Sem t.tulo-3

Transcrição

Sem t.tulo-3
OS
DEUSES E OS MONSTROS
Euclides Guimarães
João Carlos Lino Gomes
Léa Souki
Lídia Avelar Estanislau
Lucília de Almeida Neves
Tomás de Aquino Silveira
Yonne de Souza Grossi
OS DEUSES E OS MONSTROS
Belo Horizonte
2001
Copyright © 2001 by Os autores
Coordenação da Coleção
Haroldo Marques
e-mail: [email protected]
Coordenação Editorial
Cláudia Teles
e-mail: [email protected]
Capa
Jairo Alvarenga Fonseca
Editoração eletrônica
Waldênia Alvarenga Santos Ataide
Revisão de textos
Simone de Almeida Gomes
D486 Os deuses e os monstros / Euclides Guimarães...[et al.]. –
Belo Horizonte: Autêntica : PUC Minas, 2001.
128p. (Coleção Convite ao pensar, 2)
ISBN 85-86583-91-X
1. Mito. 2. Deuses. 3. Mitologia – Aspectos morais e
éticos. I. Estanislau, Lídia Avelar. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. III. Título. IV. Série.
CDU 165.612
2001
Direitos adquiridos para a língua portuguesa pela PUC Minas
PUC Minas
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Haroldo Marques
7
DÍVIDA DE GRATIDÃO: PODER E IMAGINÁRIO
Lucília de Almeida Neves
11
HOBBES: ÉTICA E POLÍTICA
NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
João Carlos Lino Gomes
25
DRÁCULA, DE BRAM STOKER
Lídia Avelar Estanislau
47
SUBMISSÃO E REVOLTA EM
MÁRIO E O MÁGICO, DE THOMAS MANN
Léa Souki
71
SOBRE O FILME METRÓPOLIS
Euclides Guimarães
85
MODERNIDADE: HISTÓRIA E MEMÓRIA
Yonne de Souza Grossi
95
FRANKENSTEIN, DE MARY SHELLEY
Tomás de Aquino Silveira
103
SOBRE OS AUTORES
125
Coleção Convite ao pensar
6
APRESENTAÇÃO
Haroldo Marques
Os mitos modernos se confundem com a história dos homens, refletindo o que somos, nossos
medos, nossas aspirações mais ocultas. Estudar os
mitos é penetrar no que há de mais autêntico, mais
revelador na vida dos homens. Imagens surgidas
de nosso interior estão na literatura, no cinema, no
teatro ou nas lendas populares. Explodem em nossa consciência e moldam nosso modo de pensar.
Os mitos, estas narrativas geniais, fazem parte de
nosso dia-a-dia, são como o ar que respiramos.
Selecionamos os mitos que, nascidos na modernidade, permanecem como referência: na ciência,
Frankenstein; na economia, Drácula; na política,
Leviathan; na sociedade, o grande líder, mágico,
ilusionista e sedutor.
Thomas Hobbes, já no século XVII, inspirado
nos relatos bíblicos, desenha o surgimento do Estado moderno, com as cores do monstro Leviathan.
Aquele monstro que surgia das águas, misto de
baleia e dragão, ser amedrontador que castigava
os rebeldes habitantes das margens – os homens
em luta. Se o medo caracterizava a natureza dos
indivíduos, agora o medo serve para colocá-los
lado a lado na vida em comum. O monstro se alimenta, para a segurança de todos e de cada um,
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Coleção Convite ao pensar
com a perda da liberdade, valor incompatível com
a sobrevivência e a vida política. Monstro que se
apresenta como deus salvador, necessário protetor.
Drácula, outro monstro emblemático, nascido
na Transilvânia (atual Romênia), é sinônimo do
sangue roubado dos que se esforçam na produção
de bens e perdem o bem mais precioso – o sangue
da própria vida. Aqui, o sangue não é só metáfora
mas regra traçada pela civilização moderna.
Frankenstein não é o monstro, mas o cientista
Victor que alimenta sonho recorrente em todos os
pesquisadores: criar a vida em laboratório ou, pelo
menos, criar um homem feito de partes de cadáveres. O poder de criar surge como sonho e heresia
suprema, pois faz Victor querer se igualar a Deus.
A criatura produzida pela ciência traz em si a punição por tamanha ousadia – ele foge ao controle
do seu amo e senhor.
Metrópolis, o filme de Fritz Lang, mostra imagens pioneiras da cidade moderna, misto de felicidade e progresso, que guarda em suas entranhas
as sementes da revolta. A arte antecipa a desolação, as massas, a grandiosidade e a ira de seus
habitantes.
Nesta terra devastada, descrita pelos poetas e
músicos, a memória – marca de identidade humana – tem seus elementos corroídos pelo avanço da
insensatez e da barbárie. A história dos homens se
faz sem que eles atentem para o passado. Perdida
a memória (bem destituído de valor nas atuais circunstâncias), o desastre parece iminente.
Mário e o Mágico, pequeno relato de Thomas
Mann no início do século, coloca o indivíduo perturbado entre as ilusões que não foram perdidas e
as formas de controle cada vez mais totalizantes.
8
Apresentação
Temos, bem próxima a nós, a figura do governante
que encarna as forças irracionais, adoçadas pela
sedução das palavras e pelas imagens que apelam
aos sentimentos mais primários.
Francisco Goya já lembrava, em seus Caprichos,
que “el sueño de la razón produce monstruos”. Os
mitos do progresso sem-fim, da felicidade ao alcance das mãos, do fim da história estão sempre
gerando deuses. Deuses que se metamorfoseiam
em seus opostos – os monstros produzidos pelos
ardis da razão.
9
Coleção Convite ao pensar
10
DÍVIDA DE GRATIDÃO:
PODER E IMAGINÁRIO
Lucília de Almeida Neves
À Maria Helena Capelato
A História realiza-se em uma dinâmica temporal, tecida por múltiplos fios que compõem
uma tapeçaria complexa e heterogênea em seus
elementos constitutivos. Na trama da História,
dentre diferentes realidades e fatores, estão presentes temporalidades várias, relações espaciais,
relações socioculturais, condições econômicas,
valores, representações, urdiduras do poder e
substratos da memória.
Otávio Ianni afirma que
a memória é o segredo da história... Ela envolve a
lembrança e o esquecimento, a obsessão e a amnésia, o sofrimento e o deslumbramento. [...] Sim, a
memória é o segredo da História, o modo pelo qual
se articulam o presente e o passado, o indivíduo e a
coletividade.1
Analisar a história a partir de sua interação
com os tempos da memória é uma tarefa complexa, pois, à memória integram-se lembrança e esquecimento, fragmentação e totalidade. À História,
que é um procedimento intelectual de construção
do saber, cabe captar, nas diferentes fontes da memória, elementos e informações que possam subsidiar a reconstrução do passado com criatividade e
rigor. Dessa forma, o conhecimento histórico estará
11
Coleção Convite ao pensar
cumprindo tripla função: realimentar e recriar a
memória social; narrar o acontecido e, finalmente,
produzir interpretações consistentes sobre o que,
sendo passado, é também presente, pois as marcas
essenciais dos processos ficam registradas como
tatuagens na vida das comunidades através dos
tempos que se sucedem.
A memória social brasileira tem contribuído
para demonstrar que a História do Brasil tem, nas
relações políticas e sociais assimétricas, uma de
suas principais características. Ao longo dos cinco
séculos de sua trajetória foi sendo urdida e solidificada uma cultura de dominação, pela qual, de
forma geral, os interesses privados foram se apropriando da máquina pública, imiscuindo-se nos
negócios de Estado e fazendo da administração que
deveria ser voltada ao interesse coletivo, instrumento de gerenciamento de interesses particulares. Nessa dinâmica de apropriação das instituições
nucleares de poder, as elites políticas e econômicas da nação desenvolveram práticas de estabelecimento de vínculos pessoais com os setores
populares da população. Tais práticas constituíram
uma forma de cultura política através da qual a
obrigação dos governantes de implementação de
políticas públicas, voltadas ao atendimento das
necessidades da população, passou a ser comumente identificada como favor, como dádiva.
Da dádiva brotou a dívida. Dívida de gratidão que
tende a enredar os “beneficiários” do favorecimento
governamental a uma dinâmica de dominação e submissão que, como num prisma multifacetado, apresenta heterogêneas formas de expressão e de
efetivação.
Dessa forma, as relações de poder no Brasil e,
de forma geral, na maioria dos países latino12
Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves
americanos, todos profundamente influenciados
pela tradição autoritária da cultura ibérica, são, de
forma indelével, caracterizadas por forte verticalização do poder, pela ausência de uma efetiva e ampla competição política e por processos recorrentes
de exclusão política – estruturalmente vinculados à
exclusão social. Tal afirmação pode, à primeira vista, parecer muito ampla e pouco esclarecedora das
especificidades históricas de cada formação social,
de cada país latino-americano. Mesmo porque já se
encontra bastante consolidado o pressuposto de que
análises generalizadoras não constituem a melhor
e mais adequada forma de abordagem dos movimentos da história, uma vez que cada formação social expressa uma experiência própria, peculiar.
Mas, não deixa de ser também verdadeira a
existência de traços comuns (religiosos, culturais,
políticos, geo-históricos...) à trajetória e à estrutura de diferentes países. Captar as diferenças e
as similitudes de realidades históricas peculiares
pode constituir-se em um desafio potencializador
de análises e interpretações inovadoras. Quando
se trata, em especial, de interpretar as diversas
formas de autoritarismo que têm grassado na
América Ibérica, buscando entender a construção
da lógica da dominação nos diferentes países que
a integram, a análise histórica comparativa adquire um valor primordial.
No presente trabalho, estaremos buscando compreender como se criou e se reproduziu aquilo que
se tornaria uma verdadeira categoria inerente à efetivação do processo de dominação na América Latina, que é a chamada dívida de gratidão.
Para tanto, recorreremos a uma autora em especial: a historiadora Maria Helena Capelato. Em
seu livro Multidões em cena: propaganda política no
13
Coleção Convite ao pensar
varguismo e no peronismo (1998), deixou-se seduzir
pelo desafio da análise comparativa e produziu instigante interpretação sobre as relações de poder e
dominação, nas experiências do getulismo no Brasil
e do peronismo na Argentina. Elegendo como eixos
centrais de sua reflexão os temas do poder e do imaginário, produziu texto histórico de qualidade ímpar, sustentado em interpretação original e bem
estruturada, que analisa dois processos interligados:
construção, através da propaganda, da idéia de concessão de benefícios à população pelos detentores
do poder e constituição de um imaginário social de
esperança, através do qual os beneficiários da “concessão” desenvolvem, em relação aos governantes,
laços de gratidão e dependência.
A ênfase de nossa abordagem, todavia, se diferenciará parcialmente da de Capelato. Enquanto
a autora centrou seus esforços, como já referido,
na análise comparativa entre Brasil e Argentina,
buscaremos orientar nossos argumentos, principalmente, no que concerne à realidade brasileira. Para
tanto, além de nossa interpretação pessoal, recorreremos, de forma complementar, a dois outros
autores: Jorge Ferreira, que apresenta uma tese revisionista dos temas da manipulação e gratidão em
seu livro Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular (1997) e Alcir Lenharo, que acrescentou belíssima contribuição aos estudos históricos sobre
política e cultura nos anos trinta, com seu livro
Sacralização da política(1986).
IMA
GENS E SÍMBOLOS: O PO
VO E O PODER
MAGENS
POV
A nova geração de historiadores políticos bem
sabe que, na rede temporal da história, os mitos
fundadores são tão importantes quanto os mitos
mantenedores. Dessa forma, datas são eleitas para
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Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves
simbolizarem o início “de um novo tempo” ou
mesmo o seu final. A definição da cronologia histórica, portanto, não é aleatória. Relaciona-se à
construção e reprodução de mitos, símbolos, imagens. Tal fato tem um significado tão profundo que
Eduardo Lourenço diz que “a hora de nascimento
de um povo – que pode ser ou não da sua cultura –
não se compara a nenhuma outra” e ainda que “a
sacralização das origens faz parte da história dos
povos como mitologia”.2
No âmbito da história política incluem-se também as práticas de construção de representações e o
exercício direto do poder. A compreensão do significado dos símbolos e das imagens no cotidiano das
relações sociais e políticas é fundamental à compreensão do complexo processo de constituição de identidade de uma nação, que inclui construção de mitos,
elaboração/solidificação da memória coletiva , além
da percepção imagética que o povo tem de si mesmo e de seus governantes.
Para Capelato, a propaganda política voltada
à construção de relações de identidades múltiplas
(interpessoais, comunitárias, nacionais), ao tempo
de Vargas e Perón, não se furtou à utilização de
diferentes recursos, especialmente o do uso de
imagens religiosas como as do cooperativismo, da
suprema valoração do trabalho e da hierarquização social e política. Também Lenharo desenvolve
rica argumentação em torno da idéia de que, no
Brasil de Getúlio Vargas, a nação era apresentada
e reverenciada como totalidade mística. A todos era
destinada uma função específica e honrada na ordem social. Todos eram chamados a colaborar, a
cooperar. Todos eram responsáveis pela criação/
construção da nacionalidade. Todos, governantes e
governados, através de uma relação hierarquizada
mas respeitosa e harmônica, deveriam se integrar
15
Coleção Convite ao pensar
ao processo maior e supremo de consolidação da
nação. Uma nação unida na alta dimensão de superação de seus atrasos estruturais; uma nação forte e
livre de disparidades e de conflitos esterilizadores.
O mito mantenedor realizaria, assim, sua potencialidade e destino. Um povo em movimento, uma
nação em construção, uma realidade mítica em processo vigoroso de elaboração.
Na verdade, o Brasil da segunda metade dos
anos 30 e da primeira dos anos 40 passou por um
tempo marcado por uma prática política autoritária que utilizava dois recursos para sua efetivação.
O primeiro, voltado para a construção da legitimidade do regime, priorizava a cooptação e a adesão
do povo aos projetos governamentais. O segundo,
em caso de dissidência, resistência e oposição ao
programa governamental, utilizava mecanismos
coercitivos de diferentes espécies. Ou seja, quando o processo de legitimação sofria alguma objeção ou revés, em decorrência de manifestações de
contraposição ao governo, recorria-se à censura, às
prisões etc.
Como o assunto central deste texto refere-se à
construção da legitimidade, traduzida por nós
como dívida de gratidão, deixaremos de lado o foco
da coerção e centraremos nossas reflexões em torno dos seguintes assuntos-chave, relativos à mobilização social e à construção de estratégias para
enredamento do povo ao governo e vice-versa:
propaganda e imaginário, construção da idéia nação e novo modelo de cidadania.
PROP
AGAND
A
ROPA
GANDA
POLÍTICA:
HARMONIA E PAR
TICIP
AÇÃO
ARTICIP
TICIPAÇÃO
Ferreira busca em Giznburg o conceito de circularidade cultural e o aplica, de forma sensível,
16
Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves
aos anos 30 no Brasil. Demonstra, em seu trabalho, que as idéias produzidas pelas classes dominantes e pelas elites governamentais não foram
simplesmente impostas e assimiladas acriticamente pelos “de baixo”. Na verdade, para o autor, os
projetos governamentais não foram impostos, nem
mesmo se implementaram através de uma via de
mão única. De fato, segundo sua interpretação,
existiu um processo de circulação de idéias entre
governo e população.
Entende também que proposições de governantes precisam, para sua implementação, da adesão,
ou mesmo de resposta da sociedade civil. Somente
assim poderão ultrapassar o terreno da elaboração
teórica para se constituírem em práticas políticas e
sociais concretas. Em outras palavras: idéias e propostas, mesmo quando predominam práticas governamentais autoritárias, não são impostas, circulam.
Portanto, para o autor, entender a propaganda
política do Estado Novo implica em analisar os
objetivos do remetente (governo) e a forma de internalização e apropriação da mensagem pelo destinatário (população).
É inegável que Getúlio Vargas representou uma
corrente política que elaborou e implementou um
projeto para o Brasil. Um projeto autoritário, estatista e desenvolvimentista, fortemente inspirado
no positivismo e no corporativismo, mas sobretudo um projeto nacionalista, que apostava tudo na
unidade nacional e na superação de dissensos sociais e políticos. Cabia ao governo conquistar a
adesão dos diferentes segmentos da sociedade brasileira para seus objetivos. Nesse largo espectro
social de construção da unidade e solidariedade
nacional, cabiam empresários, oligarquias rurais,
intelectualidade urbana, profissionais liberais,
educadores e, principalmente, trabalhadores – a
17
Coleção Convite ao pensar
classe operária – a quem Lenharo identifica como
“menina dos olhos do presidente”.
Buscando atingir esses segmentos sociais e também crianças, jovens e mulheres, foi articulado um
amplo sistema de propaganda – um sistema sofisticado, com mensagens específicas para cada um dos
destinatários. Todavia, a maior gama de mensagens
era destinada aos jovens e aos trabalhadores. Aos
trabalhadores, por serem considerados responsáveis
diretos pela construção do presente da nação, e aos
jovens, por estarem se preparando, no presente, para
assumir, no futuro, a direção do país.
Era preciso tecer uma rede de lealdade. Em
algumas ocasiões, o governo, em função da resposta da população, via-se compelido a realizar concessões e reformular mensagens. Mas, o que na
verdade importava, era a criação de laços mútuos:
dádiva/dívida/dádiva. Só assim o projeto de construção de uma nacionalidade sólida poderia frutificar e alcançar durabilidade.
Para Capelato, os objetivos da propaganda
política estadonovista e peronista eram basicamente os seguintes:
!
criação de vínculos sólidos entre a população e o governante, através da “mobilização
social das massas”;
! divulgação de imagens relativas à distribuição,
pelo governo, de bens e benefícios à população (distributivismo social), visando reforçar
vínculos de gratidão e dependência da população para com o líder governamental;
!
apaziguamento social, através da divulgação
de uma concepção de unidade nacional, em torno de um projeto desenvolvimentista, ancorado em forte distributivismo social, processo
esse dirigido e implementado pelo Estado.
18
Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves
Os mecanismos de propaganda de massa estruturavam-se em torno de peças e ações extremamente criativas. Tanto Capelato quanto Lenharo
destacaram que a circulação de imagens e idéias
políticas, destinadas a reforçar as estruturas afetivas
e de dependência dos governados para com o líder
(governante), se processou através de diferentes recursos. Era comum organizarem-se festas cívicas,
momentos de audiência governamental (públicos ou
privados), comemorações de todo tipo – dia da colheita, dia da raça, culto à bandeira nacional.
Além disso, procurou-se difundir uma idéia
denominada por Lenharo de “pátria em movimento”, idéia essa muito bem traduzida pelos seguintes versos de Villa-Lobos:
Na grandeza infinita
é feliz quem vive
nesta terra santa
que não elege raça
nem prefere crença.
Oh! Minha gente! Minha terra!
Meu país! Minha pátria!
Prá frente! A subir! A sambar!3
Era preciso construir um sentimento de participação e mobilização permanente em torno da
construção da nação. Para tanto, eram organizadas paradas cívicas e marchas da juventude. Todas precedidas, na sua “linha de frente”, por amplo
cartaz no qual a figura do líder ganhava destaque
especial através de gigantescas fotografias. No Brasil, chegou-se a organizar um movimento de maior
vigor e dimensão: “A Marcha para Oeste”, cujo objetivo prioritário era o do povoamento do interior,
mas cujo caráter simbólico era o de afirmação da
brasilidade (étnica, cultural, econômica, territorial,
política e social).
19
Coleção Convite ao pensar
Festas cívicas, dia da raça, construção de monumentos – ao índio, ao trabalhador, ao soldado.
Tudo isso se inseria em um processo mais amplo,
de uso e abuso de imagens e recursos de toda ordem, direcionados à criação de um processo político e social, marcado pelo selo da unidade e da
harmonia. Não faltaram cartilhas (na Argentina alfabetizava-se a partir do nome de Eva), cartazes de
propaganda, fixação da figura do líder e da bandeira nacional em réguas, capas de cadernos e de gibis.
Mas, o melhor e mais eficaz meio de comunicação e propaganda utilizado no período varguista e
também peronista foi o rádio. No dia-a-dia a presença do rádio foi marcante na vida dos brasileiros.
Getúlio Vargas dirigia-se à população de forma direta, como faz um pai a um filho. Um paternalismo
afetuoso e autoritário, que afagava, concedia e cobrava lealdade. O rádio criava uma sensação de
participação e diálogo, que foi muito bem explorada na construção da categoria dívida de gratidão.
Todavia, como afirma Ferreira, o processo de
construção de símbolos jamais chegou a ser linear.
