ACP Waimiri Atroari - Procuradoria da República no Amazonas

Transcrição

ACP Waimiri Atroari - Procuradoria da República no Amazonas
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA
FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO AMAZONAS.
VARA
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da
República signatários, nos termos do disposto no artigo 129, II e III da Constituição
da República, artigo 5º, inciso III, alíneas “b” e “e” e artigo 6º, VII, alíneas “b” e “c”
da Lei Complementar no 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), e artigos
1o e 5o da Lei no 7.347/85, vem propor
AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO LIMINAR DE
MEDIDA CAUTELAR INCIDENTAL
em face de:
UNIÃO FEDERAL, que receberá citação e intimações por meio da
Procuradoria da União no Estado do Amazonas, situada na Av. Tefé, nº 611 - Ed. Luis
Higino de Sousa Netto, Praça 14 de Janeiro, Manaus, Amazonas,
FUNAI, que receberá citação e intimações por meio de sua
Procuradoria Federal Especializada, situada na Rua Maceió, nº 224 Adrianópolis–
Manaus/AM;
CENTRAIS
ELÉTRICAS
DO
NORTE
DO
BRASIL
S.A.
1
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
-ELETRONORTE, sociedade de economia mista, sediada na SCN Quadra 06, CJ. A,
blocos B e C, Entrada Norte 2, Asa Norte, Brasília-DF;
ANTONIO
FLEURY
DE
CAMARGO,
inscrito
no
CPF
n.
003.702.588-00, domiciliado na Rua Roberto Simonsen, nº 114, São Paulo-SP
ANTONIO FLEURY DE CAMARGO FILHO, inscrito no CPF nº
028.614.538-34 , domiciliado na Rua Roberto Simonsen, nº 114, São Paulo-SP;
SERGIO ROBERTO ORTIZ NASCIMENTO, inscrito no CPF n.
064.186.518-04 , domiciliado na Rua Mariana Correa, n. 433, Jardim Paulistano, São
Paulo-SP, CEP 01444-000;
JOSE KALLIL FILHO, inscrito no CPF nº 006.504.398-72 ,
domiciliado na Av. Brigadeiro Faria Lima, nº 2012, 7º andar, cj. 72, Jardim Paulistano,
São Paulo-SP;
FERNANDO VERGUEIRO, inscrito no CPF nº 272.543.058-53,
domiciliado na Rua Acare, nº 48, Alto de Pinheiros, São Paulo-SP, CEP 05463-020;
SERGIO VERGUEIRO, inscrito no CPF n.
054.681.168-04,
domiciliado na Rua Alberto de Faria, n. 2049, Alto de Pinheiros, São Paulo,
CEP
05459-002
WALTER LOT PAPA, inscrito
no
CPF nº 097.931.358-91,
domiciliado na Rua Ana Fratta de Paula,10, Sousas, Campinas-SP, Caixa Postal 2044,
CEP 13104-028;
VICENTE FALCO PAPA, inscrito no CPF n. 237.214.648-34,
domiciliado na Rua Carlos Augusto Monteiro de Barros,n. 22, Santa Rita do Passa
Quatro -SP, CEP 13670-000
2
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IRENE LOT PAPA, inscrita no RG nº 956.658 SP, domiciliada Rua
Carlos Augusto Monteiro de Barros,n. 22, Santa Rita do Passa Quatro -SP,
CEP
13670-000
ELIZABETH
DE
CARVALHO
PAPA,
inscrita
no
CPF
nº
158.492.998-74, domiciliada na Rua Santa Ernestina, n. 201, Jardim Guarani,
Campinas-SP, CEP 13095-320;
JOSÉ
SILVIO
DE
CARVALHO,
portador
do
CI/RG
nº
601.380/PR, domiciliado na Rua Azarias V. Da Resende, 627- Bandeirantes/PR;
ADEMPAR – ORGANIZAÇÃO DE NEGÓCIO E COMÉRCIO
EXTERIOR, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ n. 43.370.766/000170, com sede na Avenida Paulista, n. 1765, 16 andar, bairro Bela Vista, São Paulo-SP,
CEP 08210-040, a ser representada pelo seu Diretor Presidente ADOLPHO JULIO DA
SILVA MELLO NETO, inscrito no CPF 002.658.538-34, domiciliado na Rua Cristovão
Diniz, 21,15o andar, Cerqueira Cesar, São Paulo-SP, CEP 01426-020.
BORBA GATO – AGROPECUÁRIA E FLORESTAL S/A, pessoa
jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ n. 04.965.976/0001-50, com sede na
Avenida Independência, n. 1045, bairro São Braz, São Paulo-SP, CEP 66630-505, a
ser representada pelo seu Diretor Presidente Fernando Vergueiro, inscrito no CPF
272.543.058-53, domiciliado na Rua Acare,nº 48, Alto de Pinheiros, São Paulo-SP,
CEP 05463-020.
SERRAGRO
S/A
–
INDUSTRIA
COMERCIO
E
REFLORESTAMENTO, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ n.
04.306.536/0001-90 , com sede na Rua Ramos Ferreira 1129, Centro, Manaus-AM,
CEP 69020-282, a ser representada pelo seu administrador PEDRO FRANCO PIVA,
inscrito no CPF 008.308.448-72, domiciliado na Rua PORTUGAL, nº 372, JD.
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EUROPA,SAO PAULO -SP, CEP 01446-020.
FAZENDA
SANTA
INES
S/A,
inscrita
no
CNPJ
n.
04.209.763/0001-06 , com sede na Rodovia Torquato Tapajos, Km. 221, ItacoatiaraAM,
CEP:
69100-000,
a
ser
representada
pelo
seu
administrador
SERGIO
VERGUEIRO, inscrito no CPF nº 054.681.168-04, domiciliado na Rua Alberto de Faria,
n. 2049, Alto de Pinheiros, São Paulo, CEP 05459-002
AGROPECUÁRIA ARUANA S/A, pessoa jurídica de direito
privado, inscrita no CNPJ n. 04.407.979/0001-78 , com sede na Rodovia Torquato
Tapajos KM 215, Itacoatiara-AM, CEP: CEP: 69100-000, a ser representada pelo seu
Diretor SERGIO VERGUEIRO, inscrito no CPF nº 054.681.168-04, domiciliado na Rua
Alberto de Faria, n. 2049, Alto de Pinheiros, São Paulo, CEP 05459-002
1- BREVE SÍNTESE DA DEMANDA
Trata-se de ação civil pública que ora se ajuíza com vistas à: (i)
obtenção de provimento jurisdicional declaratório que reconheça serem de ocupação
tradicional dos índios Waimiri-Atroari, e consequentemente de domínio da União, as
terras inundadas, em outubro de 1987, pelo lago artificial de Balbina, formado pelo
represamento das águas do rio Uatumã em razão da construção da hidrelétrica de
mesmo nome; e (ii) obtenção de provimento jurisdicional condenatório para que,
solidariamente, a União, a Funai e a Eletronorte indenizem a comunidade indígena
Waimiri-Atroari pelos prejuízos a ela gerados pelo alagamento de terras sobre as quais
possuem direito originário.
Serão apresentados ao longo desta peça elementos probatórios
que comprovam que as terras de ocupação tradicional da comunidade indígena
Waimiri-Atroari abrangem a área inundada pelo reservatório de Balbina.
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Verificar-se-á que, apesar disso, todos os Decretos que trataram
da criação da Reserva Indígena Waimiri-Atroari sempre se acautelavam apontando
limites que tangenciassem a área a ser inundada, embora os indígenas vivessem como é comum - à margem dos rios formadores do lago de Balbina e ainda vivem
atualmente nas ilhas formadas pelo alagamento e pescam em suas águas.
Por meio do provimento declaratório ora buscado se visa fazer
cessar a insegurança jurídica gerada pela pendência das ações de desapropriação
relacionadas no ANEXO I – Relatório de Processos 22/10/2009, a maioria em fase de
execução, cujos créditos, se satisfeitos, gerarão um prejuízo de cerca de R$
300.000.000,00 (trezentos milhões de reais), desconsiderados os juros, ao patrimônio
público federal (ANEXO I – Parecer Pericial 5ª CCR nº 183/2009). Não se pode admitir,
deveras, que saiam dos cofres públicos tamanha quantia, por força de desapropriação
de terras, na medida em que existem provas suficientes de que os índios
Waimiri/Atroari a ocupavam tradicionalmente, sendo o domínio consequentemente da
própria União.
Por meio do provimento condenatório busca-se compensar a
afronta aos direitos dos índios sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas,
decorrente da remoção inconstitucional do povo Waimiri – Atroari de suas terras, para
a construção da hidrelétrica de Balbina.
Portanto, em consequência do farto material probatório acerca da
ocupação tradicional indígena na região, pretende-se, através da presente ação, em
síntese: (i) a declaração expressa de que as terras hoje alagadas pelo reservatório de
Balbina são terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas Waimiri-Atroari
ou, em assim não entendendo este Juízo, que a superfície inundada pela Hidrelétrica
de Balbina era de ocupação tradicional indígena Waimiri-Atroari na década de
1960/1970; (ii) a condenação da União, da Funai e da Eletronorte a indenizarem os
índios Waimiri-Atroari pelos danos que estes sofreram devido à alagação da área que
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tradicionalmente ocupavam, bem como pela mora na redefinição dos limites da terra
indígena.
2.- DO CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E DA LEGITIMIDADE
DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
A Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público, como
instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis (CF, art. 127). Para o cumprimento do seu mister, foi-lhe conferida
capacidade postulatória, legitimando-o à abertura de inquérito civil, da ação penal e
da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente
e também de outros interesses difusos e coletivos (C.F., art. 129, I e III), inclusive a
defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas (C. F. art. 129, V).
No presente caso, através da presente ação civil pública, o
Ministério Público Federal atua em defesa do patrimônio público, uma vez que,
reconhecendo-se a titularidade da União sobre a área hoje ocupada pelo reservatório
de Balbina, em virtude da ocupação tradicional do povo Waimiri-Atroari, montante
milionário em indenizações deixará de ser pago no curso de ações de desapropriação
ajuizadas pela Eletronorte, conforme adiante se demonstrará. Promove o Ministério
Público Federal também a indenização dos danos causados à comunidade indígena
Waimiri –Atroari face aos danos à integridade de suas terras, considerando que as
áreas por ela tradicionalmente ocupadas foram alagadas pelo lago de Balbina.
Os direitos e interesses dos índios têm natureza constitucional e
coletiva, direito comunitário que compromete gerações futuras, cuja tutela cabe ao
Ministério Público Federal albergar. Como tais, esses direitos e interesses são
indisponíveis, de ordem pública, e se envolvem, além do mais, com interesses
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próprios da União Federal. A terra indígena – aqui, repise-se, ilicitamente alagada
devido à construção da hidrelétrica de Balbina
– é bem de propriedade da União
Federal (art. 20, XI, da C. F.), cuja defesa, manutenção da integridade e finalidade
pública são também atribuições acometidas ao Ministério Público Federal (arts. 129,
III, e 231, § 2.º, da C. F.).
3. -DA LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL, DA FUNAI E
DA ELETRONORTE
No caso em tela, a legitimidade passiva da União Federal, da
Funai e da Eletronorte na presente ação decorre da circunstância de suportarem os
efeitos condenatórios oriundos da sentença, acaso procedente o pedido.
Com
efeito,
conforme
se
depreende
do
Procedimento
Administrativo n.º 1.13.000.00812/2002-11, que tramita no Ministério Público
Federal, a União, através da Nota AGU/SGCT/FZS/Nº40/2008, faz menção à Nota
Interna nº 33/2007-AGU/PRU1/GIX/GG, da lavra do Coordenador da PRU -1ª Região
(ANEXO II – fls. PR/AM 581/582), onde se informa que:
“...
a Usina Hidrelétrica de Balbina foi construída pela ELETRONORTE, tendo
como um de seus fundamentos legais o Decreto n.º 79.321/77, através
do qual a União concedeu àquela estatal o aproveitamento hidráulico de
um trecho do rio Uatumã, no local denominado de Cachoeira de Balbina,
Estado do Amazonas. Para fins de ocupação da área, especialmente a
área que seria alagada pela represa da usina, editou a União um
segundo decreto, o Decreto n.º 85.898/81, através do qual declarava-se
aquela
área
como
sendo
de
utilidade
pública
para
fins
de
desapropriação, ficando consignado que a desapropriação seria realizada
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pela Eletronorte, com recursos próprios. A Eletronorte, então, deu início
às ações de desapropriação contra os particulares que ostentavam
títulos de domínio das áreas abrangidas pelo Decreto (..)”
No
caso
em tela,
portanto, verifica-se
que
as
ações
de
desapropriação para a construção da Hidrelétrica de Balbina foram ajuizadas pela
empresa Eletronorte, por força de concessão da União Federal, cabendo também à
referida empresa estatal efetuar o pagamento das indenizações aos supostos
proprietários da área.
A FUNAI, por sua vez, omitiu-se, por reiterados anos, no dever de
redefinir os limites da Terra Waimiri – Atroari, postergando e impedindo o
reconhecimento formal da efetiva área como de ocupação indígena.
Verifica-se, assim, a legitimidade passiva da União Federal, da
Funai e da Eletronorte, haja vista que o pedido indenizatório ora formulado pelo MPF
deverá ser suportado solidariamente pela União e pelas referidas autarquia e empresa
estatal.
4.
-DO
LITISCONSÓRCIO
PASSIVO
COM
OS
SUPOSTOS
PROPRIETÁRIOS DOS LOTES ONDE HOJE SE ENCONTRA O
RESERVATÓRIO DE BALBINA
No quadro constante no ANEXO I, verifica-se as ações de
desapropriação ajuizadas pela Eletronorte em face dos supostos proprietários dos
lotes localizados na área que seria alagada em consequência da construção da
hidrelétrica de Balbina.
Vê-se
no
ANEXO
I
que
a
maior
parte
das
ações
de
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desapropriação está em fase de execução. O MPF, através de várias promoções
juntadas nos autos das referidas ações, pronunciou-se pela suspensão das execuções,
ante a dúvida fundada quanto ao domínio das áreas, tendo em vista amplo material
probatório a indicar que as referidas terras são bens da União por força da ocupação
tradicional dos índios Waimiri-Atroari.
Assim sendo, afere-se a legitimidade passiva dos supostos
proprietários dos lotes onde hoje se encontra o reservatório de Balbina para a
presente ação, uma vez que, com a declaração de que a referida área é bem da
União, nada será devido aos mesmos a título de indenização.
5.-DOS FATOS
5.1 - HISTÓRICO
No ano de 1967, o governo federal editou o Decreto n° 60.296,
de 3 de março de 1967 (ANEXO III), por meio do qual aprovou o "Plano Diretor de
Desenvolvimento da Amazônia”, para o quinquênio 1967/1971, contendo “Áreas
Prioritárias e Pólos de Desenvolvimento", entre os quais foi incluído o Pólo Manaus,
Estado do Amazonas.
O artigo 5o do Decreto apontava, dentre as diretrizes setoriais,
que os investimentos em energia elétrica deveriam "favorecer a criação de sistemas
hidrelétricos". Veja-se:
"Art 5° São diretrizes setoriais a serem observadas no Plano:
(...)
V - No setor de infra-estrutura económica:
(...)
d)os investimentos em energia elétrica deverão atender ao crescimento
vegetativo do consumo, e, igualmente, favorecer a criação de sistemas
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hidrelétricos isolados que sirvam a pólos de desenvolvimento e abram
perspectivas para a exploração futura dos potenciais situados mais para
o interior."
No ano seguinte foi criado, no Ministério das Minas e Energia, por
meio do Decreto n° 63.952, de 31 de dezembro de 1968 (ANEXO III), o Comitê
Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia – ENERAM.
