PDF PT - REBEN

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PDF PT - REBEN
PODER, I NTERDEPEN DÊNCIA E COM P LE M ENTARI DADE NO TRABALHO
HOSPITALAR: UMA ANÁLISE A PARTI R DA E N FERMAGEM
POWER.
INTERDEPENDENCE.
COMPLEMENTARINE))
IN
HOWITAL
LABOR:
AN
ANALY)I) fROM NUR)ING.
Marta Julia Marques Lopes
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R E S U M O : O e n s a i o e m q u estão propõe-se a d i s c u tir a s rec e n tes tra n sformações d o
tra balho h o spitalar e d o tra balho d e e n ferm a g e m e m particular. As a nálises
privile g i a m a s relações i n ter e i ntra e q u i pes m ultidisciplin a re s c o n stitutivas d a s
práticas e nvolv i d a s n o processo tera pêutico presentes n o espaço-te m po
h o spitalar.
U N IT E R M O S : Poder - E n ferm a g e m - I n terd e p e ndência no tra balho h o spitalar.
A BS T R A C T : This essay i n t e n d s t o d iscuss rece n t tra n sformation both to h o spital work
a n d n ursi n g work specifically.
A nalysis privileg e i n ter a n d i ntra relations with
m ultidiscipli n a ry tea m s w h i c h is c o nstituted of practices on the t h erapeutic process
prese n t i n h o s pital s p a c e-ti m e .
K E Y W O R DS : Power - N ursi n g - I n terd e p e n d e n c e i n h o s pital work .
GRU POS PROFISSIONAIS, PODER E TRABALHO HOSPITALAR 2
o hospital é u m com plexo cenário q u e con g rega as transformações e deixa
vislumbrar as novas p roposições das p ráticas terapêuticas. Ele coloca frente a
frente g ru pos p rofissionais clássicos e emerg entes. Base e sustentação da
prática médica , legitimidade social lhe foi suficiente por longo tempo. Uma base
técn ica de respaldo e um "auxiliariado" eficiente foi o com plemento. Mas a
com plexidade crescente , advinda dos p rog ressos técn icos de d iversas á reas da
ciência q u e se i nteg ram aos avanços da med ici n a , confronta n ovas e m ú ltiplas
especialidades profissionais que i ntrodu zem a i nterdependência e q u ebram com
a exclusividade médica da assistência no p rocesso saúde-doença .
1
2
Professora Adjunta da Escola de Enfermagem/UFRGS. Doutora em Sociologia.
O centro de interesse deste artigo resid� efetivamente nas inter-relações cotidianas do trabalho
hospitalar. Com isso ressalto que não me proponho a discutir a estrutura burocrático­
administrativa do hospital e sim as reinvenções cotidianas do trabalho terapêutico.
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LOPES, Marta Julia Marques
A concepção da relação saúde-doença como um processo , como um fato
social , por si só introduz n u ances na relação assistencia l . A m u ltiplicidade de
fatores que determina o adoecer e o ter saúde lim ita a potência médico­
terapêutica que se embasa apenas na doença enquanto um d istú rbio do corpo
ou do psiqu ismo, fragmentando a g lobalidade do i n d ivíduo e do sujeito social . A
prática terapêutica não se restringe ao tratamento do fígado do senhor X ou da
sen hora Y, com d rogas m i lag rosas ou cirurg ias competentes , conseq üência
apenas das mãos mág icas dos ciru rg iões .
Assistir (cu idar e tratar) torna-se pouco a pouco u m processo de cooperação
e interdependência , e a com plementaridade se dá entre as disputas de espaço e
a imposição de interesses d iversos dos d iferentes segmentos profissionais no
seio da organ ização hospitalar. É, portanto, a dimensão coletiva do processo
terapêutico que se consolida .
É fato que a i mportância dos g ru pos profissionais e o reconhecimento de sua
colaboração nesse processo está estre itamente l igada ao prestígio e ás
aquisições constru ídas ao longo do tempo. Ass i m , no meio da saúde os méd icos
têm vantagens e leg itim idade não só simbólicas mas ig ualmente em d i reitos e
em uma leg islação do trabalho estrutu rada a seu favor. Com isso, a profissão
méd ica , bem estrutu rada na sociedade e no meio i n stitucional, perm ite aos
médicos tirar proveito e adotar atitudes amparadas nessa trajetória legitimada.
