RAMSÉS ALBERTONI BARBOSA

Transcrição

RAMSÉS ALBERTONI BARBOSA
RAMSÉS ALBERTONI BARBOSA
LABRYS – SARAMAGO, PESSOA E BORGES DE MÃOS DADAS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso
de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da
UFRJ, como parte integrante dos requisitos
para a obtenção do Grau de Mestre.
Área de Concentração: Poética
ORIENTADOR: Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho
UFRJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro – RJ
2002
SINOPSE:
Saramago na articulação de um labirinto de ideias com Pessoa e Borges. Dramatização da
travessia textual do heterônimo Ricardo Reis, no ano de sua morte. A des(d)obra de uma
metaficção historiográfica.
RESUMO:
No romance O ano da morte de Ricardo Reis, o escritor português José Saramago articula um
jogo labiríntico-narrativo que abole, ou reconstrói em novas diretrizes, as noções recorrentes
de ficção e história. Nesta metaficção historiográfica, o autor reelabora a vida e a obra do
heterônimo Ricardo Reis, criação do poeta Fernando Pessoa. Com a morte de seu criador, esta
criatura poética retorna a Portugal no crucial ano de 1935, após 16 anos auto-exilado no
Brasil, e durante oito meses irá vagar por uma conturbada Lisboa às vésperas da 2ª Guerra
Mundial. O diálogo narrativo saramaguiano será agenciado com relatos históricos e literários,
primordialmente com as obras dos escritores Jorge Luis Borges e Luiz Vaz de Camões. A
nossa análise sinalizará os recursos formais articulados por Saramago na construção do tecido
vertiginoso de seu romance-labirinto que forjará uma d(obra), segundo a leitura de
Deleuze/Leibniz, a partir da conceituação de Obra de Maurice Blanchot.
ABSTRACT:
In the novel The year of the death of Ricardo Reis, the portuguese writer Jose Saramago
articulates a labyrinthic narrative game whic abolishes, or reconstructs into new routes, the
reccuring notions of fiction na history. In this historiographic metafiction, the author reelaborates the life and work of the heteronym Ricardo Reis, creation of the poet Fernando
Pessoa. After his creator‘s death, this poetic creature returns to Portugal in the crucial year of
1935, after sixteen years of self exile in Brasil, and during eight months he is going to wander
through a rioutous Lisbon, on the brinck of World War II. Saramago‘s narrative dialogue is
going to be forged by historic and literary reports, primordially with the works of the writers
Jorge Luis Borges and Luiz Vaz de Camoes. Our analysis is going to point out the formal
resources articulated by Saramago in the building of the vertiginous cloth of his labyrinthicnovel which is going to forge a (de)pli according to the readings of Deleuze/Leibniz and
Maurice Blanchot‘s concept of literary work.
Esta Dissertação é dedicada especialmente às
minhas queridas e insondáveis filhas, Aline e
Alice, razão primordial de minhas múltiplas e
labirínticas vivências.
Apesar dos pesares,
In memoriam de
José Américo Avelino Barbosa
AGRADECIMENTOS
Agradeço de maneira especial à minha mãe Marli Albertoni, pois sem a sua
inestimável ajuda jamais conseguiria por termo a este estudo. Ao meu irmão Alexander
Albertoni agradeço a ajuda nos momentos conturbados. Ao amigo Sandro Santiago agradeço
a humildade de me escutar pacientemente por longos períodos de elucubrações. Obrigado à
Melissa Martins pela colaboração que dispensou em vários instantes na finalização deste
estudo. Ao amigo de infância Marcelo Saber agradeço a companhia nas horas absurdas.
Agradeço também à companheira Daniela Aragão, à companheira de última hora
Maria Aparecida Meyer, ao companheiro Rinaldo Pagy. Agradeço aos professores e colegas
de disciplina no mestrado e aos funcionários da secretaria da pós-graduação, Ezenira, Fátima
e Maria Helena. Aos funcionários das bibliotecas do ICHL-UFJF e da Biblioteca Municipal
Murilo Mendes de Juiz de Fora agradeço a paciência que tiveram ao longo de minhas
pesquisas.
Agradeço de maneira especial aos professores Geysa Silva e Fernando Fiorese a
disponibilidade em me ajudarem no início deste percurso. Por fim, quero expressar aqui os
meus mais sinceros agradecimentos ao orientador Luiz Edmundo, pois sem a sua alegre
confiança, sua disponibilidade, sua inteligência, e seu constante apoio, com certeza não
conseguiria chegar ao fim desta jornada.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 12
2. CAPÍTULO I
1. A Retomada histórica, 16
1.1 Os jornais, 17
2. A Retomada narrativa, 19
3. Criações circulares, 22
4. O Autor-Pessoa, 26
5. O Estatuto do Autor, 29
6. Algumas considerações sobre arte, 30
7. A Autorreferencialidade na d(obra) deleuzeana, 31
8. O Mito do Labirinto, 38
8.1 A entrada no labirinto, 44
8.2 Hermes e Hefestos, 46
9. Metaficção Historiográfica, 47
3. CAPÍTULO II
1. O Retorno, 51
2. Borges ao lado, 54
3. Interrogatório, 55
4. Hotel Bragança, 57
5. Mulheres, 61
6. Perguntas, 69
7. The God of the labyrinth, 69
7.1 Biblioteca de Babel, 70
8. Romance policial, 71
9. O Centro do Labirinto-Narrativo, 73
9.1 Camões e Adamastor, 74
10. Influências angustiantes, 79
11. O Flâneur, 81
12. Festas populares, 85
4. CAPÍTULO III
1. Várias versões, 92
2. O Sonho sonhado ou Relíquias do passado, 93
3. Flânerie e Cinema, 96
4. O Jogo escritural, 100
5. Jogadores, 106
5. CAPÍTULO IV
1. A Narrativa, 110
2. As Rugas na face de Deus, 111
3. Tabuleiro de xadrez, 114
4. Visitas ao cemitério, 117
5. Herbert Quain, 118
6. As veredas bifurcantes, 119
7. O Deus mentiroso, 122
CONCLUSÃO, 123
REFERÊNCIAS, 125
Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi reposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pode
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
como olhos de meu sonho
Precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bêbedo
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
quando não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.
Luiz Vaz de Camões, Carlos Nejar
INTRODUÇÃO
O labirinto é uma construção de múltiplas passagens ou divisões, cuja disposição é tão
confusa que dificulta sobremaneira o encontro da saída por quem aí penetrou em um dia
qualquer por descuido, ou acaso, ou desejo, ou fascínio... Labirintos, pura simplicidade.
Labirintos, puro transtorno. Um belo jardim cortado por caminhos entrelaçados onde
facilmente se encontra o desatino da perda. Um desenho de ruas, avenidas, praças e travessas,
sejam reais ou virtuais.
Por conseguinte, várias são as linhas de leitura possíveis do excelente e sedutor
romance de José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis, onde o autor, ao perceber a
sobrevivência deste heterônimo de Fernando Pessoa, prossegue na criação da ficção
heteronímica ao refletir que as pessoas não imaginam que quem acaba uma obra talvez não
seja aquele que a iniciou. Saramago conta, em seu diário Cadernos de Lanzarote, que o
romance da morte começou a escrever-se muito tempo antes, quando ainda tinha 16 anos. Em
Xabregas, na Escola de Afonso Domingues, o escritor português fazia o curso industrial. A
escola possuía uma biblioteca escura e misteriosa, com altas estantes envidraçadas com
muitos livros. Neste lugar, ele encontrara um livro encadernado que continha a revista Athena,
que neste número publicou as odes de Ricardo Reis, principalmente a Seguro assento na
coluna firme. Esta revista é fundada em outubro de 1924 por Pessoa e o pintor Ruy Vaz que a
dirigem. Saramago acreditou na ficção pessoana, acreditou que realmente existira em Portugal
um poeta com tal nome e com tais poemas que o fascinaram e o assustaram. No princípio dos
anos 40, já consciente da criação heteronímica, os versos de RR serão um paradigma, um
parâmetro, para o futuro escritor.
Saramago articula um jogo labiríntico-narrativo que abole, ou reconstrói em novas
diretrizes, as noções recorrentes de ficção e história. Nesta metaficção historiográfica, o autor
reelabora a vida e a obra do heterônimo Ricardo Reis, criação do poeta Fernando Pessoa. Com
a morte de seu criador, esta criatura poética retorna a Portugal no crucial ano de 1935, após 16
anos auto-exilado no Brasil, e durante oito meses irá vagar por uma conturbada Lisboa às
vésperas da 2ª Guerra Mundial. O diálogo narrativo saramaguiano será agenciado com relatos
históricos e literários, primordialmente com as obras dos escritores Jorge Luis Borges e Luiz
Vaz de Camões. A nossa análise sinalizará os recursos formais articulados por Saramago na
construção do tecido vertiginoso de seu romance-labirinto que forjará uma d(obra), segundo a
leitura de Deleuze/Leibniz, a partir da conceituação de Obra de Maurice Blanchot.
O protocolo de leitura deste estudo agenciará recursos que possibilitem a
interpretação da simbologia do labirinto no romance e na obra saramaguiana. O símbolo
possui a capacidade de fazer transitar, a quem o recebe, do plano da existência ao absoluto,
abrindo o campo da consciência à percepção de vários aspectos da realidade. Assim, emerge
até à consciência elementos obscuros relacionados a imagens, emoções, recordações que
revelam o homem a si mesmo, dando-lhe uma visão mais ampla da realidade. A palavra
símbolo vem do grego syn y balein, e significa ir junto, caminhar ao lado, indicando a reunião
do objeto com o sujeito no despertar simultâneo de ações inconscientes cuja significação
simbólica será sempre polivalente.
O tema do labirinto é a sinalização, orquestrada pelo autor, de recursos poéticos que
nos permite o estudo do mesmo como um conjunto de atitudes escriturais manipulado por
Saramago,
tais
como
intertextualidade,
intratextualidade,
autorreferencialidade,
paratextualidade, entre outros. Esses recursos não são hierarquizados ou estandardizados
dentro do romance ou da obra total, ocorre uma imbricação voluntariosa destes e de outros
recursos poéticos. Neste caso, o nosso método de estudo do romance em questão não se autoimporá um rigorismo metodológico semelhante à dissecação de cadáveres. Estará mais
próximo do método genealógico de Michel Foucault, em que os textos colididos serão
desrespeitados em suas características de cristalização teórica; textos cujo discurso é
entrevisto como relações de poder em que estão enraizadas as múltiplas instituições seriais
das tecnologias do poder. É na própria ruptura dos discursos que poderemos entrever a cultura
ocidental dividida em guetos das minorias.
Desse modo, não estaremos a trabalhar com as mãos assepticamente enluvadas na
análise de uma obra impassível e exangue. Mas, muito pelo contrário, o romance O ano da
morte é-nos uma esfinge interrogadora de um firme olhar obsedante; e se, por conseguinte,
somos Édipos, estamos condenados a sermos devorados se por acaso não resolvermos o
enigma proposto. Porventura, se decifrado o enigma, a esfinge se precipitará do alto de sua
montanha? Esta resposta nós só a teremos, provavelmente, ao fim de um percurso cheio de
seixos a nos incomodar os sapatos.
Outra proposta metodológica refere-se à seleção dos autores e de seus respectivos
textos críticos. Não nos basearemos em estudos a respeito de Portugal, Saramago, Europa,
Pessoa, Borges. Apesar de considerarmos de extrema importância os estudos de Eduardo
Lourenço, Boaventura de Sousa Santos e Tereza Cristina Cerdeira, entre outros, preferimos,
no entanto, construir o nosso itinerário crítico com a premissa de uma narrativa saramaguiana
em diálogo com uma literatura sem fronteiras, um mar em que devemos nos banhar, e talvez
nos afogar. A ausência de estudos sobre o autor Saramago é antes uma escolha, ao invés de
uma deficiência.
Ora, ao ponderarmos o nosso estudo a partir da escritura múltipla de Roland Barthes,
conceberemos o enigma da obra como um enigma a ser deslindado, e não decifrado, pois a
escritura da obra propõe-nos um redirecionamento incessante do sentido. Aguardemos até à
conclusão deste estudo, e quem sabe, as nossas dúvidas já se terão avolumado.
Pois bem, ao adentrarmos pelo viés mitológico, apropriemo-nos então da imagem do
labirinto. De acordo com a lenda, Dédalo o construiu para o rei Minos de Creta que o desejava
para prisão do monstro chamado Minotauro, filho de sua esposa Pasifae com o touro sagrado.
Todos os anos, ele sacrificava sete moças e sete rapazes gregos ao monstro biforme. Teseu,
filho de um rei grego, entrou no labirinto, matou o Minotauro e conseguiu sair pelas
intrincadas passagens com o artifício que lhe dera Ariadne, filha de Minos. Ela tinha-lhe dado
um novelo de linha para que fosse desenrolando-o à medida que entrasse no labirinto. Dessa
forma, Teseu seguiu a linha e escapou. Na história recente, os arqueólogos descobriram um
palácio que pode ter sido o labirinto cretense, ele é cheio de passagens tortuosas e fica em
uma encosta perto de Cnosso, cidade funerária e templo da pirâmide de Amenemés III, em
Creta. Vestígios de outro grande labirinto foram encontrados no Egito. Heródoto disse que o
labirinto egípcio era mais maravilhoso ainda que as pirâmides, com certeza ele foi construído
à semelhança do labirinto cretense, mais antigo.
Semelhante ao seu percurso no labirinto de Dédalo, nós, leitores e críticos de
Saramago, percorreremos o labirinto de seu romance e de sua obra. Porém, as coisas para nós
aqui se complicam, pois estão ausentes tanto Ariadne quanto o seu fio-guia que direcionam o
périplo de Teseu. Se nós, leitores e críticos de Saramago, não nos apropriamos, em nossa
modernidade, de artefatos diretivos, possuímos, no entanto, um monstro-duplo que é metade
homem e metade touro, ou seja, um híbrido, filho de Pasifae, ou melhor exemplificando,
possuímos uma pletora de contradições, dúvidas e questionamentos em nosso encalço. Assim,
a imagem simbólica do Minotauro convém à imagem do labirinto. Para piorar ainda mais a
situação, não possuímos aquele centro clássico a nos apontar insistentemente o norte.
Se porventura houver um excesso de imbricamento de vias, e com certeza há, esse
excesso é proposital, pois aspiramos à isotopia entre texto crítico e diagrama do labirinto
narrativo-ficcional. Explicando-nos melhor, cada citação, parágrafo, item, título e capítulo da
dissertação corresponderá a uma curva, uma parede, dobra e cruzamento das obras ficcionais
a serem deslindadas.
Algumas linhas de leitura serão percorridas com exaustivo fragor, outras nem tanto,
outras apenas vislumbradas. O texto crítico assemelhar-se-á ao objeto/sujeito de estudo, quer
dizer, será semelhante ao labirinto saramaguiano, retirando dele toda a sua energia. Ao longo
do nosso estudo percorreremos quatro vias principais, quatro labirintos imbricados entre si.
Não nos será possível construir, a par disso, um diagrama desses labirintos, pois isso seria
trair a nossa já referida protocolagem descomprometida com tal rigorismo diagramático. As
quatro vias são factíveis, é um mero recurso didático para a melhor compreensão de nossa
leitura. São as seguintes:
1. Labirinto Autorreferencial – a obra conforme dobras entre as (d)obras de Saramago;
2. Labirinto Intertextual – a obra conforme dobras entre obras de outros escritores;
3. Labirinto Temático – a obra conforme dobras entre os vários temas desenvolvidos ao
longo das obras saramaguianas: o sonho, o labirinto, o espelho, o deserto, o jogo,
Deus.
4. Labirinto Ficcional-Real – a obra conforme dobras relacionais da crítica ficção-real
a partir do questionamento histórico.
Ao atualizarmos as nossas concepções a respeito do labirinto, poderemos pensá-lo
como um hipertexto, dessa forma, ele seria constituído como um gradiente original de
interfaces narrativas, cuja particularidade seria, neste estudo, um diagrama complexo de uma
leitura/escrita não-linear de uma interface reticulada num circuito errático e virtualmente sem
fim. Organizado de modo fractal, os nós ou conexões deste hipertexto narrativo podem ser
revelados à semelhança de toda uma rede, cujos vários centros estão em perpétua mobilidade,
desenhando-se assim, possibilidades outras de sentido, cuja navegação significa o desenhar de
um percurso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível, pois cada nó pode,
por sua vez, conter uma rede inteira. A extensão, a composição e o desenho deste romancemar hipertextualizado está em constante construção e renegociação de paisagens.
Em Sobre os espelhos e outros ensaios, Umberto Eco, no ensaio O antiporfírio, diz
existirem três tipos de labirinto, quais sejam, o labirinto clássico unicursal com o fio único de
Ariadne, o labirinto maneirísitico (Irrweg) como uma árvore estruturada com becos sem
saída, e o labirinto-rede, cujos pontos são interconectáveis entre si, como no hipertexto. Este
labirinto-rede é extensível ao infinito e não possui a dicotomia interior/exterior. É um
processamento constante, de quem o percorre, de correção das conexões rizomáticas
(Deleuze/Guattari). O rizoma, cujos pontos podem ser ligados entre si, está entre o modelo e a
metáfora, suas linhas estão sujeitas a modificações, por isso, o rizoma é desmontável e
reversível. Justificando e encorajando a contradição, este tipo de labirinto-rizomático não
possui um centro totalitário, definitivo, pois não aspira à globalidade, é passível de desmonte
e de ser revertido. Dessa forma, Ricardo Reis, consciente da sua finitude, perambula por uma
estrutura narrativa que lhe permite percorrer uma variedade infinita de linhas diferentes.
Nesses caminhos infinitos, intercorrelacionados, interconectáveis, interligados, o heterônimo
é detentor de uma visão originada de um ponto interno, que se é seu, o é igualmente na sua
correlação com os seus autores (Pessoa e Saramago), com os leitores, com a história, com o
cinema, com a literatura, com a tradição.
Fica-nos então, a expectativa de chegarmos vivos ao final deste percurso crítico. Seja
como for, valeu a pena a companhia.
CAPÍTULO I
Sóis vós que os criais? Ou somos Nós o criador?
Predeterminamos a data de vossa morte – e
ninguém escapa de Nós –
Para poder substituir-vos e transformar-vos em
algo que desconheceis.
E, na verdade, conhecestes a primeira criação. Por
que não vos lembrais?
O Alcorão, Sura 56.59,62
1. A Retomada histórica
O escritor português José Saramago constrói, em linhas contundentes no belo romance
O ano da morte de Ricardo Reis, um denso quadro histórico do crucial ano político de 1936
em Portugal, Espanha e em toda a Europa. Neste ano inicia-se o expansionismo alemão e,
liderados pelo general Francisco Franco, rebeldes militares da guarnição de Melilla, no
Marrocos espanhol, voltam-se contra o governo republicano e tomam as cidades de Sevilha e
Cádiz, iniciando a Guerra Civil Espanhola, conflito que deixa 1 milhão de mortos. O conflito
alastra-se pela Espanha, opondo republicanos e nacionalistas, os franquistas. Franco vence a
guerra em 1939 e instaura uma ditadura que se estende até sua morte em 1975.
Em 1926, oficiais do exército derrubaram o governo civil de Portugal. Dissolveram o
parlamento, suspenderam os direitos civis e estabeleceram uma ditadura. Os oficiais foram
incapazes de resolver os problemas econômicos do país. Em 1928, escolheram o economista
Antônio de Oliveira Salazar para ministro da Fazenda. Mas a atuação de Salazar estendeu-se
logo para muito além das questões financeiras. Salazar rapidamente assumiu o controle do
governo e começou a agir como ditador. Foi nomeado primeiro-ministro em 1932.
O governo de Salazar foi uma ditadura da direita conservadora em Portugal. Concedia
ao povo poucos direitos e mantinha uma polícia secreta que esmagava qualquer oposição. As
diretrizes econômicas de Salazar favoreciam os ricos, e a pobreza generalizou-se durante sua
ditadura. Em meados do séc. XX, a maioria das nações europeias começou a reconhecer a
independência das colônias que ainda mantinham. Mas Salazar recusava-se a abrir mão das
remanescentes colônias de Portugal, apesar das exigências dos povos colonizados e da
Organização das Nações Unidas. Salazar continuava a insistir na unidade de Portugal e suas
colônias que, após 1951, eram chamadas províncias ultramarinas.
Em 1961, exércitos indianos forçaram Portugal a abandonar suas últimas possessões
na Índia. Aproximadamente ao mesmo tempo, rebeldes nas colônias portuguesas da África
negra — Angola, Moçambique e Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau) — começaram a luta
armada contra seus dominadores. Portugal enviou forças para combater os revoltosos.
Milhares de pessoas, de ambos os lados, foram mortas e os custos da luta enfraqueceram
ainda mais a economia de Portugal. Salazar sofreu um ataque de apoplexia em 1968,
encerrando sua longa carreira pública. Morreu dois anos mais tarde. Marcelo Caetano
substituiu-o no governo de Portugal em 1968. Caetano tomou medidas para reduzir o rigor da
ditadura, mas não de maneira a satisfazer a maioria dos portugueses.
Durante as leituras de jornais de Ricardo Reis, noticia-se o estranho caso de uma
cadela fox, não pura, que já pariu duas ninhadas e comeu-as todas. O poeta, no entanto, dá-lhe
outro nome, o de Ugolina,
[...] que vem de Ugolino della Gherardesca, canibalíssimo conde macho que
manjou filhos e netos, e tem atestados disso, e abonações, na História dos
Guelfos e Gibelinos, capítulo respectivo, e também na Divina Comédia,
canto trigésimo terceiro do Inferno, chama-se pois Ugolina à mãe que come
os seus próprios filhos [...] Pelas ruas ermas de Lisboa anda a cadela Ugolina
a babar-se de sangue, rosnando às portas, uivando em praças e jardins,
mordendo furiosa o próprio ventre onde já está a gerar-se a próxima ninhada.
(Saramago,1998, 30-31).
De forma contundente, Saramago desfere um contundente golpe crítico no salazarismo, que
poderá ser estendido a quaisquer totalitarismos que se comportam como a cadela Ugolina,
sedenta do sangue de suas próprias crias.
1.1 Os jornais
O relato dos acontecimentos históricos será feito principalmente pelas leituras de
jornais de RR. As primeiras leituras dizem respeito ao chefe do Estado português que
inaugura uma
[...] exposição de homenagem a Mousinho de Albuquerque na Agência Geral
das Colónias [...] Há grandes receios na Golegã, não me lembro onde fica, ah
Ribatejo, se as cheias destruírem o dique dos Vinte [...] A mais alta mulher
do mundo chama-se Elsa Droyon e tem dois metros e cinquenta centímetros
de altura, a esta não a cobriria a cheia [...] Prosseguem as operações na
Etiópia, e do Brasil que notícias temos, sem novidade, tudo acabado, Avanço
geral das tropas italianas [...] (ibid., 28-29).
RR vai aos jornais saber como foi anunciada a morte de seu criador,
[...] Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada
de Fernando Pessoa, o poeta de Orfeu, espírito admirável que cultivava não
só a poesia em moldes originais mas também a crítica inteligente, morreu
anteontem em silêncio, como sempre viveu, mas como as letras em Portugal
não sustentam ninguém, Fernando Pessoa empregou-se num escritório
comercial, e, linhas adiante, junto do jazigo deixaram os seus amigos flores
de saudade. [...] outro diz doutra maneira o mesmo, [...] o poeta
extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais
belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar, surpreendeu-o a morte num
leito cristão do Hospital de S. Luís, no Sábado à noite, na poesia não era só
ele, [...] era também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis,
pronto, já cá faltava o erro, a desatenção, o escreveu por ouvir dizer, quando
muito bem sabemos, nós, que Ricardo Reis é sim este homem que está lendo
o jornal com os seus próprios olhos abertos e vivos, [...] Realizou-se ontem o
funeral do senhor doutor Fernando António Nogueira Pessoa, solteiro, de
quarenta e sete anos de idade, quarenta e sete, notem bem, natural de Lisboa,
formado em Letras pela Universidade de Inglaterra, escritor e poeta muito
conhecido no meio literário, sobre o ataúde foram depostos ramos de flores
naturais, o pior é delas, coitadas, mais depressa murcham. (ibid., 35-36).
O heterônimo pensa que um bom jornal seria aquele que antecipasse os
acontecimentos; em janeiro de 1914 anunciaria o rebentar da guerra em julho, assim poderiase conjurar a ameaça. Contudo, os jornais lidos por Reis fazem a apologia do salazarismo,
dizendo que um dia as nações européias virão pedir opinião, ajuda, conselhos, ao
inteligentíssimo Oliveira Salazar. Nos anúncios de automóveis, Reis vê
[...] os novos modelos de automóveis Studebaker, o President, o Dictator, se
o anúncio do Freire Gravador era o universo, este é o resumo perfeito do
mundo nos dias que vivemos, um automóvel chamado Ditador, claro sinal
dos tempos e dos gostos. (ibid., 123-124).
Depois de visitar o jazigo de Fernando Pessoa, Reis vai embora do cemitério, na saída,
encontra-se com o funcionário da administração a almoçar, sua comida é trazida de casa numa
marmita embrulhada em jornais. Assim, percebemos a crítica feroz de Saramago às notícias
fugazes dos jornais, cujas retumbantes novidades de hoje embrulharão o peixe morto, a
comida fria de amanhã. Mais adiante se dirá que o papel de jornal é o que há de melhor para
forrar caixotes.
No Alto de Santa Catarina, Reis irá conhecer dois velhos, leitores assíduos de jornais,
o gordo lerá, para o magro analfabeto, as palavras dos jornalistas que nunca se esquecem do
povo para o qual escrevem. O heterônimo receberá diariamente em sua residência os jornais
que vêm
[...] pelos ares, dobrado como uma carta de segredo, húmido da tinta que o
tempo, como está, não vai deixar secar, fica nos dedos a macia negrura, um
pouco gordurosa, como de grafite, agora em cada manhã virá este pombocorreio bater às vidraças, até que de dentro lhe abram, ouve-se o pregão
desde o fim da rua, depois, tardando a janela a abrir-se, como quase sempre
acontece, sobe o jornal aos ares, rodopiando como um disco, primeira vez
bate, segunda vez torna, já Ricardo Reis apareceu, abriu de par em par, e
recebe nos braços o alado mensageiro que traz as notícias do mundo [...]
(ibid. 241).
Após serem lidos, os jornais serão deixados em cima do banco da praça para que os velhos
possam se informar. Sem poder escolher as notícias que deseja ler, Reis se contenta com o
que lhe é dado, ao contrário de John D. Rockefeller que recebe diariamente um exemplar
único do New York Times, uma edição falsificada
[...] de uma ponta à outra, só com notícias agradáveis e artigos optimistas,
para que o pobre velho não tenha de sofrer com os terrores do mundo e suas
promessas de pior, por isso o jornal explica e demonstra que a crise
económica está a desaparecer, que já não há desempregados, e que o
comunismo na Rússia evoluciona para o americanismo, tiveram de render-se
os bolcheviques à evidência das virtudes americanas. (ibid., 265).
No final do romance, já cansado das velhas novidades do mundo, Reis irá recolher-se
a uma simples sombra de si mesmo.
2. A Retomada narrativa
Saramago ficcionaliza, em meio aos conturbados acontecimentos da década de 30, o
suposto regresso do Brasil de um heterônimo de Fernando Pessoa que retorna a Portugal em
fins de 1935, e cuja morte se dará nove meses depois da morte de seu criador, em fins de
agosto de 1936.
A partir de 1914, Pessoa cria seus heterônimos, isto é, nomes de autores imaginários a
quem o escritor atribuiu textos seus, cada um deles com estilo próprio e tendências bem
características, até mesmo conflitantes. Os heterônimos mais importantes de Pessoa são
Alberto Caeiro, cantor do mundo das sensações, da natureza, observador descrente e cheio de
fina ironia; Álvaro de Campos, poeta da modernidade, do avanço da técnica, meditativo,
enérgico, algumas vezes emocional, outras humorístico, cuja obra foi influenciada pelo norteamericano Walt Whitman; e Ricardo Reis, criador de odes pagãs e neoclássicas, no estilo de
Horácio. Os primeiros ensaios de crítica literária de Pessoa apareceram em 1912 na revista A
Águia. Sua poesia na época era toda em inglês. Tornou-se um dos líderes do movimento
futurista em Portugal através da revista Orpheu (1915), começando então a escrever poesia
em português e a redigir manifestos, artigos e panfletos sobre as novas ideias estéticas no
campo da literatura.
A faceta mais interessante da obra poética de FP está sob a rubrica desta heteronímia.
É sob o título de Ficções do Interlúdio que se faz o agenciamento transformacional da mentira
em ficção cujo autor é, antes de tudo, um ator a usar máscaras de uma verdade perdida. O
a(u)tor, ao fazer uso de uma sensibilidade toda própria, cifra-se no fingimento da verdade de
um poema. Os outros Eus, dotados cada um de personalidade e obra própria, passam a existir
neste jogo de ficção de identidade com o ortônimo, na falha da linguagem onde assentamos
nosso ser.
Pessoa morre em 30 de novembro 1935, e dentre suas criações, apenas Caeiro terá
morte em vida do ortônimo. Álvaro de Campos e Ricardo Reis não terão as suas mortes
ficcionalizadas por Pessoa. Em carta ao amigo e crítico literário Adolfo Casais Monteiro,
datada de 13 de janeiro de 1935, conta-nos que por volta de 1912 veio-lhe o ensejo de
escrever alguns poemas de índole pagã:
Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos,
mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-me,
contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a
fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.) [...] Eu
vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos
de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as
vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas
tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil [...] é
um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco [...] um vago
moreno mate [...] educado num colégio de jesuítas [...] vive no Brasil desde
1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista
por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.
(Pessoa:1985, 697-699).
Em nome deste heterônimo, Pessoa escreve depois de uma deliberação abstrata, cuja ode é
uma concretização súbita; e se Reis escreve melhor que o ortônimo, possui no entanto, um
purismo que este considera exagerado.
Em outro momento, Pessoa é mais explícito nas suas considerações:
O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de janeiro de
1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma
discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização da arte
moderna. Segundo o meu processo de sentir as cousas sem as sentir, fui-me
deixando ir na onda dessa reação momentânea. Quando reparei em que
estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia
desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse
segundo princípios que não adoto nem aceito. Ocorreu-me a ideia de a tornar
um neoclassicismo ‗científico‘ [...] reagir contra duas correntes – tanto
contra o romantismo moderno, como contra o neoclassicismo à Maurras.
(Pessoa:1985, 139).
As inquietações que marcam a poesia deste heterônimo resultam de um poeta de inspiração
neoclássica, cuja constante é a preocupação com o lema horaciano do carpe diem.
Questionando o modus vivendi de figuras ficcionais e o seu relacionamento com a
morte, Saramago retoma a criação heteronímica de Pessoa, e procura solucionar a
possibilidade da morte introduzindo-a em sua própria obra como a desintegradora
supremamente duvidosa do não-certo. A personagem saramaguiana RR tem o seu retrato
esboçado logo na chegada a Portugal. Quem assina os últimos papéis de entrada no país é um
homem grisalho e seco de carnes, moreno, de cara raspada, com um leve sotaque brasileiro.
A própria personagem RR tem a oportunidade de apresentar-se no livro de entradas do
hotel em que se hospedará. Na página ele escreve seu nome, a idade de 48 anos, a
naturalidade do Porto, solteiro, médico, com última residência no Rio de Janeiro, Brasil.
Pensa tratar-se de uma autobiografia íntima, o prelúdio de uma confissão, ―[...] tudo o que é
oculto se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto, apenas‖
(Saramago:1998, 21). Deve-se ter sempre em mente que apesar de ser um heterônimo
pessoano,
Este Ricardo Reis não é o poeta, é apenas um hóspede de hotel que, ao sair
do quarto, encontra uma folha de papel com verso e meio escritos, quem me
terá deixado isto aqui, não foi, de certeza, a criada, não foi Lídia, esta ou a
outra, que maçada, agora que está começado vai ser preciso acabá-lo, é como
uma fatalidade [...] (Saramago:1998, 51).
Procedimento análogo, de questionamento da retomada da continuidade narrativa,
encontraremos na peça Seis Personagens à Procura de um Autor, marco fundamental na obra
do dramaturgo italiano Luigi Pirandello. Sob a supervisão de um diretor, um grupo de atores
está em ensaio, quando é interrompido por seis personagens nascidas da imaginação de um
autor que relegou-as ao abandono narrativo. Esse autor não sente interesse em narrar um caso
particular pelo simples prazer de narrá-lo, pois é dominado por uma necessidade espiritual
mais profunda; não aceitando representações que não estejam embevecidas por um particular
sentido da vida em que tudo assume um valor universal, pois é um escritor de natureza mais
profundamente filosófica. As seis personagens lutam com o diretor (transformado em autor) e
os atores, a respeito do significado e dos fatos da história particular que cada personagem
viveu a seu modo, pois
Quando uma personagem nasce, adquire logo tal independência, mesmo em
relação ao seu autor, que pode ser imaginado por todos, em outras várias
situações, nas quais o autor nem pensa colocá-lo, e adquirir também, às
vezes, um significado que o autor nunca sonhou dar-lhe! (Pirandello:1981,
447).
O escritor português Fernando Namora, contemporâneo de Saramago, questiona, no
romance O rio triste, as pequenas intrigas do universo dos literatos e o seu ato criativo, num
jogo constante com o leitor. A personagem-narradora-escritora André Bernardes ao ser
questionada sobre o próprio ato de escrever, e em especial à ficcionalização de pessoas reais,
responde que quando elas se tornam personagens de um romance, adquirem uma tal
autonomia que distanciam-se da pessoa ou acontecimento original, tratando-se na verdade de
uma irresistível emancipação.
Se assim não fosse, essas personagens perderiam toda a sua verdade. Às
vezes, aliás, uma mesma referência reparte-se por várias figuras, diluindo a
sua nitidez ou adquirindo uma outra, mais rica, mais sólida. Não há regras.
(Namora:1986, 129).
O domínio sobre a escrita, sobre o escrever como afirmação da solidão ameaçada pelo
fascínio, reside no poderio da suspensão do ato de escrever, interrompendo-se a escrita de um
livro, uma peça; ou então, abandonando-se as personagens. Ao dispor a linguagem da sua
obra sob o fascínio do que o arrebata, o escritor entrega-se fascinado à ausência de tempo,
onde nada começa na impossibilidade da iniciativa de um tempo sempre presente, ou seja, de
um tempo sem presença. Porventura, poderia esse escritor, entregue ao interminável e ao
incessante da sua criação, dar existência a personagens cuja liberdade seria garantida por sua
força criadora? Ora, se escrever é fazer-se eco do que não pode parar de falar (Blanchot),
requer-se a decisão autoritária do silêncio.
3. Criações circulares
A origem das criações circulares, com repetição de personagens e assuntos em vários
livros, está na Idade Média e nas narrativas cavalheirescas, cujas criações artísticas nasceram
de maneira cumulativa, compreendendo numerosas unidades independentes. O labirinto
ficcional é a representação artística de uma forma cíclica, uma moldura que engloba um
conjunto de posturas e estratégias de um artista moderno que deseja participar de uma vida
inexaurível. Claro está que tudo isso é um fake de uma comédia por fazer que apenas deseja
representar um caos orgânico e natural da criação da vida por artifício. As personagens
ficcionais quando se põem a migrar de um texto para outro, como no caso específico da
personagem ficcional pessoana ficcionalizada por Saramago, é porque já adquiriram a sua
cidadania no mundo real e se libertaram da criação ficcional de origem. Assim,
Levar a sério as personagens de ficção também pode produzir um tipo
incomum de intertextualidade: uma personagem de determinada obra
ficcional pode aparecer em outra obra ficcional e, assim, atua como um sinal
de veracidade. (Eco:1994, 132).
No entanto, o escritor desconhece a realização da Obra, pois o que está terminado num livro
será destruído ou terá continuidade num outro. São as contingências e imposturas do
momento que pronunciam o fim que falta, pois o infinito da obra confunde-se com o infinito
do espírito do autor. Dessa forma, é desejo do espírito criador realizar-se numa obra única, em
vez de se ver realizado no infinito das obras e no movimento da história (Blanchot).
No conto O livro de areia do livro homônimo, Jorge Luis Borges fala-nos de um livro
semelhante à areia que não tem princípio ou fim, seu número de páginas é infinito, nenhuma é
a primeira ou a última. Se são numeradas suas páginas é simplesmente para dar a entender que
os termos de uma série infinita admitem quaisquer números. No espaço/tempo infinito deste
livro/areia está-se em qualquer ponto do espaço/tempo. Este impossível livro monstruoso é
guardado atrás de alguns volumes de As mil e uma noites, outro livro infinito. Atormentada
pela posse de tal livro, a personagem-prisioneiro o sente como um objeto de pesadelo cujos
ângulos guardam máscaras e algarismos elevados à nona potência. Ao querer incendiá-lo,
teme que sua combustão seja também infinita e que sufoque o planeta com fumaça. A saída
encontrada é a de perder esta coisa obscena entre os novecentos mil exemplares da Biblioteca
Nacional, em uma de suas úmidas prateleiras. A personagem sente-se enfim aliviada, contudo,
evita passar pela rua em frente à biblioteca.
As obras de Saramago possuem nos acabamentos de sua tapeçaria verbal, como nos
diria Italo Calvino, uma lâmina dourada de conexões que se encastoam umas nas outras como
pedras preciosas de um colar sublime. O autor Saramago escreve seus romances, contudo,
isso ainda não é a obra,
[...] a obra só é obra quando através dela se pronuncia, na violência de um
começo que lhe é próprio, a palavra ser, evento que se concretiza quando a
obra é a intimidade de alguém que a escreve e de alguém que a lê. [...] O
escritor pertence à obra, mas o que lhe pertence é somente um livro, um
amontoado mudo de palavras estéreis, o que há de mais insignificante no
mundo. (Blanchot:1987, 13).
Ao querer terminar o interminável, o autor associa o seu ofício a um trabalho ilusório, só
terminando sua obra no momento da morte; assim, a sua própria obra torna-se ilegível, um
segredo, pois ele sabe de antemão que jamais a lerá. A ideia de infinito é consubstancial à
narrativa das noites orientais com seus contos dentro de contos que produzem um efeito de
vertigem, como nas caixas de bonecas russas.
Nos Cadernos de Lanzarote, Saramago tem um sonho que regressa. Ele está rodeado
por grandes construções inacabadas,
[...] pórticos, colunatas, abóbadas de enormes vãos, arcos que se entrelaçam.
O trabalho ornamental na pedra parece-me às vezes <<renascentista>>, às
vezes <<barroco>>. Não são ruínas, é uma obra gigantesca que não chegou a
ser terminada. O meu papel no sonho é percorrê-la de um extremo a outro,
subir e descer escadas, buscar perspectivas, assombrar-me. Sempre sozinho.