O texto do referido Decreto determinava:
“DECRETO N° 63.952, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1968.
Cria no Ministério das Minas e Energia o Comitê Coordenador
dos Estudos Energéticos da Amazônia.
Art. 1° É criado no Ministério das Minas e Energia, o Comitê
Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia (...)
Art. 2o Compete ao Comitê:
a)
supervisionar
os
estudos
visando
a
investigação
das
possibilidades de aproveitamento hidrelétrico para o suprimento
de sistemas elétricos já existentes ou que venham a ser implantados em
áreas prioritárias e pólos de desenvolvimento criados na Amazônia pelo
Governo Federal.
(...)
Art. 4o As conclusões dos estudos do Comité serão consubstanciadas
em Relatório Final, a ser apresentado ao Ministro das Minas e
Energia, no prazo de três (3) anos a contar da vigência deste
Decreto.”
O Relatório Final do ENERAM, datado de dezembro de 1971, foi
apresentado em 06 de janeiro de 1972, contendo as seguintes recomendações:
“ - no que se refere à solução da problemática geral dá energia elétrica
da Amazônia: a criação de uma subsidiária da ELETROBRÁS, com esse
fim ESPECÍFICO.
- no que se refere ao suprimento energético do Pólo Manaus, a médio e
longos prazos:continuação dos estudos do rio Jatapu (afluente do rio
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Uatumâ) e realização de um Inventário hidrelétrico do próprio rio
Uatumã.”
Essas informações constam do Anexo à Carta n° 1.00.0159/76,
de 19 de julho de 1976, da ELETRONORTE (ANEXO III), dirigida ao então Ministro das
Minas e Energia, SHIGEAKI UEKI, na qual foi formulado o pedido de outorga de
concessão para o aproveitamento da energia hidráulica da bacia do Rio Uatumã. O
pedido da ELETRONORTE naquele documento está assim formulado:
"outorga
de
Concessão
para
o
aproveitamento
progressivo
e
integrado da energia hidráulica da bacia hidrográfica do rio Uatumã,
em toda sua extensão, desde as nascentes dos formadores, neles
estando incluídos os rios Jatapu, Santo António do Abonari e Pitinga,
até sua foz, no rio Amazonas, com prioridade no aproveitamento
hidrelétrico do local denominado Cachoeira Balbina, no rio Uatumã,
Estado do Amazonas, na divisa dos municípios de Urucará e
Itapiranga".
Veja-se, assim, que, no período de 31 dezembro de 1968 a
dezembro de 1971, deu-se a criação do "Comité Coordenador dos Estudos
Energéticos da Amazônia-ENERAM", pelo Decreto 63.952, bem como a realização do
estudos in loco, e a entrega do relatório final do Comitê com o inventário hidrelétrico
do Rio Uatumã.
Paralelamente,
o
governo
do
Estado
do
Amazonas
desenvolveu ações de outorga de títulos para pessoas estranhas à região,
curiosamente na área em que os estudos indicavam como sendo a que viria a
ser inundada com a construção da futura Usin a e, portanto, objeto de ações
de desapropriação.
Assim sendo, no período que vai do ano de 1969 a 1971, o
Estado do Amazonas fez um grande loteamento na área que hoje é ocupada pelo lago
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da Usina Hidrelétrica de Balbina e suas adjacências.
Foram loteados cerca de 550 lotes de terra, absolutamente
simétricos, cada qual com 3.000 ha (três mil hectares), conforme o mapa constante
no (ANEXO IV).
Mais tarde, o Decreto
Federal n.º 85.898 de 13.04.1981
“declarou de utilidade pública para fins de desapropriação, as áreas de terras e
benfeitorias necessárias à formação do reservatório da Usina Hidrelétrica de Balbina,
da Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A- ELETRONORTE, no Estado do Amazonas”
(ANEXO III).
A área desapropriada abrangia 66 (sessenta e seis) daqueles
lotes cujos títulos foram outorgados pelo Estado.
A
Eletronorte,
então,
ajuizou
as
respectivas
ações
de
desapropriação. Apesar de a área abranger 66 (sessenta e seis) lotes, identificou-se
que esses lotes estavam concentrados em mãos de poucos “proprietários”, conforme
comprova o próprio relatório das ações de desapropriação (ANEXO I).
5.2- . DAS IRREGULARIDADES
A 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público
Federal
instaurou
o
Processo
MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72
para
apurar
“Doações irregulares de terras a empresários do Estado de São Paulo, quando da
instalação da Hidrelétrica de Balbina. Suspeita de conluio entre autoridades do
Estado/AM e os expropriados nas ações em curso na justiça”. Para acompanhá-lo, foi
designado por aquele Órgão Colegiado do MPF o ilustre Procurador Regional da
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República Franklin Rodrigues da Costa. Resultou de seu exaustivo trabalho o Relatório
Final constante no ANEXO V desta exordial.
Nele são apontadas as diversas irregularidades quando do
loteamento, da outorga dos títulos de domínio e da habilitação para o recebimento do
valor das desapropriações.
Em síntese, foi apurado o seguinte:
1) Loteamento virtual: O Estado do Amazonas procedeu: (i) a
loteamento em área premeditadamente correspondente ao local
onde se daria o aproveitamento hidroenergético do Rio Uatumã;
(ii) a simulação de uma demarcação de lotes na região, ficando
alguns deles cortados ao meio pelo Rio Uatumã; (iii) a criação de
procedimentos administrativos, tendo como objeto pedidos de
outorga de terras em nome de "laranjas" na área em que o
Comitê Coordenador dos Estudos Energéticos da Amazônia ENERAM previa para instalação da hidrelétrica; (iv) a outorga das
terras no mesmo local no qual se previa o alagamento decorrente
do represamento da cachoeira de Balbina, concomitantemente ao
inventário do aproveitamento hidrelético do Rio Uatumã que
estava sendo realizado pelo referido Comitê.
2) Outorga de lotes em violação do Decreto n° 1.127, de 22
de abril de 1968, do próprio Estado do Amazonas, que
proibia qualquer forma de utilização das terras devolutas situadas
ao longo das BR's 319 e 174, numa profundidade de 30 Km, para
cada lado dessas estradas.
3) O Estado do Amazonas realizou a demarcação exigida pelos
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artigos 61 e seguintes da Lei Estadual n° 89, de 31.12.1959 (Lei
de Terras do Estado), de forma virtual. Com efeito, restou
comprovada a impossibilidade fática do Sr. Isaac Amorim, então
responsável por mais de 90% das demarcações e medições de
550 lotes de 3.000 hectares cada um, fazê-las no espaço de 1
ano. Ademais, inexistem evidências na região dos trabalhos de
medição e demarcação dos lotes.
4) Os pedidos de outorga de concessão dos lotes de terras
foram fracionados, com a apresentação de nomes de terceiros,
com vistas a contornar a previsão do parágrafo único do artigo
164 da Constituição Federal de 1967, consistente na vedação da
concessão de gleba com área superior a 3.000ha sem autorização
do Senado Federal. Posteriormente, as concessões dos títulos de
domínio
foram
feitas
com
a
substituição
dos
nomes
dos
proponentes pelos dos atuais exequentes das ações em trâmite na
Justiça Federal do Estado do Amazonas. Os lotes foram então
reagrupados e inscritos no Cartório de Registro de Imóveis em
nome daqueles que hoje figuram nas ações de desapropriação.
5) A Lei de Terras do Estado do Amazonas (art. 36, da Lei 89/59)
determinava a reversão, ipso facto, ao património Público,
das terras outorgadas, quando ausentes a exploração e fixação de
moradia no local por parte dos cessionários. O Estado do
Amazonas, entretanto, omitiu-se em proceder à reversão in casu.
Com efeito, há prova cabal da não ocupação e não exploração das
terras, descumprindo-se cláusula contratual e dispositivo de lei a
fazer incidir o art. 119 do Código Civil e art 1o, "h", da Lei
Estadual 89/59, isto é, a reversão dos lotes ao Património Público
ainda na década de 1970.
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Em atendimento à Recomendação do Ministério Público Federal,
no âmbito do Processo MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72 (ANEXO VI), o Estado do
Amazonas editou o Decreto n.°22.449/02, instituindo "Comissão Especial para apurar
e julgar o inadimplemento dos contratos que outorgaram títulos a particulares na área
de construção da Usina Hidrelétrica de Balbina". A Comissão resgatou e sistematizou a
documentação relativa às outorgas das terras, apurando o procedimento fraudulento
adotado para que os lotes chegassem aos beneficiários das desapropriações para
servirem como objeto de especulação.
Foram identificados: (i) o recebimento dos pedidos de inscrição
por parte do Estado, sendo que o representante de todos os requerentes era apenas
um procurador - NADIR HELOU; (ii) a fraude decorrente da falsa demarcação; (iii) a
expedição dos títulos em nome dos beneficiários, em lugar dos que constavam como
requerentes, sendo que muitos desses títulos foram expedidos já próximos da data do
Decreto de desapropriação da área, porém, com data retroativa a 1969/1971.
A Comissão especial teve seus trabalhos prorrogados por 24
(vinte e quatro) meses, a partir de 24 de janeiro de 2003, nos termos do Decreto n.°
24.028, de 20 de janeiro de 2004 (ANEXO VI). Diante da expiração do prazo fixado no
Decreto, o MPF solicitou, em 11.02.2005, cópias do relatório final, dos termos de
rescisões efetuadas acompanhadas das respectivas certidões das averbações dos
cartórios do registro de imóveis e informações sobre o estágio dos demais
procedimentos de rescisão ainda não concluídos (ANEXO VI).
Em resposta a esse requerimento, a Procuradoria Geral do Estado
do Amazonas informou que o então Governador em exercício decretou a extinção da
comissão por meio do Decreto n.° 24.801, de 06.01.2005 (Ofício 291 /2005-GPGE,
de 27 abr 2005).(ANEXO VI)
Portanto, a Recomendação expedida pelo MPF foi, no início,
acatada pelo Estado do Amazonas. Porém, ao identificar, no curso dos trabalhos
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daquela Comissão, o procedimento fraudulento em que incidiram as administrações
daquele Estado, autoridades do Estado fizeram desaparecer o procedimento de
apuração, sendo extinta a referida Comissão – Decreto Estadual n° 24.801, de
06.01.2005.
5.3.-
DA
OCUPAÇÃO
TRADICIONAL
DA
COMUNIDADE
INDÍGENA WAIMIRI/ATROARI
Antecedentes às manifestas ilegalidades expostas supra, afigurase a ocupação tradicional pela comunidade indígena Waimiri/Atroari na área onde foi
construída a hidrelétrica de Balbina, demonstrada por robustos elementos de prova,
razão pela qual é de se concluir que o Estado do Amazonas concedeu a particulares
terras em áreas de propriedade da União.
Com efeito, os estudos para a instalação da hidrelétrica e o
paralelo e simultâneo loteamento da área depois inserida no polígono declarado de
utilidade pública para fins de desapropriação pelo Decreto 85.898/81, as ações de
desapropriação ajuizadas pela Eletronorte e a própria construção da hidrelétrica com a
consequente inundação da área são fatos que não teriam ocorrido se houvessem
sido levados em conta os preexistentes direitos dos índios Waimiri/Atroari
sobre as terras.
Nesse sentido, o Procurador Regional da República Franklin
Rodrigues da Costa, no bojo do Processo MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72, aborda
em seu Relatório, resultante de trabalho exaustivo de anos na coleta de informações
acerca do assunto, a demarcação da terra índigena Waimiri-Atroari e a presença
indígena na área que foi alagada pelas águas do atual lago de Balbina (ANEXO V).
Outrossim, o Ministério Público Federal determinou a elaboração
16
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
de parecer antropológico sobre os fatos. O Parecer/PRDC/AM/nº 001/2008
demonstra a existência de fortes elementos etno-históricos de que os indígenas, antes
da fatídica inundação, habitavam a área, utilizando-a para seu sustento, sendo ela
necessária à preservação de sua identidade cultural. Acrescenta ainda um histórico de
negligência nas incontáveis redefinições realizadas na área de ocupação tradicional
dos Waimiri-Atroari (ANEXO VII).
Ademais, para além de todo o evidenciado, por prudência e ainda
fiéis ao propósito de análise justa e objetiva, o MPF ouviu o respeitado indigenista
José Porfírio Fontenele de Carvalho, em duas oportunidades, conforme Termo de
Depoimento colhido no âmbito do Processo MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72
(ANEXO V) e resposta ao Ofício nº 166/2008/3ºOFCIV/AM (ANEXO VIII).
Por
fim,
a
Informação
nº
96/CGID/2009,
elaborada
pela
Coordenadora de Identificação e Delimitação -CGID/DAF da Funai, em atendimento
integral à Recomendação 09/2009 do MPF, conclui que a área ocupada pelos WaimiriAtroari se estendia do rio Uatumã até a cachoeira Morena ou, quando menos, até a
cachoeira Balbina, do que decorre que habitavam a área alagada pelo lago de Balbina
conforme demonsta o mapa anexado ao referido documento (ANEXO IX)
Com base nesses documentos, é que se passará a demonstrar a
seguir que a área alagada em consequência da instalação hidrelétrica de Balbina é de
ocupação tradicional dos índios Waimiri-Atroari.
5.3.1. DA DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA WAIMIRIATROARI
Pode-se sintetizar o processo de demarcação da Terra Indígena
Waimiri-Atroari da seguinte forma (ANEXO X):
17
Ministério Público Federal
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a) Decreto n.º 68.907, de 13/07/1971: criou a Reserva Indígena
Waimiri-Atroari, com área total de 1.661.900 ha;
b) Decreto n.º 74.463, de 26/08/1974: interditou a área adicional
de 412.500 ha;
c) Decreto n.º 75.310, de 27 de janeiro de 1975: corrigiu as
coordenadas de limites constantes no Decreto n.º 74.463, que
estavam incorretas;
d) Portaria FUNAI 511, de 05/07/1978: declarou de ocupação
indígena Waimiri-Atroari duas áreas adicionais: Área I ( 236.000
ha) e Área II ( 56.400 ha), totalizando 292.400 ha.; até essa
data, a área total da TI Waimiri-Atroari era de 2.366.800ha;
e) Portaria 952 da FUNAI de 16/06/1981: determinou a realização
de estudos para a redefinição dos limites da TI Waimiri-Atroari, os
quais foram feitos com a finalidade de atender a interesse de
empresa mineradora na área; o Grupo de Trabalho, entretanto,
acabou por defender, em síntese: e.1) a não eliminação de parte
da área leste da reserva, como limite sudeste; e.2) que se
tomasse a lâmina de água do reservatório da hidrelétrica de
Balbina para evitar invasões de brancos na terra indígena;
f) A proposta de limites defendida pelos técnicos da Portaria 952
não foi acatada pela FUNAI. Foi publicado então o Decreto n.º
86.630 de 23/11/1981 que, revogando os Decretos anteriores
(68.907/71, 74.464/74 e 75.310/75), tornou extinta a Reserva
Indígena Waimiri-Atroari, transformando a área habitada por
estes índios como “Área Interditada Temporariamente para Fins
de Atração e Pacificação dos Índios Waimiri-Atroari”, invertendo
18
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
totalmente o processo de regularização da área indígena. A
interdição foi de apenas 1.850.000 ha, atendendo, assim, aos
interesses econômicos de empresa mineradora, excluindo a área
de 526.800 ha da área reservada pelo Decreto de 1971 (v. ANEXO
XI-Pasta Processo Funai 2625/81, itens 17 e 18 do Parecer n.º
167/87-GT, fls. 509/523);
g) Considerando a falta de fundamentação técnica do Decreto n.º
86.630/1981,
que
excluiu
áreas
indígenas
para
atender
a
interesses econômicos, a FUNAI editou a Portaria n.º 1898 de
03/07/1985,
com
a
finalidade
de
“examinar
as
propostas
existentes e as razões que levaram à extinção da Reserva
Atroari”. No Relatório deste Grupo de Trabalho, os técnicos
concluíram “ser necessário redefinir a área indígena, verificando
os pontos geodésicos estabelecidos pelo Decreto n.º 86.630/81”;
h) Em 27/09/1985, o engenheiro cartógrafo Luiz Antonio Sberze
sugeriu a extinção dos estudos realizados pelo grupo de trabalho
mencionado na alínea anterior (Portaria nº 1898 de 03/07/1985),
o que foi acatado pela FUNAI, através da Portaria n.º 1979 de
20/11/1985;
i) Decreto n.º 94.606 de 14/07/1987: declarou de ocupação
Waimiri-Atroari uma área com superfície de 2.440.000 ha. Por
determinação do art 1º, § 1º deste Decreto, foram excluídas da TI
Waimiri-Atroari a superfície de inundação da barragem de Balbina,
bem como a faixa de domínio da BR – 174;
j) Decreto n.º 97.837 de 16/06/1989: homologou a demarcação
administrativa da TI Waimiri-Atroari, com superfície de 2.585.911
ha, mantendo a exclusão da superfície de inundação da barragem
19
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
de Balbina, bem como da faixa de domínio da BR – 174.
