A PRAÇA DE GUERRA COMO CENÁRIO BARROCO
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A PRAÇA DE GUERRA COMO CENÁRIO BARROCO
A PRAÇA DE GUERRA COMO CENÁRIO BARROCO Margarida Tavares da Conceição (Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Portugal) Sob vários pontos de vista, e pensando até a sua função estritamente militar, a praça de guerra pode ser entendida como manifestação da cultura e da mentalidade barrocas. Como modelo teórico, a praça de guerra começa por ser uma cidade militar, unidade operativa inserida numa hierarquia de âmbito territorial, constituindo sem dúvida um ícone representativo que resume a força do braço militar do Estado Moderno. Ainda enquanto intenção ou projecto, com um desenho mais ou menos sofisticado, experimentando uma geometria mais ou menos complexa, pontuando sempre a linha de fronteira nas representações cartográficas, a praça de guerra é, desde logo, uma afirmação da lógica castrense do poder político nos séculos XVII e XVIII. Quando construída e equipada no terreno, a praça de guerra adquire uma realidade material e percepcional, cujo significado é também inequívoco. Independentemente da sua maior ou menor operacionalidade militar, constitui o símbolo monumental da pertença de um território a determinado poder. Sintetiza, por definição própria, o palco do teatro de guerra, onde se inscrevem igualmente alguns traços estilísticos indelevelmente barrocos na sua concepção. Uma tal intencionalidade retórica ainda é mais perceptível num terceiro nível de análise, o da vivência dos espaços. O vasto catálogo de exercícios militares invade o espaço urbano e transforma a arquitectura utilitária ou de equipamento em boca de cena. Esse sentido é especialmente visível num caso exemplar, que serviu de pretexto para uma análise mais detalhada: as festas realizadas em meados do século XVIII na Praça de Almeida, quando um quartel de infantaria foi utilizado como suporte para os cenários e nas quais o denominado Ensaio Militar ou Ataque e Defesa duma Praça Simulada, que encerrou este evento militar, reflecte claramente a natureza barroca da praça de guerra e transforma-se numa súmula do seu significado teatral. Portanto, mais do que demonstrar o uso efectivamente festivo do espaço urbano militar, isto é, aquilo que reflecte a aparência mais exuberantemente barroca, parece desenhar-se uma intenção teatral mais profunda que poderá estar na própria raiz do conceito militar da praça de guerra e que, por sucessivos reflexos no jogo especular da cultura barroca, nos devolve o sentido da representação, como espectáculo, aparência e autoridade. 1 - O teatro da guerra no teatro do mundo: a montagem dos cenários. A guerra é um tema omnipresente na cultura barroca. Na referência aos assuntos militares, e nas mais diversas fontes documentais, é recorrente o recurso às expressões teatro de guerra, teatro de operações e muitas outras que remetem para o sentido de jogo táctico e de xadrez político. Metáforas teatrais que servem amplamente a alegoria do poder, numa manipulação semântica que as sociedades dos séculos XVII e XVIII elevaram à categoria de ciência militar, ou mais reconhecidamente como arte militar barroca, um conceito suficientemente assimilado na historiografia e que tende a referir-se aos padrões da organização do exército e dos movimentos das tropas no terreno, numa crescente codificação das técnicas de Ataque e de Defesa, componentes indispensáveis nas matérias tratadísticas sobre fortificação. A substância da fortificação, desde o seu quadro conceptual até à sua realidade física, é legível através dos postulados racionalistas, firmemente alicerçados no exercício das ciências matemáticas, em especial da geometria. No entanto, a progressiva especialização das técnicas defensivas e dos (muito cartesianamente) denominados métodos da fortificação mostra também, de modo intrincado, mas sem contradição de princípios, uma ligação de sentido barroco à sociedade que enforma o Estado Moderno. Nesse contexto convivem os processos matemáticos da engenharia militar e o aparato das festas urbanas, conformando-se no mesmo espectro cultural, apenas confirmando o celebrado e organizado jogo de contrastes tão caro à definição do Barroco, definição escudada já numa extensa bibliografia, onde se destacam os estudos de José Antonio Maravall, clarificando a fixação do Barroco como estrutura cultural e mental do Absolutismo Régio1. Figura 1: Quartel de Infantaria, Almeida, 1957 (DGEMN) Nesse sentido, o entendimento dos vectores militares obriga, ainda que de forma breve, a recuar ao problema da formação do Estado Moderno, formação aliás coeva do desenvolvimento da fortificação abaluartada, apoiandose em conceitos políticos de recorte clássico, mas anunciando de algum modo os filões do pensamento racionalista pré-cartesiano. Ficou marcada, desde o 1 MARAVALL. José Antonio. A Cultura do Barroco. (1975). Lisboa. Instituto de Novas Profissões. 1997; Estado Moderno y Mentalidad Social . Madrid. Alianza. 1986. 1281 célebre paradigma do Príncipe maquiavelista, a preocupação pela fixação das regras do bom governo da República, reinaugurando uma abundantíssima literatura política lida pelos mesmos homens que coleccionavam tratados de fortificação, que praticavam a guerra e que comandavam a construção das defesas. Os numerosos escritos de teoria política e sua diversificada tipologia2, revelam, sobretudo na transição para o século XVII, o repetido cuidado no aconselhamento do Monarca com vista à reforma e Conservação das Monarquias, uma expressão presente em numerosas obras, numa fase em que o ideal da República vai sendo substituído pela ideia de Estado. A própria difusão do conceito de Razão de Estado demonstra uma valorização de fórmulas pragmáticas na organização institucional, que tendem a ganhar relevância sobre o elenco das virtudes ideais de fundo renascentista3. Abre-se assim a argumentação acerca da soberania do Estado, necessariamente exercida sobre um espaço circunscrito, isto é, sobre um território delimitado pelas respectivas fronteiras, território esse potencialmente organizável, governável, mensurável, até mesmo manipulável, entrevisto através das descrições geográficas, ou mais propriamente corográficas, tomadas como escala obrigatória