A enfermagem (auxiliares , técn icas, enfermeiras 3 ) , por sua vez, está menos
"armada" para as d isputas de espaço e para a consolidação do seu saber.
Majoritariamente m u lheres , as enfermei ras u niversitárias e a enfermagem
atestam as n u ances de gênero que estrutu ram a d ivisão sexual e as relações de
trabalho na saúde. A d ivisão sexual do trabalho se exprime no trabalho de
enfermagem e n o trabalho hospitalar de uma forma gera l . As relações
h ierárq u icas e a seg regação dos serviços, de postos e fu nções atestam que o
setor hospitalar sou be tira r proveito das "qualidades" fem i n inas.
As auxiliares d e enfermagem são aquelas q u e no meio do cu idado hospitalar4
se encontram em posição menos confo rtável enquanto categoria sócio­
profissional . A "acomodação" aos regu lamentos do hospital aparece como u m
refú g io seg u ro para elas, garantia de u ma existência aceitável 5 . Confo rme
Bouvier, o reg u lamento é a l itu rg ia centra l onde se encontra a coerência dos
papéis. Os reg u lamentos encontrados em todos os setores do hospital se
colocam ao mesmo tem po como um " livro de suplícios" , pois cod ificam o
trabalho, os horá rios , as h ierarq u ias e como "cou raça p rotetora", pois reproduz
os d i re itos dos agentes, os l i m ites , os deveres, o respeito m í n imo ao qual as
d i reções e todo o pessoal do comando lhes deve .
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Refiro-me a essas categorias no feminino, já que são compostas majoritariamente por mulheres.
O cuidado e o cuidar constituem as pràticas e a ação da enfermagem .
P. Bouvier, Le travail au quotidien : une démarche socio-anthropologique, Paris, P . U . F . , 1 989.
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p ,l d er , l /l t c r d e p C I/ Lt ê n c i ll (' C O l1l p l t! JIl C l l t ll r i d a d r . . .
o hospital joga m u ito com a i n teg ração dos trabalhadores dentro d e u ma
lóg ica do sistema q u e se soma a u m con stra n g i m e nto m o ra l forte . Q u anto às
auxil iares de enfermagem e mesmo às enfe rm e i ras, elas atestam essa
i nteg ração, passa ndo a idéia d e u m a coletividade valoriza nte .
E mais, em meus estudos e m p í ricos6 pude con cl u i r q u e essa fachada de
seg u rança reg u lamentar do hospita l , do serviço, é constitu ída por princípios que
conjugam sobretud o u ma certa h o mogeneidade d e pensamento q u a nto à fu nção
do hospital e sua ação fren te aos valores da vid a , à ética , etc. Assim , essa
estrutu ra não se con stit u i p ropriamente em rígidas con d utas de trabal h o no
cotid iano. Pude tam bém n ota r q u e existe nos h os p ita i s u m a "seg u nda o rdem " ,
u m "por de baixo d o pano" q u e perm ite a d i na m icidade n ecessária para fazer
frente ao imprevis íve l . As auxiliares são a liadas d a s enfermeiras u n iversitária s ,
con stitu indo u m sistem a de bargan h a q u e fu nciona eficientemente. Elas não
recorrem aos méd icos , mas sim às enfermeiras a n tes d e tudo . S e essa conduta
foi , a p rincípio, i nfluenciada pela h ierarq u ia (baseada n o n ível d e formação) , ela
é hoje adm itida como d ivisão técn ica e p roteção dos espaços e
responsabil idades de cada u m . Principalmente as a u x i l i a res se sentiam m u ito
v u l ne ráveis na relação com os méd icos e condenadas a obedecer. A eq u i pe de
enfermagem parece con stitu i r um contexto de d ivisão com p lementa r e u m
espaço proteg ido no q u a l a enfe rm e i ra é a responsáve l .
Interdisciplinaridade e interdependência
H istoricamente , o méd ico consolidou sua d o m i n ação (saber-poder) no setor
hospitalar e da saú d e , e essa domi nação acabou por sed imenta r u m a imagem
clássica da enfermagem e n q u a nto traba l h o a u x i l iar. N o entanto , a força dos
cotid ianos nos m ostra que essas velhas imagens coab itam h oje em dia com a
resistência , com n ovas faces do trabal h o e dos agentes do cu idado.