Não há imagens esculpidas. Aliás, estas construções não tem caráter
religioso. Se tivesse de defini-las, diria que há nelas algo das falsas ruínas de
Hubert Robert e das prisões de Piranesi... Que quererá dizer-me este sonho?
Que estarei eu dizendo, ao sonhá-lo? (Saramago:1997, 471).
Poderemos conjeturar, com uma quase certeza absoluta, que Saramago está em uma noite
especial desenvolvida por Maurice Blanchot em O espaço literário; o escritor português está
sonhando uma noite blanchotiana, cuja intimidade das obras, dos romances, dos contos, dos
poemas, das crônicas, propicia-lhe uma visão de seu work in progress, uma obra gigantesca
que ainda não terminou. Como autor de suas ficções, Saramago percorre sozinho suas falsas
ruínas.
Diante da possibilidade da não ver o fim da construção do convento de Mafra, o rei de
Portugal D. João V, personagem histórica do Memorial do Convento, angustia-se com a
curteza das vidas. Este rei já desistira de construir uma réplica da basílica de S. Pedro de
Roma, cuja maquete possui como um brinquedo de criança, justamente por não conseguir ver
o fim da obra. O convento de Mafra começou a ser construído onze anos atrás, e o rei teme
não estar vivo para fazer a sagração. Melancolicamente, D. João V é tomado pelo medo da
morte. Contudo,
[...] este medo de morrer não é o de se lhe abater de vez o corpo e ir-se
embora a alma, é sim o de que não estejam abertos e luzentes os seus
próprios olhos quando, sagradas, se alçarem as torres e a cúpula de Mafra, é
o de que não sejam já sensíveis e sonoros os seus próprios ouvidos quando
soarem gloriosamente os carrilhões e as solfas, é o de não palpar com as suas
mãos os paramentos ricos e os panos de festa, é o de não cheirar o seu nariz
o incenso dos turíbulos de prata, é o de ser apenas o rei que mandou fazer e
não o que vê feito. [...] Vaidade das vaidades, disse Salomão, e D. João V
repete, Tudo é vaidade, vaidade é desejar, ter é vaidade. (Saramago:1998a,
280).
O rei medita sobre o assunto e resolve apressar a construção do convento. Como a
sagração das basílicas deve ocorrer aos domingos, o rei manda apurar quando coincidirá o seu
aniversário, dois de outubro, num domingo. A coincidência se dará dentro de dois anos, em
1730. D. João ordena que se faça a sagração neste dia e ano; para tal, convoca o arquiteto de
Mafra, o alemão João Frederico Ludovice, ordena-lhe o apressar das obras, e manda reunir
centenas de novos operários a serem enviados à Mafra, mesmo contra a vontade deles, pois a
vontade de um rei é a vontade divina.
Em outro momento dos Cadernos, Saramago nos falará, bem consciente, de sua
produção literária, de seu discurso intertextual, cujo objetivo é a procura de modos e formas
[...] de tornar essa intertextualidade geral literariamente produtiva, se me
posso exprimir assim, usá-la como uma personagem mais, encarregada de
estabelecer e mostrar nexos, relações, associações entre tudo e tudo.
(Saramago:1997, 610).
No romance A Jangada de pedra, o narrador Saramago irá refletir sobre o início e fim
de tudo,
Pensando bem, não há princípio para as coisas e para as pessoas, tudo o que
um dia começou tinha começado antes, a história desta folha de papel,
tomemos o exemplo mais próximo das mãos, para ser verdadeira e completa,
teria de ir remontando até os princípios do mundo, de propósito se usou o
plural em vez do singular, e ainda assim duvidemos, que esses princípios não
foram, somente pontos de passagem, rampas de escorregameno, pobre
cabeça a nossa, sujeita a tais puxões, admirável cabeça, apesar de tudo, que
por todas as razões é capaz de enlouquecer, menos por essa.
(Saramago:1998a, 47).
Quanto ao final de tudo, ele se assemelha àquela fenda do Irati na Jangada, cujo princípio
pode ser visto por todos sem que se lhe conheça o fim, é como a vida. No mesmo romance,
após a morte da personagem Pedro Orce, o narrador intervém e clama:
[...] meu Deus, meu Deus, como todas as coisas deste mundo estão entre si
ligadas, e nós a julgarmos que cortamos ou atamos quando queremos, por
nossa única vontade, esse é o maior dos erros, e tantas lições nos têm sido
dadas em contrário, um risco no chão, um bando de estorninhos, uma pedra
atirada ao mar, um pé-de-meia de lã azul, se a cegos mostramos, se a gente
endurecida e surda pregoamos. (ibid., 315).
A par disso, Saramago apropria-se de tal prerrogativa da criação heteronímica, promovendo
assim uma narrativa funesta sobre um término já antecipado no próprio título da obra. E se
por ventura já nos é desvendado o desfecho do romance, resta-nos enfim (e enfim!) o
privilégio de constatarmos a construção laboriosa de uma obra ficcional tão minuciosa em
detalhes quanto a mais perfeita máquina do mundo camoniana. Ensimesmada em si mesma a
literatura já não é a escrita duma aventura, pois deseja espelhar-se a si mesma em lugar de
espelhar o real. Tal romance assemelha-se ainda, na construção e na montagem, ao clássico
filme de Orson Welles, Citizen Kane, cujas cenas foram pensadas à exaustão pelo criador. E
se por acaso houver algum excesso em tais obras, é simplesmente porque o lance de dados
não conseguiu, mesmo após várias tentativas, abolir o acaso. A Obra saramaguiana possui
dobradiças e costuras que realizam a unidade harmônica dos acordes/acordos entre os seus
instáveis e inevitáveis procedimentos literários.
4. O Autor-Pessoa
FP é a personalidade mais importante do modernismo português, cuja obra apreendeu
as inquietações e ansiedades despercebidas pelos seus contemporâneos. Na sua obra
desagregam-se as antigas certezas de um velho mundo, opondo-se assim, à metafísica
sentimentalista romântica, pois nela (a obra) e nele (o poeta), o que sente está pensando. Cada
heterônimo pessoano corresponde ao ciclo de uma atitude de aparência implausível, cuja
experimentação é levada às últimas consequências. Efetua-se, desse modo, a apreensão de um
organismo complexo, onde um conjunto de vivências e intuições estão em pleno conflito
interno, numa dialética da sinceridade/fingimento pessoana afastada de qualquer convicção,
pois a sinceridade, em Pessoa, reduz-se ao imponderável do fingimento.
No discurso proferido na cerimônia do prêmio Nobel de 1998, Saramago nos conta
como se fez o romance da morte.
De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus
livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava
a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da sua vida de trabalho: o
de serralheiro mecânico. Teve também bons mestres de arte poética nas
longas horas nocturnas que passou em bibliotecas públicas, lendo ao acaso
de encontros e de catálogos, sem orientação, sem alguém que o aconselhasse
com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar
que descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte
de Ricardo Reis começou a ser escrito... Ali encontrou um dia o jovem
aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista, Atena era o título,
em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão
mau conhecedor da cartografia literária do seu país pensou que existia em
Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito
tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal
Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas
inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra
que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao
aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos
poemas de Ricardo Reis, mas não podia resignar-se, apesar de tão novo e
ignorante, que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso
este verso cruel, Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo.
Muito, muito tempo depois, o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco
mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance
para mostrar ao poeta das Odes alguma coisa do que era o espectáculo do
mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias:
a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a
República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas
portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: ―Eis o espectáculo do mundo,
meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Disfruta, goza,
contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria...‖
O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras
melancólicas, Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera. Portanto, não
haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como destino uma espera
infinita de futuros nem aos menos inimagináveis: só o fado do costume, a
saudade de sempre, e pouco mais...
Nos Cadernos, Saramago nos dará um retrato de Pessoa, um homem que sabia
idiomas e que era poeta. Saramago chamar-lhe-á, ironicamente, de Pessoas, e conta que um
dia, este passou diante de um espelho e percebeu outra pessoa refletida. Ao dar um passo
atrás, viu outro homem a olhar para si, dentro do espelho.
Era até um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar para o moreno, toda ela
rapada. Num movimento inconsciente, Fernando levou a mão ao lábio
superior, depois respirou com infantil alívio, o bigode estava lá. Muita coisa
se pode esperar de figuras que apareçam nos espelhos, menos que falem. E
como estes, Fernando e a imagem que não era sua, não iriam ficar ali
eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: ―Chamo-me Ricardo Reis.‖
O outro sorriu, assentiu com a cabeça e desapareceu. Durante um momento,
o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um
homem magro, pálido, com aspecto de quem não vai ter muita vida para
gozar. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porém
não fez qualquer comentário, só disse: ―Chamo-me Alberto Caeiro.‖ O outro
não sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora.
Fernando Pessoa deixou-se ficar à espera, sempre tinha ouvido dizer que não
há dois sem três. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem do
tipo daqueles que têm saúde para dar e vender, com o ar inconfundível de
engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: ―Chamo-me Álvaro de
Campos‖, mas desta vez não esperou que a imagem desaparecesse do
espelho, afastou-se ele, provavelmente cansado de ter sido tantos em tão
pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando Pessoa acordou a
pensar se o tal Álvaro de Campos teria ficado no espelho. Levantou-se, e o
que estava lá era a sua própria cara. Disse então: ―Chamo-me Bernardo
Soares‖, e voltou para a cama. (Saramago:1997, 642-643).
Depois desses encontros, FP resolveu escrever as tão famosas ridículas cartas de amor,
e já avançado em suas poesias, decidiu morrer na flor da idade. Na hora da morte pedirá os
seus óculos, e essas serão suas últimas palavras; contudo, sua vontade será desprezada.
Saramago aproveita para conjeturar sobre o pedido último. A intenção de Pessoa era olhar-se
num espelho para saber quem estava finalmente lá. Assim, Pessoa nunca soube quem
verdadeiramente era, e por isso, segundo o brincalhão Saramago, somos nós que vamos
sabendo um pouco mais de nós mesmos.
O duo Saramago-Pessoa, em diálogo com Luiz Vaz de Camões e sob o signo de
Borges (escritor labiríntico por natureza), monta suas obras como a montagem de uma Obra,
em que dois níveis da existência se unem na obra tornada obra. Estendendo o comentário de
Calvino a respeito do escritor argentino, podemos perceber que reconhecemos no duo
português aquela ideia da literatura como um mundo construído e governado pelo intelecto.
Destarte, o leitor assiste à escrita de uma escritura onde a ação estende-se, distende-se e se
auto-abarca, oferecendo ao leitor uma obra para além de uma obra. A personagem inventada
transforma-se em alguém com uma vida própria duradoura, detentora de uma
permanência/estabilidade oriunda de um específico texto imutável.
A par disso, Saramago apodera-se do mundo através do romance e da sua linguagem,
cujo processo reduz ao verbal um pequeno fragmento da realidade, ou nas palavras de Julio
Cortázar, o romance é um empreendimento de conquista verbal da realidade. O homem,
assombrado pelo que o envolve e o prolonga, começa a nomear o que enxerga, pois nomear é
apreender, e nisso, a literatura expande o homem numa lúcida consciência de que só o homem
é importante como tema de exploração e conquista por meio do romance, que é o instrumento
para que haja a posse do homem enquanto pessoa, daquele que vive e sente-se viver. Como
proposta, o romance entregou em nossas mãos o homem com suas respectivas ações, em sua
cidade de concreto com suas consequências. O romance assemelha-se assim, àquela coisa
impura, àquele animal assustador de uma nova beleza, de patas e olhos numerosíssimos onde
tudo vale, se aproveita e se confundem na infinita variedade de intenções e temas de inúmeros
outros romances, como a abolir falsas fronteiras de categorias retóricas. Dessa forma, a
inquietação do romance moderno aprofunda a destruição dessas fronteiras, inclusive a
concepção da literatura como recriação da realidade, escolhendo certo modo de ação
secundária, como nos diria o filósofo francês Jean-Paul Sartre.
O pós-modernismo literário pode ser entendido a partir da definição de fusão
deliberada da ideia de integridade genérica. A literatura pós-moderna possui a perspectiva da
quebra, da ruptura, cuja consequente desestruturação é uma consistente qualidade em que
ocorre uma radical decomposição dos princípios norteadores da literatura, que aprofunda as
questões sobre autor, leitor, escrita, crítica. O princípio da ironia é que vai dar uma
interpretação mais coerente com essa desordem desejada. A ironia pós-moderna é a
intensificação da consciência da incoerência, e na ficção, acentua-se a prevalência da
metaficção paródica com sua consequente exploração dos próprios textos de sua qualidade de
ficções. A autoreflexividade pós-moderna é uma característica à feição de As mil e uma
noites, cuja Scherazade possui a capacidade de criar mundos puros e autônomos com caráter
ontológico de questionamento do ser e da existência.
5. O Estatuto do Autor
A nossa reflexão a respeito do estatuto do autor, passa pela reflexão de Michel
Foucault, para o qual, o autor é uma função, um elemento, um lugar de unidade em que as
possíveis contradições entre discursos distintos são anulados, nesta espécie de foco de
expressão que é o autor, manifestado sob formas mais ou menos acabadas na própria obra.
Nos Cadernos, Saramago vê dessa forma sua posição de autor:
Um livro aparece a público com o nome da pessoa que o escreveu, mas essa
pessoa, o autor que assina o livro, é, e não poderia deixar nunca de ser, a par
duma personalidade e duma originalidade que o distinguem dos mais, o
lugar organizador de complexíssimas inter-relações linguísticas, históricas,
culturais, ideológicas, quer das que são suas contemporâneas quer das que o
precederam, umas e outras conjugando-se, harmónica ou conflitivamente,
para nele definir o que chamarei uma pertença. (Saramago:1997, 61).
Na Jangada, Saramago refletirá sobre o difícil ato de escrever,
[...] responsabilidade das maiores, basta pensar no extenuante trabalho que
será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois
aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje
posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias,
o passado como se tivesse sido agora, o presente como um contínuo sem
princípio nem fim, mas, por muito que se esforcem os autores, uma
habilidade não podem cometer, pôr por escrito, no mesmo tempo, dois casos
no mesmo tempo acontecidos.
[...]
a importância relativa dos assuntos é variável, ele é o ponto de vista, ele é o
humor do momento, ele é a simpatia pessoal, a objectividade do narrador é
uma invenção moderna, basta ver que nem Deus Nosso Senhor a quis no seu
Livro. (Saramago:1998a, 12 e 204).
N‘A morte do autor, clássico texto de Roland Barthes, somos alertados sobre o erro de
se buscar a origem do sentido da obra, no autor. O neutro da escritura se instala quando o
autor adentra em sua própria morte, estando perdida assim, a voz de toda origem. Não
havendo senão o tempo da enunciação, do hic et nunc, traça-se um campo sem origem que
questiona constantemente toda e qualquer origem, pois que só há uma legitimamente
configurada, a origem da própria língua. É a linguagem que age e performa, e o autor não é
senão aquele que escreve, ou dito de outra forma, é aquele que mescla as escrituras de um
texto como um tecido de citações oriundas de variegados e contraditórios focos de cultura. A
concepção barthesiana de escritura se dá a partir da produção confundida com a recepção de
outros textos, que nem sempre tem origem determinada, pois um texto é um tecido de
múltiplas escrituras que se originam de diversas culturas em diálogo, em paródia, em
contradição. Entretanto, é no autor, e principalmente no leitor que esta pletora de origens se
reúne.
O centramento na figura do autor e a sua morte, relacionam-se à prevalência e crise do
pensamento humanista. O homem que escreve não coincide com a voz de um texto, que é o
narrador, ou o autor-modelo, que não é uma pessoa, mas algo coincidente com a duração do
texto, podendo atender sob o nome de estilo, deslegitimando o tempo da escritura que se
dissipa assim, numa temporalidade difusa, em que o texto torna-se um território livre, passível
de ser preenchido pela competência interpretativa do leitor que libera o texto do corpo que o
escreveu, numa espécie de neutralização do corpo do autor.
Ora, a obra possui uma anterioridade, uma conexão com o mundo circundante, ou seja,
ela possui uma historicidade enquanto obra literária que é construída a partir de convenções
que são internalizadas e compartilhadas através da interação social, onde o romance (a obra) é
uma produção material que resulta da ação humana socializada que, a partir das regulações
sociais, possibilita a emergência de determinadas obras.
Desse modo, a fonte, a voz e a origem do texto estão localizadas no leitor e na sua
leitura, pois, ao ouvir cada palavra em sua duplicidade, ao escutar a própria surdez das
personagens, o leitor desvenda o ser total da escritura, ele mesmo. O leitor, como homem sem
história, sem biografia, sem psicologia, é esse alguém do qual nos fala Barthes, onde os traços
constituintes do escrito mantêm-se reunidos em um campo único. Por conseguinte, o leitor é o
espaço literário onde são inscritas todas as citações que constituem uma escritura, cuja
unidade está em seu destinatário, o próprio leitor. Com a morte do Autor, das cinzas nasce o
Leitor; ou como nos diz Calvino, quem comanda a narrativa é o ouvido, não a voz.
6. Algumas considerações sobre arte
No relacionamento entre a coisa (realidade) e a sua imagem (obra de arte), só pode
existir a semelhança, compreendida como a produção dessa imagem, cuja alegoria do ser
oferece-nos a ambiguidade de um comércio com a realidade onde esta não se refere a ela
mesma, mas à sua sombra. A arte realiza assim, essa alegoria da sombra ao apropriar-se da
imagem, que junto com a verdade, são as duas possibilidades contemporâneas do Ser, cujo
desvelamento em sua verdade é a sua própria imagem. A semelhança – situada a partir da
noção de sombra da realidade – é a própria estrutura do sensível enquanto tal. Por
conseguinte, as personagens do romance são como seres encarcerados, prisioneiros na sua
história que jamais termina, pois o romance encerra esses seres-personagens num destino –
apesar da sua liberdade – onde os acontecimentos narrados formam uma situação,
aparentando-se com um ideal plástico, em que o mito (o protagonista) é a plasticidade de uma
história. O tempo próprio da obra de arte é o entre-tempo, ou seja, a imobilidade da imagem
na eterna duração do instante-intervalo por ela realizado, esfera onde o ser tem a capacidade
de atravessar, apesar da imobilidade de sua sombra.
O poeta RR de Saramago irá refletir especificamente a respeito de duas artes, literatura
e cinema:
São plurais estas femininas artes, excedem, multiplicando, as outras, já
mencionadas, de endurecer, desenvolver e reduzir, se não seria mais rigoroso
dizer que todas se resumem limiarmente nestas, tanto nos seus sentidos
literais como nas decorrências e concorrências, incluindo os arrojos e
exageros da metáfora, as libertinagens da associação de ideias.
(Saramago:1998, 243).
Dessa forma, sem querermos generalizar essas considerações intempestivas sobre a
arte ou o fazer artístico, poderemos pensá-la, então, a partir de uma iluminação crítica extraída
do puro jogo estético, como uma estratégia de sabotagem do refúgio idílico numa região de
quimeras. Logo, sem nos indenizar pela vida, ela nos clareia a experiência situando-nos numa
atitude crítica que reflete a particularidade da consciência humana de avivar-se diante
situações difíceis. Em suma, a literatura é uma maneira de pensar e de viver, jamais uma
função que promova determinados interesses. Assim, na pós-modernidade vivenciamos o
homem num espaço/tempo de indeterminações consigo mesmo.
7. A Autorreferencialidade na d(obra) deleuzeana
Já num processo de autorreferencialidade – em que o autor efetua a referência
intertextual entre as suas próprias criações –, ao aludir na Jangada, ao romance em questão,
Saramago trama os fios da sua obra com uma destreza de especialista. A população ribeirinha
deste romance ficou aterrorizada com o movimento das terras ibéricas e resolveu fugir,
deixando as cidades desertas, sem uma alma viva,
As mortas, porque tinham morrido, deixaram-se ficar, com aquela inabalável
indiferença que as distingue da restante humanidade, se alguma vez alguém
disse o contrário, que Fernando visitou Ricardo, estando um morto e outro
vivo, foi imaginação insensata e nada mais. (Saramago:1998a, 28).
A tessitura autorreferencial torna-se ainda mais cheia de meandros, pois ao consultar o
livro dos hóspedes no Hotel Bragança, não passou despercebido a um jornalista, que
procurava por Joaquim Sassa e Pedro Orce, algumas coincidências:
Ora, neste preciso momento, o arguto jornalista consulta o livro dos
hóspedes, lê os nomes nele registados, e eis que dois deles lhe movem
subtilmente as engrenagens da memória, Joaquim Sassa, Pedro Orce, não
seria ele um bom profissional de comunicação se lhe tivesse passado
despercebidos, o mesmo talvez lhe acontecesse com outro nome, Ricardo
Reis, mas o livro onde este foi registrado um dia, já lá vão tantos anos, está
no arquivo do sótão, coberto de pó, numa página que provavelmente nunca
verá a luz do dia, e se a vir talvez que o nome não possa ler-se, por estar em
branco a linha, ou branca a página toda, esse é um dos efeitos do tempo,
apagar. (ibid., 105).
Esse hotel fica no início da Rua do Alecrim, e ficamos sabendo então tratar-se do mesmo
hotel em que quase se hospedou a personagem Jacinto do romance A cidade e as serras, de
Eça de Queirós. Durante as suas primeiras andanças pela Lisboa revisitada, RR observa a
estátua de Eça e pensa que apesar de falarem a mesma língua, Reis é um, Eça é o outro, e que
com certeza é a língua quem vai escolhendo os escritores de que precisa, servindo-se deles
para os seus propósitos.
A tapeçaria verbal de Saramago orquestra, no romance História do cerco de Lisboa,
um nó que medita a respeito das relações entre história e ficção. Ao narrar o ato gratuito do
revisor Raimundo Silva que insere num texto uma palavra que falsifica a verdade histórica,
Saramago fabula sobre a conhecida história do cerco. Na mesma narrativa, o autor faz a
crônica do amor tardio do revisor pela editora-chefe Maria Sara. No primeiro encontro,
Raimundo e Maria conversam sobre as novas regras a serem cumpridas pelo revisor. Ao
conjeturar sobre a postura exigida pela editora, Raimundo Silva está em silêncio, Maria Sara
está sentada em posição de levantar-se; neste momento, o narrador fabula sobre a despedida
dos dois, e dá-nos uma conexão com o romance O ano da morte e a obra de James Joyce O
retrato do artista quando jovem. A conexão é a seguinte, ao querer finalizar a conversa, a
editora-chefe estaria prestes a
[...] pronunciar as últimas palavras, as tais a que não se acostuma dar
atenção, essas fórmulas de despedida a que a repetição e o hábito
desgastaram o sentido, comentário, aliás, também ele repetente, introduzido
aqui como um eco de outro, feito em diferente tempo e lugar e que portanto
não merece desenvolvimento, vide Retrato do Poeta no Ano de sua Morte.
(Saramago:1989,107).
Este nó é ainda mais entretecido na obra saramaguiana com o livro de poesia Os Amores
Possíveis, pois encontramos o poema Retrato do Poeta Quando Jovem.
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que desprezam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brandas se afastam para o lado
Com rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto,
Que conta do retrato a velha história.
Maria Alzira Seixo se exprime assim sobre este poema:
Se o amor se aproxima, na arte poética de Saramago, dessa fulgurância
mágica que determina o encontro da palavra, o mar é elemento fundamental
da paisagem, formulação delineada do mundo que é uma das constantes da
obra. Essa paisagem aparece já exemplarmente no poema da primeira parte,
Retrato do poeta quando jovem, com as suas componentes regulares de luz,
água, imperceptível movimento ou fluxo indizível do tempo (o nascer do sol,
um rio, um bater de remos); na relação com o amor e o mar, a sensibilidade
musical (ou talvez melhor: rítmica) de Saramago resolve a oposição
paronímica de um inefável expressivo, de uma impossibilidade de dizer tudo
(e tudo melhor) diz e que vai coincidir com outro motivo central da sua
poética: o silêncio. (Seixo:1987, 8-10).
Na Jangada, novamente Saramago usará deste recurso de tapeceiro, RR aparecerá em
sua proposta de vida:
Mas aproveitam, diriam, como aconselhou o poeta, Carpe Diem, o mérito
destas velhas citações latinas está em conterem um mundo de significações
segundas e terceiras, sem contar com as latentes e indefinidas, que quando a
gente vai a traduzir, Goza a vida, por exemplo, fica uma coisinha frouxa,
insossa, que não merece sequer o esforço de a tentarmos. Por isso insistimos
em dizer, Carpe Diem, e sentimo-nos como deuses que tivessem decidido
não ser eternos para poderem, no exacto sentido da expressão, aproveitar o
tempo. (Saramago:1998a, 227).
Temos assim, o escritor aprofundando sua lâmina dourada, adiando o final de suas obras que
se desejam abertas e autorreferenciais.
Caminhando no labirinto saramaguiano encontramo-nos com o Memorial, que de
início nos é apresentado através de D. João V, ―[...] tão renomado monarca, rei pedreiro e
arquicteto por excelência, haja vista o convento de Mafra, e outrossim o aqueduto das Águas
Livres, cuja verdadeira história ainda está por contar‖ (Saramago:1998, 62). Quase no final
do romance da morte ocorrerá, na cidade de Lisboa, um simulacro de bombardeio aéreo na
Baixa, ao qual irá assistir Reis. Lá chegando, ele lembra-se do que ocorrera no Brasil, os
bombardeamentos da Urca e da Praia Vermelha.
Não sabe por que lhe veio à ideia a passarola do padre Bartolomeu de
Gusmão, primeiro não soube, mas depois, tendo reflectido e procurado,
admitiu que por sub-racional associação de ideias tivesse passado deste
exercício de hoje para os bombardeamentos da Praia Vermelha e da Urca,
deles, por tudo ser brasileiro, para o padre voador, finalmente chegando à
passarola que o imortalizou, cuja não voou nunca, mesmo que alguém tenha
dito ou venha a dizer o contrário. (ibid., 339).
Ao refletir sobre o nome de Marcenda, surge outra personagem do Memorial, Blimunda,
nome feminino de raça gerúndia que também aguarda o seu uso.
Outras pistas autorreferenciais serão encontradas no romance Levantado do Chão,
quando a personagem João Mau-Tempo, após passar seis meses preso em Caxias, encontra
um homem nas ruas de Monte Lavre que o ajuda e o acolhe em sua casa. Este homem é um
outro RR ficcionalizado por Saramago, ele
[...] leva um saco às costas [e] merece os louvores, mesmo não sendo pessoa
de igrejas, não que ele o tivesse dito, são coisas sabidas do narrador, além de
outras que não vêm ao caso, pois esta história é de latifúndio e não de
cidade. (Saramago: 1999a, 264).
Percebemos assim que, para Saramago, podem existir tantos RR quantos forem necessários,
ou capazes de serem criados pela imaginação. Este Reis é mais velho que João Mau-Tempo,
mais forte e lépido. Mora em Alfama e convida o conhecido para dormir em sua morada, uma
água-furtada. Os dois enfiam-se por vielas úmidas e escarpadas até chegarem ao local.
[...] Boa noite, Ermelinda, este senhor dorme cá em casa esta noite, amanhã
vai para a terra e não tem onde ficar, e a Ermelida é uma gorda mulher que
abre a porta como se estivesse abrindo os braços, Entre, e João Mau-Tempo,
perdoem-lhe os melindrosos e os que só cuidam e estimam grandes lances
dramáticos, a primeira sensação que tem é a do cheiro da comida, [...] e o
homem diz-lhe, Ponha-se à vontade, e logo a seguir, como é que se chama, e
João Mau-Tempo já está sentado, entra-lhe no corpo uma fadiga repentina,
mas diz o nome, e o outro retribui, Eu chamo-me Ricardo Reis e minha
mulher é Ermelinda, são nomes de pessoas, é o que sabemos delas, pouco
mais [...] Coma à sua vontade, já o frio vai diminuindo, terra afinal branda de
Lisboa, esta janela das traseiras dá para o rio, há umas luzinhas de barcos, na
outra banda raras são, quem diria que, um dia, vistas daqui serão uma festa
[...] (Saramago:1999a, 264).
Este romance, de 1979, antecipa um outro que só será lançado em 1984. Nele veremos que
luzes, que barcos, que festa será esta que se anuncia.
Um antepassado desta família aparecerá no Memorial, será um dos tantos construtores
do convento de Mafra. O seu nome
[...] é Julião Mau-Tempo, sou natural do Alentejo e vim trabalhar para Mafra
por causa das grandes fomes de que padece a minha província, nem sei como
resta gente viva [...] eu se vim para Mafra foi porque o vigário da minha
freguesia apregoava nas igrejas que quem viesse passava a ser criado de elrei, não bem criado, mas como se o fosse, e que os criados de el-rei, isto
dizia ele, não sofre privações de boca e andam com as carnes tapadas [...]
nenhum dos meus filhos tem os olhos azuis, mas tenho certeza de que são
todos meus filhos, isto dos olhos azuis é coisa que aparece de vez em quando
na família, já a mãe da minha mãe tinha os olhos desta cor [...]
(Saramago:1999b, 226-227).
No universo da poética do labirinto, estudada nesta dissertação, sinalizaremos um
percurso a partir da poética literária que objetiva o estudo da transtextualidade, ou seja, aquilo
que põe um texto em relação com outro texto, onde a intertextualidade é um dos seus vários
tipos, e constitui-se pela relação de co-presença entre dois ou mais textos. Saramago efetua,
além da intertextualidade com textos de outros autores, um processo de intertextualidade entre
os seus próprios textos, citando-se a si próprio, espalhando por suas obras, citações que, de tão
breves, tornam-se em mera referência, transformando-se então, em alusão, que é menos clara
e exige a competência do leitor. A esse procedimento tipicamente saramaguiano daremos o
nome de autorreferencialidade alusiva; procedimento esse em que o autor espelha a sua
própria criação, caindo numa espécie muito particular de mise en abyme.
A narrativa em Saramago perfaz, conforme estudo de Gilles Deleuze sobre o barroco e
Leibniz, uma dobra sobre si mesma, descortinando uma multiplicidade de dobraduras, uma
variedade de modos de dobrar a obra, levando-a ao labirinto infinito da dobra sobre dobra,
numa ausência de centro em que os pontos de vista se multiplicam no pensamento que é posto
em movimento por sínteses disjuntivas, pois somos forçados a manter-nos diante da
disjunção, por não termos mais à nossa disposição a potência reconciliadora e unificadora dos
princípios, onde tudo diverge na dessemelhança e no desencontro. Assim, narrar é dobrar,
duplicando o fora com um dentro que lhe é coextensivo na busca de um perpétuo
reencadeamento que aproxime o sujeito de um Uno, pois ―Dobrar-desdobrar já não significa
simplesmente tender-distender, contrair-dilatar, mas envolver-desenvolver, involuir-evoluir‖
(Deleuze:1991, 21). Processo em que o organismo, a obra, irá definir-se pela capacidade de
fazer a dobra das suas próprias partes ao infinito, e de fazer a desdobra até o grau de
desenvolvimento inerente à sua espécie. Enfim, poderemos notar que a noção de obras dentro
da Obra geralmente está ligada à problemática de uma investigação, uma vigilância daquele
afrouxamento primeiro, em que se tenta evitar justamente a dissolução desta Obra; é
igualmente, a estratégia do invólucro e do envolvido em que nenhuma das partes é
completamente nova, onde a questão agora é a repetição, e não a inovação radical.
O nosso protocolo de leitura da des(d)obra, a partir da conceituação do par Deleubniz,
não poderá ser considerada uma apropriação indevida, pois o próprio Deleuze, no final de seu
livro, abre-nos novas prerrogativas. Diz ele, em suas últimas palavras:
A música continua sendo a casa, mas o que mudou foi a organização da casa
e sua natureza. Permanecemos leibnizianos, embora já não sejam os
acordos/acordes os que expressam nosso mundo ou nosso texto.
Descobrimos novas maneiras de dobrar, assim como novos envoltórios, mas
permanecemos leibnizianos, porque se trata sempre de dobrar, desdobrar,
redobrar. (ibid., 208).
Sendo assim, ao descobrirmos novas maneiras de des(d)obrar o discurso deleuziano, a
construção da Obra do autor Saramago não pode ser entrevista como um contínuo, uma linha
reta, a não ser que estejamos a pensar, como Deleuze, numa definição leibniziana da
matemática barroca, onde o contínuo é um labirinto que não deve ter a representação de uma
linha reta, mas deve a reta estar sempre entremeada de curvaturas, donde o barroco.
Como elemento deste labirinto, temos o arco de círculo que é análogo a um ramo de
inflexão, fazendo ―[...] do número irracional um ponto-dobra no encontro da curva e da reta‖
(ibid., 34). Enfim, sempre haverá, na des(d)obra saramaguiana, uma inflexão que fará da
variação uma dobra de variações infinitas. Contudo, a causa final da dobra é a inclusão, em
que a razão da dobra é o envoltório, pois o dobrado só existe naquilo que o envolve, ou seja, a
alma, o sujeito com os seus pontos de vista e a sua relação com o mundo.
Se a obra termina, o espírito é infinito, e tanto Saramago, quanto Blanchot e o par
Deleubniz, pensaram de forma quase similar a este respeito. Vejamos como os pensamentos
se entrelaçam. Blanchot diz que
O infinito da obra, numa tal perspectiva, é tão-só o infinito do próprio
espírito. O espírito quer realizar-se numa única obra, em vez de realizar-se
no infinito das obras e no movimento da história. [...] Aquele que vive na
dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à solidão
do que só a palavra ser exprime: palavra que a linguagem abriga
dissimulando-a ou faz aparecer quando se oculta no vazio silencioso da obra.
A obra é solitária [...] quem a lê entra nessa afirmação da solidão da obra, tal
como aquele que a escreve pertence ao risco dessa solidão. (Blanchot:1987,
12).
Já Deleuze, ao definir as seis características estéticas do Barroco (A dobra, O interior e o
exterior, O alto e o baixo, A desdobra, As texturas, O paradigma), dá-nos a dobra como a
primeira delas, dizendo que ―O Barroco inventa a obra infinita ou a operação infinita‖
(Deleuze:1991, 58). Ora, só o espírito poderá dar conta desta operação. Por fim, Saramago, ao
refletir no romance-labirinto a respeito da morte de Pessoa, diz que
[...] lastimamos o homem, que a morte nos rouba, e com ele a perda do
prodígio do seu convívio e da graça da sua presença humana, somente o
homem, é duro dizê-lo, pois que ao seu espírito e seu poder criador, a esses
deu-lhes o destino uma estranha formosura, que não morre, o resto é com
génio de Fernando Pessoa. (Saramago:1998, 37).
Saramago tecerá sua obra com nós muito bem apertados. Há um cão, ou um nome de
cão que agenciará esta postura, será o nome do cão Constante, o constante animal de
estimação de várias personagens, de vários romances saramaguianos. Ele será o cão de
Sigismundo Canastro no Levantado:
[...] Há muitos anos, andava eu à caça, deu-se um caso, [...] este caso passouse ali para as bandas da Guarita do Godeal, levanta-se de repente uma perdiz
maltesa e ela aí vai como um raio, meto a arma à cara, ela descai o voo
quando eu ia mesmo a disparar, o certo é que não lhe toquei nem com um
bago de chumbo, [...] mas o Constante, era esse o nome do animal, corre na
direcção da perdiz, [...] foi o caso que se me sumiu o cão, e por mais que eu
chamasse Constante, Constante, e assobiasse, não apareceu, [...] Passados
dois anos calhou ir para aqueles lados e dei com um grande bocado de mato
limpo, tinham andado ali a desmoitar, [...] e então veio-me à lembrança o
sucedido, meti-me pelo meio das pedras, [...] e de repente que é que eu vejo,
o esqueleto do meu cão ali de pé a marrar o esqueleto da perdiz, e estavam
naquilo há dois anos, cada qual em sua firmeza, parece que o estou a ver, o
meu cão Constante, com focinho esticado, a pata levantada, não houve vento
que o deitasse abaixo nem chuva que lhe soltasse os ossos.
(Saramago:1999a, 227-229).
O cão das personagens na Jangada; José Anaiço propõe o nome
[...] de Constante, tinha lembrança de haver lido esse nome num livro
qualquer, Agora não me lembro, mas Constante, se entendo bem a palavra,
contém todas as que foram sugeridas, Fiel, Piloto, Fronteiro, Combatente, e
até Anjo-da-Guarda, porque se nenhum destes for constante perde-se a
fidelidade, desorienta-se o piloto, o fronteiro abandona o posto, o
combatente entrega as armas, e o anjo-da-guarda deixa-se seduzir pela
menina a quem devia defender das tentações. (Saramago:1998a, 254).
O cão já morto do oleiro Cipriano Algor n‘A Caverna.
Cipriano Algor agarrou no prato e já tinha um pé fora da cozinha quando a
filha lhe perguntou, Lembra-se do que a mãe disse quando o Constante
morreu, que nunca mais queria cães em casa, Lembro-me, sim, mas sou
capaz de jurar que se ela estivesse viva não seria o teu pai quem estaria a
levar este prato ao tal cão que ela não queria, respondeu Cipriano Algor, e
saiu sem ter ouvido o murmúrio da filha, Talvez não esteja fora de razão.
(Saramago:2000, 49).
O novo cão deste oleiro chama-se Achado.
Nesta espécie de dobra da escritura autorreferencial alusiva, fica-nos demonstrado
que, para o autor, as suas convicções com respeito à vida e à literatura são sólidas e
fundamentadas, sem restringir-se a um único volume. Para o autor Saramago parece haver
uma responsabilidade para com os leitores, pois todo autor sempre escreve para todos os
leitores ou para ninguém, e se por acaso escreve para que este ou aquele o leia, este autor não
merece ser lido. No Capítulo II, item 4, desta dissertação, veremos mais alguns exemplos
desse processo de autorreferencialidade agenciado por Saramago.
8. O Mito do Labirinto
Romance extremamente complexo, O ano da morte efetua a revisitação do mito do
labirinto que está associado à ideia da caverna e da mandala, e ao que parece, eles foram reais
em Creta, onde foram descobertas cavernas profundas artificialmente construídas para fins
iniciáticos. Ao que parece, o próprio palácio de Cnossos era um labyrinthos (construção
sinuosa). Segundo Junito Brandão, o labirinto seria, para efeitos religiosos, o útero; Teseu, o
feto; o fio de Ariadne, o cordão umbilical. Ao culto envolvendo o mito do labirinto deve-se
associar o jogo e a morte, com suas célebres touradas sagradas nas quais o animal não era
sacrificado, e onde a vida no além se assemelhava à deste mundo.
Poseidon obsequiou a Minos um touro esplêndido e belo em sacrifício por suas
dádivas; no entanto, Minos ficou encantado com a beleza do animal e não o oferendou ao
deus que se vingou fazendo com que a esposa do rei, Pasifae, se enamorasse do touro. A
rainha concebeu um ser monstruoso, metade homem, metade touro, o Minotauro. A pedido de
Minos, o arquiteto Dédalo construiu o célebre labirinto de Cnossos,
[...] com um emaranhado tal de quartos, salas e corredores, que somente
Dédalo seria capaz, lá entrando, de encontrar o caminho de volta. Pois bem,
foi nesse labirinto que Minos colocou o horrendo Minotauro, que era, por
sinal, alimentado com carne humana. (Brandão:1998, 63).
