Reflexões em um debate ficcional

Transcrição

Reflexões em um debate ficcional
Reflexões em um debate ficcional:
efervescência religiosa e reconfigurações societárias – nódulos de dádiva
na sociedade brasileira contemporânea*
Léa Freitas Perez ([email protected])
Luciana de Oliveira ([email protected])
Renata Apgaua ([email protected])**
“Compadre meu Quelemém nunca fala vazio, não subtrata. Só que a ele não
vou expor. A gente nunca deve declarar que aceita o olheio – essa é que é a
regra do rei! O Senhor ... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é
isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas –
mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É
o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo,
é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto!
A força dele, quando quer – moço! – me dá pavor! Deus vem vindo: ninguém
não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca
bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha
minha que eu tinha caiu dentro de um tanque, só caldo de casca de curtir,
barbatimão, angico, lá sei. – ‘Amanhã eu tiro …’ – falei, comigo. Porque era
de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então, saiba: no outro dia, cedo,
a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela agüinha
escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi?
Pois, nessa mesma tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo …. O cabo –
por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus … Bem, o
senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende ...” (Guimarães
Rosa).
* Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no Fórum Venturas e Aventuras Religiosas na 22ª Reunião
Brasileira de Antropologia, Brasília, julho de 2000. A presente versão – apresentada no grupo de trabalho “Planteos
teóricos y epistemológicos” das X Jornadas sobre Alternativas Religiosas para a América Latina, Buenos Aires,
outubro de 2000 – incorpora a discussão da ABA, pelo que somos gratas às pistas e sugestões dadas pelos membros
do Fórum, especialmente por Marcelo Camurça e Pablo Semán.
** Respectivamente, Professora Adjunta do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Professora Substituta do Departamento de Sociologia e
Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em
Sociologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.
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Resumo
A proposta deste trabalho é a de recriar dialogicamente um debate que vem causando – no meio
acadêmico, entre outros – uma acirrada polêmica, em torno do que vem ocorrendo no campo religioso,
sobretudo a partir dos anos 70. Esse debate é gerador de uma doxa corrente que pode ser sintetizada da
seguinte forma: existe um nexo causal entre o surgimento e a proliferação de certas sensibilidades
religiosas, o advento do neoliberalismo/globalização, da sociedade de informação e o suposto processo de
exacerbação do individualismo nas sociedades contemporâneas. Neste viés analítico, existe uma
tendência a ver a religião como um produto, daí, as já bem difundidas idéias de “supermercado da fé” e
de “religião à la carte”.
Nossa intenção é a de romper com esta doxa, complexificando o debate e, inspiradas pelo
“paradigma da dádiva”, sugerir a necessidade de uma revisão geral de nossos conceitos e mesmo da base
lógica de nosso pensamento. O diálogo com esta corrente analítica não nos faz descartar o mercado como
meio de promoção do vínculo social nas manifestações religiosas dos nossos dias, mas nos faz dissociá-lo
de atitudes puramente instrumentais, egóticas e personalistas, revelando outras razões contidas nas
escolhas daqueles que abraçam certas crenças e práticas religiosas, cuja mais forte evidência empírica é a
formação de redes de solidariedade e de troca.
O que está em foco neste trabalho é, portanto, a possibilidade de apreensão do laço social na
atualidade a partir do multiverso de formas de exercício do sagrado, em particular daquelas que,
preconizando um agir em redes, levam à constituição de comunidades afetivas. Nesse caso, a religião
precisa antes ser vista como uma espécie de texto/pré-texto/con-texto, no qual e a partir do qual se criam
nódulos de dádiva.
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“Se se dão e se retribuem as coisas, é porque se dão e se retribuem ‘respeitos’
– dizemos ainda ‘gentilezas’. Mas é também porque o doador se dá ao dar, e,
ele se dá, é porque ele se ‘deve’ – ele e seu bem – aos outros” (Mauss).
Falar em dádiva é falar na aventura humana por excelência pois que toca a
condição, a razão fundamental de toda sociedade, ou seja, a reciprocidade, “uma das
rochas sólidas sobre as quais estão erigidas nossas sociedades” (Mauss, 1974:42). Falar
em dádiva é também falar em relação, de uma relação em particular, a que mistura, tal
como nos ensinou Mauss, as almas nas coisas, as coisas nas almas, aquela em que as
vidas se misturam, aquela por intermédio da qual “as pessoas e as coisas misturadas
saem cada qual de sua esfera e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca”
(Mauss, 1974: 71). Falar em dádiva é falar ainda em dívida e em gratidão, em doação,
em sair de si no encontro com o outro. Este texto é exatamente isto; expressa uma
relação de troca e de profundas e generosas misturas que vêm ligando nossas almas e
nossas vidas nos últimos anos, pelo que sou profundamente grata e devedora a Renata e
a Luciana. E, falar em dádiva é também falar na reciprocidade que funda a relação – daí
a idéia de dívida. É neste sentido que colocamos o nosso encontro com a Léa no circuito
de dádivas, pois o rico intercâmbio de idéias, que sempre foi possível estabelecer com
ela, foi e ainda é um dos catalisadores de nossa “constante” metamorfose no caminho do
amadurecimento intelectual – fato que por si justifica a idéia da construção de um artigo
a seis mãos e a muitas vozes. Somos todas devedoras aos professores Pierre Sanchis,
Marcelo Camurça, Leila Amaral e Francisco Coelho dos Santos que, em diferentes
ocasiões e de diferentes maneiras, têm sido preciosos parceiros de troca.
Em termos de pulsão de vida, o circuito de dádivas também se expressa neste
texto pelo seu caráter polifônico e plurivocal na vontade de assumir riscos, de se expor,
de aventurar-se, ir além... As muitas vozes que aqui se encontram, representam um
debate que é fruto de uma reflexão ampla e se apresenta também como um “prétexto”/con-texto para congregar outras vozes e romper com a monotonia monológica da
representação científica que ainda impera em nosso meio1. Em outras palavras, não
estamos aqui tratando, como querem muitos, de um novo paradigma – no sentido duro
do termo, isto é como modelo, como padrão de análise e de interpretação –, nem
1 Tomamos de empréstimo a Clifford a idéia de monotonia da representação científica, tratando o nosso texto, ou
seja, a nossa ficção, como “matéria significante” (Clifford, 1998: 71). Para Bakthine, o que é específico nas ciências
humanas é “um pensamento que é baseado em outros pensamentos, sentidos, significados etc., realizados e oferecidos
ao pesquisador somente sob a forma de texto”. Vale dizer que o texto “se apresenta como o dado primário de todas as
disciplinas humanas”, ele “é uma realidade imediata (a realidade do pensamento e das expressões interiores), a única
capaz de tornar possíveis estas disciplinas e este pensamento. Onde não há um texto, não há nem mesmo o objeto de
estudo e de pensamento” (Bakthine apud. Canevacci, 1993: 86, 87).
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tampouco temos a esperança de plantar certezas ou de ter chegado à explicação final. O
que propomos é pensar um conjunto de questões que sugere alguns “incômodos” em
certos esquemas lógicos – e nas explicações filiadas a estes esquemas – já sedimentados
no pensamento científico de um modo geral e no pensamento antropológico mais
especificamente e, aplicando a dádiva como horizonte – isto é, como perspectiva de
olhar – ampliar a discussão2. Portanto, o que se pretende aqui é uma tentativa de
diálogo, assumidamente ficcional. Nossa intenção é a de fazer uma re-leitura de certas
idéias ambientes – no mais das vezes apocalípticas e catastróficas, porque
profundamente ideologizadas – acerca da efervescência religiosa contemporânea,
tomando como ponto de partida a idéia de que nos encontramos hoje face a
“encruzilhadas herméticas” e que a escrita das encruzilhadas herméticas “traz como
efeito a visão do texto como um campo de tensões, no qual não existe um significado
único, coerente”, ou seja, a escrita “existe como um jogo de diferenças, sem que
nenhum plano ‘mais fundamental’ a ‘sustente’ ” (Santos, 1998: 14)3. Sobretudo, nossa
intenção é a de romper com as verdades que esta doxa estabelece, que se bem sejam
cômodas, nos mantêm prisioneiros do imobilismo reflexivo, no “jardim do sono feliz”
(Veyne, 1983: 33)4.
Este texto é também uma contra-prestação ao dom maussiano, assim como uma
prestação aos nossos pares para que vejamos as sociedades em estado dinâmico,
estudando-as não “como se estivessem fixas, em um estado estático ou antes
cadavérico” e muito menos ainda decompondo-as e dissecando-as “em regras de direito,
em mitos, em valores e em preço”. É preciso considerar “o essencial, o movimento do
todo, o aspecto vivo, o instante fugido em que as sociedades e os homens tomam
consciência sentimental deles mesmos e de sua situação face a outrem”. Assim, “chegase a ver as próprias coisas sociais no concreto, como elas são. Nas sociedades, mais do
2 Uma das definições que o Aurélio dá para horizonte enuncia bem nossa visão da dádiva, na medida em que se
aproxima bastante da própria idéia maussiana. Diz ele: “linha circular que delimita o campo da nossa observação e na
qual o céu parece confundir-se com a terra ou o mar” (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1986: 733).
3 A expressão encruzilhada hermética é de Canevacci, 1993.
4 Assumimos que, tal como propõe Barthes, “se um texto é ‘a trama de citações retiradas de inumeráveis centros de
cultura”, então a escrita da etnografia é “uma atividade não-controlada e multissubjetiva”, que “ganha coerência
através de atos específicos de leitura. Mas sempre há uma variedade de leituras possíveis (além das apropriações
meramente individuais), leituras além do controle de qualquer autoridade única” (Barthes apud. Clifford, 1998: 57).
Assumimos igualmente que toda escrita é fundamentalmente alegórica. Usamos alegoria no sentido que lhe é
atribuído por Clifford, ou seja, enquanto “uma prática na qual uma ficção narrativa continuamente se refere a outro
padrão de idéias ou eventos”. Dito de outro modo: “a alegoria nos incita a dizer, a respeito de qualquer descrição
cultural, não ‘isto representa, ou simboliza, aquilo’, mas sim ‘essa é uma história (que carrega uma moral) sobre
aquilo”. Talvez mais ainda, “o reconhecimento da alegoria requer que, como leitores e escritores de etnografias,
lutemos para confrontar e assumir a responsabilidade sobre nossas sistemáticas construções sobre outros e sobre nós
mesmos através dos outros. Esse reconhecimento não precisa, em última análise, levar a uma posição irônica –
embora ela deva lutar com profundas ironias. Se estamos condenados a contar histórias que não podemos controlar,
pelo menos não contemos histórias que acreditemos serem as verdadeiras” (Clifford, 1998: 65, 66, 95, 96).