E a dívida de gratidão, mesmo tendo se tornado uma
realidade inexorável, não chegou a ocultar, ou
mesmo a apagar, a identidade e também as reivindicações dos trabalhadores brasileiros. Em outras palavras, como sujeitos históricos, os próprios
trabalhadores apropriaram-se das mensagens propagandísticas a eles destinadas, transformando um
processo que poderia ter sido somente dirigido de
cima para baixo em um processo compartilhado
(inclusive na criação dos próprios laços de dívida
e lealdade). Não fosse dessa forma, o mito, a figura legendária de Vargas, não teria sobrevivido ao
tempo e perdurado como referência especial na
vida política brasileira.
20
Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves
NAÇÃO E CID
AD
ANIA
CIDAD
ADANIA
Para Capelato um dos objetivos primordiais
do modo getuliano de fazer política era a criação
da harmonia social, através da extinção de conflitos de qualquer natureza: políticos, sociais e econômicos. Tratava-se de substituir uma concepção
de cidadania individual, competitiva, própria ao
liberalismo da República Velha, por uma nova concepção de cidadania: solidária, cooperativista, vinculada de forma estreita à nação e desvinculada
dos valores competitivos do mercado.
Para tanto, recorreu-se, em larga escala, à propaganda. O cidadão trabalhador ganhou relevância, importância, nas mensagens que divulgavam
o projeto de construção de uma nação soberana e
desenvolvida. Ser cidadão era ser trabalhador. O
melhor e maior símbolo de cidadania do período
era a carteira de trabalho. O trabalho era identificado como forma ideal de emancipação do homem
e de valorização da pátria.
Na verdade, na década de 30 e, em especial, no
período estadonovista, ocorreu uma priorização dos
direitos sociais e coletivos da cidadania em relação
aos direitos civis e políticos, que foram relegados a
um segundo plano. Tal orientação era coerente à
perspectiva organicista e corporativista, hegemônica àquela época. Tratava-se de subdimensionar valores individuais que sedimentavam uma concepção
liberal de governo e de superdimensionar valores
cooperativistas, que afirmavam uma concepção
positivista e organicista de sociedade civil em particular, e de nação no seu conjunto.4
O verdadeiro cidadão caracterizar-se-ia por ser
alguém útil à comunidade nacional. Um sujeito
histórico que deveria:
21
Coleção Convite ao pensar
!
deixar-se contagiar pelo otimismo;
!
considerar o dever cívico do trabalho como
um prazer;
!
entender que sua contribuição era vital ao
pleno desenvolvimento de todas as potencialidades do corpo da nação.
Aliás, Lenharo trabalhou com especial maestria a metáfora e alegoria da nação como corpo:
corpo uno, saudável, indivisível, harmonioso.
Os conceitos de cidadania e de nação, no decorrer da década de 30, amalgamaram-se. Constituíram-se como elementos de um mesmo processo
histórico através do qual o homem cidadão passou
a ser identificado como construtor da nação, e a nação passou a ser identificada como totalidade orgânica que acolhe e protege os seus cidadãos.
A nação, identificada como corpo, seria formada por partes (cidadãos – sociedade e governo –
cabeça) com funções específicas, complementares
e não-conflitivas. Ao líder caberia a direção do processo, a preservação da unidade corporal pelo uso
adequado e firme da autoridade política. Tratavase, na verdade, de um governo centralizador e intervencionista, que conduzia um projeto nacional
cujos principais pressupostos eram:
! sobrevalorização da autoridade governamen-
tal executiva;
!
desenvolvimentismo econômico;
!
distributivismo social;
!
nacionalismo;
!
cooperativismo;
!
valorização de uma concepção de democracia baseada na justiça social, e não na liberdade política;
22
Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves
!
valorização dos direitos coletivos da cidadania, em relação aos direitos individuais.
Na verdade, tratava-se de um projeto articulado e implementado por um governo de base autoritária, que não considerava a liberdade individual
como um valor prioritário e que, em contrapartida,
considerava supremo o valor coletivo da nação.
Ao líder da nação (governante) caberia agir
como árbitro para evitar conflitos. Caberia também
promover o bem comum através de concessões e
doações aos cidadãos. Trata-se do que Capellatto
define como ideologia da outorga, claramente explicitada em discursos oficiais repletos de palavras
que enfatizavam/demonstravam uma relação de
doação do governo para com a sociedade civil.
Uma relação que implicava em receber e, em contrapartida, em agradecer.
Estavam, assim, criados dois pressupostos claramente integrados um ao outro: “dívida de gratidão” e “concepção de governante como mito
protetor e como pai provedor”, um líder que sabia
antecipar-se às demandas e desejos de seus governados, buscando simultâneamente satisfazê-los e
neutralizar suas pressões.
Na verdade, como afirma Jorge Ferreira, a relação de identidade dos cidadãos trabalhadores
com Vargas não foi construída no vazio, ou somente
se baseou em conquistas abstratas, divulgadas pela
propaganda oficial. O projeto varguista, com todo
o autoritarismo que o caracterizou, traduziu-se
para os trabalhadores em ganhos materiais e simbólicos efetivos. Não fosse tal fato, a dívida de gratidão, que à primeira vista parece ser um mecanismo
exclusivo de submissão, não teria, paradoxalmente, se constituído como uma relação recíproca de
cumplicidade e lealdade, que supunha serem,
23
Coleção Convite ao pensar
tanto o governante como a sociedade civil, em especial os trabalhadores, sujeitos históricos dotados
de capacidade de pressão e negociação. Trata-se de
uma concretização histórica do conceito de circularidade social. Conceito este que não desconhece
as experiências autoritárias, mas que considera a
mediação e a negociação, em quaisquer circunstâncias, como elementos inerentes à dinâmica da
própria História da humanidade.
NOTAS
1
IANNI. “A Ditadura Militar no Cárcere”, p.10
2
LOURENÇO. Mitologia da Saudade, p.91.
3
Citado por LENHARO. Sacralização da política, p.53
4
Sobre o assunto vide: NEVES. “Cidadania: dilemas e perspectivas na república brasileira”, p.200-225.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPELATO, Maria Helena. Multidões em cena - propaganda
política no varguismo e no peronismo. Campinas: Papirus, 1998.
FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil - o imaginário popular.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.
IANNI, Octávio. “A ditadura militar no cárcere”. Caros Amigos. São Paulo, Editora Casa Amarela, n.32, 1999.
LENHARO, Alcir. Sacralização da política. Campinas: Papirus,
1986.
LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
NEVES, Lucilia de Almeida. “Dilemas de perspectivas da cidadania na República Brasileira”. Revista Tempo, Niterói:
UFF, n.4, p.200-225, 1997.
24
HOBBES: ÉTICA E POLÍTICA
NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
João Carlos Lino Gomes
Nosso objetivo, neste texto, é apontar para a
possibilidade de uma discussão sobre a teoria política e a ética hobbesianas no que se refere às relações internacionais. O caráter ensaístico do nosso
texto está fundado no fato de que este tema é apenas levantado por Hobbes, sem um maior aprofundamento. Para chegarmos a este problema em
Hobbes, mostraremos como sua teoria política é
devedora de todo um movimento cultural que se
convencionou chamar de modernidade.
Em nossa hipótese de trabalho, partiremos da
idéia de que é impossível, no interior da obra de
Hobbes, a extinção do medo da morte violenta do
ponto de vista das relações entre países, já que o
filósofo não consegue pensar um Estado acima dos
Estados particulares que venha a coibir os conflitos que possam surgir entre estes. Acreditamos que
o século XX – apesar de todas as conquistas no campo da diplomacia a que inegavelmente assistimos,
e levando em consideração a globalização da economia, que tem unido mercados e colocado em
questão a própria idéia de soberania (tão cara a
Hobbes) – ainda não conseguiu dar conta desta desconfiança mútua que marca a relação entre os Estados. Não nos parece difícil perceber a dificuldade
com que a ONU tem arbitrado os vários conflitos
25
Coleção Convite ao pensar
que têm explodido no mundo nos últimos anos. É
necessário frisar, também, que as forças de paz da
ONU somente logram desempenhar sua missão
porque são forças armadas. A intervenção armada
levada a efeito por países como os Estados Unidos
ou por alianças como a OTAN, sem a autorização
do conselho de segurança da ONU, é outro indicador do desgaste sofrido por esse organismo nos
últimos anos. Tudo isso nos mostra que, em certo
sentido, nas relações entre os países, o que ainda
está em jogo é a lei do mais forte. Se o Estado é, em
Hobbes, a instância que funda a moralidade, e se
não temos nesse pensador uma teoria sobre a possibilidade de um Estado dos Estados, as relações
internacionais serão sempre movidas por uma ética relativista comandada, em última instância, por
aqueles países que podem acenar para os outros
com a possibilidade da morte violenta. Isso não
significa que a humanidade enfrentará necessariamente, no futuro, guerras de grande porte (até porque elas são caras demais), mas, que a possibilidade
do confronto e a fragilidade das diplomacias continuam sendo desafios com os quais os seres humanos têm que lidar.
I
Thomas Hobbes é um filósofo do século XVII e,
portanto, viveu em um momento em que a nossa
modernidade tentava construir seu ethos, seu modo
de ser. Nesse momento, ela tentava dar a razão de si
mesma não só a partir de mudanças históricas concretas mas, principalmente, criando representações
que conseguissem estabelecer um fundamento
ideológico que justificasse esse novo momento da
história. Mas, quando falamos sobre a modernidade,
o que está efetivamente em questão? Essa pergunta
26
Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
se coloca na medida em que levamos em consideração as análises de Alexandre Koyré, quando esse
filósofo escreve que várias épocas na história do
ocidente se consideraram modernas com relação à
época imediatamente anterior.1 Isso caracteriza uma
necessidade de momentos históricos específicos se
autolegitimarem, face àquele que pretendem negar.
Dessa forma, justifica-se nossa pergunta: qual
é a modernidade que se coloca como pano de fundo da obra de Hobbes? Bem, Hobbes é um filósofo
político. Um dos primeiros, aliás, que aposta na
possibilidade de se levar para a reflexão política o
modelo de racionalidade que nasceu com o advento do saber científico moderno. Sendo essa, cremos,
uma das chaves importantes para compreendermos esse pensador, temos que compreender como
se constituiu essa ciência.
A ciência moderna nasce efetivamente com
Galileu, no século XVII. Numa caracterização sucinta, ela se diferencia do saber que se elaborou na
Idade Média em função da sua libertação com a
relação ao mundo da experiência. A experiência
que passa a contar para o cientista moderno é aquela construída a partir da elaboração de hipóteses
que devem ser verificadas através de experimentos. Como queria o próprio Galileu, o cientista
moderno não se submete mais à natureza, mas,
pelo contrário, ele a submete. Para tanto, a matemática (geometria) torna-se um poderoso instrumento para a operacionalização da realidade, na
medida em que permite a efetivação de cálculos
cada vez mais exatos e a tradução da complexa realidade do mundo físico, num conjunto de leis e
fórmulas que simplificam o acesso do homem a
essa realidade e lhe garantem a apreensão de sua
estrutura. Dessa forma, a natureza deixa de ser um
27
Coleção Convite ao pensar
organismo possuidor de uma alma e passa a ser
entendida como uma máquina, passível de ser explicada a partir de hipóteses corretas e de um uso
adequado do método científico.
É esse método, segundo Norberto Bobbio, que
Thomas Hobbes, conhecedor dos debates acerca da
ciência do seu tempo, irá tentar transpor para a sua
filosofia política.2 Assim, tal como o cientista moderno, Hobbes não está interessado em encontrar
essências na realidade política e moral do homem
mas, sim, em compreender as estruturas do agir
humano e as leis de constituição da realidade política. O homem, para o filósofo, apesar de se apresentar como um ser dominado por paixões, possui
certas estruturas em seu comportamento que dão a
este um certo grau de previsibilidade. Com essa
perspectiva, Hobbes abandona o ponto de vista greco-medieval de uma razão que busca o sumo bem,
e torna-se um dos primeiros pensadores a aplicar o
modelo técnico-científico de razão à política. Se em
Hobbes a ética está submetida à política – já que,
como veremos, só se pode falar de valores morais
depois do advento do estado de sociedade – não é
possível se pensar, nesse autor, uma ética fundada
em valores absolutos e transcendentes.
Se no plano das relações pessoais ainda podemos pensar alternativas para essa perspectiva ética, no que concerne às relações internacionais, onde
com certeza a guerra aberta não é considerada um
bom recurso, um certo estado de tensão latente
parece marcar as relações entre os países. Essa tensão, longe de inviabilizar as relações entre os governos, exige um constante repensar das estratégias
diplomáticas e dos pactos estabelecidos.
Mas, o momento histórico de Hobbes também
é importante para compreendermos esse pensador
28
Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
e o próprio universo cultural que viu nascer a ciência moderna. Sem dúvida, para levarmos a efeito
esta compreensão, temos um elemento histórico
importante: a ascensão da burguesia que, sem condicionar mecanicamente o desenvolvimento da
ciência moderna, produziu mudanças tanto no nível da história efetiva quanto no do imaginário que
criaram, uma nova ordem de demandas por parte
do homem e novas formas deste se relacionar com
a natureza e com seu próprio semelhante.
Sabemos que a burguesia é uma classe social
que nasceu no seio da Idade Média. No período
medieval, acreditava-se que o mundo tinha uma
ordem preestabelecida por Deus, e o homem, dentre as criaturas, ocupava um lugar privilegiado,
pois tinha sido feito à imagem e semelhança do
criador. A qualidade fundamental desse homem era
a razão, a chamada luz natural, que guiada pela fé
auxiliaria o ser humano a seguir os caminhos ditados pela verdade revelada, aquela verdade que
depois de atingida pareceria tão evidente que não
demandaria uma demonstração.
Ora, essa visão metafísico-religiosa medieval
encontra seu correlato no plano da organização social característica da Idade Média. Para os medievais, a sociedade era constituída basicamente de três
ordens: o clero, a nobreza e os servos de terra (a grande maioria). Quem não se encaixava em nenhuma
dessas três categorias era visto como alguém que
não tinha um lugar no mundo e, dependendo do
ponto de vista de quem fazia essa leitura, merecia a
piedade cristã ou as penas da lei. Como os burgueses se situavam nesse modelo de cultura? Simplesmente eles não se situavam. A burguesia faz, a partir
da revolução comercial do século XIII, o comércio
se tornar o eixo da sua experiência. Desvinculando
29
Coleção Convite ao pensar
a atividade comercial da luta pela subsistência, os
burgueses incrementam o empréstimo a juros, tornam o trabalho uma atividade importante para a
própria constituição do homem, fazendo da atividade comercial (ao longo de vários séculos e com
muitas idas e vindas) não somente um meio mas
um fim fundamental da experiência humana.3 A
burguesia começa a criar, a partir de sua ascensão,
não só um novo molde para o mundo, mas também, um novo ethos, um modo de ser que fundará
uma outra forma de civilização.
Mas, nesse processo, os burgueses tornam-se
pessoas que não irão se encaixar nem no clero, nem
na nobreza e, muito menos, no grupo dos servos
de terra. Ao mesmo tempo, eles não são simples
mendigos ou marginais merecedores de punição.
É um grupo que começa a aumentar o seu patrimônio e adquirir uma mobilidade própria do comércio. A igreja católica passa a condená-los
particularmente no que diz respeito ao empréstimo a juros – usura – que é levado a efeito por eles;
os senhores feudais ou os proíbem de passar por
suas terras ou o permitem em troca de onerosos
impostos. Perguntas assolam o imaginário medieval constituído: quem são estes que parecem não
dever obediência a ninguém, que se movem com
extrema rapidez e fazem dinheiro constantemente, muitas vezes, como no caso dos juros, sem a
produção ou a venda de uma mercadoria efetiva?
Na impossibilidade de uma resposta satisfatória,
as perseguições ao projeto burguês continuavam e
a burguesia tinha que fazer algo – e o fez.
Como sabemos, uma das características do feudalismo era a descentralização do poder político,
ou seja, o poder era exercido efetivamente pelos
senhores feudais, e aos reis cabia apenas um poder simbólico. Estes últimos percebem o poder
30
Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
econômico da burguesia e esta percebe a importância da idéia de unidade política que, embora na
prática não existisse, se encarnava simbolicamente na figura do rei. Assim, o cenário está pronto
para os tempos modernos. Os burgueses e os reis
se unem e começam a enfraquecer o poder dos senhores feudais. A unificação do poder político e a
ascensão do comércio (economia) ao primeiro plano na vida da sociedade constituem as bases fundamentais da modernidade no ocidente.4
Mas, como os elementos subversivos presentes na ascensão da atividade comercial ajudaram a
implodir o ideário da Idade Média? Ora, o comércio exige trabalho e este, que era visto ou como
indigno ou como mero instrumento para as classes privilegiadas, tanto na Grécia antiga quanto na
Idade Média, torna-se a forma fundamental através da qual o homem vai colocar a sua marca no
mundo, fazendo com que este seja moldado à sua
imagem e semelhança. O trabalho ajuda a criar, no
homem, o sentimento de que ele não está situado
necessariamente e de uma vez por todas em um
lugar específico dentro de determinada ordem. Ele,
o homem, começa a se perceber como um ser que
pode constituir o seu lugar a partir de sua ação, de
suas capacidades. Isso significa que o homem é livre mesmo antes de se ligar a algum grupo específico, pois sua liberdade é, antes de tudo, liberdade
individual. Outros elementos foram importantes
para a constituição desse sentimento no homem
ocidental (e falaremos ainda de alguns deles) mas,
sem as mudanças históricas operadas pela ascensão do comércio, parece-nos difícil compreender
as raízes da nossa modernidade. Entretanto, como
herança desse valor dado à liberdade individual, ao
indivíduo que a sustenta e ao trabalho que a constitui, ficará para os modernos a dramática pergunta:
31
Coleção Convite ao pensar
como defender o primado do indivíduo sobre a
sociedade e, ao mesmo tempo, garantir que esse
primado volte-se em beneficio do todo? Em outras
palavras: como impedir que os homens, voltados
para os seus interesses privados, não venham a diluir a própria idéia de uma vida humana associada? Acreditamos que Thomas Hobbbes tentou, de
forma sistemática, dar conta dessas questões.
Nossas preocupações com o texto hobbesiano
já se insinuavam quando nos defrontamos com a
obra de Maquiavel. Na leitura do texto maquiaveliano tivemos a preocupação de compreender as
inquietações do pensador florentino com a problemática que iria marcar a modernidade política do
ocidente, qual seja: na inexistência de uma fundamentação transcendente para o poder político, tal
como acreditava a tradição greco-medieval, cumpria aos modernos buscar as novas bases para essa
fundamentação pois, sem elas, o poder se tornaria
injustificável. É necessário que os modernos expliquem porque se justifica que uma certa maioria
deva se submeter ao domínio de um grupo ou, até
mesmo, de uma só pessoa.5
Mas, onde estaria o problema, afinal? Recapitulemos: desde que os filósofos se ocupam da reflexão política, o fato de que uns mandam e outros
obedecem tem sido objeto de discussão, quando
se tenta justificar esse fato através de uma série de
argumentos racionais. Aristóteles, por exemplo,
acreditava que a própria natureza (physis) estabelecia o lugar no qual cada homem nascia, e lutar
contra essa determinação seria voltar-se contra a
natureza, contra a ordem que sustentava o mundo.6 Assim, para o estagirita, tanto a vida dos homens em geral quanto a dos cidadãos tinham um
fundamento absoluto que estava para além delas
32
Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
(é claro que não podemos esquecer que Aristóteles não estabelece uma relação mecânica entre a
natureza e o homem, pois ele acredita que, do ponto
de vista da ética, a physis nos coloca naturalmente
dispostos para o bem, mas somente através de bons
hábitos é que nos tornamos efetivamente bons); e
o filósofo privilegia em sua obra política a vida do
cidadão que ele julga ser a mais feliz no mundo
dos mortais. Vida mais feliz mas também um meiotermo entre a vida dos gozos e prazeres, típica dos
que se deixam dominar pela parte apetitiva da nossa alma, e a contemplativa, própria dos deuses ou
daqueles que mais se aproximam deles em função
de seu apego à parte divina da alma, os filósofos.
Já que, entre dois extremos de vida, Aristóteles se preocupa com a vida política, o pensador se
vê obrigado a justificar sua preocupação e o faz a
partir do estabelecimento de dois princípios: 1) O
homem é um animal político; 2) A cidade existe
por natureza. Entendamos estas duas posições: a
primeira nos mostra que o homem tem uma tendência natural para a vida política. Isto quer dizer
que, apesar do fato de que nem todos os homens
serão cidadãos da pólis, esta é uma potencialidade
que ajuda a definir o homem como humano. A segunda posição, que está interligada com a primeira, nos mostra que a construção política por
excelência, ou seja, aquela na qual o homem poderá atualizar o seu ser político, é a pólis, a cidade tal
como a Grécia conheceu no século V aC. Isso significa que Aristóteles, apesar de nos mostrar no livro A política que a associação dos homens se dá –
num primeiro momento – pela urgência de suprir
suas necessidades imediatas, não justifica o existir
político a partir destas mas, sim, por um telos, a
vida humana associada, que está para além dos
nossos apetites individuais.7
33
Coleção Convite ao pensar
Ora, essa convicção grega se perdeu com o advento da nossa modernidade. Não trataremos aqui
das discussões medievais sobre os fundamentos do
poder político porque elas fogem dos nossos objetivos neste texto – estamos, aqui, tentando traçar
somente um paralelo entre o início da tradição do
pensamento político ocidental e a Idade Moderna
como o momento da constituição de uma outra
forma de se experimentar e, particularmente, no
que nos diz respeito como filósofos, pensar a política –, e também porque, em grande medida, a idéia
de um fundamento transcendente do poder continuou fazendo fortuna na Idade Média.