Com a prolongada guerra entre Creta e Atenas, e uma peste assolando os cretenses, o rei
Minos concordou com a sua retirada desde que de sete em sete anos lhe fossem enviados sete
moças e rapazes a serem lançados no labirinto. O jovem Teseu prontificou-se a pagar o
terrível tributo, e instruído pela apaixonada Ariadne, a conselho de Dédalo, levou um fio
condutor para que pudesse sair vitorioso de tal empreitada.
Existe uma personagem na obra saramaguiana que representa a junção do fio de
Ariadne com o tecer-destecer da Penélope homérica, esposa de Ulisses. Ela é a personagem
Maria Guavaira, da Jangada, que ao subir no sótão da casa em que mora, encontra um antigo
pé-de-meia vazio que servia para guardar as economias. Ela começa então a desfazer a
tessitura do longo fio azul de lã que cai infinitamente sem que o pé-de-meia se desfaça. Este é
mais um dos enigmas da obra saramaguiana, em que
Aos pés da desenredadeira o fio é a montanha que vai crescendo. Maria
Guavaira não se chama Ariadne, com este fio não sairemos do labirinto,
acaso com ele conseguiremos enfim perder-nos. A ponta, onde está.
(Saramago:1998a, 16).
Num outro momento da Jangada, Saramago refletirá que as mesmas mãos que fazem e tecem
são as mesmas que desfazem e destecem. O cão Constante aparecerá pela primeira vez às
personagens do romance com o fio de lã azul a pender da boca, como a avisar sobre a
importância do momento para Joaquim Sassa, que segura o fio e se deixa enredar nas artes do
acaso, ou do destino, que o levará de encontro a Maria Guavaira, sua companheira até o final
do romance. Esta mulher tecerá com o fio azul pulseiras para as personagens da Jangada, e
coleiras para os animais. Porém, ainda é cedo para definirmos uma resposta satisfatória a
todos estes acontecimentos, caminhemos atentos pela Obra de Saramago na esperança de
sairmos vivos do encontro com a morte do poeta.
A ininteligibilidade é a primeira impressão que nos produz o contato com o labirinto,
cuja simbologia engloba o sujeito que o mira sem permitir-lhe de início um resolução
definitiva, ele é inescrutável. No centro do labirinto se joga um drama mortal, uma luta entre
Teseu e Minotauro; este interior é portador de sentidos, é uma zona quase increada, um
espaço onde se transcende a mortalidade. O homem, como puro labirinto de caminhos que se
bifurcam, possui igualmente este centro incorruptível como um lugar de ligação entre os
vários mundos incompossíveis.
O labirinto possui um olho central que ao mesmo tempo encerra um tesouro ao qual
defende, e guarda um perigo do qual nos defende. O seu perímetro tanto pode ser circular,
quanto quadrado. A periferia circular torna indefinível o começo e o fim do labirinto que
carece então de pontos de referência. Tal círculo é o emblema da Eternidade que arrebanha o
todo. A periferia quadrada remete à constituição do mundo, com seus ponto cardeais e
estações do ano, assinalando uma cruz de quatro braços que é a estrutura fundamental das
cidades. Nesta arquitetura existem marcas e pontos de referência que nos possibilitam um
périplo mais seguro, cujo emblema possui a efígie da matéria e do espaço. Resta-nos por fim,
a periferia octógona, mediação entre o quadrado e o dodecágono, cuja construção perfecciona
a quadratura do círculo, um meio caminho entre o quadrado e a circunferência. Este tipo
arquitetural é a enteléquia que nos transpõe do conhecido ao mistério. Apesar de nos
referirmos às variantes estruturais do labirinto, ele é sempre um modelo de caminho único,
unidirecional, em que o périplo é um constante flexionar do sentido em 180º.
O símbolo do labirinto perpassa ainda várias tradições culturais com a analogia de
caminho a ser percorrido pelo homem. No esoterismo temos o Labirinto de Salomão, um
arcano referente unicamente ao centro que possui pretensões iniciáticas. O Caminho de
Jerusalém, cujo centro é a terra santa, é a figura emblemática de uma cidade labiríntica onde
se encontrará a Sion celestial. A Casa de Dédalo é o emblema do espírito engenhoso e
industrioso que define o homem empreendedor. Por último, o Caminho de Santiago é o
emblema daquele que busca a si mesmo, o homem que persegue sua Estrela pelas ruas da Via
Láctea.
Na conferência O pesadelo, do livro Sete Noites, Borges diz ser atormentado por dois
pesadelos que porventura podem se confundir: o pesadelo do labirinto, e o pesadelo do
espelho. Ao ver em um livro francês a gravura em aço das sete maravilhas do mundo,
vislumbrou o labirinto de Creta, um anfiteatro altíssimo de pedra todo fechado, onde, no
entanto, havia frestas. Durante a infância, ele acreditava poder olhar com uma lupa o seu
interior e enxergar o Minotauro no terrível centro. Quanto aos espelhos, Borges diz que basta
dois espelhos opostos para se fazer um labirinto, ou seja, um pesadelo é complementar de
outro. Para ele é terrível que haja espelhos, sempre sentiu pavor dos espelhos, pois há algo de
temível na duplicação da realidade. Do sonho com os espelhos surge a visão das máscaras que
tanto medo deram ao escritor argentino, pois sentia em sua infância que se alguém usava uma
máscara era porque ocultava algo terrível. Ao se ver refletido em um espelho, Borges se via
refletido com uma máscara, tendo medo de retirá-la e ver seu verdadeiro rosto que imaginava
atroz. A máscara é, segundo Mikhail Bakhtin, o motivo mais complexo e carregado de sentido
da cultura popular, cujas alegria de alternância e reencarnação traduz. Na cultura popular a
máscara perfaz a negação da identidade e do sentido único, expressa a violação das fronteiras
em sua transferência e metamorfose. Ao encarnar o princípio de jogo da vida, a máscara
agencia uma inter-relação entre realidade e imagem, na qual a paródia e os processos de interintra-para-textualidade são derivados. O pesadelo e o sonho borgiano são evidentemente uma
ficção, são criações literárias de um escritor que sonha ler um livro que escreve.
Em O livro dos seres imaginários, Borges explica-nos que o culto do touro e da acha
dupla, de nome labrys, era típico das religiões pré-helênicas, que celebravam tauromaquias
sagradas. Já no conto There are more things d‘O livro de areia, a personagem está
atormentada por uma estranha insônia que o faz sonhar com uma gravura ao estilo de Piranesi
que nunca havia visto e que representava o labirinto. Tal arquitetura onírica era um anfiteatro
de pedra, cercado de ciprestes e mais alto que suas copas, sem portas ou janelas, mas com
uma fileira infinita de frestas verticais e estreitas. Esta personagem só consegue ver o
Minotauro com uma lente de aumento, ele era o monstro dos monstros, era mais semelhante a
um bisão e estava estendido na terra como um corpo humano, parecia dormir e sonhar. A
aturdida personagem pergunta-se com o quê ou com quem sonha este monstro, e responde
mais adiante que para se ver uma coisa é preciso compreendê-la, pois a curiosidade pode mais
que o medo. O conto termina desta forma, com a personagem enfrentando seus medos e
sentindo que algo opressivo, lento e plural subia pela rampa.
A revisitação deste mito é engendrada por Saramago como um entrecruzamento de
caminhos, onde alguns não possuem saída e constituem-se em impasses. No enredar desses, é
provável descobrir-se uma rota, uma vereda que conduza ao centro desta esdrúxula teia de
aranha assimétrica e irregular. O labirinto é assim, a metáfora do pensamento e da
complexidade dos caminhos dentro de um romance com uma estrutura múltipla do seu tecido
intertextual. No seu limite, o labirinto agencia-se como um apagamento, uma superfície
radicalmente branca, um deserto.
No conto Abenjacan, o Bokari, morto em seu labirinto, Borges fala-nos de um edifício
majestoso e decrépito, semelhante a uma cavalariça deteriorada. A personagem Dunraven
narra, ao companheiro Unwin, a morte de Abenjacan pelo primo Zaid no aposento central
deste labirinto, que é vigiado por um escravo e um leão. Tal construção é parecida com
[...] uma direita e quase interminável parede, de tijolos sem reboco, pouco
mais alta que um homem. [...] tinha a forma de um círculo, mas tão extensa
era sua área que não se percebia a curvatura. Unwin lembrou-se de Nicolau
de Cusa, para quem toda linha reta é o arco de um círculo infinito. [...] no
interior da casa havia muitas encruzilhadas, mas que, dobrando sempre à
esquerda, chegariam em pouco mais de uma hora ao centro da rede. [...] o
corredor se bifurcou em outros mais estreitos. A casa parecia querer asfixiálos, o teto era muito baixo. [...] Embrutecido de asperezas e de ângulos, fluía
sem fim contra sua mão o invisível muro. (Borges I:2000, 669).
Abenjacan, apelidado por Dunraven de Rei de Babel, é acompanhado por um homem negro
com um leão, pareceu-lhe muito alto, de pele citrina, de entrecerrados olhos. O forasteiro
fixa-se em Pentreath, onde manda construir uma casa de extensão e forma escandalosas, um
espanto, um único aposento com léguas e léguas de corredores, costume entre os mouros.
O reitor de Pentreath conta, no púlpito, a história de um rei castigado pela Divindade
por ter construído um labirinto. Abenjacan conta ao reitor Allaby seus tormentos, pois durante
muitos anos regeu as tribos do deserto com a assistência de seu primo Zaid. Contudo, Deus
permitiu a rebelião destas tribos que dizimaram a sua família. Ele fugiu então com o tesouro e
foi guiado pelo primo ao sepulcro de um santo, no sopé de uma montanha de pedra no
deserto. Os dois dormiram enquanto o escravo vigiava a entrada do deserto. Abenjacan sonha
com a prisão de uma rede de serpentes, ao acordar apercebe-se que era o roçar de uma teia de
aranha em sua carne. Desgostoso com a covardia de Zaid, ele atravessa a garganta do primo
com a sua adaga de empunhadura de prata. Zaid pronuncia algumas palavras ininteligíveis, o
escravo recebe a ordem de desfigurar-lhe o rosto com uma pedrada.
Abenjacan e o escravo navegam por outras terras, quando, ao sonhar com Zaid,
Abenjacan entende-lhe as últimas palavras, que lhe juram apagá-lo onde estiver. A par disso,
ele resolve frustrar a ameaça, ficando oculto no centro de um labirinto que fará perder o
fantasma do primo assassinado.
Allaby pensa ser o labirinto como um claro testemunho simbólico da loucura de
Abenjacan, o extravagante e absurdo edifício condizia com a extravagante narrativa. Porém, o
reitor confirma a veracidade do relato do forasteiro em números atrasados do Times.
Com a conclusão da obra, Abenjacan instala-se no centro do labirinto de cor
carmesim. O escravo vai constantemente ao cais à procura do fantasma do primo de seu amo.
Após três anos chega ao cais de Pentreath o veleiro Rose of Sharon, polido, escuro, silencioso
e veloz. Tomado pela paixão do terror, Abenjacan procura Allaby para dizer-lhe que Zaid
entrara no labirinto e matara o escravo e o leão. Abenjacan sai desesperado da casa do reitor
que dirige-se ao labirinto para comprovar as mortes.
O arquejante relato do Bokari pareceu-lhe fantástico, mas em um
ângulo das galerias deu com o leão, e o leão estava morto, e em outro,
com o escravo, que estava morto, e no aposento central com o Bokari,
a quem haviam destroçado o rosto. Aos pés do homem havia uma arca
marchetada de nácar; alguém forçara a fechadura e não restava uma
única moeda. (ibid., 672).
Os rostos do leão e do escravo também foram destroçados.
Com o ruído da chuva, Unwin pensou que iriam ter de pernoitar no centro do labirinto,
do relato. Ao ser questionado por Dunraven sobre a história do Bokari, Unwin diz-lhe que é
mentira. O outro fica enfurecido, e atônito, Unwin desculpa-se. Na escuridão do labirinto o
tempo parece mais longo, os dois temem pela perda do caminho e estão muito cansados
quando vislumbram uma tênue claridade superior que exibe-lhes o início de uma estreita
escada, ela os leva a um arruinado quarto circular, uma cela carcerária, onde perduram dois
sinais do medo de Abenjacan, uma estreita janela e um alçapão aberto sobre a curva da
escada. Os dois amigos passam a noite no edifício na esperança de viverem para rememorar e
contar. Dunraven, o matemático, dormiu tranquilamente. Unwin, o poeta, fora acossado pelos
detestáveis versos:
Faceless the sultry and overpowering lion,
Faceless the stricken slave, faceless the king.
Ao acordar, este acredita ter decifrado a história da morte de Bokari. Duas noites depois
encontra-se com o amigo numa cervejaria de Londres e relata-lhe o ajuste das peças, pois, se
os fatos eram corretos, o relato de Dunraven era falso.
Começarei pela maior mentira de todas, pelo labirinto inacreditável. Um
fugitivo não se oculta num labirinto. Não ergue um labirinto sobre um alto
lugar da costa, um labirinto carmesim que os marinheiros avistam de longe.
Não precisa erguer um labirinto, quando o universo já o é. Para quem
verdadeiramente quer ocultar-se, Londres é melhor labirinto que um
observatório para o qual se dirigem todos os corredores de um edifício. A
sábia reflexão que agora te submeto foi-me concedida anteontem à noite,
enquanto ouvíamos chover sobre o labirinto e esperávamos que o sono nos
visitasse; advertido e esclarecido por ela, optei por esquecer teus absurdos e
pensar em algo sensato. (ibid., 673).
Dunraven pensa que a solução do mistério, uma prestidigitação, é sempre inferior ao próprio
mistério que participa do sobrenatural, do sagrado. Reflete sobre o Minotauro imaginado por
Dante, corpo de touro, cabeça de homem. Unwin diz-lhe que o importante é a
correspondência entre a casa monstruosa com o habitante monstruoso.
O Minotauro justifica de sobra a existência do labirinto. Ninguém dirá o
mesmo de uma ameaça percebida em um sonho. Evocada a imagem do
Minotauro (evocação fatal num caso em que existe um labirinto), o
problema, virtualmente, estava resolvido. No entanto, confesso não ter
entendido que essa antiga imagem fosse a chave e, assim, foi necessário que
teu relato me oferecesse um símbolo mais preciso: a teia de aranha. (ibid.,
674).
Unwin explica, a um Dunraven perplexo, sobre a forma universal da teia de aranha
platônica que sugeriu o crime ao assassino. Abenjacan sonhara com uma rede de serpentes
que era, na verdade, a referida teia. O relato do poeta, daqui por diante, será outro, contrário
ao do matemático.
Nessa noite dormiu o rei, o valente, e velou Zaid, o covarde. Dormir é
distrair-se do universo, e a distração é difícil para quem sabe que o
perseguem com espadas nuas. Zaid, ávido, inclinou-se sobre o sono de seu
rei. Pensou em matá-lo (quem sabe até brincou com o punhal), mas não se
atreveu. Chamou o escravo, ocultaram parte do tesouro na tumba, fugiram
para Suakin e para a Inglaterra. Não com o fim de ocultar-se do Bokari, mas
para atraí-lo e matá-lo, construiu à vista do mar o alto labirinto de muros
vermelhos. [...] No último corredor da rede esperava o alçapão. [...] O dia
ansiado chegou; Abenjacan desembarcou na Inglaterra, caminhou até a porta
do labirinto, atravessou os cegos corredores e já havia pisado talvez os
primeiros degraus quando seu vizir o matou do alçapão, não sei se com um
balaço. O escravo mataria o leão e outro balaço mataria o escravo. Em
seguida, Zaid desfez os três rostos com uma pedra. Teve que agir assim; um
só morto com a face desfeita teria sugerido um problema de identidade, mas
a fera, o negro e o rei formavam uma série e, dados os dois termos iniciais,
todos postulariam o último. Não é estranho que estivesse dominado pelo
temor quando falou com Allaby; acabava de executar a horrível tarefa e se
dispunha a fugir da Inglaterra para recuperar o tesouro. (ibid., 674-675).
Dunraven fica silencioso diante da narrativa de Unwin, diz aceitar tais metamorfoses,
clássicos artifícios de gênero, que exigem a atenção do leitor. Contudo, o matemático não
aceita a hipótese da metade do tesouro ficar enterrado no Sudão. Unwin retruca que o que
moveu Zaid não fora a cobiça, mas o ódio e o temor, o essencial era a morte de Abenjacan.
Zaid simula ser Abenjacan, mata-o, e por fim, é o outro. Borges termina o conto dizendo que
esta é a história de um vagabundo que recordaria ter fingido ser um rei.
8.1 A entrada no labirinto
A entrada no labirinto-romance O ano da morte se dará logo após a chegada de RR a
Lisboa. Durante o trajeto até o HB o táxi corre pela cidade em dilúvio, e as frontarias
parecem-lhe muralhas que ocultam a cidade. O táxi passa ―[...] ao longo delas, sem pressa,
como se andasse à procura duma brecha, dum postigo, duma porta de traição, a entrada
para o labirinto‖ (Saramago:1998, 18). Quando RR está no corredor do hotel, indo em
direção do seu quarto, ele percebe que só há portas de um lado, do outro lado é a parede que
guarda a escada, o heterônimo apercebe-se que algo importante está sendo sugerido, no
entanto, está muito cansado para pensar em tal questão. Contudo, agora já não há mais como
retroceder, estamos na esfera do simbólico.
No romance O evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago nos fala de um labirintodeserto mais assustador do que o formado pelas longas extensões de areias lisas e instáveis de
formas e feitios constantemente transformados. Jesus de Nazaré se encaminha a este labirintodeserto à procura de sua extraviada ovelha, que seria imolada no Templo em Jerusalém no dia
da Páscoa do Senhor: ―Este deserto de aqui não é mais um mar de secas e duras colinas
arenosas, encavaladas umas nas outras, criando um labirinto inextricável de vales‖
(Saramago:1998b, 260). Logo adiante temos que o deserto, assim como o céu,
[...] é como se vê, rodeia-nos, cerca-nos, de algum modo protege-nos, mas
dar, não dá, apenas olha, [...] é de uma perfeita imparcialidade, nem se alegra
com as nossas alegrias nem se entristece com as nossas tristezas. (ibid., 344).
No conto Os dois reis e os dois labirintos, do livro O Aleph, Borges narra a história de
dois reis, um das ilhas da Babilônia, outro da Arábia. O primeiro ordena a seus arquitetos e
magos a construção de um surpreendente labirinto, cuja sutileza faria perderem-se os mais
prudentes a entrarem nesta obra. Semelhante a uma operação divina, este labirinto será usado
para zombar do rei dos árabes que veio visitar a ilha. Depois de vaguear humilhado e confuso
pelo labirinto de bronze com escadas, portas e muros, o visitante implora pela ajuda divina e
encontra a saída. Sem proferir nenhuma queixa, o rei dos árabes diz possuir outro labirinto na
Arábia. Regressa à sua terra para reunir forças e dizima os reinos da Babilônia, faz o rei
prisioneiro, amarra-o sobre um camelo veloz e abandona-o no meio do deserto árabe, um
labirinto sem escadas, sem portas, sem galerias, sem muros, onde morrerá de fome e de sede o
prisioneiro.
Dessa forma, ponderamos que o deserto é o cúmulo do labirinto, e a página em branco
é o concomitante cúmulo do emaranhar-se dos traços. A página branca e silenciosa fala-nos
de uma possibilidade indefinida, cuja determinação em escritura é o próprio Mundo, um
labirinto. Compreende-se assim, a página toda branca saramaguiana onde um nome se apaga
com o tempo, em razão de estar enredado na linguagem ficcional que se refere, antes de tudo,
ao universo da realidade da ficção, ou ficções, numa visão de intencionalidade em que a
estrutura propositada da ficção é a ficção, legitimando a ficção por meio de sua unidade
autônoma, internamente consistente e formal, sugerindo-se assim, que a linguagem não pode
se prender diretamente à realidade, mas basicamente a si mesma. No jogo da
autorreferencialidade e da intertextualidade, Saramago, na perspectiva de Dédalo, confecciona
com arte o seu labirinto, referindo-se ao mito cretense e oferece ao leitor um fio e um
percurso literário.
As personagens com o mal-branco, do romance Ensaio sobre a cegueira de Saramago,
após a libertação do manicômio em que estavam trancafiadas a várias semanas de forma
desumana, ficam postadas diante a porta que as separava do mundo; estão assustadas, pois
[...] não sabem para onde ir, é que não há comparação entre viver num
labirinto racional, como é, por definição, um manicómio, e aventurar-se, sem
mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a
memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos
lugares e não os caminhos para lá chegar. (Saramago:1999, 211).
É justamente esse fio-guia que nos é oferecido pela narrativa consciente de Saramago.
No romance Todos os nomes, Saramago faz com que o tema do labirinto transcorra
por toda a narrativa; assim sendo, um labirinto de ficheiros é a Conservatória, onde é
necessário desenrolar um fio de Ariadne para penetrar nos seus corredores, em que se perdera
um investigador, encontrado quase morto uma semana depois. Contudo, o labirinto-mor é o
cemitério onde o Sr. José vai procurar o túmulo da mulher desconhecida. Enquanto labirinto
dos mortos, o cemitério apresenta-se como árvore ou polvo com ruas bifurcadas. Já a
Conservatória é o labirinto dos vivos e dos mortos com diferentes ficheiros para cada estado
e, o conservador ordena aos seus funcionários, quase no final do romance, a junção dos
ficheiros, sem qualquer distinção entre vivos e mortos.
O diagrama básico do labirinto é a periferia, a cruz gerada pelos encontros, os círculos,
o centro. O diagrama é o tempo vital de cada um, sua presença é a liberdade, sua ausência é a
fatalidade. Nas voltas e revoltas no interior dessa arquitetura a vida do homem é triturada até à
exaustão. O tempo se dobra e redobra sobre si mesmo numa espécie de eterno retorno do
mesmo. Nesta espiral infinita, vislumbramos a estrutura geometricamente perfeita do labirinto
como a realização humana mais almejada. É conveniente que o diagrama do labirinto seja
construído de maneira tal, a permitir uma visão clara do modo de conexão de suas partes,
além da sua composição em cada momento das nossas operações sobre o mesmo. O resultado
de tal operação não é importante, pois o interesse está no processo, onde cada passo, por
menor que seja, exiba-se distintamente na compreensão de sua natureza, sendo, o diagrama, o
mais analítico possível.
Umberto Eco é outro escritor possuído por certa obsessão pelos labirintos que estão
sempre presentes em seus romances. Em A Ilha do Dia Anterior, Eco produz a metáfora do
próprio processo de escritura como uma intertextualidade vertiginosa em que as redes de
citações e evocações são a manifestação de um labirinto intertextual, cujo inventário de temas,
imagens e símbolos fala-nos da máquina de metáforas e do índex de Emanuele Tesauro que é
um chamado à intertextualidade, à citação e a transferências que desenham percursos
associativos no texto.
Assim, ao continuarmos a nossa explanação a respeito da noção de labirinto,
concordamos com o escritor Otavio Paz que, no seu dizer:
Várias noções afins contribuíram para fazer do labirinto um dos símbolos
míticos mais fecundos e significativos; a existência no centro do recinto
sagrado, de um talismã ou de um objeto qualquer, capaz de devolver a saúde
e a liberdade ao povo; a presença de um herói ou de um santo que, depois de
penitência e dos ritos de expiação, que quase sempre trazem consigo um
período de isolamento, penetra no labirinto ou no palácio encantado; a volta,
para fundar a cidade, ou para salvá-la ou redimi-la. (Paz:1976, 188).
No entanto, por ora, ficaremos apenas com a conceituação de labirinto, voltando mais adiante
com a questão do talismã.
8.2 Hermes e Hefestos
Os deuses Hermes e Hefestos são apresentados – juntamente com a questão do
labirinto – por Calvino no capítulo Rapidez de Lições Americanas, como os regentes do
trabalho da escritura. Hermes representa a sintonia (participação interativa) e Hefestos
representa a focalização (concentração construtiva), encarnando, respectivamente, dois
momentos da escritura, quais sejam, a relação autor/mundo e a elaboração do texto. Hermes e
Hefestos, ambos filhos de Júpiter em seu reino equilibrado e luminoso, ―[...] trazem cada qual
a lembrança de um dos obscuros reinos primordiais, transformando o que era moléstia
deletéria em qualidade positiva: sintonia e focalização‖ (Calvino:1990, 66).
Os
dois
deuses
são
linhas
articuladas
que
agenciam,
pelos
efeitos
de
descolamento/ruptura e de retardamento/precipitação, a leitura do livro-labirinto que registra
em filigranas as influências recebidas de outros livros que se desdobram e multiplicam-se na
dimensão do romance saramaguiano, cujo trabalho escritural deve ter em foco tempos
diferentes simbolizados pelos dois deuses. O binômio Hermes/Hefestos é importante na
leitura de uma personagem que está confinada num espaço fechado, mas lábil. Espaço-fixo e
tempo-oscilante são as dualidades fundamentais do romance. Já na instância do
desdobramento do protagonista, RR é como Hermes, desloca-se pela cidade e por processos
mentais que associam as diferentes partes do romance, promovendo a sua travessia. Hefestos
é FP, o Outro, que, com os seus movimentos faz, em uma condensação de ações especulares,
sombra ou eco ao seu heterônimo.
A ideia deste deus se apresentará a Reis enquanto ele lê os jornais e se depara com um
grande anúncio, o do gravador Freire, premiado com três medalhas de ouro na Europa.
Saramago fará uma dobra em seu discurso, dirá que este anúncio assemelha-se a um labirinto,
a um novelo, a uma teia, pois exibe uma enormidade de objetos a serem confeccionados, tais
como emblemas, placas, sinetes, monogramas, brasões. Por fim, compara a atualidade do
heterônimo com o tempo mítico dos deus Hefestos.
Que vale, ao pé disto, o trabalho do divino ferreiro Hefestos, que nem ao
menos se lembrou, tendo cinzelado e repuxado no escudo de Aquiles o
universo inteiro, não se lembrou de guardar um pequeno espaço, mínimo,
para desenhar o calcanhar do guerreiro ilustre, cravando nele o vibrante
dardo de Páris, até os deuses se olvidam da morte, não admira, se são
imortais, ou terá sido caridade deste, nuvem que lançou sobre os olhos
perecíveis dos homens, a quem basta não saberem onde nem como nem
quando para serem felizes, porém mais rigoroso deus e gravador é Freire,
que aponta o fim e o lugar onde. (Saramago:1998, 89).
A personagem-herói RR terá, numa definição formalista, a função de fio condutor que
nos permitirá a orientação na acumulação de motivos perpetrada pelo autor, será um meio
auxiliar cujo destino é classificar e ordenar os motivos particulares desenvolvidos na obra em
questão.
9. Metaficção Historiográfica
1936 é o ano da morte do heterônimo RR, e é também o início do expansionismo
alemão com a invasão da Renânia, região do oeste da Alemanha desmilitarizada pelo Tratado
de Versalhes. Anteriormente, os tratados de 1919-1920 tentaram aplicar à Europa central e
oriental o princípio da autodeterminação dos povos, mas o Reich alemão, sob a orientação de
Hitler e do nazismo, anulou, aos poucos, as cláusulas principais do Tratado de Versalhes,
anexando novos territórios da Europa central.
Ao tecer a narrativa d'O ano da morte, Saramago vai buscar uma personagem literária,
estritamente literária, para torná-la centro de uma obra de metaficção historiográfica, cuja
problematização do conhecimento histórico se voltará para a necessidade e o risco de
distinção entre a ficção e a história como gêneros narrativos. O pós-modernismo é
caracterizado, na ficção, pela metaficção historiográfica, que pretende deixar visível aquele
subtexto ideológico determinante das condições da própria possibilidade de produção e de
sentido nas práticas culturais. Desse modo, a metaficção historiográfica incorpora os discursos
literários, históricos e teóricos, repensando a reelaboração das formas e conteúdos do passado,
desafiando ainda, as fronteiras entre vida e arte ao jogar com as margens dos gêneros. A
metaficção historiográfica insere/subverte o seu envolvimento mimético com o mundo, onde
todas as noções de realismo ou referência entre o discurso da arte e da história são
definitivamente modificados através da sua confrontação, eliminando a distância entre arte de
elite e arte popular (voltaremos a esse assunto mais adiante). Na ficção pós-moderna é
apresentado um novo modelo para a demarcação da fronteira entre a arte e o mundo, contestase as verdades da realidade e da ficção, pois esta não reflete a realidade, e muito menos a
reproduz. A reprodução imaginativa do método histórico é chamada de historiografia, que é o
repensar pós-moderno a respeito dos problemas relacionados ao conhecimento do passado. É
a separação entre o literário e o histórico que se contesta, hodiernamente, na teoria e na arte
pós-moderna, com a incorporação textual de passados intertextuais enquanto elemento
estrutural que constitui a ficção pós-moderna, funcionando como marca formal da
historicidade da obra. Enfim, ao parodiarmos Oscar Wilde, só devemos à história a tarefa de
reescrevê-la.
No Cadernos, Saramago comenta a respeito de uma dissertação de mestrado em
história que analisa o seu romance Memorial, a partir da hipótese que o romance encerra
possibilidades como obra historiográfica. Ao tomar conhecimento a cerca do debate sobre as
possibilidades do romance manter compromissos com o real, Saramago assim se posiciona:
Os professores têm razão, o autor do Memorial não escreveu um livro de
História e não tem nada a certeza de que a sociedade portuguesa do tempo
fosse, realmente, como a retratou, embora, até o dia em que estamos, e já
onze anos completos são passados, nenhum historiador tivesse apontado ao
livro graves erros de facto ou de interpretação. Resta saber se é aí que se
encontra o problema, se não estaria antes na necessidade de averiguar que
parte de ficção entra, visível ou subterrânea, na substância já de si compósita
do que chamamos História, e também, questão não menos sedutora, que
sinais profundos a História, como tal, vai deixando, a cada passo, na
Literatura em geral e na ficção em particular. (Saramago:1997, 185-186).
Para Saramago há um medo, dos professores, diante da ameaça do apagamento da fronteira
entre Literatura e História, e propõe a criação de uma História Literária da História.
Na Jangada, Saramago faz a personagem José Anaiço refletir a respeito de sua ideia
sobre a história:
[...] se a história é realmente invisível, se os visíveis testemunhos da história
lhe conferem visibilidade suficiente, se a visibilidade assim relativa da
história não passará de uma mera cobertura, como as roupas que o homem
invisível vestia, continuando invisível. [...] na destrinça da diferença que há
entre o invisível e o não visível, que, sendo patente a quem se demore um
pouco a pensar, não tinha relevância particular para o caso. À luz do dia
todos os enredos têm muito menos importância, Deus, o mais ilustre dos
exemplos, criou o mundo porque era noite quando se lembrou disso, sentiu
naquele supremo instante que não podia aguentar mais as trevas, fosse ele
dia e Deus teria deixado ficar tudo como estava. (Saramago:1998a, 258).
Dessa forma, percebemos que história e ficção se enredam em um universo ambíguo.
Nos Cadernos, Saramago presenteia-nos com a conferência Contar a vida de todos e
de cada um, cujas reflexões se darão a partir da ambígua relação que Ficção e História
mantêm entre si. O autor diz estar consciente da impossibilidade de uma reconstituição plena
do Passado, restando apenas a tarefa de corrigi-lo, ou mais corretamente, questionando as
certezas cristalizadas, substituindo o que foi pelo que poderia ter sido. O romance histórico,
ou a metaficção historiográfica como conceituamos, pode agenciar uma instabilidade ao
perpetrar uma leitura crítica no interior de uma leitura histórica, fazendo com que os fatos
duvidem de si mesmos. Segundo Saramago, o romancista teria duas atitudes dentro da
História. A primeira delas seria a de reproduzir os fatos históricos, transformando a ficção em
mera serva de uma suposta fidelidade. A segunda e mais ousada atitude, seria a de entretecer
num tecido ficcional o suporte dos dados históricos, cujo narrador é muito mais complexo,
pois é
[...] um narrador a todo tempo substituível, que o leitor reconhecerá ao longo
da narrativa, mas que muitas vezes lhe dará a impressão estranha de ser
outro. Este narrador instável poderá mesmo ser o instrumento ou o sopro de
uma voz colectiva. Será igualmente uma voz singular que não se sabe donde
vem e se recusa a dizer quem é, ou usa de arte bastante para levar o leitor a
identificar-se com ele, a ser, de algum modo, ele. E pode, enfim, mas não
explicitamente, ser a voz do próprio autor: é que este, fabricante de todos os
narradores, não está reduzido a saber só o que as suas personagens sabem,
ele sabe que sabe e quer que isso se saiba... (Saramago:1997, 624).
Para Saramago, o seu trabalho produz certa oscilação contínua da qual participa diretamente
o leitor, pois o autor provoca-o com a negação das próprias certezas, criando-lhe a impressão
da dispersividade da matéria histórica no interior da matéria ficcionalizada, desorganizando e
reorganizando, temporariamente, tais instáveis materiais.
A história, na pós-modernidade, está sendo repensada como uma criação humana, em
que o acesso ao passado está condicionado pela textualidade. Desse modo, a metaficção
historiográfica problematiza a natureza da narrativa questionando a sua legitimidade enquanto
projeto global de explicação. A história aproxima-se de uma fábula com uma veste tênue que
pode ser rasgada facilmente por uma lâmina chamada Agora. Ou seja, ficção e história se
confundem na escritura de uma aventura, caracterizada por tentar a produção de uma ficção
onde os mecanismos da realidade quotidiana aglutinam-se sem dificuldade alguma às leis do
texto. Ou então, ao refletirmos, na companhia de Eco em Seis passeios pelos bosques da
ficção, sobre as complexas relações engendradas entre leitor/história e ficção/realidade,
podemos estar agenciando uma terapia contra os monstros criados pelo sono da razão.
Ao discutirmos sobre o estatuto do referente (cujo discurso em si é sempre imagem de
uma realidade ausente, o que permite adquirir uma presença nova, propriamente estética) e a
noção de realidade propriamente estética (que constitui o objetivo do discurso literário,
distinguindo-o do discurso quotidiano ou científico) – o objetivo da Literatura seria não
instituir a presença das coisas, mas sim, problematizar essa presença. As referências precisas
ao mundo real são tão intimamente entrelaçadas na obra de ficção que, ―[...] depois de passar
algum tempo no mundo do romance e de misturar elementos ficcionais com referências à
realidade, como se deve, o leitor já não sabe muito bem onde está‖ (Eco:1994, 131).
A ficção é, desse modo, a história que se torna problema, que é colocada em dúvida ou
em questão pela obra literária que leva à interrogação sobre a realidade; realidade essa que é
apresentada pelas constantes leituras de jornais que perpassam todo o romance saramaguiano.
Nas relações entre ficção e história é a obra que se volta para o mundo, onde a expressão
individual adquire dimensão social; e ainda, a própria expressão individual sendo um fato
sociológico com o resgate da subjetividade dos agentes históricos, em que a inscrição da
situação histórica no texto (contexto), e vice-versa, é o signo de uma tendência literária e a
consequente tomada de consciência histórica de um povo e do reconhecimento do escritor
como seu porta-voz. Os fenômenos sociais podem ser assim definidos a partir das condutas
individuais, e o início da análise sociológica se dará através da ação dos indivíduos, pois as
estruturas sociais não possuem um sentido intrínseco; entretanto, terão o sentido que os
próprios indivíduos imprimem às suas ações.
Porém,
num
determinado momento
histórico, dá-se a clivagem
entre o
conhecimento/atividade intelectual e o juízo ético, a ação moral e a prescrição normativa; é o
sujeito construindo o mundo a partir de si mesmo, e que se vê remetido a si mesmo através
dos seus atos fenomenologicamente considerados, cuja separação das diversas essências
desses atos dos seus suportes reais, remete à pergunta sobre o que poderia conceder unidade a
essas mesmas essências, ligando-as entre si, e ainda, perguntando-se aonde elas se apóiam. As
essências dos atos em si permaneceriam abstratas ou ideais, sem a complementação da
pessoa em que se concretizam, pois ela é o centro unificador de todos os atos, cuja
característica primeira é a sua individualidade. Por isso, pertence à essência da diversidade
dos atos de perceber, pensar, raciocinar, julgar, recordar, amar, odiar, sofrer, gozar, desejar,
entre outros, existirem numa pessoa, não existindo senão numa pessoa, que é muito mais que
o puro sujeito lógico kantiano, ultrapassando assim, a simples consciência de si, ao descobrirse como pessoa social, necessitada e pertencente a um vasto mundo.
CAPÍTULO II
Guarda-te e não te esqueças do Senhor, teu Deus,
que te conduziu por aquele grande e terrível
deserto de serpentes abrasadoras, de escorpiões e
de secura, em que não havia água; e te fez sair
água da pederneira; que no deserto te sustentou
com maná, que teus pais não conheciam; para te
humilhar, e para te provar, e, afinal, te fazer bem.
Deuteronômio, 8.15,16
1. O Retorno
O heterônimo mais clássico de Pessoa, o horaciano RR, exprime a filosofia epicurista
de se reduzir
... à estimativa e opção astuta entre dores e prazeres prováveis, num mundo
que, tanto faz considerar dominado pelos fados inelutáveis como por um
jogo de forças transcendentes ao nosso conhecimento; e assume por vezes
um heróico orgulho pela precária consciência humana, num mundo talvez
todo ele inconsciente. (Saraiva, pg. 1044).
Este heterônimo encontra-se novamente em sua terra natal – no final do ano de 1935, às
vésperas da 2ª Guerra Mundial – tendo vindo do Brasil a bordo do navio Highland Brigade,
um vapor inglês da Mala Real, um barco escuro que atraca no cais de Alcântara, após
atravessar o Atlântico entre Londres e Buenos Aires.
O retorno do heterônimo poderá ser interpretado a partir da proposta de Blanchot n‘O
espaço literário, pois
O poeta é aquele em quem, essencialmente, o tempo retorna e para quem,
sempre, nesse tempo, o deus se volta e se desvia. [...] Daí resulta, para o
poeta, a tentação para a exorbitância, o desejo que o arrasta imoderadamente
para o que não está ligado [...] O abismo é reservado aos mortais, [...] é a
profundidade selvagem e eternamente viva de que os deuses são
preservados, de que eles nos preservam, mas que não atingem como nós, de
modo que é mais no coração do homem, símbolo da pureza cristalina, que a
verdade do retorno pode cumprir-se. (Blanchot:1987, 276-277).
Se Reis retorna é para ter a sua morte narrada por Saramago. Em suas odes, o heterônimo já
havia refletido sobre o fim certeiro:
Pesa o decreto atroz do fim certeiro.
Pesa a sentença igual do juiz ignoto
Em cada cerviz néscia. É entrudo e riem.
Felizes, porque neles pensa e sente
A vida, que não eles!