da grandeza política do soberano, na procura da adequação do espaço ao exercício do poder absoluto4, aspecto que a cartografia irá tornando cada vez mais explícito e preciso. Nessa procura, de faces múltiplas, o Estado Moderno (ou a sua encarnação na figura do Monarca Absoluto) vê-se forçado a recorrer a um vasto naipe de adereços e mecanismos persuasores no exercício da sua autoridade, o que, como quase sempre se diz (e é difícil não repetir esta expressão determinante), acabará por conduzir à construção mental do Barroco como máquina de propaganda do poder. Tais mecanismos de persuasão encontram-se quase sempre associados à natureza da Retórica, na maior parte das vezes usada enquanto recurso metafórico, daí despontando o sentido da representação e do teatro, e seus correlativos aspectos cénicos. Representação e encenação, logo vivência teatral, duplamente confundidos e profundamente alicerçados no que se poderia designar, talvez abusivamente, por uma ontologia barroca, cujo fundo permite compreender o significado integrador desse tema na Época Moderna. O conceito, aliás muito conhecido e mencionado, de Teatro do Mundo, ou mesmo de Praça Universal, organiza a denominada cosmovisão barroca, dominada pela noção do carácter transitório da vida, da mutabilidade do mundo e da inevitabilidade da aparência, supondo os homens como actores que se movimentam num palco, ainda que geometricamente ordenado. Portanto, generalizando o sentido da vida como representação-encenação, em que tudo é aparência e espectáculo, aparência dramática ou festiva. Contudo, este mundo de aparências, por um lado de ecos platónicos, em que os personagens operam num cenário ou jogo de ilusões e reflexos, não chega a negar o valor da substância das coisas, numa cultura ainda maioritariamente 2 Vide BEBIANO. Rui. A Pena de Marte. Escrita da Guerra em Portugal e na Europa (Séc.s XVI XVIII). Coimbra. Minerva. 2000. 3 CURTO. Diogo Ramada. A Cultura Política em Portugal (1578-1642). Comportamentos, Ritos e Negócios. Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas . Lisboa. 1994. p. 410. 4 CURTO. Diogo Ramada. O Discurso Político em Portugal (1600-1650). Lisboa. Universidade Aberta. 1988. p. 177. 1282 fundamentada na tradição escolástica de raiz aristotélica. Será, de algum modo, uma resposta colectiva face à perplexidade causada pelos paulatinos avanços científicos e pela valorização da experiência, que enquanto observação empírica ou percepção é ela própria enganosa, engendrando uma angústia apenas ultrapassável na decifração desse jogo das aparências5. A partir de uma tal noção de Teatro do Mundo poderemos entrever o alcance do próprio conceito de Teatro da Guerra e do pathos marcial, numa época em que os conflitos armados se tornaram uma constante ciclíca, provocando extensos fenómenos de violência colectiva. A guerra como instrumento indispensável à conservação do Estado, como garante da soberania do território, da inviolabilidade das fronteiras e da submissão dos súbditos, serviu-se de todos os recursos técnicos e avanços científicos nas suas múltiplas demonstrações de poder, expondo-se numa sucessão de metáforas mecanicistas. Sendo a fortificação parte essencial da máquina de guerra, tornase também signo da fronteira política entre os estados. Os exércitos e as praças fortes passam a ser entendidas, projectadas e construídas como instrumentos práticos e emblemas retóricos da máquina do poder, instrumentos de disciplina e de violência, cujo teatro das operações resume assim o primeiro sentido do teatro da vida. Concomitantemente, os vários aspectos da vida militar, das cidades sitiadas às arquitecturas castrenses, servem esse mesmo desígnio do poder absoluto e encenam até ao limite a representação do ritual da guerra, de fundo primordial, mas nos séculos XVII e XVIII objecto de uma rigorosa codificação de regras de encenação e actuação. Neste primeiro plano de enquadramento na época barroca, a praça forte é, por si mesma, um cenário de / e para a guerra. Deste modo, a cidade militar e respectivo aparato defensivo constitui-se facilmente como prefiguração do palco da guerra, mesmo ainda ao nível da sua representação gráfica, em desenhos dos mais variados tipos. Com efeito, desde o elenco das incontáveis peças desenhadas feitas por engenheiros militares, entre levantamentos, projectos, álbuns cartográficos e tratados, até à representação iconográfica das cidades e suas defesas, permanece indelével a imagem do poder encomendador, estabelecendo-se um primeiro grau da retórica visual e da emblemática do barroco militar. O desenho militar constitui uma configuração fundamental da imagem política do monarca, até mesmo pela necessidade de tornar presentes realidades quase sempre geograficamente distantes. Por outro lado, se os levantamentos das fortificações foram durante muito tempo segredo de Estado, entraram depois nas galerias palacianas, sobretudo no que se refere a tipos de representação menos pormenorizada, mapas geográficos e perspectivas urbanas, organizando espaços de exaltação heróica e constituindo mais um processo de publicitação da imagem do poder político. Muito nomeada, no caso português, é a Sala das Batalhas do Palácio Fronteira (Lisboa, 1670), revestida por painéis azulejares glorificando as Batalhas da Restauração, onde, a par dos personagens em exercícios militares, figuram as fortalezas, sobrepondo uma 5 Cf. MARAVALL. Op. Cit.. 1997. pp. 261-262. GOUVEIA. António Camões. “Estratégias de Interiorização da Disciplina”. in MATTOSO. José (dir.). História de Portugal . Lisboa. Círculo de Leitores. 1993. vol. 4. p. 423. 