II
Neste momento do nosso texto, nossa atenção
deve se voltar para uma época específica, a Renascença, e, nesta época, para um pensador: Maquiavel. Um dos problemas centrais do pensamento
maquiaveliano diz respeito à fundação do poder
político. A Renascença foi um período em que o
ocidente experimentou uma profunda ruptura no
quadro dos seus valores tradicionais (o quadro dos
referenciais greco-medievais) e também a dificuldade de se estabelecer um novo horizonte axiológico que iria orientar as ações do homem no
mundo. Sem entrar na discussão sobre se a Renascença seria melhor definida como o fim da Idade
Média ou a porta de entrada da modernidade, o
certo é que no Renascimento (e aqui, em função de
estarmos discutindo Maquiavel, temos em vista o
Renascimento italiano) aconteceram fatos importantes, tais como: o deslocamento da terra da sua
posição de centro do universo, operado por Copérnico – que teve como impacto antropológico a
perda sofrida pelo homem de um centro no universo (o homem passa, então, a ter de construir um
34
Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
centro que ele descobre estar em si mesmo, como um
ser de ação e liberdade); a invenção da imprensa, que
permitiu uma maior agilidade na propagação de novas idéias; as grandes navegações, que ampliaram o
mundo conhecido; a reforma, que operou uma cisão
na cristandade ocidental com o advento de uma nova
religião cristã, o protestantismo, mais próxima das
mudanças simbólicas que ocorriam do que a igreja
católica naquele momento; e o surgimento dos Estados Nacionais, caracterizados pela centralização
do poder nas mãos dos reis (cuja aliança com a burguesia ascendente já demonstramos), pelo estabelecimento dos exércitos nacionais profissionais e
pelo esforço dos Estados no sentido de demarcar/
delimitar seus territórios (algo extremamente complexo no sistema de feudos da Idade Média).
Maquiavel (nascido na cidade italiana de Florença) vive, nesse período, em uma Itália não unificada (dividida em várias cidades-estado) e com
profundos conflitos internos e externos, problemas
de definição territorial e exércitos não raro formados por mercenários, sem nenhum compromisso
moral com aqueles que os contratavam. Ao mesmo tempo, o florentino se encontra em um país que
está no centro das crises européias, das querelas
entre o papado e os reis, do financiamento das grandes navegações e do florescimento do que hoje
chamamos de capitalismo financeiro (os banqueiros italianos foram fundamentais para o amadurecimento do sistema capitalista europeu).
Desejando que seu país se tornasse forte e comandado por um poder central que impedisse o seu
esfacelamento, o pensador construiu suas reflexões
a partir desta pergunta subjacente em suas principais obras: qual é o fundamento do poder político?
Ou seja: por que é necessária a constituição de uma
instância que esteja acima dos interesses pessoais
35
Coleção Convite ao pensar
dos homens e venha a coagi-los a viver associadamente? Em Maquiavel a resposta é clara: os homens são naturalmente maus e, como são regidos
por paixões, somente um poder que possa se sobrepor a eles pode mantê-los juntos e respeitando
as leis. Sendo assim, não é prudente, da parte de
quem encarna o poder político, acreditar que a
política é necessariamente da ordem da razão, pois
ela não é. A política não é ciência, ela é técnica e
jogo. Dessa forma, o campo político se afigura para
os homens como um espaço onde a imprevisibilidade das ações humanas deve ser considerada, e
nem a razão prática de Aristóteles, que, ao contrário da razão teórica, trabalha a partir da lógica do
provável, pode nos auxiliar, pois o mundo da política – em Maquiavel – não encontra o seu fundamento na moral.
É claro, podemos pensar, que um jogo pressupõe regras, uma lógica cuja observação faz diferença entre o bom e o mau jogador. Mas, se a observação
é correta, ela não serve como um argumento contrário à nossa idéia de que Maquiavel não vê uma
racionalidade imanente à política. Isto porque os
jogos possuem regras justamente para verificar a
criatividade dos jogadores, precisamente para medir a capacidade dos jogadores de instaurar o diferente (um certo estilo de jogar, uma jogada diferente,
um blefe). Dessa forma, quem está no poder tem de
saber agir de acordo com as circunstâncias, e nunca
deverá acreditar na existência de padrões de comportamento que lhes possam dar a chave do embate político. Se a esfera da política é racionalizável,
ela não é em si mesma racional. Isso significa que,
se podemos compreender pela razão a ação dos
homens ou até mesmo, em algumas situações, antecipar-lhe a efetivação, é também possível ao governante ser um bom observador das ações
36
Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
humanas e um hábil aplicador da sua faculdade de
compreendê-las. Se existem ações racionais ou mesmo se elas ocupam um lugar maior ou menor na
vida das pessoas, este, a nosso ver, não é o problema de Maquiavel.
A questão que nos parece clara é que, para o
florentino, não há uma associação imediata entre
razão e ação. Sendo assim, a capacidade de administrar as paixões humanas é uma das qualidades
fundamentais de quem governa (os economistas,
face à instabilidade de sistemas econômicos que
flutuam em função dos sentimentos das pessoas,
tiveram que aprender duramente essa lição, na segunda metade do século XX).
Pois bem, em nossa investigação sobre o texto
maquiaveliano algo ficou claro para nós: Maquiavel com certeza não se orienta mais dentro dos limites da razão grega, pois não associa a razão com o
bem e nem acredita que as ações políticas sejam em
si mesmas racionais (seja num modelo mais estrito
de racionalidade, como a platônica, seja num modelo mais flexível como o aristotélico, que admite
que a ética e a política, diferentemente da física e da
metafísica, só podem ser pensadas sob o prisma da
razão prática que, como vimos, se aplica sobre raciocínios prováveis e nunca sobre os exatos).
Entretanto, ao mesmo tempo, não nos parece
claro o modelo de racionalidade ao qual o florentino se remete quando tenta pensar o mundo da
política. Mas, com certeza há algum modelo pois,
como já afirmamos, se o pensador não toma a política como racional em si, é certo que ele não lhe
nega a possibilidade de ser apreendida pela razão.
Se assim não fosse, não se justificaria em Maquiavel a reflexão sobre a possibilidade da fundação
de um Estado que estabelecesse uma ordem nas
paixões dos homens.
37
Coleção Convite ao pensar
Esta responsabilidade de pensar a razão moderna conjugada com a política recaiu sobre o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679). Nosso interesse
na obra de Hobbes, é caracterizar o conceito de
razão subjacente às reflexões desse filósofo (uma
razão que é puro cálculo), e mostrar que essa razão funda uma ética que, se pode ser administrada no plano das relações interpessoais no seio de
um certo Estado (uma ética que em linhas gerais
se constituiria a partir do medo que estaria subjacente às relações humanas), no nível das relações
internacionais ainda seria um problema com o qual
os homens têm que lidar. Isso nos ocorre apesar de
reconhecermos, como já foi frisado anteriormente,
os avanços que a diplomacia tem feito no ocidente
e a nova configuração que a política internacional
tem adotado diante do fenômeno da globalização.
Nosso interesse por esse tema se aguçou particularmente quando percebemos que Hobbes não
aprofunda a discussão sobre as relações entre os
Estados que viveriam, para ele, numa constante
tensão face à possibilidade de um efetivo conflito.
Nosso problema deve ser assim apresentado: em
Hobbes, não tem sentido falar de uma moralidade
anteriormente ao advento do Estado, pois somente este pode definir, dentro de um certo universo,
o que é justo e o que é injusto, o que é certo e o que
é errado. Na definição desses conceitos, o Estado
não parte de princípios estabelecidos a priori e válidos universalmente (à maneira do imperativo categórico de Kant). O moralmente correto e o seu
oposto só se definem dessa forma a partir do arbítrio do Estado. A moral, então, se funda em imperativos hipotéticos em que a avaliação de uma dada
ação só será possível se se levar em conta as condições subjacentes à efetivação desta. Cabe ao poder
político, por exemplo, definir em que situação a
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Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
morte de um homem será definida como crime ou
legítima defesa. Ora, para que esta moral fundada
em imperativos hipotéticos possa funcionar, Hobbes
não pode confiar na boa consciência dos homens
(na qual, aliás, ele não acredita). É necessária a instauração das leis civis para que a moralidade venha
efetivamente se estabelecer. Sendo assim, a esfera
do Direito é um elemento fundamental na teoria
política hobbesiana, e nós a definimos aqui, tal como
Hans Kelsen, como aquele ordenamento social que
cria expectativas de conduta nos homens, a partir
do estabelecimento de regras e das correspondentes sanções para o caso do seu descumprimento.8
Do Estado mais democrático ao mais autoritário esta idéia básica tem de ser seguida. Vale lembrar que uma das lutas mais árduas do nosso século,
a luta pelos direitos humanos, pode ser definida,
em última instância, como o esforço para fazer presente nos códigos legais de todo mundo dispositivos que reprimam a tortura, a prisão ilegal etc. Pois
bem, se o Direito garante a moral, no plano interno
aos Estados teríamos como pensar hobbesianamente
o estabelecimento da paz interna. Mas, e no plano
internacional, como garantir uma regulação moral
nas relações entre os Estados, fundada num Direito
efetivamente internacional? Hobbes não enfrenta o
problema e acreditamos que isso se dá em função
do seu apego à idéia de soberania. Como se sabe,
segundo essa idéia, o poder soberano é irrevogável,
absoluto e indivisível. Pensar uma instância que estivesse acima dos Estados (uma espécie de Estado
dos Estados) e que, dessa forma, fundasse a legalidade e conseqüentemente a moralidade, seria contraditório. Isso porque esse Estado dos Estados
passaria a ser o soberano por excelência, e diluiria o
poder soberano dos outros países.
39
Coleção Convite ao pensar
No próprio momento histórico em que Hobbes
vive, a preocupação dos países é justamente a sua
autoconstituição e não o reconhecimento dos outros. Assim, resta a cada país conviver com o medo
de ser anulado pelo outro. O estado de natureza
suplantado pelo estado de sociedade seria uma realidade possível somente no plano de uma política
interna. A nossa hipótese é a de que esse é o problema com o qual teremos efetivamente que lidar no
próximo século. Questões ligadas à representatividade ou não da ONU, e sobre a possibilidade de
um eficaz controle jurídico da Internet, recolocam
com muita força a discussão sobre a possibilidade
de um Direito, tal como o definimos, que não possa
ser desrespeitado por países que tenham maior poderio militar e econômico; e um passo nesse sentido pode ser percebido: a idéia de soberania é uma
das que têm sido questionadas face aos novos ventos que varrem a política internacional.
Agora, se é a idéia de um estado de natureza
internacional – que poderá nunca ser diluído – que
nos preocupa, cabe refletirmos um pouco sobre esse
conceito tal como ele aparece em Hobbes pois,
como se sabe, esse é um dos pontos centrais do
seu pensamento. Sem entrar nas discussões que
cercam o conceito, podemos defini-lo como aquele estado em que todos os homens tinham direito
a tudo (pois não havia leis para regular o meu e o
teu) e tentavam, sem nenhum respaldo legal, garantir a própria vida e os meios para mantê-la. Esse
conceito é utilizado por Hobbes para mostrar como
os homens tiveram necessidade de criar o estado
de sociedade e as leis civis. Em nenhum momento
Hobbes toma o estado de natureza como historicamente existente, pois ele se constitui apenas
como uma hipótese. Nesse hipotético estado, os
homens viveriam na mais completa liberdade mas,
40
Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
como para Hobbes o homem não é um animal essencialmente político, e o egoísmo é a base da sua
natureza, essa liberdade acabaria por ser implodida, pois cada homem, na ausência de uma autoridade superior a ele que pudesse ser reguladora dos
conflitos existentes, tentaria defender ferozmente
o seu direito contra os outros e, com isto, a própria
vida humana se tornaria inviável.9 É claro que, para
Hobbes, no estado de natureza já existiam as leis
naturais mas, contrariamente a outros pensadores,
ele não as vê propriamente como leis e, sim, como
preceitos que mais sugerem formas de conduta do
que prescrevem comportamentos. Sendo assim,
para o pensador inglês, as leis de natureza estabelecem princípios que deverão ser tornados obrigações a partir da constituição das leis civis que só
serão possíveis a partir da instauração do estado
de sociedade.10
As duas primeiras leis são claras para Hobbes,
quais sejam: 1) a busca da paz como garantia da
vida; 2) a aceitação por parte de todos de abrir mão
do direito a todas as coisas. As outras leis elencadas pelo filósofo ligam-se, de uma maneira ou de
outra, a essas duas. Ora, a busca da paz e a aceitação da perda do direito a todas as coisas seriam
inviáveis, na perspectiva hobbesiana, num estado
onde todos fossem livres para fazer o que bem entendessem. Para resolver essa questão, Hobbes elaborou um modelo teórico em que os homens, por
medo da morte violenta em função do egoísmo que
é característico de suas vidas, aceitariam abrir mão
dos seus direitos em nome de um soberano (que
poderia ser um homem ou uma assembléia), e este
é quem definiria os direitos e deveres que deveriam
ser estabelecidos para o grupo. Veríamos, assim, o
nascimento do estado de sociedade a partir de um
pacto que os homens fariam entre si, pois eles iriam
41
Coleção Convite ao pensar
preferir perder a liberdade desde que conseguissem
manter a própria vida. Esse pacto, é necessário frisar, só se constituiria entre os súditos e não entre
estes e o soberano. Isso porque, se o soberano estivesse submetido a um pacto, o seu poder não seria
total (estaria limitado), e teríamos a perda do princípio de soberania que estabelece que não pode haver no Estado nenhum poder acima do poder
soberano. É em função disso que Hobbes vai denominar o Estado que se instaura a partir do surgimento da sociedade de Leviatã, monstro bíblico que
no livro de Jó indica o infinito poder de Deus.
Pois bem, instituído o soberano, instituído estará o Estado. Os homens agora poderiam viver
em paz, pois, os preceitos estabelecidos pelas leis
naturais iriam encontrar sua correta expressão e a
exigência do seu cumprimento nas leis civis. Mas
aqui temos o início do nosso problema. Cada súdito de um Estado é um sistema diante das partes e
órgãos que constituem seu corpo, mas é um elemento diante do Estado. Muitos dos problemas
humanos estariam resolvidos se essa equação parasse nesse ponto. Entretanto, a questão é que não
existe apenas um Estado, eles são vários. Hobbes,
como outros pensadores do seu tempo, tem consciência das conquistas levadas a efeito pelos Estados Nacionais no processo de formação destes.
Algumas dessas conquistas já foram elencadas em
nosso texto tais como: a delimitação territorial, a
centralização do poder político e a formação de
exércitos nacionais profissionais. Sendo assim, essas mudanças nos mostram que os Estados no século XVII, além de buscarem sua aceitação por
parte dos súditos, tinham de lutar também pelo
reconhecimento de suas fronteiras e de sua autonomia política face a outros Estados (daí a importância do conceito de soberania).
42
Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
Dessa forma, se os indivíduos são particulares
diante do universal que é o Estado, este, por sua
vez, torna-se indivíduo diante de uma comunidade internacional que estava se formando e iria se
sustentar a duras penas, tendo provavelmente as
suas mais severas provações nas duas guerras
mundiais que macularam o nosso século.
Hobbes percebe a dificuldade para a manutenção da paz entre os Estados e isto está ligado, de
certa forma, à sua visão do homem.11 Assim, os Estados são constituídos por homens e estes, para o
filósofo, são egoístas por natureza. Nada impede
que esse egoísmo humano se transfira para os Estados quando estes se colocam uns diante dos outros. O medo recíproco, a falta de confiança com
relação às intenções do outro, a necessidade de
obter as maiores vantagens, podem acabar por se
intrometer nas relações desses sujeitos jurídicos que
são os Estados. Nossa conclusão é clara: se o estado de natureza deve ser substituído pelo de sociedade no seio de uma dada comunidade histórica,
para Hobbes, no plano das relações internacionais,
ele permanecerá sempre.
Não há no pensador uma instância transnacional que possa fazer o papel de um Estado dos Estados, obrigando ao cumprimento dos pactos e
punindo os infratores (que se recorde o conceito
de Direito já situado por nós). Isso não significa
que os Estados viverão sempre em guerra mas, sim,
que o medo do não cumprimento dos acordos e a
possibilidade de que isto venha a ocorrer serão,
do ponto de vista hobbesiano, sempre o ponto chave das relações internacionais.
O pensador Karl Deutsch, ao discutir sobre os
dilemas do Direito internacional em nosso século,
escreve:
43
Coleção Convite ao pensar
Em geral, porém, o caráter auto-aplicável do Direito internacional, requer ou uma igualdade aproximada das posições de poder das partes envolvidas
(permitindo o uso das táticas do tipo “olho por olho”
entre elas), ou, ainda, uma expectativa de futura reversão de papéis entre elas (permitindo o uso de táticas do tipo “olho por olho” num futuro previsível).
Se os dois lados, em uma causa internacional, se
mostram igualmente fortes, cada um deles pode revidar eficazmente ao que o outro eventualmente
possa fazer.12
Se a inexistência de um Estado dos Estados tivesse como pano de fundo a certeza de uma natureza humana voltada para o bem, o receio de Hobbes
não se justificaria. Mas, sua concepção de política,
de ética e de razão rompem com a tradição do pensamento político antigo, onde se acreditava que a
busca de uma vida humana associada fazia parte
da natureza humana, a cidade era a reprodução da
ordem do cosmos e a razão se identificava com o que
haveria de divino no homem. Na teoria hobbesiana,
a racionalidade calculadora (instrumental) constitui
uma ética fundada em imperativos hipotéticos, e esta
tem um cunho efetivamente relativista. Sendo assim,
poderíamos duvidar da possibilidade de se fundar
as relações internacionais em parâmetros que venham
a permitir uma melhor convivência humana? Acreditamos que não. Isso se conseguirmos criar um compromisso entre os países que constituem a chamada
comunidade internacional, de forma que fechem
moral e legalmente com alguns princípios mantenedores da paz e da justiça, e sejam criados mecanismos cada vez mais eficazes para que os países que
venham a trair esses princípios sejam responsabilizados efetivamente. A questão que fica em aberto é
se teremos um dia uma comunidade internacional
total. Seja como for, a não ser que inventemos um
44
Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes
novo modelo de razão, esta possível comunidade
certamente não será composta de seres naturalmente
voltados para o bem; além disso, cumpre estabelecer regras para o seu funcionamento. Se o modelo
de Estado de Hobbes foi superado pelo Estado de
Direito e suas conquistas, o desafio de construir uma
sociedade humana que consiga viver unida e em
paz numa cultura que dissociou a ética da política –
enfrentado pelo nosso autor – continua como uma
tarefa para nós.
NOTAS
1
Ver KOYRÉ, Estudos de história do pensamento científico.
2
Ver BOBBIO, BOVERO. Sociedade e Estado na filosofia política moderna, p.13-26.
3
Sobre as dificuldades da burguesia diante da autoridade da Igreja
e do imaginário cristão, ver LE GOFF. A bolsa e a vida – a usura
na Idade Média.
4
Sobre a decadência da economia feudal e a ascensão do capitalismo, ver CONTE. Da crise do feudalismo ao nascimento do capitalismo.
5
Sobre a questão do poder em Maquiavel, ver LINO GOMES, J.C.
Ética, política e poder em Maquiavel, Síntese 60, (1993): 79-91.
6
Ver ARISTÓTELES. La Política. Livro I, cap. 1, 1252a; 1252b.
7
ARISTÓTELES. op. cit., Livro I, cap. 1,1253a.
8
Sobre esta concepção de Direito, ver KELSEN. Derecho y paz en
las relaciones internacionales, p.25-48.
9
Ver HOBBES. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, p.74-77.
10
HOBBES. op. cit., p.78-85.
11
Sobre as situações em que Hobbes concebe a existência do estado de natureza, ver BOBBIO. Thomas Hobbes.
12
DEUTSCH. Análise das relações internacionais, p.228-229.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. Porto:
Afrontamento, 1984.
ARISTÓTELES. La Política. Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1989.
45
Coleção Convite ao pensar
BOBBIO, Norberto, BOVERO, Michelangelo. Sociedade e estado na filosofia política moderna. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus,
1991.
CONTE, Giuliano. Da crise do feudalismo ao nascimento do capitalismo. Lisboa: Editorial Presença, [s.d.].
