direitos humanos de seguridade social

Transcrição

direitos humanos de seguridade social
DIREITOS HUMANOS
DE SEGURIDADE SOCIAL
uma garantia ao estrangeiro
Priscila Gonçalves de Castro
Advogada (OAB/SC). Doutoranda pela Universidad de Alicante — Espanha.
Mestra em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí — UNIVALI.
Autora do livro: Teoria Geral do Direito Internacional Previdenciário.
DIREITOS HUMANOS
DE SEGURIDADE SOCIAL
uma garantia ao estrangeiro
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Projeto de Capa: GRAPHIEN DIAGRAMAÇÃO E ARTE
Impressão: PAYM GRÁFICA E EDITORA
Outubro, 2014
Versão impressa - LTr 5111.6 - ISBN 978-85-361-3126-9
Versão digital - LTr 8492.3 - ISBN 978-85-361-3158-0
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Castro, Priscila Gonçalves de
Direitos humanos de seguridade social : uma garantia ao estrangeiro / Priscila Gonçalves
de Castro. — São Paulo : LTr, 2014.
Bibliografia.
1. Direitos fundamentais 2. Direitos humanos 3. Seguridade social I. Título.
14-09532
CDU-342.7:368.4
Índice para catálogo sistemático:
1. Direitos humanos e seguridade social :
Direito
342.7:368.4
Aos meus pais, Claudio e Cleidy, que fazem
tudo valer a pena.
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, que me
guiou nesta jornada;
Ao Doutor Paulo Márcio Cruz, meu eterno
agradecimento pela oportunidade de fazer parte
da equipe do PPCJ-UNIVALI, local no qual
obtive o suporte para ingressar no magistério;
Ao Professor Doutor José Antonio Savaris, sou
grata pelo estímulo, auxílio e orientação durante
todo o curso de mestrado;
Aos meus amigos da vida acadêmica, Camila Stohrer,
Carlos Henrique Ferreira, Charles Armada, Lucas Prado,
Maria Raquel Duarte, Oscar Valente Cardoso e Rafael Waldrich,
meu muito obrigada pelo apoio e por compartilharem comigo
todas as alegrias e anseios que somente o mestrado pode trazer;
À CAPES, pelo fundamental apoio financeiro.
Sumário
rol de abreviaturas e siglas........................................................... 11
Apresentação — Wladimir Novaes Martinez......................................... 13
Prefácio — José Antonio Savaris.............................................................. 15
INTRODUÇÃO.............................................................................................. 21
Capítulo 1 — OS DIREITOS HUMANOS E SUA RELAÇÃO COM OS
DIREITOS SOCIAIS.............................................................................. 1.1. Perspectiva histórica dos direitos humanos.......................................... 1.2. A internacionalização dos direitos humanos......................................... 1.3. Conceituação dos direitos humanos..................................................... 1.4. pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sob
o enfoque da seguridade social.............................................................. 1.5. Dimensões dos direitos humanos.......................................................... 1.5.1. Primeira dimensão: direitos de liberdade.................................. 1.5.2. Segunda dimensão: direitos de igualdade................................. 1.5.3. Terceira dimensão: direitos de solidariedade e fraternidade..... 1.5.4. Quarta dimensão: direitos decorrentes da globalização............ 1.5.5. Quinta dimensão: direitos virtuais............................................ Capítulo 2 — Direitos fundamentais à luz da Constituição Brasileira.......................................................................................... 2.1. Direitos fundamentais no ordenamento jurídico interno: a posição e o
significado dos direitos fundamentais na constituição de uma nação... 2.2. A concepção dos direitos fundamentais na Constituição de 1988........ 2.3. O princípio da dignidade da pessoa humana........................................ 2.4. O princípio da universalidade: o direito dos estrangeiros na titularidade
dos direitos fundamentais no Brasil...................................................... 2.5. Refugo humano: o tratamento ao estrangeiro em busca de melhores
chances.................................................................................................. 9
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Capítulo 3 — Os direitos sociais como direito fundamental:
uma garantia ao estrangeiro................................................. 3.1. A Seguridade Social à luz da Constituição Brasileira............................ 3.2. O direito à Saúde................................................................................... 3.3. O direito à Assistência Social: uma garantia também ao estrangeiro.... 3.4. O direito à Previdência Social: acordos internacionais......................... 3.4.1. Princípios aplicáveis.................................................................. 3.5. Separação dos Poderes........................................................................... 3.6. Mínimo existencial................................................................................ 3.7. Reserva do possível............................................................................... 3.8. Decisões consequencialistas: crítica econômica.................................... 3.9. Atuação do Judiciário e a justiciabilidade............................................. 85
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Considerações Finais.......................................................................... 129
Referências bibliográficas.............................................................. 133
Anexos
Anexo 1 — Acordos Bilaterais....................................................................... 139
Anexo 2 — Estimativa do número de brasileiros em cada país no ano .
