O ensino da Liturgia nas faculdades, seminários e casas de

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O ensino da Liturgia nas faculdades, seminários e casas de
1 O ensino da Liturgia nas faculdades, seminários e casas de formação depois da
Sacrosanctum Concilium
Roma, 19 fevereiro 2014
Introdução
A promoção de uma educação litúrgica dos cristãos é um veemente convite da
Sacrosanctum Concilium (SC 14-19). Formar para a Liturgia significa consentir a
entrada no mistério cristão. A Liturgia não é tanto uma doutrina a compreender, mas
uma fonte de luz e de vida para a inteligência e a experiência do mistério. Ela «é a
primeira e necessária fonte onde os fiéis hão-de beber o espírito genuinamente cristão.
Esta é a razão que deve levar os pastores de almas a procurarem-na com o máximo
empenho, através da devida educação»1. A tão necessária educação litúrgica a que
referem os números já citados tem de ser lidos à luz do número 7 da SC 2, apresentando
uma visão teológica da Liturgia, centrada no mistério pascal de Cristo e a sua acção
salvífica na Igreja.
A concretização prática de tal desejo do Concílio passa pela formação
teológico-litúrgica, espiritual e pastoral de todos, em especial pela formação dos
pastores. «É um campo em que muito falta ainda por fazer: ou seja, para ajudar os
sacerdotes e os fiéis a compreenderem o sentido dos ritos e dos textos litúrgicos, para
aperfeiçoar a dignidade e a beleza das celebrações e dos locais; e para promover, à
maneira dos Padres da Igreja, uma “catequese mistagógica” dos sacramentos»3.
1
SC 14.
«Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na sua igreja, especialmente nas acções
litúrgicas. Está presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro - «o que se oferece agora
pelo ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu na Cruz» -quer e sobretudo sob as espécies
eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos Sacramentos, de modo que, quando alguém baptiza,
é o próprio Cristo que baptiza. Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a
Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: «Onde
estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18,20). Em tão grande obra,
que permite que Deus seja perfeitamente glorificado e que os homens se santifiquem, Cristo associa
sempre a si a Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca o seu Senhor e por meio dele rende culto ao
Eterno Pai. Com razão se considera a Liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo. Nela, os
sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação dos homens; nela, o Corpo
Místico de Jesus Cristo - cabeça e membros - presta a Deus o culto público integral. Portanto, qualquer
celebração litúrgica é, por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, acção sagrada
par excelência, cuja eficácia, com o mesmo título e no mesmo grau, não é igualada por nenhuma outra
acção da Igreja» (SC 2).
3
J. PAULO II, Vicesimus quintus annus 21.
2
2 A necessidade urgente da formação litúrgica é também recordada pela exortação
apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa: «... é necessário um grande esforço de
formação. Tendo como finalidade favorecer a compreensão do verdadeiro sentido das
celebrações da Igreja e ainda uma adequada instrução sobre os ritos, tal formação
requer uma autêntica espiritualidade e a educação para vivê-la em plenitude. Por
conseguinte, há que promover ainda mais uma verdadeira “mistagogia litúrgica”, com
a participação ativa de todos os fiéis, cada qual segundo as próprias competências, nas
ações sagradas, particularmente na Eucaristia»4.
A educação litúrgica passa também através de uma catequese que favoreça o
conhecimento do significado da liturgia e dos sacramentos. «Embora a sagrada liturgia
seja principalmente culto de majestade divina, é também abundante fonte de instrução
para o povo fiel. Efectivamente, na liturgia Deus fala ao seu povo, e Cristo continua a
anunciar o Evangelho. Por seu lado, o povo responde a Deus com o canto e a oração»5.
A catequese litúrgica6 «explica o conteúdo das orações, o sentido dos gestos e dos
sinais, educa para a participação activa, para a contemplação e para o silêncio. Deve
ser considerada como “uma forma eminente de catequese”»7.
Enfim, a educação litúrgica está intimamente ligada à participação activa dos
fiéis (clérigos, religiosos e leigos) e deve ser realizada tendo em conta «a idade,
condição, género de vida e grau de cultura religiosa»8 de cada um.
Educar à participação no mistério não é somente uma animação litúrgica.
Trata-se de uma verdadeira pastoral litúrgica, no sentido de ser uma ciência e uma arte
de tornar os sinais da liturgia profundamente comunicativos e de ser um momento de
reflexão sistemática sobre a actividade litúrgica da Igreja.
