Introdução aos Estudos Clássicos - Laboratório de Letras Clássicas

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Introdução aos Estudos Clássicos - Laboratório de Letras Clássicas
Introdução aos Estudos Clássicos
Milton Marques Júnior
João Pessoa, 2008
Caros Alunos,
Esta disciplina Introdução aos Estudos Clássicos vai apresentarlhes o mundo da poesia heróica e da poesia dramática, a partir da
leitura de textos escolhidos de seus principais autores, como Homero e
Virgílio, no gênero épico, e Ésquilo, Sófocles e Eurípides, no gênero
dramático. Com a leitura dos autores escolhidos, teremos condições de
compreender um conceito sobre o Clássico e a funcionalidade das
literaturas grega e latina, conhecendo sua periodização e suas
especificidades. O estudo da poesia épica, sobretudo, vai ajudá-los a
perceber a obra de Homero e de Virgílio como textos deflagradores do
fenômeno literário do Ocidente, importantes, portanto, para a nossa
cultura.
O objetivo desta disciplina é dar-lhes as condições necessárias
para perceber na nossa época e na nossa cultura os elementos de um
mundo antigo que muitos supõem morto e enterrado no passado.
Apenas com o contato direto com os textos do passado é que teremos
condições de entender o processo de evolução de nossa cultura e o
modo como ela se apresenta na contemporaneidade. Assim, ao
reconhecermos a sua permanência na cultura ocidental e, mais
especificamente, na literatura brasileira, passaremos a compreendê-la
melhor.
A nossa disciplina está divida em quatro unidades. A primeira
unidade mostrará uma introdução e contextualização do mundo
clássico greco-latino; a segunda unidade visa ao estudo de Homero,
com a leitura detalhada do Canto I da Ilíada; a terceira unidade
pretende dar uma visão genérica dos autores do teatro trágico, e a
quarta unidade se centrará no estudo de Virgílio e na leitura do Livro I
da Eneida.
No tocante ao processo de avaliação, ela deverá ser feita
continuamente, através de exercícios e questionários periódicos;
participação nos debates no fórum ou on-line e, evidentemente pela
contribuição dada por cada um, a partir da reflexão sobre temas
discutidos nas aulas.
Passemos, pois, a conhecer um pouco desse mundo, a partir do
material que preparamos.
Professor Milton Marques Júnior
I – Primeira Unidade: Uma Introdução aos Estudos Clássicos
1. Os Estudos Clássicos: uma tentativa de conceituação
1.1. O Clássico no mundo de hoje
Iniciamos grafando a palavra clássico com letra minúscula,
diferentemente do que fazemos quando a ela nos referimos nos outros
itens. Qual o sentido desta diferença? Acreditamos que o termo esteja
tão banalizado – característica do mundo moderno, imediato e
informatizado em que vivemos – que se torna difícil entender o que é
o clássico. Num mundo em que tudo se torna clássico com a mesma
velocidade com que aparece e desaparece, nada é clássico,
obviamente. É isto mesmo: se tudo é clássico, nada é clássico. Não há
mais distinção possível. Mundo da imagem, não da reflexão; mundo
da concepção de que a aprendizagem é fácil e não dificultosa; mundo
da atração que vem de fora e não da curiosidade que vem de dentro. É
nesse mundo que o Clássico se viu misturado a qualquer coisa de
somenos importância e foi diminuído de sua real importância. Não há,
então, um lugar para o Clássico? Antes de respondermos a esta
pergunta, passemos a verificar como o termo se constrói ao longo do
tempo, para ser destruído pela modernidade em que vivemos.
1.2. O Clássico na Grécia
A referência primeira e maior que se tem sobre o Clássico – agora
em maiúscula, para começarmos a distingui-lo, a separá-lo – está na
Grécia e em Roma, durante o período que se convencionou chamar de
Antiguidade Clássica. Período longo que abriga muitos fatos e muitas
idéias, nem sempre ligadas, necessariamente, ao fenômeno que ele
denomina. Que se trata de uma antiguidade é um fato inquestionável;
que essa antiguidade é totalmente clássica, isso é plenamente
discutível. Comecemos por determinar esse período.
Os historiadores, como uma maneira didática de estudar a
História, dividiram-na em períodos. Ao primeiro período da história
ocidental, chamaram de Antiguidade Clássica, abrangendo um longo
tempo entre os séculos VIII a. C. e o século V da Era Cristã. Assim, a
Antiguidade Clássica vai da redescoberta da escrita pelos gregos
(século VIII a. C) à queda do império romano no Ocidente, no ano
476 (século V), resultado das invasões dos chamados povos bárbaros,
provenientes do norte da Europa, a partir do século IV. Como
podemos ver, trata-se de um longo período de treze séculos. Muitas
pessoas, e não me refiro necessariamente aos historiadores, aludem a
esses 1300 anos como se fossem um coisa só! Nada mais errôneo. As
duas principais culturas da Antiguidade Clássica – a grega e a romana
– se assemelham, mais esta àquela do que o contrário, mas são
diferentes e, evidentemente, agem de modo diferente e com propósitos
diferentes, na política, na guerra, na religião, na organização social, no
comércio...
Para o grego, então, o que é o Clássico? Diz-se Clássico o período
cultural da Grécia entre o século V a. C. e o século IV a. C. Parece
pouco, não? Posso-lhes afirmar, contudo, que se o conhecimento
produzido, digamos, nesses cem anos tivesse sobrevivido na íntegra,
os estudiosos teriam matéria para muitos e muitos séculos de estudo...
Só de peças teatrais trágicas, há uma estimativa de que tenham sido
produzidas mais de mil tragédias. Apenas trinta e duas sobreviveram...
É nesse chamado Século de Ouro da Grécia, que se produz o maior
nível artístico e intelectual do Ocidente, legando à humanidade futura
um bem de valor incalculável.
Não é por acaso que nesse momento a democracia toma o lugar da
tirania; a filosofia questiona a verdade estabelecida; a palavra escrita
ganha relevância jamais vista sobre a palavra oral; o teatro trágico
mostra que a humanidade precisa de homens, não de heróis; cria-se o
conceito de cidade (pólis) e de cidadão (polites), e o direito é comum a
todos os que são iguais – os cidadãos. É a era de escritores como
Ésquilo, Sófocles e Eurípides, a tríade do teatro trágico grego, e de
filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. E a cidade de Atenas, na
Ática, é o palco de todas essas transformações. Veja o mapa abaixo.
1.3. O Clássico em Roma
Como estamos fazendo uma incursão pelo mundo clássico, é
necessário que avancemos um pouco além e cheguemos a Roma. Esta
cidade que dominaria o mundo, primeiro pelas armas, depois pela
herança cultural, começou como uma simples vila de pastores, na
metade do século VIII a. C., em 753. A Roma que nos interessa, mais
especificamente, neste tópico, é a Roma compreendida entre o século I
a. C. e o século I da Era Cristã, quando a famosa cidade, já centro do
mundo conhecido, atinge seu melhor momento artístico-cultural,
apesar de conturbado momento político que vai da transição da
República ao início do Império (cerca de 60 a. C. a 29 a. C.), passando
pelas guerras civis. A Grécia também viu seu momento especial ser
marcado pelas guerras contra os persas (início do século V a. C., cerca
499-479) e até contra Esparta, na famosa guerra do Peloponeso (431404 a.C.).
Assim, podemos marcar o período Clássico em Roma do
aparecimento da retórica com Cícero, por volta de 80 a. C., até o
romance de costumes com Petrônio, cerca de 68 da nossa era. Nesse
intervalo se produziu o melhor da literatura latina com o aparecimento
de grandes poetas, protegidos por Mecenas, amigo do imperador
Augusto: Catulo, Horácio e Virgílio estão entre eles. Nessa época
também surgiria o maior dos poemas do mundo latino – a Eneida (17
a. C.), poema que celebra a glória de Roma, na figura de Enéias, o
troiano incumbido da ingente tarefa de fundar uma nova Tróia, que
daria origem à mais gloriosa das cidades. É o período que se costuma
chamar de Século de Augusto. Veja no mapa abaixo a localização de
Roma, na Península Itálica, numa situação privilegiada e estratégica
no Mediterrâneo.
1.4. O Classicismo
Seguindo o raciocínio que vimos desenvolvendo sobre o Clássico,
período que criou na Grécia e em Roma momentos de alta qualidade
cultural e literária, é de se esperar que estas características sejam
irradiadas ao longo da história da humanidade e recuperadas
ciclicamente. Assim, vemos o século XV nos trazer o mundo moderno
e, a reboque, a consolidação dos valores clássicos, já apregoados pelo
humanismo, desde o século XI. O Renascimento, movimento
filosófico, artístico, cultural e político, que nasce na Itália e se alastra
pela Europa ocidental, tem como desdobramento natural o
Classicismo. O Classicismo europeu se configura para nós brasileiros
na obra do português Luís Vaz de Camões (1525-1580),
principalmente em Os Lusíadas (1572), poema épico da glorificação
da navegação portuguesa e da descoberta do caminho para as Índias,
permitindo a expansão para o Oriente, através do Atlântico, oceano de
navegação, até então, desconhecida. O poema retoma a tradição da
épica clássica de Homero e Virgílio, na exaltação dos feitos heróicos
de um povo, de uma nação ou de um herói, com a exaltação centrada
na figura histórica do navegador Vasco da Gama (1469-1524), tomado
metonímica e ficcionalmente como a nação lusitana.
Assim, não se pode confundir o Clássico com o Classicismo. O
Classicismo é por definição um movimento cultural que visa ao
retorno do Clássico, em outra circunstância, com outros objetivos. A
nova Europa que nascia das grandes navegações, a partir de 1453,
com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, era o campo
propício para a volta dos grandes heróis épicos, navegadores, cujo
símbolo maior eram Ulisses e Enéias. Os ideais filosóficos de busca
da verdade são retomados e a verdade absoluta da Igreja Católica, de
base medieval, é questionada. O cisma religioso com Martinho Lutero
(1483-1546), a partir da publicação de suas teses contra a venda de
indulgências, em 1517, fortalece ainda mais o Renascimento, pois o
protestantismo significa perda da hegemonia da Igreja Católica. O
mundo que se descortina com novas culturas leva a novas reflexões, e
a própria configuração do universo se modifica com o heliocentrismo
de Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642) e
outros. Para o momento, nada melhor do que ter o homem como
centro desse universo – antropocentrismo – em oposição ao
teocentrismo medieval. É isso que faz o gênio de Leonardo da Vinci
(1452-1519), quando imagina e desenha O Homem Vitruviano. Nada
mais clássico do que o homem como medida de todas as coisas...
1.5. O Neoclassicismo
Como última representação do Clássico greco-latino toma força,
no século XVIII, o Arcadismo ou Neoclassicismo, em plena era da
racionalidade iluminista. Tratava-se de um movimento literário
nascido na Itália, desde 1690, com a Arcádia Romana, e continuado
em Portugal (Arcádia Lusitana, 1756), de onde chegaria ao Brasil e
floresceria na Minas Gerais aurífera de 1768 em diante. O ideal do
movimento era a volta ao estado natural dos tempos míticos da Idade
de Ouro, tempos em que os homens desfrutavam da companhia dos
deuses e não precisavam trabalhar ou acumular, pois a natureza farta e
generosa se encarregava de prover todas as necessidades. Essa vida
simples, em meio à natureza deleitosa, sem preocupações com o
amanhã, que se perde diante da ganância do homem, tem sua origem
no poema Os trabalhos e os dias, do poeta grego Hesíodo (século VIII
a. C.). Constatamos, pois, que, pelo tema ou pelo nome do movimento
– Arcadismo –, a ligação com o Clássico é inquestionável. Esse
momento, porém, como um de seus nomes indica, trata de um Novo
Classicismo. Não sendo o Classicismo do século XV, também não é o
Clássico da Idade Antiga, mas vai buscar o alimento da sua doutrina
em ambos. Podemos dizer que o Clássico greco-latino é
contemporâneo de si mesmo, procurando o seu próprio mundo e seu
próprio tempo. O Classicismo surge em um momento propício ao
retorno do heroísmo passado por causa da expansão provocada pelas
grandes navegações. Agora o Neoclassicismo prega a volta a um
passado mítico, de homens moderados, em perfeito equilíbrio com a
natureza acolhedora e os deuses que os criaram. Por que esta busca de
um tempo mítico e idílico? Corrompidos por si mesmos, os homens
brutalmente jogam-se uns contra os outros e a queda é fatal: na Idade
de Ferro em que se encontram, não há mais espaço para Vergonha
(Aidôs) e Justiça (Nêmesis), deusas que se retiram de seu convívio.
Os homens já não vivem em harmonia consigo mesmos, muito menos
com os deuses...
Sem a contribuição do Clássico greco-latino, não teríamos, por
exemplo a obra-prima de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810)
Marília de Dirceu.
1.6. Há espaço para o Clássico?
“Onde encontrar o tempo e a comodidade
da mente para ler clássicos, esmagados que
somos pela avalanche de papel impresso da
atualidade?”
Abro esta última seção com a pergunta inquietante de Ítalo
Calvino (1993: 14), que deve ser a mesma de todos os que estudam e
que pretendem conhecer mais os clássicos. Eu acrescentaria que
somos ainda esmagados por uma avalancha muito maior de
informações incorpóreas do mundo virtual da internet, que torna quase
impossível uma reflexão sobre elas. A rapidez e a quantidade da
informação produzida, em ambiente sedutor de alta tecnologia,
contribuem para que se afaste o leitor do livro e, mais
especificamente, do Clássico, na visão de muitos um mundo antigo,
obsoleto, empoeirado, cuja ressonância no mundo dito moderno é
inaudível ou quase.
Constatamos, no entanto, que o Clássico aparece e, retomado
como um ciclo, permanece, porque fundado em valores universais e
entranhados no ser humano. O Clássico vive em permanente estado de
movimentação, o que lhe garante a eternidade. Há dois mil e
oitocentos anos, Homero é escutado, lido, comentado e analisado.
Nenhum outro autor na história da humanidade ocidental é tão
prestigiado quanto Homero. A Ilíada e a Odisséia continuam
encantando gerações e gerações de leitores, filmes continuam sendo
feitos, em cada página há ainda um mundo a se descobrir com relação
a estes poemas, incansavelmente editados, para ficarmos apenas com
Homero.
E o que dizer dos tragediógrafos, cujas peças são modernas,
inquientantemente modernas? A internet encanta e seduz pela resposta
direta e on-line? Leiam o início do Agamêmnon de Ésquilo (Século V
a. C.) e verão que o sistema de fogueiras acesas ao longo das ilhas do
mar Egeu para dar a notícia a Clitemnestra do retorno do rei
Agamêmnon à Grécia, acabada a guerra de Tróia, antecipa em, pelo
menos, 2500 anos a internet...
Há espaço, sim, para o Clássico. O que precisamos é de escolas,
bibliotecas e uma melhor formação dos nossos professores – parece
que para isto é que não há espaço, infelizmente –, pois para onde nos
voltamos vemos a marca viva do passado em nossas vidas, nos nossos
nomes, nos nossos costumes, na maneira como nos organizamos e até
como escrevemos. Finalizando esta introdução, diríamos à maneira de
Ítalo Calvino que “ler os clássicos é melhor do que não ler os
clássicos” (1993: 16).
Busto de Homero (Museu do Louvre) e Fragmento da Ilíada
De forma a fixar o exposto até aqui, propomos a leitura
acompanhada de uma das Liras de Marília de Dirceu, de Tomás
Antônio Gonzaga. Gonzaga, na sua erudição, passeia pela antiguidade
greco-latina de Homero a Horácio, passando por Virgílio e pelos
ciclos da mitologia grega. Não há como ler o narcisismo de Dirceu,
sem conhecer o mito de Narciso ou como entender as penas e
dificuldades do amor de Dirceu e de Marília, sem conhecer os amores
trágicos de Hero e Leandro ou Orfeu e Eurídice. Constatar o
aproveitamento sadio da vida, na paz do campo, pelos pastores, sem
preocupações com o amanhã, colhendo a ocasião que se apresenta, só
é possível com o conhecimento do carpe diem horaciano. É preciso,
pois, ler a Marília de Dirceu dentro de uma perspectiva de
entrelaçamento textual como o Clássico, procurando trazer à tona essa
relação existente nas diversas Liras, os seus temas recorrentes e
reescrituras, como a beleza divina de Marília, os sofrimentos
provocados por Amor e a exaltação do carpe diem horaciano.
Marília de Dirceu é um longo poema lírico, com quase 5000
versos, em louvor a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, dividido e
publicado em três partes, nos anos de 1792, 1799 e 1812. O texto que
vamos abordar, a Lira VII, pertence à primeira parte do poema que
trata do amor do pastor Dirceu por sua amada, a pastora Marília, cuja
beleza é ressaltada e enaltecida. De beleza divinizada, Marília chega a
ser louvada como mais bela do que as três deusas olímpicas, padrões
da beleza clássica: Hera (Juno), Afrodite (Vênus) e Palas Atena
(Minerva). Dirceu faz vários retratos de Marília, mas não deixa de
fazer um retrato de si próprio, propagandeando a sua mocidade, sua
força de mando e propriedades, além de sua destreza como poeta. É a
parte mais árcade do poema, cuja ambientação, muito genérica, reflete
a natureza equilibrada do mítico mundo clássico. É importante
ressaltar a forte presença mitológica, imprescindível para a
compreensão do poema. Vamos à Lira VII1.
Lira VII
Vou retratar a Marília,
A Marília, meus amores;
Porém como? se eu não vejo
Quem me empreste as finas cores!
Dar-mas a terra não pode;
Não, que a sua cor mimosa
Vence o lírio, vence a rosa,
O jasmim e as outras flores.
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
1
GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. In: A poesia dos inconfidentes:
poesia completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e
Alvarenga Peixoto; organização de Domício Proença Filho; artigos, ensaios e notas
de Melânia Silva de Aguiar et alii. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1966, p. 583-584.
Mas não se esmoreça logo;
Busquemos um pouco mais;
Nos mares talvez se encontrem
Cores, que sejam iguais.
Porém não, que em paralelo
Da minha ninfa adorada
Pérolas não valem nada,
Não valem nada os corais.
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Só no céu achar-se podem
Tais belezas como aquelas,
Que Marília tem nos olhos,
E que tem nas faces belas;
Mas às faces graciosas,
Aos negros olhos, que matam,
Não imitam, não retratam
Nem auroras nem Estrelas.
Ah! socorre, Amor, socorre
Ao mais grato empenho meu!
Voa sobre os Astros, voa,
Traze-me as tintas do Céu.
Entremos, Amor, entremos,
Entremos na mesma Esfera;
Venha Palas, venha Juno,
Venha a Deusa de Citera.
Porém, não, que se Marília
No certame antigo entrasse,
Bem que a Páris não peitasse,
A todas as três vencera.
Vai-te, Amor, em vão socorres
Ao mais grato empenho meu:
Para formar-lhe o retrato
Não bastam tintas do Céu.
Trata-se de uma Lira constituída por quatro estrofes de doze
versos heptassílabos, nitidamente dividida em um agrupamento inicial
de oito versos (oitava) e um posterior de quatro versos (quadra ou
quarteto), funcionando como refrão, em que se observa uma mudança
apenas na última estrofe, tendo em vista a inutilidade do esforço de
Amor para encontrar tintas que possam reproduzir a beleza de Marília.
O esquema das rimas é misturado, do tipo ABCBDEEBFGHG,
observando-se a existência de versos brancos.
Marília é retratada como pura e recatada, pois “sua cor
mimosa/Vence o lírio, vence a rosa,/ O jasmim e as outras flores”. Sua
beleza é sem igual, superando as cores vivas dos corais e a brancura
leitosa das pérolas. Prepara-se já nessa estrofe a divindade de Marília,
com Dirceu chamando-a de “ninfa adorada”, numa referência às
divindades protetoras dos bosques, e da natureza de modo geral,
encarnadas por mulheres extremamente belas.
A terceira estrofe reforça a beleza de Marília, fazendo-a mais
brilhante que as estrelas, mais bela que a Aurora, deusa responsável
pela abertura das portas do Oriente, com seus dedos cor de rosa, para a
saída de Apolo cavalgando o carro do Sol. Com esta terceira estrofe,
fecha-se o ciclo: Marília é constituída por algo superior aos quatro
elementos básicos – terra, água, ar e fogo – vez que não existe nestes
quatros elementos nada comparável à sua beleza.
A última estrofe é a confirmação dessa beleza com a alusão à
disputa do Monte Ida. Marília é confrontada com as três deusas
olímpicas, consideradas padrão de beleza clássica – Hera (Juno), Palas
Atena (Minerva) e Afrodite (Vênus), aqui chamada pelo epíteto de
Deusa de Citera. Recuperemos a história mítica.
Palas Atena, deusa da sabedoria participa de um concurso de
beleza, envolvendo Hera e Afrodite, para saber qual a mulher mais
bela presente na festa de casamento de Peleu e Thétis, os futuros pais
de Aquiles. A deusa Discórdia ou Éris, furiosa por não lhe darem
atenção durante o casamento de Peleu e Thétis, fez surgir entre os
convidados um pomo de ouro, destinado "à mais bela". Prontamente
as três deusas passaram a reivindicar o título e fruto. Zeus, não
querendo decidir uma questão tão delicada, chamou Hermes e mandou
que ele as levasse ao Monte Ida, onde o pastor Páris faria a escolha.
