Pgs 01a09 - ECO - Escola de Comunicação :: UFRJ
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1 NO 4 - 2003/2 nº Z E R O JORNAL LABORATÓRIO DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO DA UFRJ número 4 2003/2 cidade 60 desaparecidos por dia para 7 detetives investigarem Prostituição ao lado dos escritórios Um perfil do Edifício Avenida Central economia Informalidade dos camelôs Distribuidor de filipetas Vendedores de rua Novo negócio na Feira de São Cristóvão esporte Quando faz mal à saúde Últimos sopros da Charanga do Flamengo educação Caminho do intercâmbio Busca de oportunidades no exterior Estudantes do interior se viram na capital Diferenças entre ensino público e privado na 3ª série Difícil vida dos analfabetos nas metrópoles cultura Museu Nacional guarda baratas e moscas com carinho Florais de Bach no confronto com a medicina Introvertidos Anônimos tentam se organizar Movimento quer libertar livros Apaixonados por histórias em quadrinhos Nova geração de cinéfilos invade o Odeon 2 NO 4 - 2003/2 Rio de Janeiro: 60 desaparecidos por mês,7 detetives, um carro para buscas Polícia Civil faz milagre com estrutura precária resistência da mulher, que começara a contar versões contraditórias sobre o sumiço da filha. Manhã de uma terça-feira, delegacia da Polícia Civil, Mesmo sem a estrutura ideal, há motivos para os Centro da cidade do Rio de Janeiro. Pelo fax chega um agentes se orgulharem: de janeiro a agosto de 2003, 510 comunicado da delegacia de Mangaratiba. Uma menina de sindicâncias foram instauradas. Deste total, 253 foram três anos sumira, 15 dias antes, na praia de Muriqui. A mãe solucionadas, isto é, 49% dos casos. Segundo os policiais, procurou a polícia e disse que perdera sua filha enquanto as estatísticas poderiam ser ainda mais positivas, se, por comprava sorvete num quiosque. Ela acusa seu ex-marido exemplo, contassem com o apoio das mídias. Segundo eles, de ter seqüestrado a criança. O caso foi entregue a um na época em que a novela “O Clone” da Rede Globo divulgava detetive do Setor de Descoberta de Paradeiro da Polícia fotos de crianças desaparecidas, o número de casos Civil do Estado do Rio de Janeiro. resolvidos chegou a dobrar. Neste setor, que funciona dentro da Delegacia de Além disso, muitos casos não chegam ao fim por Homicídios da Polícia Civil, oito funcionários compartilham falta de recursos. Por exemplo, se uma ossada com uma sala com sete mesas antigas, três computadores, uma características semelhantes à de um desaparecido for impressora matricial e 60 casos de desaparecimentos a cada encontrada, não será possível confirmar a sua identidade. mês. Seis arquivos, dois armários de ferro e três de madeira “O governo não paga os exames de DNA necessários para cobrem as paredes e dão à sala aspecto antigo e a identificação, e as famílias geralmente não podem pagádesordenado. Uma televisão, um rádio sintonizado na JB los. Custam cerca de mil reais”, explica um dos policiais. FM e uma cafeteira completam o equipamento do lugar. Depois de conversar com os outros detetives, o Dos oito funcionários, sete são inspetores de responsável pelas investigações, ainda instigado pelo polícia (antigos detetives) e o oitavo é uma mulher que ocupa telefonema que recebera, voltou à sala de interrogatório e, o cargo de oficial de cartório (o antigo escrivão). Estes usando sua experiência, perguntou calmamente para a mãe profissionais têm a missão de solucionar todos os casos de da menina desaparecida: “A menina está morta, não está?” desaparecimento que acontecem no Estado do Rio, exceto A mãe, que chorava muito, respondeu que sim mexendo a nas áreas da Zona Oeste e da Baixada cabeça. Imediatamente, o detetive Fluminense, a cargo de outras equipes. chamou um advogado para validar o As mais de três horas Isto significa que se alguém sumir nas testemunho. O caso estava resolvido. de interrogatório cidades de Angra dos Reis ou Volta Faltava à equipe da Descoberta de Redonda, por exemplo, um destes sete Paradeiro descobrir o corpo da menina e tinham minado a detetives irá assumir o caso. E deixará as circunstâncias de sua morte. resistência da mulher, os outros seis sem carro, pois o setor só Para estes policiais, além da que começara a contar tem um automóvel a seu serviço. falta de recursos, a inexistência de um versões contraditórias Com essa estrutura, os agentes órgão de identificação nacional também precisam correr contra o tempo para dar sobre o sumiço da filha é apontada como obstáculo. Sem esse solução aos mais de dois comunicados sistema único é impossível saber se de desaparecimento recebidos algum desaparecido morreu em outro diariamente. Depois de receber os casos das delegacias, os estado. Caso tenha acontecido, e não houver nenhum tipo policiais checam se há alguma informação sobre os de identificação junto ao morto, este será enterrado como desaparecidos no Instituto Felix Pacheco, Instituto Médico indigente, aumentando o número de casos não resolvidos. Legal, Santa Casa da Misericórdia, Polinter e Desipe. EsperaO corpo da menina não estava em outro estado, se saber se o desaparecido está morto ou se é procurado nem foi enterrado como indigente. O cadáver foi encontrado pela polícia. Se essas possibilidades forem eliminadas, as num matagal a 500 metros da casa do pai da criança. A mãe investigações começam. Este procedimento foi executado assumiu, depois de confirmar a morte, que levara a filha para no caso da menina que sumiu na praia de Muriqui, sem a casa de uma amiga, no fim de semana anterior. Lá participou nenhuma resposta positiva. de orgias sexuais com a amiga e um rapaz. A menina de três Os agentes, então, vão à rua atrás de informações, anos, numa travessura, ateou fogo a um cobertor e, de consultando amigos, parentes e vizinhos do desaparecido. castigo, foi trancada num quarto, onde era alimentada e A partir deste momento, sorte e experiência são espancada pelos três sempre que chorava, atrapalhando a fundamentais para a solução dos casos. No caso da menina, orgia. a vivência dos detetives definiu a investigação. Na quartaDomingo, pela manhã, ao levar o café para a feira, um dia depois de receber o comunicado do criança, descobriram-na morta. Para forjar a idéia de que desaparecimento, os agentes solicitaram a presença da mãe tinha sido seqüestrada na praia, os três amigos vestiram-na da garota para interrogá-la. Logo na primeira rodada de com um biquini vermelho, salgaram seu corpo e o colocaram perguntas, eles desconfiaram da veracidade da história. “A numa caixa de papelão. No carro do rapaz, um Passat de cor história não fechava, faltava alguma coisa”, disse o preta, levaram o cadáver para o município de Belford Roxo, responsável pelas investigações. Três agentes se revezaram onde morava o pai da menina. Diante destes fatos, no interrogatório, que durou mais de quatro horas. comprovados por provas materiais, os três - a mãe, o rapaz No meio da tarde, enquanto o interrogatório era e a amiga - foram presos. O pai, que não sabia de nada, feito, o responsável pelas investigações recebeu um livrou-se de um processo e o caso foi encerrado. telefonema da mãe da moça que estava sendo interrogada. O Setor de Descoberta de Paradeiro foi criado em Ela perguntou se a filha ainda estava na delegacia. Diante 1978 e já foi um Setor da Polinter, da Divisão de Defesa da da resposta positiva do investigador, ela se queixou de que Vida e, atualmente, faz parte da Delegacia de Homicídios. O a filha estava diferente, inquieta, desde o sumiço da neta. trabalho incansável destes poucos profissionais, que Ao desligar o telefone, o agente encontrou-se com outro conseguem resolver metade dos casos instaurados, mostra policial que acabara de interrogar a mulher. Os dois a necessidade de se investir no Setor. A criação de uma discutiram o caso e chegaram à conclusão de que as mais delegacia especial, inclusive, já foi promessa de campanha de quatro horas de interrogatório tinham minado a eleitoral, mas nunca se concretizou. Bruno Seixas Um jornal experimental não deve adotar modelo fixo. A cada número ele precisa inovar, tanto na edição gráfica, como na escolha do conteúdo, para que não se torne apenas um folheto acadêmico burocrático. Enquanto experimento, deve ser usado como exemplo do que se pode fazer com um pouco de criatividade e com o esforço de alunos e professores. Este Número Zero segue esta premissa: inova, rompendo com o modelo usado nos números anteriores, e apresenta aos leitores o reflexo de uma sala de aula composta por alunos de diversos períodos, origens e formações, comandados por professores - experientes jornalistas - que em tudo divergem. É verdade que, inicialmente, procurou-se uma linha mais parecida com a do número anterior, em que as pautas propostas fossem relacionadas a um tema comum. Mas a inquietação dos 20 alunos-repórteres, acentuada pelas constantes, e saudáveis, discussões entre os professores, fez com que o terceiro número do jornal abordasse os mais diferentes assuntos, que foram propostos individualmente e discutidos por todos. Além da diversidade de assuntos, o jornal aposta nas ilustrações e no experimento gráfico da primeira página no lugar da tradicional imagem tamanho GG dos números anteriores. Enfim, em suas mãos está um trabalho que prima pela inovação. Um produto da motivação de futuros, e inexperientes, jornalistas. Sua aposta é valorizar as idéias e estilos individuais. Sua finalidade: agradar o leitor sendo instrumento de ensino. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor Aloisio Teixeira ESCOLA DE COMUNICAÇÃO Direção José Amaral Argolo Coordenação do Curso de Jornalismo Beatriz Becker Núcleo de Imprensa André Motta Lima coordenação executiva Cecília Castro programação visual Elizabete Cerqueira secretaria de redação número 4 - 2003/2 Informativo produzido pelos alunos da Escola de Comunicação da UFRJ Orientação acadêmica Maurício Schleder e Paulo Roberto Pires Coordenação editorial André Motta Lima Elizabete Cerqueira Assessoria gráfica Cecília Castro Este número foi produzido com matérias elaboradas pelos alunos da disciplina Jornal Laboratório. As fotos e ilustrações são de responsabilidade exclusiva dos alunos. Término em 12/12/2003. TIRAGEM: 1.000 exemplares DISTRIBUIÇÃO GRATUITA 3 NO 4 - 2003/2 Prazer em horário comercial No Centro da cidade, escritórios dão nova fachada aos bordéis Leonardo Mancini chocolate. "Aquece os ânimos!", diz. Depois, se dispõe a apresentar as mulheres que ali trabalham e, se a oferta for aceita, chama todas as 11 garotas, uma por uma, para pequena performance. Do lado de fora, nada de diferente: uma velha porta marrom escura, em um corredor do edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco, Centro do Rio de Janeiro, onde trabalham médicos, corretores, advogados, e tantas pessoas a t r a v e s s a m t o d o s o s d i a s. N a portaria, os funcionários do prédio negam conhecer, mas apontam: "se Anúncios de existe, eles anunciam no jornal". classificados e panfleto Normalmente, a indicação distribuído furtivamente v e m m e s m o d o s c l a s s i f i c a d o s. pelas ruas do Centro "APAIXONE-SE P/MAIS belas massoterapeutas do centro", "BELPRAZER INDESCRITÍVEIS Massagistas a sua escolha! 18/24a. Aparelhadas, Tailandesa, especial/ completa", "ISABELA LINDÍSSIMA – Deliciosamente envolvente companhia agradabilíssima atendimento personalizado (carinhosíssima) proporcionando massagem altamente relaxante c/ aparelhos", são alguns dos anúncios. "Rio Branco" ou "Carioca, 154" são as referências ao Edifício Avenida As idades variam entre 20 C e n t r a l . Ta m b é m s e r v e m d e a 30 anos. Vestem microssaias ou propaganda os pequenos panfletos calças extremamente apertadas, com distribuídos furtivamente a quem pequenos tops que, invariavelmente, passa nas calçadas. deixam as barrigas à mostra. Dentro, uma recepcionista Raramente estão maquiadas. A s atenciosa recebe os u n h a s , clientes em uma “Recebemos o cliente sp ienmt apd ra es ante-sala retangular bem estreita, perto de onde ele c o m c o r e s for mada por uma berrantes, trabalha, com conforto inclusive as divisória branca, destas que não dos p é s. e segurança” a l c a n ç a m o t e t o, Normalmente dois sofás azuis, sorriem e uma mesa de canto com um vaso de fazem graça, apesar de não terem flores-do-campo artificiais em cima, aparência feliz. e um revisteiro, com dúzias de Após o desfile, a revistas pornográficas. A luz é fraca, recepcionista mostra a tabela de já que o sol não atinge a sala e as preços: 60 reais a massagem com lâmpadas incandescentes não são "complemento oral", 80 reais o suficientes. O ar-condicionado ligado "serviço completo", e 110 reais com ao máximo e um cheiro sufocante de duas moças. Se quiser, o cliente pode incenso. Na parede, um quadro com negociar diretamente com a mulher p a r t e s d e c o r p o s m a s c u l i n o s e q u e e s c o l h e r. " O s g o r d i n h o s femininos se encontrando. costumam pagar mais caro", E n q u a n t o e x p l i c a o cochicha. funcionamento da casa, que Do outro lado da divisória permanece aberta das 10:00 às 18:00 percebe-se o tamanho da sala, cerca horas, a recepcionista oferece licor de de 100 m², toda ela dividida em vários pequenos ambientes, semelhantes a pequenas baias, onde os clientes são atendidos. Cada um com um sofá-cama de solteiro, uma maca e um armário curto, de duas portas, repleto de toalhas brancas. os programas, primeiro na pista, gíria para quem se prostitui nas ruas, depois em termas, e agora na sala comercial. "A pista é boa, porque você não depende de ninguém, não tem horário e não pag a multas. Nas termas, você é obrigada a fazer o cliente consumir, tem que deixar uma porcentagem na casa, por qualquer c o isa o ge re n t e t e mult a, c o mo arranhar o chão, e ainda tem que pagar a bebida que consumir. Mas prefiro as salas do Centro. Aqui cada um tira o seu, descontando os custos da sala, que são divididos, e é mais seguro. Não tem polícia nem playboyzinho tirando onda, nem tem dono do estabelecimento. E ainda recebemos o cliente perto de onde ele trabalha, e com maior conforto." Ela afirma que faz em média quatro programas por dia, 20 por semana, já que a sala normalmente não funciona nos fins-de-semana. Além d i s s o, p a r t i c i p a d e f i l m e s p o rnográficos, "uns quatro por mês", que rendem R$ 300,00 por um trabalho Em cima do armário, um telefone, de 40 minutos. um vaso de flores artificiais e um Os freqüentadores das salas suporte para incensos. s ã o, n o r m a l m e n t e, h o m e n s q u e Existem dois tipo de salas. trabalham ali perto. Vão, em sua Algumas funcionam com um dono, maioria, logo depois do almoço, ou que agencia as mulheres, cuida da um pouco antes do horário normal manutenção e ganha de saída do uma porcentagem, “Os preços são: 60 reais trabalho. C., que varia de 40 a 60 7 anos, massagem com 3trabalha por cento dos a em g a n h o s. O u t r a s ‘complemento oral’, 80 uma admifuncionam como nistradora o ‘serviço completo’, e cooperativas de próxima a tra balho, onde as 110 com duas moças” uma destas mulheres dividem as salas. A cada responsabilidades 15 dias, pelo c o m o l i m p e z a , m a nu t e n ç ã o, m e n o s , p a s s a u m a h o r a c o m a s atendimento aos clientes e custos - meninas. "Sou casado há oito anos. e rateiam o lucro. Quando estou muito estressado no L . t e m 2 8 a n o s e s e trabalho, venho até aqui. Se eu for p r o s t i t u i h á t r ê s. N a s c e u e m direto para casa, acabo brigando. Aqui Campinas, teve dois filhos, o mais as mulheres fazem absolutamente velho hoje com nove anos, e se tudo o que minha mulher não faz. Se mudou para o Rio aos 23 tentando buscasse estas mulheres na rua, além melhorar sua vida. As crianças de me expor, sairia muito mais caro, ficaram com sua mãe em São Paulo. já que teria de pagar motel, além do Ela trabalhou em algumas lojas de programa. É simples: venho, relaxo, shopping e de departamento, mas tomo um banho, e vou embora . não conseguia dinheiro para se Depois, vou para a casa ou volto para manter. Foi quando começou com o trabalho. 4 NO 4 - 2003/2 Da meia-sola ao hardware Há 42 anos Edifício Avenida Central une presente e passado em comércio e diversão Lincoln DaMata ............................................................................ Manhã de segunda-feira no Centro do Rio de Janeiro. Na entrada de um grande edifício azul, próximo ao Largo da Carioca, começam a chegar pessoas para mais um dia de trabalho, negócios ou compras. Caminham apressadas em direção ao prédio, que já foi atração turística e símbolo do progresso brasileiro. São homens de terno e gravata, em sua grande maioria. Procuram o mais novo lançamento da Microsoft para aplicações de escritório, charutos importados, um bom corte de cabelo e garotas de programa. Fregueses, muitos fregueses. São nove horas da manhã no Edifício Avenida Central, a terra dos contrastes. Inaugurado em 1961, bem no meio da Avenida Rio Branco, seu tamanho já não impressiona ou atrai os turistas, que subiam o edifício, que já foi o mais alto da América Latina, para ver uma vista única do Rio. Outra atração, os elevadores acionados por comandos de voz, também já não atraem mais ninguém. A grande atração hoje é, sem dúvida, a infinidade de serviços oferecidos no Avenida, do sapateiro ao sexo rápido. Quando chegamos à entrada, número 156 da Avenida Rio Branco, somos recebidos por placas gigantes que nos informam que alí é ‘O maior shopping de informática do Brasil’, e que ‘Quatro andares de informática e tecnologia’ nos esperam. Grande engano: em meio às dezenas de lojas de hardware e software, e ao lado de milhares de estandes minúsculos onde são vendidos o que há de mais moderno em telecomunicações, existem barbeiros, um relojoeiro, um sapateiro, um sebo e algumas sex shops. Prova de que o contraste é a marca do edifício. O antigo e o novo Paulo Amorim é dono de um estande no segundo piso do Avenida, local chamado de ‘shopping da informática’. Lá ele vende peças e computadores montados. Paulo diz não se ofender quando comparamos seu local de trabalho, um cubículo de cinco metros quadrados, com os espaços usados por camelôs no Centro do Rio. “Sei que o aluguel de uma loja é caro, não tenho capital, e a solução é fazer como os outros: trabalhar nesses estandes”, explica. Paulo trabalha ao lado de mais uns 15 vendedores em espaço que já foi ocupado por uma loja. O local lembra os camelódromos que Ilustração: Lincoln crescem na cidade, e a separação entre os estandes é feita por divisórias de madeira. O espaço é pequeno, barulhento e desconfortável. No quarto andar trabalha José Paulo de Oliveira, um sapateiro. Sua loja, a “Um momento”, existe há 68 anos. Foi comprada por sua família em 1971, e instalou-se no Avenida em 1983. “Antigamente, havia essa mania de o sapateiro mostrar no nome da loja a rapidez do seu serviço, daí o nome ‘Um momento’”, conta José. “Tinha uma que se chamava Tic-tac, outra O Expresso, e assim vai”, continua. Sapateiro há muitos anos, considerado o melhor do Centro do Rio, José se queixa da crise. Diz que o brasileiro, por causa dos preços cada vez mais baixos dos calçados, perdeu o costume de consertar sapatos. “Mesmo sendo mais baratos hoje, já não se fazem mais sapatos como antigamente”, reclama o sapateiro, que para fugir da crise, teve que dividir o espaço com um chaveiro, fazendo com que sua loja se tornasse indefinível. “Aqui é um sapateiro chaveiro”, brinca José, que lembrou os bons tempos do Avenida, época em que o grande programa das famílias era subir os 110 metros de altura do edifício em seus elevadores, para poder ver a vista, no alto do mais alto prédio do Rio. “Ele era o nosso Empire State”, relembra o sapateiro. A nostalgia é presença marcante entre seus freqüentadores e comerciantes mais antigos. O edifício já teve um cinema, o Cine Hora, fechado na década de 90, que ganhou esse nome por ser freqüentado no horário do almoço, período em que seus frequentadores ficavam fazendo uma “horinha”. No Avenida desde a sua inauguração, o cinema funcionava, inicialmente, no subsolo do prédio, exibindo clássicos e desenhos animados. Alagado durante uma enchente, em 1966, o Hora perdeu o seu prestígio, até ser reinaugurado em 1980, com a presença de Vera Fischer e Sônia Braga, na exibição do filme ‘Eu te amo’, de Arnaldo Jabor. Com horário diferente dos outros cinemas da cidade - exibia filmes pela manhã - o Hora viveu bons momentos na década de 80, até ir perdendo fôlego na década de 90 e se render ao gênero pornô. O sexo Parece que o sexo, se ganhar a briga contra as lojas de infomática , deve ser realmente o destino da maioria das salas do edifício. O Avenida sempre foi presença marcante no roteiro do sexo no Rio. Lá existem até prostíbulos, embora a administração do edifício negue a afirmação. O prédio sempre foi pródigo na venda de apetrechos sexuais, quando o comércio deste tipo ainda não ousava mostrar as caras. A mais antiga sex shop da cidade fica lá, no quinto andar, atrás de uma porta discretíssima, que mais parece a de um escritório de advocacia. É a Rio Sex Shop, que vende vibradores, bonecos infláveis e lingeries ousadas. Segundo o funcionário mais antigo da casa, a freguesia é variada. “Como aqui é bem escondido, vêm aqueles que têm vergonha de entrar num lugar mais chamativo. Outro dia atendí um casal que veio comprar fantasias. Os dois eram bem idosos”, conta o rapaz, que afirma não se surpreender com algumas atitudes de clientes. “Já atendi uma mulher que saiu correndo de vergonha ao ver os produtos, mas voltou, dois dias depois, menos envergonhada”, delicia-se o vendedor, mais um trabalhador do Avenida Central. 5 NO 4 - 2003/2 Trabalhadores trocam Carteira pela economia informal dos De acordo com levantamento do IBGE, quase metade da população dos grandes centros do país trabalha sem salário fixo e sem carteira assinada. Maria das Dores dos Santos disse que, trabalhando como camelô, ganha salário maior, não paga impostos e não precisa obedecer patrão. Foram esses os motivos que a fizeram ingressar no chamado comércio de rua que, na opinião da camelô, exerce especial atração sobre as pessoas que optam pela economia informal. Maria, há oito anos no ramo, afirmou que se engana aquele que pensa que os camelôs são, unicamente, pessoas pobres, sem qualquer escolaridade e chance de mobilidade social que procuram nesse comércio uma forma de sobreviver. A assistente social Ivone Gomes, também trabalhando como camelô, pensa o mesmo que Maria. Ela acrescenta que com o “problema do desemprego, com os salários baixos e os impostos altos oferecidos pela economia formal, o trabalho de camelô tornou-se um grande atrativo também para a classe média”. Dessa forma, pessoas com diplomas universitários insatisfeitas com os salários insuficientes ou com o problema do desemprego, além dos impostos exorbitantes, acabam escolhendo essa profissão. Maria das Dores não conseguia sustentar seus dois filhos com os três salários mínimos que recebia trabalhando como enfermeira. Por isso, há oito anos, resolveu entrar no ramo dos camelôs. Segundo ela, “o salário era muito baixo e os impostos bastante altos, não sobrando quase nada para a família. A situação estava muito difícil e foi necessário achar uma solução que driblasse as dificuldades financeiras.” Assim, começou a trabalhar como camelô, vendendo e consertando relógios, próximo a uma estação de metrô. Maria compra os relógios de um atacadista por, aproximadamente, 13 reais e vende por 20. Para ela, “o lucro seria maior se não precisasse comprar do atacadista e pudesse trazer diretamente do exterior”, mas ela não tem essa possibilidade. Nos melhores dias consegue ganhar até 100 reais e juntar cerca de 500 reais por semana, usufruindo de uma renda mensal de oito salários mínimos e meio que são gastos em comida, contas a pagar e no próprio material que vende. No Natal, ela chega a vender o dobro. Contudo, Maria disse que “com a crise atual, a situação tá complicada para todo mundo e, assim, o movimento diminuiu.” “O dólar cai, mas os preços altos continuam e os fregueses consomem menos porque não sobra dinheiro para eles comprarem relógios ou até mesmo consertá-los”, destacou. Por causa disso, sua renda chegou a cair pela metade em setembro. Ela complementa a sua renda trabalhando nos fins de semana como enfermeira particular, ganhando R$ 150,00 por fim de semana. “Mas isso só quando consigo arranjar algum doente para cuidar e não é todo fim de semana que tenho essa sorte”, ressaltou. “De qualquer maneira, estou conseguindo sustentar os meus filhos e recebo mais do que os três salários mínimos que recebia como enfer meira”, concluiu. O que ela espera é que a situação econômica do país melhore logo para que possa voltar a vender como antes. Mesmo com o movimento mais fraco, trabalhar como camelô continua sendo opção a ser considerada. Lurdes Almeida, dona de uma gráfica, entrou no ramo há um mês. Segundo ela, “o dinheiro da gráfica não estava dando conta das despesas.” Assim, resolveu tentar ser comerciante de rua, vendendo relógios, pilhas e cartões telefônicos próximo a mesma estação de metrô, onde trabalha Maria das Dores. Segundo ela, o que mais vende são os relógios. Os preços variam de cinco a trinta reais e ela tem um lucro de 20% sobre cada produto. Lurdes disse que consegue vender no máximo quarenta reais por dia e teve uma renda no final de seu primeiro mês de R$ 600,00. “Não estou muito satisfeita, mas é um bom complemento para a minha gráfica. Quero vender mais e espero ansiosamente pelo Natal”, afirmou. Exausta, a comerciante de 55 anos, disse que trabalha das seis da manhã às sete da noite como camelô e depois ainda vai trabalhar em sua gráfica. Para ela, o grande problema é a concorrência. “Ali logo na boca do metrô tem uma barraca que vende os mesmos produtos que eu. Mas como está bem na saída, as pessoas vão primeiro lá e eu perco dinheiro com essa concorrência”, reclamou Lurdes sobre a vantagem de Maria das Figura retirada do site www.secbhrm.org.br Dores. Mesmo assim, ela não desanimou e afirmou que vai continuar no ramo. “Já passei de vinte relógios, no primeiro mês, para cinqüenta, nesse mês”, demonstrando que vai continuar investindo no produto. “Além disso, fazendo qualquer outro bico eu ganharia menos”, concluiu. D. Ivone Gomes, de 75 anos, separada e com filhos já adultos, precisa sustentar somente a si mesma. Assistente social, aposentada, resolveu pensar em algo que lhe agradasse e ao mesmo tempo complementasse sua aposentadoria de R$ 800,00 mensais. Então, viu como melhor solução tornar-se camelô e vender bolsas feitas por ela mesma. “Eu utilizo meu tempo ocioso fazendo as bolsas e depois as vendo. Ocupo meu tempo com o que gosto de fazer e ainda ganho um dinheirinho bom”, disse. Trabalhando apenas às sextas e aos sábados, vendendo cerca de 15 bolsas a cada dia por um valor médio de 10 reais, ela fatura mais ou menos meio salário mínimo por dia, o que soma no final do mês aproximadamente R$ 1.200,00 , quase o dobro de sua aposentadoria. Ela disse que utiliza esse dinheiro para fazer excursões pelo Brasil. Gasta dez metros de material sintético por mês para fazer as bolsas, o que significa uma despesa mensal de apenas 100 reais na compra do material. Há dezessete anos no ramo, ela afirmou que não tem do que reclamar. “Eu me divirto trabalhando, me sustento e ganho mais do que muito graduado e até camelôs doutor que, infelizmente, nem emprego têm”, concluiu Ivone, confirmando as vantagens em ser camelô. Maria das Dores, Lurdes e Ivone têm autorização da Prefeitura para trabalhar no local onde estão e, para isso, pagam uma taxa. Maria das Dores, por exemplo, paga R$ 80,00 por ano à Prefeitura e está muito satisfeita com esse valor. As outras também não reclamaram dos valores das taxas. “É melhor pagar a taxa e estar legalizado do que viver com medo da Guarda Municipal”, afirmou Lurdes. Contudo, isso não ocorre com aqueles que comercializam no local em que querem, trabalhando sem o aval da Prefeitura. Segundo a Assessoria de Comunicação da Guarda Municipal, os camelôs ilegais constituem obstáculo no direito de ir e vir do pedestre. O problema não são os produtos, contanto que haja a nota fiscal, mas sim o local em que os camelôs os vendem. Os guardas municipais são necessários para preservar as calçadas livres para os transeuntes. Caso um guarda municipal flagre um camelô operando na ilegalidade, ele é obrigado a apreender suas mercadorias. Os produtos são colocados em um saco lacrado e encaminhados aos depósitos da Prefeitura, onde, sob a responsabilidade dos fiscais da Coordenadoria de Licenciamento e Fiscalização (CLF), da Secretaria Municipal de Governo, são contados um a um. Os camelôs têm o direito de recuperar a mercadoria apreendida mediante a apresentação da nota fiscal e o pagamento de multa. Como, segundo a Assessoria de Comunicação da Guarda Municipal, muitos desses produtos são pirateados ou contrabandeados, os camelôs não possuem nota fiscal e não podem reaver o material, que acaba sendo destruído. A questão da ilegalidade se agrava quando os camelôs resistem à apreensão das mercadorias. A Assessoria de Comunicação da Guarda Municipal informou que de janeiro a setembro desse ano houve um total de 42 conflitos, com 74 guardas municipais feridos, 17 ambulantes feridos e 41 camelôs detidos. Desses conflitos, 28 ocorreram no Centro da cidade. O Centro é o local onde a ilegalidade se faz mais presente com 1.500 camelôs não-autorizados atuando ao lado de 2.140 camelôs legalizados. Estima-se que o número de camelôs ilegais aumente para 1.800 no final do ano, por causa do Natal e do Ano Novo. A Assessoria afirmou ainda que o grande problema no Centro não é só a dificuldade que os comerciantes de rua ilegais oferecem para o trânsito das pessoas, mas também a procedência altamente duvidosa de seus produtos. O medo da violência dos conflitos e, principalmente, do prejuízo causado pela apreensão das mercadorias, deixa o camelô ilegal Rony, vendedor de óculos escuros que não quis dizer seu sobrenome, em constante tensão. “Eu não trabalho com tranqüilidade, porque sempre fico preparado para quando aparecer um guarda municipal eu dar no pé na mesma hora”, disse ele. Reclamou ainda que a ação dos guardas municipais impede que pessoas como ele “ganhem a vida honestamente”. “Além de tudo, muitas vezes a mercadoria apreendida some ou então a multa é tão alta que é mais fácil comprar os produtos todos de novo. O que a Prefeitura manda fazer é um absurdo contra as pessoas honestas desse país”, desabafou. Renata de Marca 6 NO 4 - 2003/2 O homem-filipeta das noites ‘mudernas’ Marina Herrman Morador da Ilha do Governador desde que nasceu, Mirrela começou a ser popular no seu bairro, trabalhando no evento “Festival de Todas as Tribos”, em 1999, quando atuou como jornalista, entrevistando a cantora Penélope. “Adorei participar desse evento, pois me realizei na profissão que escolhi”. Há mais de quatro anos, Mirrela sai de casa pela manhã e só volta de madrugada, chegando a filipetar mais de 10 mil flyers num único final da semana. Ele grampeia seis filipetas diferentes juntas, produzindo 4 mil kits por semana, isso sem contar os trabalhos esporádicos que não entram no kit e são distribuídos à parte. Isso significa que ele distribui filipetas para uma verdadeira multidão todas as semanas, o que o redime de não lembrar do teu nome ainda que esteja falando contigo pela décima vez. Conhecedor da cidade como poucos, pega vários ônibus no decorrer do dia, algumas vezes viajando de carona, carregando sua inseparável companheira mochila para divulgar os mais diversificados eventos culturais. “Aquele ditado de carregar a casa nas costas serve perfeitamente para mim, a diferença é que carrego o trabalho nas costas”, comenta Mirrela. Como bom trabalhador organizado, tem um itinerário de faculdades e eventos noturnos fixos de acordo com o dia da semana. Mas a vida de peregrino também tem suas vantagens, como ingressos gratuitos para os melhores shows e casas noturnas, além da não imposição de horário de trabalho, ao contrário do que ocorre na maioria dos empregos convencionais. “Aliás, os produtores para quem eu trabalho têm uma enorme confiança em mim. Às vezes fico viajando pelo Brasil um mês e quando volto sei que tem trabalho garantido de novo”, completa Mirrela. O mais interessante da sua função é a popularidade alcançada, principalmente nos centros universitários por onde ele passa: onde não há ninguém que não o conheça ou nunca o tenha visto na vida. Apesar de o público alvo ser os jovens universitários, ele se diverte com umas coroas que estudam na UERJ, onde existe um curso para a terceira idade. Cativas das filipetas, elas ficam amarradonas quando ele chega e vão correndo lhe perguntar qual é a boa da noite. Ele é, sem dúvida, uma figura que se destaca nas atividades de produção cultural. Afinal ele garante a lotação nos espaços alternativos da cidade. Com seu visual bastante diferente, que reproduz um estereótipo de regueiro, com louvações ao rei Bob Marley, num c h a r m o s o dreadlock e seu jeito sereno, doce e carismático, Mirrela parece onipresente. Além disso, ele é bastante grande, sendo facilmente identificável de qualquer lugar na multidão. Mas não se deixem levar pelas aparências: embora cultive seus cabelos, que há quatro anos não vêem uma tesoura, o CDs de reagge não entram no rol de seus favoritos. Forró, principal ritmo que divulga, definitivamente não curte. Seu gosto musical varia, na verdade, do progressivo a neo-poprock nacional, passando por metal, MPB, música latina e hip-hop; som é uma de suas grandes paixões. O rock, sua maior inspiração, está presente