Verifica-se, pois, que o processo de demarcação da Terra Indígena
Waimiri-Atroari foi cercado de percalços e óbices, resultantes de interesses
econômicos os mais diversos nas riquezas encontradas na área.
A FUNAI, em certos momentos, cedeu a pressões econômicas,
seja reduzindo os limites das áreas tradicionais dos Waimiri – Atroari, seja se omitindo
quanto ao dever de proceder à redefinição dos seus respectivos limites, de modo que
a área demarcada não abrangeu todas as terras ocupadas pela comunidade
indígena.
É neste ponto que a omissão da FUNAI na demarcação da
Terra Indígena Waimiri-Atroari se liga às fraudes perpetradas pelo governo
do Estado do Amazonas na outorga de terras a particulares, de propriedade
reservada da União por força da ocupação tradicional indígena.
Anteriormente, com efeito, já se apontou as irregularidades
ocorridas quando da outorga de títulos de lotes pelo Estado do Amazonas a
particulares na área onde hoje se encontra o reservatório de Balbina.
Uma das hipóteses possíveis é que a omissão da autarquia
indigenista quanto ao dever de proceder à redefinição dos limites da terra indígena
Waimiri-Atroari tenha decorrido da pressão exercida por particulares que, interessados
em
receber
as
vultosas
indenizações
pagas
pela
Eletronorte,
em
razão
da
desapropriação da área para a construção de Balbina, pressionaram os técnicos da
FUNAI no sentido de, por ocasião da demarcação da terra indígena Waimiri-Atroari,
excluírem, deliberadamente, a área ocupada pelo reservatório de Balbina.
No Relatório Final de seu trabalho, o Procurador Regional da
República, Dr. Franklin Rodrigues da Costa, aponta a preocupação dos sucessivos
20
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Decretos que demarcaram a área indígena WAIMIRI-ATROARI em não abranger a área
que seria inundada pela Usina Hidrelétrica de Balbina (ANEXO V - fls. 90/92 do
Relatório).Veja-se:
“A demarcação da Área Indígena WAIMIRI ATROARI) sempre foi
marcada pela cautela de excluir a área que seria inundada pela Usina
Hidrelétrica de Balbina.
Estudo realizado pelo indigenista GILBERTO PINTO, na década de
1970, propõe o reconhecimento da posse imemorial dos WaimiriAtroari, desde a longitude 59°50' oeste até a longitude 61°50' e
da latitude 00°25" norte até o a latitude -02° 00' sul, e incluía a
área que viria a ser alagada.
A área proposta incidia sobre a região que seria alagada pela
Usina de Balbina e sobre o então chamado "Loteamento Pitinga"
- onde estão os lotes outorgados pelo Estado do Amazonas. O
loteamento "Loteamento Pitinga" vai do paralelo 01°00' sul até
02°15' sul e do meridiano 59°30' oeste a 60°15' oeste .
Todos os Decretos que trataram da criação da Reserva Indígena
WAIMIRI-ATROARI sempre se acautelavam apontando limites
que tangenciassem a área a ser inundada, embora os indígenas
vivessem - como é comum - às margem dos rios formadores do
Lago
de
Balbina
e
ainda
vivem
nas
ilhas
formadas
pelo
alagamento.
Assim o foi com o Decreto 68.907, de 13 de julho de 1971 que criou a
Reserva; Decretos 74.463, de 26 de agosto de 1974, 75.310, de 27 de
janeiro de 1975 e 86.630, de 23 de novembro de 1981 que interditaram
área para fins de atração e pacificação; Decreto 94.606, de 14 de julho
de 1987 que declarou área de ocupação tradicional; e Decreto 97.837,
de 16 de junho de 1989, que a homologou.
21
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Sempre foi reconhecido que o curso do Rio Uatumã - onde está
localizada a barragem e a área inundada - era local de moradia,
de caça, pesca e atividades dos índios WAIMIRI-ATROARI. No
entanto, a construção da Hidrelétrica de Balbina conduziu a que
essa área fosse sempre excluída dos Decretos de reserva,
interdição e demarcação.
Tanto
que
o
Decreto
97.837,
de
16
de
junho
de
1989,
que"homologa a demarcação administrativa da Área Indígena
WAIMlRi-ATROARI" tem dispositivo expresso nesse sentido. O
parágrafo único do artigo 2°, verbis:
'Art. 2o (...)
Parágrafo único. Ficam excluídas, da área descrita, a superfície
de inundação da barragem da Usina Hidrelétrica de Balbina,
conforme Decreto n° 85.898, de 13 de abril de 1981, e a faixa de
domínio da BR-174.'
Ora, o dispositivo é absolutamente ilegal e inconstitucional. É que o
Decreto 85.898, de 13 de abril de 1981, "declara de utilidade pública,
para
fins
de
desapropriação,
áreas
de
terra
com
benfeitorias,
necessárias à formação do Reservatório da Usina Hidrelétrica de
Balbina".
O fato de haver um Decreto que declarava "de utilidade pública,
para fins de desapropriação, as áreas de terra com benfeitorias,
de propriedade particular" não constitui fato impeditivo ao
reconhecimento, ainda que posterior, da propriedade da União
dessa
mesma
elementos
área, caso
descritos
peia
se constate que ela
Constituição
como
contém os
suficientes
e
necessários para o seu enquadramento nesta situação jurídica.
Este é o caso.
22
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Ao excluir expressamente da demarcação da Área Indígena
WAIMIRI-ATROARI, "a superfície de inundação da barragem da
Usina Hidrelétrica de Balbina" - que constituía posse imemorial
dos WAÍMIRI-ATROARI - o Decreto presidencial renunciou, de
forma ilegal e inconstitucional, a bem de propriedade da União,
fulminando o princípio da indisponibilidade dos bens públicos.
O
resultado
dessa
disponibilidade
do
bem
público
vem
repercutindo, desde então, em grave lesão à ordem jurídica e à
economia pública, representada pela pretensão dos beneficiários
dos lotes outorgados pelo Estado do Amazonas, na área de posse
imemorial
dos
WAIMIRI-ATROARI,
de
receberem
vultosas
indenizações decorrente da formação do Lago de Balbina.
Há necessidade de correção dessa ilicitude administrativa, para
reconhecer e declarar com bem da União "a superfície de
inundação da barragem da Usina Hidrelétrica de Balbina", haja
vista ser de posse imemorial da etnia WAIMIRI-ATROARI.”
O Parecer do Analista Pericial em Antropologia do MPF nº 01/2008
(ANEXO VII), deveras, faz alusão expressa aos interesses econômicos na região,
abrangendo as atividades minerárias de Paranapanema, a construção da Hidrelétrica
de Balbina, a BR – 174 e ainda os projetos fundiários do governo federal (INCRA) e
dos Estados.
Nesse sentido também as informações do indigenista José Porfírio
Fontenele de Carvalho, em resposta ao ofício nº 166/2008/3OFCIV/AM (ANEXO VIII),
sobre os limites da reserva Waimiri-Atroari. Vale transcrever trecho que, em tudo, toa
com a investigação ora empreendida:
“ As propostas de criação de reservas encaminhadas pelos sertanistas e
pela Direção da FUNAI, muita das vezes não eram consideradas e a
23
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
criação das Reservas apresentava sempre contornos e limites diferentes
das
eleitas.
totalmente
o
Entretanto
os
índios
que
processo
de
demarcação,
na
maioria
devido
ao
desconheciam
seu grau
de
conhecimento de nossa sociedade ser muito pouco, não opinavam sobre
os limites. Ao mesmo tempo também ignoravam os limites fixados por
demarcações e mantinham-se usando as terras que normalmente
ocupavam.
O que realmente acontecia é que a ´demarcação` de um
território indígena era fixada pela ocupação do não índio que
´militarmente` iam ocupando os rios da Amazônia. Este ´limite`
era
ano
a
ano
fixado
na
mesma
proporção
do
interesse
econômico – extração da borracha, castanha, animais silvestre
(peles era um dos principais itens da exportação da Amazônia
até a década de 70) e da capacidade bélica do invasor. Neste
processo os índios eram ´tangidos` para acima das cachoeiras,
locais de difícil navegação para os invasores. As cachoeiras
funcionavam como uma espécie de barreira natural ao avanço
dos invasores.
No
rio
Uatumã,
os
índios
Waimiri
Atroari
de
costume
seminômades, habitavam desde as suas cabeceiras até sua foz,
no rio Jatapu, por onde navegavam e subiam aquele rio também até as
cachoeiras. Conheço ainda velhos Waimiri Atroari que contam suas
viagens quando jovens utilizando este processo.
Alípio
Bandeira,
grande
sertanista
e
indigenista,
(Primeiro
Inspetor chefe da Inspetoria do S.P.I. no Amazonas) quando
esteve em julho e princípio de agosto de 1911, no rio Uatumã,
soube da existência dos Waimiri Atroari e que ´freqüentavam esse
rio em certa época do ano e que eram ali frequentemente assassinados
por um hespanhol, o Snr. Moreno, morador da Cachoeira Maximiana` (A
cachoeira Maximiana hoje é conhecida como a Cachoeira Morena –
certamente em alusão ao Senhor Moreno que ali se estabelecera)
[...]
24
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
A cachoeira Morena fica abaixo da cachoeira Balbina a jusante da
barragem da Usina hidrelétrica de Balbina – aproximadamente 25
quilômetros.
Quando em 1967, as equipes de sertanistas da FUNAI subiam o rio
Uatumã na tentativa de contatos pacíficos com os Waimiri Atroari, desde
a cachoeira Morena passavam a ficar mais atentos, pois dali em diante a
qualquer momento poderiam encontrar grupos de índios Waimiri Atroari.
Numa destas expedições que participei encontramos um grupo
de índios Waimiri Atroari na foz do rio Pitinga, que a tudo indica
nos
seguiam
pelas
margens
do
rio
Uatumã
desde
as
proximidades da Cachoeira Balbina, caracterizando sem sombra
de dúvida que aquela região da Cachoeira Morena para cima era
local de uso dos Waimiri Atroari. [...]
Quando fizemos, junto com Gilberto Pinto Figueiredo, a proposta de
criação da Reserva Waimiri Atroari, dentro das limitações que nos
eram impostas, que era de que o território a ser destinado aos
índios para as Reservas Indígenas teria que ser o mais reduzido
possível. Nos decretos de criação de Reservas indígenas, já era
mencionada a condição de redução da área. Foi fixado o limite leste no
rio Pitinga, quando na realidade pela presença e pelo uso da área
pelos índios Waimiri Atroari o limite real seria a Cachoeira
Morena ou Balbina.
[...]” (grifos nossos)
Portanto, no processo de demarcação da terra indígena WaimiriAtroari, os interesses econômicos nas riquezas encontradas na área prevaleceram
sobre os direitos originários dos índios Waimiri – Atroari. Nesse contexto, deu-se a
construção da hidrelétrica de Balbina, cuja consequente inundação sucedeu na área
de ocupação tradicional indígena.
25
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
5.3.2. DA REMOÇÃO DOS ÍNDIOS WAIMIRI-ATROARI PARA
A CONSTRUÇÃO DA HIDRELÉTRICA DE BALBINA
Por meio do Of. nr. 49/70 -1ª DR, datado de 12 de março de
1970, e constante no Processo FUNAI nº 2625/81 (instaurado para ordenar a
documentação até ali existente e para identificação e delimitação da Terra Indígena
Waimiri/Atroari), que faz parte do Processo MPF/PGR/1.00.000.000929/2001-72
(mídia constante no ANEXO XI – Pasta Processo Funai 2625/81), afirma-se, no início
da década de 70, ser fronteira viva de região indígena ocupada pelos Waimiri-Atroari o
Rio Uatumã e a presença de índios nas partes altas dos vales dos rios Jatapú e
Uatumã :
“1.4. Circunstância não menos inquietante são as fronteiras vivas de
região indígena, principalmente os cursos do Jauaperí, Alalaú e Uatumã,
por onde é altamente facilitada a penetração de aventureiros e, o que é
pior, dos paranóicos, estatisticamente consideráveis, dispostos a duplicar
os feitos do sertanista Gilberto Pinto Figueiredo Costa
1.5. A técnica, a sensibilidade e o poder de comunicação dêste
Sertanista, granjearam-lhe a amizade do próprio governante índio,
porém não parece lógico esperar-se que, um caso de conflitos com
aventureiros, a amizade de um estranho prevaleça sôbre a opinião dos
governados do tuxáua Maruaga.
(...)
2.3 Deve-se creditar à divisão dos Atroari o equilíbrio de diversas
pequenas tribos, arredias e tecnologicamente mais primitivas, que
habitam as partes altas dos vales do Jatapu e Uatumã.” (fls. 03/05 do
Processo FUNAI/BSB/2625/81- ANEXO XI – Pasta Processo Funai
2625/81)
No Parecer n.º 167/87-GT Port. Interministerial n.º 002/83-Dec.
88118/83 (ANEXO XI – Pasta Processo Funai 2625/81), constante em fls. 509/523 do
mesmo Processo FUNAI nº 2625/81 e datado de 05 de junho de 1987, que
26
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
fundamentou os limites atualmente definidos para a terra indígena Waimiri-Atroari,
consta o expresso reconhecimento de que os índios Waimiri-Atroari foram removidos
de suas terras para a construção da hidrelétrica de Balbina, com base no art. 20 da
Lei 6.001/73 (aparentemente a alínea “d” do § 1º do referido art. 20, embora não
tenham sido seguidas as formalidades exigidas na referida norma, como o Decreto do
Presidente da República), e de que havia registro de propriedades incidentes na área
indígena e no polígono declarado de utilidade pública para fins de desapropriação,
conforme se verifica pelos seguintes trechos (fls. 513/514):
“10. Entretanto, no decorrer dos anos e com a instalação de projetos de
exploração
agrícola
aventureiros
e
e
madeireira
especuladores
nas
proximidades
chegaram
a
da
registrar
reserva,
como
propriedades particulares vastas áreas dentro da reserva.
11. Todavia, mesmo com esses registros, ou declaração de posse junto
ao INCRA e “pagamento de impostos”, esses falsos proprietários nunca
se arriscaram a tomar posse de suas declaradas propriedades, talvez
pelo grande temor que os regionais ainda cultivam com relação a
agressividade desses índios.