DEUTSCH, Karl Wolfang. Análise das relações internacionais.
Brasília: Editora da UNB, 1982.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
KELSEN, Hans. Derecho y paz em las relaciones internacionales.
México: Fondo de Cultura Económica, 1986.
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico.
Rio de Janeiro: Forense Universitária; Brasília: Editora da
UNB, 1982.
LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida – a usura na Idade Média.
São Paulo: Brasiliense, 1989.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural,
1979.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das letras, 1996.
46
DRÁCULA, DE BRAM STOKER
Lídia Avelar Estanislau
Para Renato e Mauro. Também para
a professora Maria Nazareth Soares
Fonseca, que me ensina a ousadia da
Literatura. Afinal, como propõe Michel
Maffesoli, “é hora de reconhecer que a
sociologia pode ser audaciosa”.
O vampiro1
Tu que, como uma punhalada
Em meu coração penetraste,
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,
De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
– Infame à qual estou atado
Como galé ao seu grilhão,
Como ao baralho o jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
– Maldita sejas tu, maldita!
Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao veneno, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.
Ai de mim! com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
“Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque à escravidão,
Imbecil! – se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!”
Não poderia ser outra a epígrafe para o tema
que me foi proposto pelo programa “Convite ao
47
Coleção Convite ao pensar
pensar”, do Departamento de Filosofia e Teologia
da PUC Minas, convite que não nos deixa alternativa, já que nenhum de nós, professores e alunos,
podemos nos recusar a pensar. Ao aceitar o desafio deste convite irrecusável, ponderei que vampiros jamais fizeram parte do meu interesse, embora,
ao longo da minha vida como socióloga, tenha me
deparado com muita gente que vive do sangue
alheio, pois o vampirismo pode ser pensado como
uma das metáforas do capitalismo: um modo de
produção que, como demonstrou Marx, apropriase da força de trabalho sugando a energia dos trabalhadores através de uma exploração legal, porém
perversa. Confesso, entretanto, que este trabalho
seria impossível sem a colaboração de minha filha, a quem agradeço publicamente, pois não só
me apresentou uma relação de títulos da literatura
e do cinema, como debateu comigo sobre o vampirismo e seu fascínio. Devo acrescentar, ainda, que
esta leitura do Drácula, de Bram Stoker, talvez seja
um pouco decepcionante, especialmente para os
entendidos, caracterizando-se como um modesto
ensaio, no sentido corriqueiro do termo.
MASCULINO E FEMININO
O substantivo masculino “vampiro”, ensinanos Mestre Aurélio, vem do húngaro vampir, através do alemão Vampir e do francês vampire e
remete-nos a uma entidade lendária que, de acordo com a superstição popular, sai das sepulturas,
à noite, para sugar o sangue dos vivos. Seu sinônimo é o substantivo feminino estrige, palavra latina (strige) que também significa coruja e feiticeira.
Em sentido figurado, vampiro é aquele que enriquece à custa alheia e/ou por meios ilícitos, assim
como aquele que explora os pobres em benefício
próprio. De vampiro deriva vampe, do inglês vamp,
48
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
substantivo feminino que designa a atriz que faz
papel de mulher fatal – por extensão, toda mulher
fatal é uma vampe. No Brasil, o morcego hematófago, portador de duplos incisivos superiores que
o diferenciam dos demais morcegos, é também
chamado de vampiro.
Alimentar-se de sangue humano é uma monstruosidade e o que define um monstro é sua oposição à humanidade. “Não há monstro entre iguais”,
escreve o crítico de cinema Luiz Nazário, acrescentando que “o monstro é definido a partir de uma
comunidade de não-monstros”. Os atributos da
condição humana, portanto, são antinômicos aos
atributos do monstro e, por esta razão, este deve
ser exterminado. Na dramaturgia do horror, onde
o vampiro é personagem de destaque, estão presentes algumas características do monstro, como a
longevidade e a conseqüente decrepitude.
A decrepitude permanece importante atributo de
múmias e vampiros, que sempre vêem sua falsa
juventude desmascarada: ninguém mais decrépito que o morto-vivo encarnado por Gary Oldman
em Bram Stoker’s Dracula, com enorme cabeleira
branca trançada e uma adormecida sensualidade
excitando-se, depois de séculos, ao sorver a gota
de sangue fresco escorrida da lâmina de barbear
do jovem hóspede incauto.2
Acrescentem-se alguns atributos clássicos do
monstro como a ubiqüidade, a invisibilidade, a
incredibilidade, a materialidade, a reprodutibilidade, a indestrutibilidade, a voracidade, a ferocidade, o mascaramento, o descontrole, o relativismo,
o agarramento, a contaminação, a mutabilidade, o
gigantismo, o nanismo, a unicidade, a reversão, a
hereditariedade, a despersonalização, a imortalidade e a progressividade, pois “toda história de terror
com suspense evolui num crescendo, multiplicando
49
Coleção Convite ao pensar
as forças do Mal e reduzindo as chances do Bem,
para que o confronto derradeiro represente uma
redenção”.3 A monstruosidade começa a impor-se
a partir dos olhos, da boca e das mãos.
As mãos em arco e os olhos dilatados são apêndices
do desejo monstruoso de agarrar e devorar. Esse é
possibilitado pelas mandíbulas, que não cabem dentro das bocas, que saem delas em pontas afiadas, crescendo, para se fincarem no pescoço da vítima, seja
no beijo perverso de Drácula ou na laceração do lobisomem, deixando marcas na pele ou arrancando-lhe
pedaços.[...] A representação imaginária da monstruosidade concentra-se, pois, no complexo olhos-bocamãos, numa máscara que revela a intencionalidade
maligna inscrita no corpo corrompido.4
Em sua teoria da monstruosidade, Luiz Nazário assegura que “todo monstro é, materialmente,
uma máscara: seu horror é externo, sua representação dá-se por intermédio da fantasia”. Do monstro não se pode esperar reciprocidade, pois ele é,
”por definição, um ser que não ama, ou que ama
mas não sabe amar, incapaz de relacionar-se, trocar afetos, construir a mediação entre os desejos e
sua realização na sociedade”. Entretanto, a monstruosidade é ao mesmo tempo horrível e maravilhosa, o que explica porque “o monstro arrepia,
seduz, fascina, paralisa ou hipnotiza suas vítimas”,
antes de atacá-las.
Dotando a diversão de um caráter perverso, o monstro é socializador: é superego, repressão, complexo
de culpa, princípio de realidade, com sinal negativo.[...] Mas, se o monstro acusa, não se deixa acusar; se é socializador, ele mesmo não está socializado:
é id, liberdade, ausência de culpa, princípio de prazer, com um sinal negativo.[...] O monstro não é, de
fato, uma criatura biológica, mas basicamente uma
força, um símbolo.[...] Perseguindo machos e fêmeas
com o mesmo apetite, não são indivíduos que o
monstro deseja [...]. O sexo de seu parceiro-vítima é
50
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
indiferente a Drácula;[...] ele se sacia com o sangue
humano, comum a homens e mulheres. [...] O Monstro e o Vampiro são anti-humanos na afirmação objetiva de um desejo simbólico. Nisto assemelham-se,
respectivamente, ao Totalitário e ao Capitalista, que
afirmam serem o poder e o lucro desejos humanos
naturais: o Monstro devassa, o Vampiro acumula.5
A economia do terror organiza-se segundo o
princípio do vazio – “o vampiro é como um tanque
que precisa ser eternamente preenchido de sangue”
– e o princípio do pleno. Nos filmes, Drácula perde
a palidez e ganha peso após atacar suas vítimas e
assim, pode-se dizer que todo monstro é um vazio
que tende ao pleno e um pleno que tende ao vazio,
pois seu destino é ser perseguido, capturado e destruído pelos humanos, depois de persegui-los, capturá-los e destruí-los. Drácula, como qualquer outro
monstro, encarna, ao mesmo tempo, o princípio da
realidade e o princípio do prazer, ambos enquanto
máscaras, “já que a ordem monstruosa é a metafórica representação de uma ordem humana proibida e
a simbólica justificação da ordem humana estabelecida”, explica Luiz Nazário, em sua análise da natureza dos monstros. A classificação do vampiro é
complexa, pois se enquadra na categoria dos monstros antropomorfos, mas pela metamorfose pode
tornar-se um cão, um lobo, um morcego, classificando-se, então, como um monstro zoomorfo. Algumas vezes, entretanto, apresenta-se sem forma
definida, enquadrando-se também na categoria dos
monstros polimorfos. Por sua habilidade em penetrar nos ambientes através de mínimas frestas
adquire uma característica dos monstros microscópicos, espalhando seu poder de extermínio em endemias, epidemias e pandemias, como “o vírus da
AIDS, que já matou mais de 5 milhões de pessoas e
contaminou 25 milhões”.6
51
Coleção Convite ao pensar
HISTÓRIA E FICÇÃO7
A leitura das quatrocentas e cinqüenta e oito
páginas do romance foi penosa e não me fascinou
a saga dos Dráculas, “cuja folha de serviços jamais
será igualada pela dos Habsburgos ou dos Romanoffs”8 – casas reais que, como outras tantas, marcaram de sangue a história universal, sobretudo
pela instituição da escravatura e da tortura. A narrativa de Bram Stoker mescla literatura e história,
registrando um processo de desumanização que
vem desde o século XV, com o príncipe Vlad II –
Dracul, pai de Vlad Tepes, o Empalador, assim chamado pelo uso de sua tortura favorita. Conta-se (e
consta) que nas cruzadas contra os turcos, após
uma batalha realizada em 1471, Drácula mandou
empalar pelo umbigo 2.300 prisioneiros.
Em setembro de 1445, o príncipe Vlad Dracul (Vlad,
o Diabo) capturou na Bulgária cerca de 112 mil pessoas “que pareciam egípcias” [de pele escura] e levou-as para a sua Valáquia natal, “sem bagagem,
nem animais”, tornando-se assim o primeiro importador por atacado de escravos ciganos.[...] A época
de Drácula (1431-1476) precedeu a escravidão generalizada nos principados romenos. Decerto havia
modelos reais para as legiões de escravos ciganos
que aparecem no Drácula, de Bram Stoker (cavando
e empacotando a terra da Transilvânia que mantinha “vivo” o conde em suas viagens). Além disso, o
Drácula histórico, Vlad Tepes, parece ter acreditado
que os ciganos constituíam uma classe de guerreiros particularmente destemida (ou temerária). No
poema épico Tiganíada, de Ion Budai-Deleanu (17601820), está dito que Drácula liderava um exército
de ciganos. [...] Aí, o Empalador não é o arquivilão
do folclore [sic] germânico e eslavo (e quase universal), e sim um herói nacional, descrito na linguagem
dos camponeses romenos, que tinham dele essa
imagem, e servindo à causa de um estado romeno
independente.(Tiganíada é considerado o primeiro
poema escrito em romeno).9
52
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
Registros históricos evidenciam que até 1856,
por mais de quatrocentos anos, os ciganos foram
escravizados na Valáquia, na Moldávia e na Transilvânia, principados feudais que constituem a
Romênia moderna. O processo de miscigenação
explica porque os romenos, em geral, têm a pele
mais escura do que seus vizinhos eslavos. No Brasil, até 1888, africanos foram escravizados e também aqui a miscigenação explica o povo brasileiro,
“mestiço na carne e no espírito”, nos termos de
Darcy Ribeiro.10 Ser cigano na Europa Oriental é
como ser negro no Ocidente, e o acesso à etno-história, lá como aqui, é dificultado pela queima, involuntária ou intencional – como fez Rui Barbosa
– de importantes documentos.11 Ciganos e negros
compartilham da maldição bíblica de um dos filhos de Noé, Cam – camita designa os povos do
norte da África – versão mítica da origem do cativeiro relatada no Livro do Gênesis.
O fato é que se consumou em plena cultura moderna a explicação do escravismo como resultado de uma
culpa exemplarmente punida pelo patriarca salvo
do dilúvio, para perpetuar a espécie humana. A referência à sina de Cam circulou reiteradamente nos
séculos XVI, XVII e XVIII, quando a teologia católica ou protestante se viu confrontada com a generalização do trabalho forçado nas economias coloniais.
O velho mito serviu então ao novo pensamento
mercantil, que o alegava para justificar o tráfico negreiro, e ao discurso salvacionista, que via na escravidão um meio de catequizar populações antes
entregues ao fetichismo ou ao domínio do Islão.
Mercadores e ideólogos religiosos do sistema conceberam o pecado de Cam e sua punição como o
evento fundador de uma situação imutável.12
Se na Romênia os termos cigano e escravo são
intercambiáveis e descrevem uma casta social particular, o mesmo ocorreu no Brasil no que se refere
ao negro. Lá como aqui, o ódio e a violência contra
53
Coleção Convite ao pensar
ciganos e negros e a sua transformação em “problema social” – com todas as conotações de criminalidade – trazem, ainda hoje, a marca da escravidão
refletida na dificuldade dos povos outrora escravizados de superar a sua própria falta de expectativas. No que se refere às mulheres, mesmo não sendo
consideradas propriamente humanas, as ciganas e
as negras davam boas concubinas e mais de cem
anos depois, na Romênia como no Brasil, ciganos e
negros padecem de invisibilidade histórica. Invisibilidade que atinge também os povos indígenas,
cuja luta de resistência encontra sua mais perfeita
tradução na expressão outros quinhentos... Nessa
perspectiva, vampiros foram todos aqueles senhores proprietários de escravos, inclusive os bandeirantes, e, segundo a crença – particularmente
difundida na Europa Central e Oriental – aqueles
que foram vítimas de vampiros também se transformam em vampiros: são esvaziados de seu sangue e, ao mesmo tempo, contaminados. Após o
beijo/mordida, mutações incontroláveis ocorrem –
como na virulência da AIDS – nos corpos tocados
pelo vampiro, que multiplica sua espécie através da
contaminação do sangue. O universo ideológico do
contágio é o totalitarismo, que nivela todas as diferenças sob o signo da morte. Esta leitura encontra
eco na simbologia do vampiro:
O fantasma atormenta os vivos pelo medo, o vampiro os mata tirando sua substância: só consegue
sobreviver graças à sua vítima. A interpretação, aqui,
basear-se-á na dialética do perseguidor-perseguido,
do devorador-devorado. O vampiro representa o
apetite de viver, que renasce tão logo é saciado e
que se esgota em se satisfazer em vão, enquanto não
for dominado. Na realidade, transferimos essa fome
devoradora ao outro, quando tal não passa de um fenômeno de autodestruição. O ser se atormenta e se
devora a si mesmo; enquanto não se vir responsável
54
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
por seus próprios fracassos, responsabiliza e acusa
o outro. Quando, ao contrário, o homem [sic] está
plenamente assumido, quando exerce plenamente
sua responsabilidade, quando aceita a sua sorte de
mortal, o vampiro desaparece. Ele só existirá enquanto um problema de adaptação consigo mesmo
ou com o meio social, não é resolvido. Nesse caso
somos psicologicamente corroídos...devorados, e nos
tornamos um tormento para nós mesmos e para os
outros. O vampiro simboliza uma inversão das forças psíquicas contra nós mesmos.13
A simbologia do sangue, por sua vez, é universalmente associada à vida: bebida da imortalidade,
veículo da se(x)sensualidade e da alma humanas,
fonte da vitalidade. A comunhão pelo sangue manifesta-se nos ritos religiosos católicos, mas também
em rituais de “civilizações extra-européias” – para
lembrar, mais uma vez Darcy Ribeiro –, nos sacrifícios e nos pactos de fraternidade. Em muitas culturas & civilizações o sangue é a origem de todos os
seres-minerais, vegetais, animais. No candomblé,
por exemplo, religião de matriz africana com forte
presença em todo o Brasil, os elementos portadores do axé agrupam-se em três categorias: sangue
vermelho, compreendendo o sangue humano ou animal, o azeite e o mel (sangue de frutas e flores), o
cobre, o bronze; sangue branco, compreendendo a
água, o sêmen, a saliva, as secreções, o plasma, a
seiva, o sal, o giz, a prata, o chumbo; e o sangue preto, compreendendo as cinzas, o sumo escuro das
plantas, o carvão, o ferro. Dessa simbologia do sangue vermelho, branco e preto (o amarelo é considerado uma nuança do vermelho, assim como o azul
e o verde são nuanças do preto) é que se constitui o
aiyé e o òrun, o mundo e o além.14 Nas referências
culturais africanas, assim como nas culturas tradicionais, não há separação entre este e o outro mundo, ou dito de outra forma, não há oposição entre o
55
Coleção Convite ao pensar
sagrado e o profano, assim como não há distinção
entre natureza e cultura, como explica o professor
Muniz Sodré:
A “natureza” só existe para o “civilizado”. Para as
culturas tradicionais, não existe o “natural”, tudo é
ritualisticamente simbólico, tudo se submete às obrigações da regra. Ser enfeitiçado, seduzido ou encantado é ser vertiginosa e ritualísticamente absorvido
por um Destino; é deixar de ser sujeito de uma consciência, de uma razão, de uma verdade fadada à
transparência.15
No Brasil, os povos indígenas – zeladores de
tradições que mudam a todo instante, e mudam
sempre para permanecerem verdadeiras – ainda
que expropriados na dimensão material de suas
culturas, transfiguram-se, transmudam-se, lançando mão de sofisticados modos de negociação, com
outros grupos étnicos daqui e d’acolá, resistindo
ora em bloco, ora em diáspora, nestes cinco séculos de contato.16 É interessante ressaltar que Frei
Vicente do Salvador, nosso primeiro historiador,
segundo Laura de Mello e Souza, considerou como
trabalho do diabo o esquecimento do nome dado
por Pedro Álvares Cabral à terra – Santa/Vera Cruz
– substituído pelo de Brasil. E, para explicar tal
designação decorrente da exploração do vermelho
pau-brasil, seu texto remete ao combate entre o céu
e o inferno, entre a luz e a treva, determinando o
permitido e o proibido.
Na primeira leitura cinematográfica do romance de
Stoker, no Nosferatu realizado em 1922 por Friedrich
Murnau, a fragilidade de Max Schreck, no papel do
Conde Orlock, serve ao propósito do cineasta de
projetar a própria homossexualidade na imagem do
vampiro. Tal como o morto-vivo, condenado a viver na sombra, o homossexual não pode [sic] mostrar seu desejo à luz do dia, privado da felicidade
cotidiana, exclusiva dos casais heterossexuais. Tanto
56
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
o vampiro quanto o homossexual representam uma
ameaça fatal às instituições fundamentais da civilização: daí sua vinculação com a morte. Werner Herzog manteve o caráter homossexual ou bissexual do
vampiro em Nosferatu, encarnado por Klaus Kinski.17
Na dialética do bem e do mal, este costuma
ser visto como hereditário. O vampiro, como outras criaturas do mal, ainda que escolha suas vítimas, parceiros ou sucessores, sofre “de um mal
hereditário, que se transmite justamente pela mordida que inocula o sangue saudável com uma doença
infecto-contagiosa”.18
NEM BEM NEM MAL
A narrativa de Bram Stoker opõe deus(es) e
diabo(s) – ou dito de outro modo, polariza o mundo anglo-saxão e o mundo eslavo – e assim registra o estranhamento do encontro entre diferentes,
tal como também se deu durante a colonização, sem
sombra de dúvida um processo vampiresco.
Os habitantes das terras longínquas que os europeus
acreditavam serem fantásticas constituíram uma
outra humanidade, fantástica também, e monstruosa. Conforme ocorreram as grandes descobertas,
foram elas migrando da Índia à Etiópia, à Escandinávia, e finalmente à América. No mundo precário
do homem medieval, surgia a necessidade de nomear e encarnar o desconhecido a fim de manter o
medo nos limites do suportável: monstros descritos
pela religião (Satã), monstros descritos pelo bestiário (unicórnio, dragão, formiga-leão, sereias etc.),
monstros humanos individuais (aleijados, tarados)
e monstros que habitavam os confins da Terra, parecendo-se com homens normais (ou seja, europeus
do oeste) mas trazendo traços monstruosos hereditários.[...]. Apesar de disseminado no cotidiano, o monstro tenderia, a partir do século XV, a se demonizar,
instalado-se de um só lado do mundo, pactuando
com o diabo, desarmonizando-se.19
57
Coleção Convite ao pensar
O escritor irlandês Bram Stoker (1847-1912) –
reverte o processo colocando o monstro no centro
da Europa, e esse guardião do tesouro da imortalidade encontra, segundo Luiz Nazário, outros referenciais históricos na aristocracia decadente: Gilles
de Rais, que violou e torturou cerca de 300 crianças; a condessa Elizabeth Bathory, que matou 650
virgens para banhar-se em seu sangue e o Marquês
de Sade, que se envolveu com torturas e assassinatos. Bárbara Belford, que escreveu uma biografia de Bram Stoker, sugere que o grande ator do
Lyceum Theatre de Londres, Henry Irving – “que
arrebatou e absorveu” Stoker – foi o verdadeiro
modelo para o Drácula.