Procurarei apresentar o tema que me foi proposto em três perspectivas: 1.
Educação litúrgica e ciência litúrgica; 2. O ensino da Liturgia nas Faculdades,
Seminários e Casas de formação; 3. A mistagogia litúrgica.
4
J. PAULO II, Ecclesia in Europa 73.
SC 33.
6
«Procure-se também inculcar por todos os modos uma catequese mais directamente litúrgica, e
prevejam-se nos próprios ritos, quando necessário, breves admonições, feitas só nos momentos mais
oportunos, pelo sacerdote ou outro ministro competente, com as palavras prescritas ou semelhantes».
(SC 35).
7
CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, Directório geral da catequese n. 71, Secretariado Nacional da
Educação Cristã, Lisboa 1998, 80.
8
SC 19.
5
3 1. Educação litúrgica e ciência litúrgica
A Sacrosanctum Concilium ratificou o Movimento Liturgico e indicou os altiora
principia9 para um itinerário em ordem à renovação teológico-litúrgica da Igreja. Estas
linhas de força educativas, especialmente para a formação dos futuros sacerdotes, não
podem basear-se unicamente no ensino teórico da Liturgia, mas na experiência e
mistagogia do mistério de Cristo.
R. Guardini já o apontava em 1923, ao escrever: «a Liturgia não está
relacionada somente ao conhecimento, mas à realidade. É verdade que existe uma
ciência específica, a ciência litúrgica, no qual vem implícita o conhecimento do
significado do evento litúrgico»10. Por outras palavras, é a realidade da fé e da
evangelização que na acção litúrgica se renova. A Liturgia é acção privilegiada onde
acontece o encontro com Cristo. «Verdadeiramente, na Constituição sobre a Sagrada
Liturgia, primícias daquela "grande graça de que a Igreja beneficiou no século XX", o
Concílio Vaticano II, o Espírito Santo falou à Igreja, orientando incessantemente os
discípulos do Senhor "para a verdade integral" (Jo 16, 13)»11.
O grande objectivo da Reforma Litúrgica «foi suscitar uma espiritualidade e uma
pastoral que tenham como cume e fonte a Liturgia»12e como refere a própria
Sacrosantum Concilium «é desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem
àquela plena, consciente e activa participação nas celebrações litúrgicas que a própria
natureza da Liturgia exige e que é, por força do Baptismo, um direito e um dever do
povo cristão, “raça escolhida, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido” (1 Ped.
2,9; cfr. 2, 4-5). (...) Mas, porque não há qualquer esperança de que tal aconteça, se
antes os pastores de almas se não imbuírem plenamente. do espírito e da virtude da
Liturgia e não se fizerem mestres nela, é absolutamente necessário que se providencie
em primeiro lugar à formação litúrgica do clero»13.
A releitura do Concílio e pós-Concílio acontece entre a Reforma e a educação,
ou melhor entre o culmen e a fons como expressão e experiência da fé da Igreja. O Papa
Francisco sublinha-o, ao dizer: «A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da
9
Desta constituição conciliar podemos enumerar alguns fundamentos teológico‐litúrgicos, chamados também os altiora principia (grandes princípios): 1) o exercício do sacerdócio de Cristo; 2) a Liturgia como vértice e fonte da vida cristã; 3) a participação plena, consciente e activa; 4) a epifania da Igreja; 5) a unidade substancial e a adaptação litúrgica às culturas; 6) a sã tradição e um progresso legítimo; 7) a língua; 8) a presença da Palavra de Deus; 9) a formação litúrgica; 10) o canto e arte sacra. 10
R. GUARDINI, Formazione litúrgica, Milano 1988, 17.
11
J. PAULO II, Spiritus et Sponsa 1.
12
C. VAGAGGINI, «Spiritualitá sacerdotale e spiritualità litúrgica», Rivista Liturgica 52 (1965) 285.
13
SC 14.
4 Liturgia, que é também celebração da actividade evangelizadora e fonte dum renovado
impulso para se dar»14.
A educação litúrgica é decisiva, porque a participação activa, plena, consciente e
frutuosa na celebração, fundada na estrutura sacramental da Igreja e no sacerdócio de
Cristo é um direito e um dever de todos os fiéis. A urgência da necessidade de promover
a educação litúrgica dos pastores e do povo cristão é condição para a meta da reforma
liturgica, ou seja, a participação activa e consciente de todos.
