ACP Waimiri Atroari - Procuradoria da República no Amazonas
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ACP Waimiri Atroari - Procuradoria da República no Amazonas
Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO AMAZONAS. VARA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da República signatários, nos termos do disposto no artigo 129, II e III da Constituição da República, artigo 5º, inciso III, alíneas “b” e “e” e artigo 6º, VII, alíneas “b” e “c” da Lei Complementar no 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), e artigos 1o e 5o da Lei no 7.347/85, vem propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO LIMINAR DE MEDIDA CAUTELAR INCIDENTAL em face de: UNIÃO FEDERAL, que receberá citação e intimações por meio da Procuradoria da União no Estado do Amazonas, situada na Av. Tefé, nº 611 - Ed. Luis Higino de Sousa Netto, Praça 14 de Janeiro, Manaus, Amazonas, FUNAI, que receberá citação e intimações por meio de sua Procuradoria Federal Especializada, situada na Rua Maceió, nº 224 Adrianópolis– Manaus/AM; CENTRAIS ELÉTRICAS DO NORTE DO BRASIL S.A. 1 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas -ELETRONORTE, sociedade de economia mista, sediada na SCN Quadra 06, CJ. A, blocos B e C, Entrada Norte 2, Asa Norte, Brasília-DF; ANTONIO FLEURY DE CAMARGO, inscrito no CPF n. 003.702.588-00, domiciliado na Rua Roberto Simonsen, nº 114, São Paulo-SP ANTONIO FLEURY DE CAMARGO FILHO, inscrito no CPF nº 028.614.538-34 , domiciliado na Rua Roberto Simonsen, nº 114, São Paulo-SP; SERGIO ROBERTO ORTIZ NASCIMENTO, inscrito no CPF n. 064.186.518-04 , domiciliado na Rua Mariana Correa, n. 433, Jardim Paulistano, São Paulo-SP, CEP 01444-000; JOSE KALLIL FILHO, inscrito no CPF nº 006.504.398-72 , domiciliado na Av. Brigadeiro Faria Lima, nº 2012, 7º andar, cj. 72, Jardim Paulistano, São Paulo-SP; FERNANDO VERGUEIRO, inscrito no CPF nº 272.543.058-53, domiciliado na Rua Acare, nº 48, Alto de Pinheiros, São Paulo-SP, CEP 05463-020; SERGIO VERGUEIRO, inscrito no CPF n. 054.681.168-04, domiciliado na Rua Alberto de Faria, n. 2049, Alto de Pinheiros, São Paulo, CEP 05459-002 WALTER LOT PAPA, inscrito no CPF nº 097.931.358-91, domiciliado na Rua Ana Fratta de Paula,10, Sousas, Campinas-SP, Caixa Postal 2044, CEP 13104-028; VICENTE FALCO PAPA, inscrito no CPF n. 237.214.648-34, domiciliado na Rua Carlos Augusto Monteiro de Barros,n. 22, Santa Rita do Passa Quatro -SP, CEP 13670-000 2 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas IRENE LOT PAPA, inscrita no RG nº 956.658 SP, domiciliada Rua Carlos Augusto Monteiro de Barros,n. 22, Santa Rita do Passa Quatro -SP, CEP 13670-000 ELIZABETH DE CARVALHO PAPA, inscrita no CPF nº 158.492.998-74, domiciliada na Rua Santa Ernestina, n. 201, Jardim Guarani, Campinas-SP, CEP 13095-320; JOSÉ SILVIO DE CARVALHO, portador do CI/RG nº 601.380/PR, domiciliado na Rua Azarias V. Da Resende, 627- Bandeirantes/PR; ADEMPAR – ORGANIZAÇÃO DE NEGÓCIO E COMÉRCIO EXTERIOR, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ n. 43.370.766/000170, com sede na Avenida Paulista, n. 1765, 16 andar, bairro Bela Vista, São Paulo-SP, CEP 08210-040, a ser representada pelo seu Diretor Presidente ADOLPHO JULIO DA SILVA MELLO NETO, inscrito no CPF 002.658.538-34, domiciliado na Rua Cristovão Diniz, 21,15o andar, Cerqueira Cesar, São Paulo-SP, CEP 01426-020. BORBA GATO – AGROPECUÁRIA E FLORESTAL S/A, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ n. 04.965.976/0001-50, com sede na Avenida Independência, n. 1045, bairro São Braz, São Paulo-SP, CEP 66630-505, a ser representada pelo seu Diretor Presidente Fernando Vergueiro, inscrito no CPF 272.543.058-53, domiciliado na Rua Acare,nº 48, Alto de Pinheiros, São Paulo-SP, CEP 05463-020. SERRAGRO S/A – INDUSTRIA COMERCIO E REFLORESTAMENTO, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ n. 04.306.536/0001-90 , com sede na Rua Ramos Ferreira 1129, Centro, Manaus-AM, CEP 69020-282, a ser representada pelo seu administrador PEDRO FRANCO PIVA, inscrito no CPF 008.308.448-72, domiciliado na Rua PORTUGAL, nº 372, JD. 3 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas EUROPA,SAO PAULO -SP, CEP 01446-020. FAZENDA SANTA INES S/A, inscrita no CNPJ n. 04.209.763/0001-06 , com sede na Rodovia Torquato Tapajos, Km. 221, ItacoatiaraAM, CEP: 69100-000, a ser representada pelo seu administrador SERGIO VERGUEIRO, inscrito no CPF nº 054.681.168-04, domiciliado na Rua Alberto de Faria, n. 2049, Alto de Pinheiros, São Paulo, CEP 05459-002 AGROPECUÁRIA ARUANA S/A, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ n. 04.407.979/0001-78 , com sede na Rodovia Torquato Tapajos KM 215, Itacoatiara-AM, CEP: CEP: 69100-000, a ser representada pelo seu Diretor SERGIO VERGUEIRO, inscrito no CPF nº 054.681.168-04, domiciliado na Rua Alberto de Faria, n. 2049, Alto de Pinheiros, São Paulo, CEP 05459-002 1- BREVE SÍNTESE DA DEMANDA Trata-se de ação civil pública que ora se ajuíza com vistas à: (i) obtenção de provimento jurisdicional declaratório que reconheça serem de ocupação tradicional dos índios Waimiri-Atroari, e consequentemente de domínio da União, as terras inundadas, em outubro de 1987, pelo lago artificial de Balbina, formado pelo represamento das águas do rio Uatumã em razão da construção da hidrelétrica de mesmo nome; e (ii) obtenção de provimento jurisdicional condenatório para que, solidariamente, a União, a Funai e a Eletronorte indenizem a comunidade indígena Waimiri-Atroari pelos prejuízos a ela gerados pelo alagamento de terras sobre as quais possuem direito originário. Serão apresentados ao longo desta peça elementos probatórios que comprovam que as terras de ocupação tradicional da comunidade indígena Waimiri-Atroari abrangem a área inundada pelo reservatório de Balbina. 4 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Verificar-se-á que, apesar disso, todos os Decretos que trataram da criação da Reserva Indígena Waimiri-Atroari sempre se acautelavam apontando limites que tangenciassem a área a ser inundada, embora os indígenas vivessem como é comum - à margem dos rios formadores do lago de Balbina e ainda vivem atualmente nas ilhas formadas pelo alagamento e pescam em suas águas. Por meio do provimento declaratório ora buscado se visa fazer cessar a insegurança jurídica gerada pela pendência das ações de desapropriação relacionadas no ANEXO I – Relatório de Processos 22/10/2009, a maioria em fase de execução, cujos créditos, se satisfeitos, gerarão um prejuízo de cerca de R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais), desconsiderados os juros, ao patrimônio público federal (ANEXO I – Parecer Pericial 5ª CCR nº 183/2009). Não se pode admitir, deveras, que saiam dos cofres públicos tamanha quantia, por força de desapropriação de terras, na medida em que existem provas suficientes de que os índios Waimiri/Atroari a ocupavam tradicionalmente, sendo o domínio consequentemente da própria União. Por meio do provimento condenatório busca-se compensar a afronta aos direitos dos índios sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas, decorrente da remoção inconstitucional do povo Waimiri – Atroari de suas terras, para a construção da hidrelétrica de Balbina. Portanto, em consequência do farto material probatório acerca da ocupação tradicional indígena na região, pretende-se, através da presente ação, em síntese: (i) a declaração expressa de que as terras hoje alagadas pelo reservatório de Balbina são terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas Waimiri-Atroari ou, em assim não entendendo este Juízo, que a superfície inundada pela Hidrelétrica de Balbina era de ocupação tradicional indígena Waimiri-Atroari na década de 1960/1970; (ii) a condenação da União, da Funai e da Eletronorte a indenizarem os índios Waimiri-Atroari pelos danos que estes sofreram devido à alagação da área que 5 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas tradicionalmente ocupavam, bem como pela mora na redefinição dos limites da terra indígena. 2.- DO CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL A Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público, como instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). Para o cumprimento do seu mister, foi-lhe conferida capacidade postulatória, legitimando-o à abertura de inquérito civil, da ação penal e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e também de outros interesses difusos e coletivos (C.F., art. 129, I e III), inclusive a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas (C. F. art. 129, V). No presente caso, através da presente ação civil pública, o Ministério Público Federal atua em defesa do patrimônio público, uma vez que, reconhecendo-se a titularidade da União sobre a área hoje ocupada pelo reservatório de Balbina, em virtude da ocupação tradicional do povo Waimiri-Atroari, montante milionário em indenizações deixará de ser pago no curso de ações de desapropriação ajuizadas pela Eletronorte, conforme adiante se demonstrará. Promove o Ministério Público Federal também a indenização dos danos causados à comunidade indígena Waimiri –Atroari face aos danos à integridade de suas terras, considerando que as áreas por ela tradicionalmente ocupadas foram alagadas pelo lago de Balbina. Os direitos e interesses dos índios têm natureza constitucional e coletiva, direito comunitário que compromete gerações futuras, cuja tutela cabe ao Ministério Público Federal albergar. Como tais, esses direitos e interesses são indisponíveis, de ordem pública, e se envolvem, além do mais, com interesses 6 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas próprios da União Federal. A terra indígena – aqui, repise-se, ilicitamente alagada devido à construção da hidrelétrica de Balbina – é bem de propriedade da União Federal (art. 20, XI, da C. F.), cuja defesa, manutenção da integridade e finalidade pública são também atribuições acometidas ao Ministério Público Federal (arts. 129, III, e 231, § 2.º, da C. F.). 3. -DA LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL, DA FUNAI E DA ELETRONORTE No caso em tela, a legitimidade passiva da União Federal, da Funai e da Eletronorte na presente ação decorre da circunstância de suportarem os efeitos condenatórios oriundos da sentença, acaso procedente o pedido. Com efeito, conforme se depreende do Procedimento Administrativo n.º 1.13.000.00812/2002-11, que tramita no Ministério Público Federal, a União, através da Nota AGU/SGCT/FZS/Nº40/2008, faz menção à Nota Interna nº 33/2007-AGU/PRU1/GIX/GG, da lavra do Coordenador da PRU -1ª Região (ANEXO II – fls. PR/AM 581/582), onde se informa que: “... a Usina Hidrelétrica de Balbina foi construída pela ELETRONORTE, tendo como um de seus fundamentos legais o Decreto n.º 79.321/77, através do qual a União concedeu àquela estatal o aproveitamento hidráulico de um trecho do rio Uatumã, no local denominado de Cachoeira de Balbina, Estado do Amazonas. Para fins de ocupação da área, especialmente a área que seria alagada pela represa da usina, editou a União um segundo decreto, o Decreto n.º 85.898/81, através do qual declarava-se aquela área como sendo de utilidade pública para fins de desapropriação, ficando consignado que a desapropriação seria realizada 7 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas pela Eletronorte, com recursos próprios. A Eletronorte, então, deu início às ações de desapropriação contra os particulares que ostentavam títulos de domínio das áreas abrangidas pelo Decreto (..)” No caso em tela, portanto, verifica-se que as ações de desapropriação para a construção da Hidrelétrica de Balbina foram ajuizadas pela empresa Eletronorte, por força de concessão da União Federal, cabendo também à referida empresa estatal efetuar o pagamento das indenizações aos supostos proprietários da área. A FUNAI, por sua vez, omitiu-se, por reiterados anos, no dever de redefinir os limites da Terra Waimiri – Atroari, postergando e impedindo o reconhecimento formal da efetiva área como de ocupação indígena. Verifica-se, assim, a legitimidade passiva da União Federal, da Funai e da Eletronorte, haja vista que o pedido indenizatório ora formulado pelo MPF deverá ser suportado solidariamente pela União e pelas referidas autarquia e empresa estatal. 4. -DO LITISCONSÓRCIO PASSIVO COM OS SUPOSTOS PROPRIETÁRIOS DOS LOTES ONDE HOJE SE ENCONTRA O RESERVATÓRIO DE BALBINA No quadro constante no ANEXO I, verifica-se as ações de desapropriação ajuizadas pela Eletronorte em face dos supostos proprietários dos lotes localizados na área que seria alagada em consequência da construção da hidrelétrica de Balbina. Vê-se no ANEXO I que a maior parte das ações de 8 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas desapropriação está em fase de execução. O MPF, através de várias promoções juntadas nos autos das referidas ações, pronunciou-se pela suspensão das execuções, ante a dúvida fundada quanto ao domínio das áreas, tendo em vista amplo material probatório a indicar que as referidas terras são bens da União por força da ocupação tradicional dos índios Waimiri-Atroari. Assim sendo, afere-se a legitimidade passiva dos supostos proprietários dos lotes onde hoje se encontra o reservatório de Balbina para a presente ação, uma vez que, com a declaração de que a referida área é bem da União, nada será devido aos mesmos a título de indenização. 5.