inclusive no tema de sua monografia. Tendo cursado todas as matérias, atualmente só freqüenta a Facha, para divulgar os eventos e desenvolver sua tese sobre a história dos Beatles, aproveitando os bares da Farani para rever alguns amigos. Mirrela já escreveu algumas matérias como free-lancer para o site do portal de internet Terra e se interessa por jornalismo cultural, mas acredita que no momento está muito difícil ingressar nessa área. Após a conclusão do curso, pretende trabalhar com produção de eventos, embora seja um ramo arriscado e que demanda alto capital de giro. “Aquele ditado de carregar a casa nas costas serve perfeitamente pra mim: a diferença é que carrego o trabalho nas costas” O INÍCIO A oportunidade de trabalhar com divulgação surgiu num bar que freqüentava há bastante tempo. O Zoeira, onde costumava se divertir ouvindo música, encontrando todo tipo de pessoas e jogando sinuca, era conhecido como ponto de encontro para as pessoas alternativas. Na época, ele era uma espécie de andarilho pela madrugada, adorava freqüentar lugares diferentes, principalmente lá na Lapa. Em outubro de 2000 ele conheceu uma menina que estava produzindo um forró na Quinta do Bosque. Era aniversário da banda Baião de Corda e ele sugeriu que trabalhar com divulgação seria uma boa oportunidade de conseguir uma “graninha”. Daí por diante não parou de pintar trabalho, levando-o a conhecer vários produtores, inclusive um com quem trabalha até hoje, Afonso Carvalho, das bandas Forróçacana, Dread Lion e Rogê. Seu primeiro trabalho para Afonso foi um show da Cássia Eller na Fundição Progresso. Na época, o pagamento era feito pelo número de flyers que “entrava na casa” e ele conseguiu colocar 197 filipetas na Fundição. O show lotou e, com um pouquinho de sorte, realizou excelente trabalho, permanecendo no ofício que atualmente lhe garante salário melhor do que o de qualquer estágio em comunicação. Mirrela se destaca, certamente, por sua diposição e por sua disponibilidade para trabalhar, já que poucos trocam seus fins de semana e noites por trabalho. Distibuir flyers se tornou, então, seu sustento, e assim Mirrela paga seus estudos e ainda consegue uns trocados para uma cervejinha nos bares da rua Farani, quando lhe sobra tempo. Embora trabalhe duro e durma pouco, Mirrela adquiriu uma liberdade que condiz com seu estilo de vida, não passando pelas chatices da fiscalização de chefe, usando o seu estilo de roupa pessoal sem nenhuma formalidade, e ainda trabalhando ao ar livre e em contato com muitas pessoas diferentes, o que para ele é uma das melhores gratificações. 7 NO 4 - 2003/2 Um jeitinho carioca de sobreviver A dura vida dos vendedores de rua no Rio de Janeiro Denis Kuck São dez e meia da manhã de uma sexta- “Não é gato, não!”, revolta-se Roberto que as pessoas nem passam por mim, só de carro. feira, quando os moradores da Rua Aperana, Aparecido de Oliveira, 32, ao ser perguntado Vendo mais em dia de pagode e show de rock”, Leblon, percebem a presença de um som agudo sobre a origem de sua mercadoria. Mas o conta. e diferente. Mas não se trata do irritante choro mistério sobre os populares churrasquinhos há de um recém-nascido ou de um mal-educado que de continuar. Roberto não abre o jogo sobre o vendedores de rua do Rio de Janeiro é o ligou seu som no máximo. É apenas um alagoano tipo de carne que vende. “É da boa”, limita-se. vassoureiro. João de Oliveira, 29, orgulha-se de de Maceió, que persiste em uma profissão que O que ele não faz questão de esconder, ser um deles e de percorrer quase todos os dias no entanto, é sua origem: “sou de Jequié, na as ruas da Zona Sul vendendo a sua mercadoria. Bahia”. Lá, Roberto lidava com bois e cavalos. “É preciso ter pernas”, afirma. “Quando eu tiro aos poucos vai desaparecendo. Há exatos 25 anos, Antônio Barbosa Outra figura emblemática dos comprou uma máquina de amolar facas de uma folga, quero é descanso. Futebol, nem espanhóis que faziam esse serviço no Rio de pensar!”. Além de pernas, é necessário ter voz. Janeiro. “Naquele tempo, era uma profissão E João tem. É possível ouvir a metros de muito boa. Existiam muitos amoladores. Hoje, distância a sua voz grave e poderosa: “OLHA O só tem eu e mais uns dois”. Mesmo assim, ele VASSOUREIRO!”. Deve ser por isso que ele mantém sua rotina. Para não precisar trazer seu se arrisca a dar uma de cantor nos pagodes do amolador de Nova Iguaçu, bairro onde mora, Vidigal, bairro em que mora. Antônio aluga espaço em um depósito na Zona Desde que começou nessa profissão, há Sul. Depois percorre com a pesada máquina, nove anos, é o próprio João quem faz suas sempre caminhando, bairros como Jardim vassouras. “Piaçaba, madeira, pregos, grampos, Botânico, Leblon, Ipanema e Copacabana. folhas de flandre, arame e cola”, é o que ele Para chamar a atenção dos fregueses, precisa para fabricar sua mercadoria. Para aciona com o pé a roda do amolador e passa tanto, recorre à ajuda de um tio, que mora em então a faca. Eis o peculiar e agudo som de sua um sítio no município de Mendes e que lhe profissão. Que parece não estar mais chamando fornece material e ferramentas. a atenção dos fregueses. “Hoje em dia o pessoal Mas nem tudo são espinhos na vida dos prefere usar facas elétricas ou simplesmente vendedores de rua. Que o diga Francisco deixa de usá-las”, lamenta. “Além disso, Gonçalves de Medeiros, 82 anos, há 44 vendendo antigamente só havia casas e prédios baixos, todo flores nas ruas do Rio de Janeiro. É difícil mundo ouvia o meu som. Agora, com esses encontrar alguém que freqüente os restaurantes prédios enormes...”. e bares da Zona Sul e não conheça a figura do Não menos duro é o trabalho de Ronildo simpático velhinho de cabelos brancos, vestido de Jesus, vendedor de mate nas praias da Zona Sul de terno e com rosas na mão. Francisco nasceu carioca. O rapaz de 23 anos, que trabalha desde os em Sobral, Pernambuco, e antes de se tornar 15, conta que nunca se fixou em nenhuma vendedor de flores chegou a trabalhar na profissão. Foi auxiliar de pedreiro, balconista de Jõao faz um test-drive de seu equipamento construção de Brasília. padaria e ultimamente trabalhava como camelô. Depois de tantos anos nas ruas, Preferiu trocar o “perigo desse serviço pela Francisco conta que ao vender flores para dois tranqüilidade de Ipanema”, mesmo que tenha de Era peão de uma fazenda. Cansou dessa vida e jovens namorados é possível que tenha feito o andar vários quilômetros quase todo dia carregando veio para o Rio, onde passou a trabalhar em um mesmo com os pais do casal. Mas, apesar de em cada ombro um galão de 25 quilos. Um, de mate. açougue em Bangu. “Ganhava muito pouco. Aí tão lúdica e romântica, sua profissão também O outro, de limão. A mistura, que no passado era tive a idéia de não esperar o cliente vir até a resiste ao progresso. “Antigamente existiam mais sucesso nas praias cariocas, andou sumida por um carne”. bares e boates”. Além disso, “as pessoas se bom tempo. Voltou há cerca de dois anos. Os banhistas agradecem. Parou então em Botafogo, na saída do Canecão e do Rio Sul. “Tem uns shows grã-finos davam mais flores”, queixa-se inocentemente. Sinal dos tempos? 8 NO 4 - 2003/2 Seca, só a carne A Feira de São Cristóvão mudou. Pulou os muros do pavilhão, está mais bonita, segura e organizada. Mas o espírito e as histórias dos nordestinos mantém-se intocados. “Sarapatel, buchada de bode, baião de dois, prefeito César Maia esteve aqui na última campanha, “Mas no final deu tudo certo. A prefeitura carne-de-sol, jabá com jerimum, muito bate-coxa, aqui subiu numa cadeira e disse que, se eleito, colocaria a cedeu a autorização para o uso do pavilhão, através sempre teve... Mas conforto, higiene e segurança feira no interior do pavilhão, e assim foi feito. Hoje, de um processo, e resolveu três problemas: acolheu chegou faz um mês, mais ou menos”. são 684 barracas, onde nove mil empregos são os feirantes, pôs fim ao tumulto e às reclamações Nada mais nordestino do que a Feira dos gerados, direta ou indiretamente. Só no dia da dos moradores e deu um destino ao pavilhão, que Nordestinos, certo dona Elza? “É quase isso, meu inauguração, passaram por aqui 450 mil pessoas, com já tinha sido usado para feiras, festival de música, filho... Agora tem muito filho de doutor também. Mas os shows da Elba e do Zé Ramalho, do Forróçacana ginásio de esportes, barracão de escolas de samba o pessoal da ‘terra’ continua por aí”. e tudo mais”, declarava empolgado, ainda com o e até para concurso de miss. Hoje, a feira, que Quem passeia hoje pelas ruas da nova Feira sotaque puxado, vindo lá do interior do Ceará. acolhia 70 mil pessoas por fim de semana do lado de São Cristóvão, oficialmente Centro Luiz Gonzaga Doido para largar a entrevista e jogar uma de fora, acolhe 120 mil. Conseguimos construir uma de Tradições Nordestinas, não tem noção do que era partida de purrinha contra seu antigo rival, o folclórico estrutura muito boa e estamos felizes com o a feira antes da mudança para o interior do pavilhão. presidente ainda teve tempo de definir o que é a feira resultado. Estão todos convidados a participar dessa “Cada noite morriam quatro, cinco, de facada, tiro. para ele: “Isso aqui é a válvula de escape do povo festa.” Hoje não tem mais isso... Tem segurança espalhado nordestino, que foge das dificuldades e das mazelas Emir diz ainda que o projeto é abrir a feira de por tudo quanto é canto”, completa dona Elza, alagoana de seus políticos na terrinha e vem pra cá, suar o pão terça a domingo, a partir de dezembro. “Em torno de orgulhosa, 21 anos de feira. de cada dia. Durante a semana é só trabalho, 60% das barracas estão totalmente prontas, o resto Seu Odair também já viu com os próprios aborrecimento, chegou sexta-feira aqui é a nossa casa. estará terminado até 30 de novembro, que é o prazo olhos muita coisa acontecer na famosa final. Depois disso, passaremos a abrir “feira dos paraíbas”. Saído de Jequié, durante a semana também”. sertão da Bahia, 17 anos atrás, história No total, estima-se que os para contar é o que não falta a este gastos ultrapassam 30 milhões de reais bahiano arretado. com as obras, tanto para a restauração “Olha que não falta mesmo do pavilhão quanto para a construção não... Mas contar os causos hoje, aqui, das barracas e estrutura interna. São é moleza. Queria ver se fosse na minha 32 mil metros quadrados de área, com terra, comendo calango frito, assado, dois palcos para shows, duas pistas de caçando lagartixa pra variar o cardápio, dança, cinco praças, 12 banheiros indo buscar água no poço da vizinhança. públicos e 688 vagas de estaQuando eu cheguei aqui quase não cionamento. acreditei. Conheci o arroz, feijão, carne Dentre todos os feirantes, macia, água correndo dentro de casa... administradores e público entrevistaIsso aqui é o paraíso.” dos, não houve uma pessoa sequer Seu Odair dizia que chegou no que reprovasse a mudança. ReclaRio dentro de um pau-de-arara, em mação, apenas uma: a exclusividade busca de trabalho, como seus da cerveja. conterrâneos fizeram há 58 anos para Segundo Jairo Rosa, dono de dar início à feira. Como São Cristóvão um dos restaurantes da feira, o acordo Entre uma venda e outra, Seu Odair mostra como se caçava lagartixa na Bahia era ponto de desembarque, as pessoas já estava selado antes que os se aglomeravam pelo local e ali já comerciantes tivessem voz. Esperavafaziam as primeiras trocas, vendendo e comprando o O povo precisa disso. Além do mais, isso aqui já era se que a exclusividade se limitasse ao dia da que tinham trazido da terra natal. O lugar acabou um ponto turístico do Rio de Janeiro lá fora, aqui dentro inauguração, mas para a surpresa do público, a feira virando o ponto de encontro da população nordestina. a coisa só cresceu. Mais limpo, mais organizado, afinal continua comercializando uma marca de bebidas “Sim, é verdade. A feira já é uma senhora de de contas nordestino não quer dizer porco, tudo apenas. 58 anos, mas está cada vez mais bonita e charmosa”, improvisado. Isso aqui tá muito melhor, agora toda a “Ah, eu tenho uma reclamação também. Só lembrava Seu Agamenon. “Aí, fala com esse aí, população é bem-vinda.” existe um banheiro para todos os funcionários tomarem Quem repete com todas as letras o que Seu banho”, vociferava Sebastiana. O único banheiro, porque ele é que sabe de tudo. Número é com ele mesmo... Ele que é o nosso cabeça aí”, apontava Agamenon disse é Emir Bechepeche, representante segundo ela, não anda em bom estado de conservação. Sebastiana, uma das cinco empregadas de dona Elza. da SEDECT (Secretaria Municipal de “Pois é, anda uma sujeira que só vendo. Isso eles Agamenon de Almeida é o presidente da Desenvolvimento Econômico, Ciência e podiam melhorar. O resto tá mais do que bom”, COOPCAMPO, cooperativa dos feirantes. Está no Tecnologia), órgão da Prefeitura, um dos completa a bahiana. Rio desde 1970 e já fez de tudo nessa vida. “Já fui encarregados de administrar o pavilhão. “As Há quem diga que a Feira de São Cristóvão sanfoneiro, barraqueiro, tesoureiro de cartão de crédito, dificuldades para trazer a feira para o interior do perdeu um pouco das suas características originais. sou engenheiro civil, fui chefe de gabinete da pavilhão foram muitas, sem dúvida. Pouca gente Dona Elza, aquela alagoana, Odair, o tal que comia administração da comunidade da Maré, e pode colocar acreditava que isso pudesse acontecer. Foram calango frito, Seu Agamenon e Sebastiana têm outra aí que eu já ensinei muito cabra a ler e escrever passadas 29 circulares aos feirantes, explicando opinião. “O público aumentou e se diversificou, o também”, lembra seu Agamenon, com um grande como seria o processo, mas muitos deles fizeram ambiente melhorou, a feira evoluiu, mas o espírito pouco caso. Outros não quiseram, ou não puderam, nordestino não morre nunca...”, diziam. A “feira dos chapéu de cangaceiro protegendo do sol. Com seis anos de mandato à frente da arcar com as responsabilidades e os custos com paraíbas” continua sendo a maior concentração cooperativa, ele foi um dos grandes responsáveis pela água, luz, gás, taxas de segurança, limpeza, que nordestina fora do Nordeste. mudança. “Os feirantes já reivindicavam isso há 15 seriam exigidos deles a partir de agora”, diz ............................................................................................................ Bernardo Calil Pacheco anos, mas faltava vontade política para fazer. O Bechepeche. 