1283 dimensão ao mesmo tempo épica, didáctica e lúdica6. Nos desenhos que usam a perspectiva aérea ou na representação estritamente planimétrica, a cintura abaluartada, cujos contornos geométricos se prestam facilmente a jogos visuais, resume a imagem da praça de guerra. Não raramente, a figura da cidade definida pelo seu perímetro abaluartado transforma-se em ícone da autoridade e da força da Nação. Torna-se também evidente uma cada vez mais exemplar conjugação do rigor matemático com o máximo de eficácia figurativa. E isto principalmente depois do contributo da escola holandesa seiscentista, de significativa influência na Península Ibérica. Associando magistralmente a dimensão científica com a dimensão retórica, a iconografia / cartografia militar tornou-se num cotado instrumento de poder, reproduzindo simbolicamente a posse do território assim representado7. Deste entendimento da representação gráfica de fortificações, cidades e territórios, facilmente se deduz, por ampliação, um concomitante desempenho emblemático da arquitectura e urbanismo militares enquanto execução material, como obras solidamente construídas no terreno. E, nesse sentido, quer a implantação de fortalezas e cidades nos Novos Mundos, quer a adaptação e modernização efectuada na defesa de cidades preexistentes do território metropolitano, explicam a praça de guerra como elo de uma cadeia de acções que objectivam uma manipulação política do espaço. Do ponto de vista da estratégia militar, a implantação territorial das obras de defesa ou a urbanização de terras inóspitas tem um fim basilar e uno: a definição e conservação da fronteira, a conformação do território ao exercício do poder. Qualquer que seja o recorte geográfico com que se desenhe o Império Português, fisicamente descontínuo, observa-se que cada fronteira carecia de consolidação e visibilidade. Mais ou menos estabilizada, mas disputada, no território metropolitano, ou por conquistar, conhecer e desenhar nos confins americanos, a questão fronteiriça tem idêntico sentido, fundindo num nexo comum fortificação e urbanização. Do Algarve ao Minho, na sucessão de praças de guerra na fronteira terrestre, da linha quase contínua de fortes marítimos aos esforços de demarcação e urbanização do território brasileiro, a finalidade permanece concordante: a garantia da soberania portuguesa através da implantação estratégica de cidades, praças de guerra e fortes que procuram, no limite da própria utopia, fechar todo o território, muralhar a totalidade da fronteira8. Também por isso, para além da própria capacidade defensiva, um requisito básico, a praça de guerra funciona como peça de um xadrez mais vasto e só pode ser entendida em termos de representatividade territorial, uma vez que numa perspectiva estritamente operacional a cidade não se defende 6 ALMEIDA. Lilian Pestre d’. “O Teatro da Guerra da Restauração Portuguesa”. Monumentos. Lisboa. nº 7. 1997, p. 77. 7 Cf. BUISSERET. David (dir.). Monarchs, Ministers and Maps. Chicago. University of Chicago Press. 1992. SETA. Cesare de (dir.). Città d'Europa, Iconografia e Vedutismo dal XV al XIX Secolo. Nápoles. Electa. 1996. BUENO. Beatriz. “Desenho e Desígnio - o Brasil dos Engenheiros Militares”. in Oceanos. Lisboa. nº 41. 2000. pp. 40-59. 8 Nesse sentido é significativa a fronteira ocidental brasileira, formando uma “muralha virtual”, segundo ARAUJO. Renata Malcher de. A Urbanização do Mato Grosso no Século XVIII, Discurso e Método. Dissertação de Doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa. 2000. p. 330. 1284 apenas a si própria, mas actua em rede na protecção da totalidade do espaço nacional. Deste modo, é lícita, senão mesmo óbvia, a sua leitura como Monumento, padrão construído na marcação e defesa dos limites. As praças de guerra assumem, por isso, um valor de símbolo de soberania que consagra a posse do espaço de que é representante e representação, enquanto forma construída e enquanto emblema heráldico. À escala territorial, as praças fortes são também as armas do rei9. Construídas no terreno, expostas na sua materialidade plena, não deixam ainda de transportar caracteres formais, estes estilisticamente mais aproximáveis ao Barroco, como se torna explícito nos portais, onde se adensam os conteúdos alegóricos10, e não será por acaso que o frontispício de grande parte dos manuais de fortificação e dos álbuns de desenhos exibe a figuração de portais ostentando uma por vezes desmesurada heráldica militar. As portas da fortaleza são os elementos defensivos que maior conteúdo urbano encerram e aqueles que mais influem na organização da rede viária e no posicionamento da praça de armas. Surgindo na cintura fortificada pela inevitável necessidade de comunicação com o exterior, são os pontos de maior fragilidade defensiva, objecto de um cauteloso projecto e de requisitos minuciosamente codificados na tratadística. Se a porta começa por dar resposta a um conjunto de exigências funcionais, é também pensada e desenhada como materialização alegórica, recomendando-se canonicamente o uso da ordem toscana (sentido de fortaleza) ou dórica (sentido de gravidade), isto numa intenção explicitamente retórica, porque “(…) deve ser no aspecto exterior algum tanto rude para que represente austeridade, & horror significando assim ser a Praça invencivel, & formidavel a seus inimigos.”11, vincando a pretendida acentuação do furor marcial. Todos os tratados reproduzem idêntica recomendação, mas na realidade, embora se observe um razoável cumprimento destas prescrições, isso não parece revelar-se demasiado rígido. Com efeito, nos territórios portugueses regista-se uma grande diversidade formal e tipológica, até mesmo num único conjunto fortificado e até entre portas cronologicamente aproximadas. Do clássico arco pleno, ladeado por pilastras ou colunas, almofadadas ou rusticadas, duplas ou escalonadas, aos entablamentos complexos, frontões triangulares ou interrompidos, mísulas, nichos e volutas, sai reforçado um jogo volumétrico de saliências e reentrâncias. Sempre rematada pelas armas reais, presentes em muitos outros edifícios de equipamento militar, a porta serve, por vocação, de suporte heráldico e quase pode ser lida como arco triunfal. É este o veículo que converte a porta em signo identificador do lugar e sua categoria, complementado propagandisticamente pela iconografia das armas reais, apoiadas nos atributos militares figurados em canhões, tambores, balas e estandartes, organizando composições de maior ou menor complexidade, de 9 Veja-se o Forte do Príncipe da Beira (Mato Grosso), aquele que melhor expõe o sentido de “Monumento no Território”, tal como Renata Malcher de Araujo o qualificou (Op. Cit.. pp. 318-330). 10 MOREIRA. Rafael.“Do Rigor Teórico à Urgência Prática”. in História da Arte em Portugal - O Limiar do Barroco. Lisboa. Alfa. 1986. p. 75. 11 PIMENTEL. Luís Serrão. Methodo Lusitanico de Desenhar as Fortificaçoens das Praças Regulares, & Irregulares … Lisboa. Antonio Craesbeeck de Mello. 