-DOS FATOS 5.1 - HISTÓRICO No ano de 1967, o governo federal editou o Decreto n° 60.296, de 3 de março de 1967 (ANEXO III), por meio do qual aprovou o "Plano Diretor de Desenvolvimento da Amazônia”, para o quinquênio 1967/1971, contendo “Áreas Prioritárias e Pólos de Desenvolvimento", entre os quais foi incluído o Pólo Manaus, Estado do Amazonas. O artigo 5o do Decreto apontava, dentre as diretrizes setoriais, que os investimentos em energia elétrica deveriam "favorecer a criação de sistemas hidrelétricos". Veja-se: "Art 5° São diretrizes setoriais a serem observadas no Plano: (...) V - No setor de infra-estrutura económica: (...) d)os investimentos em energia elétrica deverão atender ao crescimento vegetativo do consumo, e, igualmente, favorecer a criação de sistemas 9 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas hidrelétricos isolados que sirvam a pólos de desenvolvimento e abram perspectivas para a exploração futura dos potenciais situados mais para o interior." No ano seguinte foi criado, no Ministério das Minas e Energia, por meio do Decreto n° 63.952, de 31 de dezembro de 1968 (ANEXO III), o Comitê Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia – ENERAM. O texto do referido Decreto determinava: “DECRETO N° 63.952, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1968. Cria no Ministério das Minas e Energia o Comitê Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia. Art. 1° É criado no Ministério das Minas e Energia, o Comitê Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia (...) Art. 2o Compete ao Comitê: a) supervisionar os estudos visando a investigação das possibilidades de aproveitamento hidrelétrico para o suprimento de sistemas elétricos já existentes ou que venham a ser implantados em áreas prioritárias e pólos de desenvolvimento criados na Amazônia pelo Governo Federal. (...) Art. 4o As conclusões dos estudos do Comité serão consubstanciadas em Relatório Final, a ser apresentado ao Ministro das Minas e Energia, no prazo de três (3) anos a contar da vigência deste Decreto.” O Relatório Final do ENERAM, datado de dezembro de 1971, foi apresentado em 06 de janeiro de 1972, contendo as seguintes recomendações: “ - no que se refere à solução da problemática geral dá energia elétrica da Amazônia: a criação de uma subsidiária da ELETROBRÁS, com esse fim ESPECÍFICO. - no que se refere ao suprimento energético do Pólo Manaus, a médio e longos prazos:continuação dos estudos do rio Jatapu (afluente do rio 10 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Uatumâ) e realização de um Inventário hidrelétrico do próprio rio Uatumã.” Essas informações constam do Anexo à Carta n° 1.00.0159/76, de 19 de julho de 1976, da ELETRONORTE (ANEXO III), dirigida ao então Ministro das Minas e Energia, SHIGEAKI UEKI, na qual foi formulado o pedido de outorga de concessão para o aproveitamento da energia hidráulica da bacia do Rio Uatumã. O pedido da ELETRONORTE naquele documento está assim formulado: "outorga de Concessão para o aproveitamento progressivo e integrado da energia hidráulica da bacia hidrográfica do rio Uatumã, em toda sua extensão, desde as nascentes dos formadores, neles estando incluídos os rios Jatapu, Santo António do Abonari e Pitinga, até sua foz, no rio Amazonas, com prioridade no aproveitamento hidrelétrico do local denominado Cachoeira Balbina, no rio Uatumã, Estado do Amazonas, na divisa dos municípios de Urucará e Itapiranga". Veja-se, assim, que, no período de 31 dezembro de 1968 a dezembro de 1971, deu-se a criação do "Comité Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia-ENERAM", pelo Decreto 63.952, bem como a realização do estudos in loco, e a entrega do relatório final do Comitê com o inventário hidrelétrico do Rio Uatumã. Paralelamente, o governo do Estado do Amazonas desenvolveu ações de outorga de títulos para pessoas estranhas à região, curiosamente na área em que os estudos indicavam como sendo a que viria a ser inundada com a construção da futura Usin a e, portanto, objeto de ações de desapropriação. Assim sendo, no período que vai do ano de 1969 a 1971, o Estado do Amazonas fez um grande loteamento na área que hoje é ocupada pelo lago 11 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas da Usina Hidrelétrica de Balbina e suas adjacências. Foram loteados cerca de 550 lotes de terra, absolutamente simétricos, cada qual com 3.000 ha (três mil hectares), conforme o mapa constante no (ANEXO IV). Mais tarde, o Decreto Federal n.º 85.898 de 13.04.1981 “declarou de utilidade pública para fins de desapropriação, as áreas de terras e benfeitorias necessárias à formação do reservatório da Usina Hidrelétrica de Balbina, da Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A- ELETRONORTE, no Estado do Amazonas” (ANEXO III). A área desapropriada abrangia 66 (sessenta e seis) daqueles lotes cujos títulos foram outorgados pelo Estado. A Eletronorte, então, ajuizou as respectivas ações de desapropriação. Apesar de a área abranger 66 (sessenta e seis) lotes, identificou-se que esses lotes estavam concentrados em mãos de poucos “proprietários”, conforme comprova o próprio relatório das ações de desapropriação (ANEXO I). 5.2- . DAS IRREGULARIDADES A 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal instaurou o Processo MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72 para apurar “Doações irregulares de terras a empresários do Estado de São Paulo, quando da instalação da Hidrelétrica de Balbina. Suspeita de conluio entre autoridades do Estado/AM e os expropriados nas ações em curso na justiça”. Para acompanhá-lo, foi designado por aquele Órgão Colegiado do MPF o ilustre Procurador Regional da 12 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas República Franklin Rodrigues da Costa. Resultou de seu exaustivo trabalho o Relatório Final constante no ANEXO V desta exordial. Nele são apontadas as diversas irregularidades quando do loteamento, da outorga dos títulos de domínio e da habilitação para o recebimento do valor das desapropriações. Em síntese, foi apurado o seguinte: 1) Loteamento virtual: O Estado do Amazonas procedeu: (i) a loteamento em área premeditadamente correspondente ao local onde se daria o aproveitamento hidroenergético do Rio Uatumã; (ii) a simulação de uma demarcação de lotes na região, ficando alguns deles cortados ao meio pelo Rio Uatumã; (iii) a criação de procedimentos administrativos, tendo como objeto pedidos de outorga de terras em nome de "laranjas" na área em que o Comitê Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia ENERAM previa para instalação da hidrelétrica; (iv) a outorga das terras no mesmo local no qual se previa o alagamento decorrente do represamento da cachoeira de Balbina, concomitantemente ao inventário do aproveitamento hidrelético do Rio Uatumã que estava sendo realizado pelo referido Comitê. 2) Outorga de lotes em violação do Decreto n° 1.127, de 22 de abril de 1968, do próprio Estado do Amazonas, que proibia qualquer forma de utilização das terras devolutas situadas ao longo das BR's 319 e 174, numa profundidade de 30 Km, para cada lado dessas estradas. 3) O Estado do Amazonas realizou a demarcação exigida pelos 13 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas artigos 61 e seguintes da Lei Estadual n° 89, de 31.12.1959 (Lei de Terras do Estado), de forma virtual. Com efeito, restou comprovada a impossibilidade fática do Sr. Isaac Amorim, então responsável por mais de 90% das demarcações e medições de 550 lotes de 3.000 hectares cada um, fazê-las no espaço de 1 ano. Ademais, inexistem evidências na região dos trabalhos de medição e demarcação dos lotes. 4) Os pedidos de outorga de concessão dos lotes de terras foram fracionados, com a apresentação de nomes de terceiros, com vistas a contornar a previsão do parágrafo único do artigo 164 da Constituição Federal de 1967, consistente na vedação da concessão de gleba com área superior a 3.000ha sem autorização do Senado Federal. Posteriormente, as concessões dos títulos de domínio foram feitas com a substituição dos nomes dos proponentes pelos dos atuais exequentes das ações em trâmite na Justiça Federal do Estado do Amazonas. Os lotes foram então reagrupados e inscritos no Cartório de Registro de Imóveis em nome daqueles que hoje figuram nas ações de desapropriação. 5) A Lei de Terras do Estado do Amazonas (art. 36, da Lei 89/59) determinava a reversão, ipso facto, ao património Público, das terras outorgadas, quando ausentes a exploração e fixação de moradia no local por parte dos cessionários. O Estado do Amazonas, entretanto, omitiu-se em proceder à reversão in casu. Com efeito, há prova cabal da não ocupação e não exploração das terras, descumprindo-se cláusula contratual e dispositivo de lei a fazer incidir o art. 119 do Código Civil e art 1o, "h", da Lei Estadual 89/59, isto é, a reversão dos lotes ao Património Público ainda na década de 1970. 14 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Em atendimento à Recomendação do Ministério Público Federal, no âmbito do Processo MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72 (ANEXO VI), o Estado do Amazonas editou o Decreto n.°22.449/02, instituindo "Comissão Especial para apurar e julgar o inadimplemento dos contratos que outorgaram títulos a particulares na área de construção da Usina Hidrelétrica de Balbina". A Comissão resgatou e sistematizou a documentação relativa às outorgas das terras, apurando o procedimento fraudulento adotado para que os lotes chegassem aos beneficiários das desapropriações para servirem como objeto de especulação. Foram identificados: (i) o recebimento dos pedidos de inscrição por parte do Estado, sendo que o representante de todos os requerentes era apenas um procurador - NADIR HELOU; (ii) a fraude decorrente da falsa demarcação; (iii) a expedição dos títulos em nome dos beneficiários, em lugar dos que constavam como requerentes, sendo que muitos desses títulos foram expedidos já próximos da data do Decreto de desapropriação da área, porém, com data retroativa a 1969/1971. A Comissão especial teve seus trabalhos prorrogados por 24 (vinte e quatro) meses, a partir de 24 de janeiro de 2003, nos termos do Decreto n.° 24.028, de 20 de janeiro de 2004 (ANEXO VI). Diante da expiração do prazo fixado no Decreto, o MPF solicitou, em 11.02.2005, cópias do relatório final, dos termos de rescisões efetuadas acompanhadas das respectivas certidões das averbações dos cartórios do registro de imóveis e informações sobre o estágio dos demais procedimentos de rescisão ainda não concluídos (ANEXO VI). Em resposta a esse requerimento, a Procuradoria Geral do Estado do Amazonas informou que o então Governador em exercício decretou a extinção da comissão por meio do Decreto n.° 24.801, de 06.01.2005 (Ofício 291 /2005-GPGE, de 27 abr 2005).(ANEXO VI) Portanto, a Recomendação expedida pelo MPF foi, no início, acatada pelo Estado do Amazonas. Porém, ao identificar, no curso dos trabalhos 15 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas daquela Comissão, o procedimento fraudulento em que incidiram as administrações daquele Estado, autoridades do Estado fizeram desaparecer o procedimento de apuração, sendo extinta a referida Comissão – Decreto Estadual n° 24.801, de 06.01.2005. 5.3.- DA OCUPAÇÃO TRADICIONAL DA COMUNIDADE INDÍGENA WAIMIRI/ATROARI Antecedentes às manifestas ilegalidades expostas supra, afigurase a ocupação tradicional pela comunidade indígena Waimiri/Atroari na área onde foi construída a hidrelétrica de Balbina, demonstrada por robustos elementos de prova, razão pela qual é de se concluir que o Estado do Amazonas concedeu a particulares terras em áreas de propriedade da União. Com efeito, os estudos para a instalação da hidrelétrica e o paralelo e simultâneo loteamento da área depois inserida no polígono declarado de utilidade pública para fins de desapropriação pelo Decreto 85.898/81, as ações de desapropriação ajuizadas pela Eletronorte e a própria construção da hidrelétrica com a consequente inundação da área são fatos que não teriam ocorrido se houvessem sido levados em conta os preexistentes direitos dos índios Waimiri/Atroari sobre as terras. Nesse sentido, o Procurador Regional da República Franklin Rodrigues da Costa, no bojo do Processo MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72, aborda em seu Relatório, resultante de trabalho exaustivo de anos na coleta de informações acerca do assunto, a demarcação da terra índigena Waimiri-Atroari e a presença indígena na área que foi alagada pelas águas do atual lago de Balbina (ANEXO V). Outrossim, o Ministério Público Federal determinou a elaboração 16 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas de parecer antropológico sobre os fatos. O Parecer/PRDC/AM/nº 001/2008 demonstra a existência de fortes elementos etno-históricos de que os indígenas, antes da fatídica inundação, habitavam a área, utilizando-a para seu sustento, sendo ela necessária à preservação de sua identidade cultural. Acrescenta ainda um histórico de negligência nas incontáveis redefinições realizadas na área de ocupação tradicional dos Waimiri-Atroari (ANEXO VII). Ademais, para além de todo o evidenciado, por prudência e ainda fiéis ao propósito de análise justa e objetiva, o MPF ouviu o respeitado indigenista José Porfírio Fontenele de Carvalho, em duas oportunidades, conforme Termo de Depoimento colhido no âmbito do Processo MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72 (ANEXO V) e resposta ao Ofício nº 166/2008/3ºOFCIV/AM (ANEXO VIII). Por fim, a Informação nº 96/CGID/2009, elaborada pela Coordenadora de Identificação e Delimitação -CGID/DAF da Funai, em atendimento integral à Recomendação 09/2009 do MPF, conclui que a área ocupada pelos WaimiriAtroari se estendia do rio Uatumã até a cachoeira Morena ou, quando menos, até a cachoeira Balbina, do que decorre que habitavam a área alagada pelo lago de Balbina conforme demonsta o mapa anexado ao referido documento (ANEXO IX) Com base nesses documentos, é que se passará a demonstrar a seguir que a área alagada em consequência da instalação hidrelétrica de Balbina é de ocupação tradicional dos índios Waimiri-Atroari. 5.3.1. DA DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA WAIMIRIATROARI Pode-se sintetizar o processo de demarcação da Terra Indígena Waimiri-Atroari da seguinte forma (ANEXO X): 17 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas a) Decreto n.º 68.907, de 13/07/1971: criou a Reserva Indígena Waimiri-Atroari, com área total de 1.661.900 ha; b) Decreto n.º 74.463, de 26/08/1974: interditou a área adicional de 412.500 ha; c) Decreto n.º 75.310, de 27 de janeiro de 1975: corrigiu as coordenadas de limites constantes no Decreto n.º 74.463, que estavam incorretas; d) Portaria FUNAI 511, de 05/07/1978: declarou de ocupação indígena Waimiri-Atroari duas áreas adicionais: Área I ( 236.000 ha) e Área II ( 56.400 ha), totalizando 292.400 ha.; até essa data, a área total da TI Waimiri-Atroari era de 2.366.800ha; e) Portaria 952 da FUNAI de 16/06/1981: determinou a realização de estudos para a redefinição dos limites da TI Waimiri-Atroari, os quais foram feitos com a finalidade de atender a interesse de empresa mineradora na área; o Grupo de Trabalho, entretanto, acabou por defender, em síntese: e.1) a não eliminação de parte da área leste da reserva, como limite sudeste; e.2) que se tomasse a lâmina de água do reservatório da hidrelétrica de Balbina para evitar invasões de brancos na terra indígena; f) A proposta de limites defendida pelos técnicos da Portaria 952 não foi acatada pela FUNAI. Foi publicado então o Decreto n.º 86.630 de 23/11/1981 que, revogando os Decretos anteriores (68.907/71, 74.464/74 e 75.310/75), tornou extinta a Reserva Indígena Waimiri-Atroari, transformando a área habitada por estes índios como “Área Interditada Temporariamente para Fins de Atração e Pacificação dos Índios Waimiri-Atroari”, invertendo 18 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas totalmente o processo de regularização da área indígena. A interdição foi de apenas 1.850.000 ha, atendendo, assim, aos interesses econômicos de empresa mineradora, excluindo a área de 526.800 ha da área reservada pelo Decreto de 1971 (v. ANEXO XI-Pasta Processo Funai 2625/81, itens 17 e 18 do Parecer n.º 167/87-GT, fls. 509/523); g) Considerando a falta de fundamentação técnica do Decreto n.º 86.630/1981, que excluiu áreas indígenas para atender a interesses econômicos, a FUNAI editou a Portaria n.