Apresentando-se diante de Páris, cada uma das deusas tentou subornálo. Hera ofereceu-lhe a realeza; Palas prometeu-lhe a invencibilidade
na guerra; Afrodite, desnudando os seios, garantiu-lhe o amor da mais
bela das mulheres, Helena da Lacedemônia. Após estas ofertas, Páris
entregou o pomo a Afrodite, fazendo o ódio das outras duas se voltar
contra si e contra os troianos. Esta inimizade se fará sentir durante a
guerra de Tróia, desencadeada pelo rapto de Helena por Páris, ocasião
em que Palas e Hera se colocarão ao lado dos gregos, portanto,
contrárias a Páris e aos troianos, protegidos por Afrodite
Afrodite aparece no texto da Lira através de um dos seus vários
epítetos deusa de Citera. No tocante ao seu nascimento, pelo menos
duas tradições são registradas: a primeira afirma que Afrodite seria a
filha de Zeus e Dione, conforme vemos na Ilíada, de Homero (V, 370372; XIV, 224; XXIII, 185); a segunda, defendida por Hesíodo,
apresenta a deusa como filha de Urano e das espumas do mar (versos
134-210). De acordo com a versão da Teogonia de Hesíodo, Urano
teve o órgão sexual cortado e atirado por seu filho Cronos ao mar.
Assim, da mistura do esperma do deus com as espumas, teria nascido
Afrodite. Tão logo nasceu, a deusa foi conduzida pelas ondas, ou por
Zéfiro, o vento, para a Ilha de Citera, daí o seu epíteto de Citeréia.
Páris, filho de Príamo e Hécuba, reis de Tróia, foi designado
pelo pai para ser morto, devido a uma profecia que o apontava como
futuro responsável pela destruição do reino. Por piedade, o pastor
incumbido de tal tarefa o criou. Uma vez adulto, Páris é reconhecido
por Cassandra, sua irmã, e reintegrado à família real. A quarta estrofe
do poema, portanto, refere-se ao julgamento que Páris, teve de fazer,
para escolher a mais bela das três deusas, cujas conseqüências serão o
rapto de Helena, a guerra contra os gregos e a destruição de Tróia. Ao
aludir ao fato, Dirceu quer não apenas mostrar a superioridade de
Marília em relação à beleza clássica, mas também atualizar o mito.
Páris a faria vencedora sem que Marília necessitasse suborná-lo. Se
não há suborno, não há o rapto de Helena, sem o qual a guerra de
Tróia não acontecerá. Em não acontecendo a guerra, Aquiles não
morre. Vê-se, portanto, que Helena contraposta a Marília, marca a
oposição entre a beleza ruinosa (Helena) e a beleza benfazeja
(Marília), contribuindo para a harmonia do mundo. E há mais: como o
poeta-pastor diz que para formar o retrato de Marília não bastam tintas
do céu, o único meio de eternizá-la é pela memória, através do mito, o
ideal. Daí o aproveitamento do mito do julgamento de Páris, para
configurar a beleza divina e eterna de Marília. Só o mito torna
possível a perenidade e a lembrança, pois se o rito comemora, o mito
rememora. Tal leitura só é possível com o conhecimento do mito de
Páris e Helena, constante do poema O rapto de Helena, de Colutos
(século VI d. C.).
TEXTO PARA EXERCÍCIO
Leia o texto abaixo e procure compreendê-lo a partir dos
elementos do mundo clássico nele existentes. Para a sua análise,
recomendamos o conhecimento do mito de Apolo e Dafne.
Soneto 122
O filho de Latona, esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
O hórrido Piton, brava serpente,
Matou, sendo das gentes tão temido.
Ferio com arco e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente;
Nas tessálicas praias, docemente,
Pola Ninfa Penea andou perdido.
Não lhe pôde valer, para seu dano,
Ciência, diligências, nem respeito
De ser alto, celeste e soberano.
Se este nunca alcançou nem um engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu que espero de um ser que é mais que humano?2
Luís Vaz de Camões
TEXTOS DE APOIO
1. MITO DE APOLO E DAPHNE
MITO DE PYTHON (v. 416-451). A terra engendrou dela mesma os
outros animais sob formas diversas, assim que a umidade que ela ainda
retinha foi esquentada sob os fogos do sol, quando o calor inflou a lama e as
2
CAMÕES, Luís Vaz de. Sonetos de Camões (corpus dos sonetos camonianos);
edição e notas por Cleonice Serôa da Motta Berardinelli. Paris: Centre Culturel
Portugais Lisbonne; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980, p. 180.
águas pantanosas, quando os germes fecundos das coisas, nutridos por um
solo vivificante, se desenvolveram como no ventre de uma mãe e tomaram
com o tempo aspectos diferentes. Assim, quando o Nilo das sete
embocaduras deixou os campos inundados e levou de volta suas torrentes
para seu antigo leito, quando do alto dos ares o astro do dia fez sentir sua
chama no limo recente, os cultivadores, retornando à gleba, lá encontram um
grande número de animais; eles vêem alguns que estão apenas esboçados, no
momento mesmo de seu nascimento, outros imperfeitos e desprovidos de
alguns de seus órgãos; muitas vezes no mesmo corpo uma parte está viva, a
outra não é senão ainda terra informe. Com efeito, assim que a umidade e o
calor se combinaram um com ou outro, eles concebem; é destes dois
princípios que nascem todos os seres; ainda que o fogo seja inimigo da água,
uma claridade úmida engendra todas as coisas e a concórdia na discórdia
convém à reprodução. Portanto, tão logo a terra coberta de lama pelo dilúvio
recente3, recomeça a receber do alto dos ares o calor dos raios do sol, ela deu
à luz espécies inumeráveis; tanto ela devolveu aos animais sua figura
primitiva, quanto ela criou monstros novos. Foi contra sua vontade que ela
engendrou também nessa época a colossal Python; para os povos recémnascidos, serpente então desconhecida, tu era um objeto de terror, tanto tu
ocupavas o espaço ao longo da montanha. O arqueiro divino, que jamais
antes não havia se servido de suas armas senão contra os gamos e os cabritos
prontos para a fuga, a abateu com mil setas; quase esvaziando sua aljava, ele
a matou; por negras feridas se espalhou o veneno da fera. Para que o tempo
não pudesse apagar a memória deste feito, ele instituiu, sob a forma de
concursos solenes, os jogos sagrados que do nome da serpente vencida
tomaram o nome de Pythicos. Nestes jogos, os jovens, que por seus punhos,
suas pernas ou as rodas de seus carros tinham tido a vitória, recebiam como
recompensa uma coroa de carvalho; o loureiro ainda não existia e, para
cingir seus longos cabelos ao redor de sua bela fronte, Febo tomava
emprestado seu ramo a árvores de toda sorte.
MITO DE DAPHNE (v. 452-567). O primeiro amor de Febo foi Daphne,
filha de Peneu; sua paixão nasceu, não de um desconhecido acaso, mas de
uma violenta ira de Cupido. Recentemente, o deus de Delos, orgulhoso de
sua vitória sobre a serpente, o vira curvar, puxando a corda para si, as duas
3
O dilúvio enviado por Zeus, para punir os homens (Les métamorphoses, I, v. 253312).
extremidades de seu arco: “Que tens a fazer, louca criança, disse ele, destas
armas poderosas? Cabe-me a mim suspendê-las em minhas espáduas; com
elas eu posso desferir golpes inevitáveis em uma besta selvagem, em um
inimigo; ainda há pouco, quando Python cobria grande superfície com seu
ventre inchado de venenos, eu a abati sob minhas flechas inumeráveis. Para
ti, que te seja suficiente iluminar com tua tocha não sei que fogos de amor;
guarda-te de pretender meus sucessos”. O filho de Vênus lhe respondeu:
“Teu arco, Febo, pode tudo furar; o meu vai te furar a ti mesmo; tanto todos
os animais estão abaixo de ti, quanto tua glória é inferior à minha”. Ele disse,
fende o ar com o batimento de suas asas e, sem perder um instante, se posta
sobre o cimo umbroso do Parnaso; de sua aljava cheia de flechas, ele retira
duas setas que têm efeitos diferentes: uma expulsa o amor, a outra o faz
nascer. A que o faz nascer é dourada e armada com uma ponta aguda e
brilhante; aquela que o expulsa é arredondada e sob a haste contém chumbo.
O deus fere com a segunda a ninfa, filha de Peneu; com a primeira ele
traspassa através dos ossos o corpo de Apolo até a medula. Este ama logo; a
ninfa foge até ao nome do amante; os abrigos das florestas, os despojos dos
animais selvagens que ela capturou fazem toda a sua alegria; ela é a êmula
da casta Febe4; uma faixa retinha só seus cabelos caindo em desordem.
Muitos pretendentes a pediram, mas ela desdenhando todos os pedidos,
recusando-se ao jugo de um esposo, ela percorria a solidão dos bosques; o
que é o canto do himeneu, o amor, o casamento? Ela não se inquietava de
sabê-lo. Freqüentemente seu pai lhe disse: “Tu me deves um genro, minha
filha”. Mas ela, como se se tratasse de um crime, ela tem horror às tochas
conjugais; o rubor da vergonha se espalha sobre seu belo rosto e, com os
braços carinhosos suspensos no pescoço de seu pai, ela lhe responde:
“Permite-me, pai bem-amado, gozar eternamente minha virgindade; Diana
bem que o obteve do seu5”. Ele consente, mas tu tens encantos demasiados,
Daphne, para que seja como tu o desejas, e tua beleza faz obstáculos a teus
votos. Febo ama, ele viu Daphne, ele quer se unir a ela; o que ele deseja, ele
o espera e ele está enganado por seus próprios oráculos6. Como uma palha
leve se abrasa, depois que se colheram as espigas, como uma sebe se
consome ao fogo de uma tocha que um viajante por acaso dela aproximou
demasiado ou que ele ali deixou quando o dia já nascia; assim o deus
inflamou-se; assim ele queima até o fundo de seu coração e nutre de
esperança um amor estéril. Ele contempla os cabelos da ninfa flutuando
sobre seu pescoço sem ornamentos: “Que aconteceria, diz ele, se ela tomasse
4
A deusa Diana (Ártemis), a irmã de Apolo, de cujo séquito Daphne participava.
Referência a Júpiter (Zeus), pai de Diana (Ártemis).
6
Como deus da profecia, Apolo deveria saber que não teria sucesso no amor com
Daphne, mas o amor engana até os profetas...
5
cuidado com seu penteado?” Ele vê seus olhos brilhantes com os astros; ele
vê sua pequena boca, que não lhe é suficiente apenas ver; ele admira seus
dedos, suas mãos, seus punhos e seus braços mais que seminus; o que para
ele está escondido, ele o imagina mais perfeito ainda. Ela, ela foge, mais
rápido que a brisa ligeira; ele tenta lembrá-la, mas não pode retê-la por tais
propósitos:
“Ó ninfa, eu te imploro, filha de Peneu, pára; não é um inimigo quem te
persegue; ó ninfa, pára. Como tu, a ovelha foge do lobo; a corça, do leão; as
pombas com as asas trêmulas fogem da águia; cada uma tem seu inimigo;
eu, é o amor que me joga sobre tuas pegadas. Qual não é minha infelicidade!
Cuidado para não cair à frente! Que tuas pernas não sofram indignamente
feridas, a marca das sarças, e que eu não seja para ti uma causa de dor! O
terreno sobre o qual te lanças é rude; modera tua corrida, eu te suplico,
diminui a tua fuga; eu mesmo, eu moderarei minha perseguição. Sabe, no
entanto, que tu me encantaste; eu não sou um montanhês, nem um pastor, ou
um desses homens incultos que vigiam os bois e os carneiros. Tu não sabes,
imprudente, tu não sabes de quem tu foges e porque tu foges. É a mim que
obedecem o país de Delfos7 e Claros8 e Tênedos9 e a residência real de
Patara10; eu tenho por pai Júpiter; foi a mim que ele revelou o futuro, o
passado e o presente; sou eu que caso o canto aos sons das cordas. Minha
flecha acerta golpes certeiros; um outro, no entanto, acerta mas seguramente
ainda, foi ele que feriu meu coração, até então isento deste mal. A medicina
é uma das minhas invenções; em todo o universo me chamam o que socorre
e o poder das plantas me é submisso. Ai de mim! não existem plantas
capazes de curar o amor e minha arte, útil a todos, é inútil a seu mestre.”
Ele ia dizer ainda mais, porém a filha de Peneu continuava sua corrida
louca, fugiu e o deixou lá, ele e seu discurso inacabado, sempre tão bela a
seus olhos; os ventos desvelavam sua nudez; seu sopro, vindo sobre ela em
sentindo contrário, agitava suas vestes e a brisa ligeira jogava para trás seus
cabelos levantados; sua fuga realça ainda mais sua beleza. Mas o jovem deus
renuncia a lhe endereçar em vão ternos propósitos e, levado pelo próprio
amor, ele segue os passos da ninfa redobrando a sua velocidade. Quando um
cão gaulês percebia uma lebre na planície descoberta, ambos disparavam,
um para pegar a presa, outro para salvar sua vida; um parece sobre o ponto
de pegar o fugitivo, ele espera segurá-lo em um instante e, o focinho tenso,
estreita de perto suas pegadas; o outro, incerto se ele o pegou, se livra das
7
Cidade na Grécia, onde Apolo tem seu templo mais famoso.
Cidade na Jônia, onde existe um templo de Apolo.
9
Ilha no mar Egeu, em frente a Tróia, onde existe o célebre templo de Apolo
Esmintheu, o dos ratos.
10
Residência dos soberanos da Lícia, na Ásia Menor. Apolo é chamado também de
Apolo Lício.
8
mordidas e esquiva-se da boca que o tocava; assim o deus e a virgem são
levados um pela esperança, outro pelo medo. Mas o perseguidor, levado
pelas asas de Amor, é mais rápido e não tem necessidade de repouso; já ele
se inclina sobre as espáduas da fugitiva, ele roça com o hálito os cabelos
esparsos sobre seu pescoço. Ela, no fim das forças, empalideceu; quebrada
pelo cansaço de uma fuga tão rápida, os olhares voltados para as águas do
Peneu: “Vem, meu pai, diz ela, vem em meu socorro, se os rios como tu têm
um poder divino, livra-me por uma metamorfose desta beleza demasiado
sedutora”.
Mal acabara sua prece e um pesado torpor se apossa de seus membros;
uma fina casca cobre seu seio delicado; seus cabelos que se alongam se
mudam em folhagem; seus braços, em ramos; seus pés, logo tão ágeis,
aderem ao solo por raízes incapazes de se mover; o cimo de uma árvore
coroa sua cabeça; de seus encantos não resta senão o brilho. Febo, no
entanto, sempre a ama; sua mão posta sobre o tronco, ele sente ainda o
coração palpitar sobre a casca recente; cercando com seus braços os ramos
que substituem os membros da ninfa, ele cobre a madeira com seus beijos;
mas a árvore recusa seus beijos. Então o deus: “Bem, diz ele, visto que não
podes ser minha esposa, ao menos serás minha árvore; para todo o sempre tu
ornarás, ó loureiro, minha cabeleira, minhas cítaras, minhas aljavas; tu
acompanharás os condutores do Lácio, quando vozes alegres farão escutar
cantos de triunfo e o Capitólio11 verá vir até ele longos cortejos. Tu
crescerás, guardião fiel, diante da porta de Augusto12 e tu protegerás a coroa
de carvalho suspensa no meio; igualmente, que minha cabeça, cuja cabeleira
jamais conheceu tesoura, conserve sua juventude, igualmente a tua será
sempre ornada com uma folhagem inalterável13”. Peã14 havia falado; o
loureiro inclina seus galhos novos e o deus o viu agitar seu cimo como uma
cabeça.15
11
Principal sítio de Roma.
Dois loureiros davam sombra ao palácio do imperador Augusto, no Palatino.
13
O loureiro não perde as folhas no inverno.
14
Um dos epítetos de Apolo e nome do hino em sua honra.
15
OVIDE. Les métamorphoses; texte traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles
Lettres, 1928. Tradução operacional de Milton Marques Júnior.
12
2. O MITO DAS RAÇAS HUMANAS16
De ouro foi a primeira raça de homens perecíveis, que os Imortais
habitantes do Olimpo criaram. Eram os tempos de Cronos, quando ele
reinava ainda no céu. Eles viviam como deuses, o coração livre de
inquietações, longe e ao abrigo das penas e das misérias: a velhice miserável
não pesava sobre suas cabeças; ao contrário, braços e pernas sempre jovens,
eles se alegravam nos festins, longe de todos os males. Quando morriam,
pareciam sucumbir ao sono. Todos os bens lhes pertenciam: o solo fecundo
produzia espontaneamente uma abundante e generosa colheita, e eles, na
alegria e na paz, viviam de seus campos, no meio de bens inumeráveis.
Desde que o solo recobriu os desta raça, eles são, pela vontade de Zeus
Todo-Poderoso, os bons gênios da terra, guardiães dos mortais,
distribuidores da riqueza: é a honra real que lhes foi atribuída em partilha.
Em seguida uma raça bem inferior, uma raça de prata, mais tarde foi
criada ainda pelos habitantes do Olimpo. Estes não parecem nem pelo talhe
nem pelo espírito aos da raça de ouro. A criança, durante cem anos, crescia
brincando ao lado de sua digna mãe, a alma toda pueril, na sua casa. E
quando, crescendo com a idade, eles atingiam o termo que marca a entrada
na adolescência, viviam, então, pouco tempo, e, por sua falta de
discernimento, sofriam mil penas. Eles não sabiam abster-se de um
descomedimento louco. Recusavam o oferecimento de culto aos Imortais ou
o sacrifício nos santos altares dos Bem-Aventurados, segundo a lei dos
homens que se deram moradas fixas. Então Zeus, filho de Cronos,
encolerizado, os sepultou, porque eles não rendiam homenagens aos deuses
Bem-Aventurados que possuíam o Olimpo. E, quando o solo, por sua vez, os
tinha recoberto, eles se transformaram naqueles que os mortais chamavam os
Bem-Aventurados dos Infernos, gênios inferiores, ainda merecedores,
contudo, de alguma honra.
E Zeus, pai dos deuses, criou uma terceira raça de homens perecíveis, a
raça de bronze, bem diferente da raça de prata, filha dos freixos, terrível e
poderosa. Estes aqui não sonhavam senão com os trabalhos gemebundos de
Ares e com as obras do descomedimento. Eles não comiam o pão; seu
coração era como o aço rígido; eles causavam terror. Poderosa era a sua
força, invencíveis os braços que se pregavam contra a espádua de seus
corpos vigorosos. Suas armas eram de bronze, de bronze suas casas, com o
bronze eles trabalhavam, pois o ferro não existia. Eles sucumbiram, sob os
próprios braços e partiram para a estada mofada do arrepiante Hades, sem
16
HÉSIODE. Les travaux et les jours. In: Thégonie, Les travaux et les jours, Le
bouclier; texte établie et traduit par Paul Mazon. Paris: Les Belles Lettres, 1996,
versos 90-201. Tradução operacional nossa, a partir do texto francês de Paul Mazon.
deixar nome sobre a terra. A negra morte os pegou, por apavorantes que
fossem, e eles deixaram a resplandecente luz do sol.
E, quando o solo tinha novamente recoberto esta raça, Zeus, filho de
Cronos, dele criou ainda uma quarta sobre a gleba nutriz, mais justa e mais
brava, raça divina dos heróis que se nomeiam semi-deuses e cuja geração
nos precedeu sobre a terra sem limites. Estes aqui pereceram na dura guerra
e na batalha dolorosa, uns contra os muros de Tebas das Sete Portas, outros
sob o solo cádmio, combatendo pelos filhos de Édipo; outros além do
abismo marinho, em Tróia, aonde a guerra os conduzira em belonaves, por
Helena dos belos cabelos, e onde a morte, que tudo acaba os sepultou. A
outros, enfim, Zeus, filho de Cronos e pai dos deuses, deu uma existência e
uma morada distante dos homens, estabelecendo-os nos confins da terra. É lá
que habitam, o coração livre de inquietações, nas Ilhas dos BemAventurados, à borda dos turbilhões profundos do Oceano, heróis
afortunados, para quem o solo fecundo produz três vezes por ano uma
florescente e doce colheita.
E prouvesse ao céu que eu não tivesse, por meu lado, de viver no meio
dos da quinta raça, e que eu tivesse morrido mais cedo ou nascido mais
tarde. Pois esta é agora a raça de ferro. Eles jamais cessarão de sofrer,
durante o dia, cansaços e misérias; durante a noite, de ser consumidos pelas
duras angústias que lhes enviarão os deuses. Ao menos, acharão eles ainda
alguns poucos bens, misturados aos seus males. Mas chegará a hora em que
Zeus aniquilará, por sua vez, toda esta raça de homens perecíveis: este será o
momento em que eles nascerão com as têmporas brancas. O pai, então, não
parecerá com o filho, nem o filho com o pai; o hóspede não será mais
querido de seu anfitrião, o amigo pelo seu amigo, o irmão pelo seu irmão,
assim como os dias passados. A seus pais, assim que eles envelhecerem, eles
não mostrarão senão desprezo; para se queixarem deles, eles se exprimirão
com palavras rudes, os malvados! e não conhecerão nem mesmo o temor ao
Céu. Aos velhos que os nutriram, eles recusarão o alimento. Não haverá
prêmio para a manutenção do juramento, para os justos ou os bons: para os
artesãos do crime, para o homem só descomedimento é que irão os seus
respeitos; o único direito será a força, a consciência não mais existirá. O
covarde atacará o bravo com palavras tortuosas, que apoiará com um falso
juramento. Ao passo de todos os miseráveis humanos atar-se-á o ciúme, à
linguagem amarga, à fronte odiosa, que se compraz com o mal. Então,
deixando pelo Olimpo a terra dos largos caminhos, escondendo seus belos
corpos sob véus brancos, Honra (Aidós) e Justiça (Némésis), abandonarão os
homens, subirão para os Eternos. Restarão aos mortais apenas tristes
sofrimentos: contra o mal não mais existirão recursos.