O hospital poss i b i l ita i n te rações de atores com d iferentes papéis 7 . Ao mesmo
tempo q u e m u l h e res, as enfermeiras e a u x i l iares são técn icas , assumem
m ú ltiplos papéis e con stroem d iferentes relações entre elas, i n terprofissionais,
com o doente , com os fam i l ia re s , e ntre outras .
Todas a s relações p resentes n o hospita l são , como p u d e observar n a s
i nterações de traba l h o , constitutivas de u ma enfermagem q u e tenta se
rei n ventar. A trama dessas relações confronta a e n fermagem - e sobretudo as
enfermeiras (mais proteg idas no cam po das d i s putas pela posse do d i ploma
u n iversitá rio) - com a efetividade d o seu saber (e não só com o seu fazer),
6
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Este trabalho é u m ensaio origi n á rio de d u a s monografias desenvolvidas e m , d o i s g randes
complexos hospitalares d a cidade de Porto Alegre e q u e servira m de base empírica para nossa
tese de d outora mento em sociolog i a na U n iversidade de Paris VI I . A a bordagem metodológica é
do tipo etnosociológica , com proced i m entos de coleta j unto a q u atro u n idades de enfermagem
privilegiando a observação participante , as d i scussões de g ru po e as entrevistas individuais,
além de proced i mentos complementares.
O referencial i nteracionista advindo da Sociolog i a das Org a nizações com uma a bordagem do tipo
clinico fornece as bases teórico-a nal íticas q u e orig i n a m a s discussões aqui a presentadas.
A. Strauss desenvolve essa idéia em Miroir et masques, Paris, Méta i l i é , 1992.
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L O P E S, Marta ju /ia Marques
tornando-as conscientes da s i n g u laridade da sua ação e da sua
indispensabilidade. Ass i m , elas visual izam a sua própria lóg ica e introd uzem o
questionamento na sua relação com a medici n a . E las têm as suas próprias
formas de pensar o cu idado e de exercê-lo, sem s u bj ugá-lo aos d itames da
medici na.
Interdependência e autonomia
Relações de trabalho dinâm icas e i nterdependentes caracterizam hoje a
assistência hospitalar. É preciso, no entanto, considerar os contextos dos
serviços , os q uais lhes conferem uma heterogeneidade que vai desde as
condições básicas da assistência (espaço , pessoa , condições de trabalho) à
qualidade técn ica dos serviços prestados.
Assistir o doente escapa hoje da exclusividade da terapêutica méd ica . A
interdependência de d iversas práticas se dá com o reconhecimento e o respeito
mais ou menos flexível dos espaços de saber e da ação de u n s e outros . Entre
méd icos e enfermagem a delegação de tarefas p u ra e simples perde seu lugar e
essa relação não se sustenta , h oje, apenas na supremacia e nas posições
ocupadas no hospita l . Conven iente e satisfatória por longo tempo, essa conduta
se defronta hoje com a resistência da enfermagem . Os méd icos por sua vez, ao
se dista nciarem dos doentes, utilizando-se das intermed iações - da enfermagem ,
por exemplo, deixaram o cam i n h o l ivre . A enfermagem , no seu cotid iano de
proxim idade, de i n ovação, de improvisação j u nto ao doente , torna-se capaz de
su bverter as ordens.
Constata-se , então , o fortalecimento das "práticas periféricas" no u n iverso
hospitalar. Essas práticas exprimem a m u ltipl icidade dos interesses , dos
objetivos (de g ru pos, de i n d ivíduos), de saberes que se disputam e que se
m istu ram às d iferentes motivações pessoais, ao i nvestimento , ao compromisso
tão com u n s no meio da enfermagem.
AS PEQU ENAS U N I DADES DO C U I DADO : A C HAVE DO EQU ILíBRIO
Os serviços de enfermagem e suas pequenas u n idades d ivididas por
especial idade terapêutica constituem a base do sistema de internação hospitalar.
Essas u n idades fu ncionam à base de u m a "seg u nda ordem" vivida e orq uestrada
pela enfermag e m . O sistema com plexo e as interdependências dos serviços só
se viabil izam na base da flexibilidade adm i n istrativa . Os ad m i n i stradores sabem
d isso e têm nas enfermeiras os personagens principais do fu ncionamento e do
eq u i l í brio do sistema técn ico-assistencial na hospitalização.