12. Posteriormente, instalou-se dentro da área, na região leste, com
autorização da FUNAI, a empresa mineração Timbó Mineradora Ltda.,
atualmente com o nome Taboca pertencente ao grupo Paranapanema,
que se encontra atualmente em plena atividade exploratória.
13. Em Janeiro de 1979, a ELETRONORTE comunicou à FUNAI que
iniciaria os trabalhos de construção da UHE-BALBINA, que
represaria o rio Uatumã, informando o nível que a lâmina de água
atingiria, totalizando 1/3 da área da reserva, e as influências diretas e
indiretas na região.
(...)
17. Em 23 de novembro de 1981, através do Decreto n.º 86.630/81,
revogavam-se
os
decretos
anteriores
(68.907/71,
74.464/74
e
27
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
75.310/75) tornando EXTINTA a Reserva Indígena Waimiri-Atroari;
transformando a área habitada por aqueles índios, declarava como
“ÁREA INTERDITADA TEMPORARIAMENTE PARA FINS DE ATRAÇÃO E
PACIFICAÇÃO
DOS
INDIOS
WAIMIRI-ATROARI”,
invertendo
totalmente o processo de regularização de uma área indígena.
18. Além de acabar com a Reserva Indígena, tornando-a, simplesmente,
uma “área interditada”, o Decreto n.º 86.630/81 de 23.11.81, diminuiu a
área em em 526.800 hectares, exatamente a área pretendida para
exploração mineral.” (fls. 532/533 do Proc. FUNAI 2625/81, grifos
nossos)
Tendo
em
vista
a
remoção
dos
índios
das
terras
que
tradicionalmente ocupavam, o citado Parecer propôs o ressarcimento pelos prejuízos
dos índios e afirmou a inexistência de posse efetiva nas áreas tituladas em cartório:
“VI- SITUAÇÃO ATUAL
Com a previsão da inundação da barragem da UHE-BALBINA para
outubro/87,
torna-se
Homologatório
da
necessário
Área
Indígena
a
inclusão
proposta,
de
no
um
Decreto
artigo
reconhecendo o direito dos índios a serem ressarcidos dos
prejuízos decorrentes da remoção, nos termos do Artigo 20,
parágrafo 4º da Lei 6.001/73; cabendo à ELETRONORTE ressarcílos pelos prejuízos causados com a inundação das áreas de uso
dos índios das aldeias Taquari e Tapupunã, e a consequente
mudança para outro local; cabendo à FUNAI, com participação da
ELETRONORTE, quantificar os prejuízos.
(...)
Muito embora constem no INCRA de Manaus cerca de 30 títulos
registrados em cartório, de áreas compreendidas no território WAIMIRIATROARI, pode-se afirmar, com toda a certeza, a não existência de
posse efetiva, ou invasões, pelo temor que esses índios inspiram.
Alguns títulos incidem no polígono declarado de utilidade pública
a
ser
desapropriado para a
formação
do Reservatório
de
28
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
BALBINA, Decreto n.º
85898 de 13.04.81.” (fl.
541 do processo
FUNAI 2625/81, grifos nossos).
A compensação proposta veio deveras tardiamente, dado o
histórico que até ali existia de impactos socioculturais ocasionados aos indígenas. A
transcrição de parte do documento “Estudo B: O caso da UHE Balbina e os índios
Waimiri-Atroari” pela Informação nº 96/CGID/2009 da Funai (ANEXO IX) em suas fls.
18/19 bem traduz a desídia para com os direitos dos Waimiri-Atroari, da qual nos
valemos do seguinte excerto:
“Em setembro de 1979, em trabalho que definia estudos conceituados
como
prioritários
a
serem
desenvolvidos
na
fase
anterior
ao
enchimento do reservatório, a Monasa, consultora do projeto UHE
Balbina, assessorada pela Divisão Ambiental da Montreal Engineering
Company Limited (MECO), enfatizou, repetidas vezes, a importância
de definição prévia a respeito da abordagem dos problemas de ordem
social que incidiriam na área indígena. Recomendando a avaliação
sociológica do provável impacto do projeto, foi sugerido ainda
para 1979 um processo de discussão com a FUNAI para
elaboração
de
um
programa
que
pudesse
minimizar
os
prejuízos dos índios Waimiri-Atroari. Como proposto, tal
programa deveria ser implementado já no princípio de 1980.
Contudo nenhuma medida neste sentido foi efetivada. A elaboração
de um programa para atendimento dos Waimiri-Atroari teve lugar
muito tardiamente, já por ocasião do fechamento das comportas da
barragem, tendo sido elaborado basicamente por um assessor da
ELETRONORTE
e
funcionários
da
FUNAI,
em
outubro
de
1987.”(destacamos)
Vale transcrever também outro trecho do referido processo, da
lavra do Antropólogo Stephen Baines, datado de 09.09.1985, que consta em fl. 463
do Processo FUNAI BSB 2625/81 (mídia constante no ANEXO XI – Pasta Processo
Funai 2625/81):
29
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
“7. Área desmembrada pelo Decreto Nº 86.630 de 23 de novembro de
1981, ocupada pela Mineração Taboca do Grupo Paranapanema.
Propostas: - a interdição temporária, e de imediato, da rede hidrográfica
dos rios Pitinga e Pitinguinho, e a evacuação dos funcionários da
Paranapanema que se encontram na área, visto que as informações
obtidas, inclusive através da empresa Mineração Taboca, que deram
origem
aos
radiogramas
da
Iª
DR:NR524/NAWA
de
22
08
85,
NR506/NAWA de 08 08 85, e Nº 2537 de 22 08 85, constataram a
presença de indígenas arredios nesta região. Estas informações foram
confirmadas ao G.T. no dia 27 de agosto de 1985 pelos Dr. Dornelles e
Dr. Renato, e posteriormente pelo Dr. Nelson, funcionários da Mineração
Taboca, que nos forneceram, inclusive, o nome da Cia. Transportadora Di
Gregorio, cujo empregado motorista da carreta ZC5II7 no dia 24 08 85
declarou para a empresa Mineração Taboca, ter encontrado no dia 13 08
85, 08 indígenas (06 homens e 02 mulheres) atravessando a estrada no
Km. 30 vicinal hidrelétrica Pitinga.”
Tais transcrições revelam que as áreas de disputa nos autos das
ações de desapropriação ajuizadas pela Eletronorte para permitir a construção da
hidrelétrica de Balbina se situam em terras tradicionalmente ocupadas pelos WaimiriAtroari.
Evidenciam, outrossim, a inexistência de posse por parte dos
“desapropriados”, não apenas por se tratar de região longínqua de floresta densa, mas
também pela própria presença dos indígenas na área.
Nesse ponto, necessário mais uma vez nos valer do Relatório do
Dr. Franklin Rodrigues da Costa. Conforme expendido supra, o mencionado Procurador
Regional da República debruçou-se sobre a questão, analisando toda a transferência
feita pelo Estado do Amazonas aos particulares, relatando de forma detalhada como
30
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se deu o requerimento, o subseqüente registro e listando quais e quantas foram as
normas violadas. Em seguida, abordou a questão indígena (ANEXO VII, fls. 88/89
do Parecer) :
“ E mais: os outorgados tinham conhecimento de que se
tratavam de terras tradicionalmente ocupadas por índios, tanto é
assim que os proprietários se dirigiram à FUNAI e lá registraram
seus títulos na tentativa de convalidar o ato de transferência, ou
seja, de tornarem terras públicas da União em propriedade
particular. No ano de 1987, o então Presidente da FUNAI,
Romero Jucá Filho, em relatório sobre os Wamiri-Atroari afirmou:
´Muito embora constem no INCRA de Manaus cerca de 30 títulos
registrados em cartório, de áreas compreendidas no território WAIMIRIATROARI, pode-se afirmar, como toda a certeza, a não existência de
posse efetiva e invasões, pelo temor que esses índios inspiram. Alguns
títulos incidem no polígono declarado de utilidade pública a ser
desapropriado para a formação do reservatório de BALBINA,
Decreto n.° 85.898 de 13.04.81.
A esse mesmo respeito, Angela Maria Baptista, em relatório da FUNAI,
chama a atenção do Órgão da existência de títulos de propriedade
naquela área indígena:
´Conforme informações fornecidas ao GT pelo INCRA de Manaus na
pessoa da Dra. Odila Sernadeth Tranguo (advogada do Departamento do
projeto Fundiário de Manaus) como a 'Planta Geral de Situação das
Glebas' nos municípios de Silves, Itapiranga e Urucará, existem cerca de
338 títulos de propriedades incidentes na área reservada para os
Waimiri-Atroari pelo Decreto de n.°68.907, de 13/07/71, expedidos pelo
Governo do Estado do Amazonas. Não possuímos informações que
detentores desses títulos tenham tentado se fixar nessa área, todavia
sugerimos que a FUNAI entre em contato com o INCRA verificando a
situação legal desses títulos evitando problemas futuros.
31
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Diante das evidências, o Procurador Regional da República Dr.
Franklin Rodrigues da Costa decidiu conferir in loco a ocupação da área pelos Waimiri
Atroari, veja-se:
“O MPF, na instrução deste procedimento, incursionou na área e
registrou o depoimento dos índios, os quais confirmam a ocupação
tradicional da área, inclusive à jusante de onde veio a ser localizada a
barragem da Usina Hidrelétrica de Balbina.
Também foi elaborada documentação fotográfica mostrando que,
ainda hoje, os índios moram nas ilhas formadas pelo Lago de
Balbina, mormente nos leitos dos Rios Pitinga e Uatumã,
evidenciando
que
a
região
sempre
foi
área
de
ocupação
tradicional da Comunidade Waimiri-Atroari - precisamente onde
estariam os lotes aos quais se atribui a propriedade aos
'expropriados'” (grifamos)
O depoimento dos índios e os registros fotográficos constam no
ANEXO V.
5.3.3. DA CRIAÇÃO DO PROGRAMA WAIMIRI – ATROARI
COMO COMPENSAÇÃO AOS INDÍGENAS PELA REMOÇÃO DE
SUAS TERRAS TRADICIONAIS:
No caso, em virtude da remoção dos Waimiri – Atroari de suas
terras tradicionais, a FUNAI e a Eletronorte firmaram o Termo de Compromisso n.º
02/1987 “objetivando a implantação de um programa de apoio às comunidades
indígenas Waimiri – Atroari tendo em vista a inundação de parte de suas terras
imemoriais pela UHE – Balbina” (ANEXO XII).
Da análise da cláusula primeira do referido documento, verifica-se
que o objetivo é o de “ressarcir a comunidade indígena WAIMIRI-ATROARI pela perda
32
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de posse de suas terras imemoriais, com a inundação da aldeia TAPUPUNÃ, no Rio
Abonari, áreas de uso naquele Rio e áreas de uso dos Índios no rio Taquari, da Aldeia
Taquari, e os prejuízos de ordem cultural inerentes à remoção para outro local, em
decorrência da formação do reservatório da UHE Balbina.”
O Termo de Compromisso estabeleceu ações de execução
imediata, mediata e futura. Dentre as ações mediatas, destaca-se a obrigação de a
FUNAI demarcar a terra Waimiri-Atroari, “sem excluir a área de inundação inclusa no
perímetro
da
área
indígena
imemorial”,
sendo
a
demarcação
custeada
pela
Eletronorte.
Com base no referido Termo de Compromisso, foi aprovado o
programa Waimiri-Atroari, que realiza ações na área de saúde, educação, cultura
dentre outras.
O Termo Aditivo mas recente é o de n.º 03/2006 que estabelece o
pagamento pela Eletronorte da importância de R$ 3.998.939,60 como valor anual
para o programa no ano de 2006 e anos subsequentes (ANEXO XII).
5.3.4. DA ATUAL OCUPAÇÃO DAS ILHAS DO LAGO DE
BALBINA PELOS INDÍGENAS WAIMIRI-ATROARI:
Na atualidade, os indígenas Waimiri- Atroari continuam a ocupar
as ilhas formadas pelo lago de Balbina, utilizando das águas do lago para a realização
de pesca, bem como para a locomoção. Nesse sentido, veja-se as seguintes
informações prestadas pelo indigenista José Porfírio Carvalho Fontenele, datado do
último dia 03 de dezembro de 2009 (ANEXO XII):
“...
5. Os Waimiri atualmente continuam utilizando-se da região do lago de
Balbina nas suas atividades culturais e de subsistência como pesca,
33
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roças, coletas etc.
6.A aldeia Ariné, com população de 49 pessoas sob a liderança dos
índios Matini Waimiri e Isasy Waimiri, está localizada dentro do lago
numa ilha na foz do antigo Igarapé Água Branca. (coordenadas
geográficas 01º15'24'' Sul e 60°07'39''W) fotos em anexo.
7.Os Waimiri continuam utilizando do lago (antigo rio Uatumã que foi
represado pela UHE Balbina) nas suas atividades produtivas e culturais,
circulando e obtendo a sua subsistência”.
Do acima exposto, verifica-se que remanesce para os indígenas
Waimiri-Atroari o interesse no reconhecimento de que a área ocupada pelo lago de
Balbina é de ocupação tradicional indígena Waimiri-Atroari, visto que ainda na
atualidade os indígenas utilizam-se do lago para as suas atividades de subsistência e
culturais, conforme se verifica das fotografias colacionadas pelo indigenista Porfírio
Carvalho (Anexo XII)
5.3.5. DA PERÍCIA REALIZADA PELO ANALISTA PERICIAL
EM ANTROPOLOGIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
No Parecer/PRDC/AM/nº001/2008 (ANEXO VII), o Analista Pericial
em Antropologia do MPF, Walter Coutinho Jr., analisa as fortes evidências de que a
ocupação tradicional dos Waimiri Atroari vai muito além das áreas demarcadas,
concluindo pela probabilidade de outros lotes alienados pelo Estado do Amazonas no
período de 1969/1971, embora não incidentes na Reserva Indígena de 1971,
localizarem-se em região de ocupação coetânea dos Waimiri-Atroari, que dali tiveram
que se retirar ao longo do tempo por força de pressões, inclusive de caráter fundiário,
relacionadas ao contato interétnico.
O antropólogo assenta, deveras, que, a par da questão da
sobreposição dos lotes objeto das ações de desapropriação na terra indígena
Waimiri-Atroari
sucessivamente
demarcada,
parece
haver
evidências
34
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
suficientes para afirmar que os respectivos títulos foram expedidos pelo
Estado do Amazonas, no período de 1969/1971, numa região de terras
ocupadas coetaneamente pelos Waimiri-Atroari. Veja-se (fls. 25/27 do Parecer):
“De acordo com o relatório apresentado pelo Dr. Franklin
Rodrigues da Costa, as glebas do Loteamento Pitinga tituladas
pelo Estado do Amazonas envolvidas na ações de desapropriação
em causa são as de número 01-13, 15-31, 33-34, 39-50, 54-60,
78-79, 83-85, 116, 121, 125 (A, B, D e E), 243, 265, 274 e 286,
além de um lote com numeração não identificada. Tomando como
referência os mapas apresentados às fls. 106, 378 e 541 do
Procedimento
nº
929/2001,
podemos
fazer
as
seguintes
observações:
a) Várias inconsistências encontradas na descrição de limites do Decreto
nº 68.707/71 tornam difícil precisar a exata superposição do loteamento
Pitinga em relação à reserva indígena Waimiri-Atroari.
(...)