º 1898 de 03/07/1985, com a finalidade de “examinar as propostas existentes e as razões que levaram à extinção da Reserva Atroari”. No Relatório deste Grupo de Trabalho, os técnicos concluíram “ser necessário redefinir a área indígena, verificando os pontos geodésicos estabelecidos pelo Decreto n.º 86.630/81”; h) Em 27/09/1985, o engenheiro cartógrafo Luiz Antonio Sberze sugeriu a extinção dos estudos realizados pelo grupo de trabalho mencionado na alínea anterior (Portaria nº 1898 de 03/07/1985), o que foi acatado pela FUNAI, através da Portaria n.º 1979 de 20/11/1985; i) Decreto n.º 94.606 de 14/07/1987: declarou de ocupação Waimiri-Atroari uma área com superfície de 2.440.000 ha. Por determinação do art 1º, § 1º deste Decreto, foram excluídas da TI Waimiri-Atroari a superfície de inundação da barragem de Balbina, bem como a faixa de domínio da BR – 174; j) Decreto n.º 97.837 de 16/06/1989: homologou a demarcação administrativa da TI Waimiri-Atroari, com superfície de 2.585.911 ha, mantendo a exclusão da superfície de inundação da barragem 19 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas de Balbina, bem como da faixa de domínio da BR – 174. Verifica-se, pois, que o processo de demarcação da Terra Indígena Waimiri-Atroari foi cercado de percalços e óbices, resultantes de interesses econômicos os mais diversos nas riquezas encontradas na área. A FUNAI, em certos momentos, cedeu a pressões econômicas, seja reduzindo os limites das áreas tradicionais dos Waimiri – Atroari, seja se omitindo quanto ao dever de proceder à redefinição dos seus respectivos limites, de modo que a área demarcada não abrangeu todas as terras ocupadas pela comunidade indígena. É neste ponto que a omissão da FUNAI na demarcação da Terra Indígena Waimiri-Atroari se liga às fraudes perpetradas pelo governo do Estado do Amazonas na outorga de terras a particulares, de propriedade reservada da União por força da ocupação tradicional indígena. Anteriormente, com efeito, já se apontou as irregularidades ocorridas quando da outorga de títulos de lotes pelo Estado do Amazonas a particulares na área onde hoje se encontra o reservatório de Balbina. Uma das hipóteses possíveis é que a omissão da autarquia indigenista quanto ao dever de proceder à redefinição dos limites da terra indígena Waimiri-Atroari tenha decorrido da pressão exercida por particulares que, interessados em receber as vultosas indenizações pagas pela Eletronorte, em razão da desapropriação da área para a construção de Balbina, pressionaram os técnicos da FUNAI no sentido de, por ocasião da demarcação da terra indígena Waimiri-Atroari, excluírem, deliberadamente, a área ocupada pelo reservatório de Balbina. No Relatório Final de seu trabalho, o Procurador Regional da República, Dr. Franklin Rodrigues da Costa, aponta a preocupação dos sucessivos 20 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Decretos que demarcaram a área indígena WAIMIRI-ATROARI em não abranger a área que seria inundada pela Usina Hidrelétrica de Balbina (ANEXO V - fls. 90/92 do Relatório).Veja-se: “A demarcação da Área Indígena WAIMIRI ATROARI) sempre foi marcada pela cautela de excluir a área que seria inundada pela Usina Hidrelétrica de Balbina. Estudo realizado pelo indigenista GILBERTO PINTO, na década de 1970, propõe o reconhecimento da posse imemorial dos WaimiriAtroari, desde a longitude 59°50' oeste até a longitude 61°50' e da latitude 00°25" norte até o a latitude -02° 00' sul, e incluía a área que viria a ser alagada. A área proposta incidia sobre a região que seria alagada pela Usina de Balbina e sobre o então chamado "Loteamento Pitinga" - onde estão os lotes outorgados pelo Estado do Amazonas. O loteamento "Loteamento Pitinga" vai do paralelo 01°00' sul até 02°15' sul e do meridiano 59°30' oeste a 60°15' oeste . Todos os Decretos que trataram da criação da Reserva Indígena WAIMIRI-ATROARI sempre se acautelavam apontando limites que tangenciassem a área a ser inundada, embora os indígenas vivessem - como é comum - às margem dos rios formadores do Lago de Balbina e ainda vivem nas ilhas formadas pelo alagamento. Assim o foi com o Decreto 68.907, de 13 de julho de 1971 que criou a Reserva; Decretos 74.463, de 26 de agosto de 1974, 75.310, de 27 de janeiro de 1975 e 86.630, de 23 de novembro de 1981 que interditaram área para fins de atração e pacificação; Decreto 94.606, de 14 de julho de 1987 que declarou área de ocupação tradicional; e Decreto 97.837, de 16 de junho de 1989, que a homologou. 21 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Sempre foi reconhecido que o curso do Rio Uatumã - onde está localizada a barragem e a área inundada - era local de moradia, de caça, pesca e atividades dos índios WAIMIRI-ATROARI. No entanto, a construção da Hidrelétrica de Balbina conduziu a que essa área fosse sempre excluída dos Decretos de reserva, interdição e demarcação. Tanto que o Decreto 97.837, de 16 de junho de 1989, que"homologa a demarcação administrativa da Área Indígena WAIMlRi-ATROARI" tem dispositivo expresso nesse sentido. O parágrafo único do artigo 2°, verbis: 'Art. 2o (...) Parágrafo único. Ficam excluídas, da área descrita, a superfície de inundação da barragem da Usina Hidrelétrica de Balbina, conforme Decreto n° 85.898, de 13 de abril de 1981, e a faixa de domínio da BR-174.' Ora, o dispositivo é absolutamente ilegal e inconstitucional. É que o Decreto 85.898, de 13 de abril de 1981, "declara de utilidade pública, para fins de desapropriação, áreas de terra com benfeitorias, necessárias à formação do Reservatório da Usina Hidrelétrica de Balbina". O fato de haver um Decreto que declarava "de utilidade pública, para fins de desapropriação, as áreas de terra com benfeitorias, de propriedade particular" não constitui fato impeditivo ao reconhecimento, ainda que posterior, da propriedade da União dessa mesma elementos área, caso descritos peia se constate que ela Constituição como contém os suficientes e necessários para o seu enquadramento nesta situação jurídica. Este é o caso. 22 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Ao excluir expressamente da demarcação da Área Indígena WAIMIRI-ATROARI, "a superfície de inundação da barragem da Usina Hidrelétrica de Balbina" - que constituía posse imemorial dos WAÍMIRI-ATROARI - o Decreto presidencial renunciou, de forma ilegal e inconstitucional, a bem de propriedade da União, fulminando o princípio da indisponibilidade dos bens públicos. O resultado dessa disponibilidade do bem público vem repercutindo, desde então, em grave lesão à ordem jurídica e à economia pública, representada pela pretensão dos beneficiários dos lotes outorgados pelo Estado do Amazonas, na área de posse imemorial dos WAIMIRI-ATROARI, de receberem vultosas indenizações decorrente da formação do Lago de Balbina. Há necessidade de correção dessa ilicitude administrativa, para reconhecer e declarar com bem da União "a superfície de inundação da barragem da Usina Hidrelétrica de Balbina", haja vista ser de posse imemorial da etnia WAIMIRI-ATROARI.” O Parecer do Analista Pericial em Antropologia do MPF nº 01/2008 (ANEXO VII), deveras, faz alusão expressa aos interesses econômicos na região, abrangendo as atividades minerárias de Paranapanema, a construção da Hidrelétrica de Balbina, a BR – 174 e ainda os projetos fundiários do governo federal (INCRA) e dos Estados. Nesse sentido também as informações do indigenista José Porfírio Fontenele de Carvalho, em resposta ao ofício nº 166/2008/3OFCIV/AM (ANEXO VIII), sobre os limites da reserva Waimiri-Atroari. Vale transcrever trecho que, em tudo, toa com a investigação ora empreendida: “ As propostas de criação de reservas encaminhadas pelos sertanistas e pela Direção da FUNAI, muita das vezes não eram consideradas e a 23 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas criação das Reservas apresentava sempre contornos e limites diferentes das eleitas. totalmente o Entretanto os índios que processo de demarcação, na maioria devido ao desconheciam seu grau de conhecimento de nossa sociedade ser muito pouco, não opinavam sobre os limites. Ao mesmo tempo também ignoravam os limites fixados por demarcações e mantinham-se usando as terras que normalmente ocupavam. O que realmente acontecia é que a ´demarcação` de um território indígena era fixada pela ocupação do não índio que ´militarmente` iam ocupando os rios da Amazônia. Este ´limite` era ano a ano fixado na mesma proporção do interesse econômico – extração da borracha, castanha, animais silvestre (peles era um dos principais itens da exportação da Amazônia até a década de 70) e da capacidade bélica do invasor. Neste processo os índios eram ´tangidos` para acima das cachoeiras, locais de difícil navegação para os invasores. As cachoeiras funcionavam como uma espécie de barreira natural ao avanço dos invasores. No rio Uatumã, os índios Waimiri Atroari de costume seminômades, habitavam desde as suas cabeceiras até sua foz, no rio Jatapu, por onde navegavam e subiam aquele rio também até as cachoeiras. Conheço ainda velhos Waimiri Atroari que contam suas viagens quando jovens utilizando este processo. Alípio Bandeira, grande sertanista e indigenista, (Primeiro Inspetor chefe da Inspetoria do S.P.I. no Amazonas) quando esteve em julho e princípio de agosto de 1911, no rio Uatumã, soube da existência dos Waimiri Atroari e que ´freqüentavam esse rio em certa época do ano e que eram ali frequentemente assassinados por um hespanhol, o Snr. Moreno, morador da Cachoeira Maximiana` (A cachoeira Maximiana hoje é conhecida como a Cachoeira Morena – certamente em alusão ao Senhor Moreno que ali se estabelecera) [...] 24 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas A cachoeira Morena fica abaixo da cachoeira Balbina a jusante da barragem da Usina hidrelétrica de Balbina – aproximadamente 25 quilômetros. Quando em 1967, as equipes de sertanistas da FUNAI subiam o rio Uatumã na tentativa de contatos pacíficos com os Waimiri Atroari, desde a cachoeira Morena passavam a ficar mais atentos, pois dali em diante a qualquer momento poderiam encontrar grupos de índios Waimiri Atroari. Numa destas expedições que participei encontramos um grupo de índios Waimiri Atroari na foz do rio Pitinga, que a tudo indica nos seguiam pelas margens do rio Uatumã desde as proximidades da Cachoeira Balbina, caracterizando sem sombra de dúvida que aquela região da Cachoeira Morena para cima era local de uso dos Waimiri Atroari. [...] Quando fizemos, junto com Gilberto Pinto Figueiredo, a proposta de criação da Reserva Waimiri Atroari, dentro das limitações que nos eram impostas, que era de que o território a ser destinado aos índios para as Reservas Indígenas teria que ser o mais reduzido possível. Nos decretos de criação de Reservas indígenas, já era mencionada a condição de redução da área. Foi fixado o limite leste no rio Pitinga, quando na realidade pela presença e pelo uso da área pelos índios Waimiri Atroari o limite real seria a Cachoeira Morena ou Balbina. [...]” (grifos nossos) Portanto, no processo de demarcação da terra indígena WaimiriAtroari, os interesses econômicos nas riquezas encontradas na área prevaleceram sobre os direitos originários dos índios Waimiri – Atroari. Nesse contexto, deu-se a construção da hidrelétrica de Balbina, cuja consequente inundação sucedeu na área de ocupação tradicional indígena. 25 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas 5.3.2. DA REMOÇÃO DOS ÍNDIOS WAIMIRI-ATROARI PARA A CONSTRUÇÃO DA HIDRELÉTRICA DE BALBINA Por meio do Of. nr. 49/70 -1ª DR, datado de 12 de março de 1970, e constante no Processo FUNAI nº 2625/81 (instaurado para ordenar a documentação até ali existente e para identificação e delimitação da Terra Indígena Waimiri/Atroari), que faz parte do Processo MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72 (mídia constante no ANEXO XI – Pasta Processo Funai 2625/81), afirma-se, no início da década de 70, ser fronteira viva de região indígena ocupada pelos Waimiri-Atroari o Rio Uatumã e a presença de índios nas partes altas dos vales dos rios Jatapú e Uatumã : “1.4. Circunstância não menos inquietante são as fronteiras vivas de região indígena, principalmente os cursos do Jauaperí, Alalaú e Uatumã, por onde é altamente facilitada a penetração de aventureiros e, o que é pior, dos paranóicos, estatisticamente consideráveis, dispostos a duplicar os feitos do sertanista Gilberto Pinto Figueiredo Costa 1.5. A técnica, a sensibilidade e o poder de comunicação dêste Sertanista, granjearam-lhe a amizade do próprio governante índio, porém não parece lógico esperar-se que, um caso de conflitos com aventureiros, a amizade de um estranho prevaleça sôbre a opinião dos governados do tuxáua Maruaga. (...) 2.3 Deve-se creditar à divisão dos Atroari o equilíbrio de diversas pequenas tribos, arredias e tecnologicamente mais primitivas, que habitam as partes altas dos vales do Jatapu e Uatumã.” (fls. 03/05 do Processo FUNAI/BSB/2625/81- ANEXO XI – Pasta Processo Funai 2625/81) No Parecer n.º 167/87-GT Port. Interministerial n.º 002/83-Dec. 88118/83 (ANEXO XI – Pasta Processo Funai 2625/81), constante em fls. 509/523 do mesmo Processo FUNAI nº 2625/81 e datado de 05 de junho de 1987, que 26 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas fundamentou os limites atualmente definidos para a terra indígena Waimiri-Atroari, consta o expresso reconhecimento de que os índios Waimiri-Atroari foram removidos de suas terras para a construção da hidrelétrica de Balbina, com base no art. 20 da Lei 6.001/73 (aparentemente a alínea “d” do § 1º do referido art. 20, embora não tenham sido seguidas as formalidades exigidas na referida norma, como o Decreto do Presidente da República), e de que havia registro de propriedades incidentes na área indígena e no polígono declarado de utilidade pública para fins de desapropriação, conforme se verifica pelos seguintes trechos (fls. 513/514): “10. Entretanto, no decorrer dos anos e com a instalação de projetos de exploração agrícola aventureiros e e madeireira especuladores nas proximidades chegaram a da registrar reserva, como propriedades particulares vastas áreas dentro da reserva. 11. Todavia, mesmo com esses registros, ou declaração de posse junto ao INCRA e “pagamento de impostos”, esses falsos proprietários nunca se arriscaram a tomar posse de suas declaradas propriedades, talvez pelo grande temor que os regionais ainda cultivam com relação a agressividade desses índios. 12. Posteriormente, instalou-se dentro da área, na região leste, com autorização da FUNAI, a empresa mineração Timbó Mineradora Ltda., atualmente com o nome Taboca pertencente ao grupo Paranapanema, que se encontra atualmente em plena atividade exploratória. 13. Em Janeiro de 1979, a ELETRONORTE comunicou à FUNAI que iniciaria os trabalhos de construção da UHE-BALBINA, que represaria o rio Uatumã, informando o nível que a lâmina de água atingiria, totalizando 1/3 da área da reserva, e as influências diretas e indiretas na região. (...) 