1680. p. 318. 1285 maior ou menor exuberância. A porta é, como tal, a primeira etapa para aceder à boca de cena e penetrar no cenário. 2.- O uso ritualizado do cenário urbano: o teatro na praça de guerra. Na imediata sequência das portas, portanto, na confluência com a estrada de armas, é da boa regra da organização de uma praça de guerra existirem praças de armas secundárias, preferencialmente de planta rectangular, integradas hierarquicamente na rede viária subordinada à praça de armas principal, idealmente impantada no centro geométrico da fortaleza. As praças de armas secundárias, quase sempre terreiros de vastas proporções, “(…) são necessarias para no tempo do assalto poderem estar formados os soldados, & promptos sem as confusões, & embaraços que causão os apertos dos lugares em semelhantes occasioens.”12. Mais até do que a praça de armas principal, onde se implantam os equipamentos militares mais representativos, como a Casa do Governo das Armas, e que por isso se prestam a um uso cerimonial mais solene, as praças de armas secundárias são quase sempre o lugar de eleição para a formação das paradas militares. Como se sabe, a instituição de exércitos organizados, inscrevendo corpos permanentes, decorre ao longo da Época Moderna, obrigando ao treino regular dos contingentes, cuja movimentação no terreno é alvo de uma precisa codificação fixada nos muito divulgados manuais de castrametação e de opugnação. O tema da disciplina do exército, recrutamento, organização e treino, é preocupação quase obsessiva dos governadores e oficiais. Assentes no princípio da hierarquia, os corpos militares apresentam-se uniformizados, em todas as acepções da palavra, devendo ser submetidos a treinos quotidianos, entre exercícios, paradas e marchas, produzindo movimentações de carácter quase coreográfico, com ritmos de forte componente sonora —os gritos de guerra, o rufar dos tambores ou o toque dos metais, sons igualmente codificados— de óbvio impacto na população civil. Mais frequentemente em períodos de paz, e em particular depois do ciclo das Guerras da Restauração, terminado em 1668, o exército é regularmente convocado para participar nas cerimónias e festas públicas, num quadro mental onde o valor da heroicidade guerreira e o prestígio social do militar parecem manter-se intactos desde tempos ancestrais. Na verdade, a mudança não estará tanto na valorização do tema da guerra, mas nas formas e amplitude da sua demonstração, a maneira de fazer a guerra, a maneira de fortificar, a forma de actuação dos soldados e oficiais, a sua apresentação pública, cada vez mais disciplinada, sublimando o acto da guerra como espectáculo, na exacta medida em que é encenado e visualizado. A parada militar nos séculos XVII e XVIII converte-se, portanto, numa forma pública de representação do poder, de afirmação da hierarquia política e social e, tal como outros rituais públicos do Antigo Regime, está sujeita a uma normativa e enquadra-se nos objectivos disciplinadores próprios do Absolutismo Régio13. 12 PIMENTEL. Luís Serrão. Op. Cit.. p.322. 13 Cf. BEBIANO. Rui. “Guerra”, in Dicionário da Arte Barroca em Portugal . Lisboa. Presença. 1989. pp. 216-217. CURTO. Diogo Ramada. Op. Cit.. 1994. p. 19. 1286 São em grande parte conhecidos o significado e os mecanismos de montagem das festas celebrativas nesta época, prática internacional com apreciáveis manifestações no caso português, aspecto que, em si mesmo, não será avaliado neste texto, procurando-se antes perscrutar o modo particular como decorre esse tipo de celebração numa praça de guerra e, principalmente, a forma como a severidade da mentalidade castrense parece adequar-se à exuberância do espectáculo e ao imaginário barroco. Um dado importante a sublinhar é que, se a comemoração tem o seu centro em Lisboa, a capital do Império, está igualmente presente em lugares periféricos em todo o espaço português e, do mesmo modo que se documenta uma festa na praça de Almeida na fronteira da Beira, o mesmo acontece, por exemplo, na fronteira brasileira mais ocidental, nos confins do Mato Grosso, onde Vila Bela exibia mesmo uma “casa de ópera” e os militares participavam activamente na preparação das representações teatrais, numa evidente expressão de sentido civilizador14. Nesta perspectiva o minucioso relato dos festejos organizados em Almeida em 1760, em pleno período pombalino, por ocasião do casamento entre a Princesa do Brasil D. Maria e o Infante D. Pedro, constitui uma síntese exemplar da convivência estreita e intrincada entre as esferas civil e militar. Apresentando um programa estereotipado, afastada da solenidade da Corte e numa vila de fronteira, sede da Província das Armas da Beira, a celebração do casamento régio assume aqui algumas especificidades significativas. As festividades, que decorreram durante os meses estivais, não foram organizadas pelo Senado da Câmara, como seria habitual, mas pelo próprio Governo Militar, então dirigido pelo Mestre de Campo General Manuel Freire de Andrade, a quem devemos uma pormenorizada descrição15. Esse facto não deixa de ser dissimuladamente referido, contando o governador que “(...) sem perda de tempo, annunciou esta feliz nova á Nobreza, Clero, Corpo Regular das Tropas, e por carta ao Senado (…).”16. Ou seja, é o poder politicamente mais forte e activo que encabeça a organização do evento e que o publicita, facto que já antes tinha acontecido em Almeida, em 1759, pela ocasão das festas de regozijo pelo fracassado atentado contra D. José17. As festas de 1760 encontram-se unicamente documentadas pela relação feita pelo governador, sem qualquer ilustração, mas contendo uma extensa narrativa (136 páginas), que inclui apêndices com a reprodução das peças representadas. Portanto, o que conhecemos é através do seu ponto de vista, numa prosa que podemos perceber típica das descrições laudatórias, onde abundam os adjectivos superlativos e o exagero deslumbrado pela excepcionalidade do evento. Entre a realidade e a simulação, fixando um ponto onde a descrição da festa tenta perpetuar a memória do que é por natureza 14 Cf. ARAUJO, Renata Malcher de. Op. Cit.. pp. 574-580. 