De todo modo, caso se tome como correta a superfície indicada pelo
mapa juntado às fls. 378 – que se poderia qualificar como uma
interpretação plausível da área descrita pelo Decreto nº 68.707/71 –,
estaria configurada a sobreposição com os limites da Reserva Indígena
Waimiri-Atroari, criada em 1971, de parte dos lotes nº 08, 09, 26, 27,
28, 48, 49, 50 e 84, 125-A, 125-B, 125-C e 125-D, todos do chamado
Loteamento
Pitinga
e
objeto
das
ações
de
desapropriação
aqui
consideradas.
b) Ademais, pode-se também afirmar, de forma tentativa, que os lotes
nº 125-A à 125-E incidiriam, total ou parcialmente, nos limites da Área
II declarada de ocupação indígena pela Portaria nº 511/N/78, na área
interditada pelo Decreto nº 86.630/81, na área declarada de ocupação
Waimiri-Atroari pelo Decreto nº 94.606/87, e na área homologada pelo
Decreto nº 97.837/89. Além dos lotes acima referidos, a área interditada
em 1981 incluiria também parcialmente os lotes nº 49-50 e 84-85. Uma
35
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Procuradoria da República no Amazonas
manifestação de caráter conclusivo sobre as glebas do Loteamento
Pitinga realmente abrangidas, e em qual proporção, nas sucessivas
definições de limites da TI Waimiri-Atroari dependeria da plotagem dos
pontos relevantes em carta geográfica elaborada numa escala adequada
para melhor visualização.
c) Seja como for, pode-se afirmar que, independente das glebas
pertencentes ao Loteamento Pitinga que apresentam efetiva
sobreposição, no todo ou em parte, com a área da reserva
indígena criada em 1971 e/ou com a terra indígena homologada
em 1989, parece haver elementos suficientes para afirmar que
os respectivos títulos foram expedidos pelo Estado do Amazonas,
no período de 1969/1971, numa região de terras ocupadas
coetaneamente pelos Waimiri-Atroari. Os especialistas neste
grupo são acordes em considerar a área inundada pelo lago da
hidrelétrica
de
Balbina
como,
até
então,
ocupada por essa sociedade indígena.
tradicionalmente
De fato, o lingüista e
antropólogo Márcio Silva afirma que, “em 1976, um projeto hidrelétrico
de grande porte começou a ser implementado em uma área ocupada
pelos Waimiri-Atroari até fins dos anos sessenta” 1. O antropólogo
Stephen Baines, por sua vez, comenta que “uma imensa área do
território dos Waimiri-Atroari, abrangendo os vales dos rios Uatumã e
Abonari e seus afluentes acima da barragem da UHE Balbina, toda de
ocupação deles até a década de 1970, foi inundada pelo reservatório” 2.
O indigenista José Porfírio Carvalho menciona que, numa das incursões
realizadas em 1969 pela equipe de atração da FUNAI da qual era
integrante, ao chegar à foz do rio Pitinga deparou-se com um grupo de
aproximadamente cinqüenta indígenas acampados no local, a partir de
onde, Uatumã acima, encontravam-se diversos outros grupamentos
waimiri-atroari caçando e pescando. Por informações dos índios, soube
da existência de “uma grande maloca em terras altas, afastada da
margem esquerda do Rio Uatumã, fato este que pode comprovar
posteriormente em sobrevôos na área” (Proc. 929/01, fls. 369).
1
2
SILVA, op. cit., p. 54.
BAINES, 1995, p. 7.
36
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Deveras, uma maloca waimiri-atroari foi fotografada em 1968 durante
um sobrevôo realizado na região do rio Pitinga3.
Como vimos anteriormente, ao argumentar em favor da manutenção da
porção leste da reserva indígena – excluída depois pelo decreto de 1987
e parcialmente alagada pelo reservatório de Balbina –, a antropóloga
Ângela Baptista aduz as informações constantes em um relatório do
coordenador da Frente de Atração Waimiri-Atroari, Giuseppe Cravero,
datado de 1979, que sustenta ser aquela região utilizada pelos índios
para caça, pesca e coleta de ovos de tracajá (supra:17)”.
O antropólogo, ademais, associa a ausência de posse por parte
dos supostos proprietários dos lotes expedidos pelo Governo do Amazonas justamente
à presença dos índios Waimiri-Atroari na área. Confira-se (fls. 27/28 do Parecer):
“d) É especialmente relevante verificar que, há mais de um
quarto de século, já se correlacionava a ausência de posse, por
parte de seus pretensos proprietários, dos lotes incidentes na
reserva indígena criada em 1971, ou na área indígena proposta
para demarcação em 1981, com a ocupação dos índios WaimiriAtroari na região das glebas tituladas.
Assim, ao noticiar a expedição pelo governo do Estado do Amazonas de
338 títulos de propriedade incidentes na área reservada pelo Decreto nº
68.907/71, o relatório resultante dos trabalhos determinados pela
Portaria nº 952/E/81 afirmava que não foram obtidas à época quaisquer
informações de que os “detentores desses títulos de propriedade tenham
tentado se fixar nessa área”, sugerindo de qualquer forma que a FUNAI
buscasse o “contato com o INCRA verificando a situação legal desses
títulos evitando problemas futuros”. De qualquer modo, diz o relatório,
'como essa área é secularmente ocupada pelos Waimiri Atroari,
seu direito a posse permanente e ao usufruto exclusivo das
3
A fotografia desta maloca encontrada no rio Pitinga foi publicada no caderno de imagens inserido na obra de
SABATINI (op.cit.).
37
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riquezas naturais e minerais existentes na área é assegurado
pelo artigo 198 da Constituição Federal não prevalecendo contra
esse direito quaisquer títulos ou situações constituídas uma vez
que são bens inalienáveis da União'4.
e) O fato das glebas tituladas pelo Estado do Amazonas que incidiam no
território Waimiri-Atroari não terem sido, até então, objeto de ocupação
adventícia também foi comentado, em 1982, pelo indigenista José
Porfírio Carvalho.
De acordo com ele, apesar de “aventureiros e especuladores” terem
chegado “a registrar como propriedades particulares, vastas áreas
dentro da reserva dos índios Waimiri Atroari”, e ainda que possuíssem
“declaração de posse junto ao INCRA” e viessem “'pagando impostos',
estes falsos proprietários nunca se arriscaram a tomar [posse]
de sua declarada propriedade, talvez pelo grande temor que os
regionais ainda cultivam com relação a agressividade dos índios
Waimiri Atroari”5.
Com efeito, um mapa juntado aos autos de uma das ações judiciais de
desapropriação da ELETRONORTE traz o símbolo de “aldeia” comumente
utilizado pela cartografia da FUNAI na fronteira entre os lotes nº 125-A e
125-B, na face interna do “limite da reserva” indígena 6. O mesmo mapa
traz, no interior do polígono declarado de utilidade pública pelo Decreto
nº 85.898/81, a localização do PIA Abonari, do PIA Taquari, de outros
dois “Postos Indígenas de Vigilância e Controle” e da “Aldeia Tomás”.
Em parecer exarado sobre um pedido de atestado administrativo, Porfírio
Carvalho afirma que, em setembro de 1986, percorreu toda a extensão
do rio Uatumã à montante do local da UHE Balbina sem constatar
qualquer “presença de ocupação de não índios nas suas margens” ou
sinais que pudessem caracterizar a existência de propriedades rurais na
4
5
6
Processo FUNAI/BSB/3929/81, fls. 159 e 104.
CARVALHO, op. cit., p. 113. Um documento do Instituto de Terras do Amazonas (ITERAM), datado de 1983, informa que tinham sido
expedidos 22 títulos definitivos no interior da área indígena Waimiri-Atroari, interditada em 1981, plotando-se a localização dos mesmos em
cópia do respectivo mapa juntado às fls. 386v./389 do Processo FUNAI/BSB/2625/81.
Processo nº 2001.32.00.007234-9, fls. 21, em curso na 1ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas. Uma observação contida no selo de
identificação deste mapa, que possui o timbre da ELETRONORTE, informa que “a localização das malocas, aldeias e postos indígenas é
aproximada, com base na planta de interdição referente ao Processo FUNAI/BSB/2625/81, atualizado em 05/10/83”.
38
Ministério Público Federal
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região (Proc. 929/01, fls. 382).”
O antropólogo examina também a constatação in loco do Dr. Franklin
Rodrigues da Costa, agregando outros dados que enriquecem a análise (fls. 28/30; fls. 32/33):
“f) A ocupação waimiri-atroari na área depois inundada pelo lago
da UHE Balbina foi confirmada nos depoimentos colhidos durante
a visita
àquela terra indígena, já
mencionada anteriormente,
procedida pelo Dr. Franklin Rodrigues da Costa.
Um dos indígenas entrevistados referiu-se à existência de uma
grande aldeia na região em que havia sido iniciada a construção
da usina hidrelétrica: “Ele andava até pra cá pra baixo fora da
represa, onde tá Balbina agora. Aqui, ele ta falando, tinha uma praia
bem aqui, praia da Tartaruga”.
Os índios abriam roçados nas proximidades dessa “aldeia também onde
a represa alagou”, visitando com certa freqüência a região porque ali
“tinha festa”. Entretanto, “depois que a barragem da hidrelétrica foi feita
pararam de ir pra lá” pois o “pai deles, avô deles, família deles ficou com
medo porque, medo de branco atirar neles”. “Antes disso”, outro
declarou, “a gente ficava aqui. Caçava, pescava um tempão” (cf. Proc.
929/01, fls. 552/557).
Os testemunhos prestados pelos Waimiri-Atroari mencionam que foram
obrigados a se distanciar daquela área para evitar conflitos com os não
índios (“pra pessoa não ir lá pra baixo pra não tocar... com homem
branco”), retirando-se paulatina e forçosamente do local (“começou a
subir, preparar outra aldeia [...] mudar né, a aldeia, roçado... [...]
Depois que começou a demarcação também dei recado... proibiram de
fora, né [...]. Uirapiri tá morrendo e tal [...]. Por isso que esse pessoal
abandonou”) (Proc. 929/01, fls. 560).
g)
Na
realidade,
há
informações
esparsas
que
indicam
a
presença dos Waimiri-Atroari na zona situada muito além do
39
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
limite sudeste da reserva indígena criada em 1971 e até mesmo
da
poligonal
declarada
de
utilidade
pública
para
fins
de
desapropriação pelo Decreto nº 85.898/81.
Vimos anteriormente que a memória indígena registra que o líder
Waimiri-Atroari chamado Maiká teria nascido na região do rio Urubu, ao
sul de Balbina, onde residiu até deslocar-se com o seu grupo para a
região do Abonari (supra:13).
Uma outra evidência indireta da ocupação Waimiri-Atroari nessa
região
constitui
a
formação
espeleológica
conhecida
como
“Refúgio do Maroaga”, situada a cerca de seiscentos metros da
margem direita no Km 08 da rodovia AM-240, que liga a cidade
de Presidente Figueiredo à vila de Balbina, no interior da Área de
Proteção Ambiental Caverna do Maroaga7.
A caverna que dá nome à APA 'foi cadastrada, quando da execução dos
trabalhos de levantamento espeleológico para a implantação da Usina
hidrelétrica de Balbina, como Gruta Refúgio do Maroaga', sendo esta
denominação dada 'em homenagem a um chefe indígena das etnias
Waimiri-Atroari, que, segundo a lenda, teria ali se refugiado quando
perseguido pelos brancos'.
No presente, ao ser visitada por grupos de turistas, os guias locais
repetem a explicação “dizendo que o nome da caverna é uma
homenagem ao índio guerreiro Maroaga, da tribo Waimiri-Atroari, que
utilizou a caverna como refúgio nas décadas de 1960 e 1970, durante o
período de construção da Rodovia BR-174”8.
Este chefe indígena teria se deslocado posteriormente para a região do
rio Santo Antonio do Abonari, onde os Waimiri-Atroari, segundo Porfírio
Carvalho, “eram liderados pelo conhecido Maroaga”. Em fins de
dezembro de 1974, um grupo de índios “chefiados pelo já conhecido e
7
8
A APA Caverna do Maroaga foi criada pelo governo do Estado do Amazonas com 256.200 hectares através do Decreto nº 12.836, de 09.03.1990,
tendo os seus limites ampliados para 374.700 hectares pelo Decreto nº 16.364, de 07.12.1994.
SANTOS JÚNIOR, Aldemir P. & LIMONGE, Jesseneide P. “Turismo espeleológico na Amazônia: estudo de caso da Caverna do Maroaga em
Presidente Figueiredo, ano 2006”. Observatório de Inovação do Turismo – Revista Acadêmica, vol. II (4): 1-13, 2007, p. 5. Sabe-se, além disso,
que a Caverna do Maroaga possui vestígios de remota ocupação indígena, concedendo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) por meio da Portaria nº 47, de 13.02.2007, permissão para o desenvolvimento de um projeto de resgate histórico e arqueológico naquele
sítio.
40
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
amigo de todos no Posto, índio sexagenário Maruaga”, visitou o PIA
Abonari.”
“(...)Recorde-se
que
o
Decreto
nº
85.898,
pressuposto
para
a
desapropriação das glebas a que se referem os litígios judiciais, foi
expedido em 13.04.1981, e que o Decreto nº 86.630, de interdição da
terra indígena, foi baixado somente em 23.11.1981.
Isto quer dizer que a declaração de utilidade pública da área, ao
ser efetivada no mês de abril, incluiu uma vasta porção de terras
abrangidas
pela
reserva
indígena
criada
pelo
Decreto
nº
68.907/71 e quase metade da Área II declarada de ocupação
indígena pela Portaria nº 51/N/78, que somente vieram a ser
excluídas da afetação ao grupo indígena Waimiri-Atroari no mês
de novembro.
É cediço o fato de haver, ainda hoje, superposição entre parte
significativa das áreas descritas pelos Decretos nº 85.898/81 e nº
97.837/89.
v) Ressalte-se ainda os problemas de fundo que cercam a aplicação do
artigo 1º, parágrafo único, do Decreto nº 97.837/89 ao determinar a
exclusão, dos limites da terra indígena demarcada para posse e usufruto
dos índios Waimiri-Atroari, da “superfície de inundação da barragem da
Usina Hidrelétrica de Balbina, conforme Decreto nº 85.898, de 13 de
abril de 1981” e da “faixa de domínio da BR-174”.
A discutível aplicação do disposto neste parágrafo pode ser aferida, de
pronto,
pela
indeterminação
cartográfica
a
respeito
das
áreas
efetivamente alagadas pelo reservatório da UHE Balbina. Se, por um
lado, existem grandes áreas de terras declaradas de utilidade pública
pelo Decreto nº 85.898/81 (abrangendo 1.034.490 hectares), porém
não inundadas no presente, comprova-se também em algumas plantas
topográficas contemporâneas, por outro lado, que a superfície de
alagação do reservatório extrapolou o polígono definido pelo Decreto nº
85.898/81 no interior da TI Waimiri-Atroari em determinados pontos no
trecho superior dos rios Uatumã e Santo Antonio do Abonari.
41
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Estima-se que aproximadamente 13% da superfície inundada pelo
reservatório de Balbina esteja incrustada nos limites da terra indígena
homologada pelo Decreto nº 97.837/89, sabendo-se que algumas das
ilhas existentes no lago têm sido, de fato, habitadas em caráter
permanente pelos Waimiri-Atroari9.