2. Contextualização do Clássico: os períodos históricos das
Literaturas grega e latina
2.1. Introdução à Literatura Grega
A literatura grega compreende basicamente três momentos: o
período Arcaico (século VIII – V a.C.), o período Clássico (século V –
IV a. C.) e o período Alexandrino (século IV – III a. C.). A partir do
século III a. C., com a dominação da Grécia por Roma, a literatura que
se sobressai é a latina, iniciada pelas mãos de gregos tomados como
cativos pelos romanos nas guerras de conquistas.
O período Arcaico (VIII – V a. C.) marca o do princípio do fato
literário, quando a escrita retorna à Grécia, depois de seu
desaparecimento por quatrocentos anos, entre os séculos XII e VIII a.
C. Ainda se trata de uma cultura oralizada, apesar da escrita, em que a
literatura aparece cantada pelos aedos e rapsodos, os poetas e cantores
da época. É nesse momento que são produzidos os poemas homéricos
– Ilíada e Odisséia – e os poemas de Hesíodo – Teogonia e Os
trabalhos e os dias –, iniciando-se, assim a literatura ocidental. É por
isto que se chama a esse período de arcaico. Diferentemente do
sentido que a palavra tem hoje, arcaico significa para o mundo grego
algo que está no princípio, na origem dos fatos. Os poemas homéricos
e hesiódicos são o princípio, a origem de toda a literatura que se faz
no Ocidente greco-latino. Além do mais, esse período marca a
reintrodução da escrita no mundo ocidental. Nesse momento, a
literatura procura retratar o mundo mítico dos deuses e heróis, mundo
mais próximo da natureza e tendo no mito a sua explicação. Se
Homero trata de heróis em guerra ou retornando para casa após a
guerra, Hesíodo trata da ordem do universo, de como os deuses
nasceram e da necessidade da justiça entre os homens.
O período Clássico (século V – IV a. C.) nos mostra o mundo da
pólis, da cidade, que substitui o mundo anterior mais ligado à
natureza. É um momento complexo em que a filosofia cria uma
explicação lógica para o mundo, a partir de um discurso racional.
Nesse mundo nasce o teatro trágico grego, procurando refletir sobre a
condição e a fragilidade humana. Mesmo apoiado nos mitos antigos, o
teatro revela o conflito do homem entre o passado e o presente da
pólis com suas leis escritas, diferentes das leis divinas do mundo
mítico do passado. Ésquilo, Sófocles e Eurípides serão os grandes
autores desse período, legando-nos obras-primas como Orestéia,
Édipo Rei e Hécuba, respectivamente.
O período Alexandrino (século IV – III a. C.) é caracterizado pela
expansão do mundo helênico com o império de Alexandre, o Grande
(335-323 a. C.) e a criação da Biblioteca de Alexandria, por volta do
século III a. C., reunindo um sem-número de obras importantes. O
último grande poema do mundo grego, pertencente a esse período e
que chegou até nós foi Argonáuticas de Apolônio de Rhodes, cerca de
295 a. C. Após esse momento, se dá a dominação romana sobre a
Grécia e começa a surgir a literatura latina.
2.2. Introdução à Literatura Latina
O caminho percorrido pela literatura latina de suas origens até
Virgílio, no período Clássico, é longo e nem tudo pode ser chamado
com propriedade de literatura. Da fundação de Roma (753 a. C.) à
edição da Eneida (17 a. C.), distam quase oito séculos. Desse tempo,
apenas o período compreendido entre o século III a. C. e o século III
d. C., a partir do emprego literário do latim e que traduz um momento
particular da glória romana, é que pode ser chamado realmente de
literário. Trata-se de uma literatura como produto de uma
convergência entre a cidade, que se faz senhora do mundo, e uma
língua, que se faz literária. É o estado social e político poderoso
criando as condições para a existência de uma língua de cultura.
O fervilhamento cultural da Alexandria dos Ptolomeus, produto
direto da helenização, a partir do século III a. C., a expansão romana
pelo mar mediterrâneo, após a primeira vitória sobre Cartago, em
meados desse mesmo século, e o domínio militar sobre os gregos
favorecerão o florescimento da literatura latina. Dentre os nomes
importantes desse momento, está o de Apolonius de Rhodes (295 a.
C.), com um poema épico em quatro cantos, Argonáuticas, cuja
influência, dois séculos mais tarde, sobre Virgílio será marcante. É,
pois, a dominação cultural grega, apesar do domínio militar romano,
que permite a afirmação de que a literatura latina é proveniente da
literatura grega.
Esse período – do século III a. C. ao século III d. C. – situa-se
entre a fase primitiva ou pré-literária (século VIII – século III a. C.),
em que predomina a oralidade, e a literatura cristã (a partir do século
III-IV da nossa era), que já se distancia do espírito da Roma gloriosa.
Nesse momento podem-se distinguir os períodos Arcaico (século III –
I a. C.) e Clássico (século I a. C. – I d. C.). É no período Arcaico que
passa a existir o fato literário, marcado a partir de Livius Andronicus,
escravo originário de Tarento, cuja Odissia (cerca de 250 a. C.) é uma
tradução e adaptação da Odisséia de Homero, por sua temática
ocidental, pois as viagens de Ulisses o levam à costa italiana, antes de
retornar em definitivo para Ítaca. Não menos importante é o Bellum
Punicum ou Guerra Púnica, de Naevius, escrito por volta do ano 209
a.C., tratando da primeira guerra entre Roma e Cartago. Os primeiros
cantos são ocupados por um tema mítico, resgatando a tradição de
Enéias como mito fundador e herói itálico, além dos seus amores com
Dido, de onde se originaria a rivalidade entre Roma e Cartago. Deste
modo, Naevius não só antecipa Virgílio e a Eneida, mas também abre
espaço para a exaltação dos heróis nacionais.
O período Clássico começa com Cícero (106-43 a. C.), por volta
de 80 a. C., com a consolidação da língua literária, que tem na sua
base a retórica. Os grandes autores da poesia estarão nas décadas
seguintes, sobretudo, a partir de 43 a. C., no início da chamada era de
Augusto, com a poesia atingindo o seu apogeu. É no período Clássico
que surgem Catulo (87-54 a. C.), Lucrécio (98-55 a. C.), Virgílio (7019 a. C.), Horácio (65-8 a. C.), Tibulo (54-19 a. C.), Propércio (50-15
a. C.) e Ovídio (43 a. C. – 17 d. C.), produzindo a excelência da
literatura latina.
GLOSSÁRIO
Aedo: É o cantor dos poemas narrativos. A palavra é grega, significando
cantor. Cabia ao aedo cantar os episódios mais conhecidos da poesia épica,
quando solicitado pelo público.
Antiguidade Clássica: Primeiro período da história ocidental, marcado
pelo reaparecimento da escrita na civilização grega. Costuma-se marcar o
seu início a partir do século VIII a. C. Seu limite se estenderia até o século V
da Era Cristã, quando da queda do império romano do Ocidente, em 476.
Arcadismo: Movimento literário, originada na Itália a partir da
fundação da Arcádia Italiana, em 1690, tendo se expandido para Portugal,
em 1756 com a Arcádia Lusitane, e chegado ao Brasil em 1768, fixando-se
em Minas Gerais. Tinha como objetivo recuperar a harmonia da vida simples
do pastor, em contraposição à vida desregrada e corrupta da cidade. O seu
nome se liga a uma das regiões mais antigas da Grécia, a Arcádia, no
Peloponeso.
Carpe Diem: Expressão latina, proveniente da Ode XI, Livro I das
Odes de Horácio (século I a. C.), significando colhe o dia. O sentido é o de
que devemos aproveitar as ocasiões quando elas se apresentam. O ser
humano não deve se inquietar com o amanhã, cujo saber pertence aos
deuses. Enquanto nos preocupamos com o que não nos cabe saber, o tempo
foge. Devemos, portanto, saber reconhecer quais as ocasiões favoráveis para
aproveitá-las.
Classicismo: Período cultural que se firma a partir do século XV, como
um desdobramento natural do Renascimento, uma vez iniciada a difusão da
cultura clássica. Na língua portuguesa, o grande humanista foi o poeta Luís
Vaz de Camões, cuja obra-prima é Os Lusíadas (1572).
Guerras Púnicas: O termo designa as guerras entre Roma e Cartago,
nos séculos III e II a. C. Como os cartagineses eram originários de Tiro, na
Fenícia (atual Líbano), o termo grego para designar fenício, acaba se
transformando em púnico. Foram três guerras (264-241; 218-202 e 148-146
a. C.) e aquela que determina a derrota de Cartago e o controle de Roma
sobre o Norte da África é a segunda (218-202 a.C.). Nessa guerra, Cipião, o
Africano, vence Aníbal, o Cartaginês, na batalha de Zama, em 202 a.C., no
Norte da África.
Heliocentrismo: Teoria astronômica em que o sol é o centro do
universo e os planetas giram ao seu redor. Esta teoria formulada por Nicolau
Copérnico contraria a anterior, a geocêntrica, em que a terra é que constituía
o centro do universo e os demais planetas, inclusive o sol, giravam a seu
redor.
Humanismo: Base do Renascimento e do Classicismo, o Humanismo
teria se iniciado desde o século XI com o estudo das obras dos filósofos
gregos.
Idade de Ferro: V. Idade de Ouro.
Idade de Ouro: Idade mítica do homem, presente na obra do poeta
grego Hesíodo (século VIII a. C.) Os trabalhos e os dias. Na concepção do
poeta grego, o homem teria sido criado em meio a uma natureza harmônica e
generosa. Não sabendo respeitar os deuses, o homem vai decaindo e
perdendo as benesses que os deuses lhes deram. A última etapa da
decadência humana é a Idade de Ferro, em que a corrupção e os males
grassam sem poder ser contidos. Antes de chegar à Idade de Ferro, o homem
ainda passaria por mais três etapas: a Idade de Prata, a Idade de Bronze, a
Idade dos Heróis. A simbologia dos metais mostra como a degradação vai se
processando: do metal mais nobre e incorruptível a um metal menos nobre e
oxidável, o ferro.
Iluminismo: Movimento filosófico-político nascido na França em
meados do século XVIII, preconizando a liberdade do homem através da
razão. O conhecimento é a luz que levará à razão.
Julgamento de Páris: Julgamento operado por Páris, príncipe troiano,
no Monte Ida, na Frígia, Ásia Menor. O julgamento consistia em decidir qual
era a mais bela entre as deusas Hera, Palas Atena e Afrodite. Tendo
escolhido Afrodite, seduzido pela promessa de casar-se com Helena, a
mulher mais bela do mundo, Páris atrai a fúria das outras deusas contra si e
contra os troianos. Seu ato terá como conseqüências o rapto de Helena, a
guerra contra os gregos e a destruição de Tróia.
Neoclassicismo: Movimento artístico-literário (final do século XVII até
a segunda metade do século XVIII) que busca o retorno a uma vida simples
na natureza equilibrada, fugindo da dissolução do mundo urbano. Inspirado
no Clássico greco-latino, o movimento se volta para um tempo mítico e
harmônico.
Rapsodo: Poeta e cantor de poemas narrativos. Além de cantar, o
rapsodo tecia a narrativa e compunha.
Reforma Protestante: Cisma na Igreja Católica levado a cabo por
Martinho Lutero, desde que ele se insurge, pregando as suas 95 teses contra
a Igreja, na Alemanha, no início do século XVI.
Renascimento: Movimento cultural filosófico de origem italiana, cujo
centro foi a cidade de Florença. Estima-se que, desde o século XIV, o
Renascimento tenha iniciado com a redescoberta e difusão da cultura grecolatina.
Século de Augusto: Período no século I a. C., em que o latim se firma
como língua literária, iniciando com a retórica de Cícero e chegando ao seu
apogeu com Catulo, Virgílio, Horácio e Ovídio. A referência é a Otávio
Augusto César, primeiro imperador romano (29 a. C. – 14 d. C.).
Século de Ouro: Diz-se do período entre o século V e o século IV a. C.,
vivido pelos gregos, em que se registra o apogeu artístico, com a tragédia; o
filosófico com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles, e o político, com a
democracia.
II. Segunda Unidade: Estudo de Homero – O Canto I da Ilíada
1. Estudo de Homero
Produzidos no período Arcaico da Literatura Grega (VIII – V a.
C.), a Ilíada e a Odisséia são os poemas fundadores de toda a
literatura ocidental. A sua autoria foi atribuída a Homero, aedo cuja
existência é sempre questionada17. Tendo sobrevivido na tradição oral
por duzentos anos, estes dois poemas conheceram sua primeira forma
em texto no século VI a. C., cerca de 560, quando o tirano Pisístratos,
acreditando-se descendente de Nestor de Pilos, teria ordenado a
escritura dos versos.
A tradição oral, se por um lado garantiu a permanência do poema,
por outro lado contribuiu para uma grande variante dos versos, tendo
em vista que o aedo ou o rapsodo, os poetas-cantores de então,
escolhiam os episódios para cantar ao seu público e, muitas vezes,
introduziam versos de outros poemas. A depuração dos textos só
aconteceu no século III a. C., trabalho desenvolvido pelos sábios do
Museu de Alexandria. Esses eruditos, dentre eles Zenódoto de Éfeso,
Aristófanes de Bizâncio e, principalmente, Aristarco, se preocuparam
em estudar, corrigir e comentar os poemas, constituindo, assim, os
primeiros estudos filológicos de que se tem notícia. É Aristarco, por
exemplo, que determina, definitivamente, o número de versos dos
poemas. Essa fixação, no entanto, não impediu que os poemas
conhecessem várias fontes.
Poemas recitados para um público nobre – veja-se, por exemplo, a
existência de um poeta cego, Demódoco, no Canto VIII da Odisséia,
cantando as façanhas dos gregos em Tróia, e em especial as de
Odisseus (nome grego de Ulisses), no banquete oferecido por
Alcínoos, rei Feácio, ao próprio Odisseus – a sua narrativa é de
exaltação da nobreza guerreira. Embora se referindo a uma civilização
arcaica, a Ilíada e a Odisséia se tornam poemas clássicos, pois lidos e
comentados em classe, na sala de aula, tendo não só ajudado a formar
o espírito grego, mas, principalmente, permanecido na cultura
universal.
17
Nada menos do que sete cidades da atual Turquia, a antiga Ásia Menor, dentre
elas Chios e Esmirna, disputam a primazia de ser o local de seu nascimento. O que
suscita a disputa é o fato de que, na essência, o dialeto dos poemas homéricos é o
jônio, com alguns empréstimos do eólio, língua da mesma região.
Visto consensualmente como o poema da fúria de Aquiles ou uma
Teomaquia, a Ilíada é a maior expressão da poesia épica em todos os
tempos, enfocando um mundo das origens, em que heróis são
comandados por um grande senhor, investido de um poder divino.
Poema de estrutura oral, próprio para ser cantado pelo aedo ou
rapsodo, ao ritmo dos versos hexâmetros dactílicos, fazendo a
exaltação dessa aristocracia da civilização arcaica, que tinha em
Micenas o seu apogeu e em Agamêmnon o seu grande senhor.
Os limites da Ilíada, normalmente conhecido como tratando da
guerra de Tróia, estão restritos, na realidade, a um momento
específico no início do décimo ano do cerco dos Argivos (nome
genérico para designar os gregos) a Tróia. A narração desse momento
parte da querela entre Aquiles e Agamêmnon (Canto I) aos funerais de
Heitor (Canto XXIV). Os gregos são comumente chamados de
Aqueus ou Acaios, Argivos, Dânaos e Helenos; já os troianos são
chamados de Teucros, Dardânios e Troádes. Como se trata de um
tema presente na tradição oral há séculos antes de sua formulação
como poema, no século VIII a. C., é normal que Homero e os aedos de
forma geral não precisem explicar muita coisa que já é do
conhecimento do público. Costumamos dizer que o poema épico não é
poema para iniciantes, mas para iniciados, visto que supõe um
conhecimento anterior. Assim é que muitos heróis ou são apresentados
pelo seu epíteto ou pela sua genealogia, mesmo antes de se dizer o seu
nome. Aquiles é o Pelida (filho de Peleu) ou o Eacida (neto de Éaco),
mas pode ser “o de pés velozes”; Odisseus é o Laertida (filho de
Laertes) e o “muito astucioso”; Zeus é o Cronida (filho de Cronos) e o
“ajuntador de nuvens” ou “o que se compraz com o relâmpago”;
Agamêmnon e Menelau são os Atridas (filhos de Atreu); aquele é o
“Senhor dos Heróis” e este o “Pastor do Povo”; a geração de Príamo
são os Priamidas, enquanto Heitor é “o do capacete ondulante”...
Entre os principais heróis gregos, podemos encontrar: Ájax Oileu
(o pequeno), comandante dos Lócridas; Ájax Telamida (o maior),
comandante dos Salaminos; Diomedes, comandante dos argivos e dos
tiríntios, ao lado de Estênelos e Euríalo; Agamêmnon, comandante de
Micenas e Corinto, e comandante supremo dos gregos; Menelau,
irmão de Agamêmnon, comandante da Lacedemônia, Esparta e
Auriclas; Nestor, comandante de Pilos e Dorion; Odisseus,
comandante de Ítaca, Jacinto e Samos; Idomeneu e Mérion,
comandantes de Creta; Tlepôlemo, filho de Hércules, comandante de
Rhodes; Aquiles, comandante dos Mirmidões, Helenos e Aqueus;
Pátrocles, amigo dileto de Aquiles; Macâon e Podalírio, irmãos
médicos, filhos de Asclépios, comandantes da Oicália.
Entre os Troianos se destacam Heitor, comandante dos Troianos;
Páris, irmão de Heitor, raptor de Helena e causador da guerra; Enéias,
filho de Anquises e Afrodite, comandante dos Dardânios; Pândoro do
arco de Apolo, filho de Licaon, comandante dos Zeleus; Sárpedon e
Glaucos, comandantes dos Lícios.
Dividida em vinte e quatro cantos, que correspondem às letras do
18
alfabeto grego , distribuídos ao longo de 14. 412 versos, a Ilíada tem
como argumento a fúria funesta de Aquiles, que se explicará a partir
dos muitos episódios do poema. Cada canto, no entanto, apresenta o
seu argumento, os quais podem ser assim sintetizados:
Canto I (Alfa) – A querela entre Aquiles e Agamêmnon (611
versos).
Canto II (Beta) – O sonho de Agamêmnon/ Catálogo das naus e
dos heróis (878 versos).
Canto III (Gama) – Combate singular Menelau e Páris (461
versos).
Canto IV (Delta) – Revista de Agamêmnon (544 versos).
Canto V (Épsilon) – Heroísmo de Diomedes (909 versos).
Canto VI (Dzeta) – Combate Glauco e Diomedes/Entrevista de
Heitor e Andrômaca (529 versos).
Canto VII (Eta) – Combate entre Heitor e Ájax (482 versos).
Canto VIII (Theta) – Interrupção do combate/Neutralidade dos
Deuses (565 versos).
Canto IX (Iota) – Embaixada a Aquiles (713 versos).
Canto X (Kappa) – A Dolonia (579 versos).
Canto XI (Lambda) – Heroísmo de Agamêmnon (848 versos).
Canto XII (Mu) – Assalto às muralhas gregas (471 versos).
Canto XIII (Nu) – Combate perto das naus gregas (837 versos).
Canto XIV (Ksi) – Zeus enganado por Hera (522 versos).
Canto XV (Omicron) – Troianos repelidos com a ajuda de
Posídon (764 versos).
18
A Ilíada se representa com o alfabeto maiúsculo e a Odisséia com o alfabeto
minúsculo.
Canto XVI (Pi) – A Patroclia (867 versos).
Canto XVII (Rhô) – Heroísmo de Menelau/ Batalha Apolo
contra Atena (761 versos).
Canto XVIII (Sigma) – Fabricação das armas de Aquiles (617
versos).
Canto XIX (Tau) – Aquiles renuncia à cólera contra Agamêmnon
(424 versos).
Canto XX (Úpsilon) – O Combate dos Deuses/A fúria de Aquiles
(503 versos).
Canto XXI (Phi) – A Verdadeira Teomaquia/ Combate perto do
rio (611).
Canto XXII (Khi) – Morte de Heitor (515 versos).
Canto XXIII (Psi) – Jogos fúnebres em honra a Pátrocles (897
versos).
Canto XXIV (Omega) – O resgate do corpo de Heitor (804
versos).
Tudo concorrerá para se mostrar a razão da fúria funesta de
Aquiles, núcleo da Ilíada. Podemos observar, no entanto, no decorrer
do poema, vários episódios embrionários, ligados ou não à guerra de
Tróia. Como temos um poema in medias res – a narrativa abre com o
início do décimo ano do cerco dos gregos a Tróia – e não há um flashback continuado para explicar os fatos anteriores a esse décimo ano da
guerra contra Tróia, o recurso utilizado são referências fragmentadas e
dispersas, aludindo ao motivo da guerra, como o rapto de Helena por
Páris, que se encontra, por exemplo, no Canto III (versos 442-445).
Outras referências se encontram na Ilíada como a alusão ao casamento
de Peleu e Thétis (Canto XVIII, versos 433-434; Canto XXIV, versos
59-63), e a alusão ao julgamento de Páris (Canto XXIV, versos 2630).
Por ser uma narrativa envolvendo muitas lutas e muitos heróis,
apesar de o seu personagem principal ser Aquiles, a leitura da Ilíada
não suscita com facilidade uma estrutura para o leitor desavisado. A
ausência de Aquiles por quase dois terços da narrativa, mesmo sendo
o protagonista, torna ainda mais complexa essa assimilação. Muitos
heróis, muitas batalhas, muito mortos, muitas genealogias desfiadas...
Numa tentativa de pôr um pouco de ordem no caos, sugerimos uma
estruturação da Ilíada dividindo-a em três momentos: a Querela entre
Aquiles e Agamêmnon (Canto I), a Embaixada a Aquiles (Canto
IX), o Retorno de Aquiles à Guerra (Canto XVIII).