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que idéias ou regras, apreendem-se homens, grupos e seus comportamentos. Vemo-los
moverem-se assim como, em mecânica, vemos massas e sistemas, ou como, no mar,
vemos pedras e anêmonas. Percebemos multidões de homens, de forças móveis,
flutuando em seu meio e em seus sentimentos” (Mauss, 1974: 180, 181). Mauss está nos
incitando a ver a complexidade e a delicadeza do ato mesmo de produção da vida, da
experiência humana em sociedade; que, em se tratando do universo das trocas humanas,
não podemos usar unicamente a lógica utilitária do modelo contratual e da escolha
racional (leia-se interesse) – característico da modernidade –, pois a troca é um fato que
envolve um conjunto de atividades sociais que se situam para além do domínio do
estritamente econômico e que diz respeito, sobretudo, ao princípio de reciprocidade. O
modo contratual – formalmente obrigatório para as partes envolvidas – característico
das sociedades ocidentais modernas – não é universal nem universalizável. Outras
formas de trocas (leia-se formas de sociação) são possíveis, como a troca-dom, sob a
forma de obséquio/presente – livre e obrigatório. Vale dizer que a troca (leia-se
reciprocidade) é mais importante que as coisas trocadas, dado que não se trocam
exclusivamente riquezas e bens, coisas economicamente úteis mas, antes de tudo,
trocam-se gentilezas, banquetes, ritos, danças, festas, etc. Dito de outro modo: “o
mercado é apenas um dos momentos” e “a circulação de riquezas constitui apenas o
termo de um contrato mais geral e muito mais permanente” que envolve, acima de tudo,
o reconhecimento do outro como parceiro fundamental do ato de produção da vida
social (Mauss, 1974: 45).
A doxa corrente
“Foram nossas sociedades ocidentais que muito recentemente, fizeram do
homem um ‘animal econômico’. Mas não somos ainda todos seres desse
gênero. Em nossas massas como em nossas elites, a despesa pura e irracional
é prática corrente, é também característica de alguns fósseis de nossa
nobreza. O homo oeconomicus não está atrás de nós, mas à nossa frente,
como homem da moral e do dever, como o homem da ciência e da razão”
(Mauss).
Se existe hoje alguma unanimidade – entre estudiosos e adeptos – no dito campo
religioso, ela diz respeito ao chamado retorno/recomposição do religioso. Não existe a
menor sombra de dúvida quanto à atualidade da questão e de sua efervescência, já que
são vários os fatos que lhe vêm fazer eco. Ao contrário do que muitos pensavam e
pensam, a religião não morreu junto com os ideais laicizantes da modernidade. Nos
últimos trinta anos mais especificamente, houve um boom de “seitas” místicas e
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esotéricas, de movimentos de reforma dentro das religiões tradicionais – a exemplo da
igreja da libertação e dos carismáticos na Igreja Católica –, das “seitas” evangélicas
renovadas e do neo-pentecostalismo nas Igrejas Protestantes – e do avanço
inquestionável do islamismo pelo mundo afora. Outros exemplos são a piedade mariana
na Polônia, o carisma do papa e seus périplos mundo à fora, a nostalgia do latim e do
culto dos santos, os dramas de mortes coletivas em seitas messiânicas ou esotéricas, a
recente revelação do terceiro segredo de Fátima etc. Todas essas manifestações/eventos,
como muito apropriadamente observa Augé, são realidades, que mesmo não se
reduzindo umas às outras, tem como elemento comum dizerem respeito a “tudo o que,
em suma, se opõe à frieza do Estado sem Deus, assim como ao gosto insípido da
sociedade ordinária e ao gosto de sangue do terror de Estado” (Augé, 1968:130). Além
disso, esses fenômenos começam a ser alardeados para o grande público através dos
meios de comunicação de massa, com incessantes matérias em revistas, jornais e
televisão.
Mas a unanimidade pára por aí, no plano da constatação do fenômeno. Já a sua
qualificação, a sua caracterização é objeto de intensa e, mesmo, de acirrada polêmica.
Numa primeira aproximação, tudo se passa como se uma profunda oposição/conflito
dividisse o campo em duas metades antagônicas. Para os adeptos, a recomposição, é
figurada, sobretudo, como um sinal de revigoramento das coisas do sagrado, como um
reencontro do homem com as forças sobrenaturais, talvez mais ainda, com as forças
mágico-religiosas e/ou místico-esotéricas, numa perspectiva claramente positiva. Já
para os que se dizem especialistas (intelectuais ou não), pelo menos para um
determinado segmento, não se trataria de uma recomposição positiva, mas de um
retorno (leia-se volta atrás). Retorno quase sempre qualificado negativamente, pois a
atenção é dada quer ao florescimento dos fundamentalismos e/ou ao crescimento, no
caso do Brasil, por exemplo, das igrejas pentecostais. A efervescência religiosa é vista,
no mínimo, como preocupante, já que se julgava a sociedade completamente
secularizada (leia-se racionalizada) e, no máximo, como sinal evidente da barbárie
individualista pós-moderna. A religião como “ópio do povo” volta à cena no meio
intelectual, onde florescem abordagens reducionistas que tratam a proliferação de
ofertas no campo religioso como sendo, um novo e lucrativo campo de mercado para a
chamada indústria cultural. Quanto a isso não há a menor sombra de dúvida, todavia, se
lançarmos mais longe o olhar, veremos que o quadro não é assim tão simples e que o
mundo do religioso não está tão dividido quanto pode parecer à primeira vista, nem
dominado por exploradores das consciências alienadas, nem tampouco são atos de fé
7
religiosa individual ou sintomas da secularização geral da sociedade, muito menos um
reflexo da barbárie pós-moderna. São, antes de mais nada e acima de tudo,
manifestações culturais que apontam para as profundas modificações que se processam
nas formas de estabelecimento do laço social na atualidade, nos fazendo lembrar de
outra grande dádiva que nos deu Mauss, a saber: o domínio do social é o domínio da
modalidade, isto é, das formas comuns partilhadas pelos grupos e por eles escolhidas
entre outras formas possíveis (Mauss, 1981: 486).
Vejamos em linhas gerais como são tratados no cenário intelectual brasileiro
contemporâneo duas sensibilidades religiosas que representam o clima de efervescência
do campo religioso e nos interessam mais de perto, a saber: a Igreja Universal do Reino
de Deus – IURD – e a Nova Era. Um dos grandes pontos de debate diz respeito a
diagnósticos de certos cientistas sociais sobre as formas como esses multiversos
religiosos vêm combinando economia e religião. Combinação, muitas vezes, vista como
espúria e preocupante e que tem provocado tanto fascínio, quanto repulsa e indignação.
No caso da Igreja Universal do Reino de Deus, a interpretação corrente prega
que o discurso da IURD está sendo ajustado por um certo “viés econômico”5. Muitos
autores, indignados, afirmam que o sagrado está sendo “contaminado” pelo econômico,
na medida em que o discurso da abundância, mais do que um conjunto de palavras, tem
incentivado os fiéis a terem comportamentos econômicos nas esferas religiosa e
profana. Na vida religiosa, eles negociam com Deus. Na vida profana, esse discurso
estaria alimentando o ideal de consumo dos fiéis, contribuindo para a criação de
potenciais consumidores. Seguindo esta linha de argumentação, em muitas análises, o
sacrifício do dinheiro é visto como um investimento econômico, embora haja uma
distinção entre o que venha a ser o investimento de um fiel e o de um pastor. Diversas
vozes acadêmicas parecem comungar da idéia de que os fiéis possuem uma relação
econômica com o sagrado, na medida em que compram benesses por intermédio da
instituição religiosa. E a instituição religiosa, nada mais do que uma empresa da fé, seria
uma “representante” de Deus, no sentido comercial do termo. Quando se trata de pensar
o sacrifício do ponto de vista da elite religiosa, certos autores passam a problematizar a
subordinação do fiel às leis da reciprocidade, vista pelo seu caráter exploratório. O
sacrifício torna-se um investimento para o pastor, na medida em que lhe permite obter
lucros fabulosos.
5 Sobre este debate ver Apgaua, 1999.
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Outro fenômeno que tem confirmado a doxa corrente, que relaciona economia e
religião, diz respeito às correntes não institucionais de experiência religiosa agrupadas,
não sem controvérsia, sob o termo Nova Era6. Nesse caso, a justificativa que sustenta
tal relação já não é mais a da “usurpação das massas alienadas”, mas a dos arroubos da
“barbárie individualista pós-moderna” que evidenciaria os sintomas de uma anomia
corrosiva dos valores, atingindo as camadas médias e intelectualizadas da sociedade
brasileira. Nesta perspectiva é que vem se afirmando que a Nova Era seria um ícone da
exacerbação do individualismo moderno e, portanto, mais um estilo de vida disponível
no “supermercado da fé”. De certa forma, esta via interpretativa tem fortes indicadores
para confirmar tais proposições, bastando lembrar para tanto a “feira mística” nos
shopping centers do país, o “ligue já” de um Walter Mercado. Deste modo, o
individualismo, no atual momento de efervescência religiosa, aparece como extensão do
processo de privatização do sagrado promovido pela modernidade, logo como uma
espécie de continuação do individualismo moderno. O sujeito racional da modernidade
passa a arbitrar, inclusive, sobre os imperativos da fé, abandonando os dogmas e as
doutrinas rígidas para lançar-se no tentador supermercado místico, onde cada um
modela a sua religiosidade de acordo com suas necessidades e seus interesses.
Mas, é preciso lembrar que, desde o início, ressaltamos nosso desejo de correr
riscos, nossa pretensão de ir além. Estamos cientes de que um dos riscos que corremos,
ao privilegiar certas questões em detrimento de outras, é que – ao fim e ao cabo – possa
parecer que tenhamos abandonado a doxa corrente para cair noutra, pois afinal o
domínio do religioso, enquanto multiverso do religare é por excelência, o domínio da
dádiva. O que queremos enfatizar é que parece pouco eficaz em termos heurísticos
martelar na velha tecla da oposição razão prática/razão simbólica. A presença da razão
prática é por demais evidente, ninguém a questiona. É óbvio que o campo religioso
contemporâneo é atravessado por uma feroz concorrência, que assume ares claramente
comerciais e que, portanto, é eivado de conflitos e de contradições. Afinal, por que a
religião estaria divorciada da sociedade? Uma das coisas que queremos mostrar é o
quanto a religião é solidária à sociedade da qual faz parte, portanto, não há nada de
especial no fato de que ela se contamine com seus valores. Todavia, o que propomos
como horizonte de olhar é ir mais longe, e mostrar como essa contaminação é de mão
dupla, ou seja, a religião também contamina a sociedade com a sua lógica da dádiva.