A imprecisão prática em relação aos limites da terra demarcada, e
conseqüentemente da legitimidade da ocupação indígena, torna-se
muito maior, contudo, naquelas regiões em que a margem oposta do
reservatório está patentemente fora da área descrita pelo decreto de
homologação.
vi) Além de abranger áreas de moradia, o lago da UHE Balbina
vem sendo utilizado pelos índios para o exercício de uma das
suas atividades produtivas, a pesca. No entanto, por ser muito
piscoso, e pelas belezas naturais da região, o lago tem sido igualmente
procurado por não índios para a prática de pesca esportiva e de
subsistência. O “Plano de Proteção Ambiental e Vigilância na Área
Indígena Waimiri-Atroari, Área de Influência da Rodovia BR-174”,
elaborado pelo PWA em 1995, já registrava que os recursos pesqueiros
do lago de Balbina sofriam forte pressão de pescadores não índios,
possuindo “nas suas cabeceiras, protegidas dentro da Área Indígena,
locais para a procriação e conservação das espécies, e portanto, da
manutenção daquele recurso econômico”10. Uma tentativa de invasão,
repelida pelos Waimiri-Atroari, teria sido seguida pela “delimitação da
área no lago com colocação de bóias e placas de sinalização” e por
palestra informativa do PWA junto à colônia de pescadores da vila de
Balbina. Aparentemente, é nesse contexto da disputa pelo acesso aos
recursos de pesca no lago da hidrelétrica que se insere a denúncia, feita
em 1997 por integrantes de comunidades não indígenas localizadas na
região da BR-174, de que os Waimiri-Atroari estariam obstruindo o
acesso ao igarapé Água Branca, onde teriam construído um cercado que
impedia as famílias de pescarem e confiscado um motor de popa, a
9
10
Como se pode comprovar pela documentação fotográfica produzida durante a visita in loco, já referida, do membro da PRR-1ª Região (Proc.
929/01, fls. 408/410).
Procedimento nº 1.13.066/2002-66, fls. 14.
42
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
canoa e o material de pesca levados por um comunitário. Do mesmo
modo, moradores de uma comunidade do baixo rio Branco também
comunicaram, em 2005, terem sido ameaçados pelos Waimiri-Atroari
para que abandonassem a área utilizada por eles em atividades de pesca
esportiva11.
Ao final, conclui o perito antropológico (fls. 37/39):
“Tendo em vista todo o exposto, podemos extrair duas conclusões
principais em relação ao objeto dos procedimentos administrativos
objeto deste parecer:
I.
Parte
dos
lotes
alienados
pelo
Estado
do
Amazonas,
integrantes do parcelamento denominado Pitinga e objetos das
ações de desapropriação consideradas nos procedimentos em
referência, superpõem-se total ou parcialmente seja à área da
Reserva
Indígena
Waimiri-Atroari
criada
pelo
Decreto
nº
68.907/71 seja à da Terra Indígena Waimiri-Atroari homologada
pelo Decreto nº 97.837/89.
II. Há fundados elementos que indicam a probabilidade de outros
lotes
alienados
pelo
Estado
do
Amazonas
no
período
de
1969/1971, embora não incidentes na Reserva Indígena de
1971, localizarem-se em região de ocupação coetânea dos
Waimiri-Atroari, que dali tiveram que se retirar ao longo do
tempo por força de pressões, inclusive de caráter fundiário,
relacionadas ao contato interétnico.
Além
dessas
ilações
especificamente
vinculadas
ao
objeto
dos
procedimentos administrativos aqui tratados, é preciso reconhecer a
existência de informações suficientes para recomendar a realização de
novos estudos e levantamentos sobre a TI Waimiri-Atroari nos termos do
Decreto nº 1.775/96. Entre os fatores que sustentam essa necessidade
merece destaque a ocupação dos Waimiri-Atroari de áreas localizadas
11
Cf. RICARDO, op. cit., p. 361; e RICARDO & RICARDO, op.cit., p. 374. A rigor, o mencionado igarapé Água Branca, cujos recursos eram
disputados com a população regional, desemboca no reservatório de Balbina fora dos limites homologados pelo decreto de 1989, situando-se,
porém, no interior da antiga área reservada em 1971.
43
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
fora dos limites atualmente demarcados e que até recentemente
integravam o território do grupo. Dentre as áreas de ocupação indígena
ainda não regularizadas, referidas ao longo deste parecer, estão: (i) a
correspondente à maloca Uariné, junto ao limite nordeste da terra
indígena, no interior ou proximidades da Reserva Biológica do Uatumã.
De modo geral, essa região fazia parte da Reserva Indígena do decreto
de 1971 e “encontra-se em área de interesse dos Waimiri-Atroari, que já
reivindicam a sua posse em função de ser antiga terra daquele povo”
(Proc. 929/01, fls. 382); (ii) a das malocas erigidas nas ilhas do
reservatório
da
UHE
Balbina,
em
região
também
abrangida
anteriormente nos limites da Reserva Indígena criada em 1971; e (iii) as
correspondentes ao Posto Indígena de Fiscalização Maháua e ao igarapé
Macucuaú, ambas na região do rio Jauaperi. Trata-se de áreas onde se
registra historicamente uma expressiva presença dos Waimiri-Atroari e
que estavam incluídas, provavelmente, nas terras reservadas ao grupo
pela Lei Estadual nº 941/17. Como vimos, os índios continuaram a
freqüentar a região do igarapé Xixuaú (“Chichinau” na grafia antiga), a
meio caminho entre o igarapés Macucuaú e Itaquera, até os trabalhos de
atração da FUNAI no período de 1968-1975 (supra:19).”
5.3.6. DA RECOMENDAÇÃO N.º 09/2008 DO MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL
Com fulcro no farto material probatório que ora se leva a este
douto juízo, que evidencia a posse tradicional indígena dentro dos limites do
reservatório de Balbina, bem como a omissão do Decreto n.º 97.837/89 na
demarcação da integralidade da terra indígena, o Ministério Público Federal expediu a
Recomendação n.º 09/2008, para a FUNAI e a União (ANEXO IX), cujo excerto se
transcreve abaixo:
“Por todo o exposto, a Procuradoria da República no Amazonas, pelos
Procuradores da República infra assinados, resolve, com fundamento no
art. 5º, III, alínea “e”, art. 6º, VII,“c”, XI da Lei Complementar n. 75/93
44
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
e dos arts. 127 e 129, V, da CF/88., RECOMENDAR:
a) à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que:
a.1) realize novos estudos de identificação e delimitação para fins de
regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
Waimiri-Atroari, tendo em vista que há sobejos elementos que permitem
afirmar que o Decreto nº 97.837, de 16.06.1989 não abrangeu a
totalidade das áreas que, nos termos do art .231, § 1º da Constituição
de 1988, são tradicionalmente ocupadas pelo povo Waimiri-Atroari;
a.2) no bojo dos estudos referidos no item acima, delimite as áreas
que, ainda que não sejam atualmente ocupadas pelos Waimiri-Atroari,
eram terras tradicionalmente ocupadas pelo referido povo no final da
década de 1960, época em que foram doadas pelo Estado do Amazonas
(consoante mapa em anexo que se refere ao polígono declarado de
utilidade pública) a particulares que nunca a ocuparam efetivamente e
em que tais áreas já integravam o domínio da União,
índios
Waimiri-Atroari
foram
expulsos
para
e das quais os
construção
da
usina
hidrelétrica de Balbina, porquanto não se pode admitir que, em
desapropriação promovida pela Eletronorte, sejam pagas vultosas
indenizações para desapropriação de terras que pertenciam e pertencem
à UNIÃO, nos termos do art. 21 da Lei 6.001/73
b) à UNIÃO, por meio do Ministério da Justiça e da Advocacia-Geral da
União,
que
adote
as
providências
necessárias,
inclusive
pela
disponibilização de recursos, para viabilizar à FUNAI o desempenho de
suas atribuições e evitar possível dano ao erário no valor estimado de
cerca de R$ 400.000.000,00 (quinhentos milhões de reais).”
No
curso
do
Inquérito
civil
público
nº:
1.13.000.000260/2008-37, a FUNAI foi notificada a informar sobre o acatamento
da Recomendação n.º 09/2008, tendo respondido, em reunião da Câmara de
Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, que acatou a recomendação
número 09/2008 do MPF e que elaboraria estudos preliminares. Ainda esclareceu que
no ano de 2009 constituiria grupo de trabalho para estudar os limites da Terra
Indígena Waimiri-Atroari (ANEXO IX).
45
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Novamente notificada pelo MPF, a FUNAI informou que “os
estudos
de
ocupação
comprovadamente
tradicional,
que
foram
excluídas
da
demarcação da terra indígena Waimiri-Atroari (..) estão em fase de planejamento,
com previsão de realização para o segundo semestre de 2009”.
5.3.7. DO RECONHECIMENTO, PELA FUNAI, DA OCUPAÇÃO
TRADICIONAL
INDÍGENA WAIMIRI-ATROARI
SOBRE
A
ÁREA ALAGADA PELO RESERVATÓRIO DE BALBINA
Finalmente, a FUNAI, em atendimento à Recomendação nº
09/2008, manifestou-se pelo reconhecimento da posse tradicional indígena WaimiriAtroari na área alagada pelo reservatório de Balbina por meio da Informação nº
96/CGID/2009 da Funai (ANEXO IX).
Verifica-se que o aludido documento produzido pela FUNAI faz
alusão apenas à área do lago de Balbina, não examinando as demais áreas
reivindicadas pelos Waimiri-Atroari.
Entretanto, tem-se que o documento em tela reconhece o pedido
formulado pelo MPF na presente ação, muito embora atenda apenas parcialmente às
reivindicações dos Waimiri-Atroari na região.
Com efeito, a corroborar o farto material probatório até aqui
exposto, a Informação nº 96/CGID/2009 da Funai (ANEXO IX) aponta o Rio Uatumã
como uma das referências mais importantes dos Waimiri-Atroari, fato esse que
historicamente se buscou encobrir no contexto do processo de ocupação econômica
da região amazônica, conforme o trecho abaixo explicitado (fl. 06 da Informação):
“O próprio registro cartográfico desse rio parece ter sido objeto de
manipulação com vistas à redefinição da área reservada pela União ao
46
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
povo Waimiri-Atroari pelo Decreto n. 68.907/71, tendo havido a
substituição do nome do seu curso superior para Pitinga. A presença
indígena no médio e baixo Uatumã encontra-se registrada desde
meados do século XIX e persiste, como transcrito abaixo, até as
décadas de 70/80 do século passado. Contudo, à época da construção
da UHE de Balbina tentou-se construir um discurso de que toda essa
região encontrava-se totalmente desocupada pelos Waimiri-Atroari. “
Baseia-se a Informação nº 96/CGID/2009 da Funai (ANEXO IX)
numa série de documentos arquivados na Diretoria de Assuntos Fundiários da FUNAI,
em que se afirma, categoricamente, que os Waimiri Atroari ocuparam terras muito
além daquelas reservadas pelo Decreto n.º 68.907, de 13/07/1971, inclusive a área
do lago de Balbina. Nesse sentido, veja-se o seguinte excerto (fl. 06):
“Na Pasta 03 referente à Terra Indígena Waimiri-Atroari existente no
setor de documentação da DAF, o relatório “Hidrelétrica de Balbina
contra índios e lavradores”, de Egydio Schwade, datado de 23/08/84
(portanto, antes do enchimento do reservatório desta UHE), conclui que
´toda área de Balbina está em território Waimiri Atroari´(...)”
A Informação nº 96/CGID/2009 da Funai transcreve o Relatório
“Hidrelétrica de Balbina contra índios e lavradores”, elaborado poucos anos antes do
fechamento das comportas da hidrelétrica de Balbina. Esse documento ressalta a falta
de atenção com os direitos dos Waimiri-Atroari, cujas terras foram abirtrariamente
delimitadas pelo Decreto nº 68.907/71, reduzindo-as a 1/5 (um quinto) da área que
então tradicionalmente ocupavam. Em conseqüência disso, a barragem de Balbina
terminou
por
localizar-se
na
parte
sudeste
da
área
que
os
Waimiri-Atroari
A partir da análise do Relatório citado, a
Informação nº
tradicionalmente ocupavam.
96/CGID/2009 da Funai aduz que (fls. 08/09):
47
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
“Este relato é de extrema importância porque foi produzido antes do
enchimento do reservatório da UHE de Balbina. Ele comprova que o
território ocupado pelos Waimiri-Atroari no final dos anos 60 do século
XX estendia-se até a cachoeira Morena, abaixo da cachoeira Balbina.
Além disso, afirma que os trabalhadores da empresa contratada pela
ELETRONORTE passaram “constantes e sérios perigos de ataques dos
Waimiri-Atroari pouco acima do canteiro de obras de Balbina” em 1978
(ou seja, seis anos antes do próprio relatório ser escrito) baseado em
testemunhos dos trabalhadores da hidrelétrica que residiam na cidade
de São Sebastião do Uatumã. É importante também observar que este
relatório é ilustrado por um mapa que contém a indicação do “Território
Tradicional” Waimiri e Atroari em hachurado simples e do “Território em
1968” indicado em hachurado duplo. Este último é delimitado a Leste
pelo rio Jatapu, envolvendo ao Sul terras que se espraiam até o baixo
curso do rio Uatumã e a região do alto rio Urubu.”
A Informação nº 96/CGID/2009 da Funai examina ainda outros
documentos que confirmam que os Waimiri-Atroari ocupavam terras muito além
daquelas reservadas em 1971 e posteriormente, inclusive a área alagada pela
barragem de Balbina, para ao final concluir:
“De acordo com os documentos consultados, acima referidos, é possível
concluir que os Waimiri-Atroari ocupavam no final da década de 1960,
quando se iniciam os trabalhos de atração e pacificação do grupo pelos
sertanistas da FUNAI, uma extensão territorial muito superior à Terra
Indígena Waimiri-Atroari atualmente demarcada e homologada pelo
Decreto nº 97.837/89. Além disso, há elementos suficientes também
para afirmar que, por esta época, também ocupavam uma área superior
à da Reserva Indígena criada pelo Decreto nº 68.907/71.
Considerando a limitação das informações disponíveis, não é possível,
no presente, delimitar exatamente toda a área ocupada pelos WaimiriAtroari àquela época. Porém, os dados aqui reunidos são suficientes
48
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
para afirmar que esse povo indígena mantinha uma ocupação no vale do
rio Uatumã que se estendia até a cachoeira Morena ou, quando menos,
até a cachoeira Balbina.”
Por conseguinte, embora não seja possível a determinação exata
dos contornos da ocupação tradicional dos Waimiri-Atroari, certo é que ocupavam toda
a área que hoje se encontra alagada pelo lago de Balbina. O mapa, anexado à
Informação nº 96/CGID/2009 da Funai, bem ilustra de forma conclusiva essa
assertiva.
Portanto, são robustas as provas de que a União é a titular
legítima dos lotes por força dos quais se demanda indenização nas ações de
desapropriação relacionadas no ANEXO I. Esse reconhecimento, por meio do
provimento jurisdicional declaratório ao final pleiteado é imperioso, sendo
oportuno lembrar o alerta do Exmo. Ministro Herman Benjamin, em seu votovista no julgamento pelo colendo Superior Tribunal de Justiça da Ação
Rescisória nº 3290:
“O que está em jogo não é a punição do infrator, mas o
desfazimento
de
vultosos
prejuízos
ao
bolso
do
contribuinte”.
6.- DO DIREITO
6.1.- DO INDIGENATO
A doutrina constitucional brasileira denomina de “indigenato” os
direitos originários dos indígenas sobre as terras tradicionalmente ocupadas.
49
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
A este respeito, pertinente ressaltar que desde os primórdios a
legislação brasileira reconhece a realidade fática da ocupação indígena sobre o
território nacional.
Neste sentido, pertinente citar que as Cartas Régias de 30 de
julho de 1609, bem como a de 10 de setembro de 1611, expedidas por Felipe III, já
reconheciam o pleno domínio dos índios sobre os seus territórios. Também o Alvará de
01/04/1680, confirmado pela Lei de 06/06/1755, continha o princípio de que nas
terras outorgadas aos particulares seria sempre reservado os direitos dos índios.