Os vampiros da literatura e do cinema são quase
sempre aristocratas, nobres, condes, condessas, marquesas, personagens principescas. Eternizando-se
através do sangue alheio, sobrevivendo em função
de outras vidas, o vampiro é um parasita que encarna, no imaginário burguês, a classe decadente dos
nobres.[...] Os nobres são “mortos-vivos” que sobrevivem à custa do sangue alheio. Nessa projeção,
o burguês preserva sua boa consciência: suga o sangue dos trabalhadores, mas é o nobre quem se encontra pintado de vampiro, porque nada produz.20
As personagens principais são inglesas, mas há
um americano do Texas, um médico holandês e o estranho Conde. A condição de estrangeiro de Drácula
é explícita, mas em Londres ele pretende manter seu
status através da compra de várias propriedades: “Já
fui patrão por tanto tempo que prefiro continuar sendo patrão...ou ao menos que ninguém se arvore com
poderes de patrão sobre o que eu sou”; e complementa, numa postura etnocêntrica, muito próxima à
dos britânicos: “Nós, os nobres transilvânicos, não
gostamos de que as nossas carcaças sejam sepultadas na vala comum, entre os demais mortais”, ou
ainda, “o que valem os peões sem o seu rei?” Bram
58
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
Stoker nos apresenta as personagens através dos diários e cartas por elas escritas ou gravadas, e no seu
texto O Conde – “que nem dormia, nem estava morto“ – vai se construindo e se desconstruindo aos olhos
do leitor: de “Rei-Vampiro ao primitivo pó”, de poderoso sedutor a “delinqüente qualificado como criminoso típico”, pela análise racista de Nordau e Lombroso.
Mais sofisticada é a visão do vampirismo como
metáfora do totalitarismo: de fato, o vampiro transforma a natureza humana e funda uma nova comunidade, num tribalismo perverso onde todos são
iguais entre si pela dependência do sangue.[...] De
qualquer ponto de vista, o vampirismo é a sublimação fantástica da sede de poder, expressa na imortalidade da condição de morto-vivo.21
A ambigüidade da personagem principal do
romance – ao mesmo tempo morto e imortal – torna
o vampiro eterno e atual. Numa leitura psicológica
do mito, o vampirismo associa-se ao homoerotismo. Muitos leitores, entretanto, “atribuem ao vampiro um caráter lúbrico e enérgico, fazendo dele um
Dom Juan insaciável (a dentada no pescoço e a sucção da jugular sendo sua forma de coito e orgasmo)”.
Mas, para o cantor e compositor Jorge Mautner, “o
vampiro é o pilar freudiano da bissexualidade”.22 É
o próprio compositor quem afirma:
Os vampiros são às vezes bons, e às vezes maus. E
às vezes bons e maus! Os vampiros segundo alguns
são seres extraterrestres que viajam em discos voadores invisíveis. Segundo outros, os vampiros são
antigos seres humanos sábios, espécie de mandarins-gurus que obtiveram grandes e eficazes resultados quanto à longevidade, atingindo assim a vida
eterna, velha meta dos taoístas e de vários outros
magos tanto do Oriente quanto do Ocidente.23
Já Nelson Liano Jr., que dividiu com o bruxo
mediático Paulo Coelho a primeira versão, publicada
em 1986, do Manual Prático do Vampirismo, afirma:
59
Coleção Convite ao pensar
A razão filosófica greco-romana impulsionou o desenvolvimento tecno-social do ocidente sempre
com base numa crença oficial capaz de determinar o bem e o mal. Por isso, aquilo que transcende a racionalidade, se torna um atraente caminho
em busca do incansável, capaz de libertar o espírito do peso dos dogmas preestabelecidos. As pessoas precisam criar mitos, sejam eles ficcionais ou
reais, para se refletirem dentro de sua própria solidão, e às vezes acabam criando monstros para
ocuparem os espaços vazios da imaginação. E o
vampiro é essa fera que habita os corações daqueles que preferem uma solução narcísica de existência.[...] O escritor Bram Stoker, criador de
Drácula, certamente era um grande admirador de
Nietzche, pois a sua personagem possui todas as
características do super-homem niilista.24
Aqui, o mito de Drácula parece aproximar-se
do herói épico dos camponeses romenos. (Ou seria privilegiar o mito do Oriente um dia perdido?
De novo, outra canção de Gilberto Gil “2001: se
oriente rapaz, pela constelação do Cruzeiro do
Sul”). O mito explica, então, a punição de ter transgredido a morte, que será negada tanto no mito da
reencarnação, como no mito da ressurreição. Para
os entendidos, o tema do vampiro é “cult” sobretudo pelo que chamei de se(x)sensualidade.
O medo está associado diretamente ao erótico. Um
condenado à morte, no momento de ser executado
tem ereção capaz de levá-lo ao orgasmo. Por todas
essas associações, os filmes de vampiro se tornaram
cult-movies em todas as grandes cidades do mundo.
São momentos de suspense, terror, pânico, humor e
sobretudo de sensualidade que vão se sucedendo
na tela, tirando o fôlego do espectador.[...] Essa constante possibilidade de transgressão torna o vampiro atraente. [...] O vampiro beija a vítima somente
depois de seduzi-la, seja homem ou mulher.25
E se “o vampiro pode satisfazer-se tanto em
homens como em mulheres, numa luxúria que
60
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
contamina as vítimas, sua verdadeira natureza é bissexual”:
A conexão entre a sucção do sangue e o ato sexual é
estabelecida claramente na passagem do Drácula de
Stoker em que Lucy, vampirizada, perde seu caráter virginal, aparecendo aos heróis obscena e repugnante.[...] Durante o ato da penetração da estaca, a
noiva vampirizada assume uma máscara de lascívia obscena – que caracterizará todas as vamps –
confirmando a pecha maldita que a tradição religiosa atribui à sexualidade feminina.26
Para os leigos o vampiro não beija: agarra e morde! “O medo que sentimos diante do estranho”, segundo Luiz Nazário, “tem sua origem no medo de
ser agarrado [...] pois o agarramento – das brincadeiras de pega-pega aos estupros – contém uma enorme carga de perversidade”. O vampiro é opaco e não
se refrata, não se deixa refletir no espelho, mas conhece o seu poder: “as moças que vocês amam já são
minhas. E, através delas, também vocês virão a ser
meus...”, ameaça a personagem do romance.
O Drácula descrito por Bram Stoker, peludo e de
lábios muito vermelhos, exala um cheiro horrível;
deixa as pessoas abobalhadas; rouba a beleza e a
força alheias; cresce e encolhe; dorme de dia e acorda à noite, quando se ergue excitado e rijo do ataúde, subindo pelas paredes. Como o membro viril está
preso ao testículo, o vampiro está ao caixão, que tem
de carregar por toda parte: a terra natal onde repousa
é sua potência sexual, e a capa preta que adotou no
cinema remete ao prepúcio. Esse falo que o vampiro representa é essencialmente mau, perverso, violentador, viciando os que o experimentam: Drácula
não penetra senão convidado mas, depois que penetra, não precisa mais de convite. O fato do espelho não refletir sua imagem liga-se à idéia de que o
falo é a parte secreta do homem, que não se exibe
publicamente. E as receitas para liquidar o vampiro
reafirmam o simbolismo: o sol, a água corrente, o
alho e as coisas sagradas o amolecem, mas ele só
61
Coleção Convite ao pensar
desaparece mediante um ritual simbólico de castração – fulminado a bala benta, com uma estaca cravada no coração ou tendo a cabeça cortada.27
No imaginário do século XIX, o vampiro representa a “promiscuidade e a coleta contra os valores
da família e do trabalho” e, portanto, deve ser destruído pela religião, através da cruz e água benta;
pela ciência, com o emprego do sol, da água corrente e do alho, mas sua destruição depende, também,
do emprego da força, através da bala de prata, da
estaca cravada no coração e do corte da cabeça.
No século XX a se(x)sensualidade explícita do
Drácula de Bram Stoker foi disfarçada pelo moralismo da adaptação teatral, realizada por Hamilton Deane, com grande sucesso na Inglaterra, em
1926. Na Broadway, adaptada por John Baldeston,
em 1927, o sucesso foi ainda maior com o ator húngaro Bela Lugosi personificando Drácula. Nos anos
30, a peça foi readaptada para o cinema e o vampiro recebeu o “look” de galã de Hollywood: a capa
preta, o gel nos cabelos, o comportamento heterossexual. No final dos anos 50, o ator Christopher
Lee consagrou-se no papel de Drácula, numa série
de filmes que comprovam o fascínio exercido pelo
mito do vilão que se tornou herói, no universo em
expansão da contracultura.28
Suas ligações com a morte foram esquecidas e seu
erotismo perverso difundiu-se na realidade. Ao familiarizar-se com o público, ao transformar-se em
“tipo”, o vampiro tornou-se o queridinho das mulheres.[...] A relação de sedução exercida por Mickey
Rourke sobre Kim Basinger, em 9 ½ Weeks, de Adrian
Lyne, conserva fortes traços de vampirismo incorporado à vida afetiva dos casais modernos.[...] Para
os produtores desses filmes, Drácula é “o último
herói romântico”. Sintomático que Édipo reivindique, na crise mundial da representação, um símbolo da bissexualidade para revalidar o romantismo
62
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
maquiavélico que, por um lado, exalta a mulher, trata-a como uma dama e, por outro, dita-lhe ordens e
chupa-lhe o sangue.[...] Nas novelas de Anne Rice,
vampiros concedem entrevistas, vão a concertos de
rock, andam de moto com walkman nos ouvidos,
montam peças de teatro sobre vampiros.29
No cinema, cada vez mais, percebe-se a aliança entre perversão e consumismo, mesmo nas belas e premiadas imagens do “Drácula de Bram
Stoker”, dirigido por Francis Ford Coppola, com
figurinos e maquilagem inspirados em Ernest
Klint. Em “Entrevista com o Vampiro” – grande
sucesso de bilheteria em todo o mundo – apesar
da perspectiva original, pois o diretor apresenta o
mundo na ótica dos vampiros, permanecem a perversão e a maldade. A leitura de Roman Polanski –
“perdoe-me, mas seus dentes estão em meu pescoço” – e também a de Mel Brooks na linha da comédia, ou a de John Kandis, criando uma “vampira
politicamente correta, que só se alimenta do sangue de criminosos”, assim como inúmeros outros
filmes que atraem multidões, indicam que o vampirismo não mais se limita às páginas impressas
dos livros ou às imagens das telas de cinema. Em
Nova York, no Queens, funciona o Centro de Pesquisas sobre Vampiros, assim como na Transilvânia, em 1995, os adeptos do vampirismo realizaram
o I Congresso Mundial sobre Drácula, com apoio
da Sociedade Transilvana de Drácula.30 No site sobre Drácula na Internet lê-se que o vampiro é indestrutível, e que sempre ressuscita.
MET
AMORFOSES DO VAMPIRO
ETAMORFOSES
A monstruosidade e o terrorismo fazem parte
da História materializando-se nas guerras, nos regimes políticos totalitários, no racismo, no sexismo
e, sobretudo, no xenofobismo. Nas ciências, nas
63
Coleção Convite ao pensar
artes, na própria filosofia, a intolerância, mesmo que
disfarçada com elegância, manifesta-se no cotidiano, banalizando a vida. A cultura contemporânea
adota um esquema fractal, segundo Jean Baudrillard, no qual “o bem já não é perpendicular ao mal,
nada mais se coloca em abcissas e ordenadas”.31
Já não há modo fatal de desaparecimento, mas sim
um modo fractal de dispersão. Nada mais se reflete
de fato, nem em espelho, nem em abismo (que nada
mais é que o desdobramento infinito da consciência).
A lógica da dispersão viral das redes já não é a do
valor nem a da equivalência.[...] Depois do estádio
natural, do estádio mercantil, do estádio estrutural,
eis que chega o estádio fractal do valor.[...] Já não há
nenhuma referência: o valor irradia em todas as direções, em todos os interstícios, sem referência ao que
quer que seja, por pura contiguidade.[...] Em rigor, já
não se deveria falar de valor, já que essa espécie de
multiplicação e de reação em cadeia torna impossível qualquer avaliação.32
A globalização, anulando espaços e tempos,
colocou no centro da cena a diferença, que a antropologia contemporânea elegeu como um de seus
temas principais. Entretanto, apesar do conceito de
multiculturalismo apresentar uma mensagem de
tolerância, nas sociedades imperialistas permanece, manifesto ou latente, o horror ao diferente, ao
estranho, ao estrangeiro, sob variadas formas de
discriminação. O cinema americano é pródigo em
exemplos onde as forças do mal são associadas aos
que vêm de um outro planeta, de um outro país,
de uma outra cultura, enfim, de um outro mundo.
A despeito dos avanços dos movimentos dos direitos
civis e da crescente presença de atores, diretores e
produtores negros no cinema americano, a aversão
ao Outro agora atinge o negro numa camada profunda da psique coletiva. Mesmo quando a mensagem
explícita é o anti-racismo, o negro é associado a uma
forma monstruosa de vida. [...] De fato, não só os
64
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
negros passaram a ser sistematicamente discriminados nos filmes de Hollywood, mas o estrangeiro em
geral, sobretudo o imigrante clandestino, chamado
de “Alien” pela polícia americana.[...] Os estrangeiros são agora equiparados a monstros.[...] Os maus
são pessoas de outras culturas, cujo extermínio é legitimado pelo fato de que entre os combatentes, encontram-se elementos “bons” dessas culturas, reafirmando
a humanidade da sociedade multicultural, que só aniquila os inassimiláveis.33
Charles Baudelaire (1821-1867), a quem devemos o conceito de modernidade, afirmou que “os
encantos do horror só inebriam os fortes”.34 Na leitura do filósofo Walter Benjamin, “os poetas encontraram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio
lixo o seu assunto heróico”. Em As flores do mal,
publicado com escândalo em 1857 e hoje considerado uma obra-prima, Walter Benjamin percebeu
a noção mais livre e compreensiva que o poeta tinha sobre os deserdados.
Há uma constelação especial de circunstâncias onde,
também no ser humano, se reúnem grandeza e indolência. Ela governa a existência de Baudelaire. Ele
a decifrou, denominando-a “a modernidade”.[...]
Como não possuía nenhuma convicção, estava sempre assumindo novos personagens. Flâneur, apache,
dândi e trapeiro, não passavam de papéis entre outros. Pois o herói moderno não é herói – apenas representa o papel de herói. A modernidade heróica
se revela como uma tragédia onde o papel do herói
não está disponível.35
Mas, segundo Walter Benjamin, o satanismo de
Baudelaire não deve ser tomado demasiadamente
a sério, pois o poeta descreve como, ao anoitecer
“demônios insepultos no ócio/acordam do estupor,
como homens de negócio”.36 A imagem baudelaireana parece ter influenciado Tim Burton, diretor da
bem-sucedida série de filmes sobre Batman, que
declarou: “Gosto desta metáfora que vai do mundo
65
Coleção Convite ao pensar
dos negócios ao mundo dos vampiros.” Assim,
também o Drácula, de Bram Stoker não deve ser
levado ao pé da letra, sobretudo se considerarmos
que as imagens de monstros devoradores, em todas as civilizações, simbolizam a necessidade de
uma regeneração.
O que pretendi acentuar nesta leitura foi que
as antigas assim como as novas máscaras do vampiro e sua sede de sangue (um exagero metafórico
do desejo sexual) foram deslocadas. Já se edita
Drácula para crianças, como a série com vários títulos sobre “O pequeno vampiro”, da escritora alemã Angela Sommer-Botenburg, traduzida em 19
línguas, inclusive para o português, pela editora
Martins Fontes, e exibida com sucesso pela televisão de vários países europeus. Quando a tortura e
a violência invadem os palcos e as telas, com apoio
da tecnologia dos efeitos visuais; quando humanos e monstros se confundem, o Drácula, de Bram
Stoker, não passa de um programa infanto-juvenil, quando comparado ao vampirismo das atuais
condições da vida urbana globalizada, virtual, a
cada minuto mais impessoal e desumanizada.
Charles Baudelaire, considerado “o mais misterioso de todos os poetas da literatura ocidental”,
cujo poema “O vampiro” foi prólogo desta leitura
de Drácula, parece-me bem mais sedutor e o retomo, como epílogo, no poema:
As metamorfoses do vampiro37
E no entanto a mulher, com lábios de framboesa,
Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa,
E o seio a comprimir sob o aço do espartilho,
Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho:
– “A boca úmida eu tenho e trago em mim a ciência
De no fundo de um leito afogar a consciência.
As lágrimas eu seco em meus seios triunfantes,
E os velhos faço rir com o riso dos infantes.
66
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
Sou como, a quem me vê sem véus a imagem nua,
As estrelas, o sol, o firmamento e a lua!
Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios,
Quando um homem sufoco à borda de meus lábios,
Ou quando o seio oferto ao dente que o mordisca,
Ingênua ou libertina, apática ou arisca,
Que sobre tais coxins macios e envolventes
Perder-se-iam por mimos anjos impotentes!”
Quando após me sugar dos ossos a medula,
Para ela me voltei lânguido e sem gula
À procura de um beijo, uma outra eu vi então
Em cujo ventre o pus se unia à podridão
Os dois olhos fechei em trêmula agonia,
E ao reabri-los depois, à plena luz do dia,
A meu lado, em lugar do manequim altivo,
No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo,
Pendiam do esqueleto uns farrapos poeirentos,
Cujo grito lembrava a voz dos cata-ventos
Ou de uma tabuleta à ponta de uma lança,
Que nas noites de inverno ao vento se balança.
NOTAS
1
2
BAUDELAIRE. As flores do mal.
NAZÁRIO. Da natureza dos monstros.
3
Idem.
4
Idem.
5
Idem.
6
Idem.
7
À historiadora Elizabeth Salgado de Souza agradeço o material
sobre os ciganos.
8
STOKER. Drácula. Todas as citações desta obra estão em itálico,
sem referência de páginas para estimular o suspense.
9
FONSECA. Enterrem-me em pé: a longa estrada dos ciganos. Grifos da autora.
10
RIBEIRO. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil.
11
Em 14 de dezembro de 1890, Rui Barbosa instituiu comissão destinada a arrecadar e queimar, tendo em vista sua destruição imediata, “todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições
do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula
de escravos, ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos
67
Coleção Convite ao pensar
sexagenários”, considerando que tais documentos representavam “vestígios nos arquivos públicos da administração dessa
nódoa social”. Ver CAMPOLINA et al. Escravidão em Minas
Gerais.
12
BOSI. Dialética da colonização..
13
CHEVALIER et al. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números.
14
Ver SANTOS. Os nagô e a morte: pàde, asèsè e o culto Égun na
Bahia. Quanto à simbologia das cores, remeto ao dicionário citado na nota anterior.
15
SODRÉ. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil.
As aspas são do autor, os grifos são meus.
16
KRENAK. Novas exigências globais e realidades indígenas regionais.
17
NAZÁRIO. Da natureza dos monstros.
18
Idem.
19
SOUZA. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial.
20
NAZÁRIO. Da natureza dos monstros.
21
Idem.
22
Jorge Mautner compôs e gravou a canção Vampiro, sucesso na
interpretação de Caetano Veloso, no disco Cinema Transcendental, gravado em 1979.
23
MAUTNER. Vampiros.
24
LIANO JR. Manual prático do vampirismo.
25
Idem.
26
Idem.
27
Idem.
28
Idem.
29
Idem.
30
Idem.
31
BAUDRILLARD. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos.
32
Idem.
33
NAZÁRIO Da natureza dos monstros.
34
BAUDELAIRE. A modernidade de Baudelaire.
35
BENJAMIN. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo.
36
Idem.
37
BAUDELAIRE. As flores do mal.
68
Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
BAUDELAIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988.
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os
fenômenos extremos. São Paulo: Papirus, 1990.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas, v III. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.
CAMPOLINA, Alda Maria Palhares et al. Escravidão em Minas
Gerais. Belo Horizonte: SEC/APM, 1988. (Cadernos do Arquivo 1).
CHEVALIER, Jean et al. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
FONSECA, Isabel. Enterrem-me em pé: a longa estrada dos ciganos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
KRENAK, Ailton. “Novas exigências globais e realidades indígenas regionais”. In: BAY: A educação escolar indígena em
Minas Gerais. Belo Horizonte: SEEMG, 1998.
LIANO JR., Nelson. Manual prático do vampirismo. Rio de Janeiro: Eco, 1990.
MAUTNER, Jorge. Vampiros. In: LIANO JR., Nelson. Manual
prático do vampirismo. Rio de Janeiro: Eco, 1990.
NAZÁRIO, Luiz. Da natureza dos monstros. São Paulo: Arte &
Ciência, 1998.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: pàde, asèsè e o
culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986.
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura
no Brasil. Rio de Janeiro: CODECRI, 1983.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
STOKER, Bram. Drácula. Porto Alegre: L&PM, 1996.