de 2012.................................................................................................. 141
Anexo 3 — Tabela 1....................................................................................... 145
Anexo 4 — Tabela 2....................................................................................... 147
Anexo 5 — Tabela 3....................................................................................... 149
Anexo 6 — Tabela 4....................................................................................... 152
Anexo 7 — Tabela 5....................................................................................... 155
Anexo 8 — Tabela 6....................................................................................... 158
10
Rol de Abreviaturas e Siglas
a.C.
ac
AISS
APS
Art.
CAPES
CEJURPS
CLPS
cf
CTPS
DOU
EC
ed.
IBGE
INSS
LOPS
Mercosul
MPAS
MPS
N.
OIT
ONU
p.
Pidesc
RGPS
stf
stj
TRF4
Unesco
univali
v.
Antes de Cristo
Apelação Cível
Associação Internacional da Seguridade Social
Agência da Previdência Social
Artigo
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Centro de Ciências Jurídicas e Sociais
Consolidação da Legislação de Previdência Social
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
Carteira do Trabalho e Previdência Social
Diário Oficial da União
Emenda Constitucional
Edição
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Instituto Nacional do Seguro Social
Lei Orgânica da Previdência Social
Mercado Comum do Sul
Ministério da Previdência e Assistência Social
Ministério da Previdência Social
Número
Organização Internacional do Trabalho
Organização das Nações Unidas
Página
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
Regime Geral de Previdência Social
Supremo Tribunal Federal
Superior Tribunal de Justiça
Tribunal Regional Federal da 4ª Região
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
Universidade do Vale do Itajaí
Volume
11
Apresentação
ublicações sobre os direitos humanos são muito comuns e bem ilustrativas
na medida em que impulsionam as tentativas diuturnas de consumação desses
direitos.
Publicações sobre a seguridade social, em particular a respeito da Previdência
Social são em número e relevância ainda maiores; elas dão ênfase às prestações.
Todavia, não são tantas as pesquisas universitárias ou doutrinárias que versam
sobre a interligação dessas duas garantias excepcionais do ideário humano que
esteja presente nas Constituições.
Não é possível pensar em tais pretensões materiais, que tratam da pessoa.
humana, sem instrumentalizá-las e o mais notável meio de atingimento dessa quimera
dos idealistas, como a jovem autora, é por meio da seguridade social como um todo.
À evidência, a seguridade social não é tão somente o desejo e a concessão de
benefícios pecuniários sustentadores à existência humana: diz respeito ao exercício
desses direitos quando eles corporificam a dignidade da pessoa humana.
Avultar o elo umbilical entre as duas conquistas do século XX e que avança
ambiciosamente neste século XXI, de modo simples e ordenado, técnico e científico,
com fundamento em boa doutrina, é a tarefa a que se propôs Priscila Gonçalves de
Castro com esta obra.
Lendo-a é perceptível o esforço intelectual que a autora empreendeu e como
atingiu um resultado alvissareiro, nos convencendo que esse é o caminho a ser
percorrido.
Depois de desenvolver os aspectos fundamentais dos direitos humanos em
vários capítulos ela aflorou a seguridade social e seus meandros na busca de um
vínculo entre essa técnica protetiva a consecução desses ambiciosos direitos, sem
os quais o cidadão não desfruta da dignidade humana.
Culminou com capítulo dedicado aos acordos internacionais, já desenvolvido
em livro anterior, com a mesma eficácia, trazendo resumos raramente encontrados em
outros trabalhos. Resta, inevitavelmente, agradecer a autora por esse esforço hercúleo que virá
a enriquecer nossa bibliografia e despertar o interesse dos jovens para esse estudo.
Wladimir Novaes Martinez
Advogado especialista em Direito Previdenciário.
Consultor em Previdência Social.
Autor de mais de 65 livros didáticos.
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Prefácio
estudo dos direitos humanos interpela o sujeito do conhecimento com uma
interrogação fundamental, preliminar e que lhe irá conduzir durante o processo
de construção do saber: até que ponto é possível condicionar a eficácia desses
direitos que constituem a personalidade e consagram o respeito à vida em todas
as suas dimensões em nome de interesses comunitários que também podem ser
reconhecidos como válidos, importantes para a sustentabilidade econômica e, pretensamente, para a coesão social?