A primeira constituição brasileira a tratar de forma expressa sobre
o instituto do indigenato foi a Constituição de 1934, que dispunha, in verbis:
"Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que
nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes no
entanto, vedado aliená-las".
As Constituições subsequentes assim disciplinaram o tema:
Constituição de 1937:
"Art. 154. Será respeitada aos Silvícolas a posse das terras em que se
achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, no entanto,
vedado, aliená-las".
Constituição de 1946:
"Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a posse de terras onde se
achem permanentemente localizados, com a condição de não a
transferirem".
Constituição de 1967:
"Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras
que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos
recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes".
Emenda Constitucional n.º 1/69
"Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos
termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse
permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das
50
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
riquezas e de todas as utilidades nelas existentes".
A Constituição de 1988 reservou todo um capítulo aos povos
indígenas, assim dispondo em seu artigo 231:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.
Observa-se que a própria Constituição apresenta o conceito de
terras indígenas, ao dispor que se consideram como terras tradicionais indígenas “as
por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições” (art. 231, § 1º). O § 2º do art. 231, por sua vez, preceitua que
“as
terras
tradicionalmente
ocupadas
pelos
índios
destinam-se
a
sua
posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes”.
Ao analisar o instituto do indigenato, José Afonso da Silva assinala
a diferença entre a posse civil e o ocupação indígena:
“(...) o indigenato não se confunde com a ocupação, com a mera posse.
O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um
direito congênito, enquanto a ocupação é um título adquirido.
(...)
Estas considerações, só por si, mostram que a relação do
indígena e suas terras não se rege pelas normas do direito civil.
Sua posse extrapola a órbita puramente privada, porque não é e
nunca foi uma simples ocupação da terra para explorá-la, mas
base de seu habitat, no sentido ecológico de interação do
conjunto de elementos naturais e culturais que propiciam o
51
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
desenvolvimento equilibrado da vida humana. Esse tipo de
relação
não
pode
encontrar
agasalho
nas
limitações
individualistas do direito privado. Daí a importância do texto
constitucional em exame, porque nele se consagra a idéia de
permanência, essencial à relação do índio com as terras que
habita.” Comentário Contextual á Constituição. 4ªed. São paulo:
Malheiros, 2007. Pág. 869/870.
Verifica-se, portanto, que o significado do vocábulo “terra” para os
povos indígenas guarda inúmeras peculiaridades, haja vista que a terra indígena
encerra o espaço necessário para a reprodução física e cultural dos povos indígenas,
elemento essencial para a sua identidade étnico-cultural, não tendo, portanto, o
conteúdo eminentemente patrimonialista conferido pelo direito civil. 12
Neste sentido, pertinente transcrever o seguinte dispositivo da
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que trata dos povos
indígenas e tribais:
“1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos
deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores
espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou
territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou
utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos
dessa relação.
Reconhecendo a importância dos territórios para populações
indígenas, quilombolas e tradicionais em geral, é que o antrópologo Alfredo Wagner
Berno de Almeida editou livro intitulado “Terras de Quilombo, Terras Indígenas,
“babaçuais Livres”, “Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: Terras
tradicionalmente ocupadas”, em que menciona as dificuldades encontradas pelos
12
Vide mais a respeito a respeito em artigo da Sub-procuradora Geral da República Deborah Duprat, cujo título é.
“Demarcação de Terras Indígenas. O Papel do Judiciário”, divulgado em publicação do Instituto Sócio Ambiental e
também
no
site
http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-epublicacoes/docs_artigos/Demarcacao_de_Terras_Indigenas.pdf
52
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
povos tradicionais para o reconhecimento de seus territórios:
“A efetivação dos novos dispositivos da Constituição Federal de 1988,
contraditando os velhos instrumentos legais de inspiração colonial, tem
se
deparado
com
inúmeros
obstáculos,
que
tanto
são
urdidos
mecanicamente nos aparatos burocráticos-administrativos do Estado,
quanto são resultantes de estratégias engendradas seja por interesses
que historicamente monopolizaram a terra, seja por interesses de
“novos grupos empresariais” interessados na terra e demais recursos
naturais.13
No caso em tela, a presente ação tem por objeto a declaração de
que a área ocupada pelo reservatório de Balbina é terra tradicional Waimiri-Atroari.
Quanto a este ponto, verifica-se que o Decreto n.º 97.837/1989, que homologou a
Terra Indígena Waimiri-Atroari, excluiu de forma indevida a superfície do reservatório
de Balbina, não obstante o farto material probatório acerca da ocupação indígena na
área.
Segundo
se
verifica
da
farta
documentação
anexa,
ainda
remanesce na atualidade o interesse do povo Waimiri- Atroari pelo reconhecimento da
tradicionalidade da área hoje inundada pelo reservatório de Balbina, haja vista que há
o interesse das comunidades indígenas em realizar a pesca dentro do lago de Balbina
e adjacências, sendo certo que até a data de hoje alguns indígenas residem nas ilhas
formadas pela hidrelétrica (vide ANEXOS V e XII).
É evidente que a exclusão do lago de Balbina da Terra Indígena
Waimiri-Atroari, operada pelo Decreto n.º 97.937/1989, não representa obstáculo ao
ajuizamento da presente ação, haja vista que o decreto que homologa a demarcação
de uma área indígena consubstancia mero “reconhecimento oficial” da ocupação
tradicional indígena; não tem efeito constitutivo, mas tão somente declaratório
daquilo que a ordem constitucional - desde 1934 - já afirma ser indígena.
13
2ª ed. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008. pág. 40
53
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Nesse sentido, a propósito do indigenato, acentua João Mendes
Junior, em lição quase secular:
“Não quero chegar até o ponto de affirmar, como P.J. Proudhon, nos
Essais d'une philos populaire, que 'o indigenato é a unica verdadeira
fonte jurídica da posse territorial'; mas, sem desconhecer as outras
fontes, já os philophos gregos affirmavam que o indigenato é um título
congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Comquanto
o indigenato não seja a unica verdadeira fonte juridica da posse
territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1° de Abril de
1680, 'a primária, naturalmente e virtualmente reservada', ou, na
phrase de Aristoteles (Polit., I, n. 8), - 'um estado em que se acha cada
ser a partir do momento do seu nascimento'. Por conseguinte, o
indigenato não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a
occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a
legitimem.”14
Na exata definição desse quadro jurídico, têm-se, também, as
palavras de Fernando da Costa Tourinho Neto:
“Se aos índios é assegurada a posse permanente – sem limite temporal
– das terras que ocupam – posse no sentido não civilista -, terras essas
da União, não há como perdê-la para terceiros, ainda que estejam estes
de boa fé. O §6° do art. 231 da Constituição estatui:
'São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que
tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se
refere este artigo (...)'.
A transcrição no Registro de Imóveis não expunge os vícios. Não dá
validade ao ato.
Vale a pena chamar a atenção para o fato de que a demarcação
não dá nem tira direito, apenas torna evidente quais os limites das
terras indígenas. Estabelece o art. 25 da lei 6.001, de 19 de dezembro
de 1973 (Estatuto do Indio):
'O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse
permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo
198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação
(...)”.
Certo. As terras indígenas, como, magistralmente, explicou Victor Nunes
Leal, 'são o habitat dos remanescentes das populações indígenas do
país' (voto proferido no MS 16.443-DF, in RTJ 49/296).
Logo, não é o processo de demarcação que vai criar uma posse
imemorial um habitat remanescente. Não. O processo
14
MENDES JUNIOR, João. Os indígenas do Brazil – seus direitos individuaes e politicos. Edição fac-similar. São
Paulo, Typ. Hennies Irmãos, 1912. pág. 58
54
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
demarcatório vai, tão-somente, delimitar essa área, dar os seus
limites.”15
Nessa esteira é a lição de José Afonso da Silva, da qual valemonos mais uma vez:
“O reconhecimento do direito dos índios ou comunidades indígenas à
posse permanente das terras por eles ocupadas, nos termos do art. 231,
§2°, independe de sua demarcação, e cabe ser assegurado pelo órgão
federal competente, atendendo à situação atual e ao consenso
histórico.”
......................................................................................
De qualquer forma, não é da demarcação que decorre qualquer
dos direitos indígenas. A demarcação não é título de posse nem
de ocupação de terras. Como mencionamos há pouco, os direitos
dos índios sobre essas terras independem da demarcação. Esta é
constitucionalmente exigida no interesse dos índios. É uma atividade da
União, não em prejuízo dos índios, mas para proteger os seus direitos e
interesses. Está dito: competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens (art. 231)”16
E, ainda, a observação de Robério Nunes do Anjo Filho:
“... o indigenato é um título congênito e primário, independente
de legitimação por decorrer do fato de que os índios foram os
primeiros a se estabelecerem nas terras, ao contrário da mera
ocupação, que é um título posterior e adquirido, que depende do
preenchimento de requisitos legitimatórios, razão pela qual já se
afirmou que em relação aos índios estabelecidos não há posse a
legitimar, mas sim domínio a reconhecer, decorrente de um
direito originário e preliminarmente reservado (MENDES JÚNIOR).
O indigenato abarca não só o jus possessionis, mas também o jus
possidendi. Assim, embora até hoje o domínio das terras
tradicionalmente ocupadas ainda não tenha sido reconhecido aos índios,
sendo entregue à União, desde a época colonial foi reconhecido que as
terras que serviam de habitat aos indígenas a eles pertenciam de
maneira histórica, como um direito pré-existente ao domínio português,
estabelecendo uma espécie de limite às autoridades que delas não
podiam livremente dispor. Como decorrência do indigenato, inclusive,
em nosso entendimento as terras indígenas não podem ser
confundidas com as terras devolutas que o artigo 64 da
Constituição de 1891 determinou pertencerem aos Estados.
15
16
TOURINHO NETO, Fernando da Costa: “Os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam e suas conseqüências jurídicas”. In Os
direitos indígenas e a Constituição. Porto Alegre: NDI/Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. págs. 38/39
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. págs. 832 e 834
55
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Nesse ponto, o STF já decidiu que a primeira constituição republicana
não transferiu aos Estados as áreas destinadas a aldeamentos
indígenas, as quais não poderiam ser consideradas terras devolutas ou
próprios nacionais não indispensáveis ao serviço da União, sendo
transferidas apenas as terras de aldeamentos extintos antes de 1891
(STF, RE 212.251/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 16-10-1998, p. 18).17
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, enfatizou esse aspecto
no julgamento da Pet. N° 3388, Relator Min. Carlos Britto (j. 19.03.2009, DJe-181
25.09.2009):
“EMENTA: AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA
SERRA DO SOL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO
ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO. OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E
232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA LEI Nº 6.001/73 E
SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE E
LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA,
ASSIM COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO.
RECONHECIMENTO DA CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM
SUA
TOTALIDADE.
MODELO
CONTÍNUO
DE
DEMARCAÇÃO.
CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME CONSTITUCIONAL DE
DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO DAS
TERRAS
INDÍGENAS
COMO
CAPÍTULO
AVANÇADO
DO
CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA
DA IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS
RESPECTIVOS
FUNDAMENTOS
SALVAGUARDAS
INSTITUCIONAIS
DITADAS PELA SUPERLATIVA IMPORTÂNCIA HISTÓRICO-CULTURAL DA
CAUSA. SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO
MINISTRO MENEZES DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE
DISPOSITIVA DA DECISÃO. 1. AÇÃO NÃO CONHECIDA EM PARTE.
(...)
12. DIREITOS ´ORIGINÁRIOS´. Os direitos dos índios sobre as
terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente
"reconhecidos", e não simplesmente outorgados, com o que o
ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não
propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação
jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havêlos chamado de "originários", a traduzir um direito mais antigo
do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre
17
ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Arts. 231 e 231. In BONAVIDES, Paulo, MIRANDA, Jorge, AGRA, Walber de Moura (coords.).
Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, págs. 2399/2428. Noutro escrito dedicado ao tema, assevera o il.
Procurador Regional da República/3ª Região: “Como se sabe, a natureza de terra tradicionalmente ocupada por índios independe de
demarcação, que tem natureza declaratória, e não constitutiva. A demarcação, entretanto, é importante para a regularização dessas terras e
para a tranqüilidade das comunidades indígenas.” (ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. “Breve balanço dos direitos das comunidades
indígenas: alguns avanços e obstáculos desde a Constituição de 1988”. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de, SARMENTO, Daniel,
BINENBOJM, Gustavo (coords.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, págs. 569/604.
56
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em
escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor
de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou
como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF).
(...)”
(grifamos)
Da doutrina e jurisprudência acima colacionadas verifica-se,
portanto, que o reconhecimento oficial pelo Estado da ocupação tradicional indígena
não tem o condão de excluir os direitos indígenas sobre a terra, haja vista que esses
direitos são originários e preexistentes.
Ademais, é de salientar que o reconhecimento pelo Estado de
uma Terra Indígena constitui-se em ato de caráter vinculado, sobre o qual não
remanesce para o administrador qualquer margem de liberdade. Assim sendo, uma
vez presentes os requisitos de ocupação tradicional indígena sobre uma área, incumbe
à União o reconhecimento da terra como sendo de ocupação tradicional indígena,
sendo que qualquer omissão inconstitucional deve ser sanada mediante a intervenção
do Poder Judiciário, o que é ocaso dos autos.
Ressalte-se ainda que para o reconhecimento pela União de uma
terra indígena, não há necessidade de ser comprovada a ocupação tradicional indígena
na data da promulgação da Constituição de 1988. Nesse sentido, pertinente ainda
citar comentários de Walter Claudius Rothenburg, a respeito de terras de quilombolas,
mas aplicáveis ao caso, mutatis mutandis:
“A noção de ocupação tradicional não implica, necessariamente, uma
ocupação antiga e ininterrupta, prendendo-se o conceito antes ao modo
de ocupação (ligado à tradição da comunidade) que a seu lapso
temporal. Basta imaginar novamente uma situação de desocupação
ocasional em 5 de outubro de 1988: em virtude, por exemplo, da
pressão da especulação imobiliária, toda uma comunidade quilombola é
instada a abandonar a região, indo instalar-se na periferia de um centro
urbano maior, muitos voltando, porém, à primeira oportunidade ou
desilusão. Fantasiemos a tragicomédia de uma comunidade quilombola
que tivesse sido convidada a assistir, em Brasília, à promulgação da
Constituição de 1988 – que lhes reconheceu a propriedade de terras
tradicionalmente ocupadas; ao retornar, a comunidade teria perdido o
57
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
direito, pois não estava ocupando as terras no fatídico dia 5 de outubro
de 1988...”18
À luz das considerações acima, nada impede, portanto, o
reconhecimento da posse tradicional indígena da área em questão, coarctada pela
inundação que forçou o deslocamento parcial dos indígenas.
Tal reconhecimento tem o condão de evidenciar que a área
integra o patrimônio da União e, ao mesmo tempo, de prestigiar o direito originário,
congênito, constitucionalmente assegurado às comunidades indígenas. Daí resultará
ser indevido o pagamento de indenização a particulares detentores de títulos
expedidos pelo Governo do Estado do Amazonas, pois, como exaustivamente
assinalado, as terras indígenas são, nos termos do art. 198 da Constituição Federal
anterior e 231, §6°, da Constituição Federal, insuscetíveis de prescrição aquisitiva e
eventuais títulos a elas atribuídos são ineficazes, nulos, despidos de quaisquer
conseqüência no mundo jurídico.
Impõe-se, pois, que o erro (ou fraude) cometido no passado,
privilegiando pressões econômicas em detrimento dos direitos constitucionais dos
Waimiri-Atroari, consagrado através da publicação do Decreto n.º 97.837/89, seja
devidamente corrigido para, além de contemplar os direitos dos povos indígenas
sobre as terras tradicionalmente ocupadas, impedir grave lesão aos cofres
públicos consubstanciada no pagamento de indenizações milionárias aos
particulares “titulares” dos lotes desapropriados pela Eletronorte para a
construção de Balbina.
