fingir, demonstrando um evidente deleite nos motivos
inventados, mas referenciados a objectos reais, conjugando uma nítida
preferência pela alegoria e pelo sentimento de evasão. É ainda nesse tom que o
governador vai descrevendo o combate simulado, no qual os trajes e a
decoração urbana lhe causam um indisfarçável deslumbramento, parecendo,
apenas aparentemente, merecer-lhe um mais meticuloso relato.
Na verdade isso acontece porque o Diário das Festas inclui apenso um
muito extenso guião do ensaio militar, ocupando cerca de metade das páginas
impressas, sendo designado expressivamente por Formulario para o Ataque, e
Defensa da Praça. A estrutura deste último texto inclui tanto a descrição
minuciosa do que os actores-militares deveriam fazer e dizer, de como se
deveriam movimentar e comportar, bem como demorados monólogos em forma
de ordens ou leitura das cartas que se trocariam entre as forças inimigas.
Assim, o primeiro dia é ocupado pelos preparativos do assalto, começando por
se proceder ao reconhecimento da praça turca a atacar, pelo que o engenheiro
deveria examinar o terreno, “em que fará as suas observaçoens, notando em
hum plano quanto for observado, com a pena lapis.”29. Depois os generais
escolhiam o sítio onde o exército deveria acampar e, juntamente com o
engenheiro, decidia-se a abertura da trincheira. Terminadas estas manobras,
saía e atravessava o terreiro um corpo de Turcos, que se introduzia na fortaleza,
com “grande gritaria e ameaços”. Seguiam-se minuciosas indicações dos
trabalhos a efectuar, indicações de claro sentido didáctico, quase retiradas de
um manual, como por exemplo “o fazer da Guarnição huma sahida ao Terreiro
cortando as Arvores que estiverem plantadas nelle, e recolhendo-se huns e
outros com enxadas, e picaretas, mostrando que fachinão os redores da Praça,
tapando as covas, derribando as paredes, vallados &c. o que se fás com dous
29ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. p. 84.
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objectos; o primeiro para ficar a campanha livre debaixo do fogo da Artilharia; e
o segundo, para que os sitiantes não possão prevalecer-se destas vantagens
para principarem as suas trincheiras mais perto, caminhando com os trabalhos
para trás, como não ignorão os que sabem, nem os que estão cabalmente
instruidos nesta belissima parte da Guerra.”30.
Prosseguia depois uma cena burlesca, espécie de intermezzo para
desenfado do público, quebra que também se repetiria nos dias seguintes. A
acção avançava com a montagem do acampamento e respectiva logística,
procedendo os efectivos a diversas formaturas, sendo indicadas as precedências
e a orientação das conversões nos movimentos de marcha, efectuadas em
“compassada distância”, numa sucessão de esclarecimentos que mais parecem
retirados de um tratado de castrametação. Diversos tipos descargas de
artilharia alternavam com o silêncio nos momentos mais solenes, finalizando o
dia com uma “descarga geral”, seguida de três Vivas aos augustos consortes.
No segundo dia procedia-se à primeira tentativa de assalto à Praça,
descrevendo-se o procedimento das movimentações e fazendo-se a entrega de
uma carta aos Turcos, com a proposta da sua rendição, o que era negado. É de
notar o cerimonial rigoroso da troca de cartas, onde avulta a preocupação com
os códigos de honra e o respeito pelas leis do Direito Natural. Tais missivas
deveriam ser lidas em alta voz, e depois, também para “inteligencia do
Auditorio”, eram lidas as “Ordens que se hão de observar na conducta dos
trabalhos até a ultima paralela pelos Engenheiros e Directores da Trincheira”,
seguindo-se as “Ordens que se hão de observar no Ataque pelo que respeita ás
Tropas, e ás Guardas que devem diariamente montar a trincheira”31, ordens
numeradas e bem organizadas, onde se especificam todos os detalhes técnicos.
Continuava depois a marcação no terreno das paralelas e aproches, travando-se
combates entre turcos e cristãos. Faziam-se prisoneiros entre ambas as partes,
proporcionando uma cena burlesca, retomando-se nova troca de cartas
propondo a rendição da Praça e sequente troca dos prisioneiros, segundo o
devido formulário. A acção incluía ainda a leitura das “Ordens geraes para o
insulto das obras exteriores por hum assalto brusco”32, também
minuciosamente enumeradas, após o que se observava a formação do reforço
das tropas assaltantes e respectivas manobras, acompanhadas de sucessivas e
fortes descargas de fogo.
O assalto final tinha lugar no terceiro dia, quando os jogos de artilharia
se tornavam mais intensos, havendo “muitos mortos fingidos”. As tropas
dispunham-se para o assalto e depois, já em silêncio, eram declaradas as
“Ordens que se hão de observar no Assalto das Brechas por huma conduta
fundada em sopreza, intentando ganhar a Praça á força de armas, por hum
Ataque brusco, rodeante, e de alta mão, dando tudo á fortuna”33.