O sistema fu nciona à base de arranjos d iversos, de horários , de trocas, de
su bstitu ições entre o pessoal . A d iversidade das demandas, das interações entre
técn icos , doentes , fam i l iares, serviços bu rocrático-adm i n istrativos de suporte ,
posicionam a enfermagem em u ma encruzil hada onde é preciso cumprir ou
infringir as reg ras. Assim , as atitudes se constroem ao enfrentar os d iversos
acontecimentos , considerando as negociações m ú ltiplas que perpassam m u itas
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P o d e r, I l l t l' nJ t' p e ll d f l1 c i a
e
C o mp le m e n ta ridade . . .
vezes o hospita l e suas p róprias reg ras . Essa maleab i l idade advém da " l i n h a de
frente", ou seja, daq uelas(es) que estão em contato d i reto e cotidiano com os
doentes, das contingências da relação enfermagem-doente . Essa maleabilidade
consolidou a fig u ra d a enfermeira u n iversitá ria como a chave da eficiência dos
serviços. Enquanto personagem mais q u a lificada da eq u ipe , presente 24 horas
no hospita l , pol ivalente pela sua qual ificação (e suas "qualidades fem i n inas") e
acu m u lando d iversas delegações adm i n istrativas e técn ico-assistenciais, as
enfermeiras ocu pam u m a posição que lhes confere u m certo poder e u m caráter
i n dispensáve l .
Essa posição também l h e s possibil ita ao mesmo tempo conhecer e controlar
os atores dentro do hospita l , seus ritmos e suas abordagens do trabalho.
Perceber as disputas das práticas de u n s e outros, suas lóg icas e j u lgamentos
próprios que marcam a organ ização hospitalar, e, ao mesmo tempo, sed imentam
os saberes profissionais, leva ao fortalecimento das convicções das enfermeiras
sobre a complexidade e a s i n g u la ridade do cu idado nesse meio.
A d imensão de g uardiãs morais da relação medicina-doente é outro dos
efeitos que perpassam a fig u ra da enfe rmeira e fazem parte do olhar q u e ,
sobretudo as auxiliares, t ê m da ação méd ica . A i ntermed iação e a proxim idade
j u nto ao doente lhes possibil ita tomar para s i as "dores do paciente" , no sentido
de atender reivind icações, desejos, etc. , assu m indo atitudes de p rotecionismo t�
j u lgando moralmente os atos méd icos.
As margens d e liberdade e o s desafios do cotidiano
As margens de l i berdade 8 que advêm das posições que ocu pam os d ive rsos
atores no hospital lhes perm ite criar e negociar constantemente . No caso da
enfermagem , essas margens são oriu ndas de uma p rática ancorada fortemente
no cotidiano, o q u e lhes confere u m a base de observação sing u lar, mas tam bém
de u m profissionalismo crescente , principalmente se considerarmos as
enfermeiras .
O sistema depende enormemente da coordenação , da gestão que as
enfermeiras fazem das suas horas de traba l h o , das auxiliares , do material e dos
serviços de su porte ( l i m peza , man utenção, etc). São as soluções que elas põem
,
em prática para sol ucionar problemas in loco e agilmente que perm item o desafio
da concil iação do trabalho em série e do fora-de-série. E las cria m , tomam
i n iciativas. Pude observa r que essas atitudes são responsáveis pela qualidade
das decisões e, no fu ndo, pela q u a lidade assistencial do serviço .
É verdade
que os lim ites i mpostos pelas precárias cond ições de trabalho em m u itos
hospitais condenam a enfermagem a lim itar-se ao p rescrito , ao cumprimento
m í n imo, do exercicio do cu idado d i reto . Executar esse m í n imo, para a maioria
das auxiliares , é a ta refa principal e o gerenciamento desse m í n imo se confi g u ra
8
Cf. M . C rozier et E . Fried berg , L 'Acteur et le systéme, Paris, Editions du Seui l , C o ! : ' Points, 1 977.
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Marta IlIlia Marqlles
em desafio para as "enfermei ras sem doente "(ad m i n istradoras) q u e , mesmo
assim , asseg u ram satisfatoriamente o fu ncionamento das u n idades e os
cu idados aos doentes .
N os hospitais objetos d e estud o , os organog ramas, as normas e fl u xos de
serviço levam a concebê-los enquanto organ izações pesadas e r í g idas. No
cotid iano, no entanto , é a m u ltipl icidade das u n idades q u e perm ite a ag i l idade
dos serviços . A rea l idade é, portanto , bem outra . É i mpossível conceber uma
u n idade de atendimento de u rgências, por exem plo, codificando ações,
com portamentos, d ividindo rig idamente o trabal h o e l i m itando responsabilidades.