Em outras palavras: queremos refletir, a partir da crítica da doxa corrente e da discussão
6 Sobre este outro debate ver Oliveira, 2000.
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da dádiva como horizonte, sobre os sutis, mas exatamente por isso, profundos nexos
entre a sociedade e a religião na contemporaneidade, principalmente a hibridação de
seus códigos7. Nesse sentido, é importante deixar claro que não estamos preocupadas
em buscar especificidades e novidades, mas sim pensar como a experiência humana em
sociedade na atualidade parece indicar um amplo processo de mistura de diferentes
códigos, em especial para o caso aqui estudado, a mistura entre economia e religião,
individualismo e religião. Mas antes de avançar nessa argumentação, vejamos em linhas
gerais o horizonte teórico-metodológico no qual assentamos nosso olhar.
A dádiva como horizonte
“Uma parte considerável de nossa moral e mesmo de nossa vida continua
estacionada nesta mesma atmosfera de dádiva, de obrigação e de liberdade
misturadas. Felizmente, nem tudo está classificado exclusivamente em termos
de compra e venda. As coisas têm ainda um valor sentimental além de seu
valor venal, tanto é que há valores que pertencem somente a este gênero. Não
temos apenas uma moral de comerciantes. Restam-nos pessoas e classes que
guardam ainda os costumes de outrora, e quase todos dobram-se a eles, pelo
menos em certas épocas do ano ou em determinadas ocasiões” (Mauss).
Já que a dádiva é nosso horizonte e nossa inspiração, desde logo é preciso
defini-la. Em primeiro lugar, a dádiva, tal como proposto por Mauss, diz respeito a uma
forma de troca – que é também uma moral e um direito –, baseada na circulação de bens
e na redistribuição de riquezas sob a forma de presentes, a partir da qual e por
intermédio da qual constitui-se o laço social. Dito de outro modo: a dádiva, em sua
definição positiva, “é o que circula em prol do ou em nome do laço social” (Godbout,
1998: 44). Todavia, as nossas mentes modernas tendem a ver na dádiva um mero
resquício ultrapassado de uma forma de troca primitiva. Ao negar sua existência e/ou a
7 A experimentação do ser no mundo na contemporaneidade, antes de ser objeto de reflexão e instrumento de
intervenção, é um espetáculo plurívoco que parece operar a partir da experimentação sensível, afetiva, estética,
festiva, performática, massiva e, muitas vezes, mediática, do eu junto com o outro. Neste mundo, ao mesmo tempo,
globalizado e localizado, isto é, "glocal", parece estar em gestação, um novo tipo de sensibilidade, poderíamos dizer
um novo estado de espírito, que, para além do bem e do mal, re-dimensiona o ser no mundo. Nesse
redimensionamento, um dos principais indicadores parece ser a hibridação/a mestiçagem de códigos. Isto é, os novos
tempos parecem indicar o fim do primado dos grandes sistemas unitários de explicação e dos grandes projetos
políticos e sociais homogeneizadores. O coletivo fragmentado, mutante, plástico parece ser o eixo da vida social que,
por sua vez, parece ser pautada pela predominância das imagens, do simulacro, do virtual, do liminar, das
intensidades vivas de percepções, das figurações dos sentidos, da epifanização do corpo, da estetização da vida
quotidiana. Parece tratar-se, assim, essa é a nossa hipótese, de uma outra combinatória social, que supõe, na base,
uma multiplicidade de estilos de vida e de grupos afinitários, para os quais o laço social se constitui a partir da
experimentação de múltiplas situações e ocorrências e de um investimento passional transitório e efêmero, mas nem
por isso, ou talvez por isso mesmo, menos potente. Vale dizer que o elemento dinâmico do sistema parece não ser
mais o conjunto formado pelos indivíduos e suas associações contratuais racionais, mas o das plêiades de
comunidades emocionais - as tribos - que se interligam sob a forma de redes, compondo uma multiplicidade infinita,
ao menos em potencialidade, de novas socialidades, nas quais o sensível, o lúdico, o vivido, a imagem e o estético se
conjugam na configuração de um novo modo de experiência do ser no mundo, que privilegia não mais a Unidade - no
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vigência nas sociedades contemporâneas, nega-se, de fato, a própria existência da
reciprocidade. As mentes modernas obnubiladas pela “lei da equivalência contábil”, isto
é, da lógica racional-utilitária, cujo princípio fundante é a ausência de dívida,
manifestam um profundo mal-estar diante da presença ativa da dádiva, que introduz um
complicador, um desnivelador na lógica dominante, uma vez que, tendo como princípio
fundante exatamente a noção de dívida, nos faz indagar “se a formação do vínculo
social não estaria obedecendo a regras que nos escapam e que não mantém com a lógica
econômica senão uma relação estranha e paradoxal” (Godbout e Caillé, 1999: 13). Estas
e outras questões têm sido objeto das reflexões dos pesquisadores Alain Caillé e Jacques
T. Goudbout que vêm observando e analisando a presença da dádiva, a partir das
orientações maussianas, nas sociedades contemporâneas.
Tentando superar os dois grandes paradigmas presentes nas ciências sociais, o
holismo e o individualismo metodológico, os autores fazem a aposta no que chamam de
paradigma da dádiva, apoiados em duas hipóteses centrais8. A primeira diz respeito à
existência “de fato em Mauss [de] uma teoria sociológica poderosa e coerente [a da coextensividade entre dádiva e símbolo], que fornece as linhas mestras não apenas de um
paradigma sociológico entre outros, mas do único paradigma propriamente sociológico
que se possa conceber e defender”9. A segunda propõe que o Ensaio sobre a dádiva
“nos fornece os fundamentos de um paradigma positivo – e não apenas crítico, ou por
partido, em Deus, etc. - mas as pluralidades de vivências partilhadas, nas quais conta mais a re-ligação do que
qualquer objetivo, finalidade ou intenção.
8 Vale lembrar que, para Caillé, enquadram-se no individualismo metodológico (denominado neoliberalismo por
Godbout) – o paradigma dominante nas ciências sociais –, que parte “da idéia de que as relações sociais podem e
devem ser compreendidas como resultante do entrecruzamento dos cálculos efetuados pelos indivíduos” – a teoria da
ação racional (chamada por Godbout de teoria da escolha racional), a teoria da racionalidade limitada, o neoinstitucionalismo, o utilitarismo (chamada por Godbout de teoria da racionalidade instrumental), a teoria dos direitos
de propriedade, todas enfeixadas na figura do homo oeconomicus (Caillé, 1998: 13). Godbout acrescenta ainda como
variante do paradigma dominante, a teoria econômica neoclássica. Para este autor, o núcleo comum a todas essas
teorias é o fato de procurarem “explicar o sistema de produção e, sobretudo, de circulação das coisas e dos serviços
na sociedade a partir das noções de interesse, de racionalidade, de utilidade” (Godbout, 1998: 39). Já o holismo, de
alcance mais limitado, quase que restrito a Louis Dumont, configura-se, para Caillé, como uma “oposição diametral”
ao paradigma dominante, ao propor que “há na totalidade considerada enquanto tal algo mais do que nas partes ou em
sua soma, e […] que a totalidade é historicamente, logicamente, cognitivamente e normativamente mais importante –
hierarquicamente superior – do que os indivíduos que contém”. Ao paradigma holista podem ser relacionados o
culturalismo, o funcionalismo, o estruturalismo “e grande parte do marxismo, pelo menos antes de ser relido, por
alguns, através das lentes do individualismo” (Caillé, 1998: 14).
9 A co-extensividade entre dádiva e símbolo corresponde ao postulado da “reversibilidade entre a tese da natureza
simbólica da relação social e a da universalidade da obrigação de dar, receber e retribuir”. O registro da dádiva
retraduz “as categorias da ação humana na linguagem da vida e morte, guerra e paz” e, ao fazê-lo, designa
“evidentemente aquilo que se encontra no mais profundo de toda atividade simbólica realizada pela humanidade,
qualquer que seja a acepção dado ao termo simbolismo. Pois o símbolo, originariamente, sumbolon, era um anel (o
que liga, o círculo do kula ou da aliança, por exemplo, na aliança de casamento), lançado ao solo e quebrado em duas
partes, levadas pelos amigos separados, de modo que cada um dos fragmentos só podia se encaixar em sua metade
original, já que a fratura real, que une simbolicamente, é sempre singular, diferente de qualquer outra”. A esses
exemplos, acrescentemos as atuais comunidades afetivas que preconizam o agir em redes. Vale dizer que, “na
origem, [e isso é fundamental para o nosso argumento] o símbolo não é senão o próprio signo da aliança que deve
perdurar apesar de qualquer separação ou afastamento, a celebração sempre viva da aliança contraída pela dádiva”
(Caillé, 1998: 30, 31).
11
negação – em Sociologia e em Antropologia e, de modo mais geral, para o conjunto das
ciências sociais. Nesse ensaio, Mauss nos dá a prova empírica, um começo de prova em
todo caso, de que não são apenas os sociólogos da virada do século que criticam o
utilitarismo econômico, mas os homens de todas as sociedades humanas. De que a
obrigação paradoxal da generosidade – esse antiutilitarismo prático – constitui a base, o
rochedo, como diz Mauss, de toda moral possível, e, conseqüentemente, é aí, e não num
improvável e inencontrável contrato social original, que se deve buscar a essência e o
cerne de toda sociabilidade” (Caillé, 1998: 11, 12)10.
À parte exageros típicos de propositores de paradigmas e de escolas, Caillé e
Godbout apontam para importantes questões, das quais recuperaremos somente aquelas
que tocam mais diretamente os objetivos deste texto. Para Caillé, tanto o holismo como
o individualismo metodológico são “totalmente incapazes de pensar – ao contrário do
que crêem – a gênese do laço social e da aliança. Totalmente incapazes, também, de
pensar a dádiva. E, por conseguinte, o político” (Caillé, 1998: 14)11. A dádiva é, para
Caillé, “o único meio” de escapar das aporias do dilema do holismo e do individualismo
metodológico uma vez que, enquanto uma “situação de incerteza estrutural”, coloca de
fato, “o problema da confiança e da tessitura do laço social”. A dádiva é uma aposta na
“incondicionalidade” – “pois na aliança se deve dar tudo – mas preservando a
possibilidade de recair, a qualquer momento, na desconfiança. Ou ainda, mergulhar na
incondicionalidade […] mas não incondicionalmente nem necessariamente para
10 Caillé define paradigma como “um modo generalizado e mais ou menos inconscientemente compartilhado de
questionar a realidade social histórica e de conceber respostas para essas questões”. Paradigma nas ciências do social
histórico é definido como “um modo generalizado e mais ou menos inconscientemente compartilhado de questionar
normativamente a realidade social histórica e de propor para tais questões respostas positiva e normativamente
significativas”. O paradigma da dádiva, por ser “assistemático, inimigo das respostas prontas e mastigadas […] não é
uma máquina de soprar soluções, mas de inspirar questões. Nesse sentido, é tudo menos paradigmático. Chega a ser,
num certo sentido, e por excelência, antiparadigmático” (Caillé, 1998: 13, 23). A posição de Godbout é um pouco
mais nuançada. Diz ele que “ a dádiva ainda não é um paradigma, e talvez nunca chegue a sê-lo” (Godbout, 1998:
44).
