Artigo é festivo, não é sério", diz Tom Zé

Transcrição

Artigo é festivo, não é sério", diz Tom Zé
Artigo é festivo, não é sério", diz Tom Zé
"Artigo é festivo, não é sério", diz Tom Zé
É coisa de estrangeiro falando coisa de Brasil, esse tipo de coisa na qual a gente se sente uma
coisa
TOM ZÉ
Especial para o Estado
Comentário que me pediu o Caderno 2, relativo ao artigo da New York Times Magazine, sobre
o Tropicalismo: bom. Segundo comentário: ruim. Coisa de estrangeiro falando coisa do Brasil,
esse tipo de coisa na qual a gente se sente uma coisa.
Gerald Marzorati, o NYTaimista, começa o artigo com um paralelo entre Lévi- Strauss e David
Byrne. Inteligente, culto, bem no alvo.
Acontece que Lévi-Strauss era o antropólogo, com sua proverbial culpa, procurando um País
primitivo que já não existia, ponto. Quando Geraldo Mazaropi, digo, Marzorati, fala do Brasil, é
a imposição da palavra escrita como meio privilegiado, que representa o braço do dominador.
É diferente da visão de David Byrne, uma espécie de viajante étnico-musical, que sintoniza a
singularidade da canção brasileira e sua cipoada-látego.
Terceira: a NY, o taime todo, transforma entrevista em texto sem referir a fonte, conferindo-lhe,
além disso, aparência de pesquisa.
Convocação cívica - Alô, alô, jovem ou velho jornalista do Brasil. Algum de vocês, ou algum
dos graduandos que preparam sua tese poderia fazer uma real pesquisa de campo sobre o
Tropicalismo ou Tropicália? É, rapaz... Porque digressões, com aquele mofo universitário, eles,
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americanos, já estão fazendo, iguais às nossas. Criador ou criatura, imitam-nos, ou nós os
imitamos, com nosso jargão esforçadamente doutoral que, todo prosa e ensimesmado, parece
superior a conveniências de observação sagaz, ou seja, substância. Socorrei-nos, Sevcenko,
Wisnik ou Tatit.
Eles falam como se Osvald, sua Antropofagia e o rock internacional já estivessem no âmago de
toda a tropicalidade, como a árvore na semente de Parmênides. Não estavam. Antes estava o
Nordeste.
O Nordeste e os Gerais do Estado de Minas convivem com o efeito residual de oito séculos de
dominação árabe na Península Ibérica, desde a Baixa Idade Média até a boca do
Renascimento. Ou seja, enquanto os bisavós do Sr. Mazaropi eram educados pelos bárbaros
cristãos, em todo o Velho Continente, a Península Ibérica (Portugal e Espanha) recebia uma
sofisticada educação, com a cultura moçárabe. É que o povo árabe, naquele momento, era a
sociedade mais culta do planeta.
E encontramos esses oito séculos de cultura no sertanejo analfabeto. Seus antepassados
chegaram ao Brasil nos séculos 16 e 17. No Nordeste e nos Gerais, empobreceram,
tornaram-se analfabetos, mas tanto amavam a herança moçárabe dos avós que começaram a
dançar cultura, cantar cultura, falar cultura. E a ler conceitos metafísicos nos eventos do
dia-a-dia; a fazer pentimento, sobrepondo à dura paisagem nordestina chaves de
conhecimento esotérico; e uma humorada Weltanschauung que sobrevive à miséria,
estabelecendo eixos filosóficos na sintaxe de uma língua têxtil.
Cultivaram musicalmente os modos dórico e mixolídio, este, geralmente, com a quarta
aumentada (estudo de Heraldo do Monte), os mesmos modos nos quais se compuseram as
primeiras canções do pré e do Tropicalismo. Será que eu exagero quando digo "falar cultura"?
Pois deixem hoje o capítulo da novela e leiam um capítulo de Guimarães Rosa. Valeu!
Alô, alô, jovem ou velho jornalista! Peço a vocês que corrijam um pouco essa superficialidade,
estendendo o braço da pesquisa da NY Times Magazine a este cabedal de idéias, o Nordeste,
sobre o qual a finura de Euclides da Cunha dá o mais comovente testemunho. Ali, Oswald de
Andrade, Antropofagia e o rock internacional eram o violeiro João Redondo e uma
empedernida obsessão de especular, praticada por um povo analfabeto, mas, antes de tudo,
forte.
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Oswaldismo, rockismo e antropofagismo apareceram num momento de troca da ética
nordestina por objetivos e técnicas outras. Que essa substituição tenha sido útil e
enriquecedora para o Brasil, concordo. Mas que isso seja A Voz do Morro e a essência rica da
cultura moçárabe original do Nordeste, não. Essas formas prontas, elaboradas em 22, tomaram
o bonde mais tarde.
E, olhe, eu mesmo não participei dessa substituição do tecido ético. Fiz bem ou mal? (Já tenho
alguns resultados digitais para minha avaliação.)
Mimetismo - O artigo é festivo. Não é sério. Fala do arranjo de Tropicália, cita-lhe partes
inteiras da criação, comenta aspectos de sua instrumentação, compara-o com o estilo de um
arranjador americano, mas subtrai, pura e simplesmente... o nome de Júlio Medaglia. (Esse
procedimento não lembra nada ao leitor?) Nem se leva em consideração que o maestro tenha
dado um exemplo brilhante da prática do chance and choice - acaso e necessidade -, ao
aproveitar uma brincadeira do baterista Dirceu, que recitou a Carta de Caminha enquanto fazia
a passagem de som da bateria, e acrescentando apitos e sons do abecedário
pós-qualquer-coisa; apesar disso, Júlio Medaglia não existe. Coisa característica de amador
que nem imagina o valor da roupagem que veste a canção. É a parede que desconhece o
pedreiro. (Continuas deslembrado, caro leitor?) A propósito, os NYTaimistas descobriram que
meu professor de Composição na UFBa, Ernst Widmer, gostava especialmente de Stravinsky.
Valha-me Deus! Não gostava especialmente. Fui eu quem, na entrevista, disse que gostava.
Eu gosto.
E Rogério Duprat é confundido com o produtor, que na verdade foi Manuel Berenbein. Cujo
nome, para corroborar nossa própria irresponsabilidade intelectual, não consta nem do último
lançamento do cedê Tropicália pela Polygram.
Faça-me uma garapa, Sr. Mazaropi, Rogério foi a chita de gala que vestiu a Tropia Cálida.
Eles, os maestros, são "difíceis", mas são luzes.
Agora estou na 39ª. O Caderno 2 estabeleceu 40 linhas. E Gilberto Gil, Capinan e Caetano
Veloso? Vejam como até aqui consegui caminhar nas verdades tropicálidas com eles
completamente ausentes. Lacanianamente, isso é assassinato. Minha carne conhece essa
morte, com a farsa que me enterrou vivo em 1970.
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Agora, à beira do fim dos tempos, no último suspiro do Evangelho Segundo Tom Zé, eu salvo e
desenterro Gil e Caetano, os injustiçados, esquecidos, postos de lado pela gula de minha
vaidade. E, então, num gesto "bondoso", retiro-os da obscuridade e livro-os da poça de gás de
fogão, em trio e terço, com Torquato Neto, que recorria a gás de cozinha para aborrecer os
amigos.
Quanto a Capinan, sendo oposição na Bahia, ele já conhece a cor da chita.
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