15 ANDRADE. Manuel Freire de. Diário das Festas com que na Praça de Almeida se Festejou a Feliz Notícia do Faustíssimo Despozório, Celebrado no dia 6 de Junho do Presente Anno, entre a Augustissima Senhora Princeza do Brasil, Nossa Senhora, e seu tio o Serenissimo Senhor Infante Dom Pedro… Coimbra. Real Officina da Universidade. 1761. Parcialmente estudado por TEDIM. José Manuel. “Uma Festa Militar em Almeida na 2ª Metade do Séc. XVIII”. in Revista de Ciências Sociais da Universidade Portucalense Infante D. Henrique. Porto. vol. VI. 1991. pp. 229-243. 16 ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. p. 3. 17 Gazeta de Lisboa, 4 Janeiro 1759, citado por TÉRCIO. Daniel. Dança e Azulejo no Teatro do Mundo. Lisboa. Inapa. 1999. p. 67. 1287 efémero, funde-se o contraste entre o civil e o militar, entre uma alegria festiva e uma solenidade mais severa, denunciando uma dinâmica profundamente barroca e urbana. Figura 2: Escadas do Quartel de Infantaria, Almeida, 1995 A sequência dos festejos mostra o recurso a um programa já testado e habitual neste tipo de celebrações. Feito o pregão em Junho e afixado o calendário das festas no pelourinho, seguiram-se três noites de luminárias, ficando a guarnição responsável pelas salvas de tiros. Formaram-se três coros, os tambores foram colocados no alto das Portas de Santo António e no Baluarte de Santa Bárbara, os timbales e clarins nas Portas de S. Francisco, delimitando o coincidente perímetro urbano e defensivo. Os edifícios mais importantes (a Igreja Matriz, o Convento das Religiosas, a Casa da Câmara, o Pelourinho, o Hospital Militar, a Vedoria) e em geral toda a praça “(...) se illuminou com a melhor symetria, e gravidade, que já mais se vio nella: (…) formavão as ruas illuminadas (…) a mais grata, e deleitavel perspectiva que póde fingir a mais fecunda imaginação.”18. Este espectáculo, onde a iluminação artificiosa se misturava com uma musicalidade militar, enfatiza claramente a força dos sons militares, normalmente presentes na festa barroca, mas obviamente acentuados numa vila cuja população era na maioria composta por militares e que era um dos palcos oficiais da guerra. 18 ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. p. 5. 1288 O programa prosseguia depois com a habitual animação dos bailes, “máscaras, danças, entremezes, e toda a diversão séria, e burlesca que podia excogitar a curiozidade, e o gosto”19. Seguiram-se os eventos que exigiam maior preparação, que decorreram em Agosto e Setembro, três dias de Comédias, obrigatórias nas festas barrocas, três dias para Touros, três dias para Cavalhadas, e a apoteose final, três dias para o Ataque e Defensa de huma Praça artificial ou Ensayo Militar. Evidentemente, cada uma destas etapas foi descrita passo a passo, demonstrando o empenho entusiástico de todos os participantes, maioritariamente militares, bem como uma hábil utilização, e disfarce, do espaço urbano. Por exemplo, à porta do Trem de Artilharia concentraram-se “(...) mais de outenta mascarados, galhardamente vestidos de homem, e mulher, segundo diversas figuras que reprezentavão; e entre ellas huma dança de Pretos, tão propria como engraçada.”20. Seguiu-se depois o desfile pelas ruas principais, percorrendo a Rua Direita até à Praça, e daí para o Terreiro das Freiras ou Terreiro da Parada, a praça de armas secundária aberta junto às Portas de S. Francisco. Este último local foi o escolhido para palco principal dos festejos, uma vez que constituía o espaço simultaneamente mais amplo e versátil, sem deixar de ser um ponto de referência urbana e militar. Localizava-se aí, para além da Igreja da Misericórdia e do Convento do Loreto21, o Quartel de Infantaria com maiores dimensões na Praça de Almeida. O aproveitamento cénico deste espaço e deste edifício merece uma análise mais detalhada. Na verdade, reflecte-se aqui um uso barroco de edifícios utilitários e militares e, talvez até mais do que isso: observam-se construções que, privilegiando a solidez, a funcionalidade e a simplicidade, revelam também pequenos pormenores na sua concepção que as habilita facilmente a este tipo de usos, expondo o próprio sentido militar da solenidade. A construção deste quartel de infantaria situa-se entre 1736 e 1749, sendo provavelmente projecto do próprio Engenheiro-mor do Reino, Manuel de Azevedo Fortes, assistido pelo Capitão Engenheiro José Fernandes Pinto de Alpoim. Posicionando-se como objecto final de uma série de quartéis de infantaria existentes nas praças portuguesas, apresenta um desenho excepcional, bastante mais complexo do que a sua aparência revela22. Resumidamente, o quartel tem uma planta rectangular alongada e dois pisos, sendo composto por dois volumes sobrepostos de modo escalonado. Cada piso compreende 21 módulos transversais, subdivididos em duas casetas. Definemse assim dois alçados muito compridos, destacados no piso térreo através de uma arcada contínua, rematada por uma varanda para acesso ao piso superior, onde o ritmo das aberturas se torna mais simples. Os alçados correspondentes aos lados menores da planta comportam-se de maneira a iludir a classificação 19 Ibidem, p. 6. 20 Ibidem, p. 7. 21 Depois da destruição provocada pelo cerco de 1762 o convento foi transformado em Hospital Militar e Quartel de Infantaria (cf. CONCEIÇÃO. Margarida Tavares da. Formação do Espaço Urbano em Almeida (séculos XVI - XVIII). Da Vila Cercada à Praça de Guerra. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa. 1997. pp. 391-394). 22 Para mais pormenores e acerca da tipologia dos quartéis veja-se CONCEIÇÃO, Margarida Tavares da. Op. Cit.. pp. 407-420. 