11 A incapacidade do holismo deriva, para Caillé, do fato de postular “que o laço social sempre está dado de saída e
preexiste ontologicamente à ação dos sujeitos sociais”. De fato, o holismo sequer se coloca a questão uma vez que
supõe “que os sujeitos, individuais ou coletivos, não fazem senão aplicar um modelo e uma lei que existiam antes
deles”. Vale dizer que “a fortiori, numa tal perspectiva, a dádiva é inexistente e impensável”. O individualismo
metodológico, muito embora critique o holismo dizendo que o que “este postula como um dado [é] justamente aquilo
que está para ser explicado”, “não se sai melhor do que o rival. Se o holismo reifica e hipostasia a totalidade, o
individualismo faz o mesmo com o indivíduo”, prisioneiro de seu egoísmo original, seu dilema fundamental. Em
termos da ação humana em sociedade, base fundamental para a constituição do laço social, para Caillé, assim como o
“holismo só concebe a ação tradicional, o individualismo só concebe a ação instrumental” (Caillé, 1998: 14).
Enquanto a ação tradicional seria sinônimo de ação moral, pautada em normas, a ação instrumental seria sinônimo de
ação racional, pautada em interesses individuais. Como muito bem observa Godbout, “se nos ativermos a esses dois
paradigmas, seremos levados a crer que as ciências sociais se encontram diante do seguinte dilema: ou o
comportamento é livre, mas obedece ao modelo da racionalidade instrumental, ou o comportamento é mais ou menos
determinado por normas, pela obediência a regras”. Este autor, aponta como um limite da teoria da escolha racional –
fundamental para o nosso argumento – o fato dela não levar em conta que “os meios e os fins influenciam uns aos
outros permanentemente, sob o efeito das emoções, dos sentimentos, e dos resultados de uma ação prévia”. Se
levarmos em consideração a forte componente afetivo-emocional das escolhas ver-se-á o quanto “cada decisão é uma
12
sempre”. Permanece um “éter de ambivalência irredutível, porque constitutivo da
aliança”. Em suma: o regime da dádiva é o regime de incondicionalidade condicional”.
(Caillé, 1998: 14, 15). Vale a pena lembrar que, como bem mostra Mauss, as dádivas
trocadas podem ser, ao mesmo tempo, presente e veneno (Mauss, 1981a). O domínio da
dádiva é, portanto, o do paradoxo, mais especificamente ainda, do paradoxo da ação
humana em sociedade, ação humana essa permeada de uma ambivalência irredutível,
pois que aposta na incondicionalidade e se dá numa situação de incerteza estrutural,
colocando lado a lado a obrigação paradoxal da liberdade e o problema da confiança,
bases fundantes – as rochas sólidas maussianas – de toda socialidade.
Do ponto de vista que defendemos aqui, uma das questões centrais do paradigma
da dádiva diz respeito ao modo como trata a relação entre liberdade humana e
autonomia individual. Enquanto o paradigma dominante estabelece a equação segundo a
qual liberdade é igual a ausência de dívida, o da dádiva propõe exatamente o contrário.
Vejamos um pouco mais de perto essa diferença. O individualismo centra-se na idéia de
que a liberdade humana é adquirida à condição de ausência de dívida (leia-se autonomia
individual) uma vez que a lei geral que rege as trocas é a “lei da equivalência”. Dito de
outro modo: a lógica que vige na modernidade pauta-se pelo princípio de que ser um
indivíduo livre e autônomo equivale, no jogo infinito da circulação de equivalências, a
não dever nada a ninguém (Berthoud apud. Godbout, 1998: 41). Vale dizer que a
liberdade moderna é, antes de mais nada e acima de tudo, a ausência de dívida. O nó
górdio desta lógica advém do fato de que, agindo em nome da liberdade individual,
acaba “por submeter os indivíduos a um modelo mecânico e determinista [o da
equivalência contábil que se traduz no plano da cultura pelo da identidade] que não
deixa nenhum lugar para o inesperado”, para a diferença, eliminando do horizonte das
relações humanas a aventura da reciprocidade (Godbout, 1998: 42). Num sistema de
dádivas, é o oposto que ocorre, uma vez que os agentes sociais nele envolvidos “buscam
se afastar da equivalência de modo deliberado”, dado que a dádiva é antes de mais nada
e acima de tudo uma situação/estado de dívida permanente/estrutural. Todavia, a noção
de dívida em questão não é de caráter contábil, “é um estado, no qual cada um considera
que, em termos gerais, recebe mais do que dá”. Vale dizer que o essencial na noção de
dívida no sistema de dádivas é abertura para a diferença, para o inesperado, portanto,
para a reciprocidade (Godbout, 1998: 44). O binômio dívida-incerteza evidencia que a
liberdade que o regime da dádiva introduz “não se realiza na liquidação da dívida e não
aventura, uma surpresa”. Enquanto “o modelo da racionalidade instrumental visa eliminar essa dimensão da decisão”,
o paradigma da dádiva acentua exatamente a dimensão da aventura, da aposta (Godbout, 1998: 42, 43).
13
consiste na facilidade, para o ator, de sair da relação; situa-se, ao contrário, dentro do
laço social, e consiste em tornar o próprio laço mais livre, multiplicando os rituais que
visam diminuir, para o outro, o peso da obrigação no seio da relação”. É por isso que a
dádiva “é um jogo constante entre liberdade e obrigação” (Godbout, 1998: 45). A
liberdade em foco não é a da autonomia individual, mas a liberdade do outro, já que,
como apropriadamente observou Lefort, “não se dá para receber; dá-se para que o outro
dê” (Lefort apud. Godbout, 1998: 45). E é justamente essa liberdade do outro que
introduz na relação de dádiva uma incerteza deliberada e permanente, “uma
indeterminação, um risco quanto à efetivação do contradom”, de modo que os atores
nela envolvidos se afastam “o máximo possível do contrato, do comprometimento
contratual (mercantil ou social), e também da regra do dever; na verdade, de qualquer
regra de tipo universal. Por quê? Porque estas últimas têm a propriedade de obrigar o
outro independentemente de seus ‘sentimentos’ em relação a mim, independentemente
do elo que existe entre o outro e eu” (Godbout, 1998: 45). Vale lembrar que a etiqueta
da dádiva implica uma “modéstia exagerada”, uma quase que negação da própria dádiva
recebida, o que abre espaço para que a obrigação de retribuir fique diminuída e, assim, a
retribuição incerta. Em resumo, no circuito de dádivas mesclam-se liberdade e
obrigação, interesse e desinteresse, gestores da ação humana em sociedade, que foram
isolados esquematicamente no holismo e no individualismo metodológico: “a dádiva é
indissociavelmente ‘livre e obrigada’ de um lado, e ‘interessada e desinteressada’ de
outro. Obrigada, pois não se dá qualquer coisa a qualquer pessoa, num momento
qualquer ou de qualquer modo, sendo o momento e as formas da dádiva de fato
socialmente instituídos, como bem nota o holismo. Contudo, se se tratasse unicamente
de mero ritual e pura mecânica, expressão obrigatória de generosidade, então nada
ocorreria na verdade já que, mesmo socialmente imposta, a dádiva só adquire sentido
numa certa atmosfera de espontaneidade. É preciso dar e retribuir. Sim, mas quando,
quanto, com que gestos, quais entonações? Quanto a isso, mesmo a sociedade selvagem
mais controlada pela obrigação ritual deixa ainda um grande espaço para a iniciativa
individual” (Caillé, 1998: 16).
A perspectiva aberta por Mauss e ampliada pelo paradigma da dádiva, permite
perceber como a relação entre interesse e desinteresse é muito mais complexa do que
nosso pensamento racional-utilitarista pode supor. “A definição da relação entre
interesse e desinteresse é mais delicada ainda [do que a definição da relação entre
liberdade e obrigação], já que não somente o ganho acaba indo – possivelmente, mas
não garantidamente – para aquele que soube correr o risco da perda, mas também
14
porque a dádiva arcaica, dádiva nobre cujos restos Mauss exuma, não tem, nem
pretende ter, nada de caridosa”. Vale dizer que “o interesse se encontra duplamente
imbricado [na] ostentação simbólica de generosidade. O interesse está no final do
processo (e não no início, como quer o utilitarismo), pois a generosidade, se tudo correr
bem (mas não há como ter certeza de que tudo correrá bem), acaba compensando. Sob
outra forma, porém, encontra-se também no próprio cerne do processo inteiro,
estruturado pela rivalidade agonística dos parceiros. O paradoxo suplementar é que essa
rivalidade é, em si mesma, a condição da aliança e da amizade” (Caillé, 1998:17)12.
A complexidade do circuito de dádivas, sua composição híbrida de liberdade e
de obrigação, de interesse e de desinteresse, as misturas que opera evidencia um outro
ponto que nos interessa destacar e que diz respeito a idéia/noção de rede. A rede
composta por uma cadeia múltipla de relações de interdependência pode ser vista como
a tradução contemporânea do sentido de aliança na troca primitiva. À célebre pergunta
por que se dá? tem como resposta a formação de redes, uma vez que se dá “para se
ligar, para se conectar à vida, para fazer circular as coisas num sistema vivo, para
romper a solidão, sentir que não se está só e que se pertence a algo mais vasto”
(Godbout, 1998: 49). Para Caillé, “a rede é o conjunto das pessoas em relação às quais
a manutenção de relações interpessoais, de amizade ou de camaradagem,
[acrescentaríamos de rivalidade também] permite conservar e esperar confiança e
fidelidade”. O que constitui as redes é a aliança generalizada, uma vez que através dela
os homens estabelecem “relações que são determinadas pelas obrigações que contraem
ao se aliarem e dando uns aos outros”,
submetem-se “à lei dos símbolos [leia-se
dádivas] que criam e fazem circular” [leia-se partilhar]. Assim fazendo, “os homens
produzem simultaneamente sua individualidade, sua comunidade e o conjunto social no
seio do qual se desenvolve a sua rivalidade” (Caillé, 1998: 18). Em suma, a pulsão à
relação, à reciprocidade é o movimento incessante e sem desfecho da troca, da
circulação generalizada, o que é obrigatório é o fato mesmo da relação, permitindo ver,
como diria o próprio Mauss, as coisas sociais em seu movimento concreto, já “a dádiva
é o que permite constituir alianças entre pessoas concretas bem distintas e
invariavelmente inimigas em potencial, unindo-as numa mesma cadeia de obrigações,
12 Como apropriadamente nos lembra Simmel, a quem Caillé chama de “o outro inventor do paradigma” da dádiva, a
noção de interesse não está relacionada ao cálculo utilitário e ao egoísmo individualista, característicos da
modernidade ocidental. Interesse, impulso, propósito, inclinação, estado psíquico, movimento, são “as matérias com
as quais a vida é preenchida”, no entanto, em si mesmos, “não são sociais”. Dito de modo mais claro: “estritamente
falando, nem fome, nem amor, nem trabalho, nem religiosidade, nem tecnologia, nem as funções e resultados da
inteligência são sociais. São fatores de sociação apenas quando transformam o mero agregado de indivíduos isolados
em formas específicas de ser com e para um outro – formas que estão agrupadas sob o conceito geral de interação”
(Simmel, 1983: 166).