Se a ciência é vida, sábio é só o néscio.
Quão pouca diferença a mente interna
Do homem da dos brutos! Sus! Deixai
Brincar os moribundos!
De rosas, inda que de falsas teçam
Capelas veras. Breve e vão é o tempo
Que lhes é dado, e por misericórdia
Breve nem vão sentido. (Pessoa:1983, 216)
No retorno, RR encontra a cidade de Lisboa, é uma cidade cinzenta, um vulto que
parece a ruína do castelo, dando a impressão de ilusão, de fingimento, a quem aporta em seu
silêncio assustador. O dia da chegada é um domingo, 4 horas da tarde de 29 de dezembro de
1935. Há dois meses chove torrencialmente sobre a cidade sombria coberta por uma cortina
triste e bordada. A Lisboa retratada neste romance será outra cidade. Nos Cadernos,
Saramago diz que falou de umas poucas ruas e de certo itinerário que comporta e exprime um
sentimento de finitude.
Os passageiros que desembarcam tem o ar perdido de viajantes de um sonho em que
as imagens são fluidas entre o mar e o céu. Ao reclamarem do tempo ruim, os passageiros
estrangeiros são advertidos pelo autor que os portugueses não são os culpados pelo mautempo, e lembra-lhes que em França e Inglaterra o tempo costuma ser pior. Saramago sinaliza
uma crítica com relação ao desdém dos estrangeiros pelos países pobres. Na alfândega, tais
pessoas passarão por uma antecâmara, um limbo de passagem.
O HB tem como passageiros, crianças estrangeiras curiosas de saberem o nome do
lugar em que aportou o navio, ao que são informadas, pelos mais velhos, que a cidade chamase ―Lisboa, Lisbon, Lisbonne, Lissabon, quatro maneiras diferentes de enunciar‖
(Saramago:1998, 12). Ao se repetir o nome da cidade de Lisboa em várias línguas, este nome
é transformado em outro. Tal procedimento saramaguiano com relação ao nome da capital
portuguesa é análogo à busca que Bioy Casares, no conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius do livro
Ficções de Borges, faz de uma região do Iraque ou Ásia Menor. Ao procurar informações,
num exemplar de The Anglo-American Cyclopaedia, a respeito de Uqbar, Casares esgota ―[...]
em vão todas as lições imagináveis: Ukbar, Ucbar, Ooqbar, Oukbahr...‖ (Borges I:2000,
475). Têm-se a nítida impressão que Saramago escreveu o romance da morte com o livro das
ficções ao lado. No próximo item desenvolveremos melhor esta questão.
Ora, RR chega a Portugal de navio, e isto é uma pista, um circuito como nos diz
Deleuze. O navio tem o poder de fender-se em dois, preso que está entre suas duas faces
cristalinas. O navio de cima tem uma face límpida, e de acordo com a ordem, deve-se ter
visibilidade; o navio de baixo tem uma face opaca transcorrendo embaixo d‘água, não se tem
visibilidade. Neste circuito deleuzeano as duas imagens virtuais do navio não cessam de
atualizar-se e muito menos de se relançar.
O heterônimo olha para o céu pesado e depois para os charcos, os detritos da doca,
[...] e é então que repara em uns barcos de guerra, discretos, não contava que
os houvesse aqui, pois o lugar próprio desses navegantes é o mar largo, ou,
não sendo o tempo de guerra ou de exercícios dela, no estuário, largo de
sobra para dar fundeamento a todas as esquadras do mundo [...]
(Saramago:1998, 15).
Ao retribuir a excessiva generosidade do viajante, o bagageiro diz-lhe o nome dos barcos:
[...] São contratorpedeiros, senhor, nossos, portugueses, é o Tejo, o Dão, o
Lima, o Vouga, o Tâmega, o Dão é aquele mais perto. Não fazem diferença,
podiam mesmo trocar-lhes os nomes, todos iguais, gémeos [...] (ibid., 16).
Assim, é dado a RR uma pista, um circuito que o adverte sobre algo quase
indecifrável. Na história e na literatura acontece a mesma coisa, pois se tem uma parte visível
que é aquilo que conseguimos enxergar através das informações que recebemos, e tem-se
conjuntamente, ocupando o mesmo espaço/tempo, aquilo que não conseguimos enxergar, mas
que toma forma no subsolo dos acontecimentos. No final do romance estes barcos de guerra,
cujos nomes podem ser trocados sem fazerem diferença, nos dirão a que vieram e quem são.
Dessa forma, o homem é aquele animal suspenso nas teias de significado tecidas por ele
mesmo, cuja historicização leva em conta, na tentativa de descrever os acontecimentos, as
diferentes formas imaginativas de uma narrativa ficcional e filosófica. Narrativa esta que
indaga sobre a natureza das relações ocorridas entre várias performances analiticamente
definidas no agenciamento real da linguagem em seus aspectos sociais, políticos e pessoais;
por conseguinte, ficam esclarecidas as descrições do mundo como permanentemente abertas à
contestação, exigindo cada concepção seu próprio estilo de representação destilado da
experiência histórica de um povo, um grupo, uma cultura.
2. Borges ao lado
O procedimento saramaguiano com relação ao nome da capital portuguesa é, como já
dissemos anteriormente, análogo à busca que Casares, no conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius do
livro Ficções, faz de uma região do Iraque ou Ásia Menor. Ao procurar informações, num
exemplar de The Anglo-American Cyclopaedia, a respeito de Uqbar, Casares esgota todas as
possibilidades.
A descoberta de Uqbar é fruto da conjunção de um espelho com uma enciclopédia, sua
literatura é de caráter fantástico, com referência às regiões imaginárias de Mlejnas e Tlön. O
universo de Tlön é um labirinto urdido por homens e destinado a ser decifrado por eles.
Herbert Ashe, engenheiro das ferrovias do sul, recebe, em setembro de 1937, um pacote
selado do Brasil contendo um livro de lombada de couro, amarela, redigido em inglês e
composto de 1001 páginas, cujo nome é A First Encyclopaedia of Tlön. Vol. XI. Hlaer to
Jangr. Ao morrer de um aneurisma, Ashe deixa o livro num bar. Este livro será encontrado
pelo narrador do conto. O volume contém um vasto fragmento metódico da história total de
um planeta desconhecido, um planeta inventado por uma geração de tlönistas como um
inconcebível e infinito Leibniz a trabalhar nas trevas e na modéstia. Este planeta é um cosmos
regido por leis formuladas de modo provisório, com um rigor de enxadristas. É um mundo
como uma série heterogênea de atos independentes, em que cada homem é dois, o presente é
indefinido, o futuro só existe como esperança, o passado só existe como lembrança, a vida é
uma mera lembrança crepuscular falseada e mutilada, o universo é a escrita sobre um deus
subalterno a entender-se com um demônio. Na geometria tlöniana não existem as retas
paralelas, o homem é concebido como um ser que ao deslocar-se modifica as formas
circundantes. Não existe a noção de plágio em Tlön, todas as obras são a Obra de um único
autor intemporal e anônimo.
Se fica-nos a impressão de que Saramago escreveu o romance da morte com o livro
das ficções ao lado, percebemos, contudo, que o nome de Borges só aparecerá de forma
subliminar, ao contrário do nome de Pessoa, que é bem aparente no romance da morte. Um
sinal borgiano que percorrerá todo o romance-labirinto refere-se ao navio HB, que é usado,
como uma lançadeira de caminhos, para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos
Aires, terra natal do escritor argentino. No início de suas andanças, RR encontra, na Rua Nova
do Carvalho, uma pedra cravada num murete com os seguintes dizeres em espanhol, Clínica
de Enfermedades de los Ojos y Quirúrgicas, Fundada por A. Mascaró em 1870. Temos assim,
uma breve alusão à língua e à cegueira do escritor argentino. Numa noite, depois do jantar,
Reis pega um elétrico com bandeira de nome Estrela, o heterônimo dirige-se ao cemitério dos
Prazeres, no entanto, não entrará, pois este se encontra fechado. No caminho, Reis seguirá por
um comprido itinerário,
[...] sobe-se a Avenida da Liberdade, depois a Rua de Alexandre Herculano,
atravessa-se a Praça do Brasil, Rua das Amoreiras acima, lá no alto a Rua de
Silva Carvalho, o bairro de Campo de Ourique, a Rua de Ferreira Borges, ali
na encruzilhada, mesmo no enfiamento da Rua de Domingos Sequeira.
(Saramago:1998, 271).
Subliminarmente, teremos o nome de Borges próximo duma encruzilhada, de um labirinto.
Cansado, ele toca as grades do portão à espera de outra mão que toque a sua e o leve embora
deste mundo. Essas serão as únicas alusões a um autor essencial para a leitura do romance O
ano da morte, o restante serão processos mais complexos de intertextualidade, paródia,
citações.
Contudo, na Jangada, o nome do escritor argentino aparecerá de forma mais visível no
nome do hotel em que se hospedará a personagem Joana Carda. O nome é Hotel Borges, mais
um HB, e fará par com o Hotel Bragança, um em cima, outro em baixo, respectivamente.
Passando o escrito a palavras menos barrocas e construções mais arejadas, o
que Joana Carda fez foi instalar-se mais acima, no Hotel Borges, em pleno
coração do Chiado, com a sua maleta e o seu pau de negrilho [...]
(Saramago:1998a, 118).
Joana fora procurar por José Anaiço, os dois conversaram bastante,
[...] era já o lusco-fusco quando se separaram, ela para o Borges de cima, ele
para o Bragança de baixo, e vai mordido de remorsos José Anaiço, que não
teve alma de querer saber o que acontecera aos amigos, ingrato, bastou terlhe aparecido uma mulher narradora de histórias da carochinha, e ficou
quase a tarde inteira a ouvi-la. (ibid., 119).
As duas personagens serão mais um casal no romance-jangada, o hóspede do Bragança e a
hóspede do Borges, como nas estórias da dona carochinha.
3. Interrogatório
Logo na chegada a Lisboa, Reis é interpelado pelo motorista de táxi sobre o destino da
corrida. O viajante é apanhado desprevenido diante de uma das duas perguntas fatais, para
onde, para quê. Quanto ao hotel que deseja ir, as dúvidas continuam a pairar na mente de
Reis. Perguntas prolongam-se ininterruptamente ao longo do romance O ano da morte, a
pergunta que mais se repetirá refere-se ao porquê do retorno do heterônimo. Este almoça no
restaurante Irmãos Unidos, local de encontro dos poetas de Orpheu. O narrador conjetura a
respeito do seu retorno:
Aqui ninguém quis saber se desembarcou ontem, se as comidas tropicais lhe
arruinaram as digestões, que prato especial será capaz de sarar-lhe as
saudades da pátria, se delas sofria, e se não sofria por que foi que voltou.
(Saramago:1998, 43).
Percebemos que o próprio narrador Saramago tem dificuldades em responder a tal pergunta.
Após sua primeira saída, Reis retorna ao seu quarto no HB, muda de roupa, entreabre
uma das janelas como alguém que retorna ao lar. Neste instante, pergunta-se sobre o agora.
Num relance, percebera que o verdadeiro termo da sua viagem era este
preciso instante que estava vivendo, que o tempo decorrido desde que pusera
o pé no cais de Alcântara se gastara, por assim dizer, em manobras de
atracação e fundeamento, o tentear da maré, o lançar dos cabos, que isso
foram a procura do hotel, a leitura dos primeiros jornais, e dos outros, a ida
ao cemitério, o almoço na Baixa, a descida da Rua dos Douradores, e aquela
repentina saudade do quarto, o impulso de afecto indiscriminado, geral e
universal, as boas-vindas de Salvador e Pimenta, a colcha irrepreensível,
enfim, a janela aberta de par em par, empurrou-a o vento e assim está,
ondulam como asas os cortinados leves, E agora. (ibid., 46).
Na noite do último dia do ano de 1935, o heterônimo encontra-se diante da estátua de
Camões, reflete sobre a heteronímia pessoana, sobre o meio do caminho da vida, sobre as
armas e os barões assinalados; o poeta questiona o futuro e o que serás quando fores de noite
e ao fim da estrada, de maneira a profetizar a própria vida em seu último ano de existência, e
a trágica história da humanidade.
Nos dez encontros entre Reis e Pessoa, criatura e criador se questionarão mutuamente
a respeito de fingimento, realidade, compromisso, Portugal, Europa, mulheres. Marcenda
interrogará o poeta a respeito do seu viver no HB, sobre o seu regresso. Porém, Reis olha-se
ao espelho e constata que a morte se aproxima.
O momento mais dramático de todo o romance será quando o heterônimo apresenta-se
de alma inquieta, no dia dois de março, às dez horas, à Polícia de Vigilância e Defesa do
Estado, na rua António Maria Cardoso. Durante meia hora aguarda o chamado de seu nome.
Ao ser solicitado, ele segue por um corredor comprido, com portas fechadas de ambos os
lados, ao contrário do HB com suas portas de um lado só. Identifica-se aos policiais e
responde-lhes as primeiras perguntas:
[...] Sim senhor, sou médico e vim do Rio de Janeiro há dois meses, Esteve
sempre hospedado no Hotel Bragança desde que chegou, Sim senhor, Em
que barco viajou, No Highland Brigade, da Mala Real Inglesa, desembarquei
em Lisboa no dia vinte e nove de Dezembro, Viajou sozinho, ou
acompanhado, Sozinho, É casado, Não senhor, não sou casado, mas eu
gostava que me dissessem por que razão fui aqui chamado, que razões há
para me chamarem à polícia, a esta, nunca pensei, Quantos anos viveu no
Brasil, Fui para lá em mil novecentos e desanove [...] foi para o Brasil por
alguma razão especial, Emigrei, nada mais, Em geral os médicos não
emigram, Eu emigrei, Porquê, não tinha doentes aqui, Tinha, mas queria
conhecer o Brasil, trabalhar lá, foi só por isso, E agora voltou, Sim, voltei,
Porquê, Os emigrantes portugueses às vezes voltam, Do Brasil quase nunca,
Eu voltei, Corria-lhe mal a vida, Pelo contrário, tinha até uma boa clínica, E
voltou, Sim, voltei, Para fazer o quê, se não veio fazer medicina, Como sabe
que não faço medicina, Sei, Por enquanto não exerço, mas estou a pensar em
abrir consultório, em criar outra vez raízes, esta é a minha terra, Quer dizer
que de repente lhe deram as saudades da pátria, depois de dezasseis anos de
ausência, Assim é. (ibid., 190).
O doutor-adjunto explica-lhe que não está a fazer um interrogatório, pois as declarações do
poeta não estão sendo registradas. É apenas curiosidade em conhecer alguém que retorna a
Portugal depois de dezesseis anos ausente, é apenas uma conversa. Contudo, o interrogatório
encaminha-se para as pessoas de convívio do heterônimo durante sua permanência no Brasil.
O doutor-adjunto pergunta-lhe a respeito de relações com militares e políticos. Notamos então
que a investigação faz parte do sistema salazarista de controle social. O policial faz a apologia
da Ditadura Nacional que implantou o sossego nas ruas, pondo o país a trabalhar.
Ao fim do interrogatório, o policial Victor é encarregado de acompanhar Reis à saída.
Esta personagem tem a singular característica de conseguir manter um cheiro constante de
cebola na boca. Até o fim do romance este investigador estará vigiando os passos do doutor
Reis, tentando decifrar-lhe os motivos.
4. Hotel Bragança
O HB fica situado no início da Rua do Alecrim, ficamos sabendo tratar-se do mesmo
hotel em que quase se hospedou a personagem Jacinto do romance A cidade e as serras, de
Eça. Ao resolver abandonar a cidade de Paris em direção ao campo, Jacinto pede ao amigo Zé
Fernandes que escreva para Lisboa e reserve um quarto no HB.
_ Zé Fernandes...
_ Hem?
_ Escreve para Lisboa, para o Hotel Bragança... Os lençóis ao menos são
frescos, cheiram bem, a sadio!
[...]
E lancei pelo telégrafo, para Lisboa, para o Hotel Bragança, este brado
alegre: _ Estás lá? (Eça:1996, 82-83).
A narrativa saramaguiana deve ser entendida a partir da teoria da intertextualidade, dos
gramas escriturais (Julia Kristeva), é uma escritura-réplica de um outro texto, enquanto
leituras de outras escrituras, cuja comunicação é uma comunicação com outra escritura.
Como dissemos anteriormente, no Capítulo I, item 7, veremos mais alguns exemplos
do processo de autorreferencialidade engendrados por Saramago, que perfaz um processo
intertextual com a obra de Eça, que se confunde com o processo autorreferencial na dobra
agenciada com a Jangada. Saramago leva RR a hospedar-se no mesmo hotel da obra de Eça.
A porta ficava ao fim do corredor, tinha uma chapazinha esmaltada, números
pretos sobre fundo branco, não fosse isto um recatado quarto de hotel, sem
luxos, fosse duzentos e dois o número da porta, e já o hóspede poderia
chamar-se Jacinto e ser dono duma quinta em Tormes, não seriam estes
episódios de Rua do Alecrim mas de campos Elísios, à direita de quem sobe,
como o Hotel Bragança, e só nisso é que se parecem. (Saramago:1998, 19).
Já na Jangada, a personagem Joaquim Sassa está sendo procurada pelo governo para
dar algumas explicações, e imagina então, uma cena acontecida no HB:
Ora essa, sim senhor, temos um excelente quarto vago, no segundo andar, é
o duzentos e um, ó Pimenta acompanha o senhor Sassa, e quando ele
estivesse deitado a descansar, ainda vestido, o gerente, excitadíssimo,
nervoso, ao telefone, O tipo está cá, venham depressa. (Saramago:1998a,
52).
Logo após conhecer as personagens Anaiço e Orce, Sassa encaminha-se com eles para a
cidade de Lisboa e hospedam-se no HB.
A tão grande mudança de estado não chegavam as aspirações dos três
viajantes, por isso foram instalar-se num modesto hotel, ao fundo da Rua do
Alecrim, à mão esquerda de quem desce, e cujo nome não interessa à
inteligência deste relato, uma vez bastou e talvez se tivesse dispensado.
(ibid., 104).
Ressalte-se, no entanto, que ocorre uma mudança espacial na localização do hotel,
pois, no romance da morte o HB está na entrada, no início da Rua do Alecrim; já no romancejangada ele está ao fundo, no final da mesma rua, à direita de quem sobe, à esquerda de quem
desce. O nome do hotel será dito nas manchetes dos jornais lidas por Anaiço, que
[...] deixou-se ficar na paz do hotel, esperando o regresso dos companheiros,
pediu jornais, as entrevistas vinham todas na primeira página, com
fotografias explosivas e títulos dramáticos, Enigmas Que Desafiam A
Ciência, As Forças Ignoradas da Mente, Três Homens Perigosos, O Mistério
do Hotel Bragança, tão grande era o nosso escrúpulo de dizer-lhe o nome, e
afinal a inconfidente imprensa [...] (ibid., 110).
No HB atual reina a grande paz de uma casa desocupada da qual se retirou a vida inquieta, no
entanto, restam ecos de passos e de vozes, o espelho a testemunhar a conversa entre os
hóspedes, o choro e o murmúrio da despedida que se prolonga. Este hotel é uma jangada que
empurra José Anaiço de encontro a Joana Carda.
Depois de abrir a porta do HB que faz soar uma campainha, deve-se subir um lance
íngreme de escada onde encontra-se uma figura altamente simbólica para o momento
histórico de 1935. Um pajem em trajes de corte levanta no braço direito um globo de vidro, o
que vislumbramos é a referência a uma Europa consumida por dúvidas a respeito de seu
futuro, frágil como um cristal que se quebra. Esta figura será relatada também na Jangada,
quando José Anaiço sai com Joana Carda. Eles descem a escada, e
[...] ao fundo, sobre o remate do corrimão, havia uma estatueta de ferro
fundido, ornamental, a modos de fidalgo ou pagem de ópera, aqui está uma
figura que bem podia ser colocada, com o seu globo eléctrico iluminado, em
qualquer dos grandes cabos portugueses ou galegos [...] porém o destino
deste fidalgo ou pagem é ser ignorado, talvez um dia passado alguém tenha
posto nele olhos atentos [...] (ibid., 115).
Com certeza, esta pessoa foi RR.
Para RR o hotel é um lugar neutro, de compromissos abolidos, de transitoriedade e
vida suspensa, assim como o do navio que o trouxera de volta à pátria. Se percebermos, os
nomes do hotel e do navio possuem as mesmas iniciais, HB, uma duplicação. Ao descer para
o jantar, o gerente Salvador abre, para o hóspede, uma
[...] porta dupla de painéis de vidro, monogramados com um H e um B
entrelaçados de curvas e contracurvas, de apêndices e alongamentos
vegetalistas, de reminiscências de acantos, palmetas, folhagens enroladas,
assim dignificando as artes aplicadas do trivial ofício hoteleiro.
(Saramago:1998, 24).
Uma dobra, uma curva barroca, maneirista, une os dois locais de passagem do labiríntico
romance saramaguiano. Deve-se salientar que as portas dos quartos do hotel estão num único
lado.
São assim os labirintos, têm ruas, travessas e becos sem saída, há quem diga
que a mais segura maneira de sair deles é ir andando e virando sempre para o
mesmo lado, mas isso, como temos obrigação de saber, é contrário à
natureza humana. (ibid., 90).
Reis não sabe por quanto tempo ficará hospedado no HB, pois um hotel não é uma
casa, é um lugar de neutralidade. Contudo, é neste lugar que o poeta epicurista terá contato
com os sinais da humanidade, é também o lugar no qual Reis começará as duas relações
femininas do romance, com Lídia e com Marcenda. Ao ver o chão de seu quarto molhado pela
chuva, o poeta chama pela faxineira e conscientiza-se da importância das criadas que fazem
resplandecer os assoalhos baços e pegajosos. Reis cria relações também com o garçom
espanhol Ramón, e explica-lhe a situação em Espanha, o que sabe é pelos jornais.
[...] Sabe quem é Gil Robles, Ouvi falar, Pois esse disse que quando chegar
ao poder porá termo ao marxismo e à luta de classes e implantará a justiça
social, sabe o que é o marxismo, Ramón, Eu não, senhor doutor, E a luta de
classes, Também não, E a justiça social, Com a justiça, graças a Deus, nunca
tive nada, Bem, daqui por poucos dias já se saberá quem ganhou as eleições,
provavelmente fica tudo na mesma, Quando mal, nunca pior, dizia o meu
avô, O seu avô tinha razão, Ramón, o seu avô era um sábio. (ibid.,153).
Ao ser questionado por Marcenda a respeito da sua relação com o HB, Reis respondelhe que se não resolveu a procurar casa, foi porque pensa em voltar ao Rio de Janeiro, talvez
não fique em Portugal. Assustado com a atmosfera febril do hotel, o gerente Salvador explica
a Reis que recebera como hóspedes, após a vitória das esquerdas, três famílias espanholas
fugidas de Madri e Cáceres. É o mesmo Salvador quem entrega a Reis uma contrafé enviada
pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. Diante deste fato, o gerente, antes solícito,
torna-se arredio e desconfiado. Todo o pessoal do hotel é informado da contrafé, tornando-se
reservado para com o hóspede que, desgostoso com a situação e incomodado com as
desconfianças infundadas, com os olhares furtivos, enfadado com a rotina, decide deixar o HB
e procurar uma nova morada. Pensando sobre sua relação com o hotel, ver tratar-se de uma
relação de dependência,
[...] olha-se a si mesmo e torna a ver-se aluno dos jesuítas, infringindo a
disciplina e a regra sem nenhuma outra razão que existirem regra e
disciplina, agora pior, porque não tem a simples coragem de dizer, Pst, ó
Salvador, vou ver uma casa, se me servir largo o hotel, estou farto de si e do
Pimenta, e de toda a gente, excepto a Lídia, claro, que merecia bem outra
vida. Não diz tanto, diz só, Até já, e é como se pedisse desculpa, a cobardia
não se declara apenas no campo de batalha ou à vista duma navalha aberta e
apontada às trémulas vísceras, há pessoas que têm uma coragem gelatinosa,
não tem culpa disso, nasceram assim. (ibid., 205).
A nova residência de RR será no Alto de Santa Catarina. Ao anunciar a Salvador a sua
decisão, Reis vê a imagem da surpresa magoada estampada na cara do gerente. Enquanto faz
os preparativos para a mudança, os últimos dias no hotel serão um tanto difíceis para o
hóspede, pois lhe incomoda a mesquinhez dos funcionários. No sábado, logo após o almoço,
dois homens de frete vão buscar as coisas de Reis no HB, o poeta tem a mesma sensação de
desgarramento que sentiu ao partir do Rio. O heterônimo só retornará ao hotel nos seus
últimos minutos de vida, mesmo assim, para procurar por Lídia e saber-lhe notícias do irmão.
5. Mulheres
É no HB que RR irá ter contato com as duas mulheres com quem se envolverá no
romance, a faxineira Lídia e a menina Marcenda. Lídia é, junto com Clöe e Neera, uma das
três ninfas do heterônimo pessoano. Entretanto, a Lídia saramaguiana é a mesma ninfa e outra
mulher. Quanto a Marcenda, nas odes ricardianas ela é o gerúndio de imarcescível que
aparece neste poema:
Saudoso já deste verão que vejo,
Lágrimas para as flores dele emprego
Na lembrança invertida
De quando hei de perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
Em que hei de errar, sem flores,
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda.
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra. (Pessoa:1983, 226)
As duas personagens farão um par contraditório das relações íntimas de RR; enquanto com
Lídia o poeta se envolve carnalmente até engravidá-la, com Marcenda o envolvimento se dará
no nível afetivo, até o momento do amor. Com Marcenda, Reis trocará cartas de amor, com
Lídia, ele trocará carícias sensuais.
RR conhece Marcenda durante o seu primeiro jantar no hotel, o gerente Salvador
explica-lhe que o pai e a menina são de Coimbra
[...] o pai é o doutor Sampaio, notário, E ela, Ela tem um nome esquisito,
chama-se Marcenda, imagine, mas são de muito boas famílias, a mãe é que
já morreu, Que tem ela na mão, Acho que o braço todo está paralisado, por
causa disso é que vem estar todos os meses três dias aqui no hotel, para ela
ser observada pelo médico. (Saramago:1998, 55).
O outro motivo das constantes viagens a Lisboa, é o fato do doutor Sampaio ter uma amante
na capital.
Já Lídia vai constantemente ao quarto de RR arrumar-lhe a cama e levar-lhe o
desjejum, é uma mulher do povo, inteligente.
Se esta Lídia não fosse criada, e competente, poderia ser, pela amostra, não
menos excelente funâmbula, malabarista ou prestidigitadora, génio adequado
tem ela para a profissão, o que é incongruente, sendo criada, é chamar-se
Lídia, e não Maria. (ibid., 57-58).
Reis imagina um colóquio com Marcenda, pensa em uma carta que não lhe escreverá.
Nesta chegará a dizer coisas não-ditas, como o fato de ser um poeta que tem ninfas como
abstrações líricas. Ao delirar sobre um pedido de Marcenda para que leia um poema de sua
autoria, Reis lê o poema de alguém que se senta à margem de um rio e vê passar o que o rio
leva. O poema é escrito para a ninfa Lídia.
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço. (Pessoa:1983, 190-191)
Porém, na ficção saramaguiana a proposta poética de RR se transformará, assim como
a construção das odes que serão agora prosa. Tal fato fará pensar o heterônimo.
[...] Alguém que se sentou na margem do rio a ver passar o que o rio leva, à
espera de se ver passar a si próprio na corrente, claro que entre a prosa e a
poesia tem de haver certas diferenças, por isso entendi tão bem da primeira
vez e agora comecei por entender tão mal. (Saramago:1998, 298).
Na recriação da proposta pessoana de seu heterônimo, Saramago será um organizador desta
recriação; enquanto romancista, ele abolirá a poesia em versos de Pessoa e de Reis,
transformando-as em autêntica prosa pós-moderna, questionando os estatutos literários. A
esse procedimento saramaguiano de inserção de um poema dentro de um texto narrativo,
transformando-o em prosa, conceitua-se como uma atitude de paratextualidade. Assim –
apesar de considerarmos relevante para o nosso estudo a diferenciação que executamos entre
criador e criatura –, concebemos que tal divisão é anulada por Saramago, pois este é que é, na
verdade, a verdadeira instância criadora das personagens do seu romance, cujas falas
incorporam o discurso saramaguiano deixando em segundo plano o discurso pessoano, que
será relido, reinterpretado e retrabalhado na contemporaneidade por outro escritor português.
Ao saber da ida dos Sampaio ao teatro D. Maria, para assistirem à peça Tá Mar, do
jornalista Alfredo Cortez, Reis resolve ir também à apresentação para se encontrar com
Marcenda. A apresentação será acompanhada pelos pescadores e suas mulheres, retratados de
forma realista na peça teatral. Reis acha que o objeto da arte não é a mímese, acha que é uma
fraqueza censurável do autor escrever a peça baseado na realidade, esquecendo-se que a
realidade não suporta seu reflexo, mas rejeita-o. Os hóspedes encontram-se durante o
intervalo da apresentação, e no final, Reis decide não retornar ao HB junto com pai e filha no
mesmo táxi.
Quem lhe preparou a roupa para a ida ao teatro é a criada Lídia, bem diferente da ninfa
de mesmo nome que jamais dormiu com o poeta. Esta criada se envereda, durante a
madrugada, pelo labirinto de escadas e corredores do HB para os encontros noturnos com
Reis.
O poeta conversa com Salvador a respeito do problema físico de Marcenda, e fica
sabendo que a menina logo retornará ao hotel para jantar. Reis aguarda-a na sala de estar
lendo os jornais do dia. Retornando ao hotel, Marcenda encontra-se com Reis. Guarda suas
compras no quarto e desce para conversarem. Os dois conversam sobre a peça teatral a que
assistiram e discutem sobre a questão da representação. Lídia serve-lhes café numa bandeja,
os três se encontram com os olhares furtivos e os passos precipitados da criada. O assunto dos
dois passa a ser o braço inerte de Marcenda, novamente Lídia entra na sala para levar a
bandeja, encontrando a menina com o rosto corado e olhos úmidos. Reis examina o braço da
menina, um corpo estranho que há quatro anos não se mexe, desde a morte da mãe de
Marcenda.
Marcenda possui, no emaranhado da obra saramaguiana, dois companheiros também
marcados na mão esquerda. Um, é o Baltazar Mateus do Memorial, o Sete-Sóis, soldado que
perdeu a mão esquerda na guerra em Badajoz. Outro, é o guarda Marçal Gacho, personagem
do romance A Caverna, que possui uma cicatriz torcida e oblíqua a dilacerar-lhe a pele, uma
queimadura brutal advinda da inexperiência com o uso do forno do sogro oleiro, Cipriano
Algor, a quem quer agradar.
Os encontros noturnos entre hóspede e criada já começam a ser comentados, entre
murmúrios e risinhos, pelos outros funcionários do hotel; Lídia e Pimenta têm uma discussão
que não é relatada ao gerente. Enciumada das conversas de Reis com Marcenda, Lídia deixa
de frequentar o quarto de Reis, durante algumas noites chora abraçada ao travesseiro, e
ficamos sabendo então que pela terceira vez esta criada está envolvida com os hóspedes. No
quinto dia, Reis pede o desjejum no quarto, o gerente manda Lídia servi-lo. Os dois
conversam e se entendem. Na segunda-feira de carnaval, Reis acorda adoentado, com febre, e
Lídia cuida-lhe da saúde, assume
[...] plenamente as funções de enfermeira assistente, sem conhecimentos da
arte, excepto os que constituem a herança histórica das mulheres, mudar a
roupa da cama, acertar a dobra do lençol, levar o chá de limão, o
comprimido à hora marcada, a colher de xarope, e, perturbadora intimidade
só dos dois conhecida, aplicar, em fricção enérgica, a tintura de mostarda nas
barrigas da perna do paciente. (ibid., 169).
Numa conversa com Lídia, o poeta fica a saber mais um pouco da vida da amante que tem um
meio-irmão, Daniel Martins, na marinha de guerra, marinheiro do Afonso de Albuquerque. O
sobrenome é materno, pois Lídia é filha de pai incógnito.
Pouco tempo depois, Reis e Marcenda têm o longo diálogo diante do espelho do HB.
[...] que palavras extraordinárias teriam trocado os seus reflexos, não pôde
captá-las o ouvido, só repetida a imagem, repetido o mexer dos lábios,
contudo, talvez no espelho se tenha falado uma língua diferente, talvez
outras palavras se tenham dito naquele cristalino lugar, então outros foram
os sentidos expressos, parecendo que, como sombra, os gestos se repetiam,
outro foi o discurso, perdido na inacessível dimensão, perdido também,
afinal, o que deste lado se disse, apenas conservados na lembrança alguns
fragmentos. (ibid., 175).
O heterônimo está escrevendo no quarto quando um papel dobrado branco é enfiado
debaixo da porta, um bilhete de Marcenda escrito numa letra nervosa. Ela marca um encontro
no Alto de Santa Catarina entre as três e as três e meia. O nome de Pessoa aparece na
conversa que os dois têm, Reis recita um poema do ortônimo, e Marcenda diz-lhe que bem
poderia tê-lo escrito, pois é simples. A menina está preocupada com o poeta que deverá
comparecer a um interrogatório na polícia, e pede-lhe que lhe escreva para a posta-restante,
não para sua morada, pois receia o próprio pai. O poeta lhe escreverá uma carta assombrosa,
um poema sobre o seu ser, uma invisível curva traçada pelo som do vento.
Lídia e Marcenda serão as únicas mulheres que Reis conhecerá em Lisboa, e foi
exagero de seu criador chamá-lo de Don Juan, contudo, o heterônimo quer juntá-las, cada uma
no seu lugar, sem perigo de se misturarem. Durante a mudança para o Alto de Santa Catarina,
Reis será ajudado por Lídia que fará a faxina da nova moradia.
[...] Se a casa tem estado fechada, há-de precisar de ser limpa, eu vou lá, Que
ideia, arranjo alguém ali do bairro, Não consinto, tem-me a mim, não precisa
chamar outra pessoa, És uma boa rapariga, Ora, sou como sou, e esta frase é
das que não admitem réplica, cada um de nós devia saber muito bem quem é.
(ibid., 209).
A Marcenda o poeta escreverá outra carta dando-lhe o novo endereço.
Lídia visita rapidamente Reis, apenas para conhecer-lhe o domicílio e averiguar as
necessidades. Anuncia-lhe que virá na sexta-feira fazer a faxina, é seu dia de folga e não irá
visitar a mãe. Este será um dia de grandes trabalhos para a amante, que, após a labuta, quer irse embora; porém, Reis impede-a de partir, fazendo-a tomar um bom banho quente. Reis entra
no banheiro e vê Lídia nua pela primeira vez. Os dois vão para a cama, enquanto isso, uma
das vizinhas bisbilhoteiras fica embaixo, sentada num banquinho, tentando decifrar o
significado de ruídos confusos.
Reis é informado por Lídia da chegada da menina Marcenda, que será aguardada com
impaciência pelo heterônimo. Neste encontro se dará o primeiro beijo de Marcenda. RR
anuncia o seu beijo:
[...] então Ricardo Reis diz, Vou beijá-la, ela não respondeu, num gesto lento
segurou o cotovelo esquerdo com a mão direita, que significado poderá ter o
movimento, um protesto, um pedido de trégua, uma rendição, o braço assim
cruzado por diante do corpo é uma barreira, talvez uma recusa, [...] os lábios
tocam-se, é isto um beijo, pensa, mas isto é só o princípio do beijo, a boca
dele aperta-se contra a boca dela, são os lábios dele que descerram os lábios
dela, é esse o destino do corpo, abrir-se [...] Ninguém me beijou antes, por
isso não sei distinguir entre o desespero e o amor, Mas, pelo menos, saberá o
que sentiu, Senti o beijo como o mar deve sentir a onda, se fazem alguma
sentido estas palavras, mas ainda é dizer o que sinto agora, não o que senti
então [...] (ibid., 245-247).
Dois dias depois, Reis escreve uma extensa carta à menina Marcenda. De início pensa
em desculpar-se pelo beijo que lhe dera em sua primeira visita à casa do poeta. Mas acha que
seria ofendê-la se assim o fizesse. O que escreve se parece mais a um labirinto de palavras,
cuja heteronímia de vozes é evidente, são pedaços de frases das criações pessoanas reescritas
e reinterpretadas por Saramago. Sem que Marcenda lhe responda, Reis escreve-lhe novamente
a relatar a sua nova vida de médico.
Enquanto isso, ele recebe em sua morada as constantes visitas de Lídia que vem quase
todos os seus dias de folga.
Ao chegar em casa, Reis encontra uma carta de Marcenda na passadeira. Ele logo se
acostumará a receber esta correspondência que possui traços bem característicos, tais como
[...] a conhecida cor de violeta exangue, o mesmo carimbo negro sobre o
selo, a mesma caligrafia que sabemos ser angulosa por faltar à folha de papel
o amparo da outra mão, a mesma pausa longa antes que Ricardo Reis abrisse
o sobrescrito, o mesmo olhar apagado, as mesmas palavras. (ibid., 295).
Nesta primeira carta, a menina chama-lhe de amigo e confessa a incapacidade, ou medo, de
entender as palavras de Reis. Como irá a Lisboa, pretende visitá-lo em seu consultório. Esta
carta ficará escondida entre os livros do poeta, que teme por Lídia.
A amante chega pela manhã em casa de Reis, entra com o pão, o leite e o jornal nas
mãos. Enquanto Reis lê metodicamente as notícias, com gestos maníacos, Lídia vai preparar o
pequeno almoço que será servido num tabuleiro como o do HB, ou seja, a relação de hóspede
e criada continuará, apesar da íntima convivência entre os dois. Nesta visita, Lídia ficará por
pouco tempo, pois tem que visitar a mãe a reclamar sua ausência. Desta vez, os dois não irão
para a cama, pois o poeta percebe que o seu sexo não reage,
[...] era a primeira vez que lhe acontecia o temido acidente, sentiu-se tomado
de pânico, lentamente tirou a mão, murmurou, Põe-me a água a correr, quero
tomar banho, ela não compreendeu, começara a desapertar o cós da saia, a
desabotoar a blusa, e ele repetiu, numa voz que de súbito se tornara
estridente, Quero tomar banho. (ibid., 287).
Três dias após o acontecido, Marcenda aparece no consultório de Reis, os dois
conversam sobre a situação estagnada do braço da menina. A conversa evolui a respeito do
beijo trocado pelos dois, fora o primeiro de Marcenda. Falam de seus sentimentos de forma
cautelosa, com receio de mágoas recíprocas. Novamente se beijam, e Reis pede-a em
casamento,
[...] ela olhou-o, subitamente pálida, depois disse, Não, muito devagar o
disse, parecia impossível que uma palavra tão curta levasse tanto tempo a
pronunciar, muito mais tempo do que as outras que disse depois, Não
seríamos felizes. (ibid., 292).