9 NO 4 - 2003/2 Sobrevivência na selva de pedra Jovens estudantes vindos do interior contam suas divertidas e traumáticas experiências de adaptação à cidade grande e ao ambiente universitário Márcio Rezende Siniscalchi Jr. jovens estudantes, ávidos por No último processo de relacionamentos e vida social. seleção da Universidade Federal do Daniel Dias, 21 anos, também Rio de Janeiro, 26% dos candidatos estudante do curso de Medicina da eram de outras cidades do estado. UFRJ, enxerga pontos positivos e Muitos deles (77%) escolheram suas negativos nesse frenesi que é a profissões de acordo com as cidade grande. “Quando eu morava aptidões pessoais, o que leva a em Teresópolis, era só atravessar a acreditar que nem mesmo as maiores rua que eu estava na escola. Hoje, dificuldades poderiam fazê-los para ir da minha casa (na Ilha do desistir. Até porque, segundo as Governador) a Botafogo, tenho que estatísticas do questionário sóciopegar dois ônibus”, queixa-se cultural respondido pelos Daniel. “Mas aqui tem muito mais vestibulandos, a UFRJ é a que opções de lazer e é bem mais fácil oferece o melhor curso na carreira fazer amizades”, contra-argumenta. em 75% dos casos. Devido à histórica solicitude A divulgação das listas de dos cariocas, a todo o momento aprovados põe um fim naquela corre-se o risco de ganhar novos ansiedade descontrolada. A partir companheiros. “Logo na primeira daí, surgem as inquietações típicas de semana de aula conheci quase a quem está prestes a mudar turma inteira. Claro que depois me radicalmente de vida. Encontrar Fernanda e seu primo, Guilherme,, na república em que moram: convivência aprendida a cada dia centrei mais em um grupo que uma moradia é apenas o primeiro combinava com meu perfil, mas tem amizade passo a ser dado. Enquanto alguns têm condições um processo doloroso, mas passa”, assegura ela. para todos”, explica Bruna, crente de que muitas de viver sozinhos, outros repartem o aluguel de um Às vezes, nem mesmo o deslumbramento com as dessas amizades serão eternas. apartamento e criam uma república. Ainda restam novidades do mundo universitário é capaz de imTer amigos significa não aqueles poucos com parentes na capital e também pedir o sentimento de vazio. “No estar sozinho em momento os felizardos que têm o privilégio de morar com início, minha república não tinha algum. Por isso, nunca faltam seus amigos de infância. Mas, para quaisquer desses nem telefone. Me sentia compleprogramas para aqueles que “estrangeiros”, morar longe de casa exige um tamente sozinho, não sabia de cultivam boas amizades. As período de adaptação. Afinal, eles agora devem nada que acontecia na cidade”, opções vão desde um dia de saber controlar os gastos, precisam mensurar suas desabafa Bruno Brockorny, expraia até uma noite na Vila liberdades e ainda têm de conhecer as artimanhas morador de Magé, na Baixada Mimosa. “Tem tanta coisa de uma cidade grande. Fluminense, hoje colega de classe para eu fazer que, no final do Viver em comunidade com personalidades de Fernanda. mês, as contas ficam opostas pode ser desgastante . Há quem se Alguns estudantes logo se apertadas”, avalia Gustavo decepcione com os próprios parentes. Fernanda identificam com o cotidiano da Lobato, 20 anos, estudante Sobreira, 21 anos, estudante do quinto período de metrópole, mas mesmo assim do segundo período de Medicina, às vezes se desentende com seu primo. ainda sentem falta da casa dos Geologia, um dos cursos “Sou uma garota muito organizada, guardo tudo pais. Bruna Pastore, estudante menos concorridos no depois de ter usado. De repente, chego na sala e a do segundo período de vestibular. encontro toda bagunçada. Isso me atinge”, revela Psicologia, é um deles. “Por mais Embora haja muitas Fernanda, que deixou Volta Redonda para estudar que eu tenha meu quarto aqui no opções de divers ã o, nem na UFRJ. Rio, o lugar onde eu sinto a sempre elas estão ao alcance. Transporte coletivo sensação de ter um lar é a casa da minha mãe”, precário e violência generalizada são duas orgulha-se ela, que prefere ser visitada pela mãe Mudança de referências reclamações muito freqüentes nos discursos dos a ir até Angra dos Reis encontrá-la. Segundo a Para a psicóloga Carolina Sette, do Centro jovens universitários. Muitos não têm carro, o doutora Carolina, isso acontece porque a de Psicologia da Pessoa, no Flamengo, a sensação que dificulta suas incursões pelas noites cariocas. moradia dos pais contém uma história viva em de solidão que atinge praticamente todos aqueles “Ando sempre ligado no que acontece ao redor, quadros, porta-retratos e móveis. E o jovem se que vieram com a cara e a coragem de vencer na evito locais perigosos à noite, não bobeio reconhece nisso, reconstruindo o seu passado. vida tem uma explicação. “Enquanto vive com os sozinho”, declara Gustavo, que divide com pais, o jovem tem tudo às mãos a qualquer moDaniel e Bruno uma república no bairro Jardim mento. Os amigos também estão sempre ali. Já na Novo ritmo de vida Guanabara, próximo à favela da Maré e cidade grande ele age por si só e precisa arrumar Por mais que no início estranhem, poucos entrecortado pela Linha Vermelha. novas amizades. Esse ‘corte do cordão umbilical’ é meses depois o ritmo da capital contagia esses “O ‘corte do cordão umbilical’ é um processo doloroso, mas passa”, assegura psicóloga 10 NO 4 - 2003/2 A charanga do Jaime Desafinada e barulhenta, primeira torcida organizada do Brasil segue fiel ao Flamengo BERNARDO MELLO FRANCO Charanga, no dicionário, é sinônimo de “conjunto musical desafinado e barulhento”. Foi assim que o rubro-negro Ary Barroso batizou, em 1942, uma bandinha que acompanhava os jogos do Flamengo. Em vez de ofender-se, o fundador, Jaime de Carvalho, resolveu adotar o nome. No ano em que o clube começava a conquistar seu primeiro tricampeonato estadual (1942/43/44), nascia a primeira torcida organizada do Brasil. Mais de 60 anos depois, o grupo sobrevive graças ao empenho de seus integrantes em manter viva a tradição de apoio ao time. Desde que chegou ao Rio de ita, em 1927, o baiano Jaime dedicou sua vida ao Flamengo. Na semana do Fla-Flu que decidiu o título de 42, reuniu família e amigos para inusitada “invasão” do Estádio das Laranjeiras. Naquele tempo, a torcida gritava quando o time atacava e emudecia quando os adversários recuperavam a bola. Tocando as músicas de incentivo sem parar, a Charanga mudou para sempre o ambiente dos jogos de futebol no país. SEMPRE A FAVOR Era a própria mulher de Jaime, D. Laura, quem costurava as faixas e bandeiras da torcida. Partindo de vinte integrantes, o grupo cresceu e fez história, inspirando a criação de inúmeras “charangas” pelo país nas décadas de quarenta e cinqüenta. Nelas, era proibido gritar ofensas e palavrões contra os jogadores – só valia torcer a favor. Depois da morte do marido, em 1976, D. Laura assumiu a liderança da Charanga. Na mesma época, começaram a crescer as torcidas organizadas “modernas”, como a Raça RubroNegra e a Torcida Jovem, que adotaram a rivalidade violenta e passaram a influenciar na política no clube. Os estádios, antes seguros, passaram a abrigar cenas de guerra entre facções rivais, muitas vezes do mesmo time. Como reflexo dos novos tempos, a Charanga foi obrigada a se transferir da arquibancada para as cadeiras do anel inferior do Maracanã, freqüentado por idosos, crianças e turistas. Hoje, com D. Laura doente e sem forças para comandar a torcida, a Charanga se reduz a uma banda de oito músicos aposentados, tão desafinados quanto os do tempo de Jaime de ANOS 70: Dona Laura comanda a Charanga no Maracanã. Nesta época, a torcida ainda ficava nas arquibancadas Carvalho. Liderados por Grimário Batista do Nascimento, o Seu Guigui, eles tocam nos jogos de futebol e nas finais dos esportes amadores. - Quando o Flamengo não chama, cada um faz seu bico em bandas de música, como a da Guarda Municipal – conta o músico de 57 anos, aparentando mais, em fala lenta e pausada. VELHA GUARDA No Flamengo de 2003, a Charanga ocupa papel semelhante ao das velhas-guardas das escolas de samba. É reconhecida como patrimônio do clube, mas sofre com a mudança dos hábitos e com o descaso dos dirigentes. Na última reforma do Maracanã, perdeu a salinha em que guardava seu arquivo de fotos e recortes de campeonatos do passado. Para continuar tocando, seus músicos recebem pequeno cachê do clube. - Quem nos ajuda no Flamengo são os funcionários mais antigos, que conhecem a história da torcida. Os presidentes só ligam em época de eleição – diz Seu Guigui. A decadência da Charanga é um retrato do declínio dos times cariocas e do chamado futebolarte, que fez a fama dos jogadores brasileiros. A persistência da torcida remete ao tempo em que, como debochou o treinador pentacampeão Luiz Felipe Scolari, se amarrava cachorro com lingüiça. No fim de 2002, indignados com mais uma campanha medíocre, torcedores invadiram o campo de treinamento na Gávea e agrediram jogadores diante da imprensa, que fez as imagens correrem o mundo. O Flamengo, como sua torcida, já viveu tempos melhores. Touradas em Madri Além de apoiar o Flamengo, a Charanga marcou época acompanhando os jogos da seleção brasileira. Em O vermelho e o negro – pequena grande história do Flamengo, o escritor Ruy Castro conta um curioso episódio ocorrido na Copa de 1950, disputada no país. O Brasil jogava contra a Espanha pelo quadrangular final do torneio. A torcida, empolgada com a campanha do time comandado por Zizinho e Ademir Menezes, lotava o Maracanã. No final da vitória por 6 a 1, a Charanga começou a tocar a debochada marchinha “Touradas de Madri”, sucesso do carnaval de 1938: Eu fui às touradas em Madri (Bum paratchimbum) E quase não volto mais aqui Para ver Peri beijar Ceci Eu conheci uma espanhola Natural da Catalunha Queria que eu tocasse castanhola E pegasse touro à unha (...) Em poucos instantes, a multidão de quase 200 mil pessoas cantava a música e acenava com lenços brancos. Anônimo na arquibancada, o compositor João de Barro, autor da marchinha, pôs-se a chorar copiosamente. Tomado por espanhol, chegou a levar alguns cascudos, mas foi salvo do linchamento por um torcedor que o reconheceu. O Brasil perderia a Copa três dias depois, na fatídica derrota de 2 a 1 para o Uruguai. Mas naquela tarde, a torcida comemorou como se já tivesse ganho a taça. 11 NO 4 - 2003/2 Quando o esporte faz mal à saúde Duilo Victor Movimentos repetitivos trazem para a velhice chance 60% maior de problemas nas articulações do que em alguém que pratica esportes por recreação Dr. Bruno Mazziotti, fisioterapeuta e diretor do Centro Internacional de Reabilitação Nilton Petroni R9, na Zona Oeste do Rio, afirmou, que para diminuir os riscos que envolvem o esporte de alto rendimento é indispensável aumentar cada vez mais a assessoria médica do atleta. Fisioterapeutas, nutricionistas, preparadores físicos e técnicos têm de prestar acompanhamento que ele diz ser multidisciplinar, ou seja, envolvendo vários profissionais que aplicam métodos de treinamento quase exclusivos para cada tipo de atleta. – No futebol, dependendo da posição que os jogadores desempenham podem ficar mais mais sujeitos a determinados tipos de lesão – afirma Mazziotti. Num zagueiro, posição que naturalmente exige contato mais ríspido com os adversários, as lesões por trauma, ou em português comum, pancada, colisão e até mesmo traumatismo craniano, são mais freqüentes do que em um meio-campo, para o qual é mais comum lesões por estiramento muscular. A lesão por trauma também é muito freqüente no basquete. O risco foto de arquivo Atletas que praticam esporte para serem campeões têm sua saúde em risco. É o que dizem especialistas em medicina esportiva e os próprios envolvidos. Joelton, centroavante do América-RJ, de 34 anos, e Marco Aurélio, do Santo André-SP, da mesma posição que o colega, são experientes no futebol e sabem muito bem que esporte profissional não é sinônimo de vida saudável. – Todo atleta convive sempre com a dor – afirma Joelton, que já sofreu muito com a dor, até mesmo nos treinos, e já passou por uma cirurgia no pé por causa do futebol. Já Marco Aurélio é mais experiente: sofreu seis cirurgias no joelho direito e duas para corrigir ruptura de tendões. – Penso mais em parar de jogar por causa das lesões que sofri. Geralmente os clubes não querem saber se você precisa se recuperar e a gente acaba tomando injeção de Voltaren (tipo de analgésico) para voltar à partida, o que agrava depois o problema – desabafa Marco Aurélio. – No início da minha carreira, eu nem me preocupava com lesões – termina Marco Aurélio, que, apesar dos problemas que enfrentou, é grato à vida que o futebol lhe proporcionou. de uma cotovelada ou de lesões por impacto trazem uma estatística que preocupam em particular as mulheres. A cada mil horas de jogos de basquete profissional, um time masculino tem dois competidores machucados e, no feminino, cinco tem lesões na quadra. Esse tempo não corresponde nem a meia temporada normal de um atleta profissional – As séries de competições em curto espaço de tempo e a conseqüente falta de descanso muscular também são motivos para o aumento de lesões quando se pratica esporte para competição de alto rendimento – aponta Mazziotti, ressaltando o que é A norte-americana Carly Petterson, 15 anos, ganhadora por equipe do Mundial de Ginástica de 2003, tem 15 anos e 1,45m: baixinha de família e por treinamentos justamente um dos maiores problemas dos jogadores de futebol aqui no Brasil. Diferente daqueles que praticam só por lazer, diz o fisioterapeuta, um atleta profissional está sujeito a doenças que geralmente são associadas a pessoas comuns, como a lesão por esforço repetitivo, conhecida como LER, e a anemia. A primeira acontece exatamente por causa do excesso de competições. Já a anemia ocorre por falta de preparação física suficiente. Um maratonista, por exemplo, perde muitos sais minerais, água e proteínas durante uma prova, que se não forem repostos adequadamente, principalmente as proteínas, o risco de anemia é muito maior. Para esportistas amadores ou profissionais com menos recursos, o número de anêmicos é maior que o normal. Os movimentos repetitivos que um atleta de vôlei, por exemplo, é obrigado a fazer, levam para a velhice uma chance 60% maior de causar problemas nas articulações, em comparação com uma pessoa que pratica esportes por recreação. O que dizer então daquelas ginastas que encantam pela beleza plástica de seus movimentos mas que parecem ter um corpo que não corresponde à idade? Muitas delas não são baixinhas por acaso. Para se tornarem atletas vencedoras, elas têm de treinar desde crianças e os repetidos exercícios de impacto são péssimos para o crescimento ósseo, assim como os exercícios de musculação a que são submetidas. A musculação para quem está em fase de crescimento não é recomendada, mas, se tiver de ser feita, deve ser com acompanhamento médico rigoroso. Mazziotti lembra que as atletas também são selecionadas pela suas características físicas, ou, para os termos científicos, o biótipo. O biótipo de um atleta, que é determinado pelo seu DNA, contribui em 60% para o sucesso do competidor, restando os outros 40% para a preparação física que ele terá no decorrer da vida. Mas, no caso das ginastas, elas são pequenas não somente porque possuem o biótipo próprio para o esporte, mas porque a carga de treinamentos que executam dificultam seu crescimento ósseo. Outro fato que assusta envolve o boxe, e, em particular, o ex-pugilista Mohammed Ali. O Mal de Parkinson de que ele sofre, segundo o fisioterapeuta Carlos Alberto Daniel Filho, da mesma clínica N. Petroni R9, é o chamado Parkinson secundário . Este tipo de Parkinson está diretamente relacionado com o excesso de pancadas na cabeça que ele sofreu durante a carreira. De acordo com Carlos Filho, os pugilistas tem perda de parte dos neurônios, o mesmo ocorrendo em escala menor com os jogadores de futebol, que durante a carreira cabeceiam bolas milhares de vezes. – Se uma simples batida de carro a 30 km por hora já é capaz de causar danos neurológicos, imagine um soco do Mike Tyson – demonstra Carlos Filho. Isso sem contar o risco de um golpe provocar hemorragia interna, o que não é tão raro no caso do boxe, e que pode levar à morte porque seu efeito às vezes só é sentido após a luta. O atleta de alto rendimento já está vivendo um tempo onde a tecnologia se faz indispensável para mantê-lo competitivo e controlar ao máximo os riscos, impossíveis de serem eliminados segundo os médicos. O Barão de Coubertain, homem responsável por trazer as Olimpíadas para a era Moderna e preocupado com a ética esportiva, uma vez escreveu em anotações, que datam da década de 10 do século passado, que o esportista não pode ser moldado como um modelo de corpo perfeito, ou que o esporte deve sempre respeitar os limites naturais e idealizados do corpo. Ele escreveu que em nome da competição e respeitando os demais competidores, o atleta deve sempre superar seus limites, mesmo que isso acarrete em algum tipo de dano ao corpo. Para corrigir esses danos, ele profetiza, aí está a ciência cada vez mais sofisticada para ajudar os atletas. Hoje não poderia ser diferente. 