2. O ensino da Liturgia nas Faculdades, Seminários e Casas de formação
É sabido que, desde o Concílio Vaticano II, a liturgia aparece como uma cadeira
principal no curriculum do estudo da teologia. De facto, a primeira constituição
conciliar releva o lugar teológico do ensino da liturgia, apresentando-a como uma das
principais disciplinas teológicas: «A sagrada Liturgia deve ser tida, nos seminários e
casas de estudo dos religiosos, como uma das disciplinas necessárias e mais
importantes, nas faculdades de teologia como disciplina principal, e ensinar-se nos
seus aspectos quer teológico e histórico, quer espiritual, pastoral e jurídico. Mais:
procurem os professores das outras disciplinas, sobretudo de teologia dogmática,
Sagrada Escritura, teologia espiritual e pastoral, fazer ressaltar, a partir das
exigências intrínsecas de cada disciplina, o mistério de Cristo e a história da salvação,
para que se veja claramente a sua conexão com a Liturgia e a unidade da formação
sacerdotal»15. Este número 16 da SC estabelece a Liturgia entre as disciplinas
necessárias e mais importantes, sendo mesmo disciplina principal.
Antes do Concílio, a Liturgia era compreendida como um rubricismo, um
amontoado de leis e preceitos a executar, através dos quais a hierarquia eclesiástica
ordenava o desenvolvimento dos ritos sagrados. Esta mentalidade já tinha sido
reprovada por Pio XII, na encíclica Mediator Dei et Hominum de 1947.
De facto, a Liturgia deve ser entendida e ensinada de modo interdisciplinar. A
mesma visão aparece no decreto conciliar Optatam Totius: «A teologia dogmática
ordene-se de tal forma que os temas bíblicos se proponham em primeiro lugar.
Exponha-se aos alunos o contributo dos Padres da Igreja oriental e ocidental para a
Interpretação e transmissão fiel de cada uma das verdades da Revelação, bem como a
história posterior do Dogma tendo em conta a sua relação com a história geral da
14
15
FRANCISCO, Evangelii Gaudium 24.
SC 16.
5 Igreja. Depois, para aclarar, quanto for possível, os mistérios da salvação de forma
perfeita, aprendam a penetra-los mais profundamente pela especulação, tendo por guia
Santo Tomás, e a ver o nexo existente entre eles. Aprendam a vê-los presentes e
operantes nas acções litúrgicas e em toda a vida da Igreja. (...)A sagrada Liturgia,
que deve ser tida como a primeira e necessária fonte do espírito verdadeiramente
cristão, ensine-se segundo o espírito dos artigos 15 e 16 da Constituição “De sacra
liturgia”»16. Para alguns, o decreto OT não é tão incisivo como a Constituição SC, por
colocar a Liturgia depois da Sagrada Escritura, da Patrística, da Dogmática, da Teologia
moral, do Direito canónico e da História da Igreja.
O sagrado Concílio do Vaticano II determinou ainda acerca da formação dos
professores de Liturgia: «os professores que se destinam a ensinar a sagrada Liturgia
nos seminários, nas casas de estudos dos religiosos e nas faculdades de teologia, devem
receber a formação conveniente em ordem ao seu múnus em institutos para isso
especialmente destinados»17. A formação das pessoas destinas a ensinar Liturgia não é
apenas em ordem à transmissão de conteúdos, mas em vista da participação activa,
consciente, plena, frutuosa na Liturgia.
Devemos manifestar o nosso reconhecimento e o nosso agradecimento ao
enorme contributo que oferecem à formação dos professores de Liturgia os Institutos de
Liturgia, de modo especial gostaria de relevar os Institutos superiores de Liturgia:
L’Institut Supérieur de Liturgie di Paris (desde 1956); il Pontificio Istituto Liturgico
(desde 28.01.1961); l’Istituto di Liturgia Pastorale di Santa Giustina di Padova (desde
1966); l’ Instituto Superior de Liturgia di Barcelona (desde 1986).