Um outro modo de se colocar a questão seria perguntar até que ponto ou em
que circunstâncias uma determinada sociedade pode, de fato, fazer respeitar integralmente os direitos humanos reconhecidos em tratados e convenções internacionais cuja entidade política ratificou. Como ficam os direitos humanos quando
inconvenientes às razões de Estado?
O discurso de proteção dos direitos humanos e fundamentais, de afirmação da
dignidade da pessoa humana e de garantia do mínimo existencial apresenta uma
inescapável e mui importante relação com as contingências de crise socioeconômica,
política e moral. A tensão entre os direitos humanos e interesses comunitários,
pode-se dizer, encontra determinado equilíbrio nos momentos de relativa estabilidade institucional. Quando as condições sociais, econômicas e políticas favorecem
a proteção desses direitos, em que pesem possam ser violados aqui e acolá, para
eles não faltam remédios jurídicos eficazes destinados a assegurar a sua proteção.
Mas, em momentos de crise, emergem os estados de exceção e, com eles,.
lesões irreversíveis — e de toda ordem — aos direitos humanos. Historiam isso
todas as luzes e tintas dedicadas a marcar o horror nazista e as mazelas sociais e
humanas da Segunda Guerra Mundial. Há poucos anos atrás, em se tratando da
história da humanidade, foram então os direitos humanos afetados até que violados.
em seu núcleo. Subestimados, desvalorizados, desconsiderados, por fim. Essa.
manifesta e histórica violação aos direitos humanos constitui objeto de um escândalo universal que não se pretende jamais seja esquecido.
Uma suposta crise gerou restrições e, por fim, supressão dos direitos humanos,
do direito à própria vida, inclusive e especialmente. Mas, justamente a suposta crise
social que, pela banalização das injustiças, engendra ou uma autêntica crise de
proteção dos direitos humanos, seguiu ao ponto ótimo no qual emerge o demorado
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despertar civilizatório. O despertar do intransigente e universal respeito à dignidade
da pessoa humana e aos direitos que conformam seu mínimo existencial. Sem embargo, as violações dos direitos humanos em nome dos estados de
exceção, revestidos estes da couraça das razões de Estado, pode-se dizer, sem que
se incorra em leviandade, estão aí hoje em todas as partes. É a suspensão de direitos
civis em nome da segurança. A extinção de direitos políticos com o pretenso objetivo
de estabilidade política ou transição democrática. Estão aí os mais de cinquenta
milhões de pessoas refugiadas, sem teto, sem chão, sem água, sem a menor expectativa quanto ao amanhã, sem projetos de vida.
Talvez de modo menos nítido e, justamente por esta razão, sem repercutir a
indignação necessária para deflagrar o moroso despertar civilizatório, a violação
aos direitos humanos econômicos sociais e culturais, direitos considerados pelos
conservadores como variáveis inconvenientes em termos econômico-orçamentários, acaba por se camuflar nos sedutores discursos da escassez de recursos, de austeridade e de responsabilidade fiscal. O falacioso discurso de que é necessário olhar
para as gerações seguintes, como se não fosse necessário olhar também para a geração presente e como se não fosse possível, de modo sustentável, tratar ambas com
justiça e com respeito a seus direitos mais fundamentais. Como se o orçamento.
não fosse feito por escolhas, como se a “copa das copas” constituísse um dever
público inderrogável, como se a cláusula da concretização progressiva dos direitos
sociais se tornasse um cheque em branco para o legislador e como se a reserva do
possível fosse um álibi legitimante da ausência de ou insuficiência das políticas
públicas destinadas a realizar os direitos humanos econômicos, sociais e culturais.
Como se as escolhas não pudessem ser controladas pelas instâncias judiciárias.
e como se estas, por dizerem a última a palavra, pudesse manejar a retórica com
falácias que não se sustentam às primeiras reflexões; como se também elas pudessem criar, desde as imaginações criadas por discursos ad terrorem, razões de Estado
identificadas como prioridades em relação aos direitos humanos. A violação aos direitos humanos econômicos, sociais e culturais, por todas
essas razões, não mobiliza nosso senso de justiça na mesma intensidade daquela
perpetrada contra os direitos humanos civis e políticos. E quanto menos quando
parece predominar o discurso, de leitura não tão clara assim, de que esses direitos
são contingentes, isto é, dependem, para sua concretização, de boas circunstâncias
socioeconômicas, de ventos favoráveis, da conveniência política.
Esses aspectos propiciam um ambiente político-jurídico que torna difícil discernir-se entre as restrições proporcionais e as violações injustificadas dos direitos
humanos econômicos, sociais e culturais.