1289 de uma fachada principal. O alçado virado para o terreiro é aquele que mais se aproxima dessa qualidade, servindo de suporte à escadaria desenvolvida em três lanços, vincando um ressalto na contenção planimétrica do edifício e truncando em parte a regularidade do terreiro, preterida em face de um sentido mais espectacular e cenográfico, catalisando o efeito de surpresa e potenciando o aproveitamento para o aparato teatral, tal como de facto aconteceu. É de notar que todo o edifício se prestava a tal uso. Este fenómeno de apropriação barroca de um objecto arquitectónico é particularmente notável na medida em que o Quartel de Infantaria constitui uma antítese da arquitectura estilisticamente convencionada como barroca. Esta interpretação fixa-se principalmente na escadaria, no diálogo que estabelece com o terreiro e no modo como funciona enquanto ponto de partida, indutor de vários percursos circulares. O Terreiro da Parada e o Quartel de Infantaria constituíram o local de eleição para os acontecimentos mais significativos do programa das festas. Para a representação das comédias, “se erigio hum soberbo Theatro, encostado ás escadas dos Quarteis”, um cenário desenhado pelo Ajudante de Cavalaria com exercício de Engenheiro João Bernardo Real da Fonseca, a trabalhar em Almeida desde 1757. A descrição do teatro é eloquente, na combinação entre o rigor descritivo e o deslumbramento da decoração: “Teve de boca 72 palmos, e de fundo até às primeiras portas, 32. O prospecto, no primeiro andar, se compunha de nove portadas, oito á primeira face, e a do meio em figura convexa; todos os seus cortinados erão de Damasco côr de ouro, com franja de requife pelo gosto moderno; e as divizões entre porta, e porta, que fingião as paredes, de damasco carmezi. O Segundo andar formava huma galaria, que se dividia do primeiro por hum pano de matís verde alcachofrado de ouro. As paredes deste segundo andar erão forradas de Damasco da mesma côr de ouro, e os cortinados, e sanefas de melania encarnada, agaloadas, e franjadas de ouro, tudo na mais regular symetria. Nas tres janellas grandes do meyo se acomodarão tres vazos de flores. O terceiro andar de cima rematava em hum soberbo Pavilhão, encarnado, guarnecido de franjões, que descendo pelos lados, acompanhava todo o frontespicio até o primeiro andar, tomadas as quartellas ou festões com cordões e borlas de ouro. No meyo desta fachada e debaixo do Pavilhão que lhe servia de docél, se acommodou huma tarja de onze palmos de altura, em que estavão as Armas Reaes, orladas de instrumentos belicos pelo gosto Frances Moderno (…). Nos dous lados pendião os estandartes Reaes da Camera e Védoria. (…). Nas duas varandas dos Quartéis que correspondião por hum e outro lado a esta fachada, se formarão dous Coretos; o da direita para os Clarins, Timbáles, Trompas e Abués; e o da esquerda para todos os Tambores da Guarnição, Forrados de damasco por diante; o que tudo formava o mais deleitozo objecto á vista, em que he diminuto todo o encarecimento.”23. Esta transcrição justificar-se-á pelo modo como se conjugam aqui quase todas as características dos relatos deste género de eventos. Torna-se evidente um deslumbramento pela cor e riqueza dos tecidos, pelo ornato e sua composição na “mais regular simetria”, não esquecendo o governador a referência ao “gosto Francês moderno”. A boca de cena é descrita até à exaustão, mostrando-se o governador completamente fascinado com os efeitos 23 ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. pp. 11-12. 1290 conseguidos, e muito especialmente com o guarda-roupa, dispensando-lhe abundantes páginas, num óbvio deslumbramento pelo luxo da sumptuária têxtil. Enquanto isso, as peças teatrais evidenciam um tom ao mesmo tempo jocoso e cortesão, sendo os vários papéis desempenhados por oficiais do exército e da vedoria. As peças principais eram antecedidas por uma loa, na qual um alferes fazia de Minerva, um engenheiro de Vénus, um tenente de Délio, um outro alferes de Reino de Portugal e um oficial da vedoria de Oriente. Portanto, o habitual recurso aos temas mitológicos de fundo classicizante e o profundo gosto pelas manipulações alegóricas. Seguiram-se as comédias Duelos de amor y lealdad , Para vencer Amor querer vencerle e Darlo todo, y nò dar nada e, como sempre, nunca se fala do valor literário de tais representações. Tanto os galãs como as damas foram representados por um tenente, um alferes, um comissário de mostras e um oficial da vedoria, e ainda pelo médico da praça. Os papéis secundários foram atribuídos aos filhos de vários oficiais do exército. É de extremo significado a participação activa dos militares como actores, afinal a guarnição quase utilizada como companhia teatral, em que o engenheiro se transfigura em cenógrafo. Contudo, noutros contextos, existem também referências à participação de engenheiros militares e matémáticos na construção de arquitecturas efémeras24. A componente civil da vila é claramente secundarizada: o narrador tem ainda o cuidado de indicar que os camarotes da primeira fila ficaram reservados para as autoridades e “outras Pessoas de distinção”, enquanto lateralmente, junto ao tablado, se situavam os destinados ao Senado da Câmara e aos particulares. Após as representações foi necessário desmontar o teatro para dar continuidade ao programa das festas. No mesmo Terreiro da Parada construiuse então uma arena para as touradas, formando um recinto de “figura quadrada”. As touradas eram regidas por um cerimonial rigoroso, ao contrário das cavalhadas, espécie de torneios livres, de gosto mais popular e que eram alternadas com danças e mascaradas de grande complexidade cénica, fazendo amplo recurso, uma vez mais, à guarnição militar. Numa fase de plena maturidade do complexo desenvolvimento das técnicas de aparato teatral, percebemos que, dentro da panóplia de efeitos e estruturas para-arquitectónicas documentadas, a celebração em Almeida não terá sido das mais sofiscadas: não foram construídos arcos triunfais, nem carros alegóricos e os espectáculos não foram dos mais engenhosos na concepção de artefactos inusitados ou de surpreendentes maquinismos. Sabemos ainda, que após as representações se seguia à noite o fogo de artifício preso, “(…) fogo festivo de corda, montantes, carretilhas, brigas e outros de igual natureza prezos, prohibindo o nosso prudente e cauteloso general se 24 Como exemplo, cite-se o caso de João dos Reis ou Johan Koening, jesuíta alemão e matemático, que desenhou a arquitectura efémera reunida no manuscrito Copia dos Reaes Aparatos e obras que se ficerãm em Lixboa na occasiãm da Entrada e dos Desponzorios de Suas Maiestades. Lisboa. 1687 (BN. Ms. AT 317). Outro exemplo é o pavilhão construído em 1729 para a cerimónia da Troca das Princesas , do sargento-mor engenheiro Francisco Pereira da Fonseca (cf. TEDIM. José Manuel. Festa Régia no Tempo de D. João V. Poder. Espectáculo. Arte Efémera. Dissertação de Doutoramento, Universidade Portucalense Infante D. Henrique. Porto. 1999. Cap. 7). 