A educação litúrgica, com efeito, não se reduz a ensinar como se celebra, mas
sobretudo a compreender a teologia da celebração, o que se celebra, o porquê e o para
que se celebra na Liturgia. Educar liturgicamente é uma iniciação às orações e às
atitudes fundamentais da celebração, isto é, à linguagem e ao simbolismo do louvor, da
escuta, da ritualidade, do canto e do silêncio. Os futuros e os actuais presidentes das
assembleias litúrgicas necessitam de uma educação cuidada e permanente no espírito da
Liturgia. Tudo isto em ordem a criar uma personalidade litúrgica, como sublinhava R.
Guardini, sob o modelo único de Cristo. Efectivamente, «o esforço desta acção pastoral
centrada na Liturgia deve tender a fazer viver o Mistério pascal, no qual o Filho de
Deus encarnado, tendo-Se tornado obediente até à morte de cruz, é de tal modo
16
17
OT 16.
SC 15.
6 exaltado na Ressurreição e Ascensão que pode comunicar ao mundo a sua vida divina,
a fim de que os homens mortos para o pecado e configurados com Cristo já não vivam
para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou»18.
O estudo da Liturgia, qual reflexão teológica sobre a fé celebrada, tem como
objectivo a compreensão profunda da celebração da comunidade cristã, a partir do
próprio rito e da sua componente eucológica e simbólico-ritual. A metodologia própria
da ciência litúrgica traduz-se em “ritus et preces”, cuidadosamente predispostos e
usados de modo interdisciplinar, conforme a feliz expressão da Instrução de 1965: «a
liturgia, porque actualiza a própria redenção, reúne na vital síntese de uma mesma
acção o exercício da fé, o conhecimento da teologia e a prática da moral; assim no
cumprimento de uma só acção ela sintetiza os múltiplos aspectos da vida cristã»19.
É importante relembrar e persuadir que a SC se propôs «não tanto mudar os
ritos e os textos litúrgicos, como sobretudo suscitar aquela formação dos fiéis e
promover aquela acção pastoral que tenha como vértice e fonte a Sagrada Liturgia.
Efectivamente, visam este fim as modificações até agora introduzidas ou ainda a
introduzir na Sagrada Liturgia»20.
O convite insistente à educação litúrgica nas faculdades de teologia, nos
seminários e nas casas de formação está bem patente nos documentos posteriores à
Constituição Sacrosanctum Concilium:
A. 1964 – a Instrução Inter Oecumenici da Sagrada Congregação dos Ritos e do
Consilium;
B. 1965 – Decreto Conciliar Optatam Totius sobre a formação dos Presbíteros;
C. 1965 – a Instrução Doctrina et Exemplo sobre a formação litúrgica dos
seminaristas, da Sagrada Congregação dos Seminários e das Universidades
dos Estudos;
D. 1970 e 1985
– a Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis da
Congregação para a Educação Católica;
E. 1976 – A formação teológica dos futuros sacerdotes da Congregação para a
Educação Católica;
F. 1979 – A Sapientia Christiana de João Paulo II;
18
IO 6.
SACRA CONGREGAZIONE DEI SEMINARI E DELLE UNIVERSITÀ DEGLI STUDI, Istruzione
Doctrina et exemplo, 6.
20
IO 5.
19
7 G. 1979 – a Instrução In Ecclesiasticam Futurorum sobre a formação litúrgica
nos Seminários, da Congregação para a Educação Católica;
H. 1980 – a carta circular sobre alguns aspectos mais urgentes da formação
espiritual dos Seminários, da Congregação para a Educação Católica;
I. 1982 – Catecismo da Igreja Católica, II parte: a celebração do mistério
cristão (1066-1690
J. 1992 – Exortação apostólica Pós-sinodal Pastores Dabo Vobis de João Paulo
II;
No que respeita à docência da Liturgia, verifica-se uma grande variedade e
disparidade em relação ao curriculum académico: Há Faculdades, seminários e casas de
formação onde a cadeira de Liturgia só tem direito a uma ou duas horas por um
semestre de leccionação, outras apresentam-na em dois semestres denominando de
Introdução à Liturgia e Liturgia fundamental, como a Conferência Episcopal Italiana21.
Em raras excepcões aparece em três semestres, como por exemplo em Portugal.
Todavia, a questão não está no número de horas concedidas á Liturgia, mas na
interdiciplinariedade que deve existir no curriculum académico. A necessidade de
integrar é urgente. As disciplinas continuam desconessas e devem estar em profunda
conexão com a Liturgia e a unidade da formação teológica, em especial a formação
sacerdotal e religiosa.