Detalhadamente explicada, a acção concreta era executada, “tudo com boa
ordem sem confuzão alguma”, acompanhada pelos sons da artilharia e dos
tambores, trombetas e timbales. Por fim, os turcos rendiam-se, transcrevendo30 Ibidem.
31 Ibidem.
32 Ibidem.
33 Ibidem.
p. 85.
pp. 98-113.
pp. 109-114.
pp. 120-124.
1294
se a carta de rendição e os artigos da capitulação, terminando por aqui o
Formulario.
O modo como na época foi apreendido este espectáculo é avaliado pelo
governador nas páginas do diário propriamente dito. Tudo parece ter decorrido
como meticulosamente planeado, mostrando-se a “mais regular e exacta
disciplina”, mas também o “grande furor e perícia militar”, em que o cheiro
intenso da pólvora e os sons brutais dos rebentamentos fizeram com que, “(...)
especialmente nos assaltos, os julgou o Auditorio ao vivo (...).” e “(…) na
compozição das massas bravas das espoletas da Pessinha da nova invenção,
das Bombas, Granadas, e Carcaças artificiaes, Petardos, e Minas falsas, que
produzirão tão estrondozos effeitos, que parecia nos assaltos se passava do
figurado à figura (...).”34. O espírito castrense revelava-se assim vinculado a um
momento caracteristicamente barroco.
No entanto, o rigoroso programa técnico e táctico expõe a figura que o
concebeu e organizou, o Mestre de Campo General Manuel Freire de Andrade,
Governador das Armas da Província da Beira, que chegou a Almeida em 1758,
isto é, dois anos antes destas celebrações. Dele sabemos que, sendo um
veterano da Guerra da Sucessão de Espanha, assinava em 1753, na qualidade
de Sargento-mor de Batalha, Governador da Praça de Elvas e Governador
interino das Armas da Província do Alentejo, um manuscrito intitulado Attaque
e Deffença das Praças em geral 35. Trata-se de uma obra em quatro volumes
(num total de 1813 fólios), incluindo desenhos à pena e contendo propriamente
dois tratados, um sobre o Ataque, e outro sobre a Defesa, cada um em dois
tomos. Integra ainda um Tractado das Minas em geral, o Diario do Sitio de Lilla,
a Recopilação do Sítio de Belgrado, um Tratado da Catapulta e o Tratado das
contraminas por Folard. Inevitavelmente, fica deste modo explicado a habilidade
dramatúrgica e a fluência de tão rigoroso Formulário, mistura perfeita do
manual didáctico com o guião para uma encenação teatral, associando
magnificamente a ilusão da festa, um forte sentido da pedagogia militar e a
intenção propagandística, o que é expresso nas próprias palavras do
governador: “(...) servio de gostozo objeto aos prezentes, e servirá de modello, e
instrucção para os vindouros, em beneficio do serviço do Rey, e da Patria, por
se fundar no melhor sistema, e com algumas delicadezas não lembradas de
todos os Modernos.”36.
Observa-se, portanto, que a simulação do assalto foi, num único
momento, teatro e treino prático da guerra, afinal as duas faces da mesma
moeda, ou os dois lados do espelho da sociedade em meados de Setecentos. É
sabido que na vida militar os exercícios controlados da violência eram (e ainda
são) fundamentais, sendo indispensável todo o tipo de treinos e ensaios
regulares para manter a disciplina de combate, a ordem da guarnição e a
operacionalidade das obras de defesa. Oferecia-se aqui uma ocasião de ouro
para um verdadeiro aparato e triunfo bélico, absolutamente essencial para a
coesão militar em tempo de paz. O conjunto das festas constituiu, enfim, uma
catarse militar e colectiva, na qual a Praça de Guerra conseguiu experimentar
34 Ibidem. p. 25.
35 ANDRADE. Manuel Freire de. Attaque e Deffença das Praças em geral. Conçagrado a Augusta e
Figdelissima Magestade de El-Rey nosso Senhor D. Joseph 1º. Vila Viçosa. 1753. BN Pomb. 188-191.
36ANDRADE. Manuel Freire de. Diário das Festas… pp. 22-23.
1295
uma atmosfera de sabor barroco, em pleno ambiente de austeridade castrense e
num cíclico teatro da guerra. Com efeito, depois da ilusão da vitória, dois anos
depois destas celebrações, em 1762, a Praça de Almeida sofria um cerco muito
violento e destrutivo, capitulando estrondosamente. Entre a vitória simulada e a
derrota real, entre o aparente jogo da vida e a certeza da morte, sente-se o
extremado dramatismo dos contrastes definidores da mentalidade barroca.
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