Os dois se despedem, ficando uma frase por terminar, sabe-se lá quando e por quem, talvez,
um dia. Reis recebe, poucos dias depois, uma segunda, última e definitiva carta de Marcenda
a dizer-lhe sobre a imprudência de sua visita ao consultório. Diz que não tornarão a se ver,
guardar-lhe-á na lembrança a amizade. Apesar da desesperança, a menina irá a Fátima tentar
conseguir um milagre para seu braço inerte. Pede-lhe que não lhe escreva mais, porém, que
pense nela sempre. O poeta fará como lhe fora pedido, contudo, terá a fraqueza de ir a Fátima
na esperança de um encontro casual com a menina. Os dois não se encontrarão mais.
Lídia passa a frequentar com menos assiduidade a casa do amante, mas, num certo
dia, ao estarem deitados nus na cama, sentem um abalo de terra, um terremoto prenunciador
de abalos humanos. Temerosa da morte, Lídia é acalmada por Reis a dizer-lhe que não é nada.
Neste momento, os dois se abraçam com seus corpos nus, novamente o poeta lhe diz,
[...] Não foi nada, e ela sorri, mas a expressão do olhar tem outro sentido, vêse bem que não está a pensar no abalo de terra, ficam assim a olhar-se, tão
distantes um do outro, tão separados nos seus pensamentos, como logo se vai
ver quando ela disser, de repente, Acho que estou grávida, tenho um atraso
de dez dias. (ibid., 354).
Reis não sabe o que dizer, fica alheio, indiferente quanto à paternidade. Lídia diz-lhe que não
está obrigado a perfilhar o filho, isso para Reis é um grande alívio, seus olhos se enchem de
lágrimas, umas de vergonha, outras de piedade. Ele beija-lhe agradecido por se ver livre de
um grande fardo.
De férias, Lídia passa quase todo o tempo na casa do amante, indo dormir na casa da
mãe para não causar conversas maléficas. No final do romance, Lídia vê o seu homem um
tanto desleixado na aparência e disfarça sua preocupação. Os dois discutem sobre o que os
jornais escrevem, sobre as muitas verdades e a mentira. Ao se lembrar de seu filho com Lídia,
pois esta assim o afirma, Reis desvenda-lhe um futuro funesto:
[...] esse menino crescerá e irá para as guerras que se preparam, ainda é cedo
para as de hoje, mas outras se preparam, repito, há sempre um depois para a
guerra seguinte, façamos as contas, virá ao mundo lá para Março do ano que
vem, se lhe pusermos a idade aproximada em que à guerra se vai, vinte e
três, vinte quatro anos, que guerra teremos nós em mil novecentos e sessenta
e um, e onde, e porquê, em que abandonados plainos, com os olhos da
imaginação, mas não sua, vê-o Ricardo Reis de balas traspassado, moreno e
pálido como é seu pai, menino só da sua mãe porque o mesmo pai o não
perfilhará. (ibid., 390).
Os acontecimentos históricos evoluem de forma bastante rápida. Lídia afasta-se da
residência do amante, onde se acumulam o pó nos móveis e a roupa suja. O poeta sente-se
muito só, dorme durante todo o dia sobre a cama desfeita, no sofá, na retrete. Escreve e rasga
uma carta a Marcenda.
Apesar de dizer a Reis que não voltaria a procurá-lo, Lídia retorna à sua residência
com os olhos vermelhos e inchados de tanto chorar pelo irmão Daniel, marinheiro de um dos
barcos que irão se revoltar. Ela veio para se desabafar com o poeta, pedindo-lhe segredo do
que lhe dissera a respeito do que preparam os revoltosos. Quando o forte de Almada começa a
bombardear os barcos, o Alfonso de Albuquerque é atingido. Reis assiste a tal cena de sua
residência, chora então lágrimas absurdas. São seus últimos instantes antes da partida
definitiva. Às onze e meia da manhã sai de casa em direção ao HB para procurar por Lídia,
saber-lhe notícias do irmão. No entanto, fica sabendo pelo funcionário Pimenta que a criada
saíra atrás de informações. É através dos jornais que Reis ficará sabendo da morte do
marinheiro Daniel Martins.
Nos Cadernos, voltaremos a ter notícias, de forma sub-reptícia, dessas personagens.
Saramago recebe uma carta de Tereza Cristina Cerdeira contando-lhe sobre um delicioso
acaso na primavera lisboeta. Ao voltar tarde e sozinha de uma sessão de cinema, ela pega um
táxi e dialoga com o taxista, um rapaz moço, de mais ou menos trinta anos, e pergunta-lhe
sobre o 25 de abril e os 25 anos da Revolução.
A resposta foi céptica, mas não que se tratasse de um desses espíritos
reaccionários ou alienados diante da questão. Falou-me com mágoa sobre o
pai que havia sofrido horrores durante a ditadura, tinha ficado preso anos a
fio, torturado e tudo o mais, e cobrava desses vinte anos o nenhum
reconhecimento que lhe deram. Minha curiosidade multiplicou as questões
até que ele me disse (imagine!) que o pai era marinheiro e foi preso em 1936
durante uma tentativa de derrubada do regime. Meu coração estava aos
pulos... acreditava que era o filho de Lídia que a ficção não tinha deixado
envelhecer... Via Lisboa noturna pela janela, subíamos a Estrela para ir sair a
Alcântara e eu fechava os olhos para imaginar a revolta dos barcos, o Daniel,
o Adamastor e o Ricardo Reis, a rua do Alecrim... Tudo me saía
proustianamente dessa outra xícara de chá. Tive imensa pena quando
chegamos a Belém e me despedi dele como de uma página de história que
me chegava, assim, de súbito, transmudada pelas páginas de um romance
que me fascina cada vez mais. (Saramago:1997, 331).
RR irá embora do romance, e desta vida, longe de suas duas mulheres, Marcenda e
Lídia, junto com o seu criador, FP.
6. Perguntas
Foi ao longo da década de 30 que se processou a revalorização do realismo em
Portugal, com uma nova abordagem da realidade portuguesa em um Neo-Realismo de
resistência social, no qual se salientam certas concepções marxistas. Com a crise econômica
de 1929, a literatura de crítica social associou-se ao movimento de resistência democrática,
formulando a tomada de consciência e a dinamização de amplas classes sociais.
Auto-exilado na antiga colônia desde 1919, RR retorna a Portugal logo após a morte
de seu criador, trazendo por esquecimento na bagagem o livro da biblioteca do navio, The
God of the labyrinth, cujo autor Herbert Quain, tem o seu nome como motivo de brincadeira
por parte de Saramago, pois ―... sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem,
repare-se Quain, Quem‖ (Saramago:1998, 23).
Ora, o autor Saramago faz várias perguntas ao longo do romance, com o intuito único
de testar-nos enquanto leitores; testando o nosso conhecimento literário, ele aprofunda as
ramificações da sua narrativa-labirinto que se constitui – analogamente à Biblioteca de Babel,
de Borges – de um número infinito de vastas galerias hexagonais com um espelho no seu
saguão que duplica as aparências.
A partir da natureza dessa pergunta poderemos determinar que a atitude do alocutário
é a de um perguntador, ao qual chamamos de sábio, que não está em plena solidão e que não
é independente, pois encarna um saber e uma sabedoria de um grupo. O adivinhador, por
outro lado, não é um indivíduo que apenas responderia à pergunta de um outro, mas é o que
procura aceder a esse saber, ser admitido nesse grupo e que prova por sua resposta que está
maduro para essa admissão. Portanto, ao respondermos à pergunta formulada por Saramago
no seu romance O ano da morte, acedemos ao saber literário e somos admitidos na biblioteca
babélica de Borges, quer dizer, adentramos no reino da intertextualidade universal dos
discursos.
7. The God of the Labyrinth
Ao arrumar os seus poucos livros numa prateleira no quarto do HB, RR se dá conta
que trouxera por esquecimento o livro de Quain da biblioteca do navio HB, esquecera-se de
devolvê-lo ao bibliotecário irlandês. RR coloca o livro na mesa-de-cabeceira para lê-lo
depois, o tédio da viagem e o título deixaram-lhe curioso a respeito de um labirinto com um
deus. HQ é um autor fictício de criação borgiana que escreveu um livro imaginário,
justamente The God of the labyrinth, comparado, segundo nos informa o narrador-resenhista
do conto Exame da Obra de Herbert Quain de Ficções, com um livro da sr.ª Agatha Christie e
a outros de Gertrude Stein. O resenhista comprova a morte do autor em Roscommon, e
verifica que o Times é conciso em seu necrológio, já o Spectator é mais cordial com o autor
irlandês. HQ escreveu um romance policial, um romance regressivo, April March, uma
comédia heróica, The Secret Mirror, e Statements, um livro com oito narrativas. Nestes livros,
HQ reivindica os aspectos do jogo, tais como a simetria e as leis arbitrárias, e a construção de
histórias infinitas, infinitamente ramificadas. Já acostumado com o fracasso, HQ conhece o
êxito com o seu penúltimo livro. No último, ele escreverá para os imperfeitos escritores,
aqueles que devem se contentar com os simulacros. Por fim, o narrador diz ter extraído da
terceira narrativa de Statements, The Rose of Yesterday, a ideia das ruínas circulares de
Ficções.
No prólogo de Ficções, dividido em duas partes, O jardim de veredas que se bifurcam
e Artifícios, Borges diz que o melhor procedimento para desenvolver uma ideia é simular a
existência de livros, oferecendo um resumo, um comentário sobre livros imaginários. Borges
é um escritor que se inventou a si mesmo como narrador, cujo texto é redobrado ou
multiplicado na própria página através de outras tantos livros de uma biblioteca quer seja real,
ou imaginária, cuja competência, regida por uma metafísica, exprime-se como metáfora do
labirinto como uma d(obra) em que não há ação, mas dupla pertença; cada peça é inseparável
do corpo-obra que é igualmente inseparável do que lhe pertence. Por isso, nesta dupla
pertença somos conduzidos a uma zona estranhamente intermediária na qual o corpo-obra
adquire a possessividade das peças individuais. Assim, a dobra/desdobra é ―[...] extremamente
sinuosa, um ziguezague, uma ligação primitiva não localizável. Nessa zona, há mesmo
regiões em que o vínculo é substituído por um liame mais frouxo, instantâneo‖
(Deleuze:1991, 180).
Calvino ressalta como é interessante o fato de Borges conseguir as
[...] suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento, graças ao
mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos [...] Nasce com Borges uma
literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura que é como
a extração da raiz quadrada de si mesma [...] cujos prenúncios podem ser
encontrados em Ficciones, nas alusões e fórmulas dessa que poderia ter sido
a obra de um hipotético autor chamado Herbert Quain. (Calvino:1990, 63).
Para o autor-fictício HQ, a boa literatura encontrava-se até no diálogo de rua, não
prescindindo do assombro, que é o verdadeiro desejo de Quain. O tal livro-imaginário é
colocado à venda nos últimos dias de novembro de 1933, e ao que parece, fracassou o
romance em virtude da sua elaboração deficiente e das vãs e frígidas pompas em certas
descrições do mar. Ainda segundo Borges, nas páginas iniciais há um indecifrável assassinato,
nas páginas intermediárias há uma lenta discussão e nas últimas páginas há – como era de se
esperar – a solução. Para Quain, a mais alta felicidade que a literatura pode ministrar é a
felicidade da invenção.
7.1 Biblioteca de Babel
Entende-se assim, a invenção/reinvenção, tanto por parte de Saramago quanto de
Borges. Esses dois autores propõem-nos assim, trilhar um caminho para localizarmos, na
biblioteca de babel borgiana, aquele venerado hexágono secreto em cuja estante deve existir
um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais. O conto A biblioteca de
Babel, de Ficções, fala-nos de uma biblioteca que é o universo, composta por um número
indefinido, infinito, de galerias hexagonais. Em seu centro existem vários poços de ventilação
cercados por balaustradas baixíssimas, existe ainda um espelho no vestíbulo a duplicar as
aparências. O narrador do conto peregrina por suas galerias em busca de um livro, um
catálogo de catálogos. Nesta interminável biblioteca de inacessível forma esférica, cujo centro
pode ser qualquer hexágono, o narrador prepara-se para morrer, após haver encontrado a
solução do enigma de sua existência. Seus axiomas são que a biblioteca existe ab aeterno, o
número de símbolos de seus livros é vinte e cinco. A par disso, fundamenta-se que todos os
livros da biblioteca contêm sempre os mesmos elementos, o espaço, o ponto, a vírgula, as
letras do alfabeto. Em suas prateleiras encontram-se todas as possibilidades de combinação,
em quaisquer idiomas. A biblioteca abarca todos os livros, e cada exemplar é único com
vários fac-símiles imperfeitos. Existe a superstição do Homem do Livro, a de um livro que é a
cifra e o compêndio perfeito de todos os outros. Ainda existem vestígios daquele remoto
funcionário que consultou esse livro que é análogo a um deus. Desse modo, para localizarmos
o livro A, devemos consultar previamente um livro B que nos indicará o lugar de A, e para
localizarmos o livro B, deveremos consultar previamente um livro C, ad infinitum. O velho
narrador suspeita que a Biblioteca de Babel perdurará à espécie humana, e
Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao
fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem
(que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com
essa elegante esperança. (Borges I:2000, 523).
Tanto Stephanne Mallarmè quanto Leibniz sonharam o livro total, o livro único, o
livro das mônadas que suportaria toda dispersão assim como outras tantas combinações na
dobra conforme dobra em combinação de visível e legível, de exterior e interior, onde a
mônada é este livro total, ou então, é a sala de leitura onde só podemos escutar a música das
palavras discretas que estão nos livros, cujo murmúrio solitário é ―[...] este longo fio de som
que poderá infinitamente prolongar-se, porque os livros do mundo, todos juntos, são como
dizem que é o universo, infinitos‖ (Saramago:1999, 290). Ou como diria Mallarmè, tout
aboutit en un livre, tudo termina em um livro.
8. Romance Policial
Durante os seus últimos meses de vida, que na verdade são os últimos meses do
espectro de FP, RR adiará a leitura do livro de Quain, ―... um labirinto com um deus, que
deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance
policial, uma vulgar história de assassínio e investigação‖ (Saramago:1998, 23).
Percebe-se nesta alusão a um simples romance policial, a aquisição, nos dias atuais, de
novas especificidades por parte das obras literárias pós-modernas que efetuam assim, um
diálogo entre a ficção contemporânea e a cultura de massa, redimensionando os gêneros
considerados subliteratura. Ora, essa questão já aparecia nos estudos dos Formalistas Russos,
e em especial nos estudos de Tomachevski, ao considerar a apropriação, por parte da alta
literatura, dos fenômenos próprios a esses gêneros vulgares, transformando-os em cânone
dos gêneros elevados, renovando-se a literatura desgastada na sua criatividade, com os seus
efeitos estéticos inatingidos e com a sua profunda originalidade.
Edgar Allan Poe é um dos precursores do gênero romance policial; todavia, ele soube
fazer a introdução, nos seus contos e novelas, de aspectos que vão além da estereotipia de tal
gênero. Por isso, relutamos em classificá-lo como um escritor da cultura de massa; tal
classificação é mais apropriada a Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes.
É como conjunto de bens culturais difundidos pelos mass-media, originários de um
determinado segmento social e direcionado para um consumo generalizado, que poderemos
conceituar Cultura de Massa, cujo ato criativo é um ato impositor em que se efetua a
recorrência de certos estereótipos já consagrados pelo gosto popular. Ora, sempre existiu a
dicotomia entre as culturas superior e de massa; contudo, foi com a Revolução Industrial e
com a consequente ascensão das camadas urbanas à escolarização que se institucionalizou a
cultura de massa. Originalmente, não havia competição entre a literatura superior e a inferior,
pois eram os mecenas que patrocinavam o literato e a literatura. Outrossim, mais adiante, o
numeroso público com a sua sede de fantasias, substituiu os antigos mecenas.
No entanto, a cunhagem do termo Cultura de Massa pelo teórico alemão Walter
Benjamin, induz ao engodo, pois dá o entendimento de uma cultura surgindo
espontaneamente das próprias massas. Para outro teórico frankfurtiano, o musicólogo
Theodor Adorno, seria mais apropriado falar-se em uma Indústria Cultural que aspira à
integração vertical de seus consumidores, adaptando e determinando os seus produtos ao
próprio consumo das massas. Portadora da ideologia dominante, a indústria cultural outorga
sentido a todo o sistema de um capitalismo tardio, contribuindo assim, eficazmente, para a
falsificação das relações entre os homens, impedidos de se formarem como indivíduos
autônomos e independentes, incapazes de, conscientemente, julgar e decidir. Logo, ao terem
acesso senão a cópias e reproduções do próprio trabalho, numa sucessão automática de
operações reguladas e auto-reguladoras, implanta-se sub-repticiamente um comércio de
promessas não cumpridas, como nas situações eróticas do cinema onde o desejo suscitado, ou
sugerido, é divorciado de sua realização. Ao reificar as almas, a indústria cultural preserva o
entrelaçamento entre mito, dominação e trabalho, tolerando a arte e o prazer pela práxis
social; dessa forma, a evolução da máquina é uma maquinaria de dominação. Incapazes de
ouvirem o que nunca foi ouvido, os seres humanos, isolados numa coletividade dirigida pela
coação, são ofuscados por uma opressão que os embrutece e os distancia da verdade,
denunciando como obsoleta a razão da sociedade racional.
O que está sendo discutido no romance saramaguiano é a visão acrítica do mundo
veiculada por uma representação secundária do produto dessa cultura de massa, cujo valor
efêmero deseja fruir valores estéticos sem qualquer esforço, onde a sua univocidade opõe-se
ao caráter hermenêutico da obra de arte, não sendo capaz de oportunizar a reflexão; pois ao
reaproveitar um material utilizado e descartado pela cultura superior, transmuda em fórmula
um estímulo inicial que configura a circularidade, consagrando estereótipos linguísticos e
ideológicos. É o mito da felicidade, do qual nos fala Bella Josef, em que uma concepção mais
ou menos homogênea do mundo é formulada conforme o código da classe dominante e
transferida para o consumo deleitoso do grande público; contentando-se, esta literatura de
massa,
em
representar/reproduzir
o
pré-existente,
sem
preocupar-se
com
a
específicas
e
apresentação/produção do sentido, mediante o trabalho sobre o significante.
Poderíamos,
no entanto, guardando algumas
ressalvas
bem
circunstanciais, concordar com o crítico francês Jean Baudrillard a respeito dos benefícios da
alienação, pois é sempre melhor ser controlado por outrem do que por si mesmo. Porém, tais
benefícios advindos desta alienação só o serão como construtos de uma estratégia que nada
tem de inocente. Nesta estratégia sutil, as massas se constroem como aquele outro do poder,
um protagonista cego que infesta o labirinto do político, irreconhecível, inomeável, sem
designação. Ao exercerem esse poder sutil de alteração, as massas, proibidas de subjetividade
e de palavra, perpetram o mesmo estratagema inconsciente do deixar-querer, deixar-crer;
logo, sem crerem em sua própria qualidade de massas, cujo cinismo objetivo quanto à sua
essência não será igualado pelo cinismo do poder, as massas se movem com a graça dos que
não tem nenhuma vontade própria. Seja como for, esse jogo, esse desafio, essa paixão, essa
sedução baudrillardiana ainda é completamente estranho às massas que desconhecem o
artifício fundamental da sutileza de sedução do outro.
9. O Centro do Labirinto-Narrativo
O romance O ano da morte é um encontro permanente com a morte, é um labirinto,
uma teia de caminhos tortuosos onde se busca uma saída. RR só conseguirá sair deste
labirinto se encontrar o seu centro, onde está o talismã, referido anteriormente. De forma
análoga, Jesus de Nazaré, no Evangelho, ―[...] saiu do labirinto dos vales para um espaço
circular liso e arenoso onde, no centro exacto, viu a ovelha‖ (Saramago:1998b, 262).
Porém, a saída não se assemelha a um puro aniquilamento da morte, pois o morrer é
inerente ao homem enquanto poder-ser. Porventura, não é na morte, enquanto possibilidade de
cada qual, que se pessoaliza/personaliza o morrer? É no existir implantado, a qualquer
momento, no morrer, que o Dasein alcança a sua singularidade/totalidade, abrindo-se
inteiramente para si mesmo. Logo, o morrer de alguém não pode ser tomado por outrem. O
infausto acontecimento como possibilidade da existência encerra na iminência do fim,
paradoxalmente, uma denegação que o completa e o totaliza. Ao alcançar a possibilidade da
impossibilidade, o ser-para-a-morte atinge a própria abertura do Dasein em sua liberdade,
transcendido para o mundo nos suportes da facticidade, existencialidade e queda, unidos pelo
cuidado (sorge) de uma finitude.
Daí a importância conferida às andanças de RR pela cidade de Lisboa, que servirá para
expressar o movimento de ida e volta no espaço e no tempo, configurando-se então, o
labirinto, como uma artimanha do tempo, que se nega a passar, não permitindo
desdobramentos enquanto não se encontrar o talismã, que no caso do romance em questão, é o
outro que é ele mesmo, quer dizer, FP. A criatura busca o seu criador, confundindo-se com
ele.
O meio literário pode ser entendido assim, como um mundo de coexistência
irrecusável do fenômeno da identificação com o Outro que é o Si-mesmo, naquilo mesmo em
que o comportamento nos escapa. O Outro é encontrado, não constituído; não é conhecimento
nem categoria, mas um ser em liberdade que me é estranho e desmente, a todo instante, a
soberania de minhas pretensões. Criador e criatura sendo um só, pois não se existe fora da
relação com outrem, sem o olhar do outro.
9.1 Camões e Adamastor
O centro do labirinto saramaguiano é representado pela estátua do Gigante Adamastor,
que nos remete, portanto, ao épico Os Lusíadas do poeta renascentista Luiz Vaz de Camões,
obra central para a compreensão da literatura portuguesa. Camões é o poeta português mais
completo de sua época, pois teve uma inigualável amplitude de temas que tratou e um
excepcional domínio da língua portuguesa. Camões manipulou todos os recursos da língua
portuguesa, ampliando consideravelmente seu campo de expressão, em sua obra a língua
portuguesa passou a expressar sentimentos, sensações, fatos e ideias de uma forma que até
então não fora até então alcançada. Sua posição de destaque entre os poetas portugueses de
seu tempo é devida também ao fato de em sua obra estarem presentes tanto o humanismo
como a expansão ultramarina, isto é, os dois elementos que caracterizaram o Renascimento
português.
Os Lusíadas é um poema épico escrito em oitavas-rimas de versos decassílabos
heróicos. Tem dez cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos. O motivo básico do poema é a
expedição de Vasco da Gama em busca de um caminho marítimo para as Índias. No entanto,
cerca de 1/3 do poema é dedicado aos grandes feitos dos reis e dos homens importantes do
reino de Portugal. Assim, Os Lusíadas constituem, na verdade, a narrativa épica da história de
Portugal, desde as origens até a época em que Camões viveu. O termo lusíada é sinônimo de
português e provém de Luso, o fundador mitológico da Lusitânia, isto é, Portugal. O poema se
desenvolve em duas linhas que às vezes se confundem: os fatos históricos e as invenções
mitológicas. Há ainda uma terceira linha representada pelas interferências do poeta:
comentários sobre o papel da poesia na história, sobre a política européia e sobre o poder do
dinheiro.
Quando tem início a ação do poema, os navios portugueses já se encontram no oceano
Índico, isto é, no meio da viagem. Enquanto isso, os deuses se reúnem no Olimpo para tomar
decisões a respeito dos navegadores. Baco é contrário aos portugueses, mas Júpiter está a
favor deles, passando a contar também com o apoio de Vênus e Marte. Os navios chegam a
Moçambique e Vasco da Gama desce à terra. Baco arma uma cilada, mas não é bemsucedido. A viagem prossegue e os navios se aproximam de Mombaça. No entanto, Vênus faz
com que se afastem, pois Baco preparara outra cilada. Vênus então pede a Júpiter maior
proteção para os portugueses. A seguir, os navegadores chegam a Melinde, onde são muito
bem recebidos. Vasco da Gama passa a contar a história de Portugal para o rei de Melinde.
Primeiramente descreve a Europa e depois dá início a seu relato. Fala do Luso, fundador da
Lusitânia, e de Dom Henrique de Borgonha, para então narrar uma série de episódios: o de
Egas Moniz, a morte de Inês de Castro, a batalha de Aljubarrota, a tomada de Ceuta, o sonho
profético de Dom Manuel, os preparativos para a viagem, a fala do velho do Restelo e a
partida dos navegadores. Prossegue o relato contando a primeira parte da viagem, cujos
pontos mais importantes são os seguintes: o fogo de Santelmo, a tempestade, o gigante
Adamastor, a chegada à Melinde. Após esse relato, os navegadores continuam a viagem,
enfrentando nova tempestade provocada por Baco e Éolo. Vênus, no entanto, envia ninfas
para acalmar a tempestade. Finalmente os portugueses chegam a seu destino, isto é, Calicute,
na Índia. De regresso a Portugal, passam pela ilha dos Amores, que é colocada em seu
caminho por Vênus e onde são recebidos por ninfas, que lhes oferecem um banquete como
recompensa pelos atos heróicos. Nesse episódio, é mostrado a Vasco da Gama o futuro
glorioso de Portugal.
Embora utilizando amplamente elementos mitológicos, Os Lusíadas é basicamente um
poema que celebra a inspiração cristã das descobertas marítimas. No entanto, está presente na
epopéia camoniana a consciência dos males e sacrifícios que poderiam resultar dessas
descobertas. Camões não deixou de estabelecer uma distinção entre o valor em si dos feitos
portugueses e o valor ético discutível do objetivo de seus empreendimentos. Desse modo,
verifica-se que o poema conjuga claramente o humanismo e o expansionismo que marcaram o
Renascimento português.
O gigante Adamastor aparece no Canto V d‘Os Lusíadas. Vasco da Gama encontra-se
em Melinde e narra ao rei a viagem de Portugal ao Canal de Moçambique, no Índico. São
vários obstáculos, representados ora por fenômenos naturais como a tromba marítima, ora por
doenças como o escorbuto. Neste canto, Vasco narra a passagem pelo Cabo das Tormentas,
personificado na figura do Gigante Adamastor com quem dialoga. O gigante era uma figura
[...]
Disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-me que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso.
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo. (Estrofes 39-40, Canto V).
A primeira visita que RR faz ao chegar a Portugal é ao túmulo de seu criador, FP. No
caminho encontra-se com a estátua de Camões, que possui uma claridade branca às suas
costas, como um círculo luminoso. Mais adiante, observa que se esqueceram de colocar
versos no pedestal da estátua do poeta, fica a dúvida de quais versos seriam. Ao atravessar o
Bairro Alto, Reis depara-se novamente com o Camões,
[...] era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao
mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espadachim, espécie de D‘Artagnan
premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no último momento, os
diamantes da rainha às maquinações do cardeal. (Saramago:1998, 70).
Ao regressar do almoço, no dia da Festa da Raça, dez de junho, Reis percebe que há
flores na estátua de Camões, uma homenagem de associações patrióticas. Se ele tivesse ido à
noite na praça, teria encontrado Pessoa sentado num dos bancos. E se este quisesse recitar de
memória um poema da Mensagem dedicado a Camões, perceberia
[...] que não há na Mensagem nenhum poema dedicado a Camões, parece
impossível, só indo ver se acredita, de Ulisses a Sebastião não lhe escapou
um, nem dos profetas se esqueceu, Bandarra e Vieira, e não teve uma
palavrinha, uma só, para o Zarolho, e esta falta, omissão, ausência, fazem
tremer as mãos de Fernando Pessoa, a consciência perguntou-lhe, Porquê, o
inconsciente não sabe que resposta dar, então Luís de Camões sorri, a sua
boca de bronze tem o sorriso inteligente de quem morreu há mais tempo, e
diz, Foi inveja, meu querido Pessoa, mas deixe, não se atormente tanto, cá
onde ambos estamos nada tem importância, um dia virá em que o negarão
cem vezes, outro lhe há-de chegar em que desejará que o neguem. (ibid.,
351-352).
Marcenda e Reis marcam um encontro no Alto de Santa Catarina. Antes, o poeta
almoça no restaurante Irmãos Unidos. Novamente a estátua de Camões aparece no caminho
de Reis que, ao chegar ao local de encontro, defronta-se com um grande bloco de pedra, a
estátua do Adamastor,
[...] toscamente desbastado, que visto assim parece um mero afloramento de
rocha, e afinal é monumento, o furioso Adamastor, se neste sítio o instalaram
não deve ser longe o cabo da Boa Esperança. (ibid., 181).
Neste local, Reis irá encontrar dois velhos, dois velhos do Restelo mudos, ―[...] sentados no
mesmo banco, calados, provavelmente conhecem-se há tanto tempo que já lhes falta de que
falarem, talvez andem só a ver quem morrerá primeiro‖ (idem). Até o final do romance, Reis
terá um constante encontro com esses dois velhos que terão os seus retratos esboçados por
Saramago:
[...] estavam os velhos no passeio fronteiro, como insectos atraídos pela luz,
e ambos eram soturnos como insectos, um alto, outro baixo, cada qual com o
seu guarda-chuva, de cabeça levantada como o louva-a-deus, desta vez não
se intimidaram com o vulto que aparecera e os observara, foi preciso
aumentar a chuva para que se decidissem a descer a rua, a fugir à água que
escorria dos beirais, chegando a casa os repreenderão as mulheres, se as têm
[...] (ibid., 220).
Ao longo da conversa com Marcenda, Reis reflete sobre Os Lusíadas:
[...] É como todas as coisas, as más e as boas, sempre precisam de gente que
as faça, olhe o caso dos Lusíadas, já pensou que não teríamos Lusíadas se
não tivéssemos tido Camões, é capaz de imaginar que Portugal seria o nosso
sem Camões e sem Lusíadas, verdadeiramente pensássemos nisso [...] (ibid.,
183).
A imagem do gigante Adamastor irá percorrer os caminhos tortuosos da literatura
universal. Encontraremos ecos seus na Poesia I, do quase sempre esquecido Isidore Ducasse,
criador do Conde de Lautréamont, autor dos Cantos de Maldoror, que irá se referir ao
gigante, que cantá-lo, assim como a Jocelyn e Rocambole, é uma atitude um tanto pueril.
Ao se mudar para a sua nova residência, Reis tem, como vista do seu quarto, a imagem
do lívido Adamastor a bramir em silêncio, recortado pela cor plúmbea das nuvens. Diante do
Adamastor, Reis irá chorar, ―[...] vendo aos poucos diluir-se a figura contorcida do
Adamastor, perder sentido a sua fúria contra a figurinha verde que o desafia, invisível daqui
e sem mais sentido do que ele‖ (ibid., 211). O próprio gigante já havia chorado por Tétis, e
Reis, ao olhar para a estátua, vê que sobre as suas costas
[...] cai uma já esmorecida luz, rebrilha o dorso hercúleo, será da água que
vem do céu, será um suor de agonia por ter a doce Tétis sorrido de escárnio e
maldizendo, Qual será o amor bastante de ninfa, que sustente o dum gigante,
agora já ele sabe o que valiam as prometidas abonanças. Lisboa é um grande
silêncio que rumoreja, nada mais. (ibid., 221).
A relação de Reis e Marcenda é comparada à do Adamastor e Tétis:
[...] aqui está o Adamastor que não consegue arrancar-se ao mármore onde o
prenderam engano e decepção, convertida em penedo a carne e o osso,
petrificada a língua, Por que é que ficou tão calado, pergunta Marcenda, e
ele não responde. (ibid., 298).
No sexto encontro entre Reis e Pessoa, este fala do seu imperdoável esquecimento de
[...] não ter posto o Adamastor na Mensagem, um gigante tão fácil, de tão
clara lição simbólica, Vê-o daí, Vejo, pobre criatura, serviu-se o Camões
dele para queixumes de amor que provavelmente lhe estavam na alma, e para
profecias menos do que óbvias, anunciar naufrágios a quem anda no mar,
para isso não são precisos dons divinatórios particulares, Profetizar
desgraças sempre foi sinal de solidão, tivesse correspondido Tétis ao amor
do gigante e outro teria sido o discurso dele. (ibid., 227).
Na primeira manhã em sua casa, Reis sai para fazer algumas pequenas compras, aproveita a
solidão da praça para dar uma volta à estátua,
[...] ver quem era o autor, quando fora feita, a data lá está, mil novecentos e
vinte e sete, Ricardo Reis tem um espírito que sempre procura encontrar
simetrias nas irregularidades do mundo, oito anos depois da minha partida
para o exílio foi aqui posto Adamastor, oito anos depois de aqui estar
Adamastor regresso eu à pátria, ó pátria, chamou-me a voz dos teus egrégios
avós. [...] (ibid., 230).
Ao sair para procurar emprego, Reis consegue a substituição de um colega especialista
do coração e pulmões, numa policlínica na Praça de Luis de Camões. Na página do jornal, o
poeta vê a foto do dirigível Graf Zeppelin, tal veículo recebe a adjetivação de gigantesco,
adamastórico.
RR fica três dias sem sair de casa após a ida a Fátima, sua reentrada no mundo exterior
se dará pelo pórtico do patriotismo salazarista que promete um novo império a um povo
eleito. Reis relê o jornal à sombra do Adamastor, local onde se encontram os dois velhos a
verem a chegada dos barcos no Alto de Santa Catarina,
[...] oito séculos te contemplam, ó mar, os dois velhos, o magro e o gordo,
enxugam a lágrima furtiva, lastimosos de não poderem ficar por toda a
eternidade neste miradouro a ver entrar e sair os barcos, isso é o que lhes
custa, não a curteza das vidas. (ibid., 322).
No oitavo encontro entre Reis e Pessoa, este diz já lhe falhar a memória. O heterônimo
lembra-lhe que poderia usar a imagem do Adamastor como ponto de referência, ao que o
outro retruca que ―[...] Se pensasse no Adamastor mais confuso ficaria, começava a pensar
que estava em Durban, que tinha oito anos, e então sentia-me duas vezes perdido, no espaço
e na hora, no tempo e no lugar [...]‖ (ibid., 331). Já quase no final do romance veremos a
angústia apertar a garganta de Reis, o mesmo acontecendo com a figura do gigante, que
contudo,
[...] preso à sua pedra o Adamastor vai lançar um grande grito, de cólera pela
expressão que lhe deu o escultor, de dor pelas razões que sabemos desde o
Camões. Como os velhos, Ricardo Reis acolhe-se à penumbra da sua casa,
aonde a pouco e pouco voltou o antigo cheiro do bafio. (ibid., 346).
Nos seus últimos instantes de vida, RR está numa Lisboa sossegada, no entanto, o
poeta está nervoso e inquieto. Desce ao jardim para ver os barcos ancorados, é ―[...] o único
ser vivo no Alto de Santa Catarina, com o Adamastor já não se podia contar, estava
concluída a sua petrificação, a garganta que ia gritar não gritará, a cara mete horror olhála‖ (ibid., 409). O poeta dorme vestido durante toda a sua última noite; pela manhã, após o
banho, escuta o primeiro tiro disparado pelo forte de Almada contra os barcos revoltosos. Irá
ler na página central do vespertino sobre a morte dos doze marinheiros revoltosos, entre eles
Daniel Martins, de vinte e três anos, irmão de Lídia.
Criador e criatura deixam o mundo dos vivos, a figura do gigante Adamastor não se
voltará para vê-los partirem, e talvez desta vez consiga dar o tão esperado grande grito numa
terra que espera.
10. Influências angustiantes
Ao se apropriar das obras de outros autores que lhe são caros, tais como Camões,
Pessoa, Borges, Eça, Saramago agencia a influência nos termos do crítico Harold Bloom em
Um mapa da desleitura, ou seja, a influência entendida como relações entre textos,
dependente de um ato crítico de uma desleitura/desapropriação. A par disso, leitura e escrita
são governadas por uma relação de influência, em que a leitura é uma desescrita e a escrita é
uma desleitura. Estamos assim, naquilo que Bloom define como o partilhamento dos dilemas
do revisionismo, entendido como um redirecionamento do olhar engendrado pelo revisionista
a desejar uma reestimativa, ou uma reavaliação. Para se tornar um escritor, e um dos mais
fortes (Bloom) da contemporaneidade, Saramago inclui e afirma outros escritores, no mesmo
momento em que exclui e nega outros tantos. Percebemos então,
[...] que um poeta é conhecido como poeta somente por um sistema
inteiramente contraditório de inclusão/exclusão, negação/afirmação que,
pelo intermédio das defesas psíquicas, se manifesta como
introjeção/projeção. (Bloom:1995, 129).
Afinal constatamos que em Saramago todos os caminhos vão dar a Camões, a Pessoa,
a Borges, e a outros tantos escritores. Destarte, está reservado-nos no centro, uma surpresa,
que consiste na afirmação do caráter essencial da relação com outrem, à essência do ser-outro.
Ao situarmo-nos dessa maneira no mundo, dizemos que o simples é duplo, o último átomo
indiviso constitui-se por dois.
Todavia, o centro da narrativa-labirinto saramaguiana deve ser entendido como o
centro inexistente e problemático da pós-modernidade que, enquanto fenômeno contraditório,
desafia os próprios conceitos que instala, questionando as bases de certeza histórica, literária,
referencial, entre outras. Pensemos na noção de centro deslocante de Blanchot, que se
assemelha a um gradiente, uma rede cujo centro são os seus variados nós.
Um livro, mesmo fragmentário, possui um centro que o atrai: centro esse que
não é fixo, mas se desloca pela pressão do livro e pelas circunstâncias de sua
composição. Centro fixo também, que se desloca, é verdade, sem deixar de
ser o mesmo e tornando-se sempre mais central, mais esquivo, mais incerto,
e mais imperioso. (Blanchot:1987, 7).
O desafio à noção clássica de centro é o repensar das margens e das fronteiras, onde o
local e o regional são reafirmados à medida que o centro começa a dar lugar às margens;
assim, a imagem do labirinto ausente de centro substitui a convencionalidade de uma noção
organizada e hierarquizada da sociedade e do mundo, em que os indivíduos e as nações são
hierarquicamente concebidos. Assim, nessa descentralização operada pelo romance
saramaguiano, Lídia (a ninfa do heterônimo, a arrumadeira do HB, a amante de RR) e
Portugal (país periférico dentro da Europa) possuem voz através da valorização do local e do
periférico, deixando de desempenhar o papel de faxineiros da história, assumindo as suas
diferenças enquanto mulher e país. Dessa forma, o outro, o externo e o diferente, diga-se
periférico, manifestam-se com evidência, pois estabelecido o arquivo de uma tal sociedade,
estabelece-se a sua diferença, pois a sua razão está na diferença dos discursos. A nossa
história se dará na diferença das épocas, os nossos eus serão forjados na diferença das
máscaras. Nesta diferença estará a dispersão do que nos fazemos e do que fazemos.