Pois bem. À pergunta “como ficam os direitos humanos quando inconvenientes às razões de Estado”, posta no preâmbulo deste texto, a Professora Priscila
Gonçalves de Castro, no trabalho que tenho a honra de prefaciar, tendo presente
a primazia dos direitos humanos, respondeu que eles devem ser integralmente
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respeitados. Ainda assim e sempre. Nossa autora toma posição. Marca com faixas
largas a esfera de proteção dos direitos humanos de seguridade social. Preocupa-se
com os invisíveis socialmente; inquieta-se com a falta ou insuficiência de proteção
social ao lado fraco, às parcelas mais vulneráveis de nossa mui desigual sociedade.
Indo além, aponta as vicissitudes institucionais na proteção dos direitos humanos de
seguridade social, analisando criticamente a realidade social, o sistema normativo
e a orientação jurisprudencial. Ademais, argumenta como devem ser compreendidos esses direitos que, em que pese subestimados pela main stream, inegavelmente
detêm a carga genética de direitos humanos e fundamentais e, portanto, devem ser
levados a sério.
Ao tempo em que à autora auguro ainda mais sucesso, felicito aos leitores
pela adesão à reflexão acadêmica por ela provocada, ainda que possam, por mais
variadas razões, com ela não concordar. José Antonio Savaris
Juiz Federal da 3ª Turma Recursal do Paraná.
Doutor em Direito da Seguridade Social pela USP.
Mestre em Direito Econômico Social pela PUC-PR.
Professor do Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ciência Jurídica da UNIVALI.
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“Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão
sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam.”
Grande Sertão: Veredas,
João Guimarães Rosa
Introdução
inquestionável o fato de que “é impossível fazer pesquisa científica de forma
totalmente alheia à ideologia do pesquisador”. Não há como sermos estudantes
isentos de valores, porém, a postura metodológica será neutra, na medida da ideologia de cada um que, ao se dispor a realizar um trabalho, acaba lhe conferindo a
paixão necessária para a concretização da pesquisa almejada. Ademais, não se tem
a pretensão de querer que as informações desta obra sejam tidas como verdades
absolutas; a humildade científica está em todos os momentos deste projeto, “até
porque certezas absolutas são discutíveis até mesmo nas ciências exatas”, o que, de
forma alguma, deixaria a pesquisadora isenta dessa possibilidade(1).
Afirmar que “toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego,
a condições justas e favoráveis de trabalho […] direito à segurança em caso de.
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios
de subsistência fora de seu controle […]”, e que esses direitos devem ser garantidos
por meio de “uma ordem social e internacional”, traz, num primeiro momento,
alívio e conforto em saber que todos possuem garantias básicas asseguradas para
conseguir viver com dignidade.
Essas disposições estão arroladas na Declaração Universal dos Direitos.
Humanos(2), a qual ainda garante que “toda pessoa tem o direito de ser, em todos
os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei”. Contudo, ao analisarmos esses pontos com olhar mais atento, veremos que infelizmente isso não é algo tão.
simplório. O núcleo dessa revolucionária declaração é na realidade uma utopia,
mas, apesar de tudo, deve ser alcançada.
A ONU reconhece que em todo o mundo há 195 países, e dentre os quais, 192
já ratificaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual surgiu como
um Código de Princípios, garantias mínimas e valores universais que devem ser
(1) MENDONÇA, Jorge André de Carvalho. A judicialização da saúde. In: SAVARIS, José Antonio;
STRAPAZZON, Carlos Luiz (Coords.). Direitos fundamentais da pessoa humana: um diálogo latino-americano. Curitiba: Alteridade, 2012. p. 249-250.
(2) Declaração universal dos direitos humanos. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/
legis_intern/ ddh_bib_inter_universal.htm>.
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respeitados pelos Estados em relação a todas as pessoas, independentemente da
sua nacionalidade. Todavia, infelizmente, não se vislumbra a ocorrência da efetivação dos valores que nela estão expressos.
De outro norte, não deve-se admitir o desrespeito a esses direitos básicos e, a
partir do momento em que a Administração Pública não cumpre as suas normas
de garantias básicas às pessoas, necessário será vislumbrar respostas jurisdicionais
efetivas.
Muitas vezes, o que se vê são ações individuais, isoladas, as quais, apesar
do elevado número nas estatísticas do Judiciário, ainda representam a minoria da.
população. Tendo em vista que diversas garantias dos nacionais são desrespeitadas,
falar da sua concessão para os estrangeiros(3), para muitos, acaba sendo incoerente.