Na verdade, segundo a repartição das diciplinas teológicas em principais,
secundárias e especiais na Cosnstituição apostólica Deus scientiarum Dominus de Pio
XI em 1931, a liturgia era uma disciplina secundária e comportava só uma hora à
semana por um semestre. A SC mudou radicalmente esta mentalidade. A complexidade
desta disciplina é evidenciada nos documentos citados por ser de âmbito
interdisciplinar. Por esta razão, o ensino da Liturgia exige uma colaboração
interdiciplinar para a entender na história da salvação e no mistério da Igreja e na
unidade orgânica entre o seu ensino e a celebração mesma da Liturgia. Contudo, nota-se
uma maior preocupação pelo aspecto pastoral da Liturgia que pelo aspecto científico,
como que a quere passar de imediato às conclusões.
Após a reforma litúrgica do Vaticano II, multiplicou-se a bibliografia sobre o
mistério celebrado na liturgia. Existem muitos estudos e monografias sobre a sagrada
21
CONFERENZA EPISCOPALE ITALIANA, La formazione dei Presbiteri nella Chiesa Italiana.
Orientamenti e norme per i seminari, Roma, 32007.
8 liturgia22, aos quais (mais de 20 obras) devemos muito daquilo que agora apresentamos
como instrumentos de informação e de formação na renovação litúrgica e eclesial numa
fidelidade às fontes bíblicas, patrísticas, litúrgicas e magisterais.
A constituição Sacrosanctum Concilium do II Concílio do Vaticano, é,
indiscutivelmente, o fruto maduro de uma história mais que centenária, que viu
convergir as insistências provenientes do mundo da investigação teológica, histórica e
litúrgica, assim como, da experiência litúrgica da tradição monástica e da paciente acção
pastoral de muitos responsáveis no ministério. Por conseguinte, o mesmo Concílio
refere neste documento a centralidade da Liturgia: «a Liturgia é simultaneamente a
meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua
força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se
tornaram filhos de Deus pela fé e pelo Baptismo se reúnam em assembleia para louvar
a Deus no meio da Igreja, participem no Sacrifício e comam a Ceia do Senhor....»23.
A Liturgia, qual voz de autoridade «per ritus et preces»24, tem a capacidade de
se autodefinir, porque «a liturgia não é um objecto para reformar, mas um sujeito capaz
de renovar a vida da Igreja»25 e «é pois mister, antes de mais, apreender aquele acto
vivo, pelo qual o fiel compreende, recebe e executa os santos “sinais sensíveis da graça
22
ADAM, A., Corso di liturgia, Brescia 42000; AUGÉ, M., Liturgia. Storia, celebrazione, teologia,
spiritualità (Universo teologia 11), Cinisello Balsamo (Milano) 52003.); ASSOCIAZIONE
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Sistematica 8), Bologna 1989; ROSSO, S., Un popolo di sacerdoti. Introduzione alla liturgia, Leumann
(Torino) 22007; SABERSCHINSKY, A., La liturgia, fede celebrata. Introduzione allo studio della
liturgia, Brescia 2008.
23
SC 10.
24
SC 48.
25
BENTO XVI, Discurso aos participantes do IX Congresso Internacional de Liturgia a propósito dos 50
anos do Pontifício Instituto Litúrgico, Roma, Sala Clementina do Palácio Apostólico, 6 de Maio de 2011.
9 invisível”. Trata-se em primeiro lugar de “formação litúrgica” não de informação
litúrgica, embora dela se não deva separar»26.
3. A mistagogia litúrgica
A educação em chave mistagógica, própria do primeiro milénio, recupera-se e
apresenta-se a Teologia litúrgica através do mistério de Cristo e da história da salvação
com o mistério celebrado e a centralidade do mistério pascal de Cristo atualizado na
assembleia orante. Nenhuma aula de teologia ou de teologia litúrgica pode substituir a
experiência do mistério que se celebra na ação litúrgica.
A mistagogia é um modo de fazer teologia, já que, «o método base desta
teologia é a tipologia bíblica»27. Frequentemente, entende-se por mistagogia, a
explicação dos ritos litúrgicos ou a catequese sobre os sacramentos com particular
incidência na Iniciação Cristã. Contudo, esta não pode ser entendida somente no âmbito
da catequese ou espiritualidade, mas deve ser considerada como verdadeira e própria
teologia, ou melhor, uma teologia litúrgica para a inteligência progressiva da iniciação
ao mistério. A celebração dos mistérios é em si mesma iniciação aos mistérios, isto é, a
liturgia inicia ao mistério, celebrando o próprio mistério, porque ao celebrá-lo, o
mistério revela-se e dá-se a conhecer.