69
Coleção Convite ao pensar
70
SUBMISSÃO E REVOLTA EM MÁRIO E O
MÁGICO, DE THOMAS MANN
Léa Souki
Por que, entre a vasta obra de Thomas Mann,
escolhi a novela Mário e o mágico como um “Convite ao pensar”?
Creio que, nessa pequena novela, o autor trata
de uma noção importante e muito atual, qual seja, a
capacidade de certos indivíduos levarem multidões
à obediência, sem o uso da força física, mas pela persuasão. Como contraponto, Mann nos revela ainda
a possibilidade da revolta contra o tirano.
Antes, devo ressaltar que este texto não pretende ser uma análise literária da novela de Mann, mas
uma tentativa de motivar e instigar à reflexão através de uma obra cujo tema trata da teoria política e
da ética. Para tanto, concentrei meu objetivo em três
focos. No primeiro, tecerei algumas considerações
sobre aspectos da novela no seu momento histórico; no segundo, fornecerei algumas sucintas informações biográficas sobre o autor, assim como de
circunstâncias históricas da Alemanha, no período
da ascensão do fascismo; a última parte será dedicada à conceitualização da obediência, baseada na
crença em qualidades extracotidianas do líder.
Thomas Mann entende a composição artística
como uma colocação das coisas no lugar, ao mesmo
tempo que uma elucidação sobre acontecimentos
71
Coleção Convite ao pensar
vividos. Conforme diz o próprio autor em Esboço
de uma vida, ele não havia inventado nada dessa
história. Com exceção do final, tudo já lhe havia
acontecido um ano antes, em um balneário.1 Muito atento ao que acontecia à sua volta, Mann tenta
mostrar, no cotidiano dos comportamentos individuais, a sinalização dos ingredientes de uma liderança autoritária.
Nesse balneário, havia um garçom, um mágico, e o hoteleiro, assim como em Morte em Veneza,
sua outra novela italiana, havia o “viajante no cemitério de Munique”, o velho bonito, o gondoleiro suspeito, Tadzio e sua família, a cólera. Desse
modo, o artista põe as coisas no lugar e a composição serve como um instrumento de interpretação.
Nessa obra, Mann descreve experiências que
ele teve em comum com sua nação, transformando-as em arte. O autor narra a história de um malestar progressivo, inevitável, que se agrava até
tornar-se intolerável. Os acontecimentos vão em
um crescendo, percebem-se os sinais de uma catástrofe iminente e nada se pode fazer para impedi-la. O leitor sente alívio quando o tiro ecoa da
platéia e o pacato garçom salva-se da humilhação
e se investe de dignidade.
Assim começa a história:
Torre di Venere me deixou a lembrança de uma atmosfera desagradável. Havia no ar, desde o começo,
uma contrariedade, uma irritação, uma superexcitação. E depois, para terminar, houve o choque com
este terrível Cipolla, em quem toda a malignidade
do ambiente parecia se encarnar e se concentrar perigosamente, figura nefasta e muito impressionante
para os olhos humanos. O final foi medonho (pareceu-nos, depois de tudo, que ele já estava determinado de antemão pela natureza das coisas) e a infelicidade
quis ainda que as crianças assistissem a ele. Foi uma
72
Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki
triste situação, bastante chocante em si, que nasceu
de um mal-entendido causado pelas enganadoras
promessas desse curioso homem. Eles não compreenderam, graças a Deus, onde terminava o espetáculo e começava a catástrofe, e nós as deixamos na
doce ilusão de que tudo tinha sido teatro.2
A história de Mário e o mágico é uma reflexão
sobre a condição de liberdade relativa que a nós,
humanos, é concedida, e sobre certos perigos que
ameaçam nossas limitadas autonomias. Cipolla é
um hipnotizador que se passa por mágico, e que,
em suas sessões públicas, é capaz de levar um homem, rapidamente, a se comportar como um fantoche. Caberia aqui perguntar: a alusão seria a Hitler
ou a Mussolini? Nas palavras de Mann, Cipolla era
“o moderno domador de multidões”, “homem de
vontade e ação cuja astúcia e energia estavam inteiramente a serviço do mal”. Seu bigodinho lustrado
e sua capa evocavam uma certa teatralidade, ao
mesmo tempo rancorosa e sem humor.
Inicialmente, em 1932, Mann teria negado o conteúdo político dessa novela, preferindo colocá-la no
plano da ética. Mais tarde, porém, em 1948, no texto
intitulado Dezesseis anos, ele fala de “uma história com
fortes ramificações políticas, que se inclina em segredo sobre a psicologia do fascismo e também sobre a da ‘liberdade’, com sua doutrina da boa
vontade, que a coloca num estado de inferioridade
diante do robusto querer do seu adversário”.3
Muito se tem especulado sobre o engajamento
político de Mann. Creio que o mais apropriado seria considerá-lo como algo que se foi configurando ao longo de sua vida, ao mesmo tempo em que
procurava preservar sua liberdade como intelectual. Sabe-se da simpatia que Mann nutriu pelo
nacionalismo na mocidade. Aliás, o mesmo ocorreu com grande parte da intelectualidade alemã,
73
Coleção Convite ao pensar
mesmo porque, naquela época, o nacionalismo não
estava restrito aos pobres de espírito, uma vez que
ele não havia mostrado sua virulência. Contudo, a
partir da década de 20, Mann já se posicionava publicamente, não reconhecendo no nazismo as características do sentimento de ser alemão que ele
alimentava. Em janeiro de 1925, quando revia seu
discurso Goethe e Tolstoi, escreveu: “Não me proponho a tratar do fascismo alemão, nem das circunstâncias inteiramente compreensíveis que lhe
deram origem... É uma religião popular pagã, um
culto a Wotan: é para ser ofensivo – e pretendo ser
ofensivo – uma romântica barbárie”.4
Para melhor compreender essa dimensão de
sua vida e obra, é pertinente considerar alguns aspectos de sua biografia, bem como do momento
de ascensão do fascismo alemão.
Mann era filho de um próspero comerciante e
senador de Lubeck, cidade do norte da Alemanha,
e de uma brasileira, nascida Júlia da Silva Bruhns,
descendente de alemães e portugueses. Tanto ele
como o irmão, Heinrich, em tenra idade, submeteram-se à vontade do pai em torná-los comerciantes. Enquanto o pai vivia, os irmãos tiveram que
entrar como aprendizes em firmas comerciais,
embora a pressão para uma carreira de negócios
fosse muito maior sobre Heinrich do que sobre seu
irmão mais jovem. Contudo, foi Júlia Mann aquela que efetivamente iria marcar sua influência em
toda a família, com seu interesse pela arte e sua
preocupação em criar condições para que os filhos
seguissem uma carreira artística. Quando se enviuvou, ainda jovem, mudou-se para Munique e, aí,
montou um salão para saraus, onde recebia artistas
e escritores. A história dos dois irmãos e suas respectivas obras são marcadas pela presença de Júlia, uma mulher corajosa e determinada.
74
Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki
Em 1898, aos vinte e três anos, Mann publicou
seu primeiro livro de contos, O senhorzinho Friedeman.
Em 1901, lançaria o famoso romance Buddenbrook,
história de três gerações de uma família de Lubeck,
livro muito influenciado pela literatura francesa, especialmente pelo naturalismo de Zola. Mário e o mágico foi escrito em sua casa de praia no mar Báltico,
em 1929, e publicado em 1930. Deve-se observar que,
para alguns, o livro pareceu uma estranha e profética história de feitiçaria. A novela nasceu em um dos
intervalos do primeiro volume de José, sua trilogia
bíblica sobre José do Egito, a qual ele só veio a terminar nos anos 50, em seu exílio nos Estados Unidos,
do mesmo modo que Morte em Veneza foi criado enquanto Mann compunha A montanha mágica.
Eis o que disse o próprio autor sobre o seu
método de trabalho: “Habitualmente meus trabalhos narrativos acompanham-se de pequenos brotos sob forma de ensaios. Freqüentemente a
incitação de escrevê-los pode vir de fora, mas no
fundo eles só têm a finalidade de fortificar-me no
meu propósito de narrador”.
Um outro dado que merece registro na biografia de Mann é que, pouco depois de ter começado
a escrever José, em 1926, ele receberia o Prêmio
Nobel, em 1929. A respeito do prêmio, Mann escreveu a André Gide:
O mais divertido de tudo é que o crítico e professor
de literatura Book, de Estocolmo, que costumeiramente tem uma influência decisiva na escolha do
ganhador do Prêmio Nobel, proclamou publicamente a monstruosidade artística do livro e disse que eu
estava recebendo o prêmio exclusivamente, ou pelo
menos em grande parte, por causa do meu antigo
romance Os Buddenbrook.5
Já em Esboço de uma vida, Mann também fala
do “documento lindamente executado que o rei
75
Coleção Convite ao pensar
Gustavo me deu, de que eu devo o prêmio principalmente à estima que os povos nórdicos têm pelo meu
romance juvenil sobre a vida familiar em Lubeck”.6
Nessa época, diante das homenagens que recebia, Mann tinha cada vez mais que lidar com o
crescimento do nacionalismo na Alemanha. O resultado das eleições de 1930 e o engajamento de
intelectuais, artistas e filósofos na causa nacionalista chegavam ao seu círculo mais íntimo. Parecia
o sinal dos tempos. Seu compadre e confidente,
Ernest Bertam, professor em Colônia, se aproximara definitivamente do nacionalismo, e a ele se seguiram outros. Sobre esse período, bem como sobre
seus compromissos com a República de Weimar,
Mann escreveu, em Dezesseis anos:
Devemos pensar que, na época que comecei José,
as tensões políticas interiores do pós-guerra na Alemanha já haviam atingido seu apogeu, e nesses
anos de 1920, por causa de minhas obras políticas,
eu realizei minha obra artística sob a pressão, as
perturbações morais e o peso do ódio nacional. A
situação honrosa oficial que a República me reconhecia não mudava nada, e me obrigava a todas as
espécies de discursos solenes. Os artigos, conferências, manifestações oficiais, adjurações políticas,
prosseguiam paralelamente.
Sua indignação e preocupação prosseguiam
em um crescendo de compromissos e declarações
públicas que, por fim, o indispuseram com os nazistas. As posições de Mann, na verdade, se tornaram bastante divulgadas. Os amigos e muitos
admiradores literários se inquietavam por suas declarações políticas e viam nesse engajamento uma
investida na arena política, indigna de um escritor
de sua estatura. Por outro lado, deve-se lembrar
de que tal engajamento foi uma reação à sua impotência criativa anterior à guerra, uma reação que
76
Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki
provavelmente iria fortalecê-lo. Em síntese, o desejo de “participar” foi um sinal de coragem que,
certamente, o ajudou a sobreviver à inveja, à privação e aos constrangimentos que enfrentaria até
a morte. Pode-se afirmar que nem Hitler nem o
macarthismo destruíram a resistência construtiva
do gênio que sobreviveu ao Estado terrorista alemão e, posteriormente, à desilusão em seu exílio
nos Estados Unidos. Neste último caso, não se pode
esquecer do fato de que Mann sentira-se incomodado com a superficialidade e a má recepção de
certos críticos norte-americanos em relação a José.
De volta ao contexto no qual foi escrito Mário e
o mágico, em 30 de janeiro de 1933, Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha por Hindemburg. Três
semanas depois, Heinrich e Thomas estavam no
exílio. Mas não foram as confissões públicas de
Mann e sua adesão aos social-democratas que lhe
valeram a expulsão da Alemanha e, sim, a conferência por ele pronunciada em comemoração ao
cinqüentenário da morte de Richard Wagner. A
conferência provocou a indignação dos mais importantes funcionários, professores e artistas de
Munique. Conforme declaração dos 45 signatários
do protesto, a cidade natal do compositor se indignava por ele (Mann) ter “caluniado nosso grande gênio musical”. Estando fora da Alemanha, pois
viajara para ler a conferência em Amsterdã, Bruxelas e Paris, Mann planejava seguir de férias para
a Suíça, junto com sua mulher, Katia. Foi aí que
recebeu a notícia do incêndio do Reichstag e da
vitória de Hitler, com 288 cadeiras, na eleição geral de 5 de março.
Os signatários do protesto, que esperavam seu
regresso para agir, provavelmente se frustraram
com a decisão de Mann de não voltar à Alemanha.
77
Coleção Convite ao pensar
Alguns dias antes, seu irmão, Heinrich, havia se
exilado em Paris. De Munique, seus filhos, Erika e
Klaus, aconselharam os pais a não voltarem. É que
a casa da família havia sido ocupada pelo comandante da Casa Parda de Munique, o qual estava
interessado no automóvel do escritor. Erika, a filha mais velha, ainda conseguiu recuperar alguns
escritos do pai.
A vitória nazista nas eleições de 5 de março de
1933 selava o fim de Weimar. Contando com maioria absoluta, Hitler pôde aprovar o seu “Ato de
Incumbência” no Reichstag, o que dava a seu gabinete o poder de legislar sem o referendo do parlamento. Dois meses depois, todos os outros
partidos políticos, inclusive os nacionalistas que o
apoiaram, foram fechados. Nos meses seguintes,
Mann adotou uma posição discreta em relação aos
acontecimentos e coube a Heinrich, em Paris, defender a causa do antifacismo alemão. Nas cerimônias de queima de livros montadas em todo o
Reich, em maio de 1933, Mann foi poupado, o mesmo não ocorrendo com Heinrich.
Retornemos agora ao tema de Mário e o mágico,
para, em seguida, tentarmos esclarecer certos aspectos da liderança carismática. Cippola, o mágico, é um domador de multidões, mas é também
uma “cebola”, formado de camadas superpostas,
sem nada diferente em seu interior. O mágico tem
uma capacidade teatral e persuasiva de gerar a
submissão. A platéia não se distancia, ao contrário, parece estar hipnotizada. Tanto que ocorre um
intervalo na apresentação do mágico e ninguém
se retira. O próprio autor não explica sua permanência no local:
Antes de qualquer outra coisa, é preciso dizer que
neste momento houve um intervalo e o homem que
78
Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki
nos tinha sob seu domínio retirou-se. Confesso que
temi este ponto de minha história desde o momento em que a comecei. Geralmente não é difícil ler o
pensamento das pessoas, e aqui foi muito fácil. É
claro que vocês irão me perguntar por que não fomos embora finalmente. E sinto-me na obrigação de
ficar devendo uma resposta. Eu mesmo não compreendo e não saberia realmente me justificar.7
As crianças, por exemplo, insistem em permanecer ali, incapazes de distinguir o grotesco do trágico. Há um clima premonitório e, ao mesmo
tempo em que se percebe a manipulação do mágico, não se pode dela escapar, não há como evitá-la.
O fim explosivo e catastrófico está no ar. Em resumo, o autor chega a um balneário com a família e
vários acontecimentos incômodos sugerem que ele
desista e vá embora. Contudo, ele fica, a sensação
é desagradável, mas o prende.
Mann ficou satisfeito quando um crítico disse,
a respeito dessa novela, que ela não tinha nada
contra os italianos. Talvez ele tenha preferido ver
a fera através do espelho e assim preferiu falar dos
“meridionais”:
Ele soube se impor pela palavra. Entre os meridionais, a linguagem é um ingrediente da alegria de
viver, e dão a ela um valor social muito mais importante do que o fazem no norte. Entre os povos do
sul, tem-se em grande honra esse elo nacional, que
é a língua materna.8
Cippola soube se fazer cativar a ponto de gerar obediência e, junto, a perda da dignidade. A
obediência que ele gera é “voluntária”, na medida em que a força física não é usada, não obstante
a persuasão tenha ultrapassado os limites da dignidade. Sobre isto, é esclarecedor o que o autor
fala a respeito da confusão de emoções contida
no espetáculo:
79
Coleção Convite ao pensar
Curioso e cativante, inquietante e doloroso, e também
humilhante. Talvez mais ainda. Essa sala constituía o
ponto de condensação de toda a curiosa singularidade, de toda a insegurança, de toda a tensão de que a
atmosfera de nossa estada em Torre estava carregada.
Esse homem cujo retorno esperávamos parecia encarnar tudo isso. E como não havíamos feito uma “grande” partida, seria ilógico fazer uma “pequena” partida.
Aceitem ou recusem essa explicação. Em todo caso,
não tenho uma melhor.9
Cippola não age sozinho. Mário, o garçom, é
humilhado, revelando sua própria intimidade ao
público, público que, seduzido por Cippola, torna-se seu aliado. Os que percebem a trama não
conseguem sair ou tomar qualquer iniciativa. Não
há ninguém na platéia capaz de escapar à experiência totalitária. Os poucos inquietos ali presentes são
incapazes de tomar qualquer decisão.
Tomemos agora de empréstimo alguns recursos da teoria política. Uma importante reflexão
sobre a obediência remonta a Ettiene La Boettie
(1500), em seu conhecido Discurso da servidão voluntária. Dito de maneira bastante simplificada,
segundo ele as pessoas obedecem por hábito, porque não sabem que podem deixar de fazê-lo; por
sedução, porque os governantes as encantam; e
para amealhar bens, isto é, por interesse. Quatro
séculos mais tarde, Max Weber reelaborou essas três
condições da obediência, baseando-se na construção dos três tipos puros de dominação legítima: tradição, carisma e racionalidade. Essa abordagem é
uma construção teórica, apresentada através do recurso da comparação, e conceituada através de tipos ideais, aqueles que não se encontram em estado
puro na realidade.
Em que medida o esquema teórico dos três tipos de dominação legítima, construído por Weber,
pode ser útil para a compreensão da obediência
80
Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki
da maneira como a estamos tratando aqui, obediência e perda da dignidade? Como já foi sugerido anteriormente, Mário e o mágico é um libelo
contra o fascismo e, especificamente, contra aquele líder carismático que doma e amordaça multidões. No caso de Hitler, não podemos nos esquecer
do caráter legal de sua ascensão – ele chegou ao
poder através de eleições. A coerção estava, naturalmente, embutida. Em sua ascensão prevaleceram
os ingredientes de sedução. O calor do encantamento que ele gerou, politicamente, foi um aval para
sacrifícios futuros. Portanto, não estava escrito na
testa do sedutor de multidões que, por trás do consentimento, viria a coerção, e que, detrás dos interesses coletivos, estavam os interesses particulares,
daí sua força de transformação.
Para compreender melhor esse tipo de relação,
pode nos ser útil a distinção entre consentimento informado e consentimento manipulado. De uma maneira bastante sucinta, considera-se o consentimento
manipulado aquele que ocorre quando as metas, não
sendo coletivas, se apresentam como tal. Portanto,
quem tem controle e influência sobre os outros se
apresenta como portador das metas coletivas do grupo. A manipulação ocorre na medida em que o controlador deverá obscurecer o caráter privado de seus
objetivos, os quais não poderão ser compreendidos.
Assim, o controle e a influência sobre a ação dos outros são exercidos contra a vontade deles ou sem o
seu entendimento. O consentimento informado, ao
contrário, ocorre na situação em que existem metas
coletivas e o consentimento sobre a ação dos outros
se dá através de uma avaliação que pode ser racional
e constatável. Ou seja, pode-se conhecer as razões do
consentimento, portanto, não é necessário haver obscurecimento da consciência ou do que estamos entendendo aqui como manipulação.
81
Coleção Convite ao pensar
De outra parte, vamos tentar entender o carisma, lembrando que o conceito é comparativo, isto
é, comprende-se melhor esse tipo de dominação
comparando-o com os tipos tradicional e racionallegal. Na tradição, obedece-se à pessoa em virtude
do hábito; no carisma, obedece-se à pessoa do líder
em virtude do afeto capaz de gerar a crença em suas
qualidades extracotidianas; na dominação racionallegal, obedece-se não à pessoa, mas ao cargo que
ela ocupa em virtude da disciplina de serviço e baseando-se no critério da competência específica.
Aqui são necessários alguns esclarecimentos.
O senso comum hoje utiliza o termo carisma como
atributo de uma pessoa ou também como puro
charlatanismo. Na teoria de Weber, só é considerada carismática a liderança que faz seguidores. O
charme pessoal, o encanto de um ator, atriz ou apresentador de programa de televisão costumam ser
chamados incorretamente de carisma, pelo menos
do ponto de vista técnico. Outro engano comum
no uso do termo é confundi-lo com demagogia, ou
com o charlatanismo, simplesmente.
De acordo com Weber, o líder carismático pode
ser o grande demagogo, o herói guerreiro e o profeta. No conjunto do seu esquema teórico, o carisma como o “sempre novo” é visto como o tipo de
liderança mais autoritária, mas também a que tem
o maior poder de transformação. Sendo assim, entende-se a razão que levou Weber, ao final da vida,
preocupado com a “jaula de ferro” da racionalidade instrumental, a pensar no surgimento de um
novo profeta como solução para a humanidade.