A querela entre os dois maiores heróis gregos da guerra de Tróia
leva à retirada de Aquiles do campo de batalha, porque ofendido pelo
todo-poderoso Agamêmnon. A conseqüência é a perda de espaço para
os troianos que conseguem acuar os gregos em seu próprio
acampamento. Pela primeira vez, em dez anos de cerco, os troianos
acampam fora e longe das muralhas. O recuo dos argivos conduz à
embaixada despachada por Agamêmnon a Aquiles (Canto IX). Os
esforços de Odisseus, Ájax maior e Fênix, bem como os presentes de
Agamêmnon são inúteis, não têm força para demover Aquiles, afetado
duramente em sua honra, porque o Atrida lhe tomara a sua presa de
guerra, Briseida, o que distingue um herói da grande massa. O
fracasso da embaixada e um relativo sucesso dos gregos (Canto X,
Dolonia), em incursão noturna de Diomedes e Odisseus ao
acampamento troiano, remetem gregos e troianos a novas lutas, cujo
resultado é a ferimento dos heróis mais importantes – Odisseus,
Agamêmnon, Diomedes, Macáon, Eurípilo (Canto XI), lutando contra
as hostes de Heitor que conseguiu chegar ao acampamento grego
(Canto XII-XVI) e ameaça queimar os navios, chegando ainda a
queimar o de Protesilau (Canto XVI, 119-123). É com a ajuda de
Pátrocles, que retorna à guerra com o consentimento e as armas de
Aquiles, que se debela o fogo que poderia atingir todas as outras naus
(XVI, 292-293). O ponto culminante do fracasso sistemático dos
gregos é a morte de Pátrocles (Canto XVI) e a espoliação de suas
armas por Heitor. Isto determina o retorno de Aquiles à guerra.
Este último momento da Ilíada é importante, pois as desavenças
entre Aquiles e Agamêmnon são postas de lado (veja-se o prêmio
atribuído por Aquiles a Agamêmnon no Canto XXIII, sem que ele
precise participar das competições dos jogos fúnebres em honra de
Pátrocles), é feita uma desculpa formal pública a Aquiles, bem como a
reparação material da sua honra ofendida, com a devolução de sua
presa de guerra, Briseida. A conseqüência da paz entre os dois heróis é
a carnificina levado a cabo por Aquiles, cujo ponto culminante é a
morte de Heitor e o ultraje a seu cadáver (Canto XXII), levando ao
belíssimo e tocante episódio do resgate do corpo do filho por Príamo,
no Canto XXIV.
Assim como a Odisséia é o poema do reconhecimento, a Ilíada é
o livro das prolepses. Conforme já dissemos anteriormente, não
veremos na Ilíada a morte de Aquiles ou a queda de Tróia. Limitada
entre a desavença Aquiles-Agamêmnon e os funerais de Heitor, este
poema frustra o leitor que for à busca de episódios conhecidos como o
do cavalo de Tróia ou a luta de Aquiles contra a rainha das Amazonas,
Pentesiléia, por exemplo. Mas isso não impede de o poema anunciar a
cada passo tanto a destruição de Tróia, quanto a morte de Aquiles.
Para melhor entendermos essas prolepses, faz-se necessário um breve
estudo do Canto I, em que se dá a desavença entre Aquiles e
Agamêmnon, provocando a retirada do Pelida dos combates.
2. O Canto I da Ilíada
O proêmio da Ilíada está circunscrito aos sete primeiros versos do
Canto I. Ali, numa mescla de proposição e invocação, o poeta
apresenta o argumento do poema – a fúria funesta de Aquiles que
tantos heróis mandou para o Hades cumprindo o que havia
estabelecido Zeus. A narração propriamente dita inicia-se a partir do
verso 8, estendendo-se até o final do Canto XXIV, após os funerais de
Heitor. O argumento do Canto I é o desentendimento entre Aquiles e
Agamêmnon. Preocupado com a peste que grassa no acampamento
grego, matando homens e animais, Aquiles convoca a ágora – a
assembléia dos Aqueus –, para saber qual a origem de tantos males.
Ele descobre, através do sacerdote Calcas que a culpa de tal desgraça
cabe a Agamêmnon, autor de uma grave ofensa ao sacerdote de Apolo
Crises. É para desagravar Crises que Apolo desencadeou a peste no
acampamento Aqueu.
Querendo resgatar a filha, Criseida, que havia sido feita
prisioneira na tomada de Lyrnessos por Aquiles, Crises vai até
Agamêmnon, a quem coube a presa de guerra, e oferece-lhe um alto
resgate, em troca da liberdade da filha. Agamêmnon não só não aceita,
mas também ofende e ameaça de morte o sacerdote de Apolo. A
descoberta da causa da peste leva Aquiles ao confronto com
Agamêmnon, sobretudo quando este ameaça tomar o quinhão de
qualquer outro, mesmo o de Aquiles, caso entregue Criseida de volta
ao pai, Crises. A discussão se instaura entre eles, com Aquiles se
sentindo desonrado e Agamêmnon se sentindo privado do seu prêmio.
Aquiles só cede ao ímpeto de matar Agamêmnon diante da
intervenção de Palas, que, aparecendo só a ele, o detém, puxando-lhe
a cabeleira loura e o aconselhando a ofender com palavras o quanto
puder a Agamêmnon, mas evitando matá-lo. Privado de sua Briseida,
tomada por Agamêmnon, Aquiles se retira da guerra, lamenta a sua
desonra à mãe, queixa-se de Zeus que não está cumprindo a sua parte
no acordo do destino breve, mas glorioso. Thétis, sua mãe, resolve
interceder por ele junto a Zeus e obtém do pai dos deuses e dos
homens a certeza de Aquiles voltar a ser honrado pelos Aqueus, após
derrotas para os Troianos. O canto se fecha com o banquete dos
deuses no Olimpo.
O que norteia o Canto I da Ilíada é a discussão travada sobre a
honra do herói. Como obter a glória que se busca sem a honra? Este é
o drama de Aquiles. De um lado se põe o senhor dos heróis,
Agamêmnon, comandante supremo do exército de coalizão dos
Aqueus, que conta, aproximadamente, com cem mil homens. Do outro
lado está o maior dos heróis, o melhor dos Aqueus, o mirmidão
Aquiles, temido por todos os guerreiros Troianos, por ser, nas palavras
de Nestor, “a grande muralha dos Aqueus contra a guerra cruel”
(Canto I, versos 288-289). É a prepotência de um contra a força do
outro. Ofendido na sua honra, Aquiles sente tomar-lhe o ímpeto
desafiador que o leva ser irônico e mordaz com Agamêmnon, e a
sentir ganas de matá-lo. Agamêmnon por sua vez, não abre mão de
seu direito como chefe supremo, poder que emana de Zeus,
concentrado no cetro que empunha, com uma honra, portanto superior
à de Aquiles. É isto o que diz também Nestor (Canto I, versos 278279)
Em favor de Aquiles, no entanto, registre-se que o herói deseja a
contemporização, procurando compensar Agamêmnon de outras
formas, uma vez entregue Criseida ao pai – caberia ao Atrida três ou
quatro vezes mais que aos outros o butim partilhado, depois da ruína
de Tróia (Canto I, versos 122-129). Agamêmnon é que parte para o
confronto (Canto I, versos 130-147), o que desencadeia as ofensas de
Aquiles (Canto I, versos 148-171; 225-245; 292-303). Dentre elas,
destaca-se a alusão à cara de cão de Agamêmnon (Canto I, verso 159),
numa referência a seu caráter impudente, cujo espírito só pensa no
ganho (Canto I, verso 149). Em outro momento, a avidez do cão, se
associa ao medo do gamo e ao prazer do vinho a que se entregaria
Agamêmnon, vez que o grande senhor não participa dos combates na
visão de Aquiles (Canto I, verso 225). Tal é cupidez de Agamêmnon
que Aquiles o chama de devorador do povo, que precisa para exercer
seu mando reinar sobre gente nula (Canto I, verso 231). Aquiles
finaliza suas ofensas, não antes de jogar por terra o cetro do Atrida
(Canto I, verso 245), dizendo que se aceitasse sem contestação a força
de mando de Agamêmnon, não seria mais do que desprezível e
nulidade (Canto I, verso 293).
As réplicas de Agamêmnon (Canto I, versos 177-187; 285-291)
não ficam atrás. Mandando Aquiles reinar sobre os Mirmidões (Canto
I, verso 180), numa ironia cortante, cujo trocadilho se perde na
tradução, Aquiles é para Agamêmnon nada mais do que o povo que
ele comanda – formiga. Agamêmnon replica diante da ponderação que
faz Nestor, na tentativa de sanar os ânimos: Aquiles pretende ser o
mais poderoso e reinar sobre todos, o que é uma afronta a seu
comando e a investidura divina de seu poder de senhor supremo
(Canto I, versos 287-288).
Com fortes ironias despachadas de ambos os lados, nem a
contemporização de Nestor é capaz de apaziguar os dois que se
ofendem mutuamente. Nestor e Palas Atena são a racionalidade em
contraponto à fúria e ao descomedimento de ambos os heróis. Nessa
arena está em jogo a honra ferida – Agamêmnon de vasto poder não
só não honrou o melhor dos Aqueus como também não honrou a
sacerdote de Apolo, Crises (Canto I, versos 10-11) –, o que
desencadeia toda a querela. Aquiles se retira da guerra, pois desonrado
não pode alcançar a glória. Será necessária a intervenção de Zeus, a
pedido de Thétis, para que o herói volte à guerra. Se Zeus lhe deu uma
vida breve, que pelo menos em troca lhe conceda a honra (Canto I,
verso 353). Prêmio de guerra e honra/desonra com as variantes das
formas e tempos verbais correspondentes são as palavras centrais
desse capítulo.
Assim é que as prolepses desse capítulo são importantes para o
desencadeamento da narrativa: os versos 212-214 antecipam a
embaixada a Aquiles, que ocorrerá no Canto IX, e os esplêndidos
presentes (Canto I, verso 212) que o Pelida aceitará no Canto XIX,
como pagamento da desmedida de Agamêmnon, pondo fim ao
desentendimento entre ambos. É o que lhe promete Atena. Os versos
240-244, proferidos pelo próprio Aquiles, antecipam as vitórias dos
Troianos liderados por Heitor sobre os Aqueus; os versos 337-342
revelam a necessidade que os Aqueus terão de ter Aquiles consigo
para poderem combater perto das naus sem perigo. Isto se dará com o
retorno efetivo de Aquiles à guerra, no Canto XX. Por fim, o destino
de Aquiles, aludido tantas vezes neste Canto I (versos 352-356; 413-
428; 517-527), será retomado ao longo da Ilíada, principalmente no
canto XVIII.
GLOSSÁRIO
Acaios: Nome genérico para designar os gregos. O termo é
proveniente de Acaia, regiões gregas, uma situada no Peloponeso e a
outra na Tessália, no continente. O mesmo que Aqueus ou Aquivos.
Ágora: A praça onde se reuniam os senhores para tomada de
decisão sobre alguma coisa. O termo, por metonímia acaba
designando a própria assembléia.
Aqueus: V. Acaios.
Argivos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é
proveniente da região de Argos, uma das principais cidades do
Peloponeso.
Atrida: Epíteto para Agamêmnon e Menelau, ambos filhos de
Atreu.
Canto: Capítulo do poema épico, assim chamado porque o poema
era para ser cantado, não declamado.
Dânaos: Nome genérico para designar os gregos. O termo é
proveniente de um dos ancestrais gregos, chamado Dânaos.
Dardânios: Nome genérico para designar os troianos, proveniente
de um dos ancestrais da raça troianos, chamado Dárdanos.
Epílogo: Parte final do poema épico, quando se acaba a narração e
encaminha-se o fim da narrativa.
Epíteto: Aposto ao nome de pessoas, deuses, heróis e cidades.
Muito usado no poema épico como recurso mnemônico, dando ritmo
ao hexâmetro.
Flash-Back: Retorno ao passado de modo linear e organizado, de
modo a esclarecer fatos da narrativa.
Helenos: Nome genérico dado aos gregos, termo proveniente de
parte dos soldados tessálios comandados por Aquiles. O termo
também se refere a Helena, filha de Deucalião, visto como pai dos
gregos.
Hexâmetro Dactílico: Verso característico do poema épico,
construído com seis medidas ou seis pés, tendo como base o pé
dáctilo, constituído de uma sílaba longa e duas breves.
Honras Fúnebres: Todas as pessoas que morriam deveriam ter
direito às honras fúnebres, sem as quais a sua alma não chegaria ao
Hades, o mundo inferior. As honras fúnebres do herói, por exemplo,
consistiam na queima de sua carne e no encerramento de seus ossos
numa urna para posterior sepultamento num túmulo, erigido sobre
uma colina.
In Medias Res: Termo utilizado por Horácio (século I a. C.), para
designar a ação do poema épico, já bem adiantada quando a narração
se inicia. O termo significa “no meio das coisas”, sem preâmbulos,
sem explicação anterior.
Invocação: Uma das partes do poema épico, que consiste no
pedido de auxílio às Musas, como deusas protetoras das artes e do
conhecimento, para que elas comuniquem o seu saber ao poeta e ele
possa cantar o que assinala na proposição do seu poema.
Micenas: Cidade-estado ao nordeste do Peloponeso, reino
florescente entre os séculos XVI e XII a. C. O grande senhor
Agamêmnon reinava absoluto sobre a Micenas homérica, nos tempos
míticos.
Mirmidão: Um dos epítetos para designar Aquiles, por reinar
sobre os soldados do mesmo nome. O nome é proveniente das
formigas que habitavam a ilha de Egina, transformadas em homens
por Zeus, para que Éaco, avô de Aquiles, pudesse reinar sobre eles.
No plural, designa os soldados comandados por Aquiles.
Narração: A parte mais longa do poema épico. Cerne do poema
épico, quando o poeta desenvolve minuciosamente em episódios o
argumento apresentado na proposição.
Pelida: Um dos epítetos de Aquiles. O termo é proveniente de
Peleu, pai do herói. Aquiles também pode ser chamado de Eacida, por
causa do avô, Éaco.
Período Arcaico: Primeiro período da literatura grega, situado
entre os séculos VIII e V a. C. É o momento do início, quando surge a
primeira forma literária, o poema épico. Nesse período ainda surgiria a
poesia lírica, em sua forma de lírica amorosa, lírica exaltativa e
bucólica.
Presa de Guerra: Trata-se do butim, do espólio conseguido pelo
guerreiro, depois de conquistada e destruída uma cidade. É assim que
Briseida e Criseida são tratadas na Ilíada: presas ou prêmios de
guerra.
Proêmio: Versos iniciais e introdutórios do poema épico,
reunindo a proposição e a invocação. É onde se encontra o argumento
do poema, apresentado sinteticamente para ser desenvolvido
posteriormente na narração.
Prolepse: Adiantamento da narrativa. Ao leitor ou ao ouvinte é
dado conhecer os fatos antes de eles acontecerem. Assim, não vemos a
destruição de Tróia ou a morte de Aquiles na Ilíada, mas sabemos que
ambos os fatos vão ocorrer, pois eles são adiantados, através de
alusões as mais variadas.
Proposição: Parte do poema épico em que se apresenta o
argumento. De modo sintético, o poeta diz qual será o tema de seu
canto. A Ilíada apresenta como argumento a fúria funesta de Aquiles;
a Odisséia, a volta de Odisseus para Ítaca.
Teomaquia: Significa, literalmente, batalha dos deuses. Termo
cunhado para designar a Ilíada, sobretudo a partir do Canto XX,
quando Zeus libera os deuses para tomar partido na guerra de Tróia e
formam-se os grupos de deuses em defesa dos gregos ou dos troianos.
Teucros: Nome genérico para designar os troianos. O termo é
proveniente do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era
Teucro.
Tróades: Nome genérico para designar os troianos. O termo é
proveniente do nome de um dos ancestrais dos troianos, cujo nome era
Tros.
Observação: Para uma melhor assimilação dos conteúdos
desta unidade, faz-se necessária a leitura do Canto I da Ilíada.
EXERCÍCIOS
1. “Nem a morte de Aquiles, predita desde o início, nem a tomada
de Tróia graças à artimanha do famoso cavalo de madeira, astúcia
concebida por Ulisses, figuram na Ilíada.” Explique esta afirmação de
Claude Mossé (A Grécia arcaica de Homero a Ésquilo. Lisboa:
Edições 70, 1989.).
2. Explique por que na Proposição/Invocação da Ilíada, o poeta
pede que se cante “a ira funesta de Aquiles”.
3. Qual a origem da querela entre Aquiles e Agamêmnon?
4. Quais as conseqüências imediatas e as conseqüências
posteriores para os gregos dessa querela?
5. Considerando o Canto I da Ilíada, qual a importância de
Aquiles para os gregos?
III. Terceira Unidade: Visão Genérica dos Autores do Teatro
Trágico
1. O Teatro Grego
Nesta terceira unidade, procuraremos fazer o estudo do teatro
grego na sua origem, mais especificamente, da tragédia grega como
fenômeno do período clássico, numa reflexão sobre o mundo da Pólis.
É consenso entre os estudiosos do teatro grego que a sua origem
está ligada ao coro que anima o culto ao deus Dionisos. Deus da
vegetação e da fecundidade, Dionisos era o centro de um culto à
fecundação – a faloforia, condução do falo como representação do
deus Príapo, seu filho com Afrodite – em que se sacrificavam bodes e
touros. A essência do culto consistia no abandono dos limites entre o
humano e o divino, quando grupo de seguidores de Dionisos desejava
o êxtase (deslocamento, espírito sem destino) e o entusiasmo
(possessão divina, animação por um transporte divino), para
transformar-se em bacante.
As Grandes Dionisíacas ou Dionisias da Cidade eram a festa mais
importante do mundo grego, contando com a afluência de toda a
Grécia e do exterior. Elas se davam entre os meses de março e abril,
princípio da primavera, quando o tempo abria para as navegações. A
partir do século VI a. C. (534), foram instituídos os concursos
dramáticos pelo tirano Pisístratos, que contavam tanto com o concurso
de ditirambo (hino a Dionisos), quanto com um concurso dramático.
Os concursos duravam três dias para as tragédias e um para as
comédias, e tinham como espaço o teatro de Dionisos, ao pé da
Acrópole, em Atenas, onde cabiam 17000 pessoas. Um espaço tão
grande numa época tão remota, explica-se diante da função que o
teatro tinha na Grécia: uma função coletiva. As entradas eram
subvencionadas pelo estado e o financiamento do coro e de um dos
atores era feito por um cidadão rico. No século V a. C., apogeu do
período Clássico, esses concursos se tornaram freqüentes e estima-se,
por exemplo, que foram apresentados cerca 5000 ditirambos e mais de
1000 tragédias.
No início, as peças eram apresentadas na praça pública, a ágora,
depois, por conta do afluxo de espectadores e para dar uma
visualização melhor da encenação foi construído o teatro de Dionisos,
ao pé da Acrópole. O espaço físico do teatro era constituído dos
seguintes ambientes (veja a planta baixa de um anfiteatro grego, em
seguida):
 Teatro: lugar onde se instalavam os espectadores para ver
o espetáculo.
 Orquestra: área circular para a dança, em cujo centro
havia um pequeno altar de pedra, consagrado ao deus. O
coro faz aí a sua evolução.
 Cena: cabana ou tenda servindo de bastidores, para a troca
de máscaras e de roupas. Boa parte da ação se passava no
interior da cena. As cenas chocantes de assassinato ou
suicídio, por exemplo.
 Proscênio: lugar à frente da cena, onde os atores
encenavam as peças.
 Párodos: passagens que davam acesso ao teatro e por onde
entrava e saía o coro.
O teatro como drama (a palavra drama significa ação, em grego)
apresentava os seguintes componentes
 Prólogo: cena de exposição, sob a forma de diálogo ou de
monólogo, precedendo a aparição do coro.
 Párodos: entrada do coro, após o prólogo, num ritmo
anapéstico (duas sílabas breves e uma longa). Composto
de estrofes cantadas que se respondem.
 Episódio: parte do drama entre duas entradas do coro. O
primeiro episódio fazia dialogar os atores entre eles e com
o coro.
 Estásimo: parte cantada pelo coro, mas sem haver
deslocamento. O primeiro estásimo se apresenta como um
conjunto variável de estrofes cantadas pelo coro, ao que se
seguem dois outros episódios, seguidos de dois estásimos.
 Coro: coro de dança, grupo de pessoas que figuram em
uma dança. Unidade coletiva que cantava sob a direção do
Corifeu ou declamava dançando. A maior parte das vezes,
o coro era formado por velhos ou por mulheres infelizes,
conhecedores profundos dos rituais religiosos.19
 Corifeu20: Chefe do coro, representando uma intervenção
breve do coro nas cenas dialogadas.
 Komos: canto comum ou alternado ente coro e
personagens, auge lírico de dor (mais freqüentemente), na
tragédia.
 Êxodos: Saída do coro de cena. Toda a peça se desenrola
entre o párodos e o êxodos, dividida por estásimos e
separadas por episódios. Consistia de fato no último
episódio, por vezes longo e complexo.
A parte coral da encenação tinha um grande rigor formal, se
apresentando em uma série de evoluções na orquestra, ao redor do
altar. As evoluções podiam ser para a direita, e assim se chamavam de
19
Aristóteles (Poética, 18, 1456a) considera o Coro como um ator nos moldes de
Sófocles, não nos de Eurípides, que já não tem influência sobre a ação. No teatro de
Sófocles, o Coro pode, sob o comando do Corifeu, intervir na ação, dialogando com
os personagens. Coro significa dança, em grego.
20
O termo deriva em grego de cabeça, cimo, capacete.
estrofes, ou para a esquerda, chamadas de antístrofes. O epodo
consistia em um canto adicional, terceira estrofe, em que o coro ficava
imóvel. Para a encenação dos autores ou do coro se utilizavam metros
variados para os versos.