15
desafios e benefícios, que não podem ser traduzidos “nem na linguagem do interesse,
nem da obrigação, nem na do prazer, nem mesmo da espontaneidade, já que [a dádiva]
não é senão uma aposta sempre única que liga as pessoas, ligando simultaneamente, e
de uma maneira sempre nova, o interesse, o prazer, a obrigação e a doação (Caillé,
1998: 30)13.
Em síntese, “a dádiva é o estado de uma pessoa que, resistindo à entropia,
transcende a experiência mecânica determinista da perda ligando-se à experiência da
vida (que é o estado de dívida), ao aparecimento, ao nascimento, à criação”. É essa
dimensão fundamental de produção da vida, com toda a carga de risco que comporta, e
isso é fundamental para o nosso argumento, que permite que a dádiva seja sentida como
“um salto misterioso para fora do determinismo” e que seja “freqüentemente
acompanhada de uma certa sensação de euforia e da impressão de participar de algo que
ultrapassa a necessidade de ordem material”. Neste sentido, a dádiva é antes de mais
nada e acima de tudo, “um ato que preenche o espaço de significação do sujeito e faz
com que sejamos ultrapassados pelo que passa por nós, e pelo que se passa em nós”. É,
assim, a “experiência do abandono a incondicionalidade, experiência de pertencer a uma
comunidade que, longe de limitar a personalidade de cada um, ao contrário, a expande”
(Godbout, 1998: 48,49). A dádiva é, portanto, a “experiência social fundamental no
sentido literal, de experiência dos fundamentos da sociedade, daquilo que nos liga a ela
para além das regras cristalizadas e institucionalizadas”, ou seja, é a “experiência em
que a sociedade é vivida como comunidade” (Godbout, 1998: 48, 49).
Estudo de caso
“Nas sociedades, mais do que idéias ou regras, apreendem-se homens, grupos
e seus comportamentos. Vemo-los moverem-se assim como, em mecânica,
vemos massas e sistemas, ou como, no mar, vemos pedras e anêmonas.
Percebemos multidões de homens, de forças móveis, flutuando em seu meio e
em seus sentimentos” (Mauss).
13 Foge aos modestos propósitos deste texto uma discussão mais aprofundada acerca das objeções – e seus
fundamentos – lançadas ao paradigma da dádiva. Vale, no entanto, seu breve registro. São basicamente três as
objeções: quanto à universalidade empírica da dádiva; quanto à pretensão teórica e empírica de “encontrar em todas
as sociedades históricas uma única e imutável essência da dádiva”, isto é, é a coerência interna da dádiva que está em
questão; quanto à sua exaustividade, ou seja, de sua capacidade explicativa e heurística, sobretudo no que tange à
sociedade moderna (Caillé, 1998: 24). Do nosso ponto de vista, o que importa – para além da querela empíricoconceitual – é abertura de horizontes que o paradigma oferece para se pensar a dádiva como partilha e como aposta.
Como apropriadamente observa Caillé, “isso não é próprio nem das sociedades atuais: é de todos os tempos e de
todos os lugares, pois em qualquer tempo e em qualquer lugar a questão primordial, que é a questão propriamente
política, é saber em que condições seria possível se entender e se aliar, em vez de lutar e matar uns aos outros”.
Sobretudo o que nos importa é a possibilidade de pensar que partilha e aposta variam histórica, social e
culturalmente, pois “não se trata, de modo algum, de pretender desenterrar sempre e em toda parte a mesma coisa, a
mesma identidade formal de práticas ou de significados, mas sim revelar um sistema de transformações da dádiva,
que seja inteligível” (Caillé, 1998: 25, 26, 28).
16
O multiverso de manifestações e de práticas – o politeísmo dos deuses que é
também o politeísmo dos valores (elemento marcante do quadro religioso
contemporâneo) – é um excelente caminho para a apreensão das múltiplas formas de
constituição do laço social, em particular daquelas que, preconizando um agir em redes,
levam à constituição de comunidades afetivas, onde a troca-dádiva é central. O que
interessa levar em consideração é o “grau de comunalidade dos sentimentos gerados”.
Em outras palavras, pouco importa, ou importa muito pouco, determo-nos no conteúdo
– na “posse de um conjunto integrado de crenças e valores”, mas no plano da forma,
isto é, nas “possibilidades gerativas formais subjacentes de um conjunto reconhecível de
variações” (Featherstone, 1995: 183, 196). O sagrado, como brilhantemente observou
Bataille, “não é senão um momento privilegiado de unidade comunal, momento de
comunicação convulsiva com o que ordinariamente é abafado” (Bataille, 1973: 562).
Dito de outro modo: a comunalidade, a unidade comunal que está em questão não é de
tipo integrador, totalizador e homogeneizador, ou seja, institucional, mas emocional,
porosa, polivalente e constituída por uma plêiade de formas nebulosas que, acima de
tudo e antes de mais nada, possibilitam o reconhecimento não de igualdades, mas de
diferenças consideradas legítimas e válidas, e baseadas em afinidades eletivas que
geram múltiplas formas de troca, de dádivas. É importante ressaltar que tais
comunidades afetivas geradoras de redes existenciais tem como fundamento uma
mística, isto é, a partilha de um sentimento comum, seja ele a experiência, o vivido, o
sensível, a imagem, a performance, a crença religiosa propriamente dita etc.
Dentre as múltiplas formas de troca-dádiva, vamos ressaltar aquelas que
enfatizam em diferentes planos as relações entre efervescência, sacrifício e agir em
redes. A produção do sentimento de pertença, sobretudo aquele relacionado às formas
de efervescência religiosa, nas quais a paixão comum é exaltada remete diretamente a
uma das questões fundamentais suscitadas pelo paradigma da dádiva, ou seja, a
liberdade. Discutindo a exaltação das paixões e os decorrentes excessos no corrobori
australiano, Durkheim se pergunta sobre o efeito que devem produzir sobre os espíritos
de seus participantes. A resposta: os excessos determinam “uma tão violenta
superexcitação que não pode ser suportada por muito tempo”, os atores acabam
esgotados. Assim, “compreende-se facilmente que, chegando a esse estado de exaltação,
o homem não se conhece mais. Sentido-se dominado, arrastado por um espécie de poder
exterior que o faz pensar e agir de maneira diferente que em tempo normal, tem
naturalmente a impressão de não ser mais ele mesmo. Parece-lhe que se tornou um ser
17
novo”. Sente-se transportado para um mundo especial, para um meio povoado de forças
excepcionalmente intensas, que o invadem e o transformam. Durkheim lança a hipótese,
fundamental para a compreensão dos propósitos deste texto, segundo a qual a idéia
mesma do religioso parece ter nascido em meios sociais efervescentes e da própria
efervescência. Os “atos inauditos” (leia-se as inversões e os excessos) que a
efervescência implica, explicam-se pelo fato de que “as paixões desencadeadas são de
tal impetuosidade que não se deixam conter por nada. Está-se de tal forma fora das
condições ordinárias da vida e tem-se tanta consciência disso, que se sente como que a
necessidade de colocar fora e acima da moral ordinária” (Durkheim, 1985: 309, 312,
313). Esse colocar-se afora e acima da moral ordinária corresponde à ação libertadora
da paixão comum que começa “desde o instante em que a aglomeração toma
consciência de si como um ‘nós’ ativo e diferente do resto da sociedade”, a partir desse
instante, não se trata mais de uma massa, “mas de um grupo ativo dotado de uma
lucidez coletiva dirigida para uma ação comum”, enfim como uma comunidade afetiva
(Duvignaud, 1984: 53)14.
A liberdade experienciada pela partilha da paixão comum e a decorrente
abertura para a reciprocidade aparece também de modo claro no sacrifício. Como
sabemos, para Mauss, sacrifício e dádiva partilham a mesma natureza, ambos são
formas de contrato. Mais ainda, o sacrifício foi a primeira forma de comércio, de
contrato, entre os homens e as divindades (Hubert e Mauss,1981). A destruição e o
excesso implicados no sacrifício têm uma duplo aspecto: o de “gratuidade pueril” e o de
dar as costas para as relações reais (leia-se utilitárias). Sacrificar é consumir, é
despender, é abandonar: a oferenda escapa a qualquer utilidade, por isso o sacrifício é a
antítese da produção, é a “consumação incondicional” (Bataille, 1973: 37, 38, 72). Em
resumo: sacrificar é ao mesmo tempo dom e abandono, que se traduzem em primeiro
lugar pela partilha da paixão comum, criadora de uma comunhão afetiva, que pode ser
vivida através de atos e gestos excessivos: comida, bebida, licenciosidade sexual,
frenesi da dança, etc. Como brilhantemente diz Caillois: “a fecundidade nasce do
14 Em sua instigante apresentação da edição de bolso d’As formas elementares, Maffesoli diz que a reliança indica o
"princípio religioso" que nada mais é do que "a espantosa pulsão que incita a buscar-se, a reunir-se, a ‘render-se" ao
outro’”. Para este autor, com o que concordamos integralmente, esse é o sentido da idéia de efervescência em
Durkheim. (Maffesoli, 1991: 16, 17). Re-lendo três grandes clássicos - Durkheim (As formas elementares da vida
religiosa), Weber (A ética protestante e o espírito do capitalismo) e Freud (Totem e tabu) -, Maffesoli diz que “em
cada um desses casos, com objetivos diferentes, trata-se de trazer à luz uma lógica da ‘atração social’”. Essa lógica da
atração social nada mais é o que a da reciprocidade. A partir da perspectiva da lógica da atração social ele propõe o
“modelo religioso” como via para pensar as formas de sociação contemporâneas e que adotamos aqui. Tal
perspectiva é aquela que, tomando como ponto de partida as imagens religiosas (não a religião em si, mas um
imaginário vivido e comum) possibilita "apreender in nuce as formas de agregação social" (Maffesoli, 1987: 115,
116).