Com isto, quero dizer que utilizar o conceito
de carisma não seria de todo correto para o caso de
Mário e o mágico, mas também não seria de todo incorreto. A relação desigual, que é capaz de encantar
e gerar formas de obediência as mais devastadoras,
82
Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki
é descrita por Mann tanto no seu aspecto de transformação como de destino inevitável. Além disso, é
magistral a maneira como Mann revela a violência
embutida na sedução do mágico. Cippola é capaz
de fazer um púbico inteiro (quase toda a pequena
cidade estava presente à sessão) crer em suas qualidades extracotidianas e, por isso, gerar um fascínio
que leva à obediência. Obediência que foge aos limites da dignidade. Alguém se humilha sem ser
coagido fisicamente e a submissão é tamanha que
alguns agradecem a oportunidade de vivenciá-la.
Até que um garçom busca recuperar sua dignidade. Mann fala-nos, assim, da capacidade de revolta
contra o tirano:
“Mário volta-se bruscamente, ergue rapidamente o braço, e dois tiros ecoam, entre os aplausos e risos”.
NOTAS
1
Na realidade, foi Erika, filha mais velha do escritor, quem lhe
sugeriu o final explosivo, o que adicionou à novela muito do
seu caráter inquietante.
2
MANN. Mário e o mágico, p.17
3
MANN. Mário e o mágico, p.179.
4
HAMILTON. Os irmãos Mann, p.354.
5
Carta de 20/01/30 - Apud HAMILTON. Os irmãos Mann, p.344.
6
Apud HAMILTON. Os irmãos Mann, p.344.
7
MANN. Mário e o mágico, p.47.
8
MANN. Mário e o mágico, p.35.
9
MANN. Mário e o mágico, p.48.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HAMILTON, N. Os irmãos Mann. São Paulo: Paz e Terra, 1985.
MANN, T. Mário e o mágico. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.
WEBER, M. “Los tres tipos puros de dominácion legítima”. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Eonómica, 1973.
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Coleção Convite ao pensar
84
SOBRE O FILME METRÓPOLIS
Euclides Guimarães
O texto que se segue resulta da transcrição feita sobre a gravação da pequena participação que
tive no programa cultural “Convite ao pensar”,
quando fui convidado para falar sobre o filme Metrópolis, de Fritz Lang. Sobre a transcrição foi feita
uma revisão com vistas a adaptar a fala ao texto,
mas procurei preservar as características da oralidade que, acredito, proporcionam mais fidelidade
à natureza do texto.
Metrópolis é um clássico do cinema alemão dos
anos 20, filme que representa de forma exemplar
um dos momentos mais brilhantes da história da
arte, período do auge do expressionismo. Para facilitar o entendimento do que vou comentar aqui,
devo dizer que minha formação não é de filósofo,
nem de artista ou crítico de cinema, e sim, de sociólogo, de forma que minha análise se volta mais para
o contexto. Digamos que nós, sociólogos, somos um
pouco mais preocupados com fatos, de sorte que
permeio minha participação pela focalização do
momento histórico e teórico em que o filme Metrópolis é realizado. Em outras palavras, interessa-me
mais o contexto que o texto (no caso, o filme).
Organizo minha participação da seguinte forma: numa primeira parte, olho para um momento
85
Coleção Convite ao pensar
da história da cultura e analiso essa matéria de uma
forma mais ligada ao espírito da época. Numa segunda parte, falo sobre Fritz Lang, o autor do filme
Metrópolis, que teve uma vida muito emblemática,
muito representativa do que foi esse período, uma
vida coincidente com as vidas de tantos outros intelectuais que viveram esse conturbado momento,
a primeira metade do século XX. Mais no fim, pretendo fazer alguns comentários sobre o filme, resumidamente, apenas para dar algumas indicações de
como vocês podem olhar para essa obra, que é brilhante, uma obra muito interessante, mas ao mesmo tempo um pouco distante do modo de olhar do
espectador contemporâneo.
Na verdade, trata-se de um filme lançado em
1926, ainda no tempo do cinema mudo, feito com
os recursos do cinema da época, o que nos obriga a
maleabilizar o olhar para poder entender essa obra,
de forma que se possa assistir ao filme um pouco
com os olhos daquele período.
Eu diria que duas décadas foram especialmente importantes para a história da cultura no século
XX, a década de 20 e a década de 60, e que ambas
estão intimamente interligadas. As vanguardas dos
anos 60, em regra, estavam muito inspiradas nas
obras dos anos 20. Normalmente se encontram claras alusões a artistas ou a obras dos anos 20 nas
obras dos anos sessenta. Por exemplo, na Tropicália, Gilberto Gil e Torquato Neto lançam uma música chamada “Geléia geral”, cuja letra encontra-se
repleta de versos do “Manifesto antropofágico”, de
Oswald de Andrade. Nessa mesma década, nasce
um grupo de Rock chamado “The doors”, cujo próprio nome é tirado de um livro de Aldous Huxley
intitulado “The doors of perception”. Uma banda
chamada Black Sabbath inventa um movimento
86
Sobre o filme Metrópolis – Euclides Guimarães
chamado Heavy Metal, e o principal homenageado
é um bruxo do início do século chamado Alister
Krauley. Um outro grupo nos EUA, auto-intitulado
“Os Beatneeks”, aparece nesse cenário chamando
como precursores poetas da virada do século como
Whitman e Thoureau, mas principalmente um escritor dos anos 20, de grande envergadura, talvez o
maior da época, John Fante. Estou dando esses
exemplos apenas para ilustrar o fato de que é incontestável a influência das vanguardas dos anos
20 sobre as dos anos 60. E, de fato, o clima intelectual dos anos 20, momento em que o filme Metrópolis é realizado, caracteriza-se como um dos mais
ousados da história, pois se nos anos 60 havia essa
referência aos anos 20, nesses, o que estava acontecendo era uma coisa muito inovadora. É claro que
essa inovação não foi toda situada nos anos 20, mas,
nas primeiras décadas do século, como acontece com
o “expressionismo”. Sendo, entre as vanguardas
daquela época, o movimento que angariou mais nomes e também o mais abrangente, o expressionismo nasce na virada do século, mas vai ter o seu
momento máximo nos anos 20. Só então o movimento passa a abranger outros campos além da literatura e das artes plásticas, notadamente o
cinema. A maior parte dessas vanguardas nasceu
antes dos anos 20, mas é nessa década que elas encontram seu apogeu.
O expressionismo é muitas vezes identificado
como a arte da guerra, por ter tematizado preferencialmente as agruras da Primeira Guerra Mundial, mas sua maior produtividade ocorre nos anos
seguintes. Também o surrealismo, tido como a mais
radical das vanguardas modernas e, como tal, sintetizadora do espírito da arte do início do século, é
próprio dos anos 20.
87
Coleção Convite ao pensar
Outro dado importante sobre os anos 20 é que
se trata da década que presencia o advento do que
hoje denominamos “meios de comunicação de massas”. Surge a indústria fonográfica, a radiodifusão,
o best seller. Podemos dizer que, se no início da década cada localidade do planeta vive encerrada em
sua cultura, no final já existe uma padronização, já
existem tendências culturais generalizadas, que praticamente englobam todo o Ocidente.
Muito bem, foi também sob a influência desse
contexto que o cinema deixou de ser uma engenhosidade ótico-cinética, para reivindicar a condição de
um revolucionário suporte para a arte. Entre os primeiros cineastas imbuídos dessa idéia encontramos
esse nome, esse austríaco que nasceu no final do
século XIX e que já em 1906, com não mais que 18
anos de idade, estava se mudando para Berlim para
tentar a vida como roteirista de cinema. Esse é o Fritz
Lang. Nesse sentido, a vida de Lang corresponde
perfeitamente aos acontecimentos intelectuais de
seu tempo. Berlim se tornou, especialmente no início do século XX, uma cidade muito importante.
Logo depois da Primeira Grande Guerra emerge na
história da Alemanha um período que ficou conhecido como “República de Weimar”, período crucial,
até pelas grandes contradições que carregou. Se, do
ponto de vista socioeconômico, foi um desastre, a
ponto de dar margem ao surgimento do nazismo,
do ponto de vista cultural, foi um grande momento
da história. Uma época de grande profusão e experimentação artística, de efervescência cultural,
de grandes debates. Um movimento chamado “A
ponte” inaugurou em Berlim outro dos grandes
marcos das vanguardas modernas, o Dadaísmo.
Toda a cultura germânica fervilhava por essa época; em Weimar nasce a “Escola Bauhaus” de arquitetura, em Frankfurt, a Teoria Crítica, uma das mais
88
Sobre o filme Metrópolis – Euclides Guimarães
expressivas forças da filosofia e da sociologia contemporâneas. Também a fenomenologia de Husserl
e Heidegger, a lógica de Frege e Wittgenstein completavam o quadro de um dos maiores momentos
da história do pensamento ocidental. No campo das
ciências e tecnologias circulam homens da envergadura de um Einstein ou um Von Brown, na psicanálise Freud, na literatura Hesse, Thomas Mann,
Gertrude Stein. É importante, para que situemos o
clima e o debate cultural da época, perceber quanto
os cenários se definiam em torno de certos centros
urbanos, certas instituições como as universidades
ou mesmo de logradouros das cidades, pontos de
encontro que emanavam influências em caráter
quase instantâneo, onde se reuniam cabeças pensantes de vários países, formações e idéias, todos
unidos pelo cosmopolitismo, o futurismo cheio de
ideais, o desejo do novo, o experimentalismo e o
astral vanguardista.
É justamente nesse cenário que o cinema aparece como uma grande alternativa para a linguagem
artística, preenchendo melhor que qualquer outro
conjunto de recursos expressivos a grande norma de
conduta das vanguardas: “É preciso ser absolutamente moderno.” Com tais palavras, ainda no final do
séc. XIX, Rimbauld resumiu e antecipou a grande
vocação dos tempos modernos, quando então se
delineava a busca incansável pela criatividade, pela
originalidade, pelo novo. Por trás dessas palavras
estava embutida a necessidade da ruptura, isto é,
romper com tudo que existiu antes, começar de novo
a história da civilização, porque a história que nos
foi dada até agora é sobretudo frustrada.
Esse processo de começar de novo é bastante
complicado, tanto que acabou por atropelar as próprias vanguardas e transformar o modernismo em
algo, por assim dizer, mais light, a partir dos anos
89
Coleção Convite ao pensar
30. Mas, nos anos 20, esse clima está no auge; então, o cinema aparece como o suporte preferencial,
onde os artistas de vanguarda podem testar, de
uma forma completamente inédita, sua criatividade, seu experimentalismo. Fritz Lang circula antes
de 1906 nesse cenário, tentando a sorte como roteirista, mas era também um bom desenhista; neste caso, é muito influenciado tanto pela literatura
policial – que a essa altura já se encontra mercadologicamente estabelecida, isto é, já tem seu público fiel – como também pela nascente ficção
científica. Esta vinha se tornando uma espécie de
“menina dos olhos” dos jovens artistas daquele
momento. Tendo, como o gênero policial, suas origens no século XIX, a ficção científica estava em
franco crescimento, justamente em função do espanto que as descobertas e as máquinas estavam
causando, para não falar da própria força da ciência como conhecimento capaz de coordenar o caminho de um novo mundo.
Extremamente significativo nesse sentido é o
trabalho de H. G. Wells intitulado A ilha do Dr. Moreau, em que se discute até onde qualquer atitude
pode ser validada em nome da ciência. Até que ponto empecilhos éticos podem ser colocados para o
desenvolvimento da ciência? A questão permanece
tão atual quanto naquele tempo, como podem confirmar os debates que hoje são travados em torno
da engenharia genética, da clonagem e dos transgênicos. H. G. Wells era uma espécie de ídolo para
jovens como Lang, de sorte que sua obra influenciou diretamente o que mais tarde apareceria no cinema desse autor, especialmente em Metrópolis.
O jovem Lang havia saído de Viena, carregando consigo todas essas influências modernas, muito a contragosto da família, o que também não é de
90
Sobre o filme Metrópolis – Euclides Guimarães
se estranhar, já que o pai era um eminente arquiteto,
e o filho já havia iniciado seus estudos em arquitetura, demonstrando grande talento para o desenho.
Além disso, Viena significava estabilidade e sucesso,
enquanto Berlim era incerta. Pesam ainda sobre isso
os aspectos quase sempre muito insalubres relacionados à vida de um intelectual europeu no início do
século. A cena cultural, freqüentemente denominada “boêmia”, envolvia virar madrugadas, consumir
álcool e drogas, se expor a epidemias fulminantes
como a sífilis e a tuberculose, e viver nas fronteiras
da imoralidade. Mas, naquela época, a inquietude
facilmente contagiava os jovens intelectuais que,
em busca de uma modernidade a se conquistar, lançavam-se de corpo e alma nas aventureiras cenas das
grandes cidades. Lang certamente foi um desses jovens, um tipo realmente emblemático do momento
histórico em que viveu.
Em 1910, o nome de Fritz Lang encontra seu
primeiro momento de sucesso. Ele passa a ficar
conhecido por sua participação como roteirista no
filme “O gabinete do Dr. Caligari”, de Robert Weil,
filme tão ou mais importante que Metrópolis. Pouco depois, casa-se com uma mulher também muito importante, Thea Von Habour. Trata-se de uma
escritora que é autora, entre outras obras, do romance intitulado Metrópolis, do qual Lang extrai a
história do filme.
No final da década de 20, vem o período de
emergência das ditaduras que vão transformar radicalmente o cenário da Europa para a década seguinte. Então, aparece Stalin na URSS, e, na
Alemanha, começa o clima que vai desembocar no
nazismo. Fritz Lang desde o início se coloca contra
o nazismo, mas fortes argumentos sustentam tal
ideologia, de sorte que muitos de seus amigos aderem e trabalham para o movimento. Uma dessas
91
Coleção Convite ao pensar
pessoas foi surpreendentemente Thea Von Habour,
mulher de Fritz Lang. Isto resultou portanto na separação e no exílio de Lang.
O exílio dos intelectuais que estavam fugindo
do nazismo era algo mais ou menos fixo também.
Eles iam para Genebra ou Zurich, devido à famosa
neutralidade suiça, alguns iam para Paris, mas o
certo é que toda a Europa passou a ser insegura, na
medida em que, além da ameaça constante da expansão do nazismo, havia o perigo renitente da ação
terrorista do serviço secreto de Hitler, a Gestapo. Enquanto isso, aparecia o convite de um novo mundo
que, naquele momento, esticava tapete vermelho
para qualquer renomado intelectual europeu que
nele quisesse se asilar: a América. Incontáveis judeus, alemães, italianos e europeus de um modo
geral encontraram nos EUA um novo lar, incentivados por propostas irrecusáveis das universidades,
empresas, institutos de pesquisa, editoras, produtoras cinematográficas etc. Nos EUA dos anos 30
configurou-se uma nova fase na história da cultura
ocidental, a era da comunicação de massas: nasce o
best seller, o star system, a parada de sucessos e a mais
sintomática das indústrias culturais, o supercinema
de Hollywood. O exílio para os EUA foi também a
opção de Lang.
O novo capítulo na história da cultura foi também um novo capítulo na história de Lang. Nos
EUA, provavelmente, a opção de Lang teria sido
continuar sua carreira, mas se existe algo que não
combina com o espírito norte-americano é o expressionismo. De fato, os americanos sempre foram
muito mais ligados a uma espécie de “realismo high
tech”, que ao expressionismo. O tipo de cinema que
Lang fazia teria soado hermético e enfadonho para
as propostas da cultura americana, de forma que
sua carreira sofreu uma incrível guinada. Talvez seu
92
Sobre o filme Metrópolis – Euclides Guimarães
entendimento do novo contexto em que se inseria
o tenha levado a uma outra postura profissional:
Lang se torna empresário. Continua no cinema,
dada sua longa experiência na área, mas agora
como empresário. Dessa forma encerra-se uma carreira artística que passaria para a história como
uma das mais arrojadas manifestações do expressionismo alemão. Cabe agora apontar algumas das
características marcantes do movimento expressionista, as quais se mostram, por assim dizer, abundantes no filme Metrópolis.
Primeiramente, é importante destacar a denúncia da reificação do homem. O operário robotizado,
oprimido pela máquina enquanto transformado em
parte dela é, seguramente, um dos temas prediletos
de todo o modernismo da época. O cinema se põe a
serviço de alegorizar esse processo, o qual se mostra, como nunca, ameaçador. Ao mesmo tempo, pensar o futuro significava também pensar uma estética
para o futuro. Inspirada nesse mesmo processo de
industrialização intensa, aparece essa visão do homem do futuro, vestido com trajes metálicos, prateados, brilhantes. Metrópolis inaugura essa perspectiva
estética para a visualização do homem do futuro,
que depois será propalada por tantas outras obras
de ficção científica, não só no cinema, mas especialmente nos quadrinhos e na televisão.
Outra coisa muito própria do expressionismo
alemão é essa questão do artificialismo, uma espécie de alegoria cenográfica. Cada personagem representa não apenas uma vida, mas um papel social
que está sendo marcante na situação histórica que
a obra retrata. Em praticamente todo o cinema expressionista é assim: você tem um personagem vivendo uma situação pessoal, mas na verdade não
se trata de uma situação pessoal. Esse personagem
representa uma classe social, ou uma categoria
93
Coleção Convite ao pensar
profissional, ou uma categoria intelectual; se ele é
um artista, ele não é “um” artista, ele é “o” artista
daquele momento; se ele é um operário, ele não é
um operário, ele é a engrenagem industrial daquele
momento. Trata-se desse processo alegórico, artificial mas, fundamentalmente, simbólico – e lembremos que o simbolismo ainda é muito forte entre
as vanguardas modernas do início do século.
Toda essa alegoria talvez seja a mais importante marca do filme Metrópolis, a presença constante
da máquina, o homem como parte da máquina, os
braços que trabalham como ponteiros de um relógio. Não apenas os expressionistas, mas outros grandes artistas e outros movimentos também se
colocarão a serviço dessa denúncia: Chaplin, Gris,
Lèger, Ensor, Huxley, Orwel são alguns exemplos,
entre muitos.
Por essas poucas indicações creio que abro certos caminhos para que se veja esse filme com outros olhos. As tantas décadas de evolução na
linguagem e na tecnologia que nos separam do
tempo em que foi rodado esse filme exigem que se
maleabilize o olhar, pois, de outro modo, incorreríamos no erro de julgamentos pobres e no perigo
de se perder o indiscutível teor artístico da obra.
94
MODERNIDADE: HISTÓRIA E MEMÓRIA
Yonne de Souza Grossi
Somos memória.
Jorge Luis Borges
Há coisas que estão presas na memória do tempo, como um momento, uma lembrança, uma experiência. Através delas se pode desfiar a teia do
acontecimento instituinte, urdir a trama das relações indeterminadas, descobrir lacunas que cobrem
processos. Natalie Zemon indicaria o caminho da
“atenta escuta às vozes do passado”.1 Dirá Euzensberger: “Se mil olhos viram Durruti, é justo que mil
bocas contem o que viram.”2 Paul Ricoeur oferece o
“exercício da suspeita” e a “vontade de escutar”,
como ingredientes do processo da interpretação;
Alfredo Bosi lembra que interpretar significa uma
escolha, entre as múltiplas possibilidades eleitas,
capaz de abrir a questão problematizada.3 O problema da significação coloca-se para a história, ascendendo a posições diferenciadas quanto à maneira
de se lidar com a realidade; ou seja, com o espectro
de singularidades que o existente registra, com os
limites expostos pelas rupturas, com os intervalos
possibilitados pelas permanências.4 Essa busca de
interpretação, para se conseguir significar, é uma das
linhas de força do conhecimento.
No tema proposto, o campo territorializado
ultrapassará o perfil de um personagem. Perscrutará um contexto mais amplo, sem o qual os protagonistas seriam inexeqüíveis. Apagados, deixariam
95
Coleção Convite ao pensar
sombras tênues sem configurações capazes de se
efetivar com nitidez. Atravessam as três últimas
décadas do século XX, acolhendo seus desafios e
dilemas. Como interpretar a tessitura desse processo? Como perceber as passagens, caso tenham sido
construídas? De que temporalidade falamos quando se pensa na relação das memórias com o passado? Nós somos as histórias que contamos, mas, sem
a memória, como a experiência irá aflorar? Como
fazer se as temporalidades estão fragmentadas? Se
o vivido não deixa nem herdeiros nem obras? Como
dar o testemunho de uma época? Como evitar a
perda de momentos significantes? Jornadas também são habitações que recebem e acolhem marcas, construindo espaços de memória.