No capítulo IX (1451b) da Poética, primeira obra a sistematizar
um estudo sobre a tragédia grega, Aristóteles diz que “o poeta deve
ser fabricante de intrigas mais do que de metros”. Como o teatro grego
era estruturado em versos de metros variados, Aristóteles ensina que
não basta criar o verso, mais importante é a intriga (o que em grego se
diz mito). Tratando a tragédia como uma poesia que imita os homens
nobres e melhores do que nós, entenda-se aí a definição do herói, o
filósofo aponta para a origem da tragédia na improvisação de uma
declamação, por ocasião da faloforia.
Com a evolução do gênero, a tragédia passa a ser a imitação de uma
ação nobre e acabada, com limite de extensão, em linguagem agradável
(condimentada), executada por personagens que agem, sem utilizar a
narração, sendo através do binômio piedade e terror que a tragédia opera a
purificação das emoções, o que Aristóteles denominou de catarse. A
linguagem agradável (condimentada, no termo grego utilizado) diz respeito
ao ritmo, melodia e canto. A ação se imita pela intriga, como reunião dos
acontecimentos – finalidade, princípio e alma da tragédia –, cujas partes se
constituem de peripécias, reconhecimentos e patético.
Para Aristóteles, a peripécia é quando a ação resulta no contrário
do esperado, segundo a verossimilhança e a necessidade. Já o
reconhecimento é a passagem da ignorância ao conhecimento. O
reconhecimento com peripécia faz a intriga mais bela, porque mais
elaborada, resultando na piedade e no terror, emoções de que a
tragédia supõe ser a imitação. O patético é a ação destrutiva ou
dolorosa, como os assassinatos, as grandes dores, os ferimentos e
todas as coisas visíveis do mesmo gênero. A essência da tragédia
consiste em passar da felicidade à infelicidade, não por causa dos
vícios ou da maldade, mas por grande erro do herói.
2. Autores Trágicos
O primeiro dos autores trágicos foi Téspis de Lesbos que ganhou
o prêmio de melhor tragédia, instituído pela primeira vez em 534 a.
C., quando da organização das Grandes Dionisíacas por Pisístratos,
em Atenas. A ele se atribui o costume de mascarar os atores
(GRIMAL, 1986: 31). No entanto, apenas três autores da tragédia
grega nos chegaram: Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Vejamos o que
cada um produziu e o que foi poupado pelo tempo.
Ésquilo (525-456/5 a. C.) coloca um segundo autor em cena
(deutoragonista), depois um terceiro, imitando Sófocles. Era
considerado grande músico. Das 90 peças que lhe são atribuídas,
apenas sete tragédias nos chegaram: Os Persas (472), peça isolada.
Sem fazer parte de uma trilogia, o que era habitual, Os Persas é a
única peça do teatro trágico grego que abordava um tema
contemporâneo, a guerra dos gregos contra os persas, de que Ésquilo
foi um dos combatentes; Os Sete contra Tebas (467), peça premiada;
As Suplicantes (463), fim de uma trilogia; Orestéia (458); trilogia
completa, composta de Agamêmnon, Coéforas e Eumênides;
Prometeu Acorrentado (?), início de uma trilogia.
Sófocles (497-406 a. C.) é o mais premiado dos teatrólogos, tendo
ganhado o prêmio das Grandes Dionisíacas 26 vezes, o que dá um
total de 78 peças premiadas. Atribuem-se-lhe 123 peças, embora só
tenhamos conhecimento efetivo de sete. Sófocles inova com a
inclusão de um terceiro ator em cena (tritagonista). As sete tragédias
conservadas pela tradição são Ajax (445), Electra (421? 413?)
Filoctetes (409, ciclo troiano); Antígona (442), Édipo Rei (421), Édipo
em Colona (401, ciclo Tebano) e As Traquinianas (444, ciclo de
Héracles).
Eurípides (480-406 a. C.) reduz o tamanho e a significação do
coro, aumenta as peripécias e os efeitos de surpresa. Com o aumento
da intriga, acresce o número de personagens. Atribuem-se-lhe 92
peças, mas apenas dezoito tragédias e um drama satírico nos
chegaram: O Ciclope (drama satírico com base no Canto IX da
Odisséia de Homero), Alceste (438), Medéia (431), Hipólito (428), Os
Heráclidas (428), Andrômaca (428), Hécuba (424), A Loucura de
Hércules (415), As Suplicantes (415), Íon (~421 e 413), As Troianas
(?), Ifigênia em Táuris (?), Electra (413), Helena (412), As Fenícias
(410), Orestes (408), As Bacantes (peça póstuma), Ifigênia em Áulis
(peça póstuma) e Rhésos (tragédia atribuída). Grande é o número de
peças pertencentes ao ciclo troiano.
Numa visão didática dos ciclos da tragédia grega, podemos falar
dos Primórdios, com Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, abordando a
prepotência; do Ciclo Tebano com Édipo Rei e Antígona, ambas de
Sófocles, tratando, respectivamente da impotência e da intolerância, e
do Ciclo Troiano, com Ajax, de Sófocles, em que se aborda a
dignidade do herói; a Orestéia, de Ésquilo, em que a maldição dos
atridas é finalmente redimida, e três peças de Eurípides, especialmente
escolhidas: Ifigênia em Áulis, sobre a ambição; Hécuba, que trata da
dor individual, e As Troianas, abordando a dor coletiva.
Dada a impossibilidade de se estudarem todas estas peças,
recomendamos-lhes a leitura de Édipo Rei, por se tratar de peça muito
conhecida e amplamente editada. Lembramos que muitos dos assuntos
das tragédias estão na poesia épica, sobretudo aquelas peças que
enfocam o ciclo troiano. Para o momento, fiquemos com uma visão
rápida de Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, como peça importante
para a compreensão dos primórdios do mito.
3. Prometeu Acorrentado
Ésquilo traz para a tragédia a idéia de Justiça, mais ou menos
estranha a Homero, mas que aparece com nitidez em Hesíodo (v.
Trabalhos e dias). Afirma Paul Mazon na introdução geral à obra de
Ésquilo21:
“Ésquilo compreende que a essência do drama
deve ser esta idéia de justiça, que se incorporou à
definição mesma do homem. Toda ação humana
formula uma questão de direito. A tragédia tratará,
portanto, das questões de direito” (ÉSCHYLE, 2002:
XI).
Uma idéia original em Ésquilo é a de que o direito se desloca,
pela incapacidade do homem em retê-lo. Ao querer mais do que lhe
compete, o homem vê o direito colocar-se ao lado do adversário. A
única maneira de combater o excesso é a moderação, virtude suprema
aos olhos do grego. Ao saber se moderar, o homem poderá conservar
consigo o direito que lhe cabe. Entregar-se às paixões é o meio mais
rápido para que o homem se veja privado do seu direito.
A discussão travada em Prometeu acorrentado enfoca justamente
a concepção de direito e justiça. Texto de data desconhecida, esta peça
faz parte de uma trilogia – Prometeu acorrentado, Prometeu libertado
21
ESCHYLE. Tragédies: Les suppliantes, Les perses, Les sept contre Thèbes,
Prométhée enchaîné; texte établi et traduit par Paul Mazon. 2. éd. Paris: Les Belles
Lettres, 2002.
e Prometeu porta-fogo –, em que personagens divinos são mostrados
numa teomaquia, a exemplo de Homero e de Hesíodo, com a
diferença de que nos dois poetas épicos as teomaquias não constituem
tragédias, pois não comportam uma idéia moral.
Tendo roubado o fogo sagrado de Zeus para dá-lo aos humanos,
Prometeu é punido com o acorrentamento ao Cáucaso, com o
sepultamento vivo pela montanha e, posteriormente, com o martírio de
uma águia, a águia de Zeus, que vem comer-lhe o fígado diariamente.
Na peça, que ora estudamos, única que nos sobrou, só vemos as duas
primeiras partes da punição: o aprisionamento e o sepultamento vivo
de Prometeu, embora Hermes anuncie ao Titã a terceira parte da
punição.
O conflito Zeus x Prometeu, no entanto, vai além do roubo do
fogo ou do ludíbrio de Prometeu a Zeus. Não há dúvida de que o Titã
se rebelou e quebrou a lei divina ao levar o fogo aos homens, mas
Prometeu é detentor de um segredo importante para Zeus, o oráculo de
Thêmis, que lhe foi anunciado e cujos desdobramentos ele conhece
por ser ele sabedor do que vai acontecer, vez que seu nome significa o
que conhece antes. No conflito da peça fica clara a desmedida de Zeus
em relação a Prometeu, sendo a Força e o Poder, deuses que
acompanham Hefestos na missão de acorrentar Prometeu, o símbolo
desta desmedida. Ao que parece, o endurecimento da punição é menos
pelo roubo do fogo e mais por ser o Titã detentor de um segredo
danoso a Zeus, cuja revelação depende de sua libertação.
Na trilogia, se estabelece que é da desmedida que se reconhece,
dolorosamente, a moderação e o domínio de si, como virtudes
importantes e necessárias, mesmo no Olimpo. Zeus como um deus
cósmico, que ordena o universo, deverá se moderar e permitir a
libertação de Prometeu – primeiro com Hércules matando a águia,
depois com a troca de Prometeu pelo Centauro Quíron, que, ferido por
Hércules, aceitará descer ao Hades em lugar do Titã – para não pôr em
risco a ordem que ele mesmo criou. Desse modo, é importante o
episódio de Io, antepassada de Hércules, que toma boa parte da peça.
A peça se inicia com Hefestos, acompanhado do Poder e da Força,
levando Prometeu, que segue e se mantém calado, para o
aprisionamento. Hefestos é quem tem a obrigação de prender
Prometeu ao rochedo do Cáucaso. O erro de Prometeu foi roubar o
fogo brilhante de onde nascem todas as artes para levá-lo aos homens:
Prometeu está sendo punido por ser benfeitor dos homens. Zeus como
novo mestre, que impõe uma nova ordem, tem coração inflexível,
duro como um rochedo.
O Poder demonstra sua força sem concessões, enquanto Hefestos
mostra-se constrangido em aprisionar Prometeu, revelando o conflito
da técnica obrigada a servir ao poder constituído. Daí dizer-se que a
peça trata da prepotência, palavra que não deve ser entendida como
arrogância, mas com o sentido de alguém ter o poder sobre todas as
coisas.
Prometeu só se pronuncia a partir do verso 88, para lamentar-se de
sua condição, iniciando com a invocação das forças da natureza:
“Éter divino, ventos de asa rápida, águas dos rios,
sorriso inumeráveis das vagas marinhas, Terra, mãe dos
seres, e tu, Sol, olho que tudo vê, eu os invoco aqui: vede o
que um deus sofre pelos deuses!” (v. 88-92).
O roubo do fogo numa férula, entregando-o aos mortais é mais do
que uma rebelião contra Zeus, é a afirmação de Prometeu como
mestre de todas as artes. O fogo aí aparece como um grande recurso,
permitindo aos seres humanos a entrada na civilização. Toda a
constituição da peça aponta para os primórdios, para os mitos da
origem, do mundo arcaico, portanto. Assim é que o coro, formado
pelas Oceânides, mostra a nova lei que se impõe a partir de Zeus, lei
que destrói os colossos do passado, numa alusão aos Titãs e à
titanomaquia – a luta e vitória de Zeus contra os Titãs e, sobretudo,
seu pai, Cronos. Esta vitória, só possível com a astúcia de Zeus, mais
do que a força dos seus adversários, conta com a ajuda de Prometeu,
antigo aliado do deus supremo do Olimpo. O que leva, então,
Prometeu a cair em desgraça e passar da ventura à desventura, como
diria Aristóteles? Foi o fato de ele ter infringido o direito e ter dado
cegas esperanças aos seres humanos. Ele comete a desmedida e não
segue o aforisma básico da contenção: “Conhece-te a ti mesmo” (v.
309).
Oceano, pai das Oceânides, intervém para recriminar Prometeu
por sua falta de humildade e por querer se opor a um monarca, cujo
poder não tem contas a prestar. Mesmo assim, Oceano tenta ajudar
Prometeu, mostrando-se disposto a intervir junto a Zeus a seu favor,
mas é ironizado pelo Titã. Em lugar de se mostrar humilde, Prometeu
passa a desfiar todos os benefícios que levou aos seres humanos. E aí,
flagramos o conflito dialético da peça: quem ensinou aos seres
humanos todas as artes, para libertação da ignorância, ignora a arte de
se libertar a si mesmo:
“No início, eles viam sem ver, eles escutavam sem
ouvir, e, iguais às formas oníricas, viviam sua longa
existência na desordem e na confusão. Eles ignoravam as
casas de tijolo ensolaradas, eles ignoravam o trabalho da
madeira; eles viviam sob a terra como formigas ágeis, no
fundo de grotas fechadas ao sol” (v. 447-453).
Prometeu ensina aos seres humanos a astronomia, os números, as
letras, a arte de construir os carros atrelados a cavalos, os navios a
vela, a medicina, as artes divinatórias, a ornitomancia, a queima da
carne envolta na gordura para saber os presságios; revelou-lhes os
tesouros sob a terra – ouro, prata, bronze, ferro: “Com uma palavra tu
saberás tudo ao mesmo tempo: todas as artes aos mortais vieram de
Prometeu (resposta ao Corifeu, v. 505-506).
O episódio de Io (v. 591-886) é dos mais importantes na peça,
pois anuncia o nascimento do libertador de Prometeu, treze gerações
depois. Perseguida pelo fantasma de Argos, o cão de Hera, morto por
Hermes, enquanto a vigiava, Io vai falar com Prometeu, que lhe prediz
o futuro: ela, fugindo aos moscardos que a picam, atravessará o
estreito que separa a Europa da Ásia e que levará seu nome (futuro
estreito de Bósforo ou passagem da vaca, pois Io se apresenta como
uma novilha). Depois, chegando ao Egito, Io dará à luz Epafos,
iniciador de gerações que vão culminar em Hércules, o futuro
libertador do Titã (v. genealogia em seguida).
A Io, Prometeu revela parte do oráculo de Thêmis sobre a queda
de Zeus: o deus pai terá um casamento de que se arrependerá, pois o
filho por ele gerado será mais forte que o pai, proporcionando a sua
queda. Com a queda, Zeus saberá qual a diferença entre reinar e servir
(v. 926-927).
Hermes, mensageiro de Zeus, aparece como núncio de castigos
maiores (v. 944-1093). Querendo descobrir qual o casamento que
proporcionará a queda de Zeus, Hermes encontra um Prometeu cheio
de orgulho e de ironia, para quem o segredo só será revelado com a
libertação. Em resposta a Hermes que lhe diz ser Zeus desconhecedor
do lamento, Prometeu retruca:
“Não existe nada que com a velhice, o tempo não
ensine” (v. 980).
Hermes anuncia o castigo além do acorrentamento: ele será
sepultado vivo pela montanha e, depois, a águia de Zeus comerá o seu
fígado eternamente. Na sua fala final, Prometeu faz o encerramento
com o mesmo lamento inicial sobre a injustiça de que é vítima:
“Mas eis os fatos e não mais as palavras: a terra vacila;
nas suas profundezas, ao mesmo tempo, muge a voz do
trovão; em ziguezagues embrasados o raio surge explodindo;
um ciclone faz turbilhonar a poeira; todos os sopros do ar se
lançam ao ataque uns aos outros; a guerra é declarada entre
os ventos, e o éter já se confunde com os mares. Eis,
portanto, a tormenta que, para me espantar, manifestamente
vem sobre mim, em nome de Zeus. Ó Majestade de minha
mãe e tu, Éter, que faz rolar em torno do mundo a luz
oferecida a todos, vós vedes bem as iniqüidades que eu
suporto? (v. 1080-1093)
É essencial para o estudo da peça que compreendamos o seguinte:
Prometeu está ligado ao mito primordial da criação da terra, dos
deuses e dos homens, fruto de uma teogonia, que se desdobra em uma
titanomaquia, para estabelecimento de uma cosmogonia (v. Hesíodo,
Teogonia.), em que Zeus reinará absoluto, mesmo partilhando o poder
com os irmãos Posídon (deus do mar) e Hades (deus do interior da
terra, o mundo inferior). Por outro lado, o oráculo de Thêmis revela
uma possível queda de Zeus, o que resultaria no retorno ao caos. É a
justiça que vai de encontro ao direito. É do direito de Zeus punir
Prometeu pelo roubo do fogo, levado aos seres humanos, mas é justo
que ele seja punido por tirá-los da cegueira em que viviam, abrindolhes as portas da civilização? Eis a grande questão da peça.
Para não correr o risco de retorno ao caos com a perda do seu
poder, Zeus terá de se vencer a si mesmo, moderando a sua desmedida
e proporcionando a libertação de Prometeu, através de uma das
mulheres por ele fecundadas, Io. A libertação sairá das mesmas mãos
de quem puniu. Saindo da ventura para desventura, Prometeu conhece
antecipadamente a possível queda de Zeus, mas ignora como poderá
se libertar. Submetido à força e ao poder, seu trunfo é a justiça divina,
o oráculo de Thêmis.
Por fim, podemos ver Prometeu acorrentado como uma
alegorização da Pólis, no sentido de que a civilização está em
desacordo com o poder prepotente que, como diz Oceano, não tem
contas a prestar.
GENEALOGIA DE HÉRCULES
Zeus
~
Io
Epafos ~ Mênfis
Líbia ~ Posídon
Agenor (Fenícia) ~ Telefaassa
Cadmo
Belo (Egito) ~ Anquíone
Europa ~ Zeus Danaos
Hipermnestra ~
Egipto
Lynceu
Abas ~ Aglaia
Eurídice
~ Acrísio
Zeus ~ Dânae
Andrômeda ~ Perseu
Estênelo ~ Nícipe
Euristeu
Eléctrion ~ Anaxo
Zeus ~ Alcmena
Hércules
GLOSSÁRIO
Acrópole: Literalmente, cidade alta, cidade no cume. É a parte
alta da cidade de Atenas, onde se encontra o Partenon, grande templo
em louvor de Palas Atena, a deusa protetora da cidade.
Antístrofe: Movimento do coro para a esquerda, em torno do
altar, no centro da orquestra, durante a apresentação da tragédia.
Bacante: Seguidor de Dionisos, tomado pela fúria do deus. O
deus Dionisos também era conhecido como Baco.
Catarse: A tragédia tinha por objetivo inspirar terror e piedade. A
catarse era a conseqüência disso, objetivando a purificação das
emoções.
Deuteragonista: O segundo personagem em cena, introduzido por
Ésquilo.
Ditirambo: Hino a Dionisos, cantado durante a procissão da
faloforia.
Entusiasmo: Trata-se da possessão divina, a animação por um
transporte divino, para transformar-se em bacante.
Estreito de Bósforo: Passagem que divide a Europa da Ásia, que
dá acesso do Mar de Mármara ao Mar Negro ou vice-versa. Na parte
Européia do Estreito de Bósforo encontra-se Istambul, que já foi
Constantinopla e já foi Bizâncio. Seu nome significa literalmente
“Passagem da Vaca” por causa de Io.
Estrofe: Movimento do coro para a direita, em torno do altar, no
centro da orquestra, durante a apresentação da tragédia.
Êxtase: Trata-se do deslocamento do espírito. O seguidor de
Dionisos buscava sair de si para ir ao encontro do deus ou para que o
deus pudesse entrar nele.
Faloforia: Procissão para culto de Dionisos e da fertilidade. Os
seguidores do deus carregavam um enorme falo sobre o andor, em
homenagem ao deus Príapo, agradecendo pelas colheitas e pela
fertilidade.
Grandes Dionisíacas: Festas entre os meses de março e abril,
durante a primavera, em honra ao deus Dionisos, para culto da
fertilidade e da colheita. Durante essas festas acontecia o concurso de
teatro.
Oceânides: Filhas de Oceano e Téthys. Hesíodo alude a quarenta
e uma Oceânides, mas a lista teria pelo menos três mil. São, como o
próprio nome indica, divindades marinhas.
Ornitomancia: É a prática de se descobrir o futuro a partir do vôo
dos pássaros ou do estudo de suas entranhas.
Peripécia: Ação que na Tragédia resulta no contrário do esperado.
Pólis: Assim se chama a cidade grega, a partir do século VI a. C.
A pólis marca a entrada da Grécia na democracia, com os cidadãos
(polites) se reunindo em torno da praça (ágora) para tomar as decisões.
Protagonista: O personagem principal. Até Ésquilo, tratava-se do
único personagem em cena.
Reconhecimento: Momento da tragédia em que o personagem sai
da ignorância para o conhecimento dos fatos.
Teomaquia: Batalha dos deuses. É assim que acontece na Ilíada,
nos Cantos XX e XXI, quando Zeus libera a participação dos deuses
na guerra de Tróia, para que eles tomem o partido que lhes parecer
melhor. Também na Teogonia de Hesíodo existe uma teomaquia, mais
especificamente uma titanomaquia, na luta de Zeus contra os Titãs,
liderados por seu pai Cronos. Zeus é o vencedor, aprisionando os Titãs
no Tártaro.
Titanomaquia: V. Teomaquia.
Trilogia: conjunto de três peças trágicas, apresentadas por ocasião
dos concursos.
Tritagonista: Terceiro personagem em cena, introduzido por
Sófocles.
IV. Quarta Unidade: Estudo de Virgílio – O Livro I da
Eneida.