12 NO 4 - 2003/2 Eles lá nos EUA e elas aqui no Brasil Daniel, Pedro, Iris e Nicole são alguns dos alunos que participam dos programas de intercâmbio promovidos pela UFRJ Frederico Martins Roberta Fernandes Eles estão nos Estados Unidos e elas no Brasil. Eles são dois brasileiros e elas, duas alemãs. O que os quatro têm em comum? Eles falam português, estão fora do seu país de origem desde a metade de 2003, e só voltam para a terra natal no ano que vem. Esta é a descrição dos estudantes da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que participam dos programas de intercâmbio da unidade. Enquanto as alemãs Íris Ioanna e Nicole Marten estão no Brasil desde j u l h o, vindas da Tec h n i s c h e Fachhochschule, Berlin, os brasileiros Daniel Lustosa e Pedro Esteban estão nos Estados Unidos desde a gosto, nas North Carolina Agricultural and Technical State University (NCA&TSU) e North Carolina State University (NCSU), com outros dois estudantes da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Frederico Martins e Ernesto Penno. Tanto as meninas quanto os meninos estão adorando a experiência e, apesar das saudades de casa, gostariam de ficar mais tempo no exterior. Matriculados regularmente nas universidades, eles têm direito a cursar as disciplinas oferecidas nas instituições e participam de projetos que interligam os países. O coordenador do projeto, Ricardo Naveiro, destacou a impor tância do intercâmbio na vida dos universitários. “Essa oportunidade é fantástica para o currículo dos alunos, que com esse tipo de experiência adquirem novas habilidades compatíveis com o cenário nacional”, disse o professor. PARA OS RAPAZES, MUITO ESTUDO E HISTÓRIAS PARA CONTAR Depois de quase três meses nos Estados Unidos, eles trabalham e estudam muito, mas sempre reservam um tempo para conhecer o país estrangeiro e sua cultura. Os futuros engenheiros da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais, que embarcaram no dia 11 de agosto para um intercâmbio em duas universidades da Carolina do Norte, contam por e-mail como está sendo a experiência de estudar no exterior. A primeira coisa que os rapazes destacam é a assistência que recebem desde que chegaram à cidade de Greensboro, onde estudam e moram. “A coordenadora do programa de intercâmbio foi nos buscar no aeroporto e nos colocou em contato com alguns alunos que nos ajudaram a conhecer o campus e a cidade. Também tivemos um almoço com os profe s s o r e s d o d e p a r t a m e n t o. M e l h o r recepção, impossível”, descreveu Daniel Lustosa, da Politécnica, que está estudando na North Carolina Agricultural and Technical State University (NCA&TSU). Outro ponto marcante é a diferença entre os métodos de ensino dos dois países. Enquanto aqui no Brasil eles tinham um grande número de aulas, de até duas horas de duração, lá nos Estados Unidos as aulas duram menos tempo - de 50 minutos a uma hora e 15 minutos - e a carga horária total é menor. “As aulas são curtas, mas bem aproveitadas. Os professores ministram as aulas em apresentações no computador e disponibilizam para os alunos. Só temos que tomar nota”, conta Daniel. Além disso, outro aspecto fundamental é o grande volume de deveres de casa que eles têm nos Estados Carlos Celso Os rapazes da UFRJ matam um pouco das saudades ao lado da bandeira do Brasil Unidos. “Os trabalhos da faculdade têm me matado”, exagerou Pedro Esteban, também da UFRJ. Mesmo com tanto estudo, os rapazes encontram tempo para passear e conhecer o país em que vivem. Durante as excursões, eles já passaram por situações inusitadas e curiosas, como um final de semana na praia com direito a estudo e adoração à Bíblia Sagrada a convite de uma amiga americana. “A Grace nos convidou para ir a Myrtle Beach, mas não disse que ia ser uma viagem religiosa”, contou Frederico Martins, da UFJF. O mineiro Ernesto Penno comparou a realidade que vivem com os filmes norteamericanos. “É engraçado identificarmos no dia-a-dia algumas coisas que vemos nos filmes”, comentou ele, citando a tradição de acampamentos americanos, com pessoas em volta da fogueira assando marshmallows. Além da praia, eles também conheceram a capital do país, Washington DC, e a cidade de Ridgecrest, nas montanhas, onde participaram do encontro de outono dos estudantes internacionais. ÍRIS E NICOLE QUEREM FICAR MAIS TEMPO Logo que chegaram, a maior dificuldade das alunas alemãs foi entender o português “Mal chegamos e já temos que ir embora”. Estas foram as palavras de Íris Ioanna, estudante da universidade alemã Technische Fachhochschule Berlin, que participa do programa de intercâmbio da Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em nome dela e da amiga Nicole Marten, Iris diz que as duas adoraram o Rio de Janeiro e gostariam de ficar mais tempo para conhecer melhor a cidade e as pessoas. “Seis meses é muito pouco”, reclamou ela. As alunas alemãs vieram ao Brasil para participar de um projeto sobre desenvolvimento auto-sustentável. Elas destacaram o fato de estarem matriculadas na universidade como um dos aspectos positivos do programa. “Isso permite que possamos fazer matérias aqui e que tenhamos mais contato com os estudantes”, reforçou Nicole. Em relação ao estudo, as estudantes não viram muitas diferenças entre a universidade brasileira e a alemã. “Tanto aqui quanto lá, o curso exige muito estudo e sobra pouco tempo para sair”, comentou Iris. Para quem chegou em julho deste ano, as alemãs já parecem bem adaptadas ao Brasil. Elas falam português e se viram bem quando precisam andar pelas ruas do Rio, mas nem sempre foi assim. Nicole conta que o começo foi bem difícil, já que elas só tiveram um semestre de aulas de Língua Portuguesa antes de virem para o Brasil. “No início, o mais difícil era entender as pessoas e se fazer entender”, explica ela. Nicole conta ainda que as duas estavam receosas em relação à violência na cidade maravilhosa, mas logo perceberam que não é tão perigoso andar pelas ruas do Rio. “Lá na Alemanha, as pessoas dizem que não podemos andar com bolsas nem brincos nas ruas. Mas assim que chegamos, vimos que a cidade não é tão assustadora se você sabe onde ir”, apontou ela. O Brasil foi definido pelas alemãs como o “país do paradoxo”. Elas acham estranho que um país com tantas belezas e riquezas naturais tenha pessoas morando nas ruas. “Não podemos entender como um país tão rico tenha gente tão pobre. É um grande paradoxo. Podemos notar as divisões de classes da sociedade”, exemplificou Iris. Ela disse também que, em Berlim, as instituições públicas são para pessoas pobres, diferente do Brasil. “Aqui na UFRJ só estudam as pessoas que têm dinheiro para isso. Lá na Alemanha as universidades públicas são só para os pobres”, complementou a estudante. 13 NO 4 - 2003/2 Jovens buscam saída para crise no aeroporto Com medo do desemprego, estudantes e recém-formados tentam trabalho fora do país Eduardo Massa Após longa crise a economia brasileira começa a dar sinais de recuperação. A indústria voltou a crescer, saindo da recessão do primeiro semestre, mas enquanto a retomada do crescimento industrial não afeta os altos índices de desemprego, jovens de todo o país buscam, no exterior, novas oportunidades. As razões que levam estes jovens a tentar a sorte no exterior são muitas. Em um mercado cada vez mais competitivo a experiência no exterior é um diferencial. Além disso, em países como os Estados Unidos os salários são muito superiores ao padrão brasileiro, o que se torna um forte atrativo. Foi o que levou Júlio Fernandes, então estudante do segundo ano do segundo grau, a viajar pela primeira vez ao país. “Eu estava quase me formando e não sabia inglês, viajei sabendo que iria voltar com uma experiência importante e com dólares suficientes para bancar a viagem”. Enquanto não estava estudando, Júlio ganhava dinheiro como garçom e com montagem de computadores, o bastante para manter-se sem ajuda dos pais, juntar dinheiro e comprar alguns equipamentos eletrônicos que trouxe para o Brasil. O mais difícil para ele foi se readaptar à vida no Brasil: “Na primeira semana fui assaltado. Eu adoro o Rio, mas tudo aqui é mais difícil”. Atualmente morando no Brasil, Júlio viaja aos Estado Unidos quase todos os anos. Caso semelhante é o de Márcio Ishida, de 25 anos. Neto de japoneses, Márcio viaja ao Japão a cada dois anos. O objetivo não é turístico e sim juntar dinheiro para investir no Brasil. São meses de trabalho intenso, que garantem a Márcio pelo menos um ano de tranqüilidade no país. Com o dinheiro que conseguiu em suas viagens, Márcio já abriu três empresas aqui, a última uma grife de roupas. “Se o investimento não dá certo eu volto para lá e começo tudo novamente”. Embora a viagem possa significar alguns reais a mais na conta, nem tudo é fácil para quem quer tentar a sorte no exterior. O investimento inicial é alto, e inclui os gastos com passagens, hospedagem e algum dinheiro para se sustentar nos primeiros meses. Para não correr riscos é necessário planejar bem a viagem. Para isso é possível consultar empresas especializadas em programas de estágio e trabalho no exterior, assim como se informar bem sobre a cultura do país de destino. O estudante de Direito da UFRJ Anderson Souza pretende viajar no início do ano, e achou mais seguro procurar uma destas empresas: “Eu já chegarei lá empregado, sabendo o quanto vou ganhar por mês, o que facilita o planejamento. Em três meses eu pago toda minha viagem”. Outra dificuldade enfrentada pelos viajantes é o preconceito. Apesar de voltar sempre para os EUA, Júlio conta que já foi vítima de discriminação várias vezes, como com a vizinha que sempre o xingava quando ele passava em frente a sua casa. Já Márcio diz não ter sofrido como preconceito, mas sim com a frieza dos japoneses. “É muito diferente do Brasil, você pode trabalhar anos com uma pessoa sem saber nada sobre sua vida.” fotos: divulgação UM ENSINO, DOIS DESTINOS Os contrastes entre a educação pública e privada no dia-a-dia de duas alunas da 3ª série. No Santo Inácio sobram opções, num CIEP faltam professores. Centro Integrado de Educação Pública Bárbara tem nove anos e estuda na 3ª série do Colégio Santo Inácio, em Botafogo. Juliana tem dez anos, também está na 3ª série e estuda no CIEP Margareth Mi, no Recreio dos Bandeirantes. Nunca repetiu de ano, embora esteja uma série atrasada em relação à idade. Ambas são tímidas, gostam de brincar, jogam bola e pretendem fazer uma faculdade após saírem do colégio. Mas não é difícil perceber a diferença entre a rotina das duas crianças e, como conseqüência de sistemas de aprendizado tão discrepantes, a diferença entre o modo de elas verem o mundo. Camila Braga Medina No Santo Inácio, colégio conhecido na cidade por sua tradição centenária, Bárbara estuda português, matemática, história e geografia, ciências, artes e educação física – além de religião. Como em todo colégio particular, seus pais devem comprar os uniformes, livros e/ou apostilas e todo o seu material didático. Ela estuda pela manhã e se quiser fazer alguma atividade extracurricular oferecida pelo colégio – como jazz, que faz na academia da escola – deve pagar por fora. Leva o lanche de casa, mas tem a opção de comprá-lo na cantina. Bárbara também faz outras atividades fora do colégio, como vôlei, que joga no Fluminense. Já Juliana, que estuda em um Centro Integrado de Educação Pública – CIEP, só tem aulas de português, matemática, ciências e educação física. História e geografia ela só terá a partir da quarta série. A matéria (Estudos Sociais) faz parte do currículo, mas falta professor. Em compensação, vai começar a ter aulas de inglês ainda este ano, por iniciativa de uma das professoras. Ela estuda em tempo integral, almoça e janta na escola. “Antes tinha almoço e lanche, mas o lanche foi substituído por janta por causa de dinheiro. (...) A comida nos dias de festa, tipo dia das mães, é melhor”, explica a menina. A mãe de Juliana também comprou o seu uniforme mas, a partir do ano que vem, passará a ganhá-lo da prefeitura. Os livros são emprestados pelo colégio e devem ser devolvidos no final do ano. O mesmo acontece com os demais alunos, por isso nem todos possuem os livros pedidos. Ela, por exemplo, só tem os livros de ciências e português, e um caderno para todas as matérias. Gosta de basquete, mas só pode jogar durante as aulas de educação física. INFRA-ESTRUTURA O Colégio Santo Inácio é composto por dois prédios – o antigo, onde estudam os alunos da quinta série ao ensino médio, e o novo, onde estudam as crianças do jardim III à quarta série. A escola possui elevadores, jardim interno, pátios, quadras, ginásio coberto, laboratórios, academia, departamento médico e uma igreja. As salas são pequenas para o número de alunos (aproximadamente 30 em cada uma das oito turmas de terceira série), mas possuem até computador. Conta com vários tipos de atividades como exposições artísticas de trabalhos dos alunos e “laboratórios” de jornal, rádio e tv, promovidos pelo núcleo de mídia. Bárbara gosta muito de estudar no local e acha que toda essa infra-estrutura pode contribuir de maneira vantajosa para a sua formação. Apesar de o CIEP ser muito diferente do Santo Inácio, Juliana também considera boa a estrutura da escola em que estuda. Diz que as professoras são legais e dedicadas e que o colégio é limpo e bem cuidado, com quadra polivalente, pátios, cozinha, refeitório, biblioteca e sala de vídeo. Há um grupo de dança para maiores de 12 anos e recreação (brinquedos e gibis na sala de aula) para os menores. Toda semana, uma turma assiste a um vídeo que depois é comentado pela professora. Para os alunos que não conseguem acompanhar a matéria ou tem dúvidas, é oferecido um reforço de estudos. QUALIDADE NO ENSINO A maior diferença em relação às duas escolas analisadas diz respeito à qualidade do ensino. Enquanto Bárbara aprendeu a ler na alfabetização – como era de se esperar, Juliana diz que aprendeu na segunda série. A irmã dela, estudante da mesma escola, está na primeira série e Colégio Santo Inácio ainda não sabe ler. Coincidentemente, a disciplina preferida das duas meninas é matemática, matéria que pode servir de exemplo para mostrar o “atraso” da escola pública: Bárbara já aprendeu multiplicação por três algarismos e divisão por dois, e estuda agora número fracionário, enquanto Juliana só aprendeu a multiplicar por dois e a dividir por um. Sem contar que o que Juliana aprende de história ou geografia é muito pouco, porque está inserido em Ciências. Juliana diz que já estudou em colégio particular. Um colégio pequeno, bem diferente do Santo Inácio, mas teve que sair por falta de recursos. Talvez por isso – e por ter ficado muito pouco tempo nessa outra escola – ela não acha que há tanta diferença entre um ensino e outro. Para ela, as crianças que não aprendem é porque não se dedicam, porque fazem “bagunça”. No colégio particular elas tirariam melhores notas por não ter como não se dedicar, afinal pagam para estudar e não podem jogar dinheiro fora. Isso pode ser até uma verdade, mas o fato é que muitas crianças de escola pública ainda chegam à segunda série sem saber ler ou escrever e muitas têm constando no histórico escolar matérias que nunca fizeram. Não é novidade para nenhum brasileiro a existência de deficiências no ensino público. A falha só não é maior porque muitas iniciativas que buscam sua melhoria partem de terceiros. O CIEP Margareth Mi, por exemplo, possui convênio com a Casa Azul, fundação criada por Glória Pires no espaço da casa onde morava, no Recreio. Essa casa tem como objetivo acolher, na parte da tarde, crianças da escola com dificuldades de socialização ou aprendizado. Em vez de ficarem tempo integral no colégio, passam meio período neste e meio na fundação, onde ouvem música, estudam e fazem diversas atividades. 14 NO 4 - 2003/2 O medo de quem não sabe ler Nas metrópoles, o cotidiano dos analfabetos brasileiros é mais complicado: um caminho tortuoso cheio de vergonha e preconceito Pedro Ribeiro “Não consigo nem pegar condução sem pedir ajuda”. A frase da doméstica Carla Luz, de 52 anos, reflete a situação alarmante dos analfabetos em nosso país. Dificuldade em compreender a bula de remédios, pagar contas no banco ou simplesmente tirar a documentação necessária para passar a existir perante a lei. Tarefas simples, mas que misturadas à vergonha e ao preconceito, transformam a vida de milhares de pessoas que não sabem ler numa superação diária de obstáculos. Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o país tem cerca de 16 milhões de analfabetos absolutos, metade concentrada em menos de 10% dos municípios brasileiros, principalmente nas capitais. Apenas na cidade do Rio de Janeiro são 200 mil enfrentando estes problemas, que se agravam nas metrópoles devido ao maior número de códigos existentes, à competição desenfreada e ao ritmo acelerado dos centros urbanos. – Aqui não é como no campo durante minha infância, por exemplo. Toda hora temos que pegar uma condução diferente. Os ônibus são verdadeiros inimigos para quem não saber ler. É uma situação constrangedora. Há pouco tempo eu não possuía nem carteira de identidade – conclui Carla Luz, que nunca freqüentou escola. Morador do bairro de Campo Grande, o servente Pedro Andrade aparentemente tem situação um pouco melhor. Ele cursou até a primeira série, mas confessa que sabe apenas soletrar sílabas e escrever o próprio nome. Pedro faz parte do grupo chamado de analfabetos funcionais – 17 milhões no país –, pessoas com menos de quatro séries de estudos concluídas e sem a capacidade de interpretar textos: – Minha mulher me ensinou a escrever meu nome quando nos casamos e na verdade é o que sei até hoje. Certa vez, meu filho passou mal e eu não consegui ler a receita do médico e as instruções do remédio. Pagar as contas em dia ou até mesmo reclamar dos valores de que eu discordo são coisas complicadas. Tenho vontade de estudar, mas preciso trabalhar e sustentar minha família. A alfabetização de adultos nas metrópoles teoricamente seria facilitada em razão da melhor infraestrutura e do grau elevado de formação dos educadores, porém na prática ocorre processo inverso. O corre-corre típico das cidades impede a formação de ações solidárias que têm por objetivo a diminuição do problema. No entanto, isso não impediu Raimundo Donato dos Santos, 50 anos, de ir atrás de seu ideal. Imigrante do Piauí, ele chegou ao Rio de Janeiro repleto de sonhos, mas vivenciou um verdadeiro pesadelo no início. – Sempre ouvia falar de Copacabana, a praia e toda a beleza. Pois diariamente passava por lá e não sabia. Um dia um primo me disse que aquilo era Copacabana. Estava completamente perdido, sem rumo – diz, feliz por estar estudando novamente. - Não sei ler ainda, mas já consigo juntar as sílabas e me guiar nas ruas. – afirma orgulhoso. Desejo de recomeçar marca os novos estudantes Lino Sebastião Silva quer melhor emprego; Paulo Florentino pretende usar a leitura para executar de maneira mais eficiente suas funções no trabalho; Eliana Durante corre atrás do tempo perdido, agora sem medo de desistir. Os três são colegas de classe de Raimundo em uma classe de alfabetização na Pavuna que reúne quase 40 alunos. A turma é uma das mais bem sucedidas do projeto Grandes Centros Urbanos, criado em 1999 para atender jovens e adultos nas metrópoles brasileiras. A responsável pela iniciativa é a ONG Alfabetização Solidária, que conta com o apoio de universidades públicas e particulares e dos setores privados. Gedicaia Silva é professora da turma na Pavuna há quase seis meses. Aluna do quarto período do curso de Letras da UFRJ, ela, assim como os demais alfabetizadores do projeto, passou por processo intensivo de capacitação antes de começar a A sensação de ser um analfabeto O Ministério da Educação criou este ano o Labirinto da Alfabetização, atualmente com caráter itinerante, exposto em vários estados brasileiros. A idéia é simples, mas desafiadora: um local interativo, escuro, de 120 metros quadrados e aberto a qualquer visitante. As pessoas que percorrem o labirinto têm reações diferentes, que revelam a angústia dos analfabetos. Para o designer Luís Morais, que visitou o stand do MEC na Bienal do Rio em 2003, a experiência foi inesquecível: – Senti muita aflição. Dá vontade de chorar, você fica perdido sem saber o que fazer. Tive uma sensação de angústia e a certeza de que algo precisa ser feito para oferecer dignidade a todas as pessoas, sem exceção. Segundo Rosa Maria Roberedo, gestora administrativa da pareceria entre a UFRJ e a ONG Alfabetização Solidária no projeto Grandes Centro Urbanos no Rio de Janeiro, a mobilização da população é importante. Ela destaca que a iniciativa é importante para toda a sociedade: – A alfabetização de adultos contribui não apenas individualmente para o cidadão que está inserido no processo, mas para todos. É responsável por maior conscientização política, valorização da mão-de-obra e pela herança cultural deixada de pais para filhos. Enfim, para a construção do país. Da esquerda para a direita, Gedicaia (em pé), Eliana, Paulo, Raimundo e Lino na sala de aula na Pavuna: luta para vencer os obstáculos do dia-a-dia. lecionar e disse que, em contato direto com os alunos, passou a entender melhor o problema do analfabetismo no país: – Tenho pessoas com graus diferentes de conhecimento reunidas em um mesmo espaço e gente que não tem tempo nem de fazer dever de casa, mas sinto que o trabalho vale a pena. Eles são capazes de ler o mundo, não sabem é codificar os nossos símbolos. Necessitam de ajuda especial para passarem a enxergar o mundo dignamente. O Brasil luta para pagar a enorme dívida social que tem com seus analfabetos. Uma das metas do governo do presidente Luiz Inácio da Silva é abolir o analfabetismo no Brasil, garantindo respeito incondicional aos direitos constitucionais. No entanto, são muitas as dificuldades enfrentadas pelos grupos que lutam contra os índices negativos, o que reflete o alarmante quadro educacional do país. – Temos problemas com materiais didáticos, transportes e local para implementação de novas turmas – diz Roboredo, fazendo questão de apontar os deveres do governo, porém cobrando a participação da sociedade na tarefa. 15 NO 4 - 2003/2 Baratas, moscas e outros bichos Museu Nacional detém um dos maiores acervos de História Natural da América Latina, mas é conhecido por causa do palácio bicentenário Você gostaria de conservar de forma intacta um exemplar morto de uma mosca? Ou mesmo de uma barata? E que tal preser var um fóssil de um molusco que viveu há milhões de anos atrás? Pois é. Atividades como essas, que pareceriam no mínimo estranhas a um leigo, são desenvolvidas no Museu Nacional, hoje pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O museu, que há muitos anos luta por sua restauração e reestr uturação, é mais conhecido pela guarda de peças históricas dos períodos colonial e imperial brasileiros, além de múmias egípcias raras. Poucos sabem que ali se encontra a maior coleção de História Natural, Antropologia e Biodiversidade do país, com acervo total estimado em 12 milhões de itens. Criado em 1818 por D. João VI com o nome de Museu Real, desde o princípio o Museu Nacional teve a finalidade de ser a principal referência de pesquisa e consulta do acer vo científico brasileiro, uma vez que toda nação precisa dispor de um museu que reúna estes dados. As pesquisas desenvolvidas analisam o comportamento de todas as espécies que compõem a fauna e a flora brasileiras, gerando desdobramentos aplicáveis na agricultura e na indústria, entre outras áreas. Uma destas pesquisas é realizada com insetos. Nela, o trabalho desenvolvido de captura e conservação é extremamente complexo: só de baratas, há 225 espécies classificadas, representando 20 mil exemplares identificados; de moscas, são 840 espécies catalogadas, o que totaliza aproximadamente 15 mil exemplares. Os estudos podem servir como base no monitoramento e combate a pragas agrícolas e epidemias, como no caso do projeto de pesquisa “Cecidomyiidae (Diptera, Nematocera) neotropicais: sistemática e biologias das faunas de cerrado e restinga”, coordenado pela professora Valéria Maia. O extenso nome do projeto refere-se à nomenclatura técnica da família de mosquitos conhecidos popularmente como “galhadores”, por serem transmissores de tumores em plantas tidos pelo nome de “galhas”. O projeto visa estudar o comportamento destes mosquitos, identificando formas de combatê-los. Para se ter idéia da sua importância, 70% dos tumores em plantas no mundo são ligados aos galhadores, presentes tanto em áreas rurais quanto urbanas. Para que o estudo ocorra de maneira completa, o processo de captura não envolve apenas o inseto, mas também a planta atingida por ele. Coleta-se tanto o tumor instalado na planta quanto a larva transmitida pelo mosquito. As galhas são acondicionadas em solução alcoólica de 70%, enquanto os mosquitos são montados em lâmina. Antes disso, porém, eles passam por longo procedimento de “preservação”, sendo submetidos a uma seqüência de banhos químicos: o primeiro em hidróxido de potássio, durante 24 horas, para que fiquem transparentes; o segundo em água comum, durante cinco minutos; e o terceiro em ácido acético (vinagre), também por cinco minutos. Os mosquitos, então, são submetidos a nova seqüência de banhos, desta vez em soluções alcoólicas de 70, 90 e 100%, respectivamente, para que neles Governo Federal acena com vontade política e recursos para revitalizar o Museu Nacional não permaneça qualquer resíduo de água, o que prejudicaria a conservação. Finalizando o processo, os insetos são banhados em creosoto (produto químico solúvel tanto na água quanto no bálsamo) e balsami-zados em lâmina. Para se ter idéia do minúsculo tamanho dos mosGaveteiro onde insetos são arquitos catalogados, mazenados apenas uma gota de bálsamo é suficiente para embalsamá-los na lâmina. Se conservar insetos é tarefa que exige uma série de cuidados, capturá-los também o é; afinal, qualquer dano na estrutura física prejudica o trabalho de pesquisa. A captura de moscas chega a ser cinematográfica: nas pesquisas de campo desenvolvidas pelas equipes do museu, são montadas armadilhas e iscas para capturá-las (as chamadas redes entomológicas) sem danificar seu organismo. Já guardadas em sacos plásticos, as moscas são embebidas em éter, e assim morrem mantendo seus esqueletos absolutamente intactos. Os insetos são então guardados em alfinetes, cartolinas triangulares ou lâminas; em ambos os casos, sua catalogação é feita em duas etiquetas, uma referindo-se à espécie coletada e a outra à forma da coleta. Todo este cuidado é essencial para que o acer vo do museu tenha validade; afinal, ele é fundamental para verificações futuras, consultas e comprovações do trabalho realizado. Se alguns setores do acervo do museu requerem tamanha atenção em sua conservação, outros nem tanto. Local onde as galhas (tumores das plantas) são armazenadas É o caso dos paleoinvertebrados, onde são armazenados fósseis de invertebrados que viveram há milhões de anos. Segundo o professor Antônio Carlos Fernandes, um dos coordenadores do setor, a principal preocupação é evitar infiltrações nos armários de madeira que os guardam, além da deterioração do papel que os identifica em etiquetas. Como os fósseis são coletados junto com as rochas onde ficaram impregnados, não há grande temor em relação a possível deterioração das mesmas. Os exemplares são coletados em trabalhos de graduação e pós-graduação dos alunos. “Você não sabe o que vai encontrar”, afirma o professor Antonio Carlos, referindo-se ao fato de as pesquisas de campo poderem encontrar qualquer material de paleoinvertebrados diferente do inicialmente previsto. Catalogados em tinta branca ou nanquim, os exemplares são guardados em oito grandes armários. O acervo, que contempla 8.070 registros de fósseis (três mil estrangeiros) gira em torno de 45 mil exemplares, com 10.929 vindos de outros países. Tamanha diversidade nesta e nas demais coleções do Museu Nacional esbarra na falta de recursos governamentais para a sua manutenção, o que obriga a busca por financiamentos da iniciativa privada para melhor conser vação dos 30 laboratórios que as armazenam. “Você joga contra a natureza”, diz o diretor do Museu Nacional, professor Sérgio Alex de Azevedo, referindo-se à dificuldade natural de conservação do acervo em função da ação do tempo. “Segurar o processo natural de decomposição já é tarefa difícil em si mesma, e depende para isso de instalações minimamente adequadas. Não há como conseguir nível de excelência a custo zero”, argumenta, lembrando que o museu dispõe apenas de uma Kombi e um jipe, ambos com mais de 20 anos de uso, para realizar suas pesquisas de campo em todo o país. Outro fator constante de preocupações é o precário estado de conservação do prédio que hospeda o museu, o Paço de São Cristóvão. Construído em 1803 (portanto, há dois séculos), o palácio abrigou a Família Real Portuguesa a partir de 1808, na sua vinda ao Brasil. Servindo à Família Imperial a partir da Independência do país, em 1822, o palácio teve nova destinação com a queda do Império, em 1889: abrigar as reuniões da primeira Assembléia Geral Constituinte da República, até 1891. No ano seguinte, o prédio passou a abrigar definitivamente o Museu Nacional, sediando-o até hoje. Tamanha vinculação com a História do Brasil, de acordo com o professor Sérgio, representa um ponto mais negativo do que positivo para a adequação do palácio às necessidades do museu, além de desfocar a sua imagem perante a opinião pública. “O museu é muito mais conhecido do público em função do acervo pertencente à Família Real, que hoje, em sua maioria, nem está mais aqui”, lembra, acrescentando que este acervo foi quase todo transferido ao Museu Imperial de Petrópolis. Para o diretor do Museu Nacional, a recuperação do espaço físico e a melhoria das condições de trabalho existentes atualmente no museu são fatores que transcendem o mero investimento de dinheiro. “O que falta é consciência política”, diz, afirmando que o museu foi, ao longo do tempo, perdendo seu caráter verdadeiramente nacional, tornando-se um espaço meramente destinado à conservação de múmias e peças históricas. É essa consciência que pretende ser implantada a partir da reunião ocorrida no último mês de outubro, envolvendo seis ministérios (Educação, Cultura, Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia, Turismo e Esporte) e o museu. A reunião teve o sentido de resgatar o papel social do Museu Nacional como espaço que pode oferecer informação cultural de alto nível para a população de baixa renda, que muitas vezes encontra na Quinta da Boa Vista sua única opção de lazer. Nela, os ministérios assinaram um protocolo de intenções comprometendose a trabalhar de forma conjunta pela restauração do prédio, bem como a reorganização institucional e a recuperação da área física do Museu Nacional. No protocolo também consta o compromisso das partes envolvidas em desenvolver o potencial turístico do museu nos campos científico, tecnológico e cultural, ao lado dos programas e projetos de desenvolvimento das atividades de pesquisa. Marcos Leite 16 NO 4 - 2003/2 Terapia alternativa das flores enfrenta oposição científica Apesar de rejeitados, Florais de Bach conquistam cada vez mais adeptos no Brasil e no mundo Elisa Maria Campos Quarta-feira, 11 horas. O telefone toca no consultório médico. A secretária atende e marca uma consulta. A paciente chega no horário determinado, mas já sabe que vai esperar durante 1 hora até ser atendida. Após ler metade das revistas da sala de espera, finalmente chamam seu nome: “Senhora Renata Brandão!”. O médico pergunta o que ela tem, examina, diagnostica e prescreve o tratamento. A consulta durou 10 minutos. Você já viveu cena parecida? A frustração da medicina São peculiaridades como mau atendimento, frieza, indiferença, desrespeito, desqualificação médica, entre outras, que estimulam milhares de pessoas pelo mundo a adotarem terapias alternativas no tratamento de doenças. A pesquisa realizada pela Universidade de Standford, na Califórnia, demonstra que 69% dos americanos utilizaram algum tipo de medicina alternativa no ano passado. No Brasil, o índice é de 60%, lembrando que estão inclusos como medicina alternativa a Homeopatia, os fitoterápicos e os Florais de Bach. Ainda assim, o número é alarmante e demonstra sobretudo a insatisfação das pessoas em relação à medicina tradicional e seus métodos. Essa frustração não é de hoje. Em 1916 o médico inglês, Doutor Edward Bach, membro do Colégio Real de Cirurgiões da Inglaterra, insatisfeito com os tratamen- tos ortodoxos que havia aprendido na universidade e praticado nos consultórios, sai pela Inglaterra em busca de remédios que pudessem ser conseguidos na natureza. E foi nas flores que ele se baseou para desenvolver essa terapia praticada hoje no mundo inteiro: a terapia de Florais de Bach. pal do fracasso da medicina moderna está no fato de ela se ocupar dos efeitos e não das causas. Para ele, as doenças manifestas no corpo são causadas por conflitos entre a alma e a mente. Como exemplo há o caso de um paciente que foi ao cardiologista e descobriu ter angina. O médico o aconselhou a tomar floral. A terapeuta, designação dada a qualquer Como são feitos os florais pessoa que receite florais, seja psicóloga Os florais são preparos feitos a partir ou não, percebeu que o paciente se queixade 38 essências de flores específicas va repetidas vezes de ser dominado e sufoselecionadas cado pela espopelo Doutor sa. Essa seria, Bach. Essas então, a suposessências são ta causa do devendidas em senvolvimento frascos basda angina. tante pareciEvidente que, dos com os da por basear-se Homeopatia. em aspectos Mas não psicológicos e basta ir à farintangíveis, os mácia e comFlorais de Bach prar, porque não são aceias flores do tos pela medicomposto vacina tradicioriam conforme nal. Embora o paciente e você encontre os sintomas médicos e psiFlor do Cherry Plum: a virtude da coragem que apresencólogos receita. As gotitando o tratanhas de floral doem menos que uma inje- mento das flores, nem o Conselho Fedeção, mas será que têm o efeito de um an- ral de Medicina, sequer o de Psicologia tibiótico? Não. Nem pretendem. aprovam a terapia. O método é rechaçado Segundo Doutor Bach, em seu livro Cura- pela ciência tal como foi a homeopatia te a ti mesmo - uma explicação sobre a cura antes de ser aprovada em 1980, mesmo já real e a causa das doenças, a razão princi- sendo praticada há anos. A Física Quântica e os florais Os floralistas se justificam dizendo que a terapia é baseada na Física Quântica, na transferência de energia, e que não pode ser avaliada como a medicina tradicional. O critério, segundo eles, seria a pesquisa clínica com observação do progresso dos pacientes. Para a Professora Doutora Ingrid Gerhard, médica da Universidade de Frauenklinik Heidelberg, na Alemanha, a experiência mostra que o efeito individual dos florais surge sem que a ele se somem indesejáveis efeitos colaterais, e o tratamento pode ser combinado com todos os outros métodos terapêuticos, sem nenhum risco. A farmacologia responde que não há embasamento científico, nem pesquisas ou estudos que comprovem a eficácia dos Florais. O professor, Doutor Lucio Mendes Cabral, da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que a preparação é muito simplória quando comparada à preparação de medicamentos tradicionais. É praticamente uma mistura pura e simples, uma diluição para ele incapaz de produzir algum efeito. Os questionamentos fazem parte do processo de validação ou descarte de qualquer teoria científica. Por isso, toda discussão é bem-vinda. Mas é fundamental que a ciência não feche os olhos e ignore uma prática crescente que afeta a vida de milhares de pessoas