17. Em 23 de novembro de 1981, através do Decreto n.º 86.630/81, revogavam-se os decretos anteriores (68.907/71, 74.464/74 e 27 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas 75.310/75) tornando EXTINTA a Reserva Indígena Waimiri-Atroari; transformando a área habitada por aqueles índios, declarava como “ÁREA INTERDITADA TEMPORARIAMENTE PARA FINS DE ATRAÇÃO E PACIFICAÇÃO DOS INDIOS WAIMIRI-ATROARI”, invertendo totalmente o processo de regularização de uma área indígena. 18. Além de acabar com a Reserva Indígena, tornando-a, simplesmente, uma “área interditada”, o Decreto n.º 86.630/81 de 23.11.81, diminuiu a área em em 526.800 hectares, exatamente a área pretendida para exploração mineral.” (fls. 532/533 do Proc. FUNAI 2625/81, grifos nossos) Tendo em vista a remoção dos índios das terras que tradicionalmente ocupavam, o citado Parecer propôs o ressarcimento pelos prejuízos dos índios e afirmou a inexistência de posse efetiva nas áreas tituladas em cartório: “VI- SITUAÇÃO ATUAL Com a previsão da inundação da barragem da UHE-BALBINA para outubro/87, torna-se Homologatório da necessário Área Indígena a inclusão proposta, de no um Decreto artigo reconhecendo o direito dos índios a serem ressarcidos dos prejuízos decorrentes da remoção, nos termos do Artigo 20, parágrafo 4º da Lei 6.001/73; cabendo à ELETRONORTE ressarcílos pelos prejuízos causados com a inundação das áreas de uso dos índios das aldeias Taquari e Tapupunã, e a consequente mudança para outro local; cabendo à FUNAI, com participação da ELETRONORTE, quantificar os prejuízos. (...) Muito embora constem no INCRA de Manaus cerca de 30 títulos registrados em cartório, de áreas compreendidas no território WAIMIRIATROARI, pode-se afirmar, com toda a certeza, a não existência de posse efetiva, ou invasões, pelo temor que esses índios inspiram. Alguns títulos incidem no polígono declarado de utilidade pública a ser desapropriado para a formação do Reservatório de 28 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas BALBINA, Decreto n.º 85898 de 13.04.81.” (fl. 541 do processo FUNAI 2625/81, grifos nossos). A compensação proposta veio deveras tardiamente, dado o histórico que até ali existia de impactos socioculturais ocasionados aos indígenas. A transcrição de parte do documento “Estudo B: O caso da UHE Balbina e os índios Waimiri-Atroari” pela Informação nº 96/CGID/2009 da Funai (ANEXO IX) em suas fls. 18/19 bem traduz a desídia para com os direitos dos Waimiri-Atroari, da qual nos valemos do seguinte excerto: “Em setembro de 1979, em trabalho que definia estudos conceituados como prioritários a serem desenvolvidos na fase anterior ao enchimento do reservatório, a Monasa, consultora do projeto UHE Balbina, assessorada pela Divisão Ambiental da Montreal Engineering Company Limited (MECO), enfatizou, repetidas vezes, a importância de definição prévia a respeito da abordagem dos problemas de ordem social que incidiriam na área indígena. Recomendando a avaliação sociológica do provável impacto do projeto, foi sugerido ainda para 1979 um processo de discussão com a FUNAI para elaboração de um programa que pudesse minimizar os prejuízos dos índios Waimiri-Atroari. Como proposto, tal programa deveria ser implementado já no princípio de 1980. Contudo nenhuma medida neste sentido foi efetivada. A elaboração de um programa para atendimento dos Waimiri-Atroari teve lugar muito tardiamente, já por ocasião do fechamento das comportas da barragem, tendo sido elaborado basicamente por um assessor da ELETRONORTE e funcionários da FUNAI, em outubro de 1987.”(destacamos) Vale transcrever também outro trecho do referido processo, da lavra do Antropólogo Stephen Baines, datado de 09.09.1985, que consta em fl. 463 do Processo FUNAI BSB 2625/81 (mídia constante no ANEXO XI – Pasta Processo Funai 2625/81): 29 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas “7. Área desmembrada pelo Decreto Nº 86.630 de 23 de novembro de 1981, ocupada pela Mineração Taboca do Grupo Paranapanema. Propostas: - a interdição temporária, e de imediato, da rede hidrográfica dos rios Pitinga e Pitinguinho, e a evacuação dos funcionários da Paranapanema que se encontram na área, visto que as informações obtidas, inclusive através da empresa Mineração Taboca, que deram origem aos radiogramas da Iª DR:NR524/NAWA de 22 08 85, NR506/NAWA de 08 08 85, e Nº 2537 de 22 08 85, constataram a presença de indígenas arredios nesta região. Estas informações foram confirmadas ao G.T. no dia 27 de agosto de 1985 pelos Dr. Dornelles e Dr. Renato, e posteriormente pelo Dr. Nelson, funcionários da Mineração Taboca, que nos forneceram, inclusive, o nome da Cia. Transportadora Di Gregorio, cujo empregado motorista da carreta ZC5II7 no dia 24 08 85 declarou para a empresa Mineração Taboca, ter encontrado no dia 13 08 85, 08 indígenas (06 homens e 02 mulheres) atravessando a estrada no Km. 30 vicinal hidrelétrica Pitinga.” Tais transcrições revelam que as áreas de disputa nos autos das ações de desapropriação ajuizadas pela Eletronorte para permitir a construção da hidrelétrica de Balbina se situam em terras tradicionalmente ocupadas pelos WaimiriAtroari. Evidenciam, outrossim, a inexistência de posse por parte dos “desapropriados”, não apenas por se tratar de região longínqua de floresta densa, mas também pela própria presença dos indígenas na área. Nesse ponto, necessário mais uma vez nos valer do Relatório do Dr. Franklin Rodrigues da Costa. Conforme expendido supra, o mencionado Procurador Regional da República debruçou-se sobre a questão, analisando toda a transferência feita pelo Estado do Amazonas aos particulares, relatando de forma detalhada como 30 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas se deu o requerimento, o subseqüente registro e listando quais e quantas foram as normas violadas. Em seguida, abordou a questão indígena (ANEXO VII, fls. 88/89 do Parecer) : “ E mais: os outorgados tinham conhecimento de que se tratavam de terras tradicionalmente ocupadas por índios, tanto é assim que os proprietários se dirigiram à FUNAI e lá registraram seus títulos na tentativa de convalidar o ato de transferência, ou seja, de tornarem terras públicas da União em propriedade particular. No ano de 1987, o então Presidente da FUNAI, Romero Jucá Filho, em relatório sobre os Wamiri-Atroari afirmou: ´Muito embora constem no INCRA de Manaus cerca de 30 títulos registrados em cartório, de áreas compreendidas no território WAIMIRIATROARI, pode-se afirmar, como toda a certeza, a não existência de posse efetiva e invasões, pelo temor que esses índios inspiram. Alguns títulos incidem no polígono declarado de utilidade pública a ser desapropriado para a formação do reservatório de BALBINA, Decreto n.° 85.898 de 13.04.81. A esse mesmo respeito, Angela Maria Baptista, em relatório da FUNAI, chama a atenção do Órgão da existência de títulos de propriedade naquela área indígena: ´Conforme informações fornecidas ao GT pelo INCRA de Manaus na pessoa da Dra. Odila Sernadeth Tranguo (advogada do Departamento do projeto Fundiário de Manaus) como a 'Planta Geral de Situação das Glebas' nos municípios de Silves, Itapiranga e Urucará, existem cerca de 338 títulos de propriedades incidentes na área reservada para os Waimiri-Atroari pelo Decreto de n.°68.907, de 13/07/71, expedidos pelo Governo do Estado do Amazonas. Não possuímos informações que detentores desses títulos tenham tentado se fixar nessa área, todavia sugerimos que a FUNAI entre em contato com o INCRA verificando a situação legal desses títulos evitando problemas futuros. 31 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Diante das evidências, o Procurador Regional da República Dr. Franklin Rodrigues da Costa decidiu conferir in loco a ocupação da área pelos Waimiri Atroari, veja-se: “O MPF, na instrução deste procedimento, incursionou na área e registrou o depoimento dos índios, os quais confirmam a ocupação tradicional da área, inclusive à jusante de onde veio a ser localizada a barragem da Usina Hidrelétrica de Balbina. Também foi elaborada documentação fotográfica mostrando que, ainda hoje, os índios moram nas ilhas formadas pelo Lago de Balbina, mormente nos leitos dos Rios Pitinga e Uatumã, evidenciando que a região sempre foi área de ocupação tradicional da Comunidade Waimiri-Atroari - precisamente onde estariam os lotes aos quais se atribui a propriedade aos 'expropriados'” (grifamos) O depoimento dos índios e os registros fotográficos constam no ANEXO V. 5.3.3. DA CRIAÇÃO DO PROGRAMA WAIMIRI – ATROARI COMO COMPENSAÇÃO AOS INDÍGENAS PELA REMOÇÃO DE SUAS TERRAS TRADICIONAIS: No caso, em virtude da remoção dos Waimiri – Atroari de suas terras tradicionais, a FUNAI e a Eletronorte firmaram o Termo de Compromisso n.º 02/1987 “objetivando a implantação de um programa de apoio às comunidades indígenas Waimiri – Atroari tendo em vista a inundação de parte de suas terras imemoriais pela UHE – Balbina” (ANEXO XII). Da análise da cláusula primeira do referido documento, verifica-se que o objetivo é o de “ressarcir a comunidade indígena WAIMIRI-ATROARI pela perda 32 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas de posse de suas terras imemoriais, com a inundação da aldeia TAPUPUNÃ, no Rio Abonari, áreas de uso naquele Rio e áreas de uso dos Índios no rio Taquari, da Aldeia Taquari, e os prejuízos de ordem cultural inerentes à remoção para outro local, em decorrência da formação do reservatório da UHE Balbina.” O Termo de Compromisso estabeleceu ações de execução imediata, mediata e futura. Dentre as ações mediatas, destaca-se a obrigação de a FUNAI demarcar a terra Waimiri-Atroari, “sem excluir a área de inundação inclusa no perímetro da área indígena imemorial”, sendo a demarcação custeada pela Eletronorte. Com base no referido Termo de Compromisso, foi aprovado o programa Waimiri-Atroari, que realiza ações na área de saúde, educação, cultura dentre outras. O Termo Aditivo mas recente é o de n.º 03/2006 que estabelece o pagamento pela Eletronorte da importância de R$ 3.998.939,60 como valor anual para o programa no ano de 2006 e anos subsequentes (ANEXO XII). 5.3.4. DA ATUAL OCUPAÇÃO DAS ILHAS DO LAGO DE BALBINA PELOS INDÍGENAS WAIMIRI-ATROARI: Na atualidade, os indígenas Waimiri- Atroari continuam a ocupar as ilhas formadas pelo lago de Balbina, utilizando das águas do lago para a realização de pesca, bem como para a locomoção. Nesse sentido, veja-se as seguintes informações prestadas pelo indigenista José Porfírio Carvalho Fontenele, datado do último dia 03 de dezembro de 2009 (ANEXO XII): “... 5. Os Waimiri atualmente continuam utilizando-se da região do lago de Balbina nas suas atividades culturais e de subsistência como pesca, 33 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas roças, coletas etc. 6.A aldeia Ariné, com população de 49 pessoas sob a liderança dos índios Matini Waimiri e Isasy Waimiri, está localizada dentro do lago numa ilha na foz do antigo Igarapé Água Branca. (coordenadas geográficas 01º15'24'' Sul e 60°07'39''W) fotos em anexo. 7.Os Waimiri continuam utilizando do lago (antigo rio Uatumã que foi represado pela UHE Balbina) nas suas atividades produtivas e culturais, circulando e obtendo a sua subsistência”. Do acima exposto, verifica-se que remanesce para os indígenas Waimiri-Atroari o interesse no reconhecimento de que a área ocupada pelo lago de Balbina é de ocupação tradicional indígena Waimiri-Atroari, visto que ainda na atualidade os indígenas utilizam-se do lago para as suas atividades de subsistência e culturais, conforme se verifica das fotografias colacionadas pelo indigenista Porfírio Carvalho (Anexo XII) 5.3.5. DA PERÍCIA REALIZADA PELO ANALISTA PERICIAL EM ANTROPOLOGIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL No Parecer/PRDC/AM/nº001/2008 (ANEXO VII), o Analista Pericial em Antropologia do MPF, Walter Coutinho Jr., analisa as fortes evidências de que a ocupação tradicional dos Waimiri Atroari vai muito além das áreas demarcadas, concluindo pela probabilidade de outros lotes alienados pelo Estado do Amazonas no período de 1969/1971, embora não incidentes na Reserva Indígena de 1971, localizarem-se em região de ocupação coetânea dos Waimiri-Atroari, que dali tiveram que se retirar ao longo do tempo por força de pressões, inclusive de caráter fundiário, relacionadas ao contato interétnico. O antropólogo assenta, deveras, que, a par da questão da sobreposição dos lotes objeto das ações de desapropriação na terra indígena Waimiri-Atroari sucessivamente demarcada, parece haver evidências 34 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas suficientes para afirmar que os respectivos títulos foram expedidos pelo Estado do Amazonas, no período de 1969/1971, numa região de terras ocupadas coetaneamente pelos Waimiri-Atroari. Veja-se (fls. 25/27 do Parecer): “De acordo com o relatório apresentado pelo Dr. Franklin Rodrigues da Costa, as glebas do Loteamento Pitinga tituladas pelo Estado do Amazonas envolvidas na ações de desapropriação em causa são as de número 01-13, 15-31, 33-34, 39-50, 54-60, 78-79, 83-85, 116, 121, 125 (A, B, D e E), 243, 265, 274 e 286, além de um lote com numeração não identificada. Tomando como referência os mapas apresentados às fls. 106, 378 e 541 do Procedimento nº 929/2001, podemos fazer as seguintes observações: a) Várias inconsistências encontradas na descrição de limites do Decreto nº 68.707/71 tornam difícil precisar a exata superposição do loteamento Pitinga em relação à reserva indígena Waimiri-Atroari. (...) De todo modo, caso se tome como correta a superfície indicada pelo mapa juntado às fls. 378 – que se poderia qualificar como uma interpretação plausível da área descrita pelo Decreto nº 68.707/71 –, estaria configurada a sobreposição com os limites da Reserva Indígena Waimiri-Atroari, criada em 1971, de parte dos lotes nº 08, 09, 26, 27, 28, 48, 49, 50 e 84, 125-A, 125-B, 125-C e 125-D, todos do chamado Loteamento Pitinga e objeto das ações de desapropriação aqui consideradas. b) Ademais, pode-se também afirmar, de forma tentativa, que os lotes nº 125-A à 125-E incidiriam, total ou parcialmente, nos limites da Área II declarada de ocupação indígena pela Portaria nº 511/N/78, na área interditada pelo Decreto nº 86.630/81, na área declarada de ocupação Waimiri-Atroari pelo Decreto nº 94.606/87, e na área homologada pelo Decreto nº 97.837/89. Além dos lotes acima referidos, a área interditada em 1981 incluiria também parcialmente os lotes nº 49-50 e 84-85. Uma 35 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas manifestação de caráter conclusivo sobre as glebas do Loteamento Pitinga realmente abrangidas, e em qual proporção, nas sucessivas definições de limites da TI Waimiri-Atroari dependeria da plotagem dos pontos relevantes em carta geográfica elaborada numa escala adequada para melhor visualização. c) Seja como for, pode-se afirmar que, independente das glebas pertencentes ao Loteamento Pitinga que apresentam efetiva sobreposição, no todo ou em parte, com a área da reserva indígena criada em 1971 e/ou com a terra indígena homologada em 1989, parece haver elementos suficientes para afirmar que os respectivos títulos foram expedidos pelo Estado do Amazonas, no período de 1969/1971, numa região de terras ocupadas coetaneamente pelos Waimiri-Atroari. Os especialistas neste grupo são acordes em considerar a área inundada pelo lago da hidrelétrica de Balbina como, até então, ocupada por essa sociedade indígena. tradicionalmente De fato, o lingüista e antropólogo Márcio Silva afirma que, “em 1976, um projeto hidrelétrico de grande porte começou a ser implementado em uma área ocupada pelos Waimiri-Atroari até fins dos anos sessenta” 1. O antropólogo Stephen Baines, por sua vez, comenta que “uma imensa área do território dos Waimiri-Atroari, abrangendo os vales dos rios Uatumã e Abonari e seus afluentes acima da barragem da UHE Balbina, toda de ocupação deles até a década de 1970, foi inundada pelo reservatório” 2. O indigenista José Porfírio Carvalho menciona que, numa das incursões realizadas em 1969 pela equipe de atração da FUNAI da qual era integrante, ao chegar à foz do rio Pitinga deparou-se com um grupo de aproximadamente cinqüenta indígenas acampados no local, a partir de onde, Uatumã acima, encontravam-se diversos outros grupamentos waimiri-atroari caçando e pescando. Por informações dos índios, soube da existência de “uma grande maloca em terras altas, afastada da margem esquerda do Rio Uatumã, fato este que pode comprovar posteriormente em sobrevôos na área” (Proc. 929/01, fls. 369). 