Mas não deveria. As garantias fundamentais não devem ter distinção de nacionalidade; não se pode restringir o acesso à Saúde, ao trabalho, à Previdência e à.
Assistência Social. Todo e qualquer ser humano tem direito a uma vida plena e com
dignidade, e isso ultrapassa qualquer fronteira territorial.
Dessas considerações prévias é que se desenvolve o presente livro, que tem
como objetivo científico, de forma geral, investigar os direitos à Seguridade Social,
sob o prisma da sua essência, que são os Direitos Humanos, buscando saber como
eles se caracterizam, quais cidadãos eles abrangem e as suas consequências jurídicas, uma vez que deveriam ser assegurados e concedidos independentemente da
nacionalidade da pessoa, mas sim a partir do momento em que são preenchidos os
requisitos para a sua concessão.
Como objetivos específicos, pretende-se analisar a perspectiva histórica, compreendendo a internacionalização e o conceito dos Direitos Humanos; estudar o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sob o enfoque da
Seguridade Social; examinar os Direitos Fundamentais no ordenamento jurídico
interno e o seu significado na Constituição de uma Nação, com enfoque na Carta
Política de 1988; assimilar o real significado dos princípios da dignidade da pessoa
humana e da universalidade sob o enfoque de garantia dos direitos sociais no Brasil
aos estrangeiros; descrever os direitos à Seguridade Social: Saúde, Assistência Social
e Previdência Social e demonstrar a necessidade da sua extensão a toda e qualquer
(3) A palavra portuguesa “estrangeiro” é um empréstimo do francês antigo estrangier (atual étranger),
atualmente étrange, que significa “estranho”. Das raízes do latim, esse termo deriva do extraneus, que
significa “quem era de fora”. Na língua espanhola, “raro” significa “estranho”. Tais conceitos deixam
evidente que a expressão “estrangeiro” acaba trazendo uma carga de distinção e até mesmo de preconceito entre quem é nacional e quem não é. Todavia, vivemos em uma sociedade que está caminhando
de mãos dadas com a globalização e isso significa que o deslocamento de trabalhadores entre Nações
vem ocorrendo em grande número e de forma natural. Por tal motivo, há quem critique a utilização da
expressão “estrangeiro” para definir aquele que não é nacional; tendo em vista que esse termo é ainda
o mais comum e recorrente na atualidade, ele será utilizado no decorrer desta obra.
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pessoa, independentemente da nacionalidade; investigar em seus aspectos gerais a
separação dos Poderes, o mínimo existencial e a reserva do possível para, ao fim,
trazer a atuação do Judiciário e a justiciabilidade dos direitos da Seguridade Social.
A validade da pesquisa decorre da atualidade do tema. O deslocamento de
pessoas é algo que ocorre desde o início dos tempos, porém, o Brasil está sendo
receptáculo de um elevado número de imigrantes, além do fato de que muitos
brasileiros que buscavam a sorte em outras Nações estão retornando ao seu país de
origem, em virtude do atual desenvolvimento econômico. Contudo, existe ainda.
uma escassez de posicionamento doutrinário em face da matéria, tornando-a.
assim, objeto de estudo pouco debatido e conhecido por grande parte dos.
cidadãos.
Neste ponto, é sensato destacar que a doutrina específica a respeito do tema é
praticamente inexistente (com exceção da doutrina do Professor Wladimir Novaes
Martinez), e a jurisprudência nacional é escassa, sendo essa a razão pela qual não
haverá muitas variedades de fontes neste trabalho. Porém, tal fato não impedirá em
nada a riqueza desta pesquisa.
Mesmo que com premissas distintas, a temática deste trabalho guarda relação
com a obra Teoria Geral do Direito Internacional Previdenciário, publicado pela LTr
Editora.
A obra será dividida em três capítulos, com a finalidade de dar maior clareza
e organização no desenvolvimento da investigação e compreensão do conteúdo.
Para tanto, principia-se, no Capítulo 1, tratando de apresentar a evolução histórica dos Direitos Humanos, que está ligada ao respeito ao ser humano em escala
mundial. No campo da implementação de tais direitos, a Liga das Nações Unidas,
a Organização Internacional do Trabalho e o Direito Humanitário são marcos desse
desenvolvimento.
Todavia, os Direitos Humanos tiveram relevante destaque no momento do
pós-Segunda Guerra Mundial, quando se passou a ter uma preocupação com o
rumo que a sociedade tomava e com quais seriam as garantias mínimas que cada
pessoa deveria possuir.