A respo n sabi l idade coletiva pelo serviço e pelo doente é o que i m po rta até que
suas fu nções vitais sejam recu peradas , o doente não é de n i nguém e é de todos
ao mesmo tempo .
o poder profissional se relativiza
Ass i m , os serviços a ltam ente especial izados e exigentes em q u a lificação
trabalham calcados na i nterdependência . Já nos serviços p recários a estratégia
é a flexibilidade de poder no que diz respeito á d ivisão do tra ba l h o e aos espaços
de cada membro da eq u i pe a m p l iada . N esse tipo de hospital são as auxiliares
q u e sustentam a assistência d i reta , observando-se menos confl itos por espaços
de poder profissional . A precariedade das u n idades e o tipo de clientela (com
atendimento d iferenciado por classe socia l ) con d icionam um certo "descaso" , o
q u e leva os médicos a abd icar em parte dos seus leg ítimos poderes sobre o
doente e o tratamento .
Casos extremos á parte , o q u e se observa é q u e o s méd icos percebem h oje
que a i nterdependência os i m pede de " reinar" sós e absol utos sobre o doente e o
hospita l . Assim , a colaboração, as alianças se concretiza m na base da
relativização do poder. As enfe rmeiras estão mais "a rmadas" para enfrentar
esses confl itos se comparadas com as auxil iares, por isso gerem o tempo e
i ntermed iam as relações i ntra-eq u ipe de enfermagem e com os méd icos,
g a rantindo assim seu espaço . Assu mem responsabilidades frente às auxiliares
e, ao mesmo tempo, con q u istam para a equ ipe de enfermagem u m a relação de
confiança útil para a q u a l idade da assistência na sua g lobal idade . As
responsabilidades q u e as enfermeiras assumem nos pós-operatórios ou nas
u n idades de cu idado i nten sivo são valorizantes para o tra ba l h o da eq u ipe e , ao
mesmo tempo, proveitosas para os méd icos .
A
FILOSOFIA E AS CONDIÇÕES MATERIAIS
G LOBALl DADE OU FRAGM ENTAÇÃO
DOS
SERVIÇOS :
A filosofia assistencial dos serviços é decisiva n a forma como se pensa o
cu idado e as p ráticas terapêuticas d e forma gera l . Os serviços q u e centram sua
ação n o doente o u q u e cam i n ham nessa d i reção são mais g ratificantes e motivo
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I'
C o m p l l' l/l e l/ t ll r i d a d l' . . .
de valorização do trabal h o de enfe rmage m . A concepção de integ ralidade da
pessoa assistida constitui u m a base de concepção para a estrutu ração de
serviços que se organ iza m em torno da responsa b i l idade g lobal pelo doente .
Essa perspectiva é veicu lada pelo ensino de enfermagem nos d iversos n íveis de
q u a lificação no Bras i l . A rea lidade dos serviços, no e ntanto , relativiza essa
concepção. O que se observa é um p redom í n io dos serviços onde a doença e a
terapêutica méd ica são estrutu ra ntes da assistência.
Mesmo se não se pode ai nda fa lar em i nteg ração com pleta das eq u i pes
méd ica e de enfermagem , a lg u n s hospita is a p roximam-se dessa i nteg ração.
Observa-se que as enfermeiras tentam estrutu ra r o serviço em uma concepção
q u e privilegia o paciente . Nos serviços onde isso é possíve l , elas trabalham em
conj u nto com as auxil iares sem a ríg ida d ivisão de ta refas. São nessas u n idades
onde as enfermeiras se dizem mais satisfeitas e se consideram como
verdadeiras "cu idadoras" .
As auxiliares, por sua vez, não problematizam a g lobalidade da
responsabilidade pelo doente da mesma forma que as enfermei ras. Para elas ,
na ma ioria dos serviços, as ta refas de h ig ie n e , conforto e apoio psicológ ico ,
somadas à ação técnica , tornam-se pesadas face às con d ições materiais e de
recu rsos h u manos. Ocupar-se de cinco a sete doentes ao mesmo tempo
tran sfo rma em " l uxo" tudo o q u e extrapola a estrita prescrição méd ica .