no Brasil e no mundo. Professor Doutor Lucio Mendes Cabral - Faculdade de Farmácia UFRJ “ Pelo lado farmacológico fica difícil você pensar que a combinação dessas essências tem uma capacidade curativa tão variada” * Pós-doutorado na Universtà La Sapienza, Roma-Italia e professor orientador do Programa de Pós Graduação em Ciências Farmacêuticas da UFRJ. Por que a terapia de Florais de Bach não é aceita pelos órgãos de controle medicinais? Lúcio: Principalmente porque falta embasamento científico, não tem nenhum tipo de pesquisa nem clínica, nem científica, que gere embasamento suficiente para se ter o mínimo de credibilidade na Terapia de Floral de Bach. Apesar de ser um pouco similar em termos de princípios com a Homeopatia, os florais ainda não têm resultados de pesquisas clínicas. A Homeopatia também foi questionada e hoje é uma especialização presente nas faculdades de medicina. O questionamento é o caminho? Lúcio: A Homeopatia ainda é questionada, e ainda não existe embasamento científico que garanta, que dê certeza de que a terapia homeopática funciona. Ainda é muito calcada em resultados clínicos, mas é questionada. Onde estariam situados os Florais entre as demais terapias? Lúcio: O Floral de Bach é uma combinação de essências, existe um grupo de essências, que combinadas seriam capazes de medicina tradicional usa a energia molecular. combater uma patologia característica de Lúcio: É a base toda da justificativa da uma pessoa. Alguns aspectos da homeopatia. Agora, o estudo que foi feito, personalidade de uma pessoa seriam o fator foi direcionado para a homeopatia, não para os Florais de Bach. Muitos gerador da patologia, para homeopatas até trabalham com cada tipo de pessoa poderia “Porque se Florais de Bach mas não há um ser utilizada uma pesquisa essa ou estudo sistemático, metódico combinação de essências realizado para Florais de Bach, como terapia. Agora, aquela área de embasamento cientí-fico conhecimento? como teve para Homeopatia. Por que quase não há estudos para isso é difícil. Você Porque se sobre terapias alternativas no poderia tentar fazer um investe nesse ou meio científico? paralelo do que se faz com a Lúcio: É uma questão. Porque homeopatia mas não tem naquele tipo de se pesquisa essa ou aquela área nenhuma pesquisa feita fármaco? São de conhecimento? Porque se efetivamente em cima disso. interesses...” investe nesse ou naquele tipo E se você olhar pelo lado de fármaco? São interesses: farmacológico fica difícil financeiros, pessoais, acadêmicos ou você pensar que a combinação dessas essências tem uma capacidade curativa tão governamentais. Talvez não tenha gerado variada, tão eficaz. Você vai ver que a maioria esse interesse e por conta disso não se das essências tem monoperpenos e esses trabalhou com Florais de Bach, mas a base monoperpenos no máximo têm uma atividade que poderia justificar esse caso é a mesma bactericida. Não justificaria essa gama de base da Homeopatia. Se você não faz um estudo sistemático de laboratório não tem atividades farmacológicas. Entre estudiosos e praticantes dos Florais como comprovar. há médicos e terapeutas que apóiam a Cerca de 60% da população brasileira eficácia do tratamento, dizendo que sua utiliza tratamentos “naturais”, índice base está na física quântica enquanto a verificado também no exterior. Muitas pessoas atribuem essa procura pelos tratamentos ditos naturais a um certo “descaso” da medicina tradicional pelo paciente, sua história, individualidade. Não seria um apelo da população para revisões na forma de se praticar a medicina? Lúcio: Há que se tomar cuidado para não confundir a fitoterapia com Homeopatia, com Florais de Bach. São coisas muito distintas, com bases científicas bem diferentes. Existem explicações lógicas para isso. Primeiro, na maioria das vezes é o despreparo da classe médica que não sabe utilizar a terapia tradicional. Segundo, é a pressão; ou seja, o lobby que os laboratórios farmacêuticos nacionais e internacionais fazem para que se receite, se prescreva, medicamentos que muitas das vezes não são um consenso em termos terapêuticos; a pressão de multinacionais para que novas moléculas que são desenvolvidas sejam comercializadas, sejam prescritas para justificar questões meramente de lucro então existem realmente várias restrições para a terapia tradicional mas em momento algum você vai poder dizer que ela é ruim, que ela não funciona, que é inadequada por causa de distorções mercadológicas. 17 NO 4 - 2003/2 Local do encontro: estação das barcas de Niterói. Aguardo R, 30 anos. Ele disse, por telefone, que estaria de óculos de armação vermelha e camisa da mesma cor. Será possível encontrar um tímido num lugar público, de vermelho? Duas da tarde. Dirijo-me ao local combinado. Pela visão periférica percebo um sujeito que parece apreensivo. Na verdade, não de vermelho, mas de bordô – um tanto mais discreto. Pergunto se é R. e ele confirma. Caminhamos até o shopping. Enquanto falo sobre a reportagem , observo seus discretos movimentos. Os únicos indícios de que se tratava de uma pessoa excessivamente tímida eram os movimentos incessantes na mochila que carregava, de forma desconfortável, quase para disfarçar o sentimento de não saber o que fazer com as mãos e uma certa tensão no olhar. R. é um dos responsáveis pela formação do grupo de ajuda mútua Introvertidos Anônimos, o I.A, no Rio de Janeiro. Introvertidos Anônimos Eles fazem da internet um caminho possível para a convivência R. é sargento reformado do exército desde que sofreu acidente de automóvel, em 1999. Em coma 20 dias e desenganado pelos médicos, diz não lembrar do acidente. Ele sabe que seu carro capotou e que estava embriagado. R. costumava beber muito nos finais de semana na tentativa de se livrar da timidez, o que não chega a impedi-lo de estudar e trabalhar. Sua dificuldade é na aproximação com as mulheres. Diz que já teve namoradas, mas que sente muita dificuldade em iniciar um relacionamento ou, como ele diz, “na conquista”. O alcoolismo e a depressão são alguns dos sintomas que costumam afetar pessoas com excesso de timidez ou introversão. Segundo a Doutora Gabriela Menezes, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, os distúrbios de ansiedade social, nome dado aos problemas relacionados à timidez patológica e à introversão, afetam 15 % da população. No entanto, poucos indivíduos procuram ajuda. O que leva as pessoas a um tratamento é, na maior parte das vezes, um dos sintomas secundários. A timidez pode ser somente uma característica da personalidade, mas, quando ela começa a afetar a vida do indivíduo ou quando o sujeito desenvolve alguma dificuldade específica, como assinar cheque em público, por exemplo, isto já pode ser considerado como uma timidez patológica ou distúrbio de ansiedade social, segundo o Prof. Bernard Rangé, do Instituto de Psicologia da UFRJ. O problema pode levar até mesmo ao isolamento e à fuga da realidade. R.G. conta, em depoimento ao fórum virtual do I.A., que sofreu processo de exclusão na escola onde estudava e começou a comer muito. Com medo das críticas, passou a isolar-se, recusando todos os convites para sair: “Quando me convidam para sair, nem saio mais, sempre me convidam e eu sempre tenho uma desculpa. Todos pensam que eu odeio shopping, não gosto de ir a cinema e não sei dançar. Eu chego a acreditar que não gosto mesmo destas coisas” A maior parte dos transtornos de ansiedade social começa na adolescência. “Neste momento o jovem precisa da aprovação social”, diz a Dr.Gabriela Menezes. Na busca pela construção da identidade e da inserção social, muitos adolescentes sentem-se excluídos, de transformação. O objetivo, segundo os organizadores, é “levar a sua mensagem de recuperação para as pessoas que sofrem de introversão (timidez), isolamento (físico, social e afetivo) e alienação (fuga da realidade). E o único requisito para participar é o desejo de se recuperar.” desenvolvendo distúrbios de ansiedade social. R. lembra que começou a recusar os convites para festas na adolescência. Ele tinha vergonha por não ter roupa adequada. Hoje ajuda a mãe, diarista, a sustentar a casa e busca superar sua timidez com a ajuda do I.A . Ele estuda para o vestibular e seu maior sonho é fazer medicina e se tornar neurocirurgião. R. é um dos que vêm tentando, há mais de dois anos, formar o grupo de Introvertidos Anônimos no Rio. Ele conta que diversas pessoas se comunicam pela internet, mas na hora do encontro...quem aparece? Evite o isolamento, só por hoje. Este é o lema do grupo de ajuda mútua, Introvertidos Anônimos. O primeiro grupo surgiu em 1994, na cidade de São Paulo. Hoje já acontecem encontros em diversas cidades do país. Nos moldes do AA, o I.A segue os 12 passos de recuperação e as 12 tradições. O método utilizado nas reuniões é o da Terapia do Espelho. Todos sentam em círculo e ficam à vontade para falar sobre suas dificuldades e seu processo Os grupos de ajuda mútua são eficazes no processo de reinserção social, na opinião de Gabriela Menezes. Mas em muitos casos há a necessidade de outras formas de tratamento, até mesmo com medicação específica. Quando os pacientes chegam ao Instituto de Psiquiatria e o diagnóstico é algum transtorno de ansiedade social, avalia-se o tratamento mais adequado. Alguns são encaminhados para a Terapia Cognitivocomportamental do Instituto de Psicologia da universidade. Esta forma de terapia, ainda pouco conhecida no Brasil, tem resultados em até 80% dos casos. Bernard Rangé, coordenador do projeto, questiona os grupos de ajuda mútua. Segundo Rangé, o fato de o indivíduo compartilhar suas dificuldades num grupo, onde ele se vê protegido, não é garantia para que tenha o mesmo desempenho em outras esferas sociais. Há diversas questões que podem contribuir para que um sujeito desenvolva algum distúrbio de ansiedade social. Rangé diz que não se pode afirmar que seja uma herança genética, mas que há um grande número de casos em que mais de um integrante da família apresenta o mesmo problema. Pessoas que têm um temperamento com predisposição à introversão, quando sujeitas a pais muito exigentes, tendem a ter seu problema agravado. Na opinião de Rangé, estes fatores, quando somados a um contexto social em que cada vez mais se valoriza determinados padrões de sucesso, de beleza e modelos de comportamento como o das celebridades, são determinantes no desenvolvimento de diversos graus de distúrbios de ansiedade social. Este é o sentimento de F.A., em depoimento ao I.A. “Aí fora a pressão é mesmo barra, o tempo passa e as coisas ficam mais competitivas. Para nós o funil se estreita cada vez mais. Se você não desempenha tal padrão, para a sociedade você é uma pessoa morta.”. Segundo a antropóloga Ilana Strozenberg, pesquisadora da Escola de Comunicação da UFRJ, somente numa sociedade moderna é possível falar de introversão e extroversao. “Nas sociedades tradicionais, o sujeito já nascia com a sua identidade definida. Sua posição social, sua profissão, sua sexualidade, sua religião já eram definidos e ele não precisava questionar qual era o seu lugar e o seu papel na sociedade. Nas sociedades modernas o sujeito passa a ser um indivíduo responsável pelas suas escolhas. Ele tem muitas opções e o seu lugar será definido pelas suas habilidades sociais. Só aí temos o conceito de introversão e extroversão”. Os grupos de ajuda mútua são uma possibilidade de reconstrução do coletivo, segundo Ilana. Desta forma, torna-se possível reencontrar elos de solidariedade e esperança. Para os participantes do I.A, se não é possível resolver os problemas, ao menos fica mais fácil lidar com eles e saber que não se está sozinho no mundo. Elena Guimarães 18 NO 4 - 2003/2 LIBERTE LIVROS Nascido na Internet, o Bookcrossing estende ao Brasil a rede de leitores que trocam e abandonam exemplares nas ruas Um menino pergunta à mãe se pode ficar com o inscritos, entre eles 1.239 brasileiros e 134 cariocas, com o brasileiro possui ser baixo e portanto as pessoas não achado. A mãe diz que não, que ele sabe que não pode Brasil ocupando o 12º lugar no ranking mundial de quererem se arriscar a “libertar um livro” em vão. Outro pegar coisas dos outros. O menino insiste. A mãe ameaça cadastrados. Todos estão interessados, no mínimo, em ler motivo é o índice de notícias sobre os livros libertados. um castigo. O menino volta para o banco da praça mas pára livros, mas o número de participantes que “esquecem” livros Cada livro libertado recebe um número único, instruções de no meio do caminho, quando vê uma etiqueta grudada no é cada vez menor. A maioria dos inscritos prefere organizar como registrar o achado no site e a recomendação de que ele livro. “Oi, sou um livro viajante, quer ser meu novo amigo?” bookrings, que significa criar uma lista de interessados no seja “libertado” após a leitura. Mas apenas 20% dos livros Foi o suficiente para uma terceira tentativa. A mãe lê a livro e enviá-lo pelo correio, formando uma corrente, até libertados são registrados no site pelo seu novo dono etiqueta e reclama que “ tem muita gente que não tem o que que o livro retorne ao dono. Essa característica faz com que temporário. Outra fonte de polêmica entre os bookcrossers fazer, pode ficar com o livro.” O menino, apenas um sorriso o site se distancie da idéia de “movimento de libertação de do tamanho do mundo, é o novo dono de um livro “libertado”. livros” e se assemelhe aos clubes do livro que foram moda são os próprios livros. Segundo o site americano, entre os livros mais trocados estão “O dossiê Pelicano” e “A FirEssa é uma das histórias relatadas por Spiegel, que mora em há algumas décadas . Porto Alegre, não revela a idade, já libertou 52 livros e conta “De fato é difícil quebrar esse paradigma da posse ma”, ambos de John Grisham, a série Harry Potter, de J.K. que sua motivação inicial, quando se tornou um bookcrosser do livro. Talvez a melhor descrição do site seja a de um site Rowling, e livros de fotos e postais. Não há dados sobre o em 2002, foi “ a idéia de “perder” livros e acompanhar seus para quem gosta de ler livros.” A frase é de Bokomoko, um livro brasileiro mais viajado, mas Spiegel acredita que seja trajetos.” consultor de informática, 38, que mora em Recife. Bokomoko “O Centauro no Jardim”, de Moacir Scliar, que neste moMas nem todos foram atraídos ao movimento por é um dos participantes mais ativos da lista de bookcrossing mento está sob a posse de um português . Na lista do grupo esse motivo. Luis Brudna, 42, de Porto Alegre, é o fundador brasileira que foi criada em setembro no Yahoogroups e é alguns defendem a máxima de que o importante é ler, não da lista de discussão brasileira e entrou no bookcrossing acessível a qualquer um que se cadastre. Inicialmente era importa o que. Outros destilam seu veneno sobre o que atraído pela idéia de trocar livros, tanto que abandonou apenas um espaço de discussão para reunir os bookcrossers consideram literatura menor, como os best sellers do escriapenas um livro, mas já participou de várias listas de troca. brasileiros e trocar idéias sobre o site americano, mas hoje tor Paulo Coelho, carinhosamente apelidado de Paul Rabbit “O que eu quero é ler e perceber que as pessoas estão lendo. seus participantes planejam construir uma versão do site do (coelho). Ele é acusado por violinha_rj de “recontar o conA simples liberação de livros diminui a sensação de que os bookcrossing em português. Quase todos seguem a to ‘Diante da lei’ que está em ‘O Processo’ de Kafka, outros estão realmente aproveitando o livro que libertei, tendência de trocar ao invés de doar. Essa tendência pode mudando o final.” Os preferidos da lista brasileira são autoporque são poucas as pessoas que dão retorno quando os ser justificada pelo fato de o número de livros que cada res de ficção cientíca, como Julio Verne e Orson Wells, mas independente do estilo de leitura, todos eles afirmam que encontram. Além disso, existe a possibilidade de muitos lêem mais após a inscrição no site e também que compraram livros ficarem guardados e nunca serem lidos. Só há cerca mais livros, ao contrário do que se podia esperar, já que há de 1.200 brasileiros inscritos no movimento de bookcrossing. muitas trocas. O editor da Garamond, Ari Roitman, confirEntão qualquer ação desse tipo não tem força de auto – ma: “ Qualquer coisa que estimule a leitura já é ótimo e alimentação.” essas trocas não prejudicam as vendas, ao contrário, auO movimento dos bookcrossers começa na década mentam a divulgação. O leitor que acha ou troca livros de de noventa, quando se multiplicam na rede as listas de que gosta vai indicá-los a outros”. discussão, as salas de chat e os grupos de e-mails entre as Não apenas as editoras estão satisfeitas mas sites pessoas que adoravam livros. Em 2002 é criado o site do como a Amazon, de venda de livros, e a revista Mental Floss, Bookcrossing, que