1291 saltasse o do ar, lembrado dos tragicos sucessos que tem experimentado esta Praça, Guarnição, e moradores, ateando-se o fogo nos Armazens da polvora.”25. Estudo recente 26 demonstra a importância do fogo de artíficio como componente indispensável ao aparato da festa barroca, objecto até de manuais da especialidade. Salienta ainda o seu sentido profundamente marcial, usando a pólvora com fins espectaculares, onde pontifica a ilusão da vitória e onde se não dispensa a participação dos artilheiros. Até finais do século XVII a encenação de carácter militar é uma constante nos espectáculos pirotécnicos, traduzindo-se na simulação de combates navais ou ataques a castelos e fortalezas, com a construção de peças de arquitectura militar efémera. Documentado em vários casos portugueses, o motivo dos chamados “castelos de fogo” era frequente, simbolizando a luta contra os inimigos da Fé, através dos quais eram glosadas cenas guerreiras míticas, da tradição clássica (as Guerras de Tróia, o mito de Vulcano) ou cristã (Babel, David e Golias), actualizadas depois nos combates contra os Turcos27, na persistência de um simplismo maniqueísta onde ecoam velhas tradições de luta ritual entre as forças do bem e do mal28. Figura 3: Manuel Freire de Andrade, Attaque e Deffença das Praças em geral …Vila Viçosa. 1753, estampa 19ª (BN Pomb 188) 25 ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. p. 17. 26 CORREIA. Ana Paula Rebelo. “Fogos de artíficio e artíficios de fogo nos séculos XVII e XVIII: a mais efémera das artes efémeras”. in Arte Efémera em Portugal . Lisboa. Museu Calouste Gulbenkian. 2001, pp. 101-141. 27 Como por exemplo em 1686, na festa do casamento de D. Pedro II com D. Maria Sofia de Neuburgo, quando decorreu uma simulação de um combate entre turcos e cristãos, construindo-se um forte abaluartado em madeira. Cf. COSTA, António Rodrigues, Embaixada que fes o Excellentissimo Senhor Conde de Villar-Maior (…) Conduçam da Rainha Nossa Senhora a estes Reinos… Lisboa. Oficina de Miguel Manescal. 1694. 28 BONET CORREA. Antonio. Fiesta, Poder y Arquitectura. Aproximaciones al Barroco Español. Madrid. Akal. 1990. p. 23. 1292 Finalmente, o Ensaio militar ou ataque e defesa duma praça simulada e ocupada por 63 Turcos encerrou as festas, destacando um acto final de sentido ritual e aparatoso, uma cerimónia solene, mas também um espectáculo de intenção pedagógica e propagandística, como veremos. O evento foi anunciado através da recitação de um Romance Heroico, da autoria de um alferes de cavalaria, por ocasião da cerimónia do Levantar do Mastro, espécie de cortejo, onde se convocavam as “iras formidáveis” de Marte, desenrolando-se um desfile tão solene, quanto burlesco, aliás, uma noção igualmente muito cara à paradoxal mentalidade barroca. Destaca-se em Almeida a óbvia particularidade de não ser necessária a construção de qualquer arquitectura efémera para este acontecimento. O cenário era a praça de guerra real e tratava-se apenas de representar a peça, que neste caso preciso se confunde profundamente com o sentido de exercício militar, o que a própria designação do evento, ensaio militar, torna explícito. Ainda assim, sentiu-se necessidade de um determinado arranjo espacial, que fizesse a diferença entre os exercícios quotidianos e os dias de festa, preparando-se o terreiro para a exibição. Foi montado um camarote onde o governador e o general assitiram ao espectáculo, enquadrado por um jardim fingido concebido pelo Prior do Hospital Militar. É de sublinhar o recurso frequente ao verbo fingir, demonstrando um evidente deleite nos motivos inventados, mas referenciados a objectos reais, conjugando uma nítida preferência pela alegoria e pelo sentimento de evasão. É ainda nesse tom que o governador vai descrevendo o combate simulado, no qual os trajes e a decoração urbana lhe causam um indisfarçável deslumbramento, parecendo, apenas aparentemente, merecer-lhe um mais meticuloso relato. Na verdade isso acontece porque o Diário das Festas inclui apenso um muito extenso guião do ensaio militar, ocupando cerca de metade das páginas impressas, sendo designado expressivamente por Formulario para o Ataque, e Defensa da Praça. A estrutura deste último texto inclui tanto a descrição minuciosa do que os actores-militares deveriam fazer e dizer, de como se deveriam movimentar e comportar, bem como demorados monólogos em forma de ordens ou leitura das cartas que se trocariam entre as forças inimigas. Assim, o primeiro dia é ocupado pelos preparativos do assalto, começando por se proceder ao reconhecimento da praça turca a atacar, pelo que o engenheiro deveria examinar o terreno, “em que fará as suas observaçoens, notando em hum plano quanto for observado, com a pena lapis.”29. Depois os generais escolhiam o sítio onde o exército deveria acampar e, juntamente com o engenheiro, decidia-se a abertura da trincheira. Terminadas estas manobras, saía e atravessava o terreiro um corpo de Turcos, que se introduzia na fortaleza, com “grande gritaria e ameaços”. Seguiam-se minuciosas indicações dos trabalhos a efectuar, indicações de claro sentido didáctico, quase retiradas de um manual, como por exemplo “o fazer da Guarnição huma sahida ao Terreiro cortando as Arvores que estiverem plantadas nelle, e recolhendo-se huns e outros com enxadas, e picaretas, mostrando que fachinão os redores da Praça, tapando as covas, derribando as paredes, vallados &c. o que se fás com dous 29ANDRADE. Manuel Freire de. Op. Cit.. p. 84. 