18
exagero”. Ou seja, a vida nasce do dispêndio suntuoso. Mauss observa que “a destruição
propriamente dita parece constituir uma forma superior de esbanjamento”. Analisando
as três obrigações constitutivas do princípio de reciprocidade, ele afirma que “dar já é
destruir”. Observa também que “é preciso retribuir com mais do que foi recebido”, ou
seja, “é preciso ser ‘grande senhor’ nessas ocasiões”, é preciso gastar sem medidas, pois
a “riqueza é feita para ser dada” (Mauss, 1974: 100, 150, 164). Em resumo: "sem
generosidade não há sorte" (Mauss e Beuchat, 1974: 467). Vale dizer que o excesso, a
despesa suntuária, o dispêndio improdutivo, o consumo incondicional, movimentam o
mundo, pois instauram a reciprocidade. Essa idéia de movimento do mundo é
fundamental para o nosso argumento, uma vez que implica o abandono da “ilusão
cômoda” que o mundo é pacífico e voltado para a ordem15. Ao contrário, a
sobrevivência mesma da sociedade só é possível ao preço de dispêndios improdutivos.
A imbricação entre dádiva, efervescência e sacrifício tem no sacrifício do
dinheiro na Igreja Universal uma manifestação exemplar. Para os iurdianos por meio do
sacrifício, o homem aproxima-se de Deus, mostrando os seus sentimentos em relação a
Ele e demonstrando que, na vontade de fazer aliança, ele quer receber algo em troca. É
preciso dar para receber, não sendo possível o regateio. Querer conquistar algo exige
sacrifício, exige um investimento de fé. Em suma, é possível dizer que, quanto maior
for o sacrifício, maior a fé (e vice-versa) e também, que maior será a conquista – o
contra-dom da Divindade. Sem esquecer, no entanto, que a aliança em si é mais
importante do que os resultados trazidos por ela.
Mas, por que sacrificar logo o dinheiro? Embora os pastores enfatizem que o
dinheiro sacrificado é o sangue do fiel, será que eles não fazem distinção entre dinheiro
e sangue? Diante da dúvida, vale lembrar os comentários de Lévi-Strauss sobre o
sacrifício, baseado no princípio da substituição: para os nuer, “um pepino é um boi, mas
um boi não é um pepino”. Conforme suas palavras: “na falta da coisa prescrita, qualquer
outra pode substituí-la, desde que permaneça a intenção, que é a única que importa (...)
O sacrifício situa-se, então, no reino da continuidade” (Lévi-Strauss, 1976: 257). Para o
iurdiano, dinheiro é sangue, mas sangue não é dinheiro. Ao ofertar, ele reconhece o
valor monetário do dinheiro, mas, ainda assim, acredita que ele deva ser “queimado”
para que possa fazer aliança com a Divindade. Ele crê que deve dar uma quantia que
15 É contra esta visão “ordeira” e acomodada da vida social que se coloca o pensamento complexo. Nesse sentido, tal
como argumenta Morin, “o jogo do devir é de uma prodigiosa complexidade. A história inova, deriva, titubeia. Muda
de trilho, perde o rumo: a contracorrente provocada por uma corrente mistura-se com a corrente e, tirando-a do rumo,
torna-se a corrente. A evolução é deriva, desvio, criação, e também rupturas, perturbações, crises” (Morin, 1986:
312).
19
fará falta, pois, caso contrário, não seria um sacrifício. O que está em jogo, portanto, é o
desprendimento/abandono do fiel, a possibilidade de colocar Deus acima de tudo, enfim
como liberdade. E como vimos, é impossível pensar a dádiva sem a idéia de desafio, de
risco, de aposta, enfim de reciprocidade. Tratando o sacrifício como expressão de um
sistema de dádivas é possível vislumbrar outros caminhos para a compreensão do
sacrifício Universal, que não o reduzam a um simples fanatismo, ao interesse ou a
exploração religiosa. Como já mencionado, para Bataille, o princípio do sacrifício é a
destruição; todavia, sacrificar não é matar, ao contrário, é abandonar e dar. O dom tem a
natureza do fogo, simplesmente, consome-se, furtando-se a toda utilidade. Neste sentido
é exemplar o ritual da Fogueira Santa, no qual os fiéis são chamados a sacrificar o “seu
tudo”, como eles dizem. Realizada duas vezes ao ano, ela é considerada uma “grande
prova”, tendo o fiel a oportunidade de testar a sua fé. Para compreender o propósito da
“Fogueira Santa”, é fundamental ter em vista a idéia do “tudo ou nada”, do “é ou não
é”. É muito comum verificar-se nos relatos dos fiéis dados durante os rituais, os
programas de televisão e de rádio, bem como aqueles presentes na Folha Universal, a
declaração: “eu doei o meu tudo na Fogueira Santa”. E na perspectiva da eficácia, os
resultados obtidos com a “Fogueira” também são mais “significativos”16.
O que presenciamos então no sacrifício Universal? Pode-se dizer que uma
mistura de interesse, obrigação, prazer, doação, não-equivalência, espontaneidade,
dívida e incerteza, onde tudo circula a favor do laço social, da solidariedade, da
inter(ação). Embora a doutrina da abundância pregue a reciprocidade com Deus, ela não
existiria se os fiéis, antes de tudo, não trocassem entre si. A ritualização do desafio a
Deus, na IURD, por meio de ofertas sacrificiais, demonstra a importância da
coletividade, ainda que as trocas com a Divindade sejam individuais. A coletividade
fornece o pano de fundo que sustenta a troca com o divino. Trocar somente com Deus,
sem a participação coletiva, seria uma espécie de “incesto social”17.
Por que gera tamanho mal-estar falar de “sociedade” com Deus ou da
necessidade de se “oferecer sacrifícios” a Ele? Para responder a esta pergunta não
16 Apgaua em sua dissertação de mestrado comenta o ritual da “Fogueira Santa”, realizado no dia 15 de agosto de
1999. Para realizá-lo, os fiéis se prepararam durante os meses de julho e agosto, recolhendo envelopes que, depois de
preenchidos com ofertas de sacrifício e pedidos, foram depositados, no dia 15 de agosto, no “Monte Sinai”,
representado nas igrejas da Universal. O dinheiro foi retirado dos envelopes recolhidos e os pedidos foram
queimados, seguindo as cinzas para Israel. Bispos e pastores fizeram, ainda, uma peregrinação pelo Monte Sinai, em
jejum e oração, “exigindo” de Deus o cumprimento de Suas promessas. A “Fogueira Santa no Monte Sinai” é vista
como um “grande propósito de fé”, o momento em que se decreta a “vitória do povo de Deus” (Apgaua, 1999).
17 Lévi-Strauss comenta que certos atos não podem ser realizados sem a presença da coletividade, sob pena de ironia,
zombaria, desgosto e desprezo e, até mesmo, cólera: “nesta realização individual de um ato que normalmente exige a
participação coletiva, parece que o grupo percebe confusamente uma espécie de incesto social” (Lévi-Strauss, 1976:
98).
20
podemos nos esquecer de nossas heranças cristãs e de um processo de construção da
malignidade do dinheiro, bem como de nossa tradição moderna, racional, que não
perdoa combinações espúrias e gastos improdutivos, elementos fundantes do próprio
sacrifício. Parece haver uma maior condescendência quando os sacrifícios dizem
respeito a outros domínios, como, por exemplo, o carnaval e as festas profanas. Mesmo
na esfera religiosa, é interessante perceber que certos cultos afro realizam rituais
sacrificiais e nem por isso os intelectuais e a mídia têm travado uma verdadeira “guerra
santa” contra eles. Quais seriam as razões do sacrifício Universal ser fonte de tamanho
mal-estar, enquanto outros são “tolerados” pela sociedade? Uma das respostas possíveis
é que a IURD sacrifica o dinheiro, a Divindade das sociedades de mercado, o que é um
verdadeiro sacrilégio18. Mas, nas festas profanas, não se consomem grandes somas de
dinheiro para se obter o prazer de um instante fugaz? Talvez a Igreja Universal
compartilhe da sina dos “novos movimentos religiosos”, “não enobrecidos nem
estetizados pela pátina do tempo, e por isso mesmo capazes, seguidamente, de provocar
antipatia sob muitos aspectos”, como bem diz Velho (1998:3). Um dos dinamizadores
da “efervescente” polêmica em torno da doutrina da abundância parece residir na
aceitação e mesmo explicitação de uma provável “ambigüidade do dinheiro”. Como diz
Sanchis, a teologia da prosperidade consegue articular modernidade e pré-modernidade,
o que talvez explique o fascínio, e aqui acrescentamos, ou o repúdio, pela IURD. O lado
pré-moderno do dinheiro surge, quando ele assume o papel de “mediador sacramental”
entre o fiel e a Divindade. O lado moderno, por sua vez, não desaparece continuando a
existir, enquanto o “próprio mediador abstrato universal bem conhecido na modernidade
do capitalismo” (Sanchis, 1997: 110).
Assim é que se propõe aqui pensar o sacrifício Universal como compondo redes
sinergéticas, nas quais as relações entre fiel, pastor e Deus seriam a expressão de
nódulos de dádivas. Neste sentido, estas relações, para além de certos elementos
reconhecidamente econômicos, não se resumiriam à mera exploração. A Igreja
Universal não é apenas uma “empresa da fé” ou um “balcão de milagres”, ela é
composta e compõe um complexo reticular, no qual fiéis, pastores e Divindade, embora
ocupem pontos nodais específicos, estão em constante inter-ação. Trabalhando com a
idéia de rede sinergética, questiona-se a opinião da maioria dos autores que restringem a
18 Para Durkheim, “uma única forma da atividade social ainda não esteve expressamente ligada à religião: a
atividade econômica. Todavia, as técnicas, que derivam da magia revelam, por esse mesmo fato, origens
indiretamente religiosas. Além disso, o valor econômico é uma espécie de poder ou eficácia, e conhecemos as origens
religiosas da idéia de poder. A riqueza pode conferir mana; isso significa, portanto, que ela o tem. Por aí, percebe-se
que a idéia de valor econômico e a de valor religioso estão certamente interligadas” (Durkheim, 1989: 496).
21
aplicação da teoria da dádiva apenas às representações dos fiéis. Mas, por que os
pastores não estariam presentes no circuito das obrigações de dar, receber e retribuir?