1. Estudo de Virgílio
Publius Vergilius Maro (Mântua, 70 a. C. – Brundísio ou
Bríndise, 19 a. C.), considerado um dos maiores poetas da língua
latina, viveu no período Clássico da literatura latina – a chamada
Idade de Ouro do imperador Otávio Augusto –, momento em que a
literatura atinge seu apogeu, contando para isto com o concurso da
figura de Mecenas, amigo de Otávio. Estudante de gramática e
retórica na juventude, Virgílio prefere a companhia de filósofos e
poetas, por reconhecer na timidez uma barreira para enfrentar os
debates retóricos. A partir da vitória de Otávio sobre Marco Antônio
(31 a. C.), na batalha de Actium, e de sua aclamação como princeps
(29 a. C.), Virgílio cai nas graças do futuro imperador, que lhe
encomenda uma epopéia sobre a glória romana.
De suas obras mais importantes, temos notícia das Bucólicas (39
a. C.), poema do campo, em que pastores na natureza ideal desfrutam
da felicidade fazendo poesia, cuja base são os Idílios de Teócrito
(poeta grego do século III a. C.); as Geórgicas (29 a. C.), poema
didático, dedicado a Mecenas, sobre a agricultura e a criação dos
animais, inspirado em Os trabalhos e os dias de Hesíodo (poeta grego
do século VIII a. C.) e em De rerum natura de Lucrécio (poeta latino
99/94-55/50 a. C.)22. Por fim, aquela que é considerada a sua obraprima a Eneida (17 a. C.), epopéia inspirada na Ilíada e na Odisséia de
Homero (VIII a. C.), narrando a fundação das bases da futura Roma, o
que virá a ser feito pelos descendentes de Enéias, personagem central
do poema.
A epopéia mais antiga entre os latinos é a tradução/adaptação da
Odisséia de Homero por Livius Andronicus – Odissia (cerca de 250 a.
C.) –, em cuja composição o poeta utilizou versos saturnianos. Só com
Ennius e os Anais (século II a. C.) é que os romanos terão uma
epopéia com o hexâmetro dactílico ou espondaico, dando a Roma a
sua primeira obra de porte. Segundo Pierre Grimal (1997: 174), para
22
O poema foi lido por Virgílio, que alternava a leitura com Mecenas quando este
cansava, a Otávio, em 29 a. C., na Campânia, em seu retorno vitorioso do Oriente
(GRIMAL, 1997: 128)
escrever a sua epopéia, a Eneida, Virgílio aglutina a tradição homérica
à nova tradição de Ennius, este considerado o pai da literatura latina.
Tendo começado a composição da Eneida por volta de 29-28 a.
C., dez anos depois Virgílio ainda não se dava por satisfeito com o
que escrevera, por isto teria determinado a destruição de sua obra,
quando estava próximo a sua morte, em 19 a. C. Por interferência de
Otávio é que o poema foi editado. O já imperador incumbiu dois
amigos de Virgílio, também poetas, L. Varius e Plotius Tucca, de
cuidarem da edição da Eneida, publicada dois anos depois da morte do
poeta, em 17 a. C. (GRIMAL, 1997: 237).
A lenda da fundação de Roma reserva o ano de 753 a. C. para a
sua construção. Com a queda de Tróia, Enéias e um grupo de troianos
são impelidos pelo destino a deixar a cidade de Príamo e ir em busca
de fundar uma nova Tróia, tão gloriosa quanto aquela que acabava de
ser tomada pelos gregos, após dez anos de cerco. A chegada dos
Troianos à Península Itálica põe em confronto Enéias e Turno, rei dos
Rútulos, pela posse da terra. Vitorioso, Enéias funda o reino de
Lavínio, cujo nome é originário da filha do rei Latino, Lavínia, que ele
recebe como esposa. Seu filho Iulo, em seguida, funda a cidade de
Alba Longa, onde reinará por trinta anos, e seus descendentes por
trezentos anos. Passado esse tempo, a sacerdotisa vestal Rhéia Sílvia
dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo, netos de Numitor, rei de Alba
longa, proporcionando assim as condições para a futura fundação de
Roma. Em linhas gerais, este é o argumento da Eneida, com a ressalva
de que o poema encerra com a morte de Turno por Enéias. Mesmo que
não vejamos o desenrolar dos acontecimentos, eles são anunciados ao
longo da narrativa, desde o Livro Primeiro, numa antecipação do
destino de Enéias e da glória romana.
A história de Enéias, como ancestral de Roma, está na tradição
latina23, mas é na Ilíada que Virgílio encontra a deixa literária para
escrever a Eneida. A glória de Enéias como mito fundador e o destino
de seus descendentes são anunciados no Canto XX do maior poema
homérico, nos versos 292-30824:
23
24
Veja-se, por exemplo, Tito Lívio, na bibliografia.
Tradução nossa do original grego.
Imediatamente, [Posídon] diz aos deuses imortais:
Ai de mim! sinto uma grande dor por Enéias do grande coração,
Que depressa baixará ao Hades, sob o braço do Pelida,
Por ter sido persuadido pelas palavras de Apolo, o que fere de longe.
Tolo! Não é ele [Apolo] que vai socorrê-lo contra a morte ruinosa.
Mas qual a necessidade de que ele sofra estas dores,
Inutilmente, pelos males dos outros, ele que sempre ofereceu
Presentes aos deuses que habitam o vasto céu?
Eia, vamos subtraí-lo da morte e levá-lo conosco,
Se por um lado, o Cronida se indignaria de ver Aquiles
Matá-lo, por outro lado, o destino deseja vê-lo salvo,
Para que não pereça, sem posteridade e aniquilada,
A raça de Dárdanos, que, dentre todos os seus filhos,
Nascidos dele e de uma mortal, o Cronida mais amou.
Já a raça de Príamo, o Cronida odeia.
É o poderoso Enéias que reinará, doravante, sobre os troianos,
Ele e os filhos de seus filhos, que nascerão em seguida.
Descendente de Dárdanos, filho amado de Zeus, Enéias deve ser
salvo da luta contra Aquiles. Assim manda o Destino, para que ele
possa ser rei dos troianos um dia, bem como os filhos de seus filhos. É
com este argumento que Posídon, apesar de estar ao lado dos gregos
na guerra de Tróia, salva Enéias de ser morto por Aquiles, envolvendo
o Pelida em um nevoeiro tenebroso, e jogando Enéias em outra frente
de combate, onde não será alcançado pelo melhor dos aqueus,
Aquiles. Nestes versos também se encontra a personalidade piedosa de
Enéias, sacrificando aos deuses do Olimpo.
Contando com 9896 versos, dividida em doze Livros ou Cantos,
nós podemos distribuir, didaticamente, os argumentos de cada livro da
Eneida da seguinte maneira:
Livro I (756 versos): Os Troianos na África – Enéias em Cartago
Livro II (804 versos): As Narrativas de Enéias – O Fim de Tróia
Livro III (718 versos): As Narrativas de Enéias – Os Anos de
Errância
Livro IV (705 versos): Os Amores de Enéias e Dido – Morte de
Dido
Livro V (871 versos): Enéias na Sicília – Jogos Fúnebres em
Honra de Anchises
Livro VI (901 versos): A Descida aos Infernos – Entrevista com
Anchises
Livro VII (817 versos): Enéias no Lácio – Juno e Alecto
Semeiam a Discórdia
Livro VIII (731 versos): A Aliança com Evandro – O Escudo de
Enéias
Livro IX (818 versos): O Cerco aos Troianos – Batalha contra
Turno
Livro X (908 versos): O Primeiro Embate – Morte de Mezêncio
Livro XI (915 versos): O Segundo Embate – Morte de Camila
Livro XII (952 versos): A Decisão – Morte de Turno
Muitos são os estudos sobre a Eneida, cada qual apresentando
uma estrutura do poema. A estrutura da Eneida mais conhecida é
aquela que divide o poema em duas partes, relacionando os seis
primeiros livros à Odisséia e os seis últimos livros à Ilíada, numa
estruturação invertida com relação aos poemas homéricos. Apesar de
simplista, podemos dizer que, em linhas gerais, esta estruturação não
deixa de ser correta. Como, no entanto, trata-se de um poema de uma
intertextualidade complexa, nós propomos uma estrutura triádica para
a sua análise, de modo a cobrir com mais propriedade o poema. A
saber:
I. Provações (Livros I-IV): As provações são um rito de
iniciação para Enéias como mito fundador. O herói, além de perder a
pátria e o pai, tem a missão imposta pelo destino de fundar uma nova
Tróia. As provações, que se revelam entre os Livros I e III,
apresentam uma transição no Livro IV, em que se mostram as
provações de Dido, e a renovação dos votos da missão de Enéias. O
Livro I mostra a tempestade desencadeada por Éolo a mando de Juno,
que faz Enéias se desviar de sua rota e bater com os costados no litoral
da África do Norte, a Líbia de então, onde Dido constrói o reino de
Cartago. O Livro II é o início das narrativas de Enéias, mais
especificamente enfocando a queda de Tróia. Trata-se do melhor
relato nas grandes epopéias da vitória dos gregos sobre os troianos,
após uma guerra de dez anos. O Livro III dá continuidade às
narrativas de Enéias, desfiando o itinerário dificultoso do herói, digno
da Odisséia: viagens pelo mar, pestes, tempestades, errâncias,
profecias sombrias, morte do pai, nova tempestade, desvio de rota... O
Livro IV mostra os amores de Enéias e Dido, com o herói vendo-se
obrigado a deixar a rainha, para cumprimento do seu destino. O
desdobramento de amor e fuga de Enéias leva Dido à morte, origem
mítico-poética dos desentendimentos futuros entre Roma e Cartago.
Aqui se dão as três principais perdas de Enéias: a pátria, a esposa e o
pai.
II. Rituais (Livros V-VIII): Os rituais revelam o rito de
passagem de Enéias em busca do pai e da pátria. Primeiro, os ritos
fúnebres com que ele celebra o pai, no Livro V, com os jogos na
Sicília, em Drépano, após um ano da morte de Anchises; em seguida,
no Livro VI, Enéias faz a Catábasis (descida ao inferno para o
reencontro com o pai, que o aconselha e mostra o futuro glorioso de
Roma), num ritual de conhecimento e clarificação do destino, e a
Anábasis, subida de volta ao mundo dos vivos para encontrar a pátria,
ritualisticamente encontrada no Livro VII, na chegada ao Lácio, após
o cumprimento da sombria profecia de Celeno (Livro III), de que os
troianos, de fome, comeriam as próprias mesas. É aí que se dá o rito
fundador, com a invocação aos deuses: deuses do local, Ninfas, Rios e
cursos d’água, Noite, Júpiter do Ida, a mãe frígia Cibele, sua mãe
celeste Vênus, e o pai Anchises, que se encontra no Érebo, nos
Infernos. A este ritual, Júpiter responde com três trovões, aprovando e
confirmando o destino do herói, que passa a demarcar a terra
prometida, já construindo uma fortificação (Livro VII, versos 137159). Finalmente, a transição que se opera no livro VIII, transição que
vai da aliança com o Arcádio Evandro, que passeia com o troiano
sobre o sítio da futura Roma, ao recebimento das armas forjadas por
Vulcano, em que se anuncia, ainda uma vez a glória de Roma, futura
senhora do mundo. É este o momento em que Enéias põe termo aos
ritos e revela-se um rei pronto para a guerra de conquista do novo
reino.
III. Combates (Livros IX-XII): Tendo adquirido a têmpera
necessária e feitas as alianças indispensáveis com o Arcádio Evandro
(Livro VIII) e o Etrusco Tarcão (Livro X), Enéias parte para a guerra
contra Turno, rei dos Rútulos. No primeiro grande embate, Enéias
mata o cruel Mezêncio, no Livro X; no segundo grande embate, morre
Camila pelas mãos de Arrunte, no livro XI; por fim, Enéias mata
Turno, no Livro XII. A posse da terra é também a posse da mulher,
Lavínia, em cuja homenagem ele colocará o nome do reino – Lavínio.
Está formada a base para a construção da futura Roma. Em suma, mito
fundador, Enéias perde a pátria e o pai, para, reencontrando o pai, ser
o pai da nova pátria (vejam-se, no Livro I, os versos 555, 580 e 699, e
no Livro III, o verso 716, em que Enéias é chamado de Pater, pai.). É
verdade que o poema termina de maneira abrupta com a morte de
Turno por Enéias, não se vendo, portanto, a fundação de Roma, sequer
do reino Lavínio. No decorrer do poema, contudo, anuncia-se a cada
passo o destino de Enéias, vinculado à fundação da Roma gloriosa,
senhora do Mediterrâneo, no início da sua glória, e senhora do mundo
com Augusto.
2. O Livro I da Eneida – Fim das Provações pelo Mar
Georges Dumézil se refere aos últimos seis livros da Eneida como
presididos pelos “Fata fermés” ou destinos fechados (1995: 365-387).
Ele considera que Enéias só verá com clareza o seu destino, após fazer
a anábasis, a subida do inferno, voltando para o mundo dos vivos.
Tendo visto no mundo das sombras a glória da futura Roma,
apresentada pelo seu pai Anchises, Enéias se apressa a voltar às naus e
juntar-se aos seus companheiros. Os destinos são fechados para a
maior parte dos personagens, que serão levados ao aniquilamento,
como é o caso de Evandro (cujas esperanças estão depositadas no
filho Palante), Palante, Lausos, Camila, Mezêncio e Turno.
No que diz respeito a Enéias, seu destino será confirmado pela
profecia de Fauno, pai de Latino, e de um arúspice a Evandro, a quem
Enéias vai pedir ajuda. Além do apoio de Evandro, Enéias vai contar
com a ajuda dos Etruscos de Tarcão, que querem vingança de
Mezêncio e de suas crueldades. Na profecia de Fauno, a filha do rei
Latino deverá ser dada em casamento a um estrangeiro; na do
arúspice, as tropas contra Mezêncio devem ser comandadas por um
estrangeiro. Para chegar a esta clareza, no entanto, Enéias faz um
caminho tortuoso, narrado nos primeiros quatro livros da Eneida, o
caminho das provações. Vamos fazer um breve estudo do Livro I para
podermos entender as provações do herói.
Para o leitor que não se dá conta de que está diante de uma
estrutura narrativa in medias res, este Livro I da Eneida seria o início
das provações de Enéias, com a tempestade desencadeada por Éolo a
pedido de Juno, perseguidora do herói troiano. O verdadeiro início das
provações, contudo, acontece bem antes, com a queda de Tróia, mas o
leitor só o conhecerá com o flash-back proporcionado pelo herói, nos
Livros II e III. Abrindo com o proêmio – misto de invocação e
proposição –, o Livro I nos apresenta o argumento do poema,
dirigindo a uma leitura que não pode desconsiderar a ação do destino.
Assim é que o herói Enéias nos é apresentado, compelido à fuga de
Tróia pelo destino, exilado da pátria pela ação do destino – fato
profugus (v. 2)25 e assinalado pelos deuses por sua piedade – insignem
pietate uirum (verso 10). Sua missão é chegar à Itália, nas terras da
Lavínia e ali construir os altos muros da futura Roma.
A narração já nos mostra Enéias em meio à tempestade,
perseguido pela cólera de Juno, ressentida com fatos passados e
temendo fatos futuros. Ainda irada com a escolha de Páris, no
julgamento do Monte Ida, e com o rapto do troiano Ganimedes por
Zeus – fatos passados –, Juno continua com o seu propósito de acabar
com os troianos, sobretudo, após saber que se Enéias fundar uma nova
Tróia, isto será a causa da perdição de Cartago, a cidade por ela
protegida e que está sendo erguida por Dido na costa da África do
Norte, na Líbia de então (versos 12-33)26. Cartago é o fim da errância
custosa a Enéias e sua gente, antes de atingir o Lácio:
(Juno) distanciava (os troianos) para bem longe do Lácio, por
muitos anos
e (os troianos) erravam por causa dos fados por todos os mares
em torno.
Tamanha dificuldade era fundar a nação Romana.
(I, versos 31-33)
Este primeiro capítulo é proléptico, contando com algum flashback sobre a guerra de Tróia. A prolepse mais importante é a referente
ao destino de Enéias, com Júpiter predizendo e reafirmando a Vênus a
25
Todas as citações da Eneida são da edição da Les Belles Lettres, de Paris,
constante da bibliografia. As traduções do latim e do grego são nossas, salvo quando
forem devidamente referenciadas. Esclarecemos também que as traduções são
operacionais, com o sentido de entender o texto no seu original, sem pretensões
poéticas.
26
Hoje Tunísia.
missão de Enéias como mito fundador, que dará aos homens leis e
muralhas; e a glória da futura Roma. Os destinos dos troianos,
portanto, permanecem imutáveis, nada fará com que o Deus mude
suas decisões: Enéias reinará no Lácio por três anos, após submeter os
rútulos, fundando o Reino de Lavínio; Iulo reinará trinta anos após
Enéias, fundando o reino de Alba Longa; por trezentos anos reinarão
os troianos até o nascimento de Rômulo e Remo, que irão fundar
Roma. Ciente do seu destino e dos trabalhos que irá enfrentar, Enéias
exclama ao deparar-se com o formigamento da construção de Cartago:
Ó afortunados, dos quais as muralhas já surgem! (I, verso 437)
Na continuidade da prolepse, o narrador nos conta da dominação
da Grécia por Roma. Oprimida pela casa de Assáraco, o filho de Tros,
de cuja linhagem sairão Anchises e Enéias, a Ftia, a ilustre casa de
Micenas e a vencida Argos, ironicamente serão subservientes aos
Troianos outrora derrotados. Conclui-se essa prolepse com a expansão
do Império Romano, com César, e o período da Pax Romana, com
Augusto (versos 257-296)27. Roma será um império sem limites e sem
fim:
A estes eu não fixo limites nem tempo:
Um império sem fim eu lhes dei (I, versos 278-9).
A prolepse da narrativa, no entanto, não se dá apenas com o futuro
glorioso de Roma. Ocorre também com o amor de Enéias e Dido, fato
que acontecerá no Livro IV. A partir dos versos 667 e seguintes,
prepara-se este amor, quando, por ocasião do banquete a Enéias, seu
filho Ascânio é trocado, numa intervenção de Vênus, por Cupido, para
insuflar a paixão em Dido, que ficará desde já embebida de um amor
que lhe trará a infelicidade (I, verso749):
E a infeliz Dido bebia um longo amor.
Como sabemos, este Livro I é a chegada de Enéias em Cartago,
onde terminam as suas provações pelo mar, o que denominaremos de
rito iniciático. O final das provações se dará em dois momentos, no
27
Analisaremos este trecho, mais minuciosamente, em seguida.
templo de Juno e no banquete a Enéias, oferecido por Dido. Nas
paredes do templo, que está sendo construído em homenagem a Juno,
Enéias vê cenas da guerra de Tróia, que o levam às lágrimas. A Fama
já havia difundido o infortúnio dos troianos em todos os recantos do
mundo:
Parou e chorou: “Em que lugar” perguntou “Achate,
Que região na terra não está cheia de nossas dores?”
(I, v. 459-460)
Das cenas vistas por Enéias se destacam: Príamo e Aquiles
irritado contra os atridas (A irritação de Aquiles contra os atridas, e
mais especificamente Agamêmnon, é o tema do Canto I da Ilíada);
recuo dos gregos ante os troianos (o que acontece na Ilíada até o
Canto XVI); recuo dos troianos ante Aquiles (Ilíada, a partir do Canto
XX); morte do rei Rheso da Trácia (Ilíada, Canto X); morte de Troilo
ante Aquiles (Ilíada, Canto XXIV, segundo relato de Príamo); dor das
mulheres troianas (Ilíada, Cantos XXI-XXIV); morte, ultraje e resgate
do corpo de Heitor (Ilíada, Cantos XXII-XXIV) e a luta de
Pentesiléia, rainha das Amazonas, aliadas dos troianos, morta por
Aquiles (Pós-Homérica, de Quinto de Esmirna, episódio fora da
Ilíada).
O segundo momento, que determina o fim das provações, é uma
espécie de catarse de Enéias, quando instado por Dido a narrar as suas
aventuras, o que se dá nos dois Livros seguintes. Enéias fala da queda
de Tróia, da perda da esposa (Livro II) e de sua errância, por terra e
por mar, momento em que perde o pai (Livro III). Enéias tem
consciência das provações (I, v. 198-207), alerta os seus companheiros
para o fato, mas não perde a esperança de dias melhores, prometida
pelo destino:
Por vários acasos, por um sem grande número de perigos
Dirigimo-nos para o Lácio, onde os fados um domícilio aprazível
Acenam; ali as leis sagradas nos permitirão ressuscitar o reino de
Tróia.
Tende paciência, e conservai-vos para as coisas favoráveis
(I, versos 204-207).
A análise de um trecho específico do Livro I nos dará a
consciência da estrutura triádica do herói Enéias. Trata-se dos versos
223 a 296, em que se observa a reafirmação do destino de Enéias para
a glorificação de Roma.
Sabemos que na Eneida, o destino de Enéias é fechado28, pois se
trata de um destino bom: o herói está determinado pelos deuses a
fundar uma cidade tão gloriosa quanto Tróia recém-destruída e assim
perpetuar a progênie de Dárdano e a casa de Assáraco. Impelido,
portanto, pelo fado – fato profugus –, Enéias se lança ao mar com os
Penates de Tróia, em busca do lugar prometido e anunciado por
Creúsa, sua esposa, que, no momento da destruição de Tróia,
desaparece e, posteriormente, reaparece-lhe na condição de simulacro,
para lhe falar das terras da Hespéria, onde à beira do Tibre opulento o
aguardam a fortuna e uma esposa real. Após várias errâncias pelo mar,
Enéias chega à costa da África, apesar da perseguição da deusa Juno
(Hera), ainda ressentida com os troianos desde o julgamento do Monte
Ida – este apenas um dos motivos –, quando sua beleza foi preterida
por Páris, em favor de Vênus (Afrodite).