1 2 SILVA, op. cit., p. 54. BAINES, 1995, p. 7. 36 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Deveras, uma maloca waimiri-atroari foi fotografada em 1968 durante um sobrevôo realizado na região do rio Pitinga3. Como vimos anteriormente, ao argumentar em favor da manutenção da porção leste da reserva indígena – excluída depois pelo decreto de 1987 e parcialmente alagada pelo reservatório de Balbina –, a antropóloga Ângela Baptista aduz as informações constantes em um relatório do coordenador da Frente de Atração Waimiri-Atroari, Giuseppe Cravero, datado de 1979, que sustenta ser aquela região utilizada pelos índios para caça, pesca e coleta de ovos de tracajá (supra:17)”. O antropólogo, ademais, associa a ausência de posse por parte dos supostos proprietários dos lotes expedidos pelo Governo do Amazonas justamente à presença dos índios Waimiri-Atroari na área. Confira-se (fls. 27/28 do Parecer): “d) É especialmente relevante verificar que, há mais de um quarto de século, já se correlacionava a ausência de posse, por parte de seus pretensos proprietários, dos lotes incidentes na reserva indígena criada em 1971, ou na área indígena proposta para demarcação em 1981, com a ocupação dos índios WaimiriAtroari na região das glebas tituladas. Assim, ao noticiar a expedição pelo governo do Estado do Amazonas de 338 títulos de propriedade incidentes na área reservada pelo Decreto nº 68.907/71, o relatório resultante dos trabalhos determinados pela Portaria nº 952/E/81 afirmava que não foram obtidas à época quaisquer informações de que os “detentores desses títulos de propriedade tenham tentado se fixar nessa área”, sugerindo de qualquer forma que a FUNAI buscasse o “contato com o INCRA verificando a situação legal desses títulos evitando problemas futuros”. De qualquer modo, diz o relatório, 'como essa área é secularmente ocupada pelos Waimiri Atroari, seu direito a posse permanente e ao usufruto exclusivo das 3 A fotografia desta maloca encontrada no rio Pitinga foi publicada no caderno de imagens inserido na obra de SABATINI (op.cit.). 37 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas riquezas naturais e minerais existentes na área é assegurado pelo artigo 198 da Constituição Federal não prevalecendo contra esse direito quaisquer títulos ou situações constituídas uma vez que são bens inalienáveis da União'4. e) O fato das glebas tituladas pelo Estado do Amazonas que incidiam no território Waimiri-Atroari não terem sido, até então, objeto de ocupação adventícia também foi comentado, em 1982, pelo indigenista José Porfírio Carvalho. De acordo com ele, apesar de “aventureiros e especuladores” terem chegado “a registrar como propriedades particulares, vastas áreas dentro da reserva dos índios Waimiri Atroari”, e ainda que possuíssem “declaração de posse junto ao INCRA” e viessem “'pagando impostos', estes falsos proprietários nunca se arriscaram a tomar [posse] de sua declarada propriedade, talvez pelo grande temor que os regionais ainda cultivam com relação a agressividade dos índios Waimiri Atroari”5. Com efeito, um mapa juntado aos autos de uma das ações judiciais de desapropriação da ELETRONORTE traz o símbolo de “aldeia” comumente utilizado pela cartografia da FUNAI na fronteira entre os lotes nº 125-A e 125-B, na face interna do “limite da reserva” indígena 6. O mesmo mapa traz, no interior do polígono declarado de utilidade pública pelo Decreto nº 85.898/81, a localização do PIA Abonari, do PIA Taquari, de outros dois “Postos Indígenas de Vigilância e Controle” e da “Aldeia Tomás”. Em parecer exarado sobre um pedido de atestado administrativo, Porfírio Carvalho afirma que, em setembro de 1986, percorreu toda a extensão do rio Uatumã à montante do local da UHE Balbina sem constatar qualquer “presença de ocupação de não índios nas suas margens” ou sinais que pudessem caracterizar a existência de propriedades rurais na 4 5 6 Processo FUNAI/BSB/3929/81, fls. 159 e 104. CARVALHO, op. cit., p. 113. Um documento do Instituto de Terras do Amazonas (ITERAM), datado de 1983, informa que tinham sido expedidos 22 títulos definitivos no interior da área indígena Waimiri-Atroari, interditada em 1981, plotando-se a localização dos mesmos em cópia do respectivo mapa juntado às fls. 386v./389 do Processo FUNAI/BSB/2625/81. Processo nº 2001.32.00.007234-9, fls. 21, em curso na 1ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas. Uma observação contida no selo de identificação deste mapa, que possui o timbre da ELETRONORTE, informa que “a localização das malocas, aldeias e postos indígenas é aproximada, com base na planta de interdição referente ao Processo FUNAI/BSB/2625/81, atualizado em 05/10/83”. 38 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas região (Proc. 929/01, fls. 382).” O antropólogo examina também a constatação in loco do Dr. Franklin Rodrigues da Costa, agregando outros dados que enriquecem a análise (fls. 28/30; fls. 32/33): “f) A ocupação waimiri-atroari na área depois inundada pelo lago da UHE Balbina foi confirmada nos depoimentos colhidos durante a visita àquela terra indígena, já mencionada anteriormente, procedida pelo Dr. Franklin Rodrigues da Costa. Um dos indígenas entrevistados referiu-se à existência de uma grande aldeia na região em que havia sido iniciada a construção da usina hidrelétrica: “Ele andava até pra cá pra baixo fora da represa, onde tá Balbina agora. Aqui, ele ta falando, tinha uma praia bem aqui, praia da Tartaruga”. Os índios abriam roçados nas proximidades dessa “aldeia também onde a represa alagou”, visitando com certa freqüência a região porque ali “tinha festa”. Entretanto, “depois que a barragem da hidrelétrica foi feita pararam de ir pra lá” pois o “pai deles, avô deles, família deles ficou com medo porque, medo de branco atirar neles”. “Antes disso”, outro declarou, “a gente ficava aqui. Caçava, pescava um tempão” (cf. Proc. 929/01, fls. 552/557). Os testemunhos prestados pelos Waimiri-Atroari mencionam que foram obrigados a se distanciar daquela área para evitar conflitos com os não índios (“pra pessoa não ir lá pra baixo pra não tocar... com homem branco”), retirando-se paulatina e forçosamente do local (“começou a subir, preparar outra aldeia [...] mudar né, a aldeia, roçado... [...] Depois que começou a demarcação também dei recado... proibiram de fora, né [...]. Uirapiri tá morrendo e tal [...]. Por isso que esse pessoal abandonou”) (Proc. 929/01, fls. 560). g) Na realidade, há informações esparsas que indicam a presença dos Waimiri-Atroari na zona situada muito além do 39 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas limite sudeste da reserva indígena criada em 1971 e até mesmo da poligonal declarada de utilidade pública para fins de desapropriação pelo Decreto nº 85.898/81. Vimos anteriormente que a memória indígena registra que o líder Waimiri-Atroari chamado Maiká teria nascido na região do rio Urubu, ao sul de Balbina, onde residiu até deslocar-se com o seu grupo para a região do Abonari (supra:13). Uma outra evidência indireta da ocupação Waimiri-Atroari nessa região constitui a formação espeleológica conhecida como “Refúgio do Maroaga”, situada a cerca de seiscentos metros da margem direita no Km 08 da rodovia AM-240, que liga a cidade de Presidente Figueiredo à vila de Balbina, no interior da Área de Proteção Ambiental Caverna do Maroaga7. A caverna que dá nome à APA 'foi cadastrada, quando da execução dos trabalhos de levantamento espeleológico para a implantação da Usina hidrelétrica de Balbina, como Gruta Refúgio do Maroaga', sendo esta denominação dada 'em homenagem a um chefe indígena das etnias Waimiri-Atroari, que, segundo a lenda, teria ali se refugiado quando perseguido pelos brancos'. No presente, ao ser visitada por grupos de turistas, os guias locais repetem a explicação “dizendo que o nome da caverna é uma homenagem ao índio guerreiro Maroaga, da tribo Waimiri-Atroari, que utilizou a caverna como refúgio nas décadas de 1960 e 1970, durante o período de construção da Rodovia BR-174”8. Este chefe indígena teria se deslocado posteriormente para a região do rio Santo Antonio do Abonari, onde os Waimiri-Atroari, segundo Porfírio Carvalho, “eram liderados pelo conhecido Maroaga”. Em fins de dezembro de 1974, um grupo de índios “chefiados pelo já conhecido e 7 8 A APA Caverna do Maroaga foi criada pelo governo do Estado do Amazonas com 256.200 hectares através do Decreto nº 12.836, de 09.03.1990, tendo os seus limites ampliados para 374.700 hectares pelo Decreto nº 16.364, de 07.12.1994. SANTOS JÚNIOR, Aldemir P. & LIMONGE, Jesseneide P. “Turismo espeleológico na Amazônia: estudo de caso da Caverna do Maroaga em Presidente Figueiredo, ano 2006”. Observatório de Inovação do Turismo – Revista Acadêmica, vol. II (4): 1-13, 2007, p. 5. Sabe-se, além disso, que a Caverna do Maroaga possui vestígios de remota ocupação indígena, concedendo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) por meio da Portaria nº 47, de 13.02.2007, permissão para o desenvolvimento de um projeto de resgate histórico e arqueológico naquele sítio. 40 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas amigo de todos no Posto, índio sexagenário Maruaga”, visitou o PIA Abonari.” “(...)Recorde-se que o Decreto nº 85.898, pressuposto para a desapropriação das glebas a que se referem os litígios judiciais, foi expedido em 13.04.1981, e que o Decreto nº 86.630, de interdição da terra indígena, foi baixado somente em 23.11.1981. Isto quer dizer que a declaração de utilidade pública da área, ao ser efetivada no mês de abril, incluiu uma vasta porção de terras abrangidas pela reserva indígena criada pelo Decreto nº 68.907/71 e quase metade da Área II declarada de ocupação indígena pela Portaria nº 51/N/78, que somente vieram a ser excluídas da afetação ao grupo indígena Waimiri-Atroari no mês de novembro. É cediço o fato de haver, ainda hoje, superposição entre parte significativa das áreas descritas pelos Decretos nº 85.898/81 e nº 97.837/89. v) Ressalte-se ainda os problemas de fundo que cercam a aplicação do artigo 1º, parágrafo único, do Decreto nº 97.837/89 ao determinar a exclusão, dos limites da terra indígena demarcada para posse e usufruto dos índios Waimiri-Atroari, da “superfície de inundação da barragem da Usina Hidrelétrica de Balbina, conforme Decreto nº 85.898, de 13 de abril de 1981” e da “faixa de domínio da BR-174”. A discutível aplicação do disposto neste parágrafo pode ser aferida, de pronto, pela indeterminação cartográfica a respeito das áreas efetivamente alagadas pelo reservatório da UHE Balbina. Se, por um lado, existem grandes áreas de terras declaradas de utilidade pública pelo Decreto nº 85.898/81 (abrangendo 1.034.490 hectares), porém não inundadas no presente, comprova-se também em algumas plantas topográficas contemporâneas, por outro lado, que a superfície de alagação do reservatório extrapolou o polígono definido pelo Decreto nº 85.898/81 no interior da TI Waimiri-Atroari em determinados pontos no trecho superior dos rios Uatumã e Santo Antonio do Abonari. 41 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Estima-se que aproximadamente 13% da superfície inundada pelo reservatório de Balbina esteja incrustada nos limites da terra indígena homologada pelo Decreto nº 97.837/89, sabendo-se que algumas das ilhas existentes no lago têm sido, de fato, habitadas em caráter permanente pelos Waimiri-Atroari9. A imprecisão prática em relação aos limites da terra demarcada, e conseqüentemente da legitimidade da ocupação indígena, torna-se muito maior, contudo, naquelas regiões em que a margem oposta do reservatório está patentemente fora da área descrita pelo decreto de homologação. vi) Além de abranger áreas de moradia, o lago da UHE Balbina vem sendo utilizado pelos índios para o exercício de uma das suas atividades produtivas, a pesca. No entanto, por ser muito piscoso, e pelas belezas naturais da região, o lago tem sido igualmente procurado por não índios para a prática de pesca esportiva e de subsistência. O “Plano de Proteção Ambiental e Vigilância na Área Indígena Waimiri-Atroari, Área de Influência da Rodovia BR-174”, elaborado pelo PWA em 1995, já registrava que os recursos pesqueiros do lago de Balbina sofriam forte pressão de pescadores não índios, possuindo “nas suas cabeceiras, protegidas dentro da Área Indígena, locais para a procriação e conservação das espécies, e portanto, da manutenção daquele recurso econômico”10. Uma tentativa de invasão, repelida pelos Waimiri-Atroari, teria sido seguida pela “delimitação da área no lago com colocação de bóias e placas de sinalização” e por palestra informativa do PWA junto à colônia de pescadores da vila de Balbina. Aparentemente, é nesse contexto da disputa pelo acesso aos recursos de pesca no lago da hidrelétrica que se insere a denúncia, feita em 1997 por integrantes de comunidades não indígenas localizadas na região da BR-174, de que os Waimiri-Atroari estariam obstruindo o acesso ao igarapé Água Branca, onde teriam construído um cercado que impedia as famílias de pescarem e confiscado um motor de popa, a 9 10 Como se pode comprovar pela documentação fotográfica produzida durante a visita in loco, já referida, do membro da PRR-1ª Região (Proc. 929/01, fls. 408/410). Procedimento nº 1.13.066/2002-66, fls. 14. 