Considerando, assim, que os direitos dos povos indígenas
sobre as terras tradicionais são imprescritíveis, sendo nulos e extintos os
atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse sobre as
referidas terras; considerando também que as ações de ressarcimento de
18
O processo administrativo relativo às terras de quilombos: análise do decreto nº 3.912 de 10 de setembro de 2001. In: OLIVEIRA, Leinad Ayer
de. (org). Quilombos: a hora e a vez dos sobreviventes. São paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2001. p. 16
58
Ministério Público Federal
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danos causados a Erário são imprescritíveis, deve a omissão do Decreto n.º
97.837/89 ser devidamente sanada, mediante o reconhecimento pelo Poder
Judiciário dos direitos originários dos índios Waimiri-Atroari sobre a área
hoje abrangida pelo lago de Balbina.
No presente caso, entende o Ministério Público Federal que há
elementos de prova suficientes a comprovar que a área de terra correspondente ao
lago da hidrelétrica de Balbina constitui-se terra tradicionalmente ocupada pelos
indígenas Waimiri-Atroari, de modo a autorizar a prolação de decisão judicial
declarando a referida área como Terra Indígena.
Verifica-se, portanto, que as provas colacionadas pelo
Ministério Público na presente ação civil pública são aptas a subverter a
presunção
de
legitimidade
e
veracidade
do
Decreto
n.º
97.837
de
16/06/1989, homologatório da Terra Indígena Waimiri-Atroari, que excluiu,
de forma indevida, áreas tradicionalmente ocupadas por este povo indígena,
ressaltando-se, ainda, que a própria FUNAI reconhece a omissão do referido
Decreto.
Por fim, é cediço que a circunstância de os indígenas WaimiriAtroari terem sido removidos de suas terras para a construção da hidrelétrica de
Balbina não lhes retira o reconhecimento dos seus direitos sobre as áreas de ocupação
tradicional desse povo.
6.2.- DOS DANOS CAUSADOS AO POVO WAIMIRI-ATROARI EM
DECORRÊNCIA
DA
CONSTRUÇÃO
DA
HIDRELÉTRICA
DE
BALBINA E DA MORA NA REDEFINIÇÃO DOS LIMITES DA
TERRA INDÍGENA WAIMIRI-ATROARI
A respeito da remoção de povos indígenas de suas terras
tradicionais, pertinente transcrever o art. 231, §5º da Constituição de 1988:
59
Ministério Público Federal
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§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo,
"ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou
epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da
soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido,
em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
Veja-se, portanto, que, considerando a importância das terras
tradicionais para as comunidades indígenas, a Constituição de 1988 estabelece o
princípio de irremovibilidade dos indígenas de suas terras, somente sendo admitida a
remoção em situações excepcionais, assegurando-se, em todo caso, o retorno
imediato logo que cesse o risco.
Sabe-se que a remoção dos indígenas Waimiri-Atroari ocorreu em
1987 para viabilizar a construção da hidrelétrica de Balbina. Nesse período, estava
plenamente vigente o Estatuto do Índio, que assim dispunha a respeito da remoção
dos povos indígenas de suas terras tradicionais:
“Art. 20. Em caráter excepcional e por qualquer dos motivos adiante
enumerados, poderá a União intervir, se não houver solução alternativa,
em área indígena, determinada a providência por decreto do Presidente
da República.
(...)
§ 3º Somente caberá a remoção de grupo tribal quando de todo
impossível
ou
desaconselhável
a
sua
permanência
na
área
sob
intervenção, destinando-se à comunidade indígena removida área
equivalente à anterior, inclusive quanto às condições ecológicas.
§ 4º A comunidade indígena removida será integralmente ressarcida dos
prejuízos decorrentes da remoção.
§ 5º O ato de intervenção terá a assistência direta do órgão federal que
exercita a tutela do índio.”
60
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
É sabido que não houve nenhum decreto da União autorizando a
remoção do povo Waimiri-Atroari de suas terras tradicionais, tampouco reconhecendo
a consequente destinação ao povo Waimiri-Atroari de área equivalente à terra perdida
com a construção de Balbina.
Com a construção da hidrelétrica de Balbina, segundo se conclui
dos documentos colacionados nesta exordial, parcela maior de terra, que a
originariamente prevista, restou inundada, o que acarretou a necessidade de remoção
de cerca de 1/3 da população total dos Waimiri-Atroari, entre outubro e novembro de
1987. Ainda, cerca de 10% da Terra Indígena Waimiri Atroari restou inundada pelo
reservatório de Balbina, ou cerca de 30.000 hectares da mesma.
Conforme se depreende das fls. 26/27 do Parecer/PRDC/AM/nº
001/2008 (ANEXO VII), a literatura antropológica é rica ao mencionar os impactos da
construção da Hidrelétrica de Balbina para o povo Waimiri – Atroari, podendo-se
mencionar, dentre as consequências, as seguintes: a) remoção do povo de sua terra
tradicional; b) a inundação de parte significativa de seu território tradicional; c) em
decorrência da inundação, a putrefação da cobertura vegetal primitiva, com prejuízo à
qualidade da água do rio Uatumã e à realização da pesca pelos indígenas; d) os
conflitos entre os próprios grupos indígenas deslocados.
Através da presente ação, pugna o Ministério Público Federal seja
a União, a Eletronorte e a Funai condenadas a indenizar os danos causados ao povo
indígena Waimiri – Atroari, seja pela inundação de suas terras tradicionais pelo
reservatório de Balbina, seja pela omissão da FUNAI e da União, por reiterados anos,
no dever de redefinir os limites da Terra Waimiri – Atroari, situação que ocasionou
diversos prejuízos aos Waimiri-Atroari, a exemplo da morte de indígenas (em virtude
do contato com não-índios e transmissão de doenças), invasão de suas terras por
grileiros, prejuízos à preservação de sua identidade cultural, dentre outros danos, os
quais serão objeto de prova na fase processual adequada.
61
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Nesse
sentido,
considerando
a
tramitação
das
ações
de
desapropriação ajuizadas pela Eletronorte arroladas no ANEXO I, nas quais já foi
realizado depósito judicial pela desapropriante (para fins de imissão provisória na
posse), pugna o Ministério Público que os valores depositados em Juízo no curso
das referidas ações sejam utilizados com o fim de indenizar parte dos danos
suportados pelo povo indígena Waimiri-Atroari, o que será objeto de análise
em fase de liquidação da sentença.
Assim se faz necessário ante a imperiosidade de vedar o
enriquecimento ilícito por parte da Eletronorte, que realizou a desapropriação, em
verdade, de Terras Indígenas. Portanto, deve pagar a devida indenização à União,
a ser revertida aos povos indígenas, como reparação pelos prejuízos que lhes foram
causados, cujo exato quantum debeatur deve ser definido oportunamente em sede de
liquidação de sentença.
Quanto a este ponto, entende-se desnecessária grandes ilações.
Desde o advento da Constituição de 1946 a responsabilidade civil
do Estado é de natureza objetiva. Na vigências dos fatos, eis a redação do art. 107 da
Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda n.º 01/1969:
“Art. 107. Às pessoas jurídicas de direito público responderão pelos
danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros.
Parágrafo
único.
Caberá
ação
regressiva
contra
o
funcionário
responsável, nos casos de culpa ou dolo.”
Assim sendo, impõe-se para a responsabilidade civil do Estado a
comprovação apenas da ação, do resultado e do nexo de causalidade.
No caso em epígrafe, está devidamente comprovado nos autos
62
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que a inundação da terra Indígena Waimiri-Atroari, em virtude da construção da
Hidrelétrica de Balbina, atos imputados à União e à Eletronorte, deu causa a prejuízos
de monta aos legítimos interesses dos povos Waimiri-Atroari, motivo pelo qual impõese a condenação dos referidos demandados no dever de indenizar os danos materiais
e morais causados aos indígenas Waimiri-Atroari.
Da mesma forma, tem-se caracterizada a omissão da FUNAI em
definir, de forma escorreita, os limites da Terra Indígena Waimiri-Atroari, cedendo, por
inúmeras vezes, a pressões externas. Impõe-se, em consequencia, a condenação
também da autarquia no dever de indenizar os danos causados ao povo WaimiriAtroari.
Neste sentido, pertinente citar o seguinte julgado:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FUNAI. DEMARCAÇÃO DE TERRAS. MULTA. Da demora em ultimar a demarcação das terras indígenas em
questão, advém os inegáveis prejuízos, pois a incerteza no que
diz
respeito
à
propriedade
das
terras
contribui
para
o
acirramento dos conflitos entre índios e agricultores. A aplicação
de multa diária pelo descumprimento de obrigação, tem previsão
expressa do § 4º do art. 461 do Código de Processo Civil.” (AG
200404010133130, VÂNIA HACK DE ALMEIDA, TRF4 - TERCEIRA
TURMA, 14/12/2005) (grifamos)
Neste ponto, ressalte-se que a Constituição Federal de 1988
estabeleceu, no artigo 67 no ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o dever
da União de proceder à demarcação da integralidade das Terras Indígenas no prazo de
cinco anos. Tem-se que passados mais de vinte anos da promulgação da Constituição,
verifica-se mais que configurada a mora da União no cumprimento de seus deveres
constitucionais para com os povos indígenas, situação que deu causa a inúmeros
prejuízos aos povos indígenas do território nacional.
63
Ministério Público Federal
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7. - DA CONCLUSÃO
No caso
em epígrafe, verifica-se, de forma objetiva, que
particulares adquiriram do Estado do Amazonas supostas terras públicas devolutas,
com fulcro na informação privilegiada de que os referidos lotes seriam objeto de
desapropriação
futura
efetivada
pela
Eletronorte,
pagando
valores
ínfimos
e
pretendendo receber verdadeiras fortunas em ações de desapropriação.
Em consequência, a Eletronorte, sociedade de economia mista
federal, seria condenada a pagar indenizações vultosas em virtude da desapropriação
de terras que na verdade são de titularidade da própria União, por serem terras
tradicionalmente ocupadas pelo povo Waimiri – Atroari.
Verifica-se, portanto, Excelência, que o reconhecimento da área
do reservatório de Balbina como Terra Indígena, importa, a um só tempo, no
reconhecimento do direito do povo Waimiri-Atroari sobre terras tradicionais suas, bem
como elide a consumação de prejuízo ao patrimônio público federal de grande
magnitude, consubstanciado em montante superior a R$ 300.000.000,00 (trezentos
milhões de reais), desconsiderados os juros (ANEXO I – Parecer Pericial 5ª CCR nº
183/2009).
8.- DO PEDIDO DE CONCESSÃO DE MEDIDA CAUTELAR
INCIDENTAL:
O art. 12 da Lei de Ação Civil Pública (Lei n° 7.347/85) estabelece
a possibilidade de concessão de liminar, nos casos de risco de dano irreparável ao
direito em conflito, em virtude do tempo decorrido até a solução final da lide.
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Com efeito, o referido dispositivo tem natureza tanto cautelar,
protetivo da eficácia da jurisdição, quanto de antecipação da tutela pretendida,
conforme entendimento da doutrina processual pátria.
Há dois pressupostos básicos que legitimam a concessão de
medidas cautelares: o fumus boni iuris e o periculum in mora.
No caso presente, a fumaça do bom direito se traduz nos
documentos e estudos acima alinhavados, dentre os quais o reconhecimento
manifestado pela própria FUNAI, a demonstrar a ocupação tradicional pelos índios
Waimiri – Atroari da área alagada pelo lago da hidrelétrica de Balbina.
De outra banda, o periculum in mora justifica-se pelo fato de que
pendem ações judiciais de desapropriação, em fase de execução, cujos pagamentos,
que
totalizam
cerca
de
R$
300.000.000,00
(trezentos
milhões
de
reais),
desconsiderados os juros (ANEXO I – Parecer Pericial 5ª CCR nº 183/2009), podem
ocorrer a qualquer momento, face à tramitação das referidas ações conforme consta
no ANEXO I. A efetivação desses pagamentos geraria vultosos danos à União, na
medida em que sucederiam em consequência de “desapropriação” de terras de
titularidade da própria União, vez que comprovado que os índios Waimiri/Atroari a
ocupavam tradicionalmente.
Assim, a demora no provimento jurisdicional acarretará grande
ônus à União, tendo de se submeter à regra solve et repete, com o risco de não
reaver os valores de forma total.
Ademais, não há que se falar em perigo de irreversibilidade caso
seja concedida a medida cautelar pleiteada, uma vez que, em sendo julgada
improcedente a presente demanda, poderão os exequentes das ações judiciais de
desapropriação relacionadas no ANEXO I prosseguirem em suas demandas.
65
Ministério Público Federal
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Ex positis, estando presentes os requisitos preceituados no art.
12 da Lei n° 7.347/85, requer-se a concessão de medida cautelar no curso da
presente
ação
civil
pública,
determinando-se
a indisponibilidade
dos créditos
exeqüendos nas ações de desapropriação relacionadas no ANEXO I, anotando-a no
rosto dos respectivos autos, até o julgamento final da presente lide.
9.- DO PEDIDO:
Ante o exposto, pugna o Ministério Público Federal:
a) pela citação dos demandados, para contestar a presente ação
civil pública, com as advertências de praxe;
b) pela concessão de medida cautelar incidental, determinando-se
a indisponibilidade dos créditos exeqüendos nas ações de desapropriação relacionadas
no ANEXO I, anotando-a no rosto dos correspondentes autos, até o julgamento final
da presente lide;
c)
pelo
julgamento
procedente
do
pedido,
com
os
seguintes
provimentos
jurisdicionais:
c.1) a declaração de que a área inserta no polígono declarado de utilidade pública para
fins de desapropriação pelo Decreto 85.898/81, área hoje ocupada pelo reservatório
de Balbina, é de ocupação tradicional do Povo Waimiri-Atroari, e, consequentemente,
de propriedade da União Federal;
c.2) alternativamente, acaso não acolhido o pedido contido no item anterior, a
declaração de que a área inserta no polígono declarado de utilidade pública para fins
de desapropriação pelo Decreto 85.898/81, área hoje ocupada pelo reservatório de
66
Ministério Público Federal
Procuradoria da República no Amazonas
Balbina, era de ocupação tradicional do Povo Waimiri-Atroari, e, consequentemente,
de propriedade da União Federal no final da década de 1960/ início da década de
1970, época em que foram doadas pelo Estado do Amazonas aos particulares
demandados na presente ação;
c.3) a declaração da nulidade dos títulos referentes aos lotes que ensejaram as ações
de desapropriação relacionadas no ANEXO I;
c.4) a condenação da Eletronorte, da Funai e da União no dever
de indenizar os danos causados aos indígenas Waimiri-Atroari, pelos prejuízos
decorrentes da remoção inconstitucional daquele povo para a construção da
Hidrelétrica de Balbina, bem como pela mora quanto à redefinição dos limites da Terra
Indígena, em valores a serem definidos em liquidação.
d) a dispensa do autor dos pagamentos de custas, emolumentos e
outros encargos, desde logo, a teor do art. 18 da Lei 7.347/1985.
Protesta o MPF, outrossim, pela produção de todas as provas admitidas
em direito, em especial a documentação que faz juntar.
Dá-se a causa o valor de R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de
reais).
PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO ESTADO DO AMAZONAS,
Manaus, 13 de janeiro de 2010.
THALES MESSIAS PIRES CARDOSO
PROCURADOR DA REPÚBLICA
LUCIANA FERNANDES P. LIMA GADELHA
PROCURADORA DA REPÚBLICA
67