Inseridos na rede, os pastores, tanto quanto os fiéis, e mesmo Deus, não estão livres das
obrigações de dar, receber e retribuir. Seria extremamente empobrecedor pensar que só
recebem sacolas gordas de dízimos e ofertas, sem precisarem retribuir. Obviamente que
não estamos querendo dizer que pastores e fiéis são iguais, é justamente a desigualdade
de suas posições que oportuniza a reciprocidade entre eles.
Diante do discurso doutrinário da abundância, não seria mais interessante buscar
um circuito de troca ou de comunicação para além do bem e do mal? Parece sutil, mas,
simultaneamente ao discurso dos pastores sobre a necessidade de troca, de
reciprocidade com Deus, já não estaria havendo uma troca entre pastores e fiéis? Uma
pregação sobre a importância da dádiva já não estaria ocorrendo em uma atmosfera da
dádiva? Não seriam os pastores “sinceros pela metade” ou “Quesalids”?19 Pastores não
são mais charlatães do que outros “xamãs” e nem mais virtuosos do que estes últimos,
bem como seus sistemas de símbolos não são mais verdadeiros e mais falsos do que os
demais. Pode-se dizer, ainda, que da mesma forma que eles criam sistemas de símbolos,
tornando-se portadores da Divindade na terra, são também criados pela demanda
social20. Pastores e fiéis são criadores e criaturas ou, como diria Elias, eles são “matriz
e moeda”, moldando e sendo moldados (Elias, 1996: 56). A Universal assim pensada
aparece como um ponto nodal de uma rede muito mais ampla - a sociedade.
Em síntese, argumentamos que a interpretação economicista/utilitarista da troca
não consegue contemplar, de um lado, os motivos daqueles que adotam crenças e
práticas de caráter religioso, e, de outro, o porquê das manifestações religiosas dos
nossos dias articularem-se discursivamente em torno de símbolos do mercado – este
grande emblema da sociedade moderna através do qual é possível encontrar significados
amplos e complexos que extrapolam sua lógica de funcionamento. Podemos perceber
tal limitação também nas interpretações correntes acerca da Nova Era, pois este tipo de
religiosidade construída, antes de mais nada e acima de tudo, através de atos
comunicativos, indica, não a exacerbação do individualismo moderno, mas a formação
de redes de solidariedade nas quais tudo se troca. Nesse sentido, a proposta teórica
19 Lévi-Strauss fala que “Quesalid não se tornou um grande feiticeiro porque curava seus doentes, ele curava seus
doentes porque havia se tornado um grande feiticeiro”. Vale ainda lembrar que “o xamã não se contenta em
reproduzir ou representar mimicamente certos acontecimentos; ele os revive efetivamente em toda sua vivacidade,
originalidade e violência” (Levi-Strauss, 1970: 198).
20 Trata-se sim, portanto, de “manipulação”, mas manipulação no sentido que lhe dá Luiz Eduardo Soares, ou seja:
“toda formação cultural existe para se manipulada - reinventada no limite. A rigor, existe sendo manipulada e
22
maussiana permite enxergar, tal como no caso da Universal, essas redes de relações que
formam e conformam comunidades afetivas, as formas comuns partilhadas, permitindo
perceber a imbricação entre dádiva, efervescência e o agir em redes.
Sem as marcas da rigidez dogmática e da ortodoxia, a Nova Era agrupa as
pessoas preconizando um agir em redes que deve ser entendido como algo mais do que
a união de pessoas em torno do consenso das crenças e das regras de conduta, já que a
rede “oferece apoio moral, feedback, uma oportunidade de mútua descoberta e reforço,
tranqüilidade, intimidade, festividade, uma chance de compartilhar experiências e peças
do quebra-cabeças” (Ferguson, s/d.: 114). Vale dizer que a organização não
institucionalizada em que se estrutura o movimento Nova Era precisa ser pensada, não
somente como uma força moral, mas como algo que propõe uma ética calcada na
empatia, ou seja, um posicionamento diante dos próprios códigos morais, sempre
pensado em relação ao outro. Na Nova Era, agir em redes é o que garante o fluxo das
informações, e através delas o encontro entre as pessoas, ainda que em diferentes
momentos e locais: é o elo societal construído à base de atos comunicativos. Em outras
palavras, ao fundar o vínculo social na possibilidade de escolha entre diversas formas de
exercício do sagrado, a Nova Era permite enxergar como o sutil movimento dos
circuitos de dádiva foge à lei da equivalência contábil – e de seu reflexo no plano da
cultura, a identidade. Nesse sentido, apresenta-se no movimento Nova Era a liberdade
individual típica da dádiva, posto que nesta existe, persiste a dívida, em detrimento da
autonomia individual que é caudatária de uma situação de equivalência, portanto de
ausência de dívida e, conseqüentemente de reciprocidade. O que garante a existência
das redes são as qualidades especiais que as mensagens têm, ou seja, seu poder de
conduzir o errante da Nova Era no caminho do auto-aperfeiçoamento
através da
reciprocidade das trocas de experiências com os outros, o que permite concluir que nos
processos comunicativos da Nova Era mensagens são pessoas.
Podemos ver o movimento Nova Era, tal como a IURD, como uma ampla rede
sinergética que coloca em comunicação os mais diversos códigos (filosofias orientais,
ocidentais e de povos indígenas, além dos códigos típicos da modernidade ocidental, a
ciência e a economia) formando um manancial de discursos passível de unificação, ao
qual os errantes recorrem para construir seu caminho de auto-aperfeiçoamento. A Nova
Era apresenta redes de lugares que também se colocam em constante comunicação – os
enquanto manipulação, que se dá sempre em contextos sociais definidos, segundo dinâmicas interacionais
específicas” (Soares, 1994: 207).
23
chamados centros holísticos, as comunidades alternativas, os eventos e festivais21.
Quando se chega num centro holístico, por exemplo, é possível perceber anúncios e
referências a outros acontecimentos em outros centros. Há também um crossover das
pessoas entre os centros holísticos, os workshops, as reuniões e eventos característicos
da Nova Era22. Além disso, ela combina duas dimensões espaciais – o global e o local
– num discurso transnacional e transcultural nas fronteiras do cosmopolitismo.
Finalmente, podemos perceber o movimento Nova Era como redes de comunicação
propriamente ditas, quando percebemos o troca-troca de informações e experiências, o
qual faz com que as pessoas tenham acesso às diversas práticas curativas e terapêuticas,
aos livros consagrados e, principalmente, às vivências de cada um, que representam
também um caminho para o aperfeiçoamento pessoal e, por desdobramento, a
experiência da comunidade afetiva23.
Portanto, comunicar, no caso da Nova Era, significa religar. O que está ligado
está estabelecendo comunicação, trocando mensagens, relacionando-se em múltiplos
níveis e ao mesmo tempo, agindo no mundo para construir a Era de Aquário. Os
processos comunicativos engendrados no fenômeno Nova Era são multidimensionais e
21 Caracterizando a atual paisagem religiosa francesa, Françoise Champion fala em "nebulosa místico-esotérica",
formada por grupos e redes que podem se ligar às religiões (hinduísmo, budismo, xamanismo, por exemplo) ou
reativar diversas práticas esotéricas (em particular o Tarot e a Astrologia), ou ainda podem corresponder a novos
sincretismos psico-religiosos tais como a Psicologia transpessoal. Segundo a autora, "tudo isso mistura-se a uma
reivindicação relativa, ao mesmo tempo, a uma aproximação global, 'holística' do homem e do mundo, e a valores de
cooperação, de solidariedade e de paz". Na nebulosa místico-esotérica, assim como "existem grupos relativamente
bem constituídos, com membros claramente identificáveis, existem também, e sobretudo, redes, mais ou menos
frouxas, gravitando em torno de associações organizadoras de estágios, de conferências de seminários (pagos) e de
revistas, de livrarias, de editoras" (Champion, s/d:1).
22 A pesquisa de José Guilherme Cantor Magnani, cujos resultados ficaram conhecidos através do artigo “O NeoEsoterismo na cidade”, é um interessante mapeamento/classificação da rede física da Nova Era dentro da cidade de
São Paulo. Segundo este autor, as redes físicas da Nova Era podem ser visualizadas em cinco tipos de locais: 1)
Instituições filosófico-espiritualistas que “caracterizam-se por apresentar um corpo doutrinário próprio, ritualística e
níveis de iniciação. Possuem hierarquia interna, distinguindo ao menos entre grupo de seguidores e mestre/dirigente,
os vínculos que estabelecem aproximam-se dos de tipo religioso. Muitas delas são filiais, adaptações ou criações
locais inspiradas em instituições com sede ou origem no exterior”; 2) Centros Integrados que “são espaços que
reúnem e organizam de forma criativa várias atividades, como práticas divinatórias, terapias variadas, cursos de
formação, venda de produtos, vivências coletivas. Não apresentam doutrina própria nem seguem um conjunto rígido
de dogmas ainda que não deixem de fundamentar suas escolhas através de um discurso mais ou menos coerente que
pode combinar várias tradições religiosas, filosófico-ocultistas, gnósticas, etc.”; 3) Centros especializados:
associações, institutos, escolas, academias e clínicas voltadas para pesquisa e ensino de temas neo-esotéricos,
treinamento e/ou aplicação de técnicas específicas; 4) Espaços individualizados: são aqueles que “oferecem uma ou
mais modalidades de práticas neo-esotéricas a cargo de uma ou várias pessoas, mas sem identificação ou nome
especial”; 5) Pontos de venda: lugares ou lojas que têm uma finalidade puramente comercial numa relação
pragmática com o neo-esoterismo, não obstante possa haver uma afinidade dos proprietários com certas doutrinas e
filosofias reconhecidamente Nova Era (Maganani, 196:11, 12).
23 Dos aspectos que podem ser enfatizados na idéia de rede, destaca-se a reciprocidade, pois, de acordo com
Melucci: “os movimentos sociais das sociedades complexas como redes submersas de grupos, pontos de encontros e
circuitos de solidariedade [...] tratam-se de movimentos com uma estrutura segmentada, reticular e multifacetária, na
qual os elos tornam-se explícitos somente durante períodos transitórios da mobilização coletiva em torno de
problemas que trazem a rede latente para a superfície e, posteriormente, deixam-na submergir novamente no tecido
da vida cotidiana”. Melucci acrescenta ainda que “a solidariedade, substrato dos movimentos, é cultural em caráter e
localiza-se no terreno da produção simbólica do cotidiano. Problemas de identidade individual e da ação coletiva se
mesclam: a solidariedade do grupo é inseparável dos anseios pessoais e das necessidades afetivas e comunicativas
cotidianas dos participantes nas redes.” (Melucci apud Scherer-Warren, 1998: 60).