42 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas canoa e o material de pesca levados por um comunitário. Do mesmo modo, moradores de uma comunidade do baixo rio Branco também comunicaram, em 2005, terem sido ameaçados pelos Waimiri-Atroari para que abandonassem a área utilizada por eles em atividades de pesca esportiva11. Ao final, conclui o perito antropológico (fls. 37/39): “Tendo em vista todo o exposto, podemos extrair duas conclusões principais em relação ao objeto dos procedimentos administrativos objeto deste parecer: I. Parte dos lotes alienados pelo Estado do Amazonas, integrantes do parcelamento denominado Pitinga e objetos das ações de desapropriação consideradas nos procedimentos em referência, superpõem-se total ou parcialmente seja à área da Reserva Indígena Waimiri-Atroari criada pelo Decreto nº 68.907/71 seja à da Terra Indígena Waimiri-Atroari homologada pelo Decreto nº 97.837/89. II. Há fundados elementos que indicam a probabilidade de outros lotes alienados pelo Estado do Amazonas no período de 1969/1971, embora não incidentes na Reserva Indígena de 1971, localizarem-se em região de ocupação coetânea dos Waimiri-Atroari, que dali tiveram que se retirar ao longo do tempo por força de pressões, inclusive de caráter fundiário, relacionadas ao contato interétnico. Além dessas ilações especificamente vinculadas ao objeto dos procedimentos administrativos aqui tratados, é preciso reconhecer a existência de informações suficientes para recomendar a realização de novos estudos e levantamentos sobre a TI Waimiri-Atroari nos termos do Decreto nº 1.775/96. Entre os fatores que sustentam essa necessidade merece destaque a ocupação dos Waimiri-Atroari de áreas localizadas 11 Cf. RICARDO, op. cit., p. 361; e RICARDO & RICARDO, op.cit., p. 374. A rigor, o mencionado igarapé Água Branca, cujos recursos eram disputados com a população regional, desemboca no reservatório de Balbina fora dos limites homologados pelo decreto de 1989, situando-se, porém, no interior da antiga área reservada em 1971. 43 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas fora dos limites atualmente demarcados e que até recentemente integravam o território do grupo. Dentre as áreas de ocupação indígena ainda não regularizadas, referidas ao longo deste parecer, estão: (i) a correspondente à maloca Uariné, junto ao limite nordeste da terra indígena, no interior ou proximidades da Reserva Biológica do Uatumã. De modo geral, essa região fazia parte da Reserva Indígena do decreto de 1971 e “encontra-se em área de interesse dos Waimiri-Atroari, que já reivindicam a sua posse em função de ser antiga terra daquele povo” (Proc. 929/01, fls. 382); (ii) a das malocas erigidas nas ilhas do reservatório da UHE Balbina, em região também abrangida anteriormente nos limites da Reserva Indígena criada em 1971; e (iii) as correspondentes ao Posto Indígena de Fiscalização Maháua e ao igarapé Macucuaú, ambas na região do rio Jauaperi. Trata-se de áreas onde se registra historicamente uma expressiva presença dos Waimiri-Atroari e que estavam incluídas, provavelmente, nas terras reservadas ao grupo pela Lei Estadual nº 941/17. Como vimos, os índios continuaram a freqüentar a região do igarapé Xixuaú (“Chichinau” na grafia antiga), a meio caminho entre o igarapés Macucuaú e Itaquera, até os trabalhos de atração da FUNAI no período de 1968-1975 (supra:19).” 5.3.6. DA RECOMENDAÇÃO N.º 09/2008 DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Com fulcro no farto material probatório que ora se leva a este douto juízo, que evidencia a posse tradicional indígena dentro dos limites do reservatório de Balbina, bem como a omissão do Decreto n.º 97.837/89 na demarcação da integralidade da terra indígena, o Ministério Público Federal expediu a Recomendação n.º 09/2008, para a FUNAI e a União (ANEXO IX), cujo excerto se transcreve abaixo: “Por todo o exposto, a Procuradoria da República no Amazonas, pelos Procuradores da República infra assinados, resolve, com fundamento no art. 5º, III, alínea “e”, art. 6º, VII,“c”, XI da Lei Complementar n. 75/93 44 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas e dos arts. 127 e 129, V, da CF/88., RECOMENDAR: a) à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que: a.1) realize novos estudos de identificação e delimitação para fins de regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios Waimiri-Atroari, tendo em vista que há sobejos elementos que permitem afirmar que o Decreto nº 97.837, de 16.06.1989 não abrangeu a totalidade das áreas que, nos termos do art .231, § 1º da Constituição de 1988, são tradicionalmente ocupadas pelo povo Waimiri-Atroari; a.2) no bojo dos estudos referidos no item acima, delimite as áreas que, ainda que não sejam atualmente ocupadas pelos Waimiri-Atroari, eram terras tradicionalmente ocupadas pelo referido povo no final da década de 1960, época em que foram doadas pelo Estado do Amazonas (consoante mapa em anexo que se refere ao polígono declarado de utilidade pública) a particulares que nunca a ocuparam efetivamente e em que tais áreas já integravam o domínio da União, índios Waimiri-Atroari foram expulsos para e das quais os construção da usina hidrelétrica de Balbina, porquanto não se pode admitir que, em desapropriação promovida pela Eletronorte, sejam pagas vultosas indenizações para desapropriação de terras que pertenciam e pertencem à UNIÃO, nos termos do art. 21 da Lei 6.001/73 b) à UNIÃO, por meio do Ministério da Justiça e da Advocacia-Geral da União, que adote as providências necessárias, inclusive pela disponibilização de recursos, para viabilizar à FUNAI o desempenho de suas atribuições e evitar possível dano ao erário no valor estimado de cerca de R$ 400.000.000,00 (quinhentos milhões de reais).” No curso do Inquérito civil público nº: 1.13.000.000260/2008-37, a FUNAI foi notificada a informar sobre o acatamento da Recomendação n.º 09/2008, tendo respondido, em reunião da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, que acatou a recomendação número 09/2008 do MPF e que elaboraria estudos preliminares. Ainda esclareceu que no ano de 2009 constituiria grupo de trabalho para estudar os limites da Terra Indígena Waimiri-Atroari (ANEXO IX). 45 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Novamente notificada pelo MPF, a FUNAI informou que “os estudos de ocupação comprovadamente tradicional, que foram excluídas da demarcação da terra indígena Waimiri-Atroari (..) estão em fase de planejamento, com previsão de realização para o segundo semestre de 2009”. 5.3.7. DO RECONHECIMENTO, PELA FUNAI, DA OCUPAÇÃO TRADICIONAL INDÍGENA WAIMIRI-ATROARI SOBRE A ÁREA ALAGADA PELO RESERVATÓRIO DE BALBINA Finalmente, a FUNAI, em atendimento à Recomendação nº 09/2008, manifestou-se pelo reconhecimento da posse tradicional indígena WaimiriAtroari na área alagada pelo reservatório de Balbina por meio da Informação nº 96/CGID/2009 da Funai (ANEXO IX). Verifica-se que o aludido documento produzido pela FUNAI faz alusão apenas à área do lago de Balbina, não examinando as demais áreas reivindicadas pelos Waimiri-Atroari. Entretanto, tem-se que o documento em tela reconhece o pedido formulado pelo MPF na presente ação, muito embora atenda apenas parcialmente às reivindicações dos Waimiri-Atroari na região. Com efeito, a corroborar o farto material probatório até aqui exposto, a Informação nº 96/CGID/2009 da Funai (ANEXO IX) aponta o Rio Uatumã como uma das referências mais importantes dos Waimiri-Atroari, fato esse que historicamente se buscou encobrir no contexto do processo de ocupação econômica da região amazônica, conforme o trecho abaixo explicitado (fl. 06 da Informação): “O próprio registro cartográfico desse rio parece ter sido objeto de manipulação com vistas à redefinição da área reservada pela União ao 46 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas povo Waimiri-Atroari pelo Decreto n. 68.907/71, tendo havido a substituição do nome do seu curso superior para Pitinga. A presença indígena no médio e baixo Uatumã encontra-se registrada desde meados do século XIX e persiste, como transcrito abaixo, até as décadas de 70/80 do século passado. Contudo, à época da construção da UHE de Balbina tentou-se construir um discurso de que toda essa região encontrava-se totalmente desocupada pelos Waimiri-Atroari. “ Baseia-se a Informação nº 96/CGID/2009 da Funai (ANEXO IX) numa série de documentos arquivados na Diretoria de Assuntos Fundiários da FUNAI, em que se afirma, categoricamente, que os Waimiri Atroari ocuparam terras muito além daquelas reservadas pelo Decreto n.º 68.907, de 13/07/1971, inclusive a área do lago de Balbina. Nesse sentido, veja-se o seguinte excerto (fl. 06): “Na Pasta 03 referente à Terra Indígena Waimiri-Atroari existente no setor de documentação da DAF, o relatório “Hidrelétrica de Balbina contra índios e lavradores”, de Egydio Schwade, datado de 23/08/84 (portanto, antes do enchimento do reservatório desta UHE), conclui que ´toda área de Balbina está em território Waimiri Atroari´(...)” A Informação nº 96/CGID/2009 da Funai transcreve o Relatório “Hidrelétrica de Balbina contra índios e lavradores”, elaborado poucos anos antes do fechamento das comportas da hidrelétrica de Balbina. Esse documento ressalta a falta de atenção com os direitos dos Waimiri-Atroari, cujas terras foram abirtrariamente delimitadas pelo Decreto nº 68.907/71, reduzindo-as a 1/5 (um quinto) da área que então tradicionalmente ocupavam. Em conseqüência disso, a barragem de Balbina terminou por localizar-se na parte sudeste da área que os Waimiri-Atroari A partir da análise do Relatório citado, a Informação nº tradicionalmente ocupavam. 96/CGID/2009 da Funai aduz que (fls. 08/09): 47 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas “Este relato é de extrema importância porque foi produzido antes do enchimento do reservatório da UHE de Balbina. Ele comprova que o território ocupado pelos Waimiri-Atroari no final dos anos 60 do século XX estendia-se até a cachoeira Morena, abaixo da cachoeira Balbina. Além disso, afirma que os trabalhadores da empresa contratada pela ELETRONORTE passaram “constantes e sérios perigos de ataques dos Waimiri-Atroari pouco acima do canteiro de obras de Balbina” em 1978 (ou seja, seis anos antes do próprio relatório ser escrito) baseado em testemunhos dos trabalhadores da hidrelétrica que residiam na cidade de São Sebastião do Uatumã. É importante também observar que este relatório é ilustrado por um mapa que contém a indicação do “Território Tradicional” Waimiri e Atroari em hachurado simples e do “Território em 1968” indicado em hachurado duplo. Este último é delimitado a Leste pelo rio Jatapu, envolvendo ao Sul terras que se espraiam até o baixo curso do rio Uatumã e a região do alto rio Urubu.” A Informação nº 96/CGID/2009 da Funai examina ainda outros documentos que confirmam que os Waimiri-Atroari ocupavam terras muito além daquelas reservadas em 1971 e posteriormente, inclusive a área alagada pela barragem de Balbina, para ao final concluir: “De acordo com os documentos consultados, acima referidos, é possível concluir que os Waimiri-Atroari ocupavam no final da década de 1960, quando se iniciam os trabalhos de atração e pacificação do grupo pelos sertanistas da FUNAI, uma extensão territorial muito superior à Terra Indígena Waimiri-Atroari atualmente demarcada e homologada pelo Decreto nº 97.837/89. Além disso, há elementos suficientes também para afirmar que, por esta época, também ocupavam uma área superior à da Reserva Indígena criada pelo Decreto nº 68.907/71. Considerando a limitação das informações disponíveis, não é possível, no presente, delimitar exatamente toda a área ocupada pelos WaimiriAtroari àquela época. Porém, os dados aqui reunidos são suficientes 48 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas para afirmar que esse povo indígena mantinha uma ocupação no vale do rio Uatumã que se estendia até a cachoeira Morena ou, quando menos, até a cachoeira Balbina.” Por conseguinte, embora não seja possível a determinação exata dos contornos da ocupação tradicional dos Waimiri-Atroari, certo é que ocupavam toda a área que hoje se encontra alagada pelo lago de Balbina. O mapa, anexado à Informação nº 96/CGID/2009 da Funai, bem ilustra de forma conclusiva essa assertiva. Portanto, são robustas as provas de que a União é a titular legítima dos lotes por força dos quais se demanda indenização nas ações de desapropriação relacionadas no ANEXO I. Esse reconhecimento, por meio do provimento jurisdicional declaratório ao final pleiteado é imperioso, sendo oportuno lembrar o alerta do Exmo. Ministro Herman Benjamin, em seu votovista no julgamento pelo colendo Superior Tribunal de Justiça da Ação Rescisória nº 3290: “O que está em jogo não é a punição do infrator, mas o desfazimento de vultosos prejuízos ao bolso do contribuinte”. 6.- DO DIREITO 6.1.- DO INDIGENATO A doutrina constitucional brasileira denomina de “indigenato” os direitos originários dos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas. 49 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas A este respeito, pertinente ressaltar que desde os primórdios a legislação brasileira reconhece a realidade fática da ocupação indígena sobre o território nacional. Neste sentido, pertinente citar que as Cartas Régias de 30 de julho de 1609, bem como a de 10 de setembro de 1611, expedidas por Felipe III, já reconheciam o pleno domínio dos índios sobre os seus territórios. Também o Alvará de 01/04/1680, confirmado pela Lei de 06/06/1755, continha o princípio de que nas terras outorgadas aos particulares seria sempre reservado os direitos dos índios. A primeira constituição brasileira a tratar de forma expressa sobre o instituto do indigenato foi a Constituição de 1934, que dispunha, in verbis: "Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes no entanto, vedado aliená-las". As Constituições subsequentes assim disciplinaram o tema: Constituição de 1937: "Art. 154. Será respeitada aos Silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, no entanto, vedado, aliená-las". Constituição de 1946: "Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a posse de terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem". Constituição de 1967: "Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes". Emenda Constitucional n.