Temos então, uma perspectiva do diferente e do marginal que altera o foco narrativo,
justamente por não possuir uma força centralizadora no discurso saramaguiano. Na pósmodernidade, a ausência de centralização atingiu a configuração das escolas literárias,
abolindo-as juntamente com os seus estatutos e regras de conduta, onde existe uma variedade
de discursos possíveis, pois vivemos hoje num mundo pluralista, num verdadeiro mosaico
social, em que a outrora sociedade monolítica e uniforme cedeu lugar a uma sociedade mais
complexa, variada e pluriforme, com o consequente reconhecimento da dignidade da pessoa
humana, e a derrocada dos regimes totalitários.
A convivência de muitas culturas, e de muitos estados numa comunidade é o
fenômeno conhecido por multiculturalismo, cuja coexistência de diversas correntes de
pensamento ou visões de mundo (Weltanschauung) são legitimadas, a noção de Verdade
adquiriu assim, um conceito mais abrangente e complexo. Contudo, ao replicar o modelo da
ação comunicativa de Jurgen Habermas, Jean-François Lyotard reafirma o seu ceticismo com
relação aos fundamentos de uma razão universal e propõe uma guerra à totalidade, uma
recusa ao universalismo e ao seu correlato, o multiculturalismo. Lyotard enxerga no mundo
contemporâneo a continuação do culturicídio advindo da incapacidade de se construir um
sistema de relações que avoque a liberdade de culturas minoritárias, periféricas, como é o
caso de Portugal. Desse modo, pode-se encarar a tão decantada globalização como um atroz
imperialismo descentralizado, no qual se tem o funcionalismo vazio de um sistema de
produção/troca de informações/serviços cujo objetivo é a acelerada racionalização da
produção.
Fica claro assim que, ao esboçarmos uma concepção da pós-modernidade nos
apoiamos não numa concepção meramente estilística, com o seu quê de julgamento moral,
pois consideramo-la um erro categorial; a nossa escolha é uma concepção históricosociológica da pós-modernidade, pois pensamos nosso tempo presente na história de um
modo dialeticamente genuíno.
11. O Flâneur
O dandismo do flâneur é, para o poeta simbolista francês Charles Baudelaire, o último
brilho do heróico em tempos de decadência. Destarte, RR exerce a sua flânerie em meio à
multidão de transeuntes, de línguas, de celebridades, de notícias nos jornais. A multidão
jubilosa a encher os espaços da cidade não é uma multidão qualquer, mas um todo popular
que ao organizar-se contraria a hierarquia social de poder. Nesta coletividade, o indivíduo se
dissolve como membro de um grande corpo popular, renovando-se com o artifício das
fantasias e das máscaras. O poeta percebe então o quão difícil é manter-se indiferente ao
espetáculo do mundo. Já no final do romance ―... uma tenaz de angústia aperta a garganta
de Ricardo Reis, turvam-se-lhe os olhos de lágrimas, também foi assim que começou o
grande choro de Adamastor‖ (Saramago:1998, 406).
O sentimento de alheamento por parte de Reis, ao retornar à terra natal após dezenove
anos, é semelhante ao que sentirá uma personagem de José Rodrigues Miguéis no conto
Regresso à cúpula da pena. Miguéis é um autor querido por Saramago, que conta nos
Cadernos não encontrar museu algum que queira a correspondência do amigo escritor que
aparecerá na Jangada. Sassa e Anaiço deixam o esgotado Orce subir ao quarto do HB para
descansar, e resolvem ir jantar fora.
Coitado, em que andanças o metemos, isto foi dito por José Anaiço, A mim
também me causticaram com exames e perguntas, mas não há comparação
com o que lhe fizeram a ele, sabes o que isto me fez lembrar, um conto que li
há anos, Inocente entre Doutores chamava-se, De Rodrigues Miguéis, Esse.
(Saramago:1998a, 121).
Mas voltemos à questão do sentimento de alheamento por parte de Reis no retorno. A
personagem do conto de Miguéis sairá de Portugal como tripulante de um navio cargueiro, e
deixará, sem que o saiba, recordações no coração da prima Henriqueta que ainda o estará
aguardando depois da ausência de vinte anos. O regresso é sonhado, pelo viajante, como um
triunfo sobre o tempo, sobre si-mesmo, sobre a solidão; uma ponte a transpor um hiato entre
passado e presente,
[...] um reencontro em espasmo, uma posse gloriosa e renovada – e ao fim de
alguns dias sentia-me perplexo, distanciado, sem relação (além da
imaginária) com este ambiente que fora outrora o meu. Como um doente
despersonalizado, começava a duvidar de mim mesmo. Uma leve angústia
advertia-me de que era chegado o tempo da resolução.
Tinha partido daqui vinte anos antes, guardando disto tudo uma
imagem estática, cristalizada, que só para mim era viva e actual, pois
conservá-la era preservar a própria pele e manter-me idêntico a mim mesmo;
e via agora com espanto que o que trazia comigo era apenas um ramalhete de
flores murchas, um cadáver conservado de que urgia libertar-me. A minha
vida tinha sofrido um corte em dado instante do passado, era como um stil de
cinema, antiquado e risível. Como poderia eu actualizá-la, fazê-la voltar a
ser presença, participação e movimento? Sofria, assim, como um indivíduo
que, olhando-se no espelho, não reconhece a sua própria imagem. Percebia
(tarde de mais?) que insensivelmente me derivara pelo mundo; que para
viver, para sobreviver a tudo, me fora preciso metamorfosear-me. E ninguém
pode homologar assim, dum instante para o outro, o curso irreversível das
coisas e do tempo. Além disso, envelhecera também, o que não era menos
grave. (Miguéis:1968, 117-118).
Esta personagem carrega dentro de si, como um talismã, a imagem cristalizada de um mundo
que lhe permite suportar a solidão em suas viagens. No entanto, a nova solidão do retorno lhe
é inesperada, é a solidão do que antes lhe fora familiar, e por isso, esta solidão é mais cruel.
É necessário então, desvencilhar-se do passado de si-mesmo, uma estranha multidão
de ruínas, cujos rostos familiares já não o reconhecem. Estrangeiro em seu próprio país, a
personagem clama por alguém que o restitua ao dia-a-dia. Percebe contudo, que a única
maneira que terá para reatar um fio partido, será a forma impessoal e sutil do drama. Ao
mesmo tempo em que será uma dessas pessoas do cotidiano, poderá observá-las como se o
não fosse. Assim, sendo o mesmo e o outro, participante e alheio, adentrará na gota de vida
reluzente, diluindo-se no convívio da gente que passa.
Do mesmo modo, Reis penetrará no drama da cidade de Lisboa, com suas gentes
mutuamente impregnadas desta gota reluzente, uma enxurrada veemente e profunda. Reis é
assim aquele ser-no-mundo de Heidegger aberto em seu próprio ser, incomodado no
desabrigo; o Dasein angustia-o e ele angustia-se ante o Dasein revelado pela angústia,
liberando aquilo que mais propriamente somos. Reis situa-se na totalidade do ente que a partir
de uma existência fáctica do ser-no-mundo desencoberto, tem a possibilidade da escolha num
mundo tornado infamiliar e inóspito, e por isso mesmo, angustiante. O labirinto urbano
permite a RR fantasiar imagens em sequência, liberando-o do presente e, por conseguinte,
desvendando-o ainda mais ao unir as pontas soltas da realidade. Ele assume, então, a sua
derrota enquanto homem da sociedade, pois, para escrever ele excluiu-se da convivência com
os outros, na tentativa de decifrar um pretenso texto original dentro de si.
A estrutura labiríntica se vê refletida na anatomia da cidade tradicional em sua ideia de
contenção, seja por razões sagradas ou militares. Tal cidade é marcada por um centro, ou
lugar de comunicação com o sagrado onde se celebra a liturgia de um sacrifício. Contudo, a
estrutura labiríntica da cidade moderna possui uma explosão de estruturas que desfaz e
obscurece o centro, cujos cidadãos se encontram desterritorializados e despersonalizados.
Reis é, no início do romance, aquele simples espectador do espetáculo do mundo, perambula
por uma Lisboa com que tenta dialogar.
Entra no Rossio e é como se estivesse numa encruzilhada, numa cruz de
quatro ou oito caminhos, que andados e continuados irão dar, já se sabe, ao
mesmo ponto, ou lugar, o infinito, por isso não nos vale a pena escolher um
deles, chegando a hora deixemos esse cuidado ao acaso, que não escolhe,
também o sabemos, limita-se a empurrar, por sua vez o empurram forças de
que nada sabemos, e se soubéssemos, que saberíamos. (ibid., 92).
Contudo, ao longo do romance de sua morte, o heterônimo se sentirá cansado do mundo, da
cidade que palmilhara, deste espaço
[...] limitado por onde incessante circula, como a mula que vai puxando a
nora, de olhos vendados, e, apesar disso ou por causa disso, sentindo por
momentos a vertigem do tempo, o oscilar ameaçador das arquicteturas, a
viscosa pasta do chão, as pedras moles. (ibid., 267).
O homem moderno se vê incapaz de contemplar a dimensão simbólica do lugar em que
reside, e assiste ao contínuo desbordamento dos perímetros da cidade. Este homem está
alheado da ideia de contenção, de ligação entre o sujeito e os espaços exteriores que percorre.
É através de uma exposição prolongada ao meio, que o olhar se torna cuidadoso, apto
tanto para captar a minúcia quanto para apreender o geral do especificamente urbano, criando
hábitos e gerando códigos de deciframento, pois a cidade existe sob o signo de um segredo. E
para que a organização das grandes cidades seja possível, é necessário que exista a sua escrita
como cidade/texto, que deverá ser lido como o texto de uma civilização radicalmente distinta,
sem a especialização dos escribas, mas como o texto de uma cultura comum, cujo significado
social e psicológico será outro, invertido. Essa escrita não será mais um objeto de uso
particular de alguns privilegiados, mas terá a funcionalidade da publicidade, permitindo a sua
divulgação sob o olhar de todos. A relação homem/cidade opera-se através de processos
aproximativos que articulam o jogo dialógico entre as forças criativas destes dois organismos,
pois é a necessidade de orientação que marca a relação entre o sujeito e os objetos do seu
espaço. Assim, a aventura pessoal penetrará um labirinto de ruas, enquanto a inteligência
raciocinante penetrará um labirinto dos signos a ser decifrado, buscando a sua provável
ordem.
A personagem-flâneur do romance efetua a reconquista prática, num processo de
desalienação na cidade tradicional, da reconstrução e localização do sentido num conjunto
urbano articulado que poderá ser guardado na memória do indivíduo que terá assim, a
liberdade de mapear e remapear a variedade de opções e trajetórias, permitindo-lhe a
representação situacional em relação àquela totalidade mais vasta e verdadeiramente
irrepreensível que é o conjunto das estruturas da sociedade como um todo.
Nos Cadernos, Saramago diz não se lembrar dos motivos profundos que nos fazem
amar uma cidade em especial. Esse amor será construído de coisas ínfimas, uma rua, uma
fonte; no interior de uma grande cidade estará a pequena cidade de cada um. Ao habitarmos
fisicamente um espaço, habitaremos afetivamente uma memória, pois que toda memória é
quase sempre afetiva. O escritor diz que quando precisou reconstruir a Lisboa do romance da
morte, teve de voltar cinco décadas na sua vida para conseguir imaginar a Lisboa pessoana,
sem que, contudo, houvesse coincidência de ideias tão diferentes sobre a mesma cidade. Uma
é a cidade do adolescente limitado em sua condição social e timidez, outra é a cidade do poeta
lúcido e genial. A Lisboa do adolescente é uma cidade de bairros pobres, rural nos hábitos e
nas ideias, cuja primeira impressão se manterá ao longo da vivência do escritor, será a sua
memória mais grata apesar dos novos ambientes em que viverá.
Hoje, aqui tão longe, apercebo-me de que a imagem da Lisboa do presente se
vai distanciando aos poucos de mim, via-se tornando memória de uma
memória, e prevejo, embora saiba que nunca serei nela um estranho, que
chegará um dia em que percorrerei as suas ruas com a curiosidade perplexa
de um viajante a quem tivessem descrito uma cidade que deveria reconhecer
logo, e que se encontra, não precisamente com uma cidade diferente, mas
com a impressão de estar perante um enigma que terá de resolver se não
quiser tornar a partir de alma triste e mãos vazias. Farei então o mesmo que
o perplexo viajante: procurarei pacientemente até reencontrar o espírito da
cidade, esse que se oculta na sombra verde dos jardins, na cor desmaiada de
uma fachada que o tempo castigou, na fresca e penumbrosa entrada de um
pátio, o espírito que flutua desde sempre nas águas do Tejo e nas suas marés,
que fala nos gritos das gaivotas e no rouco mugido dos barcos que partem.
(Saramago:1997, 208).
O que sobreviverá nas cidades será o seu espírito, o surdo e imperioso rumor da vida que
torna eternas as cidades. Não nos esqueçamos que Saramago escreve esse diário auto-exilado
na ilha de Lanzarote. Assim como RR, ele também foi embora descontente de Portugal.
O espaço da grande cidade transcende o horizonte do sujeito que cria, então, espaços
próprios ao dividir o mundo em espaços conhecidos e desconhecidos, familiares e estranhos.
O flâneur RR renuncia ao espaço-privado burguês, e se narcotiza na multidão sentindo de
perto os acontecimentos que assumem um papel ativo na vida da grande cidade. E, ainda
mais, ver e passear são os correlatos de uma realidade que deseja confirmar sua visão
alucinatória que confunde o que é passado ou presente, mental ou físico, subjetivo ou
objetivo.
Podemos falar então da cidade como um labirinto ordenável pela mônada leibniziana,
por um ponto de vista sobre a cidade, cujo vórtice do cone ―[...] é a condição sob a qual é
apreendido o conjunto da variação das formas ou a série das curvas do segundo grau‖
(Deleuze:1991, 44).
Apreendem-se assim, na alma sob um ponto de vista, as possibilidades variegadas de
todas as conexões entre percursos de ruas. Desse modo, o pós-modernismo – numa forma
política – se constituirá, numa escala social e espacial, como o mapeamento cognitivo global
do indivíduo.
12. Festas populares
O traço mais marcante das festas populares é o ajuntamento de pessoas, e o sentido de
suas formas pode começar a ser delineado a partir da noção de simbolismo realista proposto
por Bakhtin. Nesta conceituação existe uma espécie de jogo meio real/simbólico com o
ideário do poder, cujo espetáculo real sem palco, dificulta o tracejamento de uma fronteira
nítida entre o real e o simbólico. Assim, o primeiro contato de RR com a multidão vai se dar
logo na chegada à cidade de Lisboa. Durante a sua flânerie, Reis alcança o meio da rua, e fica
defronte a entrada do grande prédio do jornal português O Século, guardada por dois policiais
a quem Reis pergunta sobre o ajuntamento,
[...] e o agente de autoridade responde com deferência, vê-se logo que o
perguntador está aqui por um acaso, É o bodo do Século, Mas é uma
multidão, Saiba vossa senhoria que se calculam em mais de mil os
contemplados, Tudo gente pobre, Sim senhor, tudo gente pobre, dos pátios e
barracas, Tantos, E não estão aqui todos, Claro, mas assim todos juntos, ao
bodo, faz impressão, A mim não, já estou habituado. (Saramago:1998, 69).
Esse primeiro contato se dá no último dia do ano de 1935, pelo fim da manhã. À noite,
estando o HB vazio, Reis decide sair e acompanhar as comemorações do reveillon de 1936.
Onze horas Reis levanta-se bruscamente do sofá,
[...] Que estou eu para aqui a fazer, toda a gente a festejar e a divertir-se, em
suas casas, nas ruas, nos bailes, nos teatros e nos cinemas, nos casinos, nos
cabarés, ao menos que eu vá ao Rossio ver o relógio da estação central, o
olho do tempo, o ciclope que não atira com penedos mas com minutos e
segundos, tão ásperos e pesados como eles, e que eu tenho que ir
aguentando, como aguentamos todos nós, até que um último e todos
somados me rebentem com as tábuas do barco. (ibid., 74).
Ao sair do hotel, percebe que as luzes do pajem italiano que segura o globo terrestre
estão apagadas, são sinais funestos de um ano difícil. No Chiado e na Rua do Carmo, Reis
encontra-se com alguns grupos e algumas famílias. No Rossio, ele mete-se pelo ajuntamento
de pessoas que estão com os olhares fitos no mostrador amarelo do relógio. Chegam-lhe sons
de tampas de panela batendo, matracas, barcos rugindo, sereias, buzinas de automóveis,
campainhas dos elétricos.
[...] finalmente o ponteiro dos minutos cobre o ponteiro das horas, é meianoite, a alegria duma libertação, por um instante breve o tempo largou os
homens, deixou-os viver soltos, apenas assiste, irónico, benévolo, aí estão,
abraçam-se uns aos outros, conhecidos e desconhecidos, beijam-se homens e
mulheres ao acaso, são esses os beijos melhores, os que não têm futuro.
(ibid., 77).
Depois da algazarra, Reis caminha de volta ao hotel pela Rua do Ouro, o chão está repleto de
detritos jogados fora pelas janelas.
Atira-se fora o que é inútil, objectos que deixaram de servir e não vale a
pena vender, guardados para esta ocasião, esconjuros para que a abundância
venha com o ano novo, pelo menos ficará o lugar em aberto para o que de
bom possa vir, assim não sejamos esquecidos. (ibid., 77).
O segundo contato com a multidão se dará por ocasião do crime do Mouraria. RR lê
os jornais e a notícia do crime passa-lhe despercebida, todavia, o gerente Salvador chama-lhe
a atenção para a cena de sangue, em que um tal José Reis, ou José Rola, dá cinco tiros na
cabeça de um tal António Mesquita, o Mouraria. RR decide ir ao funeral,
[...] apareceu discretamente muito antes da hora marcada para a saída do
préstito, de largo como lhe fora recomendado, não queria cair no meio duma
refrega tumultuária, e ficou estupefacto ao dar com o ajuntamento, centenas
de pessoas que enchiam a rua em frente do portão da morgue, seria como o
bodo do Século se não fosse dar-se o caso de haver tantas mulheres vestidas
de berrante encarnado, saia, blusa e xale, e rapazes com fatos da mesma cor,
singular luto é este se são amigos do morto, ou arrogante provocação se
eram inimigos dele, a cena mais parece um cortejo de entrudo [...] era o
batalhão maldito que atravessava a cidade, abriam-se as janelas para os ver
desfilar, despejara-se o pátio dos milagres. (ibid., 151).
RR acompanhará o funeral até o Paço da Rainha, pois algumas mulheres já o olhavam
furtivamente.
Num terceiro momento, Reis terá a experiência do carnaval em Portugal, que é
comparado ao do Brasil, e terá um novo encontro com a morte. O carnaval tinha uma
importância essencial na vida do homem medievo que celebrava ainda a festa dos tolos, do
asno e o riso pascal. Neste ambiente realizava-se a representação dos mistérios e soties das
festas religiosas. Contudo, a importância dos festejos do carnaval se dava a partir de uma
posição no mundo extra-oficial; as relações do homem com o mundo e com os outros homens
eram construídas ao largo do mundo oficial da igreja e do Estado, era um segundo mundo e
uma segunda vida que vivenciava-se em ocasiões determinadas, em uma dualidade do mundo.
Mas é só com a consolidação do regime oficial que a cultura popular adquire um caráter de
subversão, e de libertação da expressão do popular no mundo, que pertence à esfera particular
do cotidiano.
O RR de Saramago teve os seus tumultos dionisíacos refreados, e só por medo do
próprio corpo não se lançou ao turbilhão. Contudo, o poeta não corre estes perigos em Lisboa,
o céu continua carregado de água,
[...] não tanto que o corso não possa desfilar, vai descer a Avenida da
Liberdade, entre as conhecidas alas de gente pobre, dos bairros, é certo que
também há cadeiras para quem as puder alugar, mas essas irão Ter pouca
freguesia, estão numa sopa, parece partida carnavalesca, senta-te aqui ao pé
de mim, ai que fiquei toda molhada. Estes carros armados rangem,
bamboleiam, pintalgados de figuras, em cima deles há gente que ri e faz
caretas, máscaras de feio e de bonito, atiram com parcimónia serpentinas ao
público, saquinhos de milho e feijão que acertando aleijam, e o público
retribui com um entusiasmo triste. (ibid., 159).
Ao se situar na fronteira entre a arte e a vida, que é apresentada com elementos
característicos da representação, o carnaval possui um poderoso elemento de jogo que anula
qualquer distinção entre atores e espectadores que o vivem na fronteira espacial das leis da
liberdade. Ao abolir provisoriamente tal distinção, as festividades carnavalescas permitem
que a própria vida represente e interprete uma sua outra forma livre de realização, cujo jogo
transforma-se em vida real com o renascimento de seus princípios numa segunda vida do
povo.
Depois de rever e reconhecer o carnaval de Lisboa, Reis segue calado para o hotel,
quase noite, e sente-se cansado, triste. Aparece-lhe então um cortejo de carpideiras, homens
fantasiados de mulher,
[...] com exceção dos quatro gatos-pingados que transportavam ao ombro o
esquife onde ia deitado um outro homem que fazia de morto, com os queixos
atados e as mãos postas, aproveitaram não estar a chover e saíram com a
mascarada à rua. (ibid., 162).
Ao retomar o seu caminho Chiado acima, aparece-lhe um vulto singular,
Era uma figura vestida de preto, com um tecido que se cingia ao corpo, talvez a malha, e
sobre o negro da veste o traçado completo dos ossos, da cabeça aos pés, a tanto pode
chegar o gosto da mascarada. (ibid., 163).
Reis lembra-se então da proposta de Pessoa de se fantasiarem no carnaval,
[...] seria ele, É absurdo, murmurou, nunca faria tal coisa, e se a fizesse não viria juntar-se
a estes vadios, talvez se pusesse à frente dum espelho, isso sim, porventura vestido desta
maneira conseguiria ver-se. (ibid., 163).
O homem tinha o recorte de Pessoa, só que mais magro. Ao aproximar-se da figura, ela
afasta-se para o fim do cortejo, sobe a Calçada do Sacramento e foge por ruas e largos. Reis
persegue-a insistentemente, e na Travessa da Queimada pergunta-se ―[...] aonde me levará
esta morte mofina, e eu, por que vou eu atrás dela, pela primeira vez duvidou se seria homem
o mascarado, seria mulher, ou nem mulher nem homem, apenas morte‖ (ibid., 164).
O vulto entra numa taberna, é recebido com uma algazarra de olha a máscara, olha a
morte. Quando o mascarado sai da taberna defronta-se com Reis na esquina, que lhe vê os
dentes verdadeiros, gengivas brilhando de verdadeira saliva, a voz entre a de homem e a de
mulher. O vulto interroga-o então:
Olha lá, ó burgesso, por que é que andas atrás de mim, és maricas, ou estás
com pressa de morrer, Não senhor, de longe julguei que era um amigo meu,
mas pela voz já vi que não é, E quem é que te diz que não estou a fingir,
realmente a voz agora era outra, indecisa também, porém de maneira
diferente, então Ricardo Reis disse, Desculpe, e o mascarado respondeu com
uma voz que parecia a de Fernando Pessoa, Vai bardamerda, e voltando as
costas desapareceu na noite que se fechava. Como disseram as meninas do
basculho, é assim no carnaval, nada parece mal. Recomeçara a chover. (ibid.,
164).
As festividades como o carnaval são uma forma primordial da civilização humana, e
sempre tiveram um conteúdo profundo ao exprimirem uma concepção do mundo, e dos fins
superiores da existência humana. Sempre estiveram relacionadas com os períodos de crise,
acentuando sempre a renovação, a morte e a ressurreição. O carnaval é o triunfo de uma
liberação temporária do regime vigente, nele abolem-se as hierarquias e os privilégios. É a
festa do tempo, do futuro incompleto, nesta festa o homem retorna a si mesmo e perde a sua
alienação.
O outro momento de seu retorno, em que RR se defronta com a multidão e as festas
populares, é durante a procissão de Fátima. Após o beijo dado em Marcenda, esta decidiu não
mais procurar o poeta. No entanto, Reis, ao saber da ida da moça a Fátima, usa o subterfúgio
da procissão para procurá-la.
Festas, procissões e romarias católicas tradicionais representam importante atividade
na vida do povo português. Todos os anos milhares de pessoas fazem uma peregrinação até a
cidade portuguesa de Fátima, onde, em 1917, a Virgem Maria teria aparecido a três crianças
que cuidavam de rebanhos de ovelhas. Após uma cansativa viagem, Reis consegue chegar ao
seu destino, e lá se depara com uma multidão a crescer,
[...] se é possível, parece reproduzir-se a si mesma, por cissiparidade. É um
enxame negro gigantesco que veio ao divino mel, zumbe, murmura, crepita,
move-se vagarosamente, entorpecido pela sua própria massa. É impossível
encontrar alguém neste caldeirão, que não é do Pêro Botelho, mas queima,
pensou Ricardo Reis. (ibid., 314).
Ao longo do cortejo, um avião espalha anúncios do xarope Bovril, uma panacéia
supostamente científica que cura todos os males. Reis reflete então sobre o absurdo da
peregrinação, cujo comércio e mendicância são a confraria mercantil de uma catolicidade que
se institui a partir de uma saborosa litania, de uma oratória de gritos possessos.
Esta preciosa jóia da catolicidade resplandece por muitos lumes, os do
sofrimento a que não resta mais esperança do que vir aqui todos os anos a
contar que lhe chegue a vez, os da fé que neste lugar é sublime e
multiplicadora, os da caridade em geral, os da propaganda do Bovril, os da
indústria de bentinhos e similares, os da quinquilharia, os da estampagem e
da tecelagem, os dos comes e bebes os dos perdidos e achados, próprios e
figurais, que nisto se resume tudo, procurar e encontrar. (ibid., 317).
O poeta cruza toda a feira em busca do rosto de Marcenda, mergulha na profunda multidão e é
o espectador de seus exercícios religiosos, de suas ações patéticas. Os olhos do heterônimo
[...] vão de rosto em rosto, procuram e não encontram, é como estar num
sonho cujo único sentido fosse precisamente não o ter, como sonhar com
uma estrada que não principia, com uma sombra posta no chão sem corpo
que a tivesse produzido, com uma palavra que o ar pronunciou e no mesmo
ar se desarticula. (ibid., 318).
Ao anoitecer, após a saída e retorno da imagem da capelinha, das aparições e do não
acontecimento de quaisquer milagres, Reis está cansado, frustrado, com vontade de
desaparecer.
A si mesmo se vê como um ser duplo, o Ricardo Reis limpo, barbeado,
digno, de todos os dias, e este outro, também Ricardo Reis, mas só de nome,
porque não pode ser a mesma pessoa o vagabundo de barba crescida, roupa
amarrotada, camisa como um trapo, chapéu manchado de suor, sapatos só
poeira, um pedindo contas ao outro da loucura que foi ter vindo a Fátima
sem fé, só por causa duma irracional esperança. (ibid., 319).
Reis vai embora de Fátima sem aguardar o adeus à Virgem.
Por fim, o último contato de RR com a multidão se dará num comício político. A
função delineada por nós das festas populares sofrerá um pequeno desvio, pois apesar de um
comício ser também uma festa popular, ela não é feita pelo povo, mas para o povo por certa
elite. Podemos perceber que a característica anulatória das hierarquias sociais não está
presente em tal acontecimento. Ao contrário, nos comícios há um palanque onde ficam os
poderosos, e há um público a assistir tal exibição deste poder. Extingue-se aquela
característica de jogo meio real/simbólico com o ideário do poder, cujo espetáculo real sem
palco, dificultava o tracejamento de uma fronteira nítida entre o real e o simbólico.
Se no início do romance RR tomava contato com os acontecimentos do mundo através
dos jornais, já no final esse contato vai se dar através do rádio, uma pequena telefonia popular
da marca Pilot, que comprara.
Mas Ricardo Reis quer apenas manter-se a par das notícias, de maneira
discreta e reservada, ouvi-las num íntimo murmúrio, assim não se sentirá
obrigado a explicar a si mesmo, ou a tentar decifrar, que sentimento inquieto
o aproxima do aparelho, não terá de interrogar-se sobre ocultos significados
do olho mortiço, de ciclope moribundo, que é a luz do mostrador minúsculo,
se será de júbilo a expressão, contraditória se morre, ou medo, ou piedade.
(ibid., 385).
O heterônimo fica sabendo do comício através da rádio onde escuta os primeiros discursos
inflamados. O poeta jamais fora a um comício político, e esse a que vai acontecerá na Praça
de Touros do Campo Pequeno. Num romance-labirinto é extremamente sugestivo o lugar
onde ocorrerá tal acontecimento. Estamos em fins de agosto, numa noite quente.
A multidão, como um único homem, está de pé, o clamor sobe ao céu, é a
linguagem universal do berro, a babel finalmente unificada pelo gesto, os
alemães não sabem português nem castelhano nem italiano, os espanhóis não
sabem alemão nem italiano nem português, os italianos não sabem
castelhano nem português nem alemão, os portugueses, em compensação,
sabem muito bem castelhano, usted para o trato, quanto vale para as
compras, gracias para o obrigado, mas estando os corações de acordo, um
grito basta, Morte ao bolchevismo em todas as línguas. (ibid., 396).
Os lances já foram feitos, os jogadores estão reunidos defronte ao campo de batalha onde
ocorrerão as decisões antecipatórias de uma próxima guerra. Mesmo tendo vindo ao comício,
Reis não faz parte da festa. Vai embora e atravessa a pé toda a cidade de Lisboa.
Ricardo Reis olha a noite profunda, quem nos pressentimentos e estados de
alma tivesse a arte de encontrar sinais diria que alguma coisa se prepara. É
muito tarde quando Ricardo Reis fecha a janela, por fim não foi capaz de
pensar mais do que isto, A comícios não torno. (ibid., 398).
Estamos no fim de tudo, do romance, do ano de 1936, dos dias do ortônimo e do
heterônimo, do fim de nossa ingenuidade.
CAPÍTULO III
Bem, se você ficar só ouvindo, sem falar tanto, vou
lhe contar todas as minhas ideias sobre a Casa do
Espelho. Primeiro, há a sala que você poder ver
através do espelho, só que as coisas trocam de
lado. Posso ver a sala toda quando subo numa
cadeira... fora o pedacinho atrás da lareira. Oh!
Gostaria tanto de poder ver esse pedacinho!
Gostaria tanto de saber se eles têm um fogo aceso
no inverno: a gente pode saber, a menos que o
nosso fogo lance fumaça, e a fumaça chegue a esse
sala também... mas pode ser só fingimento, só para
dar a impressão de que têm um fogo. Agora, os
livros são mais ou menos como os nossos, só que
as palavras estão ao contrário; sei porque segurei
um dos nossos livros diante do espelho e eles
seguraram um na outra sala.
Alice através do espelho, Lewis Carroll
1. Várias Versões
Dentro do percurso maior que se percorre, o percurso do romance, da literatura e da
história, caminha-se pelas ruas e vielas de uma grande cidade, de um cemitério onde, ―O
funcionário ... explica solícito, dá a rua, o número, que isto é como uma grande cidade,
caro senhor‖ (Saramago:1998, 39). E assim vai-se tecendo a crítica do homem dessa época e
da sua urbanidade. Percorrem-se igualmente os caminhos de um hotel e os da sensibilidade
das pessoas que ―... tem recônditos tão profundos que se por eles nos aventurarmos com
ânimo de tudo examinar, há grande perigo de não sairmos de lá tão cedo‖ (ibid., 122).
Percebemos assim, que o labirinto possui, como nos diz Otavio Paz, várias versões;
lembremo-nos então, do filme The Sheltering Sky (O Céu que nos Protege), onde o diretor
Bernardo Bertolucci mostra-nos essas versões: o deserto; o intricado das ruas de uma cidade
africana; as paredes do quarto vistas do alto, sem o teto; o rosto da personagem central que se
desfigura por trás de bandagens ou num espelho que reproduz os traços deformados no
emaranhado das linhas. Num outro filme, Citizen Kane, do diretor americano Orson Welles, o
tema do labirinto é trabalhado no sentido de uma narrativa circular e fragmentada, com
elementos de vários discursos (político, jornalístico, artístico) que espelham o grande puzlle
que é, e que pode ser, a vida e a obra de um homem.
Win Wenders no filme Himmel uber Berlin (Asas do Desejo) constrói um exemplar de
cinema intelectual que necessita um trabalho de decodificação para ser compreendido e
apreciado, pois se articula no sentido da fragmentação de questões referentes ao tempo, ao
espaço, à história e ao lugar, que são evocados de forma direta, pois Berlim é examinada
através do olhar de um par de anjos, que estão fora do tempo humano do vir-a-ser, sendo
apresentada como uma extraordinária paisagem onde os espaços fragmentados e os incidentes
efêmeros do dia-a-dia não possuem uma lógica coesiva, e os espaços interiores assemelhamse a labirintos, em que os anjos escutam os pensamentos mais íntimos das pessoas. Nesta
paisagem urbana, pessoas alienadas movem-se em espaços fragmentados, ocorrendo um seu
aprisionamento numa pletora de incidentes sem padrão, em que se forja – no âmbito de uma
estrutura organizacional distintiva – as identidades individuais. O Muro de Berlim é
constantemente evocado como o símbolo dessa divisão que a tudo perpassa; assim, é
impossível perder-se na cidade de Berlim, pois sempre se pode encontrar o muro, um centro
absurdo. No filme, a biblioteca é usada para se tentar resgatar o sentido próprio da história de
Berlim em um texto disperso num terreno descontínuo de discursos heterogêneos enunciados
por línguas anônimas e não-localizáveis. Ou seja, um caos diferente dos textos clássicos do
modernismo, justamente naquilo em que não existe recontagem nem recuperação de um
arcabouço mítico abrangente. Enfim, a decisão do anjo Damiel de penetrar na cidade e
percorrê-la, vem da necessidade de vivenciar a criação de uma história espacial, e
atravessando-a, ela lhe parece menos fragmentada, assumindo desse modo, um aspecto
estrutural mais coerente.
2. O Sonho sonhado ou Relíquias do passado
Ao encenar as palavras saramaguianas, pela manhã adentro dorme a personagemtítulo do romance, e
... assiste ao seu próprio dormir, e, após muitas tentativas, conseguiu fixarse num único sonho, sempre igual, o de alguém que sonha que não quer
sonhar, encobrindo o sonho com o sonho, como quem apaga os rastos que
deixou, os sinais dos pés, as reveladoras pegadas. (ibid., 345).
O sonho desse alguém que sonha que não quer sonhar é descrito por Sigmund Freud
como sonhos de conveniência, cuja ação do desejo de dormir oferece apoio ao inconsciente,
ou seja, é a atitude de nossa atividade anímica dominante relativa aos sonhos.
Bom, o dormir e o sonhar de Reis assemelha-se em muito com o sonhar de outro
heterônimo de FP desenvolvido em O Livro do Desassossego, o poeta Bernardo Soares, que
condenado, pela constituição do seu espírito, a ter todas as ânsias, suportava com uma
indiferença de mestre a vida nula de um estóico com uma fraqueza que sustentava sua atitude
mental. Pois bem, esse heterônimo de uma felicidade baça que estava no eterno bifurcar dos
caminhos, diz-nos que, ao sonhar, por detrás da sua atenção sonha com ele alguém. Talvez o
heterônimo Soares não seja senão um sonho desse outro alguém que não existe.
Este fato remete-nos ao conto As ruínas circulares, de Ficções. Borges fala-nos de um
homem cinza e taciturno que, vindo do Sul, encaminha-se até um recinto circular, uma arena,
um templo devorado por antigos incêndios e cujo deus não recebe as honras dos homens. Este
forasteiro tem o propósito de sonhar um homem com uma integridade minuciosa e impô-lo à
realidade. Além de suprir as necessidades mais elementares, o homem cinza apenas dormirá e
sonhará, e no seu sonho, o sonhado despertará. A criatura será educada pelo criador a respeito
da realidade. A única criatura que conhece a verdade a respeito do fantasma criado é o fogo,
que destruirá as ruínas do santuário do deus do fogo com um incêndio concêntrico. Por fim, o
homem sonhador compreenderá que ele também estava sendo sonhado, era igualmente uma
aparência.
No entanto, a psicanálise freudiana alerta-nos para o fato que,―[...] por toda a duração
de nosso estado de sono, sabemos com tanta certeza que estamos sonhando quanto sabemos
estar dormindo‖ (Freud:1996, 600). O desejo de dormir dá lugar a outro desejo préconsciente, o de observar, controlar, e se possível, deleitar-se com os próprios sonhos.
Mas para o heterônimo Soares, não existir é o que há de mais doloroso no sonho, cujo
gesto é o esforço de um crime; e ainda, o sonho deverá ser sempre o de um isolado, e jamais
ser o abrigo de amoroso. Para Deleuze, o sonho não seria uma metáfora, mas uma série de
anamorfoses a traçarem um grande circuito. É um devir que poderá prosseguir ao infinito na
relação entre a pessoa que dorme e a que sonha. Ao engendrar essa espécie de relação, uma
voz dentro de si pergunta, como o faz a José de Arimateia no Evangelho: ―O que é que em nós
sonha o que sonhamos, Porventura os sonhos são as lembranças que a alma tem do corpo,
pensou a seguir, e isto era uma resposta‖ (Saramago:1998b, 22).
No sonho, um contínuo fragmentado de diferentes idades é construído, pois nos
servimos de transformações operadas entre os lençóis para constituirmos então, um lençol de
transformação. Assim, na ausência da imagem-lembrança as imagens encarnam-se uma na
outra, cada qual remetendo a um diferente ponto de lençol, apreendendo e prolongando a
trajetória dos pontos; é o deslinde num tempo não-cronológico das dobras do sonho, onde as
forças ativas/passivas derivadas da matéria nos remetem às forças primitivas da alma e à sua
harmonização.
Estamos, outrossim, na instância da escritura de origem (Derrida), onde a escritura
descreve a origem; logo, se escrevemos é porque temos a paixão da origem, e da sua
mistificação. Mas calma, mais adiante trataremos amiúde desse assunto.
Dessa forma, o sonhar é uma espécie de regressão à condição mais primitiva do
sonhador. Ao revivescer as moções pulsionais (Freud) dominantes durante a infância, o
sonhador efetua, segundo Freud citando Nietzsche, a recapitulação do desenvolvimento da
raça humana, onde ―[...] acha-se em ação alguma primitiva relíquia da humanidade que
agora já mal podemos alcançar por via direta‖ (Freud:1996, 578).
É na medida em que a trajetória de volta revela o feito como desfeito, tornando-se um
trabalho de recolher os próprios passos, de apagamento do rastro, que o labirinto define-se
como a prisão num tempo circular, e, ainda, define-se na sua autorreflexividade, e/ou
autorreferencialidade. Desse modo, é na hora de se barbear que a máscara do homem Reis
observa o que o espelho lhe mostra, e ao ver-se, não se reconhece.