A valorização da proxim i m idade com doente nas novas teorizações do
cu idado não sensibilizam da mesma forma quem o concebe enquanto ato
terapêutico g lobal e quem se habituou a executa r ações desvalorizadas e
roti neiras no cotid iano. Para as auxiliares, h igien izar, escutar, conversa r com o
doente teve sempre u m sentido de ação ban a l , doméstica , sem valor se
confrontadas à terapêutica médica , esta sim considerada como ação principal e
portadora de sentido no hospita l . Para elas, as m a n i p u lações técn icas advindas
da prescrição médica é que têm valor. Mesmo as enfermeiras se encontram face
a conflitos advindos da d ificu ldade em transformar em va lor rea l aq u i lo que é o
fu ndamento da sua ação - o cu idado. Em m u itos momentos , admitir a eficiência
e a habilidade técn ica como fu ndamentos da q u a l ificação serve como refúgio.
Esse cenário é h oje visivelmente conflitado. As e nfermei ras u n iversitárias
percebem que o cu idado g lobal as l i berta da cond ição frustrante de auxiliares
dos médico s . A c u l tura méd ica , por sua vez, nem sempre con s idera e valoriza
essa n ova concepção do cu idar, o q u e e ntrava a org a n ização dos serviços com
base na sistematização do cu idado, em uma metodolog ia própria da assistência
de enfermagem . As disputas são evidentes e a enfermagem defende posições e
i mpõe negociações de espaços, i n stalando pouco a pouco seu poder no hospita l .
Ten h o claro q u e é a h eterogeneidade d a s q u a lificações e d o s serviços
assistenciais na real idade b rasileira que é fator l i m itante da consolidação do
cu idado enquanto p rática profissional s i n g u lar, bem como a con sciência dessa
s i n g u laridade.
Traçando u m paralelo entre a prática das enfe rmeiras francesas e
americanas (no B ras i l , a o rientação seg u e a tradição americana), M. Bins t realça
R. Bras. Enferm. , Brasília, v. 50 , n . 3 , p. 3 8 1 -390, jul.lset. , 1 997
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as d iferenças de concepção do cu idado . 9 Diz ela q u e o valor do cu idado g lobal e
do relacional na relação com o doente é trad ição americana e q u e para as
fra ncesas , ao contrário , o cu idado se estrutu ra na valorização do técn ico e na
fragmentação, na separação entre a ação das enfermeiras e das auxiliares. Diz
ainda que parte considerável da profissão procu ra o reconhecimento
especificamente méd ico . Com isso, elas condenam-se a ser s u b-médicos, o que,
seg u ndo a autora, é catastrófico para profissão .
Essa avaliação me parece real e penso q u e , mesmo heterogênea , a
orientação profissional no B rasi l e nos Estados U n idos seg ue uma proposta mais
autônoma se comparada com a F rança . A estrutura da profissão francesa seg ue
a l i n h a das especial idades méd icas e do trabalho de supo rte a essas atividades ,
e não propriamente a uma proposta de cuidar. As crises atuais atestam , em uma
dada d imensão, essas incompatibilidades.
A CONQU ISTA DE ESPAÇO NO HOSPITAL
Estratégias assistenciais
As enfermeiras u n ivers itárias são aquelas q u e comandam as estratégias das
eq u i pes. Estas são fu ndamentalmente coletivas ao n ível do cu idado, já que
somente o poder médico é capaz de sustentar posições individuais e impor-se
dessa forma no hospita l . No entanto, essas atitudes e o autoritarismo são cada
vez mais raros.
As reg ras e as rotinas de serviço são características dos serviços de
enfermagem . De u m certo ângulo, essa normatização pode ser pensada como
um refúg io m u itas vezes necessário nas disputas internas. Mas, cada vez mais a
enfermagem elabora estratégias ativas, articu la-se com o ensino e se consolida
enquanto modelo de serviço , enquanto assistência de q ualidade , o que impl ica
em motivação e implicação crescente no trabalho. Dessa forma , propõe
m udanças e d isputa o poder no hospita l .
A força do i nvestimento pessoal , afetivo , do envolvimento no trabalho é u ma
característica marcante no trabalho de enfermagem . Essa força não deve ser
neg ligenciada e n q uan to s ustentado ra dos coletivos, mesmo que se con stitua
m u itas vezes em fonte de exploração no campo de trabalho.
As associações de enfermeiras
As associações de enfermeiras são u m exemplo típico de como tem se
confi g u rado a " m i l itância enfermeira" preferida , sobretudo nos g randes
complexos hospitalares públicos e mesmo privados.