pretende ser um local de encontro dos patrocinadores do site, também comemoram a parceria. O leitores, possibilitar trocas, organizar o movimento de site vende produtos variados com a logomarca do movimento, “libertação dos livros” , disseminar o “Karma da literatura” como canecas, camisas, kits de etiquetas para identificar os ou de maneira sucinta criar uma “biblioteca mundial e virtual”. livros, marcadores e muitos outros objetos. Ron Hornbaker Mas embora haja objetivos em comum entre os participantes, diz que “a maioria das despesas do site é coberta pela venda há dois grupos bem distintos. O primeiro é formado pelas desses objetos, mas a parceria com a Amazon.com também pessoas que querem apenas registrar as “libertações” é importante porque cada vez que um membro clica para (quando se “esquece” um livro para que ele seja encontrado comprar um livro, através do site , o bookcrossing ganha por alguém) e possibilitar que esse livro seja identificado e uma comissão.” repassado. O segundo grupo é formado pelas pessoas que Essa frase é mais munição para os não pretendem se desfazer de seus livros, que acreditam que o movimento não deve se apenas emprestá-los. A divisão se tornou reduzir a trocas comerciais entre os ainda mais visível após o anúncio feito no privilegiados que podem pagar por um Sedex final de novembro de que o site só vai poder Bookring – O bookring é uma listagem lançada por algum membro que deseja emprestar algum livro. Ele e querem que o movimento abrace uma causa se manter se receber doações mensais de 5 registra o livro no site e lança um aviso de bookring. Os interessados se inscrevem e são organizados em maior, como exemplifica Spiegel: “Já vi muita dólares, apesar de a página de abertura uma ordem determinada. Então, o livro viaja pelo correio de leitor a leitor até voltar ao seu dono. gente dizendo que estava tendo um dia sustentar a frase “é grátis e sempre vai ser”. Bookray – O livro é registrado e “abandonado” em um local qualquer, descrito ou não no site. Os péssimo até que encontrou um livro e mais Isso não inibe o cadastro de novos interessados no livro podem ir até o local especificado e “achar o livro”. de uma pessoa já admitiu que não lia nada há participantes, pois a página recebe mais de Bookchain – O bookchain é um livro surpresa enviado a um usuário qualquer. Junto a ele segue um vinte anos até que resolveu dar uma chance mil novos leitores diariamente, mas fomenta diário de viagem onde a pessoa descreve suas impressões do livro e a forma como o recebeu. Depois ao livro que achou na rua com uma etiqueta o temor de que a iniciativa democratizante se de circular por várias pessoas volta ao seu dono, que pode ler o diário completo. dizendo “Leve-me!”. Acho que esses transforme no clube do livro da moda. Bookcrossing Kit – Um conjunto de explicações sobre o site e etiquetas para os livros que serão depoimentos compensam todos os livros que O site do Bookcrossing.com foi libertados. Um kit para 25 livros custa 16.95 dólares mais mais despesas de envio. desaparecem sem dar notícias.” Mas depois fundado por Ron Hornbaker, um americano Hunting books – “Caçar os livros” que foram libertados recentemente na sua cidade. No site , caso da alfinetada declara, conciliador : “Admito que é sócio de uma empresa de software no o ex dono do livro tenha deixado informações é possível saber o local e o título do livro. que existam motivações diferentes : para Kansas. Na primeira página há as seguintes Crossing zones – Áreas onde os livros são deixados, consideradas adequadas à busca. Os lugares algumas pessoas é o amor aos livros e a instruções : Read (leia), Register (registre), preferidos são ônibus, rodoviárias, hospitais, delegacias, filas de banco e repartições públicas. vontade de compartilhar suas leituras Release (liberte). Essa filosofia dos três BCDI (Bookcrossing identify ) – É um número único que cada livro recebe no site após ser registrado, favoritas. Para outras é essa idéia lúdica e passos é toda detalhada no site, onde cada para facilitar sua identificação. meio mágica de abandonar um livro-garrafa participante tem sua própria conta e cada livro Random Act of BookCrossing Kindness rabk – Quando um livro qualquer é enviado de surpresa com um bilhete dentro e deixar o destino recebe um número único para que possa ser a algum membro, que não cobra a postagem, num “ato gentil e solidário”. seguir seu curso. O ideal é que seja uma identificado facilmente . Milhares de pessoas Bookshelf - Prateleira ou estante virtual é na prática a página onde aparece o seu perfil e os seus mistura dos dois.” de todo o mundo rapidamente se cadastraram livros registrados e encontrados e hoje existem mais de 183 mil participantes Vivian Rangel Para entender os bookcrossers 19 NO 4 - 2003/2 Tirinhas e balões Mais Mídia Lincoln Quadrinhos viram culto e um bom negócio profundo. Conforme o leitor vai crescendo, o interesse muda e ele se volta para as publicações de aventura, e A cena é comum entre os leitores de jornal: abre- mais tarde para os gibis adultos. Mas a fantasia nunca se o caderno de cultura e a primeira coisa que se lê são os é abandonada.” Alguns fãs extrapolam e chegam a transformar quadrinhos. Mesmo aqueles que não se dizem fãs não resistem às bem-humoradas tiras. E há os que não perdem a paixão em negócio. É o caso do empresário Marcos por um dia sequer seus personagens favoritos. As bancas de Moraes, que também começou a ler HQs na de jornal e livrarias também estão abarrotadas de títulos infância e hoje trabalha com elas todos os dias. Há 15 para todos os gostos, que movimentam uma indústria anos ele dirige a Gibimania, uma das mais conhecidas lojas de quadrinhos do Rio de Janeiro. Na pequena milionária. Mas, afinal, o que há de tão interessante nos loja, na Tijuca, fãs de todas as idades se reúnem em gibis que faz com que pessoas de gerações e mundos animadas discussões sobre seus títulos favoritos. Essas totalmente diferentes encontrem neles um interesse conversas não costumam se limitar a temas como a em comum? Quem são os fãs de quadrinhos e o que qualidade da arte ou do texto de determinada edição. Muitas vezes elas evoluem para temas como filosofia, os move? A resposta não é fácil, já que essa arte congrega psicologia e política, que muitos não imaginam pessoas de todas as idades e personalidades. Os fãs encontrar no mundo dos desenhos e balões. Isso demonstra que quadrinhos não são necessaridas histórias em quadrinhos, ou simplesmente HQs, podem ser encontrados do jardim de infância às classes amente obras infantis. Há, claro, as histórias de aventura e de pós-graduação. E a idade não é a única variante. de super-heróis, mas no mundo dos quadrinhos há espaço para vários estiSão pessoas los. As crônicas de diversas do cotidiano e o profissões, humor, tão coníveis sociais muns nas tiras e estilos de de jornal, estão vida. presentes nas A rehistórias longas, lação do fã da mesma macom os quadrineira que temas nhos costuma mais sérios, se formar na como os confliinfância. Muitos no Oriente tos aprendem Médio ou a a ler com os bomba de gibis e desenHiroshima. E volvem um mesmo os laço de afeição super-heróis com eles, não escapam de transformanconflitos exisdo-se em coletenciais e dracionadores Sejam simples tiras infantis ou histórias polêmicas, os gibis conquistaram um público fiel. mas de consciêninveterados cia. No Brasil as dos mais diversos gêneros. Outros não chegam a tal ponto – mas consi- publicações adultas ainda são poucas, apesar de o número deram as HQs parte importante de seu crescimento. “Os aumentar a cada ano. Em alguns países da Europa, e tamquadrinhos foram um meio que me ajudou a adquirir e a bém nos Estados Unidos e Japão, a variedade é maior, e apreciar o hábito da leitura”, declara a estudante Cristina encontram-se gibis de todos os tipos, de drama a humor, Boeckel, que começou a ler com Calvin e Luluzinha. “Acho passando pela ficção científica e o erotismo, o que confirma que estas leituras influenciaram na formação da minha a versatilidade do gênero. Por trás da aparente simplicidade das figuras personalidade. Os quadrinhos foram a minha plataforma de lançamento para vôos mais altos no mundo da e balões se esconde uma forma extremamente rica e complexa, um misto de literatura e imagem que serve literatura.” Se Cristina faz parte do grupo dos que gostam à imaginação de cada um. Quadrinhos são apenas mais de quadrinhos, mas não podem ser considerados uma das muitas formas de se contar uma história, e fanáticos, o mesmo não pode ser dito sobre o jornalista ser fã deles é como gostar de cinema ou teatro, ou Sérgio Martorelli. Ele faz parte do grupo daqueles fãs qualquer outra forma de arte: de acordo com a vontade mais devotados que de tanto ler acabam se tornando do leitor, uma HQ pode servir a diversos propósitos, especialistas. Leitor veterano dos mais diversos estilos, desde a simples diversão até uma reflexão mais Martorelli explica que a ligação com os gibis muda profunda. A variedade de temas, traços e estilos é o conforme a idade e maturidade, mas a fantasia está que faz os quadrinhos serem tão interessantes. Para sempre na mente do leitor. “Quando se é criança, a apreciá-los só é necessário conhecê-los – e gostar um leitura é apenas uma distração, sem um interesse mais pouquinho de sonhar. Bruna Gama AS TIRINHAS SÓ SERÃO RESPEITADAS QUANDO ESTIVEREM, FINALMENTE, NAS PÁGINAS DE OPINIÃO ! COMEÇAREMOS NOSSA REVOLUÇÃO PELOS CADERNOS 2: FORA HORÓSCOPOS, CRUZADAS E CRÍTICAS CULTURAIS ! OTÁVIO, TEM UM PESSOAL QUERENDO TÊ UMA CONVERSINHA CUM OCÊ... QUEM SÃO ? PEIXES 21/02 a 20/03 no amor. Cuidado em Leão e Câncer no trabalho. TOURO 10 11 12 13 21/04 a 20/05 Surpresas familiares e nos negócios. Lua em Capricórnio propiciam novas oportunidades ADVINHA ! 15 16 20 NO 4 - 2003/2 GERAÇÃO Cinéfilos da ‘retomada’ fazem de tradicional cinema carioca seu palco Mauro Kury curiosidade pelo cinema político ou de arte da geração Paissandu, e a busca pelo exótico da Estação, dos interesses do público de agora, no Odeon: “um templo da grande confusão contemporânea entre produto e cultura, entretenimento e informação”. No livro “Geração Paissandu”, o também crítico de cinema Rogério Durst escreve que a geração “teve sua porção de fazer tipo, de pagar mico, de moda mal assimilada, um lado mais para a galhofa do que para um momento bem ‘cabeça’ de Godard”. Se depender de um grupo de professores da UFF que conversava outro dia antes do início da Sessão Cineclube, aí está uma semelhança: eles contavam quantos Lis Kogan (à direita),entre os organizadores do Cachaça: “O Odeon é grande, é de rua, é antigo e bacana” alunos estavam na sala, Bernardo Carneiro na história do cinema brasileiro. Para Lis como se fizessem uma chamada. Kogan, uma das quatro organizadoras do Em meados da década de 90, o Cine Os anos 60 e, depois, os 80 tiveram cada Cachaça Cinema Clube, mostra mensal com Odeon era um dos últimos cinemas de rua da um a sua. Depois das gerações Paissandu e distribuição de cachaça e música ao final, Cinelândia, no Centro do Rio. Tudo indicava Estação, o público que cresce no Rio de “a comparação com a Paissandu ou a que fosse virar templo de igreja evangélica. A Janeiro com a retomada do cinema nacional Estação faz muito sentido, sim”. Ela acha Petrobrás, então, resolveu investir no cinema já forma a geração Odeon. São que o espírito de cineclube carioca é o como estratégia de marketing e achou que universitários, gente de cinema e vídeo, mesmo, nos três casos. Felipe Bragança, da seria uma boa idéia concentrar os eventos artistas, cinéfilos e até curiosos que, depois revista eletrônica Contracampo, que produz em uma só sala. O Odeon, que hoje se chama de uma ida a qualquer das opções da a Sessão Cineclube nas noites de sábado, Cine Odeon BR, foi a escolha, por ser uma programação da sala, espalham o evento acha que há diferenças: “tem uma mistura sala de rua grande e antiga. O meio pelo boca-a-boca e lotam as seiscentas muito grande de público, até porque o cinematográfico combina com memória e cadeiras do cinema, no Centro da cidade. cinema comporta muita gente. Não sei se glamour, e à Petrobrás interessava participar Na programação, além de filmes do persiste a idéia de clube, meio fechado entre da revitalização do Centro carioca – sonho circuito (em geral nacionais), pode-se ir à as mesmas pessoas”. público que demora a se transformar em Maratona (três filmes seguidos: uma préFelipe lembra também que a parceria realidade. estréia, uma surpresa e um trash), às com o grupo Estação estabelece um padrão Realizada a compra e a reforma, o Sessões Populares (filmes relacionados a de qualidade do que é exibido. “Quando a grupo Estação foi chamado para assumir algum em circuito a dois reais), ao Cachaça gente conversa com quem freqüentou a a gerência de programação da sala – desde Cinema Clube (curtas-metragem e cachaça) cinemateca do MAM, ou a própria galera que mantidas as intenções da BR com o e à Sessão Cineclube (filme com debate em da geração Estação, a gente vê que muitas espaço. O grupo promoveu cerimônias de seguida). Fora mostras eventuais, debates, vezes eles se reuniam para assistir a um filme entrega de prêmios, mostras temáticas, e comemorações como o dia dos com cópia mal-conservada, só por saber pré-estréias, exibição de curtas-metragem, namorados, o Carnaval ou a Copa do que era a única chance de assistir ao filme e eventos especiais. Em 2002, por Mundo. Nesses casos, a quantidade de no Brasil”. exemplo, durante a Copa do Mundo, o gente extrapola o espaço do Odeon e toma O crítico de cinema Carlos Alberto de cinema exibiu jogos da seleção no telão. a praça da Cinelândia e os bares, entre eles Mattos tem uma terceira opinião. “O que Ao longo da competição, os o Carlitos e o Verdinho, vizinho do vejo ali é a inserção do cinema num consumo organizadores tiveram que colocar tradicional Amarelinho. de diversão mista, uma volta aos televisores na praça, até que, na final, Uma questão que ronda as cabeças do espetáculos de variedades de cem anos foram cobrados ingressos, esgotados povo de sandálias de couro ou All Star é o atrás, em que os filmes se misturavam ao dias antes do jogo. Sucesso total da dupla peso de ser uma geração, um novo cineclube circo e à música”. Carlos diferencia a cinema e futebol. Antes de cada jogo eram exibidos curtas sobre o esporte e imagens do Canal 100. Foi no Verão de 2003, no entanto, que se consolidou a rotina dos ativos integrantes da geração Odeon. As férias das faculdades eram a chance de reunir um público que ainda não tinha uma identidade muito definida. Foram exibidas retrospectivas com os melhores filmes do ano, além das primeiras edições das Sessões Populares (na hora do almoço) e das Sessões Cineclube. Nem todas as atrações eram produções do grupo Estação. O Cachaça, por exemplo, é independente e o Cineclube é uma parceria ContracampoEstação. O verão passou e grande parte da programação ficou na grade da sala escura. Felipe acha que o Odeon reúne uma geração “que ficou órfã do MAM”. Como é de mais fácil acesso, acabou concentrando a vida cultural do Rio. “A cidade gosta de panelinhas, no bom sentido, gosta de encontros sem marcar antes, gente que se conhece só de vista”. Lis concorda e diz mais: “o Odeon junta duas propostas que vêm desde que a geração Estação virou grupo, porque forma público e fideliza/reúne o que já é formado. A troca entre as pessoas é boa”. A troca, aliás, não fica só no cinema. Ouvindo conversas de uma rodinha de pessoas ou de outra, o que existe é uma movimentação cultural acontecendo. Música, fotografia, filosofia e literatura são assuntos comuns entre os cabelos presos por faixas coloridas e as barbas. Não é incomum que o Teatro Rival, ao lado, receba os mesmos visitantes, de óculos com aro grosso e livros comprados em sebo na bolsa, para shows de samba, rap ou rock. A cidade contribui para a reunião de pessoas, e as pessoas contribuem para a dinâmica da cidade – renascem locais que ficavam esquecidos e surgem novidades. Os maiores exemplos são os bares citados. O Carlitos e todo o beco da Cirrose, apelido dado à Rua Álvaro Alvim, mudou de freqüência. E o Verdinho, na verdade a Chopperia Cinelândia, não é mais só o boteco ao lado do Amarelinho. Essa é a maior característica comum que as gerações apresentam. Para cada diretor preferido, há um bar que reúne a busca por álcool e discussões. Em 60, para a Paissandu, Jean-Luc Godard e Glauber Rocha viravam assunto no bar Cinerama e no Oklahoma, ainda de pé. Já em 80, os membros da geração Estação ficavam bêbados de discussão com Win Wenders e Zhang Yimou no Bem Estar, e no bar da galeria (que por algum motivo, ninguém lembra o nome) do cinema. Para os atuais fãs de Michael Moore e Lars Von Trier, as mesas do beco da Cirrose são certamente parte fundamental do processo cinematográfico.