Na literatura patrística, a mistagogia é um género literário que busca o sentido da
celebração litúrgica, é a acção de conduzir ao mistério, ou melhor ainda, é a acção pela
qual o mistério conduz os iniciados ao cristianismo. A partir da liturgia, a mistagogia
com o seu método tipológico não é só uma mera iniciação a esta, mas é uma
compreensão do único mistério de Cristo contido nas Escrituras e celebrado na acção
litúrgica, correspondendo-se, mutuamente, a dialéctica da promessa e do cumprimento.
A metodologia usada pela patrística pretende atingir a mesma finalidade com a tipologia
bíblica, pelo que, a mistagogia é a tipologia aplicada aos sacramentos.
Podemos afirmar como Triacca: «a finalidade da formação litúrgica do futuro
sacerdote é aquela de fazer compreender que não pode existir separação entre a
ciência litúrgica aprendida, a formação teórica doutrinal e a prática litúrgica, ou seja,
26
R. GUARDINI, Sinais sagrados, Editorial Franciscana, Braga 1962, 10-11.
E. MAZZA, La mistagogia. Le catechesi liturgiche della fine del quarto secolo e il loro metodo (BELS
46), Edizioni Liturgiche, Roma 21996, 9.
27
10 entre o ser conduzido dentro da realidade da Liturgia – mistagogia – e o seu estado;
numa palavra entre formação e informação»28.
A Liturgia, como indica a etimologia da palavra é ação. Não só se educa à
Liturgia, mas a Liturgia educa a partir dela mesma, endereçando-se mais à corporeidade
que à razionalidade como uma sinergia de toda a pessoa com todas as suas capacidades,
enquanto celebra e reza.
«Nos seminários e casas religiosas, adquiram os clérigos uma formação
litúrgica da vida espiritual, mediante uma conveniente iniciação que lhes permita
penetrar no sentido dos ritos sagrados e participar perfeitamente neles, mediante a
celebração dos sagrados mistérios, como também mediante outros exercícios de
piedade penetrados do espírito da sagrada Liturgia. Aprendam também a observar as
leis litúrgicas, de modo que nos seminários e institutos religiosos a vida seja totalmente
impregnada de espírito litúrgico»29.
A educação acontece na participação. A própria celebração é a escola mais
eficaz da educação litúrgica. A Liturgia é em si mesma mistagógica e introduz ao
mistério celebrando o próprio mistério. Ela pode converter-se numa escola permanente
da fé e da oração, ou melhor na primeira escola da fé30, que educa verdadeiramente para
o primado da graça. A mistagogia é, com efeito, o nutrir-se da Liturgia que se celebra e
o guiar para o Mistério pascal de Cristo.
Há urgente necessidade de educar para ars celebrandi e para a beleza da liturgia
na arte para a liturgia. A arte de celebrar não pode contemplar só a execução fiel das
rubricas e normas litúrgicas, mas a capacidade de interpretar o programa celebrativo às
exigências da fé e da comunidade cristã. Os próprios livros litúrgicos, de modo especial,
os preliminares, são uma séria e simples pedagogia da celebração, bela e plena de
sentido.
Além disso, educar os futuros sacerdotes para a presidência, não é concentrar
tudo em si. Educar a presidir significa educar à transparência da beleza da liturgia. Cada
celebração do mistério deve abrir ao ministério de quem preside in persona Christi e in
nomine Ecclesiae. A sacramentalidade e a ministerialidade servem para mostrar Cristo
28
A.M. TRIACCA, «A propósito della recente istruzione sulla formazione liturgica nei seminari»,
Notitiae 15 (1979) 632.
29
SC 17.
30
J.M.CORDEIRO, Liturgia, a primeira escola da fé. Carta pastoral por ocasião do Ano da Fé, Lisboa
2012.
11 na celebração litúrgica dos seus mistérios «ad docendum Christi mysteria»31, qual
prolongamento real da história da salvação na vida da Igreja.