RR parece conhecer a estória dos Animais dos espelhos de O livro dos seres
imaginários, de Borges. O escritor argentino explica-nos que, no tempo legendário do
Imperador Amarelo havia comunicação entre o mundo dos espelhos e o mundo dos homens;
havia paz em ambos os reinos, o especular e o humano. Mas uma noite, a Terra foi invadida
pelo reino dos espelhos, após sangrentas batalhas, prevaleceu a força das artes mágicas do
Imperador Amarelo, que conseguiu rechaçar os invasores, encarcerando-os nos espelhos e
impondo-lhes a tarefa de repetir, como numa espécie de sonho, todas as ações humanas.
Privados de sua força e de sua figura, eles são reduzidos a meros reflexos servis. Todavia, um
dia irão livrar-se dessa mágica letargia e nos dominarão.
Percebe-se assim, o deslinde num tempo não-cronológico engendrado por RR ao
observar no reflexo do espelho, como num sonho, o seu não reconhecimento, pois que
remetido àquelas forças primitivas e legendárias da alma.
Perdido no labirinto da sua memória, o poeta conserva na lembrança apenas alguns
fragmentos, e ―... por isso os sentimentos de ontem não se repetem nos sentimentos de hoje,
ficaram pelo caminho, irrecuperáveis, pedaços do espelho partido, a memória‖
(Saramago:1998, 176). Metáfora da transitoriedade do indivíduo que é também a do coletivo,
e da crise da modernidade, num seu estilhaçamento da vida cotidiana em incertezas atrozes,
pois ao ocorrer uma ruptura com o primado de uma estética clássico-humanista houve um
retorno à prosa da vida, cuja dúvida é constituinte do próprio direito de existência da poesia,
com a consequente criação de novas formas literárias e a abertura da arte à história atual e ao
movimento da época.
Assim, é tal o terror do labirinto que impede a distinção e o estabelecimento das
identidades, e por isso, o labirinto não é uma construção permanente, constituindo-se apenas,
imediatamente no lugar e no momento em que terror há, justamente na perplexidade diante
deste estilhaçamento do indivíduo, que em contrapartida, é a fragmentação e decomposição
das narrativas, cuja crise se mostra como a outra face da crise da noção de dimensão como
narrativa geometral, um discurso mensurável de um real visivelmente oferecido a todos.
No Evangelho, José de Arimateia é perseguido uma noite inteira por um pesadelo em
que se vê a cair repetidas vezes para o fundo de uma imensa tigela invertida semelhante ao
céu estrelado. A tigela faz parte da anunciação, por um anjo-mendigo (inversão), da vinda de
Jesus. Se o labirinto se constitui pela sua mediaticidade, pela sua presentidade semelhante à
do espelho, é porque a imagem especular labiríntica nos diz sempre a verdade de modo
desumano, porém confiável, ou, ―Em outras palavras, o que quer que seja uma imagem
especular, esta é determinada nas suas origens e na sua subsistência física por um objeto a
que chamaremos referente da imagem‖ (Eco:1989a, 21).
A imagem especular labiríntica é ícone absoluto, logo não pode ser questionada por
contrafactuais. O espelho como fenômeno-limiar com garantias anticontrafactuais provoca
justamente o terror. Desse modo, poderemos ponderar que o espelho e os sonhos assemelhamse como a imagem do homem diante de si mesmo. Em suma, o que queremos afirmar é que a
imagem especular labiríntica dos sonhos é crítica, justamente por impor o estabelecimento de
identidades ao indivíduo perplexo diante o universo de uma realidade capacitada a dar-lhe a
impressão de virtualidade.
3. Flânerie e Cinema
Ao continuar as suas andanças pela cidade-labirinto, o flâneur saramaguiano desce aos
baixos da urbe e assiste a um filme francês, reflete então que os filmes são semelhantes à
poesia, arte da ilusão; basta ajeitar-lhes um espelho, que se forja um pântano ou um oceano. O
primeiro contato de RR com o cinema em Lisboa se dará logo após o bodo do jornal na Rua
do Século. Depois de entrar em duas livrarias, Reis hesita diante do cine Tivoli que exibe o
filme Gosto de todas as mulheres, com Jean Kiepura. O poeta prefere deixar para outra
ocasião o assistir deste filme. Depois, ao ler os jornais, Reis vê o anúncio do filme histórico
As cruzadas, no Politeama. Após um dia inteiro fora do hotel, Reis retorna para o jantar no
HB e sai novamente para assistir ao filme sobre as cruzadas,
[...] que fé, que ardorosas batalhas, que santos e heróis, que cavalos brancos,
acaba a fita e perpassa na Rua de Eugénio dos Santos um sopro de religião
épica, parece cada espectador que transporta à cabeça um halo, e ainda há
quem duvide de que a arte possa melhorar os homens. (Saramago:1998, 98).
Em outra noite, após conversar com o doutor Sampaio e sua filha Marcenda durante o
jantar, Reis sai a vagar pela cidade, entrando em alguns cinemas para simplesmente ver os
cartazes. Logo após a mudança para sua nova residência, Reis almoça no restaurante Chave
de Ouro, e antes do anoitecer por completo,
[...] compra bilhete para o cinema, vai ver O Barqueiro do Volga, filme
francês, com Pierre Blanchard, que Volga terão eles conseguido inventar em
França, as fitas são como a poesia, arte da ilusão, ajeitando-lhes um espelho
faz-se de um charco o oceano. (ibid., 235).
Sozinho em sua casa, Reis pensa em Pessoa e nos outros heterônimos, Alberto Caeiro, já
morto, e Álvaro de Campos, que se mudara para Glasgow. De vez em quando frequenta as
salas de cinema,
[...] a ver o Pão Nosso de Cada Dia, de King Vidor, ou Os Trinta e Nove
Degraus, com Robert Donat e Madeleine Carrol, e não resistiu a ir ao S. Luís
ver Audioscópios, cinema em relevo, trouxe para casa, como recordação, os
óculos de celulóide que tem de ser usados, verde de um lado, encarnado do
outro, estes óculos são um instrumento poético, para ver certas coisas não
bastam os olhos naturais. (ibid., 325).
Para o cineasta francês Jean Renoir, os hinduístas por não terem definido
expressamente a diferença entre os domínios espiritual e material, e não sabendo direito onde
começa a divindade e onde o ser humano, possuem a extrema felicidade, pois não sabem o
que é lenda, história ou realidade. Renoir fica fascinado com essa confusão em que os nossos
pensamentos são resultantes das inspirações e respirações de Brahma, o mundo que vemos
sendo mero produto de nossa imaginação. O cinema, para o cineasta francês, possui essa
indefinição entre sonho e realidade, exigindo determinados exercícios físicos, pois é uma
religião prática, realizada com problemas materiais que tem grande importância. Dessa
forma,
Sempre se começa – e creio que todos os meus colegas fazem como eu – por
sonhos imprecisos. Em seguida, se enquadram esses sonhos na realidade; e
antes da conclusão do filme, é a realidade que prevalece. [...] Como todos os
sonhadores – ou seja, como todo mundo, pois todo mundo é sonhador –
acredito que, no final das contas, a realidade vale mais do que o sonho. [...]
A base do pecado mortal do cinema é esquecer que deve permanecer uma
ficção. (Renoir:1990, 29-67).
Reis chega a assistir às filmagens de A revolução de maio, filme baseado no romance
Conspiração, de Tomé Vieira, que lera por recomendação de Sampaio. O investigador Victor
atua como ator no filme de produção alemã, e mesmo após o corta do diretor, o investigador
continua a interpretar, confundido realidade e ficção. Saramago aproveita então para tecer,
sub-repticiamente, críticas à polícia:
[...] O Victor ainda vai no balanço dos desabafos, não consegue calar-se, o
caso para ele é a sério [...] O Victor já desceu com a sua esquadra, levam os
prisioneiros algemados, têm uma tal consciência do seu dever de polícias
que até esta comédia levam a sério, tudo quanto é preso deve aproveitar-se,
mesmo sendo a fingir. (Saramago:1998, 368-369).
No cinema, a imagem-tempo de Deleuze comporta o cinema de ficção e o cinema de
realidade, confundindo as suas diferenças, e, no mesmo movimento, as narrações tornam-se
falsificantes, e as narrativas tornam-se simulações. Destarte,
É todo o cinema que se torna um discurso indireto livre operando na
realidade. O falsário e sua potência, o cineasta e sua personagem, ou o
inverso, já que eles só existem por essa comunidade que lhes permite dizer,
nós, criadores de verdade. (Deleuze:1990, 188).
Enfim, notamos que o questionamento do cinema como arte da ilusão, faz parte de uma
discussão mais ampla perpetrada pelos próprios profissionais do meio cinematográfico.
Toda era é dominada pela estrutura de um gênero ou de uma forma privilegiada que
aparenta ser a mais correta para que se expressem as verdades secretas dessa mesma era, ou
aquilo que Sartre definiria por neurose objetiva de um tempo/espaço específico. É o ethos
scheleriano como conjunto das regras de preferência na hierarquia dos valores, que cada
povo ou pessoa-coletiva elege em uma determinada época histórica ou meio geográfico e
cultural. Em 1936, ano da morte do heterônimo pessoano, o cinema ainda era, segundo alguns
teóricos, a forma de arte dominante servindo como índice sintomático do Zeitgeist, a única na
história a ser inventada no período contemporâneo, e nitidamente, a primeira forma de arte
mediática; arte das impressões visuais que nos obriga a esquecer nossa própria lógica e os
hábitos de nossa retina. Entretanto, percebemos apenas clichês, ou seja, jamais percebemos a
imagem inteira, mas apenas o que estamos interessados em perceber devido aos nossos
interesses.
Benjamim via o cinema como o exemplo maior do valor de exposição adquirido pela
arte na era da reprodutibilidade, pois ao emancipar-se de um uso ritual, aumentavam-se as
ocasiões para a sua exposição, servindo o filme para exercitar o homem em novas percepções
e reações exigidas por uma nova prótese. No entanto, o cinema apesar da sua consonância
profunda com a realidade do século XX, apenas manteve uma relação intermitente com o
aspecto da realidade moderna. Ora, todos sabem que o mundo já teria mudado há muito tempo
se uma arte pudesse impor necessariamente o choque ou a vibração no pensamento dos
homens; portanto, não passa de pura e simples possibilidade lógica a potência ou a capacidade
do cinema.
Destarte, a prioridade do cinema em relação à literatura é ainda uma formulação
modernista, que na pós-modernidade é considerada antiquada e histórica. Portanto, se o poeta
Reis questiona o cinema como arte da ilusão, é porque o questionamento é efetuado, na
verdade, pelo autor Saramago detentor de um discurso pós-moderno que lhe permite esse
questionamento. Assim, se o heterônimo sorri sozinho ao espelho, ao pensar irreverências
tristes, é porque percebe que no ilusionismo da arte cinematográfica, existe uma porta fechada
entre ele e o resto do mundo.
Para Deleuze, falando do cinema de Godard, rompeu-se o vínculo do homem com o
mundo, e é esse vínculo que deve tornar-se objeto de crença, pois só ela poderá religá-lo com
o que ele vê e ouve. O cinema deverá filmar a crença no mundo, pois a natureza da ilusão
cinematográfica é a de restituir-nos a crença no mundo. Todos,
Cristãos ou ateus, em nossa universal esquizofrenia precisamos de razões
para crer neste mundo. É toda uma conversão da crença. Já foi feita uma
grande guinada da filosofia, de Pascal a Nietzsche; substituir o modelo do
saber pela crença. Porém, a crença substitui o saber tão-somente quando se
faz crença neste mundo, tal como ele é. (ibid., 207-8).
Outrossim, a questão que nos fica é a de como se dá esta restituição da crença no mundo;
segundo o filósofo francês, a restituição dá-se a partir do inevocável de Welles, do
inexplicável de Robe-Grillet, do indecidível de Resnais, do impossível de Marguerite Duras,
do incomensurável de Godard.
Para Jean Mitry, o cinema está, estrutural e naturalmente, bem mais próximo do
romance, pois ao mostrar pessoas comuns caracterizadas pelo discurso coloquial, exibiu o que
existe de subjacente a todas as situações cotidianas em suas largas redes de interdependências
sócio-físicas, ressaltando-as inclusive, por meio de um agenciamento criterioso dos acidentes
da vida. Como arte da aquisição de significado e valor das nossas percepções através de um
processo técnico de percepção bruta, o cinema é a organização narrativa de um mundo
pluralista, em que devemos ser sempre capazes de sentir o cerne da criação, a emergência do
significado a partir de sua origem.
Ao trabalhar a partir da origem, na terminologia de Siegfried Kracauer, o cinema é a
percepção tornada linguagem integradora do homem-discurso ao mundo natural, retratando
por conseguinte, o drama homem/mundo; sempre permanecendo, no domínio do processo e
mudança, uma rede interligada de contingências sócio-físicas de uma narrativa abertamente
organizadora do mundo na tela. A narrativa estética do cinema possibilita-nos, através dessa
organização, o vislumbre da desorganização de um mundo que lhe é subjacente, cujas
imagens podem ser elevadas, pelo cineasta, à expressiva significação da técnica
cinematográfica. Ao selecionar determinadas percepções brutas da realidade, o cineasta dá
uma língua à realidade que participa então de sua própria apoteose, satisfazendo-nos o desejo
de entendimento dos outros e do mundo.
Pois bem, a proposta literária do romance saramaguiano inclui uma declaração de
fidelidade para com a vida, a realidade; a introdução de um material extraliterário na obra
literária, ou seja, de temas com significação real exterior ao artístico, é compreendida através
do ângulo de uma tendência realística na construção da obra que apresenta questões
familiares ao leitor, questionando problemas morais, sociais, políticos, entre outros.
4. O Jogo escritural
Já em sua nova residência no Alto da Catarina, semelhante a uma enorme teia de
aranha, em cujo centro está à espera uma tarântula ferida, Reis fica a pensar se Marcenda o
visitará. Relação labiríntica aparentada com a relação entre o espectro e o seu heterônimo no
enorme emaranhado do romance, em que o Pessoa-Minotauro (símbolo da morte) vai ao
encontro do seu outro-ele-mesmo (Reis), que perambula por entre o fascinante jogo literário
articulado com destreza pelo jogador maior, que é o autor Saramago, como num jogo de
xadrez em que os dois jogadores são, um RR, o outro, o leitor do romance.
RR e FP terão ao longo do romance dez encontros. O primeiro encontro se dá logo
após a chegada do heterônimo a Portugal, na madrugada do primeiro dia do ano de 1936. Ao
chegar de madrugada no HB, RR repara que há luz em seu quarto, ao abrir a porta depara-se
com o seu criador sentado no sofá. Os dois se cumprimentam com um Olá e um Viva,
apertam-se as mãos e abraçam-se. FP diz que tem ainda oito meses para poder circular à
vontade. Ao querer lhe entregar um papel dobrado, RR é advertido pelo criador que já não
sabe mais ler. É um telegrama de Álvaro de Campos comunicando a morte de FP e a partida
para Glasgow. RR diz que resolveu regressar após o recebimento da correspondência, uma
espécie de dever. Outro motivo é o fato de ter ocorrido no Brasil uma revolução. De forma
provocadora, FP diz que o heterônimo tem a sina de fugir das revoluções. Ao passear pelo
quarto de hotel, FP pára diante a um espelho e comenta sobre a estranha impressão de não se
ver refletido.
[...] É uma impressão estranha, esta de me olhar num espelho e não me ver
nele, Não se vê, Não, não me vejo, sei que estou a olhar-me, mas não me
vejo, No entanto, tem sombra, É só o que tenho. (Saramago:1998, 81).
Reis não sabe se continuará em Portugal; voltou, pois pensou que poderia ocupar o
espaço de seu criador. Pessoa adverte-o que nenhum vivo pode substituir um morto, pois
ninguém é verdadeiramente vivo ou morto. Os dois se despedem desejando-se feliz ano novo.
RR desce a Rua dos Sapateiros pensando sobre o seu futuro profissional, quando
encontra FP parado na esquina da Rua de Santa Justa. Neste segundo encontro, RR percebe
que o seu criador não usa óculos, lembra-se então que é costume enterrar-se as pessoas sem
tais objetos, no entanto, a razão é que não chegaram a dar os tais óculos a Pessoa no momento
em que os pediu na hora da morte. Ao ser questionado sobre o que veria quem os olhasse, o
ortônimo responde que
Vê-o a si, ou melhor, vê um vulto que não é você nem eu, Uma soma de nós
ambos dividida por dois. Não, diria antes que o produto da multiplicação de
um pelo outro, Existe essa aritmética, Dois, sejam eles quem forem, não se
somam, multiplicam-se, Crescei e multiplicai-vos, diz o preceito. (ibid., 93).
Ao querer entrar no Café Martinho da Arcada, lugar onde FP tinha uma mesa cativa para
receber os amigos, RR é advertido da imprudência, pois as paredes têm olhos e boa memória.
Ao dizer a Pessoa que ao outro lado da vida só podemos chegar através do sonho, Reis recebe
a resposta,
[...] que o outro lado da vida é só a morte, Não sei o que é a morte, mas não
creio que seja esse o outro lado da vida de que se fala, a morte penso eu,
limita-se a ser, a morte é, não existe, é, Ser e existir, então, não são idênticos
porque temos as duas palavras ao nosso dispor, Pelo contrário, é porque não
são idênticos que temos as duas palavras e as usamos. (ibid., 94).
FP interrompe a conversa neste momento, dizendo que a continuarão em outra altura.
No terceiro encontro, RR pega o livro de Quain para ler, passa os olhos desatentos por
duas páginas e fecha os olhos por alguns segundos. Ao abri-los, vê Pessoa sentado aos pés da
cama. O heterônimo é então advertido por seu criador:
[...] Meu caro Reis, você, um esteta, íntimo de todas as deusas do Olimpo, a
abrir os lençóis da sua cama a uma criada de hotel, a uma serviçal, eu que
me habituei a ouvi-lo falar a toda a hora, com admirável constância, das suas
Lídias, Neeras e Clöes, e agora sai-me cativo duma criada, que grande
decepção [...] (ibid., 118).
Fica então a dúvida sobre a verdade das feições do heterônimo clássico, pois o RR
romanceado por Saramago também está a ler um romance policial. A discussão vai se
estender sobre a questão do fingimento, Pessoa pergunta a Reis se quer que ele acredite
[...] que esse homem é aquele mesmo que escreveu Sereno e vendo a vida à
distância a que está, é caso para perguntar-lhe onde é que estava quando viu
a vida a essa distância, Você disse que o poeta é um fingidor, Eu o confesso,
são adivinhações que nos saem pela boca sem que saibamos que caminho
andámos para lá chegar, o pior é que morri antes de ter percebido se é o
poeta que se finge de homem ou o homem que se finge de poeta, Fingir e
fingir-se não é o mesmo, Isso é uma afirmação ou uma pergunta, É uma
pergunta, Claro que não é o mesmo, eu apenas fingi, você fingi-se, se quiser
ver onde estão as diferenças, leia-me e volte a ler-se. (ibid., 118-119).
E assim termina este encontro. Ao se despedirem, RR pede a FP que deixe a porta encostada,
pois talvez receba visitas, com certeza de Lídia, que aparece meia hora depois.
Criador e criatura terão, neste entretempo, um encontro imaginário em que RR
questionará o profético FP sobre o Quinto Império e a necessidade ou não das colônias. Um
Pessoa imaginário talvez respondesse a tais questões com as seguintes palavras:
[...] Você bem sabe que eu não tenho princípios, hoje defendo uma coisa,
amanhã outra, não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que
defenderei, talvez acrescente, porventura, justificando-se, [...] se o Quinto
Império foi em mim vaguidade, como pode ter-se transformado em certeza
vossa, afinal, acreditaram tão facilmente no que eu disse, e mais sou esta
dúvida que nunca disfarcei, melhor teria feito afinal se me tivesse calado,
apenas assistindo. (ibid., 147).
No final do encontro imaginário a personagem FP já não tem certeza do que está dizendo, RR
diz que ele já treslê, o outro já nem sabe se lê. O narrador termina concluindo que esta
improvável conversação ficará registrada como se tivesse acontecido.
Durante suas andanças pela cidade de Lisboa, que é como uma cidade interior cercada
de muros invisíveis a protegeram-na de um invisível sítio, Reis encontra-se pela quarta vez
com Pessoa, o encontro se dará num café de bairro, de gente do povo. O ortônimo não se
convence da explicação dada pelo heterônimo do motivo de seu regresso, que se voltara fora
por causa da morte do seu criador. FP tem a estranha ideia do disfarce dos dois amigos
durante as festividades do carnaval, RR viria disfarçado de domador,
[...] bota alta e calção de montar, casaco encarnado de alamares, Encarnado,
Sim, encarnado é o próprio, e eu vinha de morte, vestido com uma malha
preta e os ossos pintados nela, você a estalar o chicote, eu a assustar as
velhas, vou-te levar, vou-te levar, a apalpar as raparigas, num baile de
máscaras prémio nós ganhávamos. (ibid., 154).
FP levanta-se e sai no meio da chuva. A respeito do disfarce proposto por Pessoa,
desenvolvemos melhor o assunto no item 12 do capítulo II, Festas Populares.
No Alto de Santa Catarina acontecerá o quinto encontro entre criador e criatura. Após
olhar as estátuas de Camões e do Adamastor e refletir sobre a partida das naus portuguesas,
RR escuta a voz ácida e irônica de FP a perguntar-lhe se está à espera de alguém. Reis
aguarda a chegada de Marcenda. A conversa dos dois é um jogo de leves estocadas, como na
esgrima. Questionado por Reis, que durante o carnaval encontrara-se com um mascarado de
morte, Pessoa dá uma resposta idêntica à visualizada anteriormente por RR na página 166, do
romance, durante um sonho delirante de febre.
[...] Ó Reis, então você não viu que se tratou duma brincadeira, ia-me lá eu
agora fantasiar de morte, medievalmente, um morto é uma pessoa séria,
ponderada, tem consciência do estado a que chegou, e é discreto, detesta a
nudez absoluta que o esqueleto é, e quando aparece, ou se comporta como
eu, assim, usando o fatinho com que o vestiram, ou embrulha-se na mortalha
se lhe dá para querer assustar alguém, coisa que eu, aliás, como homem de
bom gosto e respeito que me prezo de continuar a ser, nunca me prestaria,
faça-me você essa justiça [...] (ibid., 182).
A duplicidade de relação das duas personagens saramaguianas assemelha-se ao
relacionamento dos dois jogadores de xadrez de The God, pois fica difícil concluir se há jogo
ou conversa entre as personagens, embaralhando-se as letras e os discursos dos dois livros. No
instante final do encontro, Reis chama Pessoa de sátiro oculto e garanhão disfarçado; já
Pessoa despede-se de Reis chamando-o de amador de criadas e cortejador de donzelas.
Marcenda aproxima-se já no término da partida desses jogadores sarcásticos.
Antes das dez horas da noite, RR se deita em sua nova residência, deixa pelo caminho
o livro de Quain e lê dez páginas do Sermão da Primeira Dominga da Quaresma. Já
adormecido, Reis acorda sobressaltado com batidas na porta de seu quarto; a princípio pensa
ser Lídia que o veio visitar, mas ao querer saber quem está a bater, recebe a resposta num
murmúrio; sabe então que não é um mero fantasma, mas FP que veio para o sexto encontro
com Reis. Os dois conversam sobre a solidão, Pessoa diz a Reis que
[...] a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer
companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não
é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a
seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz [...] (ibid., 226).
Logo a seguir, o assunto passa a ser a morte pleonástica, e por fim, conversam sobre o
imperdoável esquecimento do ortônimo em Mensagem, com respeito ao Adamastor
camoniano. O criador aconchega maternalmente os cobertores sobre a sua criatura e apaga a
luz. Os dois dizem-se boas-noites, Pessoa senta-se numa cadeira com as mãos cruzadas sobre
o joelho, numa imagem de abandono, e continuará assim até alta madrugada como uma
estátua de olhos lisos.
Duas noites depois, FP retorna para o sétimo encontro. Após jantar sozinho num
restaurante, e tomar vinho com dois copos sobre a mesa, RR encontra FP sentado, de costas,
no banco mais próximo da estátua do Adamastor. Sempre lúcido nestes encontros, Reis
conversa com Pessoa sobre as suas três musas, Neera, Clöe e Lídia, e sobre a menina
Marcenda. Reis não tem certeza dos seus sentimentos por Marcenda, e com relação a Lídia
diz apenas que o corpo não se lhe negou. Pessoa não tornou a aparecer por enfado, pois Reis
está desse lado,
[...] Que lado, O dos vivos, é difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que
não será menos difícil a um morto entender os vivos, O morto tem a
vantagem de já ter sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse
mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa fundamental e tirar
proveito dela, Qual, Que se morre, Nós, vivos, sabemos que morremos, Não
sabem, ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi, o que nós
sabemos, isso sim, é que os outros morrem. (ibid., 274).
Os dois caminham juntos em direção à casa de RR, no caminho encontram-se com o
investigador Victor que descobre o novo endereço do poeta-médico. O investigador parece
ver duas sombras no chão, mas acha que são efeitos de luz reflexa, ou envelhecimento do
olhar que já não consegue separar o visível do invisível.
Ricardo é levado a explicar a Fernando sobre o interrogatório policial a que fora
levado. Ironicamente, Pessoa conjetura com respeito às perguntas que foram feitas a Reis que
lhe responde assim:
[...] Teria muita graça eu dizer-lhes que de vez em quando encontro o
fantasma de Fernando Pessoa, Perdão, meu caro Reis, eu não sou nenhum
fantasma, Então, que é, Não lhe saberei responder, mas fantasma não sou,
um fantasma vem do outro mundo, eu limito-me a vir do cemitério dos
Prazeres, Enfim, é Fernando Pessoa morto, o mesmo que era Fernando
Pessoa vivo, De uma certa e inteligente maneira, isso é exacto. (ibid., 278).
O assunto seguinte passa a ser o ditador português Salazar, depois conversam sobre a ilusão
de se estar vivo, sobre a morte e as contradições da vida.
Neste sétimo encontro os dois amigos conversam bastante sobre vários assuntos de
importância para a nacionalidade portuguesa, sobre o destino histórico-mítico de Portugal. Na
despedida, Reis pergunta a Pessoa se quer que o acompanhe, Pessoa responde sobre a
antecipação do acompanhamento, pois ainda não chegou a hora de irem embora juntos.
No penúltimo encontro, o oitavo, FP visita RR quase à meia-noite, entra silencioso no
prédio e bate discretamente na porta. No escritório, Reis tenta compor uns versos que
escrevera, vai abrir a porta já sabendo tratar-se de seu criador, que vem do rústico casinhoto
do cemitério, onde mora também a sua feroz avó Dionísia a controlar-lhe as entradas e saídas.
Pessoa está fatigado, suas feições precisam ser recompostas, restituídas,
[...] mas o artista tomou a borracha em vez do lápis, onde passou apagou, um
lado da cara perdeu o contorno, é natural, vai para seis meses que Fernando
Pessoa morreu. Vejo-o cada vez menos, queixou-se Ricardo Reis, Eu aviseio logo no primeiro dia, com o passar do tempo vou-me esquecendo [...]
(ibid., 330).
Desta vez a conversa gira em torno de mentiras, palavras que mentem, o quinto império,
Salazar, o destino, o péssimo hábito dos mortos conviverem com os vivos. Na despedida, os
dois amigos dizem-se adeus, a hora última breve soará.
No nono, e penúltimo encontro, RR voltou ao seu costumeiro viver solitário no Alto
de Santa Catarina, pois Lídia, que estava de férias do hotel, voltou à sua rotina de faxineira, e
só poderá encontrar-se com o amante no seu dia de folga, uma vez por semana. Reis está em
apuros com sua identidade, já tem dúvidas sobre quem é na verdade. É muito difícil manter-se
uma unidade íntegra quando passamos por certas experiências, e quando somos personagens
narradas por duas instâncias, Saramago e Pessoa, que nos legam um destino, cujas linhas não
temos o controle. Assim, Reis não consegue levantar-se de manhã, ―[...] se com suas próprias
mãos não se identificasse, linha por linha, o que de si ainda é possível achar, como uma
impressão digital deformada por uma cicatriz larga e profunda‖ (ibid., 358).
Numa das noites conturbadas de Reis, Pessoa bate-lhe à porta, e explica a sua grande
ausência dessa forma:
[...] Tenho saído pouco, perco-me facilmente, como uma velhinha
desmemoriada, ainda o que me salva é conservar o tino da estátua de
Camões, a partir daí consigo orientar-me, Oxalá não venham a tirá-la, com a
febre que deu agora em quem decide dessas coisas [...] (idem).
Percebemos que a despedida se aproxima. Reis anuncia a Pessoa que será pai.
Fernando Pessoa olhou-o estupefacto, depois largou a rir, não acreditava,
Você está a brincar comigo, e Ricardo Reis, um tanto formalizado, Não
estou a brincar, aliás, não percebo esse espanto, se um homem vai para a
cama com uma mulher, persistentemente, são muitas as probabilidades de
virem a fazer um filho, foi o que aconteceu neste caso. (ibid., 360).
Ao perguntar sobre quem é a mãe, Pessoa recebe a resposta de Reis de que com Marcenda só
poderia ter um filho se se casasse com ela, já quanto a Lídia, Reis responde que as criadas não
têm complicações. Os dois discutem a respeito da atitude do futuro pai com relação a Lídia,
pois Reis não pretende se casar com Lídia e talvez não perfilhe o filho. Pessoa diz a Reis que
tal comportamento é uma safadice, Reis retruca que não entende a postura moralista de seu
criador. Pessoa diz, então, que um morto não suporta alterações da ordem, por isso essa sua
postura conservadora.
Reis quer ler um poema em que consta, de passagem, o nome de Marcenda, porém,
Pessoa não quer escutá-lo, pois conhece os poemas de sua criatura de cor e salteado,
[...] diga lá o primeiro verso, Saudoso já deste verão que vejo, Lágrimas para
as flores dele emprego, pode ser o segundo, Acertou, Como vê, sabemos
tudo um do outro, ou eu de si, Haverá alguma coisa que só a mim pertença,
Provavelmente, nada. Depois de Fernando Pessoa sair, Ricardo Reis bebeu o
café que lhe deitara na chávena. Estava frio, mas soube-lhe bem. (ibid., 362).
O ortônimo deixa o seu heterônimo sem algo que lhe pertença de próprio, restando a Reis o
encaminhar-se para o epílogo de sua obra, de sua fictícia existência que beberá com o gosto
amargo de um café frio.
No décimo e último encontro, ao contrário do acontecido nos anteriores, RR irá à
procura de FP no cemitério dos Prazeres, contudo, o criador estará invisível no local de seu
jazigo. A criatura escutará apenas a voz de seu criador que lhe pergunta o que faz tão cedo no
cemitério. Os dois conversam a respeito da Guerra Civil Espanhola, o encontro futuro entre o
general Milan d‘Astray com o escritor Miguel de Unamuno, reitor da Universidade
Salamanca, que gritará Viva la muerte e que se colocará ao lado do exército golpista. Reis
precisa de respostas de Pessoa, todavia, este só tem hipóteses:
[...] o seu reitor de Salamanca responderá assim há circunstâncias em que
calar-se é mentir acabo de ouvir um grito mórbido e destituído de sentido
viva a morte este paradoxo bárbaro repugna-me o general Milan D‘Astray é
um aleijado não há descortesia nisto Cervantes também o era infelizmente há
hoje em Espanha demasiados aleijados [...] A mão esquerda de Marcenda,
que sentido terá, Ainda pensa nela, De vez em quando, Não precisava ir tão
longe, todos somos aleijados. (ibid., 384).
No final deste último encontro, Reis estará sozinho quando as cigarras começarem a cantar e
um grande barco negro entrar na barra numa imagem especularmente irreal.
Chegamos assim ao fim dos encontros entre criador e criatura, orquestrados pelo autor
Saramago. No final deste estudo, e do romance, nos encontraremos todos, autores, leitores,
ortônimos e heterônimos.
5. Jogadores
HQ, no romance The God, reflete que alguns acreditaram que o encontro dos
jogadores de xadrez fora obra do acaso; no entanto, no parecer de Borges, essa solução é
errônea, pois o leitor ao revisar os capítulos já lidos descobre que há outra solução, a
verdadeira. Assim, o leitor de Quain é mais esperto que o detetive do romance, pois não se
trata de um jogo instaurado pelo/no acaso de um lance de dados, mas de um jogo de re-flexão
(revisar os capítulos) cuja destreza substitui as velhas sabedoria e prudência, onde a invenção
de princípios de um jogo, dos seus próprios princípios jogado por excesso, é a proliferação de
princípios.
No conto de Ficções, A loteria em Babilônia, o narrador é alguém que já foi procônsul
e escravo, conheceu a onipotência e o opróbrio. Seu pai contou-lhe que a loteria em Babilônia
era um jogo de caráter plebeu, sem virtude moral. Este tipo de loteria fracassa, dando lugar à
Companhia com valores eclesiásticos e metafísicos, cuja história é contaminada por ficções,
segredos, ubiquidade. A loteria babilônica é um infinito jogo de acasos com leis labirínticas.
Ao observar esta relação dialógica entre autor e leitor, Saramago remete-nos à igual
relação instaurada por Baudelaire ao refletir sobre a sua escrita, pois, segundo o poeta francês,
nós poderíamos cortá-la onde bem quiséssemos, o autor, o sonho, o leitor, a leitura.
Se a escritura é um jogo, o ato de ler também deve sê-lo. Para Eco, ao se ler uma obra
de ficção deve-se ter uma noção mínima dos critérios econômicos a nortearem o mundo
ficcional. Esses critérios devem
[...] ser pressupostos mesmo quando se tenta inferi-los a partir das evidências
do texto. Por essa razão, ler é como uma aposta. Apostamos que seremos
fiéis às sugestões de uma voz que não diz explicitamente o que está
sugerindo. (Eco:1994, 118).
Tanto Platão, no Fedro, quanto Aristóteles, na Arte Retórica, atentam para o problema da
recepção do discurso, pois sabiam que o leitor se constitui num problema a ser considerado.
As relações humanas nada mais são do que uma procura hermenêutica, e na relação
autor/leitor são levantadas questões referentes às convenções literárias, investigando as suas
relações complexas e íntimas com o mundo social no qual é escrita e lida, procurando
subverter os discursos dominantes, assim, ―Toda situação enunciativa é trazida autoconscientemente a nossa atenção, e é a consciência da troca discursiva em ação que envolve
o leitor e fala por ele/ela como sujeito‖ (Hutcheon:1988, 216).
É o leitor como personagem, ou então como narratário, pois um texto narrativo não
prescinde da atenção de um leitor cujas coordenadas histórico-culturais e ideológico-sociais o
autor conhece em maior ou menor pormenor. O autor articula estratégias literárias que
obedecem com regularidade à curiosidade do leitor de textos narrativos, gerando expectativas
em relação ao desenrolar do relato. Portanto, ao ponderarmos sobre o estatuto funcional do
leitor, notamos que ―... um texto postula o próprio destinatário como condição
indispensável não só da própria capacidade comunicativa concreta, mas também da própria
potencialidade significativa‖ (Eco:1979, 52-3).
O efeito propiciado pela obra de arte comporta dois fenômenos simultâneos, quais
sejam, a compreensão fruidora e a fruição compreensiva. Ao ser consumida, a obra provoca
sobre o destinatário um determinado efeito (Wirkung), e ao passar por um processo histórico é
recebida e interpretada de diferentes maneiras, ou seja, temos a sua recepção (Rezeption).
Assim, é importante diferenciarmos o horizonte implícito de expectativas (a obra transmitindo
orientações prévias condiciona o efeito) da análise dessas expectativas (o leitor contribuindo
com as suas vivências pessoais e códigos coletivos condiciona a recepção). Temos então, o
leitor implícito e o leitor explícito de uma hermenêutica literária, cuja base é a de uma
hermenêutica ontológica, que comporta a compreensão, a interpretação e a aplicação. Apesar
de constituírem momentos diferentes do processo hermenêutico, os três momentos
interpenetram-se a partir da deflagração de tal processo efetuada pela leitura compreensiva. O
questionamento do texto pelo intérprete dependerá da vivência estética efetivada no
intercâmbio produtivo entre o sujeito e a obra de arte. A etapa seguinte é a da leitura
retrospectiva, em que se concretizam as significações. Por fim, na leitura histórica recuperase a recepção da obra ao longo do tempo.
A literatura recupera assim – neste intercâmbio com o público – a sua historicidade ao
pressupor a participação ativa do destinatário na vida histórica da obra literária que se mostra
apta à leitura durante o seu processo de recepção, atualizando-se no resultado da leitura,
sintoma de sua vivência. Dessa forma, é no interior do sistema literário que se encontram os
elementos essenciais para medirmos a recepção de um texto que jamais se apresentará como
uma novidade total em um vazio informativo, pois, este texto, sempre evocará – conforme nos
explica a Estética da Percepção – um horizonte de expectativas familiares ao leitor. Nessa
troca entre o público e o texto efetua-se a reconstituição do horizonte de expectativas de uma
dada obra, ou seja, recupera-se a história da recepção desta obra, pois se esclarece a diferença
hermenêutica entre as suas inteligências, a passada e a atual. Quer dizer, só compreendemos
um texto quando compreendemos a pergunta à qual ele nos dá a resposta, pois compreender é
procedermos à fusão de horizontes que nos são supostamente independentes entre si.
Eco, em Seis passeios pelos bosques da ficção, fala-nos dos conceitos de LeitorModelo/Autor-Modelo e Leitor-Empírico/Autor-Empírico. Em parte, essa nomenclatura
corresponde quase simetricamente à usada pela Estética da Recepção. No entanto, ao invés de
horizonte de expectativa, Eco nos fala da competência enciclopédica exigida do leitor que é
limitada pelo texto ficcional. Se ―[...] o texto pressupõe uma Enciclopédia do leitor com um
determinado formato, é muito difícil estabelecer esse formato‖ (Eco:1994, 115). O leitormodelo deverá ser dotado de tal competência enciclopédica ao infinito, superior ao do autorempírico. Esse leitor deverá ser capaz de descobrir alusões e ligações semânticas não
percebidas pelo autor-empírico da obra.
Nesta troca de experiências entre leitor e escritor, há um jogo de perguntas e respostas,
uma hermenêutica que se amplia na relação entre o escritor e as suas leituras/interpretações de
outros escritores. O problema da escrita pensado a partir da leitura torna-se um problema
hermenêutico, cuja dialética é a da distanciação e apropriação. Apropriar-se é fazer seu o que
é alheio, e por existir esta necessidade, ocorre um problema geral de distanciação. A
distanciação é o traço dialético da luta entre a alteridade e a ipseidade. Na leitura como
pharmacon, resgata-se a significação do texto envolto no estranhamento da distanciação,
colocando-se uma nova proximidade que suprime/preserva a distância cultural e inclui a
alteridade na ipseidade.