24
congregam uma imagística comum capaz de distinguir e identificar o movimento Nova
Era. Existe um conjunto de imagens, sons, cores e cheiros que identifica e distingue a
Nova Era de qualquer outra sensibilidade religiosa24. É no seio dessa imagística
comum que o errante Nova Era encontra a ambiência perfeita para a sua trajetória, pois
cada um desses elementos traz o gosto da liberdade de experimentar as mais diversas
práticas – despesa pura e irracional capaz de inseri-lo em múltiplos circuitos de dádiva,
ou seja, da tripla obrigação de dar, receber e retribuir, opondo-se à dureza e à gravidade
dos dogmas e ortodoxias da fé institucionalizada que pressupõe a equivalência, o não
dever nada a ninguém, nem a Deus e, principalmente a ele. Esse ambiente comum
gerado pelo multiverso Nova Era em larga medida associa-se ao ambiente de
efervescência global dado pelo momento histórico atual, que se prenuncia como um
momento de transição, de intercâmbio cultural intenso, de rearranjo do ordenamento e
da dinâmica sociais, além das influências de fin-de-siécle e da suposta aproximação do
marco astrológico que dará início a Nova Era, a Era de Aquário. É nesse ambiente
comum que a construção da socialidade torna-se possível, pois segundo Schutz: “a
socialidade se constitui através de atos comunicativos em que o Eu se volta para os
outros aprendendo-os como pessoas que se voltam para ele, e todas conhecem esse fato”
(Schutz, 1979: 161). É exatamente essa a lógica de movimentos como a Nova Era.
Embora caracterizada comumente como a religiosidade do eu, a Nova Era tem algo de
entrega, algo de dom, algo de pressuposição do outro (por isto é possível falar de suas
“implicações éticas” como sugere Leila Amaral Luz, 1996). À religiosidade do eu não é
possível associar de forma unívoca o individualismo moderno do sujeito ensimesmado
que trata a religião como assunto de foro íntimo, mas um individualismo afetivo que
pensa o indivíduo como parte de uma rede de relações profundas e complexas, que
depende do outro e da natureza para se sentir integrado (leia-se: uno, unido a divindade
e à comunidade). O ambiente comum que toda comunicação pressupõe “é estabelecido
pela compreensão que, por sua vez, se fundamenta no fato de que os sujeitos motivamse
reciprocamente
em
suas
atividades
espirituais.
Assim,
originam-se
os
relacionamentos de compreensão mútua (Wechselverständnis) e o consentimento
(Einverständnis) e, conseqüentemente, um ambiente comum de comunicação.”
Compreensão mútua implica um horizonte comum através do qual os indivíduos
24 O uso da palavra religião para caracterizar a Nova Era é bastante complicada. Minha intenção é respeitar o ponto
de vista do errante Nova Era que, em larga medida, não se considera um religioso. O sentido da palavra religião para
ele associa-se ao aspecto institucional da palavra religião, a dogmas e ortodoxias aos quais ele, em hipótese alguma,
admite se prender.
25
possam comunicar-se uns aos outros, produzam sentido juntos, pois consentimento é
co-sentimento, ou seja, é sentir junto com o outro.
A lógica através da qual opera o errante Nova Era se insere nessa atmosfera de
dádiva e é inclusiva, e não exclusiva. Dessa forma, o modo de agir nesse tipo de
religiosidade não se prende ao vínculo identitário rígido, mas à liberdade de escolha
entre as diversas práticas e formas de viver o sagrado. Daí resulta uma de suas
características mais importantes – subjacente ao aspecto não institucional das crenças e
à diversidade das práticas – o sincretismo. O sincretismo aparece como capacidade de
plasmar conceitos e formas de conhecimento vindos das mais diferentes áreas e dos
mais diferentes tempos, atribuindo-lhes outros significados. Mas, como bem chama
atenção Leila Amaral Luz, trata-se de um sincretismo em movimento, pois, além de
plasmar conceitos, os errantes da Nova Era operam um constante trânsito através da
ambiência típica do movimento, que se constitui num conjunto das mais diversas
práticas. Desse modo, a autora propõe a “des-canonização da relação entre lugar e
essência”, pois na Nova Era as identidades não podem ser rigidamente demarcadas nem
realizar um sincretismo como síntese25. A diversidade de possibilidades de exercício do
sagrado e, conseqüentemente, de modalidades do estar-junto é, então, característica
fundante do movimento Nova Era.
A Nova Era, portanto, constitui-se de fato como comunidade moral (leia-se
afetiva), mas não propriamente como igreja – fato que perdem de vista as interpretações
utilitaristas do fenômeno. Ao contrário, não sendo possível encontrar na Nova Era
traços das religiões convencionais, institucionalizadas, o diagnóstico dos partidários de
tal explicação é claro: anomia pós-moderna, individualismo exacerbado. Mas, é preciso
lembrar que a prática religiosa no caso da Nova Era aparece como uma espécie de, para
usar a expressão de Luís Eduardo Soares (1994), mosaico formado por bricolages
particulares com os quais o indivíduo estabelece jogos de linguagem: o reconhecimento
de determinadas regras e o trânsito por elas já são suficientes para promover o estarjunto e o reconhecimento dos outros enquanto membros de um mesmo grupo26. De
25 Segundo a autora, “o fenômeno da Nova Era coloca os interessados, desta feita, frente a algo que se diferencia de
uma unificação de discursos , no âmbito de identidades contrastivas. O esforço de cruzar e juntar domínios inusitados
e, assim, suspender dualidades, traz à tona e coloca em debate um sincretismo de novo tipo: um sincretismo em
movimento. [...] O sincretismo na religião vem deixando de ter necessária ou exclusivamente, um lugar fixo de
hibridação e passou a se constituir, também, no deslocamento de diferenças híbridas, como uma das novas condições
da experiência espiritual, neste final de século” (Luz, 1998: 5).
26 É importante lembrar aqui que o “estoque de conhecimento”, ou seja, a bagagem de informações ou repertório de
comunicação que um errante Nova Era possui é informado pela literatura, filosofia, psicologia, sociologia, medicina,
crenças orientais e livros nova-eristas propriamente ditos, no melhor estilo bricoleur, pois os elementos desses vários
discursos são rearranjados numa síntese coerente do ponto de vista interno, e não conforme um único discurso
entendido como o discurso autorizado (Schutz, 1979).
26
acordo com Enzo Pace: “neste círculo místico que eu estabeleço entre diversas
‘províncias de significado’ religioso, de áreas culturais diferentes, a síntese visível é
feita pelo indivíduo e pelo grupo do qual sente que faz parte” (Pace, 1996: 6).
A lógica dentro da qual opera o errante da Nova Era é inclusiva e não exclusiva.
Desse modo, interpretá-la segundo as chaves teóricas do holismo ou do individualismo
metodológicos seria perder o “éter de ambivalência” que envolve as ações dos errantes
– lembrando que essas expressam o “clima do mundo”, modelando-o também (ou seja,
a relação entre religião e sociedade é de mão dupla). Nas redes da Nova Era aparece um
forte componente relacional em que o eu só pode ser construído junto com os outros –
fato que fica evidente a partir dos processos comunicativos que constituem as relações
sociais que se apresentam nessas redes e as constituem e, ao mesmo tempo, pelo
horizonte comum da fundação de um tempo novo a partir da transformação pessoal que
perpassa toda a diversidade característica desse tipo de religiosidade. Por outro lado, o
fato de não possuir um caráter institucional vem sugerindo a associação entre a Nova
Era e a exacerbação do individualismo moderno. Entretanto, é preciso lembrar que a
esse último está intimamente ligada a idéia de realização da liberdade como autonomia
individual, ou seja, as relações sociais são orientadas segundo a lei da equivalência
contábil ou ausência de dívida. Mas, a caracterização geral do movimento Nova Era não
corrobora tal relação. Deste modo, referimo-nos ao individualismo dos nossos dias,
representado pelas relações sociais da Nova Era, como afetivo, pois nele hibridizam-se
características do individualismo clássico ou moderno como a valorização da liberdade
individual, mas esta não se realiza pela via do contrato social – ou seja, pela escolha
voluntária de limites da ação individual que organizam/permitem a vida social – e sim
pela via da dádiva na qual a solidariedade típica do tradicional viver em comunidade
reveste-se em gestos “espontaneamente obrigados”. Em outras palavras, aparece a
liberdade como dívida ou a liberdade obrigatória de dar, receber e retribuir como valor
fundante do vínculo social. Portanto, não se trata de uma ausência de valores – anomia
ou bárbarie pós moderna, como um diagnóstico apressado pode demonstrar –, mas da
construção de valores que resguardam significados diferenciados daqueles que vigiam,
ao menos como um dever ser, em nossas sociedades, ditas modernas, que recuperam e
revitalizam o sentido da dádiva.
O sacrifício Universal e as redes da Nova Era nos oferecem ao olhar formas de
sociação e de troca não cristalizadas e centradas em torno das efervescências coletivas e
27
produtoras de comunidades afetivas27. Estas formas de troca não são um mero produto
da vida social, muito menos um simples fator de reprodução da ordem estabelecida, são,
tal como o princípio de reciprocidade, o ato mesmo de produção da vida. Por isso mais
do que descrever o circuito de dádivas implicados no agir em redes, como usualmente
se faz, ou mesmo explicá-lo, parece que o melhor caminho é compreendê-lo, talvez
mais ainda apreendê-lo, por isso falarmos em nódulos de dádivas e em comunidades
afetivas.
Como diz Montes, “no fundo temos que aceitar essa condição de objeto de um
saber que o outro nos traz” e, assim, mostrar “que nossa solidariedade e possibilidade de
reciprocidade está não apenas nessa humildade que é a virtude maior que a
Antropologia tem que ensinar para gente (...) o que faz a nossa humanidade é a
capacidade de troca ou de reciprocidade” não sendo necessário ir em busca de outra
ética, senão esta que é o “único fundamento das sociedades humanas” (Montes, 1994:
43).
Considerando o provérbio javanês: “outros campos”, “outros gafanhotos”,
provavelmente só nos resta fechar este nosso pequeno debate ficcional pois, tal como já
foi dito a Sahib, até o final o que existem são tartarugas sobre tartarugas! Até o final são
nódulos de dádivas!
27 De toda a discussão precedente, associando os rituais da IURD ao sacrifício, de um lado, e a
diversidade de práticas da Nova Era à reconfiguração do individualismo, de outro, fica patente
a possibilidade de cruzamentos nessas associações. Dito de outro modo: é possível ver a lógica
do sacrifício articulando as práticas do errante da Nova Era, bem como a reconfiguração do
individualismo na IURD. Entretanto, dados os limites de tempo e de fôlego do paper a ser
apresentado, optamos por trabalhar esta segunda possibilidade num outro momento.
28
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