As i n iciativas desse tipo de organ ização representam estratégias advindas da
con sciência do cam po de d isputas, das relações q u e a complexidade do hospital
torna rea l . Assim , mesmo q u e as associações de enfermeiras atestem u m certo
caráter d iferencialista e corporativista em relação ao conj u nto da enfermagem ,
elas atestam tam bém a tomada de posição frente ao poder q u e o d iploma
9
M . Binst,
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Ou mandarin a u manager hospitalier,
Paris, L' Harmattan , 1 990.
R. Bras. Enferm. , B rasllia , v . 50, n. 3 , p. 3 8 1 - 390, jul ./set. , 1 997
P o d e r, I n t e rdep e n dê n c i a e C o m p l e m e n t a r i d a de . . .
u n iver� itá rio l h es confere no seio da eq u i pe e a representatividade que devem
assum i r no cam po dessas d isputas.
O d iferencial ismo e o corporati vismo podem ser pensados como cond utas de
crise , como afirma D. Kerg oa t 4 . Essa autora d iz que as enferme i ras man ifestam
ações que vão desde u m defensivism o ( l igado ao paciente e , no caso brasileiro,
a certos valores de classe e trad ições da enfe rmagem) às estratég ias mais
ofensivas , conflituais, colocando em evidência a dom i nação e u m certo
protecion ismo corporativo . Essas cond utas reivind icativas, quer sejam
defensivas ou conflituais, config u ram-se em tentativas de garantir u ma posição
de dom í n io dentro da equipe, e de constitu i r um espaço próprio do cu idado
frente ao dom í n io do modelo assistencial médico-hospitalar .
As reações defensivas frente a uma dada situação são visíveis nos
engajamentos das enfermeiras, ora afirmando aspectos identificadores (ligados à
s i n g u laridade do cuidado), ora modificando aspectos que " n ão servem mais"
(imagem da enfermeira-auxiliar, "tarefe i ra", etc . ) . As estratég ias, e mesmo as
táticas, em certos momentos reu nem as categorias de enfermagem em uma
conceituação identificadora de cuidado; em outros, de se engajar no
d iferencialismo i nterno . Dessa forma , as enfermeiras reforçam suas alianças
i n stitucionais, apegando-se às leis do exercicio profissional d iferenciado e
h ierarq u i zado e concentrando suas energ ias na defesa de u m "status" de
enfermeira " , exclusivamente .
U M MOVIMENTO PROFISSIONAL NO SEIO DO HOSPITAL?
As condutas de crise no cam po de enfermagem podem ser chamadas de
"movimento profissional", no sentido que lhe dá A. 5trauss7 ; isso , na medida em
que as visual izamos como arranjos i n stitucionais (traduzidos por leis do exercício
profissional, por posicionamento frente ao s istema de saúde, frente ao hospita l ,
etc . ) , como l utas de poder para a aquisição de posições no i nterior dessas
i nstitu ições e que ora as demarcam da medicina ora das demais categorias da
enfermagem .
As enfermeiras recon hecem hoje o campo de l utas em que estão inscritas,
assim como sua posição nesse cam po . Demarcam suas posições e agem a
partir de sua i nserção no seio do hospital (do poder institucional), controlando
assim o recrutamento e o exercício de enfermagem . O monopólio dos postos de
chefia no hospital mostra o dom í n io delas sobre os agentes e as práticas do
cu idado . As enfermeiras se con stituem nas rep resentantes e porta-vozes da
com u n idade de enfermagem .
As associações s u rgem também dos conflitos de afirmação entre os chefes e
su balternos e do "status" d iferenciado da enfermeira u n iversitária no setor. I sso
pode ser constatado nas principais associações de enfermeiras e mesmo nos
sind icatos categoriais, que são, na verdade , associações representativas
somente das enfermeiras. Dessa forma elas monopolizam as qualificações de
R. Bras. Enferm., Brasí l ia , v. 50, n . 3, P: 38 1 -390 , j u l . lset. , 1 997
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L O P E S, Ma rta
lulia Marque�
n ível médio, extin g uem ou i n stituem novas proposlçoes de formação de
enfermagem . I nterpretam a profissão j u nto ao público e se acham as d ig nas
representantes da vanguarda e as negociadoras por excelência frente aos
confrontos do exercício .
Finalmente , são as associações, as leis do exercício, as normas e reg ras de
serviço que vão refletir não a homogeneidade ou o consenso, mas o poder das
enfermei ras nesse meio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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