Salvo por Netuno da tempestade desencadeada por Éolo a mando
de Juno, Enéias consegue aportar na Líbia e assim escapar do
naufrágio. A sua chegada, última provação do herói no mar, é
observada por Júpiter (Zeus), pai dos deuses, a quem coube
determinar o destino de Enéias. Estamos no Livro I da Eneida, mais
ou menos no seu primeiro terço29. É nossa intenção montar a estrutura
e desenvolver a análise de um trecho de 73 versos, compreendido
entre os versos 223 e 296 deste Livro I.
O trecho pode ser divido em dois momentos: a queixa de Vênus a
Júpiter (versos 223-253) e a confirmação do destino de Enéias (versos
254-296). O primeiro momento é bem simples, pois se resume
exatamente à queixa de Vênus a Júpiter, intercedendo pela sorte de
seu filho Enéias, cobrando ao pai a promessa feita: os romanos,
nascidos do sangue reanimado de Teucro, seriam os senhores do
mundo:
28
Ver DUMÉZIL, Georges (1995: 365): “A longa noite de Tróia, os anos de incerta
navegação, os oráculos e os milagres, a tentação púnica evitada, tudo teve um
sentido: reconduzida a sua origem ausoniana, a realeza de Príamo vai reflorescer
sobre esta terra prometida enfim tocada, a Itália.”
29
O Livro I tem 756 versos.
É daí, sem dúvida, que, no curso dos anos, outrora prometeste,
(nasceriam) os Romanos; do sangue reanimado de Teucro
deverão surgir os senhores que manterão com toda soberania
o oceano e as terras: que pensamento, pai, te mudou?30
(I, 234-237)
Embora Vênus saiba que o destino de Enéias vai se cumprir – é
determinação do pai Júpiter –, as provações tantas por que Enéias já
passara (o que só vamos conhecer com a narrativa em flash-back dos
Livros II e III) não foram suficientes para conduzi-lo a seu termo. O
mundo inteiro teria se fechado com a tempestade de Juno, proibindo o
herói de chegar à Itália (I, verso 233).
Sabemos que todas as provações são necessárias para a formação
do herói, fazendo parte, portanto, de seu rito de passagem, Vênus não
teria, pois, que questionar Júpiter sobre as determinações já
conhecidas. Mas as razões de mãe são sempre de ordem emocional...
No questionamento a Júpiter, Vênus compara a sorte de Enéias à de
Antenor. Este troiano, para muitos um traidor, conseguiu escapar da
destruição de Tróia e chegar sem perigos ao norte da Itália, onde
fundou Pádua no vale inferior do rio Pó, ali vivendo em tranqüilidade.
A comparação que mostra o sucesso de Antenor e os fracassos de
Enéias tem sua razão de ser. Antenor não é de raça divina, Enéias é.
Como permitir a um simples mortal, visto por muitos como traidor da
pátria, sem ter sido assinalado pelos deuses, ter êxito na sua fuga e
viver em paz? Enéias além de ser duplamente divino – filho de Vênus
e neto de Júpiter – foi designado pelo Destino para cumprir uma
missão gloriosa. Trata-se de um herói em sua plenitude, escolhido
pelos deuses (leia-se Júpiter) para perpetuação de uma raça e, mais
ainda, para a construção de uma nova Tróia, desta feita com a devida
anuência divina. Bem ao contrário da outra Tróia que fora destruída
por ter sido construída no erro e por nele ter persistido. Mito
civilizador, que expande a civilização troiana para o Ocidente, Enéias
deve ter suas provações de viagem terminadas, pois já se mostrou pio
o suficiente para merecer chegar ao termo do seu destino. É chegada a
hora de ver realizada a promessa à prole – a entrada na alta morada do
céu (I, verso 250) e a recompensa pela piedade (I, verso 253) – com a
30
A tradução, apenas operacional, é nossa.
retomada do cetro e a reconstituição da realeza troiana, a partir de
Enéias (I, verso 253).
É neste pequeno fragmento que se revela, de modo inequívoco, o
conflito entre Vênus e Juno. Esta persegue, aquela protege Enéias.
Este embate será vencido temporariamente, de modo ardiloso por
Vênus, no Livro IV, quando do acordo entre as duas deusas para unir
Enéias a Dido. Vênus acha lamentável, terrível mesmo (infandum!,
verso 251) que os troianos tenham que padecer, sendo abandonados
com seus navios pela cólera de uma única divindade.
É importante observar que deste pequeno fragmento de trinta
versos, pelo menos três idéias fundamentais para a compreensão da
Eneida surgem. A primeira é a noção de que os deuses, mesmo
interferindo na trajetória do herói, podendo até retardar o
cumprimento do destino, não podem mudar o determinado pelo
destino. Enéias sofreu todas as provações possíveis e imagináveis,
mas seu destino será cumprido. A segunda é a idéia de que o herói tem
uma contrapartida a apresentar pelo destino bom que o aguarda. Não é
porque o destino será cumprido que o herói não deva mostrar-se
merecedor dele. As provações de Enéias são a sua preparação, seu rito
de passagem para a condição do herói civilizador. É isto o que
representa o recebimento das armas fabricadas por Hefestos, no Livro
VIII da Eneida. A terceira idéia está ligada a um conceito religioso
caro aos romanos: a piedade (pietas). A piedade de Enéias já se
encontra na Invocação do poema (v. 10); o epíteto por que Enéias
deverá ser conhecido, pius Aeneas, o piedoso Enéias, incansavelmente
repetido ao longo da narrativa, já se encontra no verso 220 deste Livro
I31.
De acordo com Pierre Grimal (1981: 73), a pietas era uma atitude
que consistia em observar escrupulosamente não somente os ritos, mas
também as relações existentes entre os seres no universo.
Inicialmente, tratava-se de uma espécie de justiça do mundo material,
capaz de manter as coisas do mundo espiritual no seu lugar ou de
remetê-las para lá, cada vez que algo de natureza acidental pudesse
provocar a desarmonia, portanto a injustiça. Grimal faz ainda uma
leitura etimológica do termo pietas, apontado uma relação estreita
com o verbo piare, que designa uma ação de apagar uma mancha, um
mau presságio, um crime (1981: 73).
31
Neste Livro I, ainda há outras duas ocorrências do epíteto nos versos 305 e 378.
Ora, Enéias é piedoso, pois a sua atitude é de temente e obediente
aos deuses, e de cumpridor dos rituais sagrados, atitude devidamente
comprovada no curso da narrativa – veja-se o ritualístico Livro V, por
exemplo –, mas já testada no Livro II (versos 717-720), quando o
herói se recusa a levar em suas mãos os Penates de Tróia, pois se
encontrava sujo de poeira e sangue da guerra travada contra os
invasores argivos. Impuro, ele se encontrava proibido de tocá-los
(me.../ attrectare nefas, versos 718-719). É, pois, na condição de
piedoso, que Enéias deveria fundar uma nova Tróia, limpando a
anterior de sua mancha, do seu erro, assunto a que voltaremos mais
adiante.
Constatamos, portanto, que este pequeno trecho das queixas de
Vênus nos apresenta duas das três partes estruturais da Eneida: as
provações e os rituais advindos da piedade. A terceira parte – as
guerras – será apresentada no trecho seguinte, o da resposta de Júpiter.
A segunda parte do trecho, a confirmação do destino de Enéias (I,
versos 254-296), nos revela uma complexidade muito maior, pois
Virgílio na composição do seu poema utiliza-se substancialmente da
história de Roma. Logo de início, vemos o resultado da missão de
Enéias, como uma forma de Júpiter tranqüilizar a angústia da filha,
para depois nos ser mostrado o roteiro que levará ao fim dessa missão.
Tranqüilidade expressa num rosto que serena o céu e as tempestades
(uoltu, quae caelum tempestatesque serenat, verso 255), prometendo
que os destinos dos descendentes de Vênus permanecem imutáveis
(manent immota fata, versos 257-258) e que a deusa verá surgirem os
muros da cidade e ela mesma elevará Enéias aos astros do céu (feres
ad sidera caeli/ magnanimum Aeneam, versos 259-260). Aqui se
confirma o Enéias empreendedor, fundador de cidades. Mais abaixo,
veremos, na revelação dos arcanos do Destino, o Enéias guerreiro que
fará grande guerra na Itália, domando povos ferozes, além do Enéias
empreendedor e sacerdote, pois dará leis e cidades aos homens. Não é
suficiente que o herói seja apenas um mito fundador, ele deve ser um
mito civilizador, cabe-lhe, portanto introduzir a civilização, o que se
fará através das leis, na Península Itálica:
Este à Itália levará grande guerra, os povos ferozes
aniquilirá e estabelecerá leis e muralhas aos homens
(I, versos 263-264)
Itália Antiga (Tito-Lívio, História de Roma)
Enéias terá um reinado curto, após a submissão dos Rútulos, o que
ocorrerá após a morte de seu rei, Turno (V. Livro XII), não nos
permitindo ver a fundação de Roma, distante da fundação do reino de
Lavínio por Enéias cerca de 350 anos. Assim como não vemos a
morte de Aquiles e a destruição de Tróia na Ilíada, fatos apenas
anunciados a cada passo da narrativa, também não veremos a
construção e fundação de Roma, na Eneida, embora isso também seja
anunciado ao longo da narrativa. Vejam-se os Livros VI e VIII, por
exemplo.
A descendência de Enéias está garantida através de Iulo, seu filho,
fundador de Alba Longa, onde reinarão seus descendentes e de onde
surgirá Roma. A construção de Roma virá com Rômulo, filho de
Marte com Rhéia Sílvia ou Ília. Corrigindo uma usurpação – o trono
tomado por Amúlio de seu irmão Numitor –, o deus Marte se une a
Rhéia Sílvia, sacerdotisa Vestal32 obrigada pelo tio Amúlio, e ela dá à
luz os gêmeos Rômulo e Remo. Uma vez adultos, os rapazes se
descobrem netos de Numitor, matam Amúlio e restituem o reino de
Alba Longa ao avô. Agraciados com um pedaço de terra cada um
(Rômulo no Palatino e Remo no Aventino), a Rômulo cabe fundar a
cidade, orientado pelo augúrio dos doze abutres (Veja-se a seguir a
genealogia do Rômulo e Remo, o mapa das colinas de Roma e o mapa
da Roma dos primórdios).
PROCA
AMÚLIO33
NUMITOR
RHEA SILVIA (ÍLIA)34 ~ MARTE
RÔMULO
32
REMO
A condição de Vestal exigia da sacerdotisa a castidade. Este foi um expediente de
Amúlio, após matar os filhos homens do irmão Numitor. Impondo o sacerdócio à
sobrinha, ele não teria que se preocupar com uma linhagem masculina que pudesse
tirá-lo do poder. Vesta era uma deusa romana, identificada com a grega Héstia, é a
personificação da Lareira (sempre no centro, seja do altar, da casa ou da cidade).
Protetora do fogo sagrado, Vesta teria sido introduzida no Lácio por Enéias (v. Livro
II da Eneida, versos 296-297). Numa também lhe erigiu um templo, com fogo
perene e inextinguível (v. Ovídio, Fastos, 6, 255-298). Tito Lívio nos mostra Numa
Pompílio como rei virtuoso que escolhe jovens donzelas obrigadas à castidade para
o serviço de Vesta e lhes dá um tratamento pago pelo estado (I, XX: 1-3).
33
Destrona o irmão, mata os sobrinhos homens e obriga a sobrinha a ser vestal (Tito
Lívio, I, III: 10-11).
34
Rhea Silvia engravida de Marte e dá à luz gêmeos, expostos no leito do Tibre,
aleitados por uma loba e criados pelo pastor Faustulus (Tito Lívio, I, IV:1-9)
Mapa das colinas de Roma (Tito-Lívio, História de Roma)
Mapa da Roma dos primórdios (Tito-Lívio, História de Roma)
O importante é ver como Rômulo é apresentado nessa prolepse de
Júpiter – ele receberá a nação, construirá as muralhas mavórcias e dará
seu nome aos romanos (I, versos 276-277). Rômulo consulta, recebe e
interpreta os augúrios, tendo por isto recebido com a anuência divina a
cidade, o que lhe confere a função sacerdotal; ele constrói as muralhas
e dá nome ao povo, o que lhe confere a função empreendedora, por
fim, as muralhas são guerreiras: muralhas mavórcias, de Marte, o que
lhe confere a função guerreira. Deste modo, há uma perfeita simbiose
entre Enéias e Rômulo, desempenhando ambos as três funções do
indo-europeu – Sacerdote, Guerreiro e Empreendedor.
A Eneida, podemos dizer, acompanha esta estrutura do indoeuropeu, vez que é possível dividir o poema em três momentos: as
provações, os rituais e as guerras, com Enéias desempenhando as três
funções. Se não vemos a fundação de Roma, mas acompanhamos a
fundação de várias cidades pelo herói (v. Livros III, IV, V e VII).
A glória de Roma nos aparece apresentada em prolepse por
Júpiter a Vênus entre os versos 278 e 296. Dentro do espírito da Roma
imperial em que Virgílio vivia, é natural que se cresse na glória
perpétua do grande império que começava a ser construído por
Augusto. A Eneida, a um só tempo, se refere ao passado e ao presente,
numa exaltação do imperador Otávio Augusto, reconhecendo as
mudanças por que passara Roma desde o final do segundo triunvirato,
com a vitória de Otávio sobre Marco Antônio em Actium (31 a. C.)35,
ligando-o à figura de Rômulo, fundador da cidade. Augusto aparece
como novo fundador de Roma, permitindo um tempo de paz e
prosperidade. Assim, Enéias surge como a ligação entre os dois –
Rômulo e Augusto – nas suas funções triplas de rei guerreiro, rei
sacerdote e rei empreendedor. Observe-se que, assim como Enéias,
Augusto perde o pai, perde a nação, para ser o reconstrutor de uma
nova nação e, portanto, ser o pai dessa nação.
A fala de Júpiter, portanto, não deixa a menor dúvida sobre esse
destino glorioso – aos romanos não ponho limites nem tempo para as
conquistas: dei-lhes um império sem fim (I, versos 278-279). Os
romanos, gente togada, devidamente já favorecidos por Juno, dobrada
pela força da pietas, serão os senhores do mundo (rerum dominos,
verso 282 ). Mais do que promessa de Júpiter, este é o seu desejo – sic
placitum (I, verso 283).
Um dos momentos mais importantes do trecho em estudo é o que
trata da dominação da Grécia por Roma, numa ironia do destino,
35
A esse respeito se pronuncia André Bellessort, na introdução que prepara para a
edição da Eneida da Les Belles Lettres, traduzida por ele (VIRGILE, 1952: VIII):
“Virgile tourné vers le passé évoque l’origine divine de cette Rome maîtresse des
nations et se tournant vers l’avenir en proclame la pérennité” (Virgílio voltado para
o passado evoca a origem divina desta Roma senhora das nações e se voltando para
o porvir proclama sua perenidade).
invertendo as proposições: os antigos troianos, derrotados pelo
exército de coalizão comandado por Agamêmnon, que tinha em
Aquiles o seu guerreiro mais temido, agora dominarão a Grécia,
através da descendência que fará surgirem os romanos. Assim é que a
casa de Assáraco manterá em servitude a Ftia e a ilustre Micenas, e
dominará os Argivos vencidos (I, versos 283-285).
Enéias é proveniente da casa de Assáraco e não da de
Laomedonte. Se Zeus e os deuses têm raiva de Laomedonte, por sua
impiedade, e de seu filho Príamo por permitir a impiedade, os
provenientes de Assáraco, no caso Enéias e seus descendentes e
protegidos, serão os escolhidos para a fundação da nova Tróia sob os
auspícios dos deuses, por causa da piedade de Enéias. A piedade de
Enéias já é conhecida desde a Ilíada (Canto XX, 292-308), quando
Posídon o salva das mãos de Aquiles. A justificativa é que Enéias não
tem que morrer pelos outros, vez que o herói tantos presentes ofereceu
aos deuses do vasto céu. Para que o destino se cumpra, é imperioso
salvar Enéias. Eis o mote para Virgílio escrever a Eneida.
Por sua vez, Laomedonte, pai de Príamo demonstra sua natureza
ímpia ao negar o pagamento prometido a Apolo e a Posídon pela
construção das muralhas de Tróia. Príamo aceita que o filho, Páris,
traga para casa uma mulher casada, Helena, após o filho ter violado o
laço sagrado da hospedagem, que lhe foi concedida por Menelau. A
falta é grave, pois atinge diretamente a Zeus Hospedador. Aceitando a
falta do filho, a mancha recai sobre todos os habitantes. A
contaminação de Páris atinge a todos, por não ter sido repudiado por
Príamo. O erro de um, não combatido, torna-se o erro de todos. Somese a isto o fato de que Tróia foi construída por Dárdanos (a cidadela) e
Ilos (a cidade) sobre a colina onde, jogado por Zeus do Olimpo, caiu o
Erro, temos todas as condições para a destruição de Tróia. Nascida do
erro e tendo permanecido no erro, a cidade deve ser destruída.
Enéias, tendo nascido da casa de Assáraco, longe, portanto, da
mancha de Laomedonte e de Príamo é o escolhido para fundar a nova
cidade com a aquiescência dos deuses. É por isto que Creúsa não pode
seguir Enéias, quando da fuga de Tróia. O herói deve cortar todos os
laços com os da raça de Príamo e de Laomedonte, independente de
sua vontade. A rejeição dos deuses à ida de Creúsa com Enéias
simboliza a rejeição à descendência de Príamo, na fundação da nova
cidade por Enéias (Livro II, versos 776-779). Da progênie de Enéias
nascerão os que oprimirão os antigos opressores de sua raça: Roma
dominará sobre a Grécia para ser a senhora do mundo.
No primeiro “Hino a Afrodite”, datado do final do século VII a.
C., a deusa do amor anuncia a Anquises, seu amante naquela ocasião,
que dela ele terá um filho que reinará sobre Tróia, cuja descendência
será continuada com o nascimento de filhos e de filhos dos filhos. Seu
nome será Enéias, diz a deusa, porque uma atroz angústia a confrange
por ter-se deixado cair no leito de um mortal (HOMÈRE, 1936, versos
196-199). Enéias, pois, está fadado pelo aviso da mãe, a ser o rei de
Tróia. Virgílio o que faz é contar com a tradição homérica da Ilíada
aliando-a ao anúncio do “Hino Homérico a Afrodite”. Juntando essas
peças e atribuindo a pietas ao herói, eis a razão da Eneida: mostrar a
supremacia de Roma sobre o mundo, Roma, em cuja origem teve um
herói piedoso36 (Veja-se a seguir a genealogia troiana).
Zeus
Dárdanos
Erictônio
Tros
Ilos
Assáracos
Laomedonte
Cápis
Hécuba ~ Príamo
Heitor
Páris
Creúsa
Ganimedes
Anquises ~ Afrodite
~
Enéias
Iulo (Ascânio)
Rômulo
Júlio César
36
Veja-se Grimal, falando de Virgílio: “C’est parce que la race romaine avait été
fondé par um héros juste et pieux que Rome avait reçu l’empire du monde” (1981:
167) – Porque a raça romana foi fundada por um herói justo e piedoso, Roma
recebeu o império do mundo.
Com os olhos voltados para a sua época, Virgílio não poderia
deixar de mostrar a importância da Gens Iulia, a família Júlia,
inicialmente, vinculando Júlio César a Iulo, filho de Enéias. A
extensão do império romano, apenas limitado pelo oceano, mas com a
fama chegando até os astros, dever-se-á a Júlio César, divinizado após
a morte e recebido nos céus pela própria Vênus37. Depois, mostrando
o tempo de Augusto e a paz estabelecida pelo seu governo:
Então os duros séculos, com as guerras cessadas, amansar-se-ão;
a Fé encanecida e Vesta, Remo com o irmão Quirino
darão as leis; e com as junturas estreitadas por ferro
as terríveis portas da Guerra fechar-se-ão; dentro o Furor ímpio
sentado sobre armas selvagens e apertado nas costas
por cem nós de bronze, horrível, fremirá com a boca
ensangüentada
(I, versos 291-296).
A Augusto cabe a honra de fazer um governo próspero,
proporcionado pela paz38. A condição da paz, no entanto, depende do
respeito aos ritos religiosos e dos elos familiares, que tão bem
caracterizavam a cultura romana da época. A paz augusta, para
Virgílio tem uma lei estabelecida pela Fidelidade (Fides), a
personificação da Palavra Dada, representada por uma mulher idosa,
de cabelos brancos, mais velha do que Júpiter. Grimal a caracteriza
como o respeito à palavra, fundamento de toda a ordem social e
política (Grimal, 2000)39. Ainda para Grimal, a Fides é uma das
37
Grimal nos informa que César foi a última divindade instalada pelo povo romano
no Fórum. No local em que seu corpo foi queimado, construiu-se uma coluna de
mármore e um altar. Um dos primeiros atos de Otávio, após tomar a
responsabilidade como herdeiro de César, foi proclamar oficialmente a divinização
do “mártir”. Otávio ainda fez construir um templo diante do local onde foi a pira de
César, consagrado ao novo deus, Diuus Iulius (1981: 232).
38
Grimal se refere a um altar da Paz dedicado a Roma por Augusto, em 9 a. C., cuja
frisa imortaliza no mármore a cerimônia da dedicatória. Diz Grimal: “On y voit
l’Empereur avec sa famille, les magistrats, les prêtres, le Sénat, allant em procession
accomplir le sacrifice aux dieux” (Vê-se na frisa o Imperador com sua família, os
magistrados, os sacerdotes, o Senado, indo em procissão cumprir o sacrifício aos
deuses. GRIMAL,1981: 183)
39
Tito-Lívio (I, XXI: 4-5) apresenta Numa Pompílio instituindo uma festa solene
para a Fides, no dia 01 de outubro. Numa Pompílio sucedeu Rômulo, no período de
717 a 673, quando foi rei (Tito-Lívio, I, XXI: 6). Foi com Numa que os romanos
manifestações mais primitivas da Pietas romana, aparecendo como o
respeito aos compromissos (1981: 74). Virtude cardinal romana, a
confiança substitui a força pela clemência, reconhecendo o direito de
todos os homens “de boa fé” à vida, mesmo se a sorte das armas lhes
havia sido contrária (1981: 75). A Virtus como disciplina das emoções
e controle de si mesmo; a Pietas como respeito mútuo aos rituais
religiosos, e a Fides como fidelidade aos compromissos constituíram a
trilogia do ideal da moral romana, para a defesa e garantia do grupo
social, seja a família, seja a cidade, como diz Pierre Grimal (1981:
75). A seguir, veja-se a frisa do altar à Paz, erigido por Augusto.