Nesse contexto, em 1945, originou-se a Carta das Nações Unidas, que instituiu a Organização das Nações Unidas (ONU) e, consequentemente, contextualizou as garantias almejadas. Vislumbra-se o surgimento de direitos básicos, que
vão nascendo e se desenvolvendo de acordo com cada momento da sociedade..
Assim, os direitos sociais, que são o núcleo deste trabalho, surgirão somente com a.
chamada “segunda dimensão”, a qual tratou dos direitos de igualdade e do Estado
de bem-estar social.
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No Capítulo 2, a preocupação será a de abordar os Direitos Fundamentais
no ordenamento jurídico interno e a sua relevância perante a Carta Magna. Nessa
quadra da obra, o fio condutor arrola que os Direitos Fundamentais são Direitos
Humanos reconhecidos no ordenamento jurídico interno por autoridades que possuem o poder político de editar normas.
Com efeito, a proposta foi arrolar o conceito e o papel que os direitos sociais
possuem na Constituição Federal de 1988 e sequencialmente trabalhar com dois
princípios essenciais nela previstos: o da dignidade da pessoa humana e o da universalidade.
A expressão “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
em direitos” está disposta na Declaração Universal da ONU, de 1948. Ademais,
todo e qualquer ser humano, pelo simples fato de ser pessoa, é titular de direitos
e deveres fundamentais. Por essa razão, esse capítulo acaba sendo concluído com
a abordagem dos refugos humanos, que são os deslocamentos de estrangeiros que
buscam melhor sorte em outras terras, e terminam gerando uma grande preocupação:
um país deve garantir e custear a concessão e efetivação dos Direitos Humanos,
principalmente dos direitos sociais, a um estrangeiro?
Para responder a essa pergunta, conclui-se a presente pesquisa com o Capítulo 3, que traz um enfoque social e busca demonstrar o direito do estrangeiro à
Seguridade Social, e, assim, o acesso às suas subdivisões: Saúde, Assistência Social
e Previdência Social. Sequencialmente, analisar-se-á a problemática da separação
dos Poderes, do mínimo existencial, da reserva do possível, decisões consequencialistas e atuação do Poder Judiciário, finalizando, assim, este estudo, que investigou as garantias de acesso de toda e qualquer pessoa aos direito mínimos para
uma vida com dignidade.
Esta obra se encerra com as Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados. Assim, com esse roteiro, espera-se alcançar o
intuito que motivou preferência por este estudo, qual seja a aplicação dos conhecimentos e a estimulação à continuidade dos estudos sobre os Direitos Humanos de
Seguridade Social no Brasil: uma garantia ao estrangeiro.
Quanto à metodologia empregada, adotou-se na fase de investigação o método(4) indutivo(5), operacionalizado com as técnicas do referente(6), das catego(4) “Método é forma lógico-comportamental na qual se baseia o Pesquisador para investigar, tratar os
dados colhidos e relatar os resultados.” (PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica e metodologia
da pesquisa jurídica. 10. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2007. p. 206.)
(5) “Método Indutivo: base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em pesquisar e
identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral.”
(PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica e metodologia da pesquisa jurídica. 10. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2007. p. 238.)
(6) “Referente: explicação prévia do motivo, objetivo e produto desejado, delimitando o alcance.
temático e de abordagem para uma atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” (PASOLD,
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rias(7), do fichamento(8), e da pesquisa de fontes bibliográficas(9). O modo de relato
utilizado foi o dedutivo(10).
Este livro contou com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior — CAPES, a partir de março de 2012, até julho de
2013.
Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica e metodologia da pesquisa jurídica. 10. ed. Florianópolis: OAB/
SC, 2007. p. 242.)
(7) “Categoria: palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma ideia.” (PASOLD,
Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica e metodologia da pesquisa jurídica. 10. ed. Florianópolis: OAB/
SC, 2007. p. 229.)
(8) “Técnica que tem como principal utilidade otimizar a leitura na Pesquisa Científica, mediante a
reunião de elementos selecionados pelo Pesquisador que registra e/ou resume e/ou reflete e/ou analisa
de maneira sucinta, uma Obra, um Ensaio, uma Tese ou Dissertação, um Artigo ou uma aula, segundo
Referente previamente estabelecido.” (PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica e metodologia
da pesquisa jurídica. 10. ed. Florianópolis: OAB/SC, 2007. p. 201-202.)
(9) “Pesquisa Bibliográfica: Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas
legais.” (PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica e metodologia da pesquisa jurídica. 10. ed.
Florianópolis: OAB/SC, 2007. p. 239.)