Conclusão
Na preparação para o Jubileu do ano 2000, João Paulo II propôs como exame
de consciência este princípio: ver se «é vivida a Liturgia como “fonte e cume” da vida
eclesial, segundo o ensinamento da Sacrosanctum Concilium?»32. E, a 40 anos de
distância da constituição conciliar, o Papa interrogava: «até que ponto a Liturgia entrou
na vida concreta dos fiéis e marca o ritmo de cada uma das comunidades? É vista como
um caminho de santidade, força interior do dinamismo apostólico e da missionariedade
eclesial?»33.
Viver a Liturgia e partilhá-la com os irmãos é o desafio lançado aos pastores:
«ajudem-se os sacerdotes, quer seculares quer religiosos, que já trabalham na vinha do
Senhor, por todos os meios oportunos, a penetrarem cada vez melhor o sentido do que
fazem nas funções sagradas, a viverem a vida litúrgica, e a partilharem-na com os fiéis
que lhes estão confiados»34.
A máxima importância da vida em Cristo que parte da Liturgia foi recordada
pela exortação pós sinodal Pastores Dabo Vobis: «para a formação espiritual de todo e
qualquer cristão, e especialmente do sacerdote, é inteiramente necessária a educação
litúrgica, no pleno sentido de uma inserção vital no mistério pascal de Jesus Cristo
morto e ressuscitado, presente e operante nos sacramentos da Igreja»35.
A Liturgia está na origem do desenvolvimento e da consumação da própria vida
cristã. Esta é a vida segundo o Espírito, coerente com Ele. À Liturgia é dado o lugar de
«culmen et fons»36 da ação da Igreja. Da mesma Liturgia vem a santificação dos homens
em Cristo e a glorificação de Deus, que constituem a estrutura teândrica da Liturgia, a
atuação objetiva do evento salvífico.
A mistagogia litúrgica é a continuação e a actualização do mistério de Cristo e
da história da salvação, celebrada por meio dos ritos e dos sinais. A liturgia não é só
memória mas presença no “hodie” litúrgico; ela celebra sempre o mistério de Cristo que
31
J. JANINI (ed.), Liber Ordinum Episcopal, 99 (Cod. Silos, Arch. Monástico, 4) (Studia Silensia 15),
Abadía de Silos, 1991, 96.
32
J. PAULO II, Tertio Millennio Adveniente 36.
33
J. PAULO II, Spiritus et Sponsa 6.
34
SC 18.
35
J. PAULO II, Pastores Dabo Vobis 48.
36
SC 10.
12 «…é sempre igual e igual na sua plenitude. Revela-se na sua plenitude e não nos seus
desenvolvimentos. O desenvolvimento é humano, a plenitude é divina»37.
Nunca é demais recordar Paulo VI, no discurso de clausura da 2ª sessão do
Vaticano II, a 04.12.1963, ao afirmar solenemente: «não ficou sem fruto a discussão
difícil e intrincada, pois um dos temas – o primeiro a ser examinado e o primeiro, em
certo sentido, na excelência intrínseca e na importância para a vida da Igreja – o da
sagrada Liturgia, foi felizmente concluído e é, hoje, por nós solenemente promulgado.
Exulta o nosso espírito com este resultado. Vemos que se respeitou nele a escala de
valores e dos deveres: Deus, em primeiro lugar; a oração, a nossa primeira obrigação;
a Liturgia, fonte primeira da vida divina que nos é comunicada, primeira escola da
nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos oferecer ao povo cristão que junto a
nós crê e ora, e primeiro convite dirigido ao mundo para que solte a sua língua muda
em oração feliz e autêntica e sinta a inefável força regeneradora, ao cantar connosco
os divinos louvores e as esperanças humanas, por Cristo Nosso Senhor e no Espírito
Santo»38.
A Liturgia é decisiva, não exclusiva, na transmissão da fé. O desafio permanece,
fazer da Liturgia, que é «exercício do sacerdócio de Jesus Cristo»39, a fonte e o vértice
da vida espiritual de todos os fiéis.
+ José Manuel Garcia Cordeiro
Bispo de Bragança-Miranda
37
O. CASEL, Presenza del mistero di Cristo. Scelta di testi per l’anno liturgico (Meditazioni 115),
Queriniana, Roma 1995, 34.
38
PAULO VI, «Discurso na clausura da 2ª sessão do II Concílio do Vaticano (04.12.1964)», AAS 56
(1964) 34.
39
SC 7.

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