Se já sabemos que estamos no labirinto ficcional, precisamos descobrir o porquê de o
estarmos e qual o caminho que nos cabe percorrer. Devemos nos comportar como o
personagem Casaubon do romance O pêndulo de Foucault, de Eco. Casaubon, ao ser
questionado pelo computador Abulafia, do amigo Jacopo Belbo, cuja senha de arquivos
procura descobrir, responde sinceramente, após um esgotamento físico e mental de tão árdua
tarefa que leva-o a sentir ódio pelo computador, que não sabe qual é a senha: ―Agora por ódio
a Abulafia, diante da enésima obtusa pergunta (‘Tens a senha?’) respondi: ‘Não’‖
(Eco:1989, 390). Inesperadamente, a tela do computador encheu-se de palavras, de linhas, de
índices e de frases. O intérprete (ou como se queira chamá-lo) conseguirá violar o segredo
apenas sendo sincero na sua ignorância? É o que nos basta diante do interrogatório a que
somos submetidos pelo romance O ano da morte.
CAPÍTULO IV
Arjuna viu, nessa forma universal, bocas ilimitadas
e olhos ilimitados. Era totalmente maravilhosa. A
forma estava decorada com resplandecentes
ornamentos divinos e se ornava com muitas
vestimentas. Ele estava gloriosamente envolto em
guirlandas, e havia muitas essências untadas em
Seu corpo. Tudo era magnífico expandindo-se
ilimitadamente. Isto foi visto por Arjuna.
Se centenas de milhares de sóis surgissem a
um só tempo no céu, eles talvez se assemelhassem
à refulgência da Pessoa Suprema naquela forma
universal.
Bhagavad-Gita, A forma universal (cap. XI, 1012)
1. A Narrativa
O romance O ano da morte é construído na perspectiva da narrativa gnosiológica,
cuja importância do acontecimento é menor do que a da percepção que temos dele, do grau de
conhecimento que dele possuímos. Todavia, para que haja o desdobramento dessa espécienarrativa, é necessário que ocorra concomitantemente, a narração de tipo mitológica, em que
se combinam as lógicas da sucessão e das transformações, sendo narrativas de certo modo
mais simples. É o predomínio do conhecer sobre o fazer.
Dessa forma, este tipo de narrativa gnosiológica, do romance O ano da morte, fundase na intertextualidade do romance que instala e indefine, paradoxalmente, a linha de
separação entre ficção e história, mantendo uma autoconsciência em relação à maneira como
tudo é realizado. O jogo realidade/ficção constrói-se como a tessitura da teia da aranha que
... lançou um fio até o Porto, outro até o Rio, mas foram simples pontos de
apoio, referências, pilares, blocos de amarração, no centro da teia é que se
jogam a vida e o destino, da aranha e das moscas. (Saramago:1998, 210).
Na vida, as máscaras e os heterônimos são construídos e constroem-se a si mesmos,
mas na morte abandona-se esse exercício, pois há coisas que não são permitidas aos mortos. A
máscara expressa a violação das fronteiras em sua transferência e metamorfose, ela agencia
uma inter-relação entre realidade e imagem. Morte e vida dialogam entre si sobre a mulher,
sobre Marcenda (aquela que murcha), semelhante a um enigma, um quebra-cabeças, um
labirinto, uma charada. Entrementes, os mistérios são como as mulheres, que apesar de
ocultarem-se com gosto, desejam ser vistas, decifradas. No Evangelho, o encontro entre as
duas principais figuras femininas na vida de Jesus de Nazaré, Maria de Magdala (a impura) e
Maria de Nazaré (a honesta), é o momento da ―[...] expressão de mútuo e cúmplice
reconhecimento que só aos entendidos nos labirínticos meandros do coração feminino é dado
compreender‖ (Saramago:1998b, 344). A adivinhação é uma definição dialogada, ou seja, se
há enigma ou charada, é porque há diálogo entre morte e vida, entre criador e criatura, entre
ficção e história, entre autor e leitor.
Ora, se há diálogo entre o criador-Pessoa e a criatura-Reis é porque existe um
organizador deste diálogo, o escritor Saramago, cujo discurso fará a releitura, reinterpretação
e retrabalho das propostas do ortônimo Pessoa e de seu heterônimo Reis. Veja-se, como
exemplo, o quão interessante é a articulação do discurso narrativo agenciado por Saramago
em toda a sua obra. No Evangelho, Deus, o Diabo e Jesus estão numa barca no mar em um
colóquio a respeito de várias questões concernentes às responsabilidades de um Deus que se
quer único e verdadeiro. Ao surgir a pergunta sobre quem seria o criador do Deus inimigo, a
tríade se cala, e nesse momento
[...] do nevoeiro desceu uma voz que disse, Talvez este Deus e o que há-de
vir não sejam mais heterónimos, De quem, de quê, perguntou, curiosa, outra
voz, De Pessoa, foi o que se percebeu, mas também podia ser sido, Da
Pessoa. (ibid., 389).
Porventura, não seria essa a voz de um agenciador de discursos? Ora, é claro que quem está a
nos falar é o autor-Saramago, aquele organizador dos discursos, aquele questionador dos
procedimentos ficcionais.
2. As Rugas na face de Deus
O cansaço e o desleixo apossam-se do poeta clássico ao reler nos jornais as notícias já
conhecidas, e
Assim se intrometeu um mundo noutro mundo, assim perdeu o leitor o seu
sossego, e agora, virando impaciente a página, reencontra o escudo de
Aquiles, há quanto tempo o não via. É aquela mesma e já conhecida glória
de imagens e dizeres. Mandala prodigiosa, visão incomparável de um
universo explícito, caleidoscópio que suspendeu o movimento e se oferece à
contemplação, é possível, finalmente contar as rugas na face de Deus.
(Saramago:1998, 380).
Na consumação do retorno do heterônimo, cujo fim está próximo, RR é empurrado em
direção à exorbitância do Todo que o ameaça, apesar de sua resistência, com a selvageria
noturna blanchotiana, e
[...] consumado o retorno, como se, entre o dia e a noite, entre o céu e a terra,
se abrisse doravante, pura e elementar, uma região onde ele pôde ver as
coisas em sua transparência, o céu em sua evidência vazia e, nesse vazio
manifesto, o rosto do Deus longínquo. (Blanchot:1987, 278).
Esse fato nos lembra a fábula dos nove bilhões de nomes de Deus do romance O
pêndulo de Foucault, de Eco. Ao serem nomeados todos esses nomes pelo computador
Abulafia, apagaram-se as estrelas e o universo findou. Têm-se a visão explícita do universo, e
se podemos contar as tais rugas na face de Deus é porque o conhecimento possui tantas
dobras quanto o que procura conhecer, pois as ideias estão tão dobradas na alma que não é
fácil desenvolvê-las.
A temerária perspicácia do detetive Erik Lönnrot, do conto A morte e a bússola, de
Ficções, é exercitada pela série de assassinatos do perverso Red Scharlach, o Dândi. No lugar
dos três crimes é encontrada sempre a sentença referente à articulação das letras do nome
inefável e oculto, o Nome de Deus, o Tetragrámaton. Neste nome está compendiado o nono
atributo de Deus, o conhecimento imediato de todas as coisas, em todos os tempos do
universo, da eternidade.
A tradição enumera noventa e nove nomes de Deus; os hebraístas atribuem
esse imperfeito número ao mágico temor às cifras pares; os Hassidim
argumentam que esse hiato assinala um centésimo nome - o Nome Absoluto.
(Borges I:2000, 558).
Cabalisticamente, Lönnrot estuda os três lugares equidistantes, um triângulo, e as três datas
simétricas no tempo dos assassinatos. Para tanto, usa um compasso e uma bússola para
completar sua intuição a respeito da explicação dos crimes que estão num triângulo anônimo e
numa poeirenta palavra grega.
Ao antecipar o quarto crime, o detetive dirige-se à chácara de Triste-le-Roy que possui
muitas e inúteis simetrias, repetições maníacas de ante-salas, galerias, pátios. Ele sobe por
escadas poeirentas a antecâmaras circulares, multiplica-se infinitamente em espelhos opostos.
Num aposento ele se detém ao ver uma única flor num copo de porcelana que desprende as
antigas pétalas ao primeiro toque. Percebe então que o que faz a grandeza da casa é a
penumbra, a simetria, os espelhos, a antiguidade, o seu desconhecimento e a solidão.
Lönnrot é aprisionado por dois homens de Scharlach, o qual lhe conta que o irmão
dele fora preso e encarcerado pelo detetive, e durante nove dias e noites agonizou com uma
bala no ventre, após o tiroteio com os policiais. No delírio, Scharlach sentiu que o mundo era
um labirinto de fuga impossível, pois todos os caminhos vão dar a Roma, que é igualmente o
cárcere quadrangular onde agonizou o irmão e a chácara.
Nessas noites jurei pelo deus que vê com duas caras e por todos os deuses da
febre e dos espelhos tecer um labirinto em torno do homem que tinha
aprisionado meu irmão. Tramei-o e é firme: os materiais são um heresiólogo
morto, uma bússola, uma seita do século XVIII, uma palavra grega, um
punhal, os losangos de uma loja de tintas. (ibid., 564).
Na verdade, fora o acaso que lhe dera o termo da série de assassinatos, pois a primeira
vítima, Yarmolinsky, redigia algumas notas sobre o Nome de Deus. Scharlach descobre sobre
o medo reverente em se pronunciar o nome secreto que deu origem à doutrina do nome TodoPoderoso e recôndito. Alguns Hassidim chegaram a cometer sacrifícios humanos na busca
deste nome. Para Scharlach, Lönnrot conjeturou que os Hassidim haviam sacrificado o rabino,
dedicou-se então a justificar a conjetura do detetive. O Nome de Deus, JHVH, é constituído
de quatro letras, assim, a série de crimes teria de ser quádrupla. Após os três primeiros
assassinatos, Scharlach pressentiu que Lönnrot acrescentaria o quarto ponto restante num
losango perfeito, o lugar onde o esperava uma morte exata.
Com uma tristeza impessoal, Lönnrot diz que no labirinto de Scharlach sobram três
linhas, pois ele conhece um labirinto grego de uma única linha reta.
Nesta linha perderam-se tantos filósofos que bem pode perder-se um mero
detetive. Scharlach, quando em outro avatar você me der caça, finja (ou
cometa) um crime em A, depois um segundo crime em B, a 8 quilômetros de
A, depois um terceiro crime em C, a 4 quilômetros de A e de B, no meio do
caminho entre os dois. Aguarde-me depois em D, a 2 quilômetros de A e de
C, de novo no meio do caminho. Mate-me em D, como agora vai matar-me
em Triste-le-Roy. (ibid., 566).
Antes de disparar, e matar o detetive, Scharlach promete-lhe matá-lo neste outro labirinto
incessante.
Assim, é apenas no final do romance que conseguimos vislumbrar a imagem total do
diagrama no labirinto saramaguiano, em que
[...] mesmo em Deus, as noções são dobras que tapizam o entendimento
infinito. As Formas absolutas, os Idênticos, são dobras simples e separadas;
os Definíveis são dobras já compostas, e os Requisitos, com seus limites, são
como que debruns ainda mais complexos (e engajam texturas).
(Deleuze:1991, 78).
Desse modo, não devemos nos enganar, e acreditarmos que veremos em Deus as Ideias
completamente desdobradas, pois segundo Deleuze-Leibniz, o conhecimento assemelha-se ao
tecido barroco que comporta uma infinidade excessivamente composta de outros tantos
tecidos, onde a mônada leibniziana assemelha-se aos drapeados.
Caminho oblíquo, cujo desvio infinito é o homem a percorrer o seu caminho no
deserto da escritura, da separação, pois a escritura desloca-se numa linha quebrada entre a
palavra que se perdeu e a palavra que foi prometida. RR já não está no jardim das palavras,
mas no deserto da escritura. O poeta e o deserto protegem-se mutuamente em razão da palavra
que viceja apenas no deserto da escritura onde lhe faz sulcos, como letras no labirinto
invisível da página em branco.
É o deus do labirinto, onde o eixo passado-presente-futuro quebrou-se porque o
presente repete o passado e bloqueia o futuro. O passado, para Henri Bergson, se conserva no
tempo, e se penetramos nesse elemento virtual é para procurarmos a lembrança pura que será
atualizada numa imagem-lembrança. Ao movermo-nos numa memória-Ser, numa memóriamundo, o passado revela-se como um já-aí de uma preexistência em geral suposta por nossas
lembranças e utilizada por nossas percepções. O presente é o limite extremo da manifestação
do passado em que coexistem círculos mais ou menos dilatados/contraídos, cada qual
contendo tudo ao mesmo tempo. Assim, deveremos nos mover para tal ou qual círculo,
conforme a natureza da lembrança procurada, que se sucederão a partir de antigos presentes
delimitados no limite de cada uma, pois somos construídos como memória, e, a um só tempo,
nos constituímos na infância, na adolescência, na velhice, na maturidade. Ou seja, conforme
Deleuze, somos a coexistência de todos os lençóis do passado.
No filme Nuit et Brouillard, o diretor francês Alain Resnais mostra, através das coisas
e das vítimas, a organização e o funcionamento das funções mentais, frias e diabólicas, em
que o diagrama exemplifica um contínuo ou um lençol do passado, com as suas
transformações e empilhamento dos estratos, com a sua superposição de lençóis coexistentes.
Porventura, não poderemos pensar também num labirinto-simulacro, cuja geometria
sonhadora é uma geometria mental de congelamento do tempo na agudez do calor do meiodia? A mente humana possui a magnífica presença táctil desses lençóis do tempo no encanto
de uma alucinação que é a ilusão do hic et nunc. Ao termos a impressão dessa inquieta
estranheza, estamos na intimidade fatal das coisas, fascinados por sua instantaneidade como
simulacro perfeito de nossa morte.
3. Tabuleiro de xadrez
RR decide então abandonar a leitura de The God of the labyrinth, dando-nos a
impressão de estar seguindo um conselho do seu criador FP, que no Livro do Desassossego
comenta, através da voz do heterônimo Soares, que se deve evitar ler um livro até o fim.
Neste momento, um círculo fica inscrito no quadrado imenso do tabuleiro de xadrez, no qual
se desenrola a trama deste outro romance.
A respeito do jogo de xadrez que perpassa todo o romance da morte, vamos encontrar
algumas evidências no conto O milagre secreto, de Ficções. A personagem Jaromir Hladik
sonha com um extenso jogo de xadrez imaginário, jogado há muitos séculos por duas famílias
ilustres, cujo prêmio talvez infinito já fora esquecido. As peças e o tabuleiro encontram-se
numa torre esquecida, o sonhador corre pelas areias de um deserto chuvoso e também já se
esqueceu das figuras e das leis do xadrez. Hladik é detido pelas autoridades do Terceiro
Reich, no dia 19 de março 1939. Na prisão, esta personagem imagina centenas de mortes
possíveis, em variados pátios, com variados soldados. Na última noite de sua existência,
Hladik sonha que se ocultara em uma das naves da biblioteca do Clementinum.
Um bibliotecário de óculos pretos perguntou-lhe: ―Que procura?‖ Hladik
respondeu-lhe: ―Procuro Deus‖. O bibliotecário disse-lhe: ―Deus está em
uma das letras de uma das páginas de um dos quatrocentos mil tomos do
Clementinum. Meus pais e os pais de meus pais procuraram essa letra; eu me
tornei cego procurando-a‖. Tirou os óculos e Hladik viu os olhos, que
estavam mortos. Um leitor entrou para devolver um atlas. ―Este atlas é
inútil‖, disse, e deu-o a Hladik. Este o abriu ao acaso. Viu um mapa da Índia,
vertiginoso. Bruscamente seguro, tocou uma das mínimas letras. Uma voz
ubíqua disse-lhe: ―O tempo de teu trabalho foi outorgado‖. Aqui Hladik
despertou. (Borges I:2000, 570-571).
É-lhe concedido, na hora da morte, um ano inteiro para que termine seu trabalho, o
drama em versos Os inimigos. Um milagre secreto, a paralisação do universo físico, é
concedido à personagem que disporá apenas de sua memória na orquestração da cada
hexâmetro de sua obra. Ao resolver o último epíteto, uma gota de água paralisada resvala
sobre a face de Hladik, um disparo quádruplo o derruba com dois minutos de atraso.
O heterônimo RR tem uma ode em que fala justamente de um contínuo jogo de xadrez
jogado por dois jogadores persas. Como a ode é muito extensa para ser citada aqui, faremos
um resumo da mesma.
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
[...]
Ah! sob as sombras que sem qu‘rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença. (Pessoa:1983, 201-203)
Essa ode será relida pela prosa questionadora de Saramago. RR lê nos jornais que a
cidade de Addis-Abeba está em chamas e uma sombra pessoana passa na fronte alheada e
imprecisa do heterônimo. Esta notícia será repetida várias vezes, de forma alucinante, pela
mente de Reis que questiona sobre a informação jornalística e os jogadores de xadrez do livro
de Quain. Não consta que nesta cidade
[...] estivessem jogadores de xadrez jogando o jogo do xadrez. Ricardo Reis
foi buscar à mesa-de-cabeceira The god of the labyrinth, aqui está, na
primeira página, O corpo, que foi encontrado pelo primeiro jogador de
xadrez, ocupava, de braços abertos, as casas dos peões do rei e da rainha e as
duas seguintes, na direcção do campo adversário, a mão esquerda numa casa
branca, a mão direita numa casa preta, em todas as restantes páginas lidas do
livro não há mais que este morto, logo, não por aqui que passaram as tropas
de Badoglio. Deixa Ricardo Reis The god of the labyrinth no mesmo lugar,
sabe enfim o que procura, abre uma gaveta da secretária que foi do juiz da
Relação, [...] e retira a pasta de atilhos que contém as suas odes, os versos
secretos de que nunca falou a Marcenda, [...] Ouvi contar que outrora,
quando a Pérsia, esta é a página, não outra [...] Addis-Abeba quer dizer Nova
Flor, o resto já foi dito. (Saramago:1998, 301-302).
Por fim, os versos retornam à gaveta e são trancados à chave, calando-se, como a imitar os
jogadores persas da ode. Enfim, o encontro entre Saramago, Pessoa e Borges se deu de forma
clara, eles estão de mãos dadas como propõe o título desta dissertação.
O fato do círculo inscrito no quadrado imenso do tabuleiro de xadrez faz-nos lembrar a
quadratura do círculo de Jacques Lacan, expressa em a Subversão do sujeito e dialética do
desejo no inconsciente freudiano dos Escritos. O círculo se dá na submissão do sujeito ao
significante, e a completude da sua quadratura só é possível na simbólica do lugar do Outro
como puro sujeito da moderna estratégia dos jogos (Lacan). Ao abandonar a leitura do livro
de Quain, RR confirma a impossibilidade dessa quadratura, pois ―[...] o sujeito só se constitui
ao se subtrair dela e ao descompletá-la essencialmente, por ter, ao mesmo tempo, que se
contar ali e desempenhar uma função apenas de falta‖ (Lacan:1998, 821).
Estamos assim, diante do afloramento do Nada que, para Bergson, é a ideia absurda,
inconcebível, da supressão da existência. O Nada, revelado pela angústia de RR, sobrevem
como um acontecimento ao próprio Dasein trazido diante do ente como tal. Reis paira
suspenso ante a angústia, pois ela faz deslizar o ente em sua totalidade, corta-lhe a palavra,
pois todo dizer é silencioso na sua presença que desabriga. Desse modo, compreendemos a
nossa finitude representada pela supressão de uma parte de um todo. No entanto, a ideia da
abolição de tudo, do fim, do silêncio, apresenta as mesmas características da ideia de um
círculo quadrado, em que resta uma simples palavra e não mais uma ideia.
Enigmas metafísicos que se encaminham, assim como o romance saramaguiano, para a
sua elucidação, e o seu término.
4. Visitas ao cemitério
Por duas vezes, RR visitará o cemitério dos Prazeres em Lisboa, no início e no fim do
romance. Dessa forma, o círculo labiríntico novamente se fará, não de forma idêntica, mas
semelhante. Na manhã de 30 de dezembro de 1935, sob um céu carregado, Reis encaminha-se
para o Prazeres onde está enterrado o seu criador FP. No local, o poeta encontra-se com um
grupo de pessoas de luto a seguir uma carroça mortuária. O heterônimo vai à administração
saber o local de sepultamento do ortônimo, falecido no dia 30 de novembro e enterrado no dia
2 de dezembro. O funcionário explica-lhe solícito o caminho e dá-lhe o número do jazigo,
4371.
Ricardo Reis andou já metade do caminho, vai olhando à direita, eterna
saudade, piedosa lembrança, aqui jaz, à memória de, iguais seriam do lado
esquerdo se para lá olhássemos, anjos de asas derrubadas, lacrimosas figuras,
entrelaçados dedos, pregas compostas, panos apanhados, colunas partidas, se
as farão já assim os canteiros, ou as entregarão inteiras para que as quebrem
depois os parentes do defunto em sinal de pesar, como quem solenemente, à
morte do chefe, os escudos parte, e caveiras no sopé das cruzes, a evidência
da morte é o véu com que a morte se disfarça. (Saramago:1998, 40).
Ao passar diante do jazigo procurado, nenhuma voz alerta Reis da proximidade do endereço.
Por fim, ele encontra o jazigo onde também está enterrada a avó do poeta, D. Dionísia de
Seabra Pessoa. Neste momento, a chuva recomeça e Reis não sabe o que fazer sozinho nesta
rua, tem simplesmente um leve ardor nos olhos. Para o heterônimo, dentro do jazigo só há
uma velha tresloucada e o corpo apodrecido de um louco fazedor de versos. A chuva
aumenta, Reis decide ir-se embora do Prazeres, pega um táxi e começa a chorar durante o
trajeto até o restaurante Irmãos Unidos.
A segunda vez em que RR retornará a este cemitério será no final do romance O ano
da morte, no momento de sua despedida do mundo dos vivos. Reis está perplexo e dividido
diante os acontecimentos no mundo, com a aproximação de uma nova e inevitável guerra
mundial. Ele anseia por conversar com FP, mas este não aparece. O heterônimo sai então de
casa, bem cedo pela manhã, antes do raiar do sol. Pega um táxi e dirige-se até o Prazeres.
Chegou-se Ricardo Reis aos ferros, pôs a mão sobre a pedra quente, são
acasos da topografia, o sol ainda não está alto, mas bate neste lugar desde
que nasceu. [...] Ricardo Reis desce até à curva, ali pára a olhar o rio, a boca
do mar [...] são imagens, metáforas, comparações que não terão lugar na
rigidez duma ode, mas ocorrem em horas matinais, quando o que em nós
pensa está apenas sentindo. (ibid., 383).
A criatura sabe que seu criador está invisível ao seu lado, mas conjectura que talvez lhe seja
proibido mostrar-se no recinto mortuário. De forma delirante, ocorre uma suposta conversa
entre os dois a respeito da guerra civil em Espanha e o destino de uma Europa conturbada.
Novamente sozinho, Reis escuta o mudo cantar das cigarras, vê entrar na barra um grande
barco negro semelhante ao HB que desaparece no espelho refulgente da água, é uma imagem
que não parece real.
5. Herbert Quain
Um tempo, o da finitude, chega ao fim, e outro, o da eternidade e da posteridade,
inicia-se. RR, ao querer levar consigo o livro de HQ, é advertido por FP de que a leitura é a
primeira virtude que se perde. Na Jangada, ficamos sabendo que a curiosidade é,
provavelmente, a última qualidade que se perde. A leitura é igualmente, ao contrário da fala
que é um dom que se traz como marca de nascença, a primeira virtude que se adquire. Reis,
ao abrir o livro, ―... viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já
me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um
enigma‖ (ibid., 415).
RR reencontrou, no retirar-se, o limite de sua existência, a ausência como único
habitat da escritura; pois ausentar-se é escrever, saber abandonar a palavra é ser poeta; neste
abandono da escritura basta apenas lá estar para lhe dar passagem como o elemento diáfano
de sua procissão, cujo escritor em relação à obra é ao mesmo tempo tudo e nada. Reis escuta
assim as palavras borgianas para quem a suprema solidão é a morte. As palavras tornaram-se
da ordem do silêncio de onde se desprenderam, e o homem Reis se abisma entre o silêncio e a
palavra, seu Ser se extingue. No labirinto da escritura, as palavras são muros ornamentados
que elucidam passo a passo o conjunto da Obra. Retornamos assim, nós também em nosso
labirinto, à definição do labirinto como o cúmulo do emaranhamento dos traços, à página em
branco. Contudo, em Saramago percebemos que o cúmulo do emaranhamento narrativo é uma
página suja.
6. As veredas bifurcantes
Se o poeta RR deixa o mundo aliviado de um enigma, nós, leitores do romance de sua
morte, ficamos perplexos diante dessa revelação, pois não nos aliviamos de enigma algum.
Que enigma é esse? Não conseguimos vislumbrar qual seja o enigma saramaguiano, e muito
menos o enigma borgiano. Borges, no conto Exame da Obra de Herbert Quain, diz haver um
indecifrável assassinato ao qual o autor dá uma solução errônea. Mas, o leitor inquieto da
obra imaginária de um autor fictício descobre outra solução, a verdadeira solução desse
assassinato que, apesar de tudo, não nos é revelada pelo autor do conto. O romance policial
clássico é o romance de enigma em que um problema existente deverá ser desvendado pelo
detetive, que no caso em questão, é o leitor. Este leitor/detetive deverá examinar as pistas e os
indícios até chegar à conclusão. Pois bem, encontramos um vislumbre de explicação em outro
conto de Ficções, O Jardim de veredas que se bifurcam.
O doutor Yu Tsun é um antigo catedrático de inglês na Hochschule de Tsingtan, neto
de Ts‘ui Pen, antigo governador de Yunnan. Essa personagem faz uma leitura simbólica do
fenomenal, consegue enganar o capitão Richard Madden que não desconfia de seu segredo: o
nome do novo parque britânico de artilharia sobre o Ancre. Ele precisa fazer chegar a seu
chefe, que examina infinitamente os jornais, tal segredo. Yu Tsun decide fugir e procurar no
subúrbio de Fenton a única pessoa capaz de transmitir a notícia. Já dentro do trem em
movimento, ele vê o capitão Madden que acaba de perder o mesmo trem. Diz a si mesmo que
seu duelo já está marcado, e que já ganhara o primeiro assalto, pois adiara o ataque do
adversário. Deduz que essa mínima vitória prefigura a vitória total. O doutor desce na estação
de Ashgrove e é orientado por alguns meninos na plataforma sobre como chegar na casa do
doutor Stephen (Dedalus) Albert (aberto). É só seguir o caminho à esquerda e virar
novamente à esquerda em cada encruzilhada. Tal conselho lembra-lhe o procedimento para se
descobrir o centro do labirinto.
Alguma coisa entendo de labirintos: não é em vão que sou bisneto daquele
Ts‘ui Pen, que foi governador de Yunnan e que renunciou ao poder temporal
para escrever um romance que fosse ainda mais populoso que o Hung Lu
Meng e para edificar um labirinto em que se perdessem todos os homens.
Treze anos dedicou a esses heterogêneos trabalhos, porém a mão de um
forasteiro o assassinou e seu romance era insensato e ninguém encontrou o
labirinto. (Borges I:2000, 527).
Ao chegar à residência de Albert, Yu Tsun é recebido, diante do portão enferrujado,
por um homem alto que carrega uma lanterna de papel. O homem pergunta-lhe se deseja ver o
jardim de veredas que se bifurcam. Desconcertado, ele lembra-se do jardim de seu
antepassado. O homem pede-lhe então que entre.
A úmida vereda ziguezagueava como os de minha infância. Chegamos a
uma biblioteca de livros orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados em
seda amarela, alguns tomos manuscritos da Enciclopédia Perdida que dirigiu
o Terceiro Imperador da Dinastia Luminosa e que nunca chegou a ser
publicada. (ibid., 529).
O homem é Albert, e observa sorridente o visitante. Albert fora missionário em Tientsin e
agora é sinólogo. Os dois se sentam para conversar a respeito de Ts‘ui Pen e sobre o seu
projeto do labirinto. Albert apresenta a Yu Tsun o labirinto do antepassado, um labirinto de
símbolos, um invisível labirinto de tempo que lhe fora oferecido revelar, um mistério diáfano.
Ao fim de mais de cem anos, os pormenores são irrecuperáveis, mas não é
difícil conjecturar o que sucedeu. Ts‘ui Pen teria dito uma vez: ‗Retiro-me
para escrever um livro‘. E outra: ‗Retiro-me para construir um labirinto‘.
Todos imaginaram duas obras; ninguém pensou que livro e labirinto eram
um único objeto. [...] Duas circunstâncias deram-me a exata solução do
problema. Uma: a curiosa lenda de que Ts‘ui Pen se propusera um labirinto
que fosse estritamente infinito. Outra: um fragmento de uma carta que
descobri. (ibid., 530).
A confusão do romance sugeriu a Albert a ideia do romance-labirinto. Ele levanta-se e
pega um papel com o renome caligráfico de Ts‘ui Pen, o outro lê que o seu antepassado
deixara a quase todos os vários futuros o seu jardim, ou seja, o romance caótico que escrevera.
Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à sua porta; Fang
decide matá-lo. Naturalmente, há vários desenlaces possíveis: Fang pode
matar o intruso, o intruso pode matar Fang; ambos podem salvar-se, ambos
podem morrer, etc. Na obra Ts‘ui Pen, todos os desfechos ocorrem; cada um
é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes, as veredas desse
labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa, mas num dos
passados possíveis o senhor é meu inimigo, em outro meu amigo. Se o
senhor se resignar à minha pronúncia incurável, leremos algumas páginas.
(ibid., 531).
Desse modo, o jardim é a imagem incompleta do universo concebido por Ts‘ui Pen,
romancista que preferiu o modo mais tortuoso na construção de cada um dos meandros do seu
labirinto, o romance, em que todas as decisões ramificam-se, pois que nenhuma aspira a ser a
decisão final. Na ficção de Ts‘ui Pen adota-se todas as soluções apresentadas
simultaneamente. Cria-se dessa forma, diversos tempos e futuros a proliferarem em
bifurcações.
Albert faz a leitura de duas versões de um mesmo capítulo épico. Yu Tsun escuta com
digna veneração as ficções, lembra-se das palavras finais, um mandamento secreto para que
os heróis resignem-se a matar e a morrer. Albert discute com Yu Tsun sobre as variadas
soluções de um enigma, e lhe diz que a única palavra proibida numa charada cujo tema é o
xadrez, é a própria palavra xadrez. Albert ensina-nos então que
O Jardim de veredas que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola,
cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção desse nome.
Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases
evidentes, é quiçá o modo mais enfático de indicá-la. (ibid., 532).
Yu Tsun sente uma invisível e intangível pululação, vê no jardim a imagem do capitão
Madden que avança. Quando Albert dá-lhe as costas pela segunda vez para buscar a carta do
antepassado, Yu Tsun dispara o revólver e mata-o. Na irrealidade do conto, Madden prende o
assassino que é condenado à forca. No entanto, Yu Tsun vence a batalha com Madden, pois
comunica a Berlim o nome secreto da cidade que deve ser atacada. Os jornais publicam o
assassinato de Albert, que é igualmente o nome da cidade-alvo a ser decifrada pelo chefe que
lê infinitamente os jornais.
Podemos concluir, então, que o enigma do qual se alivia RR é o enigma da própria
escritura, que é coextensivo há vários outros enigmas; quais sejam, o enigmático da leitura, do
sentido da vida e da morte, da paternidade, da criatura e do criador, da heteronímia e da
ortonímia, do amor, do regresso e da partida, e assim, infinitamente. Se há sedução em O ano
da morte, é porque a sedução é enigmática, e não, misteriosa. O enigma, semelhante ao
segredo, é plenamente inteligível, evidência inexplicável que, contudo, não poderá ser dita ou
revelada. No centro de qualquer jogo existe um enigma, cujo processo não é misterioso. Nada
há de mais inteligível do que o desenvolvimento de um jogo. A obra, vislumbrada como jogo,
seduz pelo enigma da experiência artística que faz da forma o ponto ambíguo por onde tudo
se torna enigma. No enigma descompromissado da obra, logo se é atraído para ela a partir de
suas próprias exigências de incerteza e de paixão absoluta.
7. O Deus mentiroso
Deleuze chama bifurcação a um ponto em cuja vizinhança as séries divergem ou
convergem, formando uma trama de tempo que abarca todas as várias possibilidades. Para
este teórico, Borges desejaria
[...] que Deus trouxesse à existência todos os mundos incompossíveis ao
mesmo tempo, em vez de escolher um, o melhor. Sem dúvida, isso seria
globalmente possível, pois a incompossibilidade é uma correlação original
distinta da impossibilidade ou da contradição. (Deleuze:1991, 98).
Porém, se tal desejo borgiano fosse realizado, só o seria por um Deus mentiroso e trapaceiro,
e não por um Deus que joga segundo regras por ele mesmo estabelecidas, em que os mundos
possíveis não passam à existência se forem incompossíveis com a sua escolha de um mundo,
mundo possível escolhido segundo a melhor repartição de singularidades nos indivíduos
possíveis.
Assim,
nessas
veredas
sempre
bifurcantes
traçadas
pelas
séries
divergentes/convergentes, encontra-se aquele caosmos deleuzeano de um jogo que diverge
num mundo de capturas no qual as mônadas, as personagens, se mantêm abertas ao
experimentarem traçados no universo, e ao entrarem, a cada caminho, em sínteses associativas
de mundos incompossíveis. Por fim, conseguimos a muito custo vislumbrar uma
pequeníssima parte do diagrama do labirinto saramaguiano, que é coextensivo, em suas séries
divergentes/convergentes, ao labirinto da literatura universal.
CONCLUSÃO
Restou-nos então, as imagens do itinerário hesitante daquele que navegou sob a marca,
ou o signo, do descerramento, pois foi ao labirinto que ele, e nós igualmente num labirinto
crítico-literário, nos condenamos, isto nos indicam as muitas perquirições a que nos
propusemos num estudo que jamais quis se constituir enquanto discurso escatológico, com
introdução/desenvolvimento/conclusão.
Na
verdade,
procuramos
na
constelação
de
fragmentos citados, uma crítica literária coadunada com o jogo intertextual saramaguiano,
pois temos a sensação de que não há vida fora do texto infinito, escolhendo a intertextualidade
e a hipertextualidade como a própria condição da textualidade; tentou-se evitar, desse modo, a
finalização teórica assemelhada à esterilidade e à morte. Enfim, a nossa crítica jamais quis
presumir que o seu domínio fosse apenas o do texto, pois vê a si mesma habitando um
espaço/tempo cultural extremamente contestado. A construção do nosso discurso crítico
procurou ser análoga à conceituação borgiana, ao confirmar que para expressar a perplexidade
que o acompanhava por toda a vida elegeu, ou lhe foi imposto, o símbolo do labirinto como
um edifício construído para alguém se perder, é um símbolo inevitável da perplexidade.
A imagem do labirinto é emblemática do trabalho inteiro da Obra e de suas
dificuldades; o caminho a percorrer é a via tortuosa que convém seguir para se alcançar o
centro onde se realiza o embate das tensões criadoras. Desse modo, a imagem do labirinto está
inscrita no homem que circula por seus meandros movido por um fogo, moendo seu grão para
obter farinha. Como característica existencial, há um centro aparente cujo desmembramento é
invadido por uma trama, uma teia engendrada em seu próprio interior que arregimenta uma
concepção fatídica da vida. Assim, é na fonte de origem que está o ponto de referência
daquele que perambula. Máscaras, espelhos, enigmas e labirintos que são partes do enovelarse da escritura narrativa de um romance especular que finda, com um movimento circular
como o do Oroboros que devora a própria cauda. No início do romance, na primeira linha, o
narrador dirá, Aqui o mar acaba e a terra principia, já no final, na derradeira linha, dirá, Aqui,
onde o mar se acabou e a terra espera. Fonte e foz, origem e fim do romance se confundem,
numa concepção clássica em que o Oceano era concebido como um rio circular que rodeava a
terra. Ora, uma das maneiras que se tem para que um livro seja infinito é que o seu processo
seja cíclico, circular, ou seja, a última página deve ser semelhante à primeira, numa espécie de
invisível labirinto do tempo que abarque o passado e o futuro, com inumeráveis antepassados
confluindo para um só romance que é um labirinto de símbolos. No ensaio O tempo circular,
Borges explica-nos que o primeiro modo fundamental do eterno retorno foi-nos definido por
Platão, que no Timeu formulou o argumento dos períodos planetários cíclicos. Neste ensaio,
Borges chega a falar que o único modo imaginável do eterno retorno é o dos ciclos
semelhantes, não idênticos. Assim, o romance da morte do poeta não possui idênticos início e
fim, mas semelhanças que os aproximam, sem, contudo, repeti-los.
Ao redobrar o fechamento do livro O ano da morte de Ricardo Reis, Saramago perfaz
o desdobramento de tal romance, pois o fim girando de forma semelhante sobre o início
agencia o enrolar-se do romance sobre si próprio, acolhendo, dessa forma, uma singular
diferença que permite a saída do fechamento. Reconhecida a semelhança do círculo narrativo,
quebra-se a curva e o caminho duplica-se, eficazmente, o caminho do livro consagrando o
livro. Este romance é um labirinto em que ao julgarmos dele ter saído, na verdade, o
penetramos mais fundo; logo, o labirinto romanesco é um abismo de pura superfície que, de
meandro a meandro, representa a si próprio, e quando se lê um livro no livro, uma origem na
origem, um centro no centro, estamos no abismo, no sem-fundo da reduplicação infinita. Ao
habitar, como poeta, o labirinto do romance saramaguiano, o heterônimo Ricardo Reis o
desvenda como um caminho que contém em si próprio os diversos caminhos para fora de si
mesmo.
Lembremo-nos então, do sonhar deste heterônimo que assiste ao seu próprio dormir. É
como ato de fidelidade e de união que poderá ser lido tal como um sonhar, cujo interesse
absoluto pelo mundo (Blanchot) assegura a finitude de um mundo e o seu limite numa
intimidade com o centro deste mundo recolhido em sua localização.
O mar acabou-se, o romance findou-se, mas a terra espera; afinal, estamos em 1936,
no ano da morte de Ricardo Reis, onde a rima – entre a data e o nome – não é mera obra do
acaso, assim como não é por acaso o início do ocaso da humanidade que, encaminha-se
angustiadamente para um futuro de difícil entendimento, não conseguindo ainda – apesar de
algumas sinalizações –, vislumbrar no ovo da serpente os horrores que adviriam nos anos
vindouros, após a partida do poeta clássico, representante de uma inocência perdida que
jamais retornará. O poeta FP, em carta ao amigo e também poeta Mário de Sá-Carneiro,
escrita em 1916 durante a 1ª Guerra Mundial, fala sobre a sua ânsia aflita, reflete sobre os
dias sem futuro de um presente imóvel, e comenta as últimas notícias sobre o estado de guerra
com a Alemanha. Apesar das atrocidades cometidas nesta guerra, jamais poderíamos
compará-las com o Holocausto da Segunda Guerra Mundial. Se FP angustiara-se com as
últimas notícias, imagine-se então, se lhe fosse possível prever o que hoje sabemos por meio
da Literatura e da Ficção. Ou seja, que se a terra esperou, essa espera foi estarrecedora.
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