(10) “Método Dedutivo: base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em estabelecer
uma formulação geral e, em seguida, buscar as partes do fenômeno de modo a sustentar a formulação
geral.” (PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica e metodologia da pesquisa jurídica. 10. ed.
Florianópolis: OAB/SC, 2007. p. 237.)
25
Capítulo 1
oS direitoS HumAnoS e SuA relAção
com oS direitoS SociAiS
“Não necessitamos caridade, o que queremos é
uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.”
José.Saramago
Este.capítulo.procede.à.análise.dos.Direitos.Humanos.e.a.sua.relação.com.os.
direitos.sociais..Investigar-se-ão,.neste.momento,.os.pontos.históricos.da.origem.
e.evolução.de.tais.direitos,.visando.ressaltar.seu.conceito,.a.análise.dos.direitos.
econômicos,.sociais.e.culturais.e,.por.fim,.as.suas.dimensões.
É.importante.ressalvar.que,.apesar.da.grandiosidade.do.tema,.será.realizada.
uma.abordagem.sucinta,.tendo.em.vista.as.limitações.deste.trabalho,.razão.pela.
qual.serão.abordados.apenas.os.principais.marcos.necessários.para.o.desenvolvimento.desta.obra.
1.1.
PeRSPectIVA hIStÓRIcA doS dIReItoS huMANoS
Para.que.se.possa.compreender.o.surgimento.dos.Direitos.Humanos,.necessário.se.faz.retroceder.às.suas.origens.históricas,.analisando,.inicialmente,.os.fatores.
que.os.originaram.e.as.consequências.da.sua.evolução.e.transformação.que.desencadearam.a.sua.efetivação.
O.que.se.conta,.nestas.escassas.páginas,.é.a.parte.mais.bela.e.essencial.de.toda.
a.História:.a.revelação.de.que.todos.os.seres.humanos.são.dignos.de.igual.respeito,.
por.serem.capazes.de.amar,.descobrir.a.verdade.e.criar,.apesar.de.todas.as.diferenças.biológicas.e.culturais.que.os.distinguem.entre.si..Trata-se.do.reconhecimento.
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universal de que ninguém pode afirmar-se superior aos demais, independentemente
do gênero, da etnia, da classe social, do grupo religioso ou nação(1).
Na análise dos Direitos Humanos(2) faz-se imperioso observar diversos pontos como a religião, a filosofia e a evolução da sociedade. Verifica-se que, durante
o período axial da História (800 a.C. a 200 a.C.), criou-se a ideia de igualdade
essencial entre os homens, mas foram necessários 25 séculos para que a primeira
organização internacional viesse a proclamar que “todos os homens nascem livres
e iguais em dignidade e direitos”(3).
A origem da liberdade e da igualdade é permeada de antigas crenças religiosas
e culturais ao redor do mundo, sendo que o primeiro registro de uma declaração de
Direitos Humanos foi o Cilindro de Ciro, escrito por Ciro, o Grande, rei da Pérsia
(atual Irã), por volta de 539 a.C.(4).
A convicção de que todos os seres humanos possuem o direito de serem
igualmente respeitados, pelo simples fato de sua humanidade, desenvolveu-se,.
basicamente, em razão da lei escrita, que, como regra geral, acaba sendo aplicada
a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada(5).
Segundo o jurista Fábio Comparato(6):
[…] foi na Grécia, mais particularmente em Atenas, que a preeminência da
lei escrita tornou-se, pela primeira vez, o fundamento da sociedade política. Na democracia ateniense, a autoridade ou a força moral das leis escritas
suplantou, desde logo, a soberania de um indivíduo ou de um grupo ou
classe social, soberania esta tida doravante como ofensiva ao sentimento de
liberdade do cidadão. Para os atenienses, a lei escrita é o grande antídoto
contra o arbítrio governamental, pois, como escreveu Eurícledes na peça
As Suplicantes (versos 434-437), “uma vez escrita as leis, o fraco e o rico
gozam de um direito igual; o fraco pode responder ao insulto do forte, e o
pequeno, caso esteja com razão, vencer o grande”.
(1) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 1.
(2) Segundo Flávia Piovesan, “Sempre se mostrou intensa a polêmica sobre o fundamento e a natureza
dos direitos humanos — se são direitos naturais e inatos, direitos positivos, direitos históricos ou, ainda,
direitos que derivam de determinado sistema moral. Este questionamento ainda permanece intenso no
pensamento contemporâneo”. (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2004. p. 123.)
(3) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 12.