Frisa do altar à Paz (Museu do Louvre)
Vesta, a deusa do fogo sagrado, seja do altar do lar ou da cidade,
também é responsável pela paz, juntamente com Quirino, a
divinização de Rômulo40, agora em concordância com o irmão, Remo.
A união da família em torno do fogo sagrado representa a união
mesma da cidade. As desavenças do início da cidade devem ser postas
de lado, em proveito do bem comum41. Os três deuses elencados por
adquiriram uma sólida reputação de pietas e construíram um altar à Fides,
fundamento da vida social e também das relações internacionais, na medida em que
Fides implica a substituição das relações de força pelas relações fundadas sobre a
confiança mútua (Grimal, 1981: 18).
40
É a aparição de Rômulo a Proculus Julius, após a sua apoteose, que confirma a
condição divina de Rômulo e a condição de Roma como senhora do mundo: “Abi,
nuntia, Romanis caelestes ita uelle ut mea Roma caput orbis terrarum” – “Vai,
anuncia aos romanos a vontade celeste que minha Roma (seja) senhora de todo o
mundo” (Tito Lívio, I, XVI: 5:8). Quirino forma uma tríade com Júpiter e Marte
(depois será substituído por Minerva). Deus guerreiro, assimilado a Rômulo, após a
sua apoteose.
41
A morte de Remo por Rômulo, apesar do fratricídio, marca simbolicamente a
inviolabilidade futura da cidade (Grimal, 1981: 12) Segundo Tito Lívio, após terem
Júpiter correspondem às três funções do indo-europeu, aglutinadas em
favor da paz:
Fides
= Firmeza e empenho da Palavra Dada, razão
para o progresso (paz);
Vesta
= Proteção divina da casa e da cidade pelo fogo
purificador (paz)
Quirino e Remo = guerra conciliada (paz)
Com o templo da guerra fechado42 e o Furor ímpio aprisionado,
Roma dominará sobranceira sobre os povos, pela força da confiança e
da lei. Este o sentido apresentado por Anchises a Enéias, na segunda
prolepse dos destinos romanos na Eneida, no Livro VI:
Tu regerás com poder os povos, Romano, lembra-te
(estas serão tuas artes), impor a paz e os costumes,
poupar os sujeitos e debelar os soberbos (v. 851-853).
Este breve trecho do Livro I da Eneida nos abre a perspectiva de
leitura do poema a partir de uma caracterização do herói Enéias e do
seu destino glorioso, qual seja a fundação das bases de uma grande
cidade de onde se originará Roma, futura senhora do mundo. Enéias
na sua caminhada pode ser lido e analisado pelos epítetos com que é
brindado. Sabemos que o epíteto mais comum na Eneida é pius
Aeneas, o piedoso Enéias, o que contribui para a sua caracterização
como o sacerdote, na visão triádica da sociedade indo-européia. Ao
lado desse epíteto, encontramos outro também muito freqüente, pater
Aeneas, o pai Enéias, por sua condição de mito fundador e civilizador,
recolocado o avô Numitor no trono de Alba Longa, Rômulo e Remo receberam
terras onde foram expostos para ali fundar, cada um uma cidade. Rômulo escolheu o
Palatino e Remo o Aventino, em busca dos augúrios (Tito Lívio, I, VI: 3-4). Para
Remo apareceram seis abutres e para Rômulo, doze. Começando a traçar os limites
da cidade, Rômulo é ironizado por Remo que salta por cima das muralhas iniciadas,
sendo morto pelo irmão. Rômulo teria dito: “Sic deinde, quicumque alius transiliet
moenia mea” – “assim (pereça) qualquer um outro que, a partir de agora, saltar
minhas muralhas” (Tito-Lívio, I, VII, 1-3).
42
O templo de Jano foi construído por Numa Pompílio, segundo Tito Lívio (I, XIX:
2). Quando aberto anunciava Roma em armas; quando fechado, reinava a paz ao
redor dele.
coerente com a visão indo-européia do rei empreendedor. Por fim, há
outros três epítetos que se unem em um só, para a formação do rei
guerreiro: Aeneas heros, o herói Enéias (Livro VI, verso 103), com
suas variantes Troius heros (o herói troiano, Livro VI, verso 451;
Livro XII, verso 502) e Laomedontius heros (o herói Laomedôntio,
Livro VIII, v. 18), e ingens Aeneas (o enorme Enéias, Livro VI, v.
413; Livro VIII, verso 367). Destacando-se também pela sua estatura
física, Enéias combina em si todas as habilidades que o tornam o
grande herói, por cujas mãos nascerá uma grande cidade. Não é
gratuito o fato de ele ser apresentado pela Sibila de Cumas a Caronte,
o barqueiro do inferno, como Troius Aeneas, pietate insiginis et armis
(VI, verso 403) – O troiano Enéias, insigne pela piedade e pelas armas
–, confirmando o verso 10 do Livro I, na primeira Invocação do
poema, insignem pietate uirum – herói insigne pela piedade.
Em nossa leitura da Eneida, percebemos que o herói Enéias
aglutina as três funções da cultura indo-européia identificadas por
Dumézil (1995): a função Sacerdotal (Religião); a função guerreira
(Guerra) e a função empreendedora (Riqueza). A partir da estrutura
triádica que apresentamos para a Eneida – Provações (Livros I-IV),
Rituais (Livros V-VIII) e Guerras (Livros IX-XII), podemos
constatar como as duas partes iniciais se juntam para mostrar Enéias
em cumprimento da sua função sacerdotal. Nos primeiros oito livros
da Eneida, portanto, o herói é o pio Enéias, temente aos deuses,
oferecendo-lhes rituais e sacrifícios, por eles escolhidos para dar nova
pátria aos Penates, sendo guiado pelos deuses, em especial por Vênus
e Apolo, contando com o apoio de Júpiter, a interferência de Mercúrio
e a ajuda de Netuno, para ser o construtor da nova Tróia. Mito
fundador, pai da pátria, cabe ao pai Enéias, tantas vezes assim
chamado ao longo do poema, a função sacerdotal. Nos últimos quatro
livros da Eneida, Enéias cumpre a sua função guerreira, sendo o herói
que conquista a terra e a mulher, após ser devidamente provado pelos
deuses.
Assim como o Livro IV mostra uma transição do Enéias das
provações ao Enéias ritualístico, porém dentro da mesma função
sacerdotal, o livro VIII é um livro de transição entre uma função e
outra, pois aí se dá a aliança de Enéias com Evandro e, posteriormente
com Tarcão, que o reconhecem como o prenunciado pelos deuses para
conduzir os destinos do Lácio. Não é por outro motivo que, nesse
Livro, se dá a fabricação de suas armas por Vulcano, o que lhe
concede a condição de herói pronto para as próximas funções – a
guerra e a grandeza –, vez que o trabalho entalhado no seu escudo por
Vulcano lhe mostra a grande glória que seus descendentes terão pela
frente.
É emblemático como nesse Livro VIII, Evandro leva Enéias a
passear pelos sítios onde será erigida a futura e gloriosa Roma,
deixando entrever a terceira função, a do empreendimento e da
riqueza. Esta relação – a de um troiano ajudado por um grego a
construir a glória da futura Roma, mais tarde dominador da futura
Grécia, é bem sintomática. Enéias e Evandro não apenas se unirão na
guerra contra Turno e Mezêncio. Eles estão unidos pela amizade que
Evandro tinha a Anquises e por serem, de certo modo, da mesma
família. Atlas gera duas filhas, Electra e Maia, que se ligarão a Zeus,
dando origem, respectivamente à família de Enéias e à de Evandro.
Relações amigáveis que vêm dos antepassados e se confirmam no
presente para abrir a perspectiva da glória futura. Após esse
reconhecimento de Enéias por Evandro, a celebração da aliança com
um banquete ritualístico marca o fim dos grandes rituais do herói. É o
momento da apresentação do futuro e da fabricação das armas que
permitirão a conquista da terra para a realização da terceira função.
O início dos combates, no Livro IX, com o cerco dos rútulos aos
troianos, tal como na Ilíada se dá o cerco dos troianos aos gregos,
prepara a arrancada de Enéias à consecução do seu destino. O cruel
Mezêncio morre por suas mãos no Livro X; Arrunte mata a amazona
Camila, no Livro XI, e Enéias mata Turno no Livro XII. Está feito o
caminho para a conquista da terra e da mulher. Morto o inimigo,
embora a narrativa ali termine, permanece a perspectiva anunciada a
cada passo da Eneida: a fundação de Roma, tornando-se esta cidade a
cabeça do mundo. Aí se completaria a terceira função, a da riqueza e a
da paz, conforme o prognóstico de Anchises (v. Livro VI).
Desse modo, podemos dizer que Enéias aglutina em si as três
funções – sacerdote, guerreiro e empreendedor – pois, como sabemos,
ele é um mito fundador (v. Livro III). Mais do que isso, ele é o pai da
pátria, conforme se anuncia ao final do Livro III, fazendo o seguinte
itinerário: Enéias perde a pátria, perde o pai, vai à busca do pai, para
fundar a nova pátria, sendo, portanto, o pai da pátria, que será a
cabeça do mundo.
Observação: Para a assimilação mais eficaz do conteúdo desta
unidade, recomendamos a leitura do Livro I da Eneida de Virgílio.
Glossário
Anábasis: Movimento ritualístico de subida dos Infernos,
realizado por Enéias no Livro VI da Eneida.
Aventino: Um dos montes sobre o quais Roma foi erigida. O
Aventino coube a Remo.
Cartago: Cidade no norte da África, atual Tunísia. Travou três
guerras contra Roma – Guerras Púnicas – entre os séculos III e II a.
C., até ser totalmente destruída. Fundada por colonos tírios que teriam
em seu comando, segundo o mito, a rainha Dido.
Catábasis: Movimento ritualístico de descida aos Infernos,
realizado por Enéias no Livro VI da Eneida.
Ganimedes: Jovem troiano de rara beleza, filho de Tros, raptado
por Zeus (Júpiter) para servir de escanção no Olimpo. Este rapto é um
dos motivos por que Hera (Juno) tem raiva dos troianos e persegue
Enéias.
Destinos Fechados: Diz-se do destino que será cumprido, sem
que nada possa alterá-lo. Enéias chegará ao Lácio e fundará as bases
da futura Roma. Ninguém pode alterar tal decisão, nem mesmo os
deuses. Juno, por exemplo, o máximo que poderá fazer é retardar o
acontecimento.
Jogos Fúnebres: Jogos realizados em homenagem a um herói
morto. Estes jogos se dão no Livro V da Eneida, em homenagem a
Anquises, pai de Enéias.
Lácio: Região na parte ocidental da Península Itálica, às margens
do mar Tirreno e cortada pelo rio Tibre, onde Enéias chega para
fundar a nova Tróia, a futura Roma.
Líbia: Para a geografia dos tempos de Virgílio, o norte da África
era praticamente dividido entre a Líbia e o Egito. Quando Virgílio se
refere à Líbia no Livro I da Eneida, devemos entender não a Líbia
atual, mas a Tunísia, onde está situado o sítio arqueológico de
Cartago.
Palatino: Um dos montes sobre os quais Roma foi erigida. O
Palatino coube a Rômulo.
Parcas: Irmãs míticas que personificavam o destino. Eram
conhecidas como Moiras pelos gregos e se chamavam Cloto, Láquesis
e Átropos.
Penates: Deuses protetores do lar e da cidade. Quando Enéias é
incumbido pelos deuses a fugir de Tróia, ele deverá levar consigo os
Penates, necessários para a fundação da nova cidade.
Rito de Passagem: Rito obrigatório na formação do herói. Uma
vez pronto, o herói poderá ser investido nessa nova condição. Após
descer aos Infernos e fazer as alianças com Evandro e Tarcão, Enéias
está pronto para receber as armas fabricadas por Vulcano.
Rito Iniciático: Rito que inicia o herói e o prepara para a sua
condição final. Enéias tem que passar por todas as provações, para
poder mudar de status e ser considerado o novo pai. Com a morte de
Anquises e os jogos fúnebres em sua homenagem, Enéias está pronto
para a descida aos Infernos.
Tibre: Rio que corta a cidade de Roma em duas partes. É às
margens do Tibre que Enéias irá fundar a nova cidade, que dará
origem a Roma.
Tírios: Colonos oriundos de Tiro, na Fenícia (atual Líbano) para o
norte da África, onde edificaram Cartago.
Vestal: Sacerdotisa da deusa Vesta, protetora do fogo sagrado. Às
vestais se impunha a castidade.
EXERCÍCIOS
1. Leia atentamente o trecho abaixo e disserte sobre o que se pede:
“Houve uma cidade antiga, colonos tírios a edificaram, Cartago,
defronte da Itália e longe da foz do Tibre, abundante em riquezas e
temível pelo seu ardor guerreiro; diz-se que Juno a amava mais do que
todas as outras terras, mais do que a própria Samos. Lá, em Cartago,
estavam suas armas, lá estava seu carro; já então a deusa tencionava
não só favorecer aquele reino, mas também que ele dominasse os
demais, se de algum modo os fados o permitissem. Ela, porém, ouvira
que uma raça oriunda do sangue troiano um dia lançaria por terras as
cidadelas tírias; ouvira que um povo, reinando ao longe e soberbo na
guerra, viria para o excídio da Líbia: assim determinaram as Parcas.
Satúrnia, isto temendo e lembrada da antiga guerra que dirigira, como
primeira das deusas, junto de Tróia, a favor dos seus caros argivos, e
também porque as causas da ira e os cruéis ressentimentos ainda não
tinham abandonado sua memória, mas permaneciam gravados no
fundo do coração o juízo de Páris e a afronta da sua beleza
desprezada, e não só a geração odiosa dos troianos mas igualmente as
honras do raptado Ganimedes; inflamada por esses ultrajes, afastava
para longe do Lácio os troianos, joguetes do mar imenso, resto do
furor dos Dânaos e do implacável Aquiles, e, impelidos pelos fados,
andavam errantes, há longos anos, ao redor de todos os mares. Tanto
era pesada a tarefa de fundar a nação romana! (Eneida, Livro I,
tradução de Tassilo Orpheu Spalding)
1.1. A que parte da Eneida se refere o trecho? Contextualize.
1.2. Quais os dois povos diretamente envolvidos no trecho e quais
seus respectivos destinos?
1.3. Por que Juno é chamada de Satúrnia?
1.4. Identifique o povo que ela persegue e explique os motivos da
perseguição.
2. Com base na leitura do Livro I da Eneida, explique por que
Enéias é um mito fundador.
3. Em que termos se dará a sucessão de Enéias?
4. Quando e de que forma se dará o surgimento de Roma?
5. Qual o prognóstico para a glória de Roma?
6. Que grande homem virá de Iulo, quais suas glórias e que
período histórico virá em seguida, conduzido por outro grande
homem?
7. Por que o Livro I da Eneida pode ser chamado de proléptico?
Dê exemplo.
8. O que é a estrutura triádica da Eneida?
9. Que deus protege Enéias na confirmação de seu destino? Dê
dois exemplos.
10. Explique o texto abaixo, contextualizando-o:
“Tal é a minha vontade. Tempo virá, após decorridos muitos
lustros, que a casa de Assáraco oprimirá a Ftia e a ilustre Micenas, e
dominará sobre a vencida Argos. Depois nascerá César, troiano de
bela origem, que estenderá seu império até o Oceano e sua fama até os
astros” (Livro I).
TEXTOS
Depois de você ter assistido às aulas, lido os textos, participado
das explicações e dos debates, tente fazer a leitura dos dois textos
abaixo, com base na experiência adquirida da leitura do Clássico.
Lendo a Ilíada
Olavo Bilac
Ei-lo, o poema dos assombros, céu cortado
De relâmpagos, onde a alma potente
De Homero vive, e vive eternizado
O espantoso poder da argiva gente.
Arde Tróia... De rastos passa atado
O herói ao carro do rival, e, ardente,
Bate o sol sobre um mar ilimitado
De capacetes e de sangue quente.
Mais que as armas, porém, mais que a batalha,
Mais que os incêndios, brilha o amor que ateia
O ódio e entre os povos a discórdia espalha:
– Esse amor que ora ativa, ora asserena
A guerra, e o heróico Páris encadeia
Aos curvos seios da formosa Helena.
(Obra reunida; organização e introdução de Alexei Bueno.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p.103)
Os Lusíadas (Canto I, Estrofe 3)
Luís Vaz de Camões
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto um peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
(Obra completa; organização, introdução, comentários e
anotações de Antônio Salgado Júnior. Rio de Janeiro:
Companhia Aguilar Editora, 1963, p. 9.)
CONCLUSÕES
Esperamos que durante o processo, possamos acompanhar sua
evolução, caro aluno, com relação à assimilação dos valores do mundo
clássico. É fundamental para uma discussão de uma aprendizagem
efetiva que os que estão integrados a este estudo possam reconhecer a
permanência dos elementos clássicos na nossa cultura. Consideramos
que o conhecimento que foi posto à sua disposição é um caminho que
lhe permitirá, caro Aluno, aprofundar seus conhecimentos sobre o
assunto. Estamos conscientes, no entanto, de que são necessárias mais
leituras, por isto mesmo, estendemos a nossa bibliografia com autores
que consideramos básicos e incontornáveis. Acreditamos que os
primeiros passos foram dados, os demais dependem agora da vontade,
da necessidade e, claro, das condições oferecidas daqui por diante,
para que se possa avançar nesse caminho. Por outro lado, temos a
plena convicção de que os estudos do Clássico, mesmo que de forma
introdutória, contribuirão sobremaneira para a formação do professor
da área de Humanidades e, por conseguinte, para o aperfeiçoamento
do processo ensino-aprendizagem nesta área do conhecimento
humano.
BIBLIOGRAFIA
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Mercado Aberto, 1989.
ARISTÓTELES et alii. A poética clássica; tradução de Jaime Bruma.
2. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.
BRANDÃO, Junito de Sousa. Dicionário mítico-etimológico da
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CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos?; tradução de Nilson
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COLUTOS. O rapto de Helena; edição trilíngüe – grego, latim e
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Marques Júnior e notas de Alcione Lucena de Albertim. João Pessoa
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(este livro já se encontra traduzido para o português, editado pelas
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GRIMAL, Pierre. O teatro antigo; tradução de António M. Gomes da
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HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e
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Belles Lettres, 1996, versos 90-201. Tradução operacional nossa, a
partir do texto francês de Paul Mazon.
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Torrano. 6. ed (revisada e acrescida do original grego). São Paulo:
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Les Belles Lettres, 1936.
HOMERO. Ilíada; tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 2. ed.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
HOMERO. Odisséia; tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 5.
ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
MARQUES JÚNIOR, Milton e SOUZA, Erick France Meira de. O
teatro da morte, da humilhação e da dor: análise e tradução do Canto
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tradução do grego de Erick France Meira de Souza. João Pessoa,
Zarinha Centro de Cultura; Editora Universitária da UFPB, 2007.*
MOSSÉ, Claude. A Grécia arcaica de Homero a Ésquilo; tradução de
Emanuel Lourenço Godinho. Lisboa: Edições 70, 1989.
OVIDE. Les métamorphoses; texte traduit par Georges Lafaye. Paris:
Les Belles Lettres, 1928 (4. vol).
ROMILLY, Jaqueline. A tragédia grega; tradução Ivo Martinazzo.
Brasília: UNB, 1998.
SCHÜLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado
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TITE-LIVE. Histoire romaine I: la fondation de Rome; texte établi et
traduit par Gaston Baillet, introduction et notes de Jean-Noël Robert.
Paris: Les Belles Lettres, 2005.
VERGÍLIO. Eneida; tradução e notas de Tassilo Orpheu Spalding. 8.
ed. São Paulo: Cultrix, 2003.
VERNANT, Jean-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris:
Presses Universitaires de France, 2004. (Este livro encontra-se
traduzido para o português)
VERNANT, Jean-Pierre. Mythe et religion en Grèce ancienne. Paris:
Seuil, 1990. (Este livro encontra-se traduzido para o português).
VIRGILE. Énéide; texte établi par Henri Goelzer et traduit par André
Belessort. 7. éd. Paris: Les Belles Lettres, 1952 (2 v.).
VIRGÍLIO. Eneida – Canto IV: a morte de Dido; tradução de J.
Laender; organização de Milton Marques Júnior e Fabrício Possebon;
ensaios de Milton Marques Júnior, Helena Tavares de Melo Viana e
Leyla Thays Brito da Silva; comentários à tradução de Fabrício
Possebon. Edição bilíngüe. João Pessoa: Zarinha Centro de
Cultura/Editora Universitária da UFPB, 2006. *
* Estes livros podem ser adquiridos na Livraria do Zarinha Centro de
Cultura, através do site www.zarinha.com.br
FILMOGRAFIA
Tróia: mito ou realidade. Eagle Media, 2004.
PETERSEN, Wolfgang. Tróia. Warner Bros., 2004.
CAMERINI, Mario. Ulisses. DVD Video, 2003 (1955).
KONCHALOVSKI, Andrei. Odisséia. DVD Video, s.d.
SITES NA INTERNET PARA OS TEXTOS CLÁSSICOS
Biblioteca Augustana
www.fh-augsburg.de/~harsch/augusta.html
Perseus
www.perseus.tufts.edu/