º 1/69 "Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das 50 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas riquezas e de todas as utilidades nelas existentes". A Constituição de 1988 reservou todo um capítulo aos povos indígenas, assim dispondo em seu artigo 231: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Observa-se que a própria Constituição apresenta o conceito de terras indígenas, ao dispor que se consideram como terras tradicionais indígenas “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (art. 231, § 1º). O § 2º do art. 231, por sua vez, preceitua que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Ao analisar o instituto do indigenato, José Afonso da Silva assinala a diferença entre a posse civil e o ocupação indígena: “(...) o indigenato não se confunde com a ocupação, com a mera posse. O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é um título adquirido. (...) Estas considerações, só por si, mostram que a relação do indígena e suas terras não se rege pelas normas do direito civil. Sua posse extrapola a órbita puramente privada, porque não é e nunca foi uma simples ocupação da terra para explorá-la, mas base de seu habitat, no sentido ecológico de interação do conjunto de elementos naturais e culturais que propiciam o 51 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas desenvolvimento equilibrado da vida humana. Esse tipo de relação não pode encontrar agasalho nas limitações individualistas do direito privado. Daí a importância do texto constitucional em exame, porque nele se consagra a idéia de permanência, essencial à relação do índio com as terras que habita.” Comentário Contextual á Constituição. 4ªed. São paulo: Malheiros, 2007. Pág. 869/870. Verifica-se, portanto, que o significado do vocábulo “terra” para os povos indígenas guarda inúmeras peculiaridades, haja vista que a terra indígena encerra o espaço necessário para a reprodução física e cultural dos povos indígenas, elemento essencial para a sua identidade étnico-cultural, não tendo, portanto, o conteúdo eminentemente patrimonialista conferido pelo direito civil. 12 Neste sentido, pertinente transcrever o seguinte dispositivo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata dos povos indígenas e tribais: “1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação. Reconhecendo a importância dos territórios para populações indígenas, quilombolas e tradicionais em geral, é que o antrópologo Alfredo Wagner Berno de Almeida editou livro intitulado “Terras de Quilombo, Terras Indígenas, “babaçuais Livres”, “Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: Terras tradicionalmente ocupadas”, em que menciona as dificuldades encontradas pelos 12 Vide mais a respeito a respeito em artigo da Sub-procuradora Geral da República Deborah Duprat, cujo título é. “Demarcação de Terras Indígenas. O Papel do Judiciário”, divulgado em publicação do Instituto Sócio Ambiental e também no site http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-epublicacoes/docs_artigos/Demarcacao_de_Terras_Indigenas.pdf 52 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas povos tradicionais para o reconhecimento de seus territórios: “A efetivação dos novos dispositivos da Constituição Federal de 1988, contraditando os velhos instrumentos legais de inspiração colonial, tem se deparado com inúmeros obstáculos, que tanto são urdidos mecanicamente nos aparatos burocráticos-administrativos do Estado, quanto são resultantes de estratégias engendradas seja por interesses que historicamente monopolizaram a terra, seja por interesses de “novos grupos empresariais” interessados na terra e demais recursos naturais.13 No caso em tela, a presente ação tem por objeto a declaração de que a área ocupada pelo reservatório de Balbina é terra tradicional Waimiri-Atroari. Quanto a este ponto, verifica-se que o Decreto n.º 97.837/1989, que homologou a Terra Indígena Waimiri-Atroari, excluiu de forma indevida a superfície do reservatório de Balbina, não obstante o farto material probatório acerca da ocupação indígena na área. Segundo se verifica da farta documentação anexa, ainda remanesce na atualidade o interesse do povo Waimiri- Atroari pelo reconhecimento da tradicionalidade da área hoje inundada pelo reservatório de Balbina, haja vista que há o interesse das comunidades indígenas em realizar a pesca dentro do lago de Balbina e adjacências, sendo certo que até a data de hoje alguns indígenas residem nas ilhas formadas pela hidrelétrica (vide ANEXOS V e XII). É evidente que a exclusão do lago de Balbina da Terra Indígena Waimiri-Atroari, operada pelo Decreto n.º 97.937/1989, não representa obstáculo ao ajuizamento da presente ação, haja vista que o decreto que homologa a demarcação de uma área indígena consubstancia mero “reconhecimento oficial” da ocupação tradicional indígena; não tem efeito constitutivo, mas tão somente declaratório daquilo que a ordem constitucional - desde 1934 - já afirma ser indígena. 13 2ª ed. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008. pág. 40 53 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Nesse sentido, a propósito do indigenato, acentua João Mendes Junior, em lição quase secular: “Não quero chegar até o ponto de affirmar, como P.J. Proudhon, nos Essais d'une philos populaire, que 'o indigenato é a unica verdadeira fonte jurídica da posse territorial'; mas, sem desconhecer as outras fontes, já os philophos gregos affirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Comquanto o indigenato não seja a unica verdadeira fonte juridica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1° de Abril de 1680, 'a primária, naturalmente e virtualmente reservada', ou, na phrase de Aristoteles (Polit., I, n. 8), - 'um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento'. Por conseguinte, o indigenato não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem.”14 Na exata definição desse quadro jurídico, têm-se, também, as palavras de Fernando da Costa Tourinho Neto: “Se aos índios é assegurada a posse permanente – sem limite temporal – das terras que ocupam – posse no sentido não civilista -, terras essas da União, não há como perdê-la para terceiros, ainda que estejam estes de boa fé. O §6° do art. 231 da Constituição estatui: 'São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo (...)'. A transcrição no Registro de Imóveis não expunge os vícios. Não dá validade ao ato. Vale a pena chamar a atenção para o fato de que a demarcação não dá nem tira direito, apenas torna evidente quais os limites das terras indígenas. Estabelece o art. 25 da lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Indio): 'O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação (...)”. Certo. As terras indígenas, como, magistralmente, explicou Victor Nunes Leal, 'são o habitat dos remanescentes das populações indígenas do país' (voto proferido no MS 16.443-DF, in RTJ 49/296). Logo, não é o processo de demarcação que vai criar uma posse imemorial um habitat remanescente. Não. O processo 14 MENDES JUNIOR, João. Os indígenas do Brazil – seus direitos individuaes e politicos. Edição fac-similar. São Paulo, Typ. Hennies Irmãos, 1912. pág. 58 54 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas demarcatório vai, tão-somente, delimitar essa área, dar os seus limites.”15 Nessa esteira é a lição de José Afonso da Silva, da qual valemonos mais uma vez: “O reconhecimento do direito dos índios ou comunidades indígenas à posse permanente das terras por eles ocupadas, nos termos do art. 231, §2°, independe de sua demarcação, e cabe ser assegurado pelo órgão federal competente, atendendo à situação atual e ao consenso histórico.” ...................................................................................... De qualquer forma, não é da demarcação que decorre qualquer dos direitos indígenas. A demarcação não é título de posse nem de ocupação de terras. Como mencionamos há pouco, os direitos dos índios sobre essas terras independem da demarcação. Esta é constitucionalmente exigida no interesse dos índios. É uma atividade da União, não em prejuízo dos índios, mas para proteger os seus direitos e interesses. Está dito: competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (art. 231)”16 E, ainda, a observação de Robério Nunes do Anjo Filho: “... o indigenato é um título congênito e primário, independente de legitimação por decorrer do fato de que os índios foram os primeiros a se estabelecerem nas terras, ao contrário da mera ocupação, que é um título posterior e adquirido, que depende do preenchimento de requisitos legitimatórios, razão pela qual já se afirmou que em relação aos índios estabelecidos não há posse a legitimar, mas sim domínio a reconhecer, decorrente de um direito originário e preliminarmente reservado (MENDES JÚNIOR). O indigenato abarca não só o jus possessionis, mas também o jus possidendi. Assim, embora até hoje o domínio das terras tradicionalmente ocupadas ainda não tenha sido reconhecido aos índios, sendo entregue à União, desde a época colonial foi reconhecido que as terras que serviam de habitat aos indígenas a eles pertenciam de maneira histórica, como um direito pré-existente ao domínio português, estabelecendo uma espécie de limite às autoridades que delas não podiam livremente dispor. Como decorrência do indigenato, inclusive, em nosso entendimento as terras indígenas não podem ser confundidas com as terras devolutas que o artigo 64 da Constituição de 1891 determinou pertencerem aos Estados. 15 16 TOURINHO NETO, Fernando da Costa: “Os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam e suas conseqüências jurídicas”. In Os direitos indígenas e a Constituição. Porto Alegre: NDI/Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. págs. 38/39 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. págs. 832 e 834 55 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Nesse ponto, o STF já decidiu que a primeira constituição republicana não transferiu aos Estados as áreas destinadas a aldeamentos indígenas, as quais não poderiam ser consideradas terras devolutas ou próprios nacionais não indispensáveis ao serviço da União, sendo transferidas apenas as terras de aldeamentos extintos antes de 1891 (STF, RE 212.251/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 16-10-1998, p. 18).17 O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, enfatizou esse aspecto no julgamento da Pet. N° 3388, Relator Min. Carlos Britto (j. 19.03.2009, DJe-181 25.09.2009): “EMENTA: AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS COMO CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. 1. AÇÃO NÃO CONHECIDA EM PARTE. (...) 12. DIREITOS ´ORIGINÁRIOS´. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havêlos chamado de "originários", a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre 17 ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Arts. 231 e 231. In BONAVIDES, Paulo, MIRANDA, Jorge, AGRA, Walber de Moura (coords.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, págs. 2399/2428. Noutro escrito dedicado ao tema, assevera o il. Procurador Regional da República/3ª Região: “Como se sabe, a natureza de terra tradicionalmente ocupada por índios independe de demarcação, que tem natureza declaratória, e não constitutiva. A demarcação, entretanto, é importante para a regularização dessas terras e para a tranqüilidade das comunidades indígenas.” (ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. “Breve balanço dos direitos das comunidades indígenas: alguns avanços e obstáculos desde a Constituição de 1988”. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel, BINENBOJM, Gustavo (coords.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, págs. 569/604. 56 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF). (...)” (grifamos) Da doutrina e jurisprudência acima colacionadas verifica-se, portanto, que o reconhecimento oficial pelo Estado da ocupação tradicional indígena não tem o condão de excluir os direitos indígenas sobre a terra, haja vista que esses direitos são originários e preexistentes. Ademais, é de salientar que o reconhecimento pelo Estado de uma Terra Indígena constitui-se em ato de caráter vinculado, sobre o qual não remanesce para o administrador qualquer margem de liberdade. Assim sendo, uma vez presentes os requisitos de ocupação tradicional indígena sobre uma área, incumbe à União o reconhecimento da terra como sendo de ocupação tradicional indígena, sendo que qualquer omissão inconstitucional deve ser sanada mediante a intervenção do Poder Judiciário, o que é ocaso dos autos. Ressalte-se ainda que para o reconhecimento pela União de uma terra indígena, não há necessidade de ser comprovada a ocupação tradicional indígena na data da promulgação da Constituição de 1988. Nesse sentido, pertinente ainda citar comentários de Walter Claudius Rothenburg, a respeito de terras de quilombolas, mas aplicáveis ao caso, mutatis mutandis: “A noção de ocupação tradicional não implica, necessariamente, uma ocupação antiga e ininterrupta, prendendo-se o conceito antes ao modo de ocupação (ligado à tradição da comunidade) que a seu lapso temporal. Basta imaginar novamente uma situação de desocupação ocasional em 5 de outubro de 1988: em virtude, por exemplo, da pressão da especulação imobiliária, toda uma comunidade quilombola é instada a abandonar a região, indo instalar-se na periferia de um centro urbano maior, muitos voltando, porém, à primeira oportunidade ou desilusão. Fantasiemos a tragicomédia de uma comunidade quilombola que tivesse sido convidada a assistir, em Brasília, à promulgação da Constituição de 1988 – que lhes reconheceu a propriedade de terras tradicionalmente ocupadas; ao retornar, a comunidade teria perdido o 57 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas direito, pois não estava ocupando as terras no fatídico dia 5 de outubro de 1988...”18 À luz das considerações acima, nada impede, portanto, o reconhecimento da posse tradicional indígena da área em questão, coarctada pela inundação que forçou o deslocamento parcial dos indígenas. Tal reconhecimento tem o condão de evidenciar que a área integra o patrimônio da União e, ao mesmo tempo, de prestigiar o direito originário, congênito, constitucionalmente assegurado às comunidades indígenas. Daí resultará ser indevido o pagamento de indenização a particulares detentores de títulos expedidos pelo Governo do Estado do Amazonas, pois, como exaustivamente assinalado, as terras indígenas são, nos termos do art. 198 da Constituição Federal anterior e 231, §6°, da Constituição Federal, insuscetíveis de prescrição aquisitiva e eventuais títulos a elas atribuídos são ineficazes, nulos, despidos de quaisquer conseqüência no mundo jurídico. Impõe-se, pois, que o erro (ou fraude) cometido no passado, privilegiando pressões econômicas em detrimento dos direitos constitucionais dos Waimiri-Atroari, consagrado através da publicação do Decreto n.