(4) CASTRO, Priscila Gonçalves de. Teoria geral do direito internacional previdenciário: acordos internacionais no direito previdenciário brasileiro. São Paulo: LTr, 2011. p. 70.
(5) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 12.
(6) Idem, p. 13.
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De tal evidência, denota-se ainda que a dignidade da pessoa existe em cada ser
humano. Nesse sentido, acresce Celso Lafer(7) ao informar que “o individualismo é
parte integrante da lógica da modernidade, pois o mundo não é um cosmos — um
sistema ordenado — mas sim um agregado de individualidades isoladas que são a
base da realidade”.
Ademais, segundo a reflexão filosófica, o homem não é um ser permanente e
imutável, mas sim um constante devir; a sua personalidade acaba sendo moldada
por todo o peso do passado, em função do momento histórico em que vive e pelo
fato de já nascer com uma visão de mundo moldada por todo um passado coletivo
carregado de valores, crenças e preconceitos(8).
De acordo com Flávia Piovesan(9), Direitos Humanos não são um dado, mas
um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e
reconstrução. E esse processo de compreensão e de valorização da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, em grande parte da História, tem sido
conquistado às custas da dor física e do sofrimento moral de muitas pessoas(10).
Ensina o catedrático italiano Norberto Bobbio(11) que “os direitos humanos
nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos
particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direito), para,
finalmente, encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais”.
Sequencialmente, na história, surge o moderno Estado constitucional que
possui como núcleo-base o reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa
humana(12). Ingo Sarlet(13), peremptoriamente, explica acerca do surgimento de um
dos primeiros documentos que abordam valores de Direitos Humanos:
[…] É na Inglaterra da Idade Média, mais especificamente no século XIII,
que encontramos o principal documento referido por todos que se dedicam
ao estudo da evolução dos direitos humanos. Trata-se da Magna Charta
Libertatum, pacto firmado em 1215 pelo rei João Sem-Terra e pelos bispos
e barões ingleses. Este documento, inobstante tenha apenas servido para
(7) LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1981. p. 120.
(8) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 29.
(9) PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2004. p. 123-124.
(10) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 38.
(11) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004. p. 30.
(12) SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008. p. 42.
(13) Idem, p. 47-48.
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garantir aos nobres ingleses alguns privilégios feudais, alijando, em princípio, a população do acesso aos “direitos” consagrados no pacto, serviu
como ponto de referência para alguns direitos e liberdades civis clássicos,
tais como o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade. Todavia, em que pese possa ser considerado o mais importante documento da época, a Magna Charta não foi nem o único, nem o primeiro,
destacando-se, já nos séculos XII e XIII, as cartas de franquia e os forais
outorgados pelos reis portugueses e espanhóis.
A percepção da realidade axiológica transformou, como não poderia deixar de
ser, toda a sociedade. Os Direitos Humanos começaram a ser vistos como valores
primordiais da convivência humana, aqueles sem os quais as sociedades acabam
perecendo, fatalmente, por um processo irreversível de desagregação(14).
Acerca da história da conquista dos Direitos Humanos, Luigi Ferrajoli(15) afirma
que
[…] a luta pelos direitos não é apenas um instrumento de defesa dos.
direitos violados. É também lugar e momento de elaboração e reivindicação
de novos direitos, pela tutela de novas carências individuais ou coletivas.
Pode-se tranquilamente afirmar que não houve nenhum direito fundamental, na história do homem, que tivesse caído do céu ou nascido de uma
escrivaninha, já escrito e confeccionado nas cartas constitucionais.
Com base nessa evolução, a Constituição francesa de 1848, retomando o.
espírito de certas normas das Constituições anteriores de 1791 e 1793, reconheceu
algumas exigências econômicas e sociais. Todavia, a plena afirmação desses novos
Direitos Humanos só veio a ocorrer no século XX, com a Constituição mexicana
de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919(16).
No entanto, não há como negar que o reconhecimento dos Direitos Humanos
de caráter econômico e social foi o principal benefício que a humanidade recolheu
do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX(17).
Marcos Leite Garcia(18) relata que Nicolas López Calera “sempre insistiu,
tanto em sala de aula com em [sic] sua obra, que o índice de respeito aos Direitos.
(14) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 26.
(15) FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006. p. 869-870.
(16) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008. p. 54.
(17) Idem, p. 54.
(18) LOPEZ CALERA, Nicolás. Filosofía del derecho (I). p. 206, apud GARCIA, Marcos Leite. O processo de formação do ideal dos Direitos Fundamentais: alguns aspectos destacados da gênese do conceito.
Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/XIVCon gresso/052.pdf>.
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