1293 objectos; o primeiro para ficar a campanha livre debaixo do fogo da Artilharia; e o segundo, para que os sitiantes não possão prevalecer-se destas vantagens para principarem as suas trincheiras mais perto, caminhando com os trabalhos para trás, como não ignorão os que sabem, nem os que estão cabalmente instruidos nesta belissima parte da Guerra.”30. Prosseguia depois uma cena burlesca, espécie de intermezzo para desenfado do público, quebra que também se repetiria nos dias seguintes. A acção avançava com a montagem do acampamento e respectiva logística, procedendo os efectivos a diversas formaturas, sendo indicadas as precedências e a orientação das conversões nos movimentos de marcha, efectuadas em “compassada distância”, numa sucessão de esclarecimentos que mais parecem retirados de um tratado de castrametação. Diversos tipos descargas de artilharia alternavam com o silêncio nos momentos mais solenes, finalizando o dia com uma “descarga geral”, seguida de três Vivas aos augustos consortes. No segundo dia procedia-se à primeira tentativa de assalto à Praça, descrevendo-se o procedimento das movimentações e fazendo-se a entrega de uma carta aos Turcos, com a proposta da sua rendição, o que era negado. É de notar o cerimonial rigoroso da troca de cartas, onde avulta a preocupação com os códigos de honra e o respeito pelas leis do Direito Natural. Tais missivas deveriam ser lidas em alta voz, e depois, também para “inteligencia do Auditorio”, eram lidas as “Ordens que se hão de observar na conducta dos trabalhos até a ultima paralela pelos Engenheiros e Directores da Trincheira”, seguindo-se as “Ordens que se hão de observar no Ataque pelo que respeita ás Tropas, e ás Guardas que devem diariamente montar a trincheira”31, ordens numeradas e bem organizadas, onde se especificam todos os detalhes técnicos. Continuava depois a marcação no terreno das paralelas e aproches, travando-se combates entre turcos e cristãos. Faziam-se prisoneiros entre ambas as partes, proporcionando uma cena burlesca, retomando-se nova troca de cartas propondo a rendição da Praça e sequente troca dos prisioneiros, segundo o devido formulário. A acção incluía ainda a leitura das “Ordens geraes para o insulto das obras exteriores por hum assalto brusco”32, também minuciosamente enumeradas, após o que se observava a formação do reforço das tropas assaltantes e respectivas manobras, acompanhadas de sucessivas e fortes descargas de fogo. O assalto final tinha lugar no terceiro dia, quando os jogos de artilharia se tornavam mais intensos, havendo “muitos mortos fingidos”. As tropas dispunham-se para o assalto e depois, já em silêncio, eram declaradas as “Ordens que se hão de observar no Assalto das Brechas por huma conduta fundada em sopreza, intentando ganhar a Praça á força de armas, por hum Ataque brusco, rodeante, e de alta mão, dando tudo á fortuna”33. Detalhadamente explicada, a acção concreta era executada, “tudo com boa ordem sem confuzão alguma”, acompanhada pelos sons da artilharia e dos tambores, trombetas e timbales. Por fim, os turcos rendiam-se, transcrevendo30 Ibidem. 31 Ibidem. 32 Ibidem. 33 Ibidem. p. 85. pp. 98-113. pp. 109-114. pp. 120-124. 1294 se a carta de rendição e os artigos da capitulação, terminando por aqui o Formulario. O modo como na época foi apreendido este espectáculo é avaliado pelo governador nas páginas do diário propriamente dito. Tudo parece ter decorrido como meticulosamente planeado, mostrando-se a “mais regular e exacta disciplina”, mas também o “grande furor e perícia militar”, em que o cheiro intenso da pólvora e os sons brutais dos rebentamentos fizeram com que, “(...) especialmente nos assaltos, os julgou o Auditorio ao vivo (...).” e “(…) na compozição das massas bravas das espoletas da Pessinha da nova invenção, das Bombas, Granadas, e Carcaças artificiaes, Petardos, e Minas falsas, que produzirão tão estrondozos effeitos, que parecia nos assaltos se passava do figurado à figura (...).”34. O espírito castrense revelava-se assim vinculado a um momento caracteristicamente barroco. No entanto, o rigoroso programa técnico e táctico expõe a figura que o concebeu e organizou, o Mestre de Campo General Manuel Freire de Andrade, Governador das Armas da Província da Beira, que chegou a Almeida em 1758, isto é, dois anos antes destas celebrações. Dele sabemos que, sendo um veterano da Guerra da Sucessão de Espanha, assinava em 1753, na qualidade de Sargento-mor de Batalha, Governador da Praça de Elvas e Governador interino das Armas da Província do Alentejo, um manuscrito intitulado Attaque e Deffença das Praças em geral 35. Trata-se de uma obra em quatro volumes (num total de 1813 fólios), incluindo desenhos à pena e contendo propriamente dois tratados, um sobre o Ataque, e outro sobre a Defesa, cada um em dois tomos. Integra ainda um Tractado das Minas em geral, o Diario do Sitio de Lilla, a Recopilação do Sítio de Belgrado, um Tratado da Catapulta e o Tratado das contraminas por Folard. Inevitavelmente, fica deste modo explicado a habilidade dramatúrgica e a fluência de tão rigoroso Formulário, mistura perfeita do manual didáctico com o guião para uma encenação teatral, associando magnificamente a ilusão da festa, um forte sentido da pedagogia militar e a intenção propagandística, o que é expresso nas próprias palavras do governador: “(...) servio de gostozo objeto aos prezentes, e servirá de modello, e instrucção para os vindouros, em beneficio do serviço do Rey, e da Patria, por se fundar no melhor sistema, e com algumas delicadezas não lembradas de todos os Modernos.”36. Observa-se, portanto, que a simulação do assalto foi, num único momento, teatro e treino prático da guerra, afinal as duas faces da mesma moeda, ou os dois lados do espelho da sociedade em meados de Setecentos. É sabido que na vida militar os exercícios controlados da violência eram (e ainda são) fundamentais, sendo indispensável todo o tipo de treinos e ensaios regulares para manter a disciplina de combate, a ordem da guarnição e a operacionalidade das obras de defesa. Oferecia-se aqui uma ocasião de ouro para um verdadeiro aparato e triunfo bélico, absolutamente essencial para a coesão militar em tempo de paz. O conjunto das festas constituiu, enfim, uma catarse militar e colectiva, na qual a Praça de Guerra conseguiu experimentar 34 Ibidem. p. 25. 35 ANDRADE. Manuel Freire de. Attaque e Deffença das Praças em geral. Conçagrado a Augusta e Figdelissima Magestade de El-Rey nosso Senhor D. Joseph 1º. Vila Viçosa. 1753. BN Pomb. 188-191. 36ANDRADE. Manuel Freire de. Diário das Festas… pp. 22-23. 1295 uma atmosfera de sabor barroco, em pleno ambiente de austeridade castrense e num cíclico teatro da guerra. Com efeito, depois da ilusão da vitória, dois anos depois destas celebrações, em 1762, a Praça de Almeida sofria um cerco muito violento e destrutivo, capitulando estrondosamente. Entre a vitória simulada e a derrota real, entre o aparente jogo da vida e a certeza da morte, sente-se o extremado dramatismo dos contrastes definidores da mentalidade barroca. 1296