º 97.837/89, seja devidamente corrigido para, além de contemplar os direitos dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, impedir grave lesão aos cofres públicos consubstanciada no pagamento de indenizações milionárias aos particulares “titulares” dos lotes desapropriados pela Eletronorte para a construção de Balbina. Considerando, assim, que os direitos dos povos indígenas sobre as terras tradicionais são imprescritíveis, sendo nulos e extintos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse sobre as referidas terras; considerando também que as ações de ressarcimento de 18 O processo administrativo relativo às terras de quilombos: análise do decreto nº 3.912 de 10 de setembro de 2001. In: OLIVEIRA, Leinad Ayer de. (org). Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2001. p. 16 58 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas danos causados a Erário são imprescritíveis, deve a omissão do Decreto n.º 97.837/89 ser devidamente sanada, mediante o reconhecimento pelo Poder Judiciário dos direitos originários dos índios Waimiri-Atroari sobre a área hoje abrangida pelo lago de Balbina. No presente caso, entende o Ministério Público Federal que há elementos de prova suficientes a comprovar que a área de terra correspondente ao lago da hidrelétrica de Balbina constitui-se terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas Waimiri-Atroari, de modo a autorizar a prolação de decisão judicial declarando a referida área como Terra Indígena. Verifica-se, portanto, que as provas colacionadas pelo Ministério Público na presente ação civil pública são aptas a subverter a presunção de legitimidade e veracidade do Decreto n.º 97.837 de 16/06/1989, homologatório da Terra Indígena Waimiri-Atroari, que excluiu, de forma indevida, áreas tradicionalmente ocupadas por este povo indígena, ressaltando-se, ainda, que a própria FUNAI reconhece a omissão do referido Decreto. Por fim, é cediço que a circunstância de os indígenas WaimiriAtroari terem sido removidos de suas terras para a construção da hidrelétrica de Balbina não lhes retira o reconhecimento dos seus direitos sobre as áreas de ocupação tradicional desse povo. 6.2.- DOS DANOS CAUSADOS AO POVO WAIMIRI-ATROARI EM DECORRÊNCIA DA CONSTRUÇÃO DA HIDRELÉTRICA DE BALBINA E DA MORA NA REDEFINIÇÃO DOS LIMITES DA TERRA INDÍGENA WAIMIRI-ATROARI A respeito da remoção de povos indígenas de suas terras tradicionais, pertinente transcrever o art. 231, §5º da Constituição de 1988: 59 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. Veja-se, portanto, que, considerando a importância das terras tradicionais para as comunidades indígenas, a Constituição de 1988 estabelece o princípio de irremovibilidade dos indígenas de suas terras, somente sendo admitida a remoção em situações excepcionais, assegurando-se, em todo caso, o retorno imediato logo que cesse o risco. Sabe-se que a remoção dos indígenas Waimiri-Atroari ocorreu em 1987 para viabilizar a construção da hidrelétrica de Balbina. Nesse período, estava plenamente vigente o Estatuto do Índio, que assim dispunha a respeito da remoção dos povos indígenas de suas terras tradicionais: “Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa, em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente da República. (...) § 3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo impossível ou desaconselhável a sua permanência na área sob intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas. § 4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos prejuízos decorrentes da remoção. § 5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que exercita a tutela do índio.” 60 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas É sabido que não houve nenhum decreto da União autorizando a remoção do povo Waimiri-Atroari de suas terras tradicionais, tampouco reconhecendo a consequente destinação ao povo Waimiri-Atroari de área equivalente à terra perdida com a construção de Balbina. Com a construção da hidrelétrica de Balbina, segundo se conclui dos documentos colacionados nesta exordial, parcela maior de terra, que a originariamente prevista, restou inundada, o que acarretou a necessidade de remoção de cerca de 1/3 da população total dos Waimiri-Atroari, entre outubro e novembro de 1987. Ainda, cerca de 10% da Terra Indígena Waimiri Atroari restou inundada pelo reservatório de Balbina, ou cerca de 30.000 hectares da mesma. Conforme se depreende das fls. 26/27 do Parecer/PRDC/AM/nº 001/2008 (ANEXO VII), a literatura antropológica é rica ao mencionar os impactos da construção da Hidrelétrica de Balbina para o povo Waimiri – Atroari, podendo-se mencionar, dentre as consequências, as seguintes: a) remoção do povo de sua terra tradicional; b) a inundação de parte significativa de seu território tradicional; c) em decorrência da inundação, a putrefação da cobertura vegetal primitiva, com prejuízo à qualidade da água do rio Uatumã e à realização da pesca pelos indígenas; d) os conflitos entre os próprios grupos indígenas deslocados. Através da presente ação, pugna o Ministério Público Federal seja a União, a Eletronorte e a Funai condenadas a indenizar os danos causados ao povo indígena Waimiri – Atroari, seja pela inundação de suas terras tradicionais pelo reservatório de Balbina, seja pela omissão da FUNAI e da União, por reiterados anos, no dever de redefinir os limites da Terra Waimiri – Atroari, situação que ocasionou diversos prejuízos aos Waimiri-Atroari, a exemplo da morte de indígenas (em virtude do contato com não-índios e transmissão de doenças), invasão de suas terras por grileiros, prejuízos à preservação de sua identidade cultural, dentre outros danos, os quais serão objeto de prova na fase processual adequada. 61 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Nesse sentido, considerando a tramitação das ações de desapropriação ajuizadas pela Eletronorte arroladas no ANEXO I, nas quais já foi realizado depósito judicial pela desapropriante (para fins de imissão provisória na posse), pugna o Ministério Público que os valores depositados em Juízo no curso das referidas ações sejam utilizados com o fim de indenizar parte dos danos suportados pelo povo indígena Waimiri-Atroari, o que será objeto de análise em fase de liquidação da sentença. Assim se faz necessário ante a imperiosidade de vedar o enriquecimento ilícito por parte da Eletronorte, que realizou a desapropriação, em verdade, de Terras Indígenas. Portanto, deve pagar a devida indenização à União, a ser revertida aos povos indígenas, como reparação pelos prejuízos que lhes foram causados, cujo exato quantum debeatur deve ser definido oportunamente em sede de liquidação de sentença. Quanto a este ponto, entende-se desnecessária grandes ilações. Desde o advento da Constituição de 1946 a responsabilidade civil do Estado é de natureza objetiva. Na vigências dos fatos, eis a redação do art. 107 da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda n.º 01/1969: “Art. 107. Às pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.” Assim sendo, impõe-se para a responsabilidade civil do Estado a comprovação apenas da ação, do resultado e do nexo de causalidade. No caso em epígrafe, está devidamente comprovado nos autos 62 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas que a inundação da terra Indígena Waimiri-Atroari, em virtude da construção da Hidrelétrica de Balbina, atos imputados à União e à Eletronorte, deu causa a prejuízos de monta aos legítimos interesses dos povos Waimiri-Atroari, motivo pelo qual impõese a condenação dos referidos demandados no dever de indenizar os danos materiais e morais causados aos indígenas Waimiri-Atroari. Da mesma forma, tem-se caracterizada a omissão da FUNAI em definir, de forma escorreita, os limites da Terra Indígena Waimiri-Atroari, cedendo, por inúmeras vezes, a pressões externas. Impõe-se, em consequencia, a condenação também da autarquia no dever de indenizar os danos causados ao povo WaimiriAtroari. Neste sentido, pertinente citar o seguinte julgado: “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FUNAI. DEMARCAÇÃO DE TERRAS. MULTA. Da demora em ultimar a demarcação das terras indígenas em questão, advém os inegáveis prejuízos, pois a incerteza no que diz respeito à propriedade das terras contribui para o acirramento dos conflitos entre índios e agricultores. A aplicação de multa diária pelo descumprimento de obrigação, tem previsão expressa do § 4º do art. 461 do Código de Processo Civil.” (AG 200404010133130, VÂNIA HACK DE ALMEIDA, TRF4 - TERCEIRA TURMA, 14/12/2005) (grifamos) Neste ponto, ressalte-se que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no artigo 67 no ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o dever da União de proceder à demarcação da integralidade das Terras Indígenas no prazo de cinco anos. Tem-se que passados mais de vinte anos da promulgação da Constituição, verifica-se mais que configurada a mora da União no cumprimento de seus deveres constitucionais para com os povos indígenas, situação que deu causa a inúmeros prejuízos aos povos indígenas do território nacional. 63 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas 7. - DA CONCLUSÃO No caso em epígrafe, verifica-se, de forma objetiva, que particulares adquiriram do Estado do Amazonas supostas terras públicas devolutas, com fulcro na informação privilegiada de que os referidos lotes seriam objeto de desapropriação futura efetivada pela Eletronorte, pagando valores ínfimos e pretendendo receber verdadeiras fortunas em ações de desapropriação. Em consequência, a Eletronorte, sociedade de economia mista federal, seria condenada a pagar indenizações vultosas em virtude da desapropriação de terras que na verdade são de titularidade da própria União, por serem terras tradicionalmente ocupadas pelo povo Waimiri – Atroari. Verifica-se, portanto, Excelência, que o reconhecimento da área do reservatório de Balbina como Terra Indígena, importa, a um só tempo, no reconhecimento do direito do povo Waimiri-Atroari sobre terras tradicionais suas, bem como elide a consumação de prejuízo ao patrimônio público federal de grande magnitude, consubstanciado em montante superior a R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais), desconsiderados os juros (ANEXO I – Parecer Pericial 5ª CCR nº 183/2009). 8.- DO PEDIDO DE CONCESSÃO DE MEDIDA CAUTELAR INCIDENTAL: O art. 12 da Lei de Ação Civil Pública (Lei n° 7.347/85) estabelece a possibilidade de concessão de liminar, nos casos de risco de dano irreparável ao direito em conflito, em virtude do tempo decorrido até a solução final da lide. 64 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Com efeito, o referido dispositivo tem natureza tanto cautelar, protetivo da eficácia da jurisdição, quanto de antecipação da tutela pretendida, conforme entendimento da doutrina processual pátria. Há dois pressupostos básicos que legitimam a concessão de medidas cautelares: o fumus boni iuris e o periculum in mora. No caso presente, a fumaça do bom direito se traduz nos documentos e estudos acima alinhavados, dentre os quais o reconhecimento manifestado pela própria FUNAI, a demonstrar a ocupação tradicional pelos índios Waimiri – Atroari da área alagada pelo lago da hidrelétrica de Balbina. De outra banda, o periculum in mora justifica-se pelo fato de que pendem ações judiciais de desapropriação, em fase de execução, cujos pagamentos, que totalizam cerca de R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais), desconsiderados os juros (ANEXO I – Parecer Pericial 5ª CCR nº 183/2009), podem ocorrer a qualquer momento, face à tramitação das referidas ações conforme consta no ANEXO I. A efetivação desses pagamentos geraria vultosos danos à União, na medida em que sucederiam em consequência de “desapropriação” de terras de titularidade da própria União, vez que comprovado que os índios Waimiri/Atroari a ocupavam tradicionalmente. Assim, a demora no provimento jurisdicional acarretará grande ônus à União, tendo de se submeter à regra solve et repete, com o risco de não reaver os valores de forma total. Ademais, não há que se falar em perigo de irreversibilidade caso seja concedida a medida cautelar pleiteada, uma vez que, em sendo julgada improcedente a presente demanda, poderão os exequentes das ações judiciais de desapropriação relacionadas no ANEXO I prosseguirem em suas demandas. 65 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Ex positis, estando presentes os requisitos preceituados no art. 12 da Lei n° 7.347/85, requer-se a concessão de medida cautelar no curso da presente ação civil pública, determinando-se a indisponibilidade dos créditos exeqüendos nas ações de desapropriação relacionadas no ANEXO I, anotando-a no rosto dos respectivos autos, até o julgamento final da presente lide. 9.- DO PEDIDO: Ante o exposto, pugna o Ministério Público Federal: a) pela citação dos demandados, para contestar a presente ação civil pública, com as advertências de praxe; b) pela concessão de medida cautelar incidental, determinando-se a indisponibilidade dos créditos exeqüendos nas ações de desapropriação relacionadas no ANEXO I, anotando-a no rosto dos correspondentes autos, até o julgamento final da presente lide; c) pelo julgamento procedente do pedido, com os seguintes provimentos jurisdicionais: c.1) a declaração de que a área inserta no polígono declarado de utilidade pública para fins de desapropriação pelo Decreto 85.898/81, área hoje ocupada pelo reservatório de Balbina, é de ocupação tradicional do Povo Waimiri-Atroari, e, consequentemente, de propriedade da União Federal; c.2) alternativamente, acaso não acolhido o pedido contido no item anterior, a declaração de que a área inserta no polígono declarado de utilidade pública para fins de desapropriação pelo Decreto 85.898/81, área hoje ocupada pelo reservatório de 66 Ministério Público Federal Procuradoria da República no Amazonas Balbina, era de ocupação tradicional do Povo Waimiri-Atroari, e, consequentemente, de propriedade da União Federal no final da década de 1960/ início da década de 1970, época em que foram doadas pelo Estado do Amazonas aos particulares demandados na presente ação; c.3) a declaração da nulidade dos títulos referentes aos lotes que ensejaram as ações de desapropriação relacionadas no ANEXO I; c.4) a condenação da Eletronorte, da Funai e da União no dever de indenizar os danos causados aos indígenas Waimiri-Atroari, pelos prejuízos decorrentes da remoção inconstitucional daquele povo para a construção da Hidrelétrica de Balbina, bem como pela mora quanto à redefinição dos limites da Terra Indígena, em valores a serem definidos em liquidação. d) a dispensa do autor dos pagamentos de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, a teor do art. 18 da Lei 7.347/1985. Protesta o MPF, outrossim, pela produção de todas as provas admitidas em direito, em especial a documentação que faz juntar. Dá-se a causa o valor de R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais). PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DO AMAZONAS, Manaus, 13 de janeiro de 2010. THALES MESSIAS PIRES CARDOSO PROCURADOR DA REPÚBLICA LUCIANA FERNANDES P. LIMA GADELHA PROCURADORA DA REPÚBLICA 67