A memória, na Grécia antiga, era precondição
do pensamento. Deusa da memória, Mnemosine era
também considerada deusa da sabedoria. Assim, a
ciência da recordação era base do processo de aprendizagem. Aristóteles deu-lhe lugar de honra entre
as disciplinas do pensamento. Para Cícero, a memória regia todas as pedagogias e era origem e fonte do pensamento. Santo Agostinho, em passagem
das Confissões, a compara a um palácio onde “se
encontra todo o tesouro de nossa percepção e experiência”. Os escolásticos medievais reviveram a
arte da memória, segundo Tomás de Aquino. Seu
grande florescimento na Renascença tornou-a matriz tanto para a arte como para a ciência.5 Hoje, a
experiência da lembrança, segundo frankfurtianos,
torna possível armar cenários de subversão do normatizado e do instituído. Inclusive, assistimos a um
desejo imenso de memória em nossa época.
Pierre Nora alicia situações estruturais que
poderiam explicar esse desejo de memória.6 Houve um movimento de alteração do tempo. A história se faz com rapidez, o fato se torna notícia, o
96
Modernidade: história e memória – Yonne de Souza Grossi
novo, a ânsia pelo novo direciona as vidas, sendo o
efêmero uma sensação constante. O passado cede
lugar ao eterno presente, ameaçando, por vezes, a
perda da identidade. Face o contemporâneo rápido
de cunho desintegrador, tentamos segurar vestígios
e sinais. O termo aceleração da história foi criado por
Nora para clarificar esse fenômeno inusitado. Eis
porque desejamos renovar algumas lembranças.
Penetrar em alguns reinos territorializados: ora
malditos, ora ameaçadores. Estariam situados no
campo de hybris, a desmedida? Sua qualificação
seria capaz de despertar sujeitos de reflexão?
Tocaremos três reinos que recortam uma visita a lugares antigos, habitados pela razão e pela
paixão. Outros se definem como princípio de realidade. Seu campo, dissemos, circunscreve as três
últimas décadas deste século. Seu poder prepondera territórios de rupturas e de permanências, limites que, não raro, expõem fraturas. Intervalos
que alicerçam possibilidades. Seu itinerário descobre terras que dão a impressão de nivelamento e
de profundidade. Há uma presença de história.
“Somos, ainda hoje, uns desterrados em nossa
terra.” Esta frase luminosa, que abre o clássico Raízes
do Brasil, do professor Sérgio Buarque de Holanda,
condensa a substância de sua geração. Simboliza o
marco da consciência intelectual brasileira, representa uma figura histórica, quase mítica: a intelligentsia nacional. De origem russa, no seu sentido
original, a palavra intelligentsia definia “um grupo
de pessoas de cultura unidas por idéias críticas ao
sistema, opostas à especialização acadêmica, e
marcadas por uma forte conotação ética”.7 Esses
seriam intelectuais ligados à cultura pública: escritores de fronteira, ensaístas talentosos, críticos,
polemistas. Não se submetem à universidade e sim
à esfera pública. Sua autonomia livra-os de uma
97
Coleção Convite ao pensar
submissão a disciplinas especializadas. Entre outros,
temos Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Josué de Castro, Caio Prado Júnior, Celso Furtado. O peso do academicismo só se fará sentir na
geração nascida após a Segunda Guerra. É que “a
sociedade dos cafés propiciou o aforismo e o ensaio; o campus da escola superior produziu a monografia e a conferência – e a aplicação de subvenção”.
Também, os intelectuais mais jovens não necessitam ou desejam um público amplo; eles são exclusivamente professores: os campi são seus lares, os
colegas, sua audiência; as monografias e os jornais
especializados, seu meio de comunicação. O que
representa, para Emir Sader, “um extremado capitalismo acadêmico”. Os trabalhos acadêmicos representam situações vivenciadas nas universidades e
não atendem a necessidades públicas e sim a exigências institucionais. Diagramas, tabelas, registros
computadorizados transformam a sociedade em um
canteiro de obras. A hiperespecialização deixa de
lado questões essenciais. Termos como justiça, direito, sociedade, nação, tirania, são substituídos por
jogo, atitude, comportamento, subjetividade. Assim,
“a derrota dos anos sessenta só foi completa quando se consolidou no campo das idéias e da teoria”.
Dessa forma, as escolhas políticas radicais, ainda que configurem um campo eletivo dos intelectuais, acadêmicos, deixam claro que sua produção
científica não só é inacessível extramuros, como não
tocam em temas de interesse da esfera pública. Os
anos de regime político-militar contribuíram, não
raro, para que intelectuais escondessem e se encolhessem nas universidades. Mas, não se pode atribuir a perda da intelligentsia brasileira apenas aos
ditames do autoritarismo, com sua mecânica repressiva e de censura. O crescimento das cidades,
98
Modernidade: história e memória – Yonne de Souza Grossi
a expansão da universidade e conseqüente especialização são outros momentos do processo. Entretanto, os anos de tirania contribuíram para urdir e
tramar esse reino de enclausuramento da intelligentsia brasileira. O que fazer?
Como pensar, hoje, o itinerário de uma geração
que se aparta de suas sucessoras? Parte daquela
geração dos anos sessenta abriga um projeto revolucionário, cujo desprendimento e disponibilidade
alicerçavam jovens em ideais humanistas. A descrença no capitalismo como capaz de resolver problemas tecidos pela desigualdade social e injustiças
induzia à luta. Também, a cena política abria espaço para um novo personagem: os trabalhadores do
campo. Em 1962, a cidade de Belo Horizonte foi
palco de realização do primeiro congresso de favelados, para se discutir a questão da propriedade
urbana; congresso este partilhado com os trabalhadores rurais, cuja bandeira ecoava dizeres emblemáticos: reforma agrária, na lei ou na marra.8
A ausência de um imaginário político que acionasse o vetor de opções, impulsionava a reinvenção de caminhos utópicos: a certeza de que os anos
sessenta aconteceram para tudo mudar. Edgar Morin foi testemunha do maio de 1968 francês; no Brasil, assistindo às nossas passeatas, declarou ser um
“êxtase da história”. Raymond Aron admitiu que a
França mudara, mas se pasmou com a “demência
coletiva”. Na Alemanha, Jurgens Habermas considerou os rebeldes em 1968 uns “fascistas de esquerda”. Hoje, reconhece que mudanças culturais, da
ecologia ao individualismo, têm uma das matrizes
naquele ano.9 O mundo parecia ter girado a mítica
roda da fortuna. Um apelo anunciava que a inserção naquele tempo histórico era quase inevitável. A
hora era de escolha, não de contingência.
99
Coleção Convite ao pensar
As gerações que vieram depois habitaram um
reino que se foi estreitando: sem liames com o passado, as energias utópicas se perdendo. Reino maldito que hospeda muros caídos, regimes em ruínas.
Pode-se constatar que nem mesmo os movimentos sociais são tocados pela paixão libertária, forçando passagens perigosas, explorando terras
desconhecidas. Como marco simbólico, o ano de
1989, com a queda do muro de Berlim – o fim e o
início de uma era. Mais uma vez, utopia e política
agenciam o drama da aventura humana.
Segundo Abensour, hoje trabalhamos a história sem descortino do futuro. Sem criar cenários de
emancipação humana. Todavia, a utopia – enquanto o não-lugar, algo além de nós – pode caminhar
junto ao político, espaço livre da palavra e da ação.
Quem sabe, seria possível pensar a transformação
histórica, que prescinde de uma visão social de conjunto?10 Como fazer?
Outra dimensão a se considerar expressa-se
como um reino que, de certa forma, devasta idéias
libertárias: o individualismo exacerbado. Há uma
hiperprivatização do sujeito. Este se apresenta autônomo, racional em suas escolhas, mas apático em
relação a questões de interesse público. Em contrapartida, as contradições de uma sociedade que
se tornou complexa o coloca em confronto com o
nivelamento das massas. Tal dilema o transforma
num ser cindido, vazio, indiferente, às vezes.11 No
entanto, para Gilles Lipovetsky, o individualismo
deita suas raízes nos séculos XVII e XVIII. Segue a
esteira de Tocqueville que o estuda na América do
Norte, e o seu alastrar-se pela Europa. O debate
político o coloca como um dos momentos constituintes da democracia. Toda a lógica da vida econômica, política, moral etc. baseia-se no indivíduo.
100
Modernidade: história e memória – Yonne de Souza Grossi
Entretanto, as manifestações do individualismo
atual desprendem-se de suas fontes primeiras, ordenadoras e disciplinares de comportamentos; agora se tornou permissível, agenciando desejos sem
o constrangimento das escolhas. Palavras como
austeridade, coletividade, costumes são substituídas por liberdade, subjetividade, realização pessoal e profissional.
O indivíduo torna-se um objeto apropriado
pelo desejo. Indivíduo narcísico. Seu interesse é
pelo agora. As utopias que ordenavam as ações
políticas, dando sentido à vida, perdem sua razão.
A natureza e o grau de importância das opções são
revertidos. A identidade não se configura no coletivo das grandes associações. Buscam-se pequenas
organizações de interesses especializados: de alcoólicos, de divorciados, consumidores de determinados produtos e de determinados jogos etc.
Como inferiu Tocqueville, no século XIX, os
laços de solidariedade tendem ao enfraquecimento. A flexibilidade dá a tônica, no dizer de Lipovetsky, o que, no limite, poderá criar o vazio. Para
Tocqueville o resultado seria a apatia e a atomização do social. Lembro Saramago em seu In Nomine
Dei: “Entre o homem, com a sua razão, e os animais com o seu instinto, quem, afinal, estará mais
bem dotado para o governo da vida?”
NOTAS
1
DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.21.
2
Hans Magnus Euzensberger em entrevista à Folha de S. Paulo
quando do lançamento de seu livro O curto verão da anarquia –
Buenaventura Durruti e a guerra civil espanhola. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
3
RICOEUR, Paul. Da interpretação. Ensaio sobre Freud. São Paulo: Imago, 1977. C.1 e 2. BOSI, Alfredo. Céu, inferno. São Paulo:
Ática, 1988. p.274-287.
101
Coleção Convite ao pensar
4
PAIVA, Clotilde A., ARNAUT, Luiz D. H. “Fontes para o estudo
de Minas oitocentista: listas nominativas”. Anais/V Seminário
sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR,
1990. p.85-106. (Ver, sobretudo, a 1a parte).
5
Raphael Samuel. “Teatros de Memória”. Projeto História. São Paulo, (14), fev. 1997, pp. 41-42.
6
Márcia Mansor D’Aléssio. “Memória: leituras de M. Halbwachs
e P. Nora”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 13, no 25/
26, set. 92/ago. 93, pp. 97-98.
7
A discussão que se segue encontra-se no artigo de Emir Sader.
“Nós que amávamos tanto O capital”. Praga. São Paulo: Boitempo Editorial, n.1, set./dez. de 1996, p. 62-64.
8
REFORMA Agrária, na Lei ou na Marra. Estado de Minas. Belo
Horizonte, 1962. (Mimeogr.)
9
VENTURA, Zuenir. 1968. O ano que não terminou. 17.ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p.13.
10
ABENSOUR, Miguel. O novo espírito utópico. Campinas: Papirus, 1990.
11
Nesta discussão, muito nos estimulou a exemplar dissertação
de mestrado de Silvana Seabra de Oliveira, Para uma releitura
dos anos 70: a cultura individualista. Belo Horizonte: Departamento
de Sociologia, UFMG, 1994. p.26 e seguintes.
102
FRANKENSTEIN, DE MARY SHELLEY
Tomás de Aquino Silveira
Há alguns meses, a professora Sílvia Contaldo
de Lara telefonou-me solicitando a mim, um professor de Física, que falasse sobre Frankenstein, o livro
de Mary Shelley, e suas implicações para a ciência, a
filosofia, e a sociedade. Achei uma curiosa coincidência, pois conheci esse livro há mais de vinte anos, e
sempre nutri por ele uma genuína admiração, fatos
esses que jamais mencionei para a professora Sílvia,
ou para qualquer outro colega da PUC-Minas. De
fato, conheci o livro por meio de uma edição da Ediouro,1 que era o décimo volume de uma coleção chamada “Angústia”, que iniciava exatamente com o
Drácula, de Bram Stoker. Desde então, a história esteve presente em mim, e o mínimo que se pode dizer é
que ela é extremamente perturbadora, e penso que
vocês concordarão comigo, à medida que eu apresentar o romance e o que penso dele.
É interessante anotar que, para preparar este
texto, retomei o velho volume que pertence a meu
irmão, mas logo depois descobri que a Folha de S.
Paulo tinha recentemente reeditado o livro, em conjunto com a Ediouro2. Após adquirir o livro, qual
não foi minha surpresa ao perceber que a velha
edição era incompleta, havendo omissão do correspondente a dez páginas da edição mais recente.
Além do mais, esta é uma edição mais bem cuida103
Coleção Convite ao pensar
da, com comentários e uma biografia da autora.
Então, com a oportunidade deste trabalho, redescobri a obra e, pela primeira vez, pude conhecê-la
por inteiro!
O tema “Frankenstein” surgiu no romance acima referido, muito mencionado, mas pouco lido, da
escritora Mary Shelley, e acabou seguindo seus próprios caminhos. Hoje ele tem, sem sombra de dúvida, uma maciça presença entre nós. Por ocasião do
centenário do cinema, a Folha de S. Paulo publicou
uma pesquisa3 onde se listavam as personagens
mais filmadas pelo cinema, em número de filmes,
excluídas as personagens religiosas e os políticos
contemporâneos. Frankenstein alcançou o segundo lugar, com 160 filmes, só perdendo para Sherlock
Holmes, com 197 filmes. Em terceiro lugar vinha
Drácula, com 109 filmes, seguido de Tarzan (94 filmes), Cinderela (69 filmes), e outros. Recentemente
o Discovery Channel apresentou um documentário
em que ele comparava Frankenstein ao progresso
científico da humanidade. Na enciclopédia virtual
Cinemania 99, aparece o registro de nada menos que
3l filmes com seus títulos contendo o nome
“Frankenstein”. Já em 1910 Thomas Edison produziu o primeiro deles. O mais célebre é, no nosso entendimento, Frankenstein, de 1931, dirigido por
James Whale, em que despontou para a fama o ator
Boris Karloff, intérprete da criatura monstruosa produzida pelo cientista Frankenstein, com uma maquiagem fantástica, e que gravou em nossas mentes
a primeira (e mais marcante) imagem concreta da
criatura, com remendos e parafusos.4 Esse filme baseou-se em uma versão resumida do romance original feita para o teatro, e distanciou-se muito da
forma inicial. E foi ele um marco na carreira do diretor, que revisitou a personagem monstruosa em
“A noiva de Frankenstein” (1935), e em “O filho de
104
Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
Frankenstein” (1939), este já sem Boris Karloff. Como
curiosidade, lembramos que James Whale é ele
mesmo personagem de um notável filme recentemente exibido em Belo Horizonte, Gods and monsters, que trata de seus últimos anos de vida.
Uma versão mais fiel (mas não totalmente) ao
romance foi a experiência de Kenneth Branagh com
Mary Shelley’s Frankenstein (1994), filme que acabou merecendo muitas críticas pelo fracasso em
transmitir a poesia que emana da obra original,
dela guardando apenas o caráter de história de
horror. Nele, a criatura monstruosa é encarnada por
Robert de Niro, e o papel do jovem cientista é feito
pelo próprio Kenneth Branagh. A televisão americana exibiu no início da década de setenta uma
versão ainda mais fiel, e muito elogiada, com quatro horas de duração: Frankenstein: the true story.
Por outro lado, a expressão “frankenstein” é freqüentemente empregada como sinônimo de: monstruosidade; entidade formada de partes que não
combinam; criatura que se volta contra seu criador.
Diante desses breves exemplos, perguntamonos: como esse tema adentrou a sociedade? Como
tudo começou? Para isso, necessitamos conhecer,
ainda que brevemente, a obra original.
MAR
Y SHELLEY E
ARY
SEU
“FRANKENSTEIN”
Mary Shelley
Mary Woolstonecraft Shelley (1797-1851), inglesa, nascida Mary Woolstonecraft Godwin, era
filha de William Godwin e de Mary Woolstonecraft.
O pai, além de poeta, foi filósofo influente em seu
tempo, destacando-se como teórico do anarquismo.
A mãe é considerada por muitos como a primeira
feminista, tendo falecido poucos dias após o nascimento de Mary. Esta teve uma vida movimentada,
105
Coleção Convite ao pensar
tendo crescido em um ambiente de intelectuais,
especialmente aqueles ligados ao Romantismo.
Para se ter uma idéia, ela uniu-se ao poeta Percy
Bysshe Shelley em 1814, quando este era casado, e
em 1816 casou-se com ele – daí seu sobrenome –
três semanas após o suicídio de sua esposa. Uma
irmã de Mary suicida-se mais ou menos na mesma
época, sendo comum explicar-se este fato por estar tal irmã apaixonada pelo poeta, mas ter sido
por ele preterida em favor da irmã mais nova. Mary
teve quatro filhos com Shelley, dos quais só um,
Percy Florence, sobreviveu à infância. O casamento durou seis anos, pois em 1822 o poeta morreu
no naufrágio de seu barco, provocado ou por uma
tempestade, ou por um ataque de piratas (não se
sabe bem o que realmente ocorreu). Mary escreveu outros livros, como o romance de época Valperga (1823), The last man (1826), e outros; mas o
que lhe garantiu a celebridade foi aquele cujo tema
trataremos a seguir.
A obra: Frankenstein
or the modern prometheus
O romance começou a aparecer no verão de
1816, na Suíça, conforme relato da própria autora
numa edição que se fez do romance, em 1831. O
casal, na ocasião, era vizinho do poeta Lord Byron
(1788-1824). Por se tratar de um verão bastante
chuvoso, habitualmente reuniam-se no chalé dos
Shelley quatro pessoas: o casal, Lord Byron, e o
amigo Polidori. Por sinal, tais reuniões são, elas
mesmas, tema de um filme (The haunted summer),
que até onde sei não foi exibido em nosso país.
Como passatempo, Byron propõe que cada um do
grupo escreva uma história fantasmagórica. Numa
noite insone, Mary tem a visão da cena central da
106
Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
história: um jovem cientista apavorado diante da
criatura grotesca a que acaba de dar vida. A partir
disso ela escreve um conto de poucas páginas. Mas
Shelley fica impressionado com a história, e incentiva Mary a criar um romance a partir do conto primordial, e o resultado é a publicação da primeira
edição da obra em 1818, com uma trama complexa
e repleta de lances dramáticos. Em pouco tempo o
livro se transforma em um sucesso. Em 1831 ela
publica uma nova edição, com algumas alterações
e um prefácio com o relato acima referido.
Por se tratar de um livro muito mencionado
mas pouco lido, penso que vale a pena fazer uma
sinopse da história. O livro gira em torno de Victor
Frankenstein, jovem suíço inicialmente interessado no trabalho de Paracelso, depois estudioso dos
fenômenos da eletricidade e do galvanismo, e que
se torna estudante de filosofia natural (o que corresponderia às ciências físicas hoje) em Ingolstadt,
cidade alemã da Baviera, que fica entre Munique
e Nuremberg. Influenciado por um professor de
Química, Monsieur Waldman, ele acaba desenvolvendo o sonho de criar um ser ideal, dando vida
à matéria morta, e constrói um ser gigantesco, segundo ele, para facilitar o trabalho com os órgãos,
fazendo-os em escala mais ampla. E acaba por lhe
instilar vida, numa passagem que merece ser reproduzida:
À luz bruxuleante da vela, quase extinta, vi abrirem-se os olhos amarelos e baços da criatura. Respirou. Sim, respirou com esforço, e um movimento
convulso agitou-lhe os ombros.
Quem poderia descrever o quadro de minhas emoções diante de tal catástrofe? [...] Mais mutáveis que
os acidentes da vida são os da própria natureza humana. Eu trabalhara duramente durante dois anos
para infundir vida a um corpo inanimado. Para tanto
sacrificara o repouso e expusera a saúde. Eis que,
107
Coleção Convite ao pensar
terminada minha escultura viva, esvaía-se a beleza
que eu sonhara, e eu tinha diante dos olhos um ser
que me enchia de terror e repulsa.5
Horrorizado com sua obra, abandona-a. E aí
vai um pouco de interpretação: aquele que até então estava imbuído do ímpeto e da natureza de criador, descobre-se mera criatura e fica aterrorizado
com o que fizera. E entra em violenta crise depressiva. Notemos que, na citação feita, há uma descrição do estado interno do cientista. De fato, uma
grande parte do romance consiste em descrições
de estados interiores, ora do criador, ora da criatura. E são descrições fortes e tocantes, o que mais
uma vez nos impressiona, tendo em vista a juventude da autora.
Tempos depois, William, o irmão mais novo de
Victor, morre, e a suspeita recai sobre uma irmã “de
criação”, Justine. Ao voltar para sua terra para ver
os familiares, Victor passa pelo local do crime, e vê
nas proximidades a criatura, que foge. (Note-se que
o ser não tem nome, sendo sempre referido como
“a criatura”, ou “o monstro”). Victor passa a ter certeza que a criatura é o criminoso. Mas silencia, e
Justine, que fora encontrada com o medalhão da mãe
(que estava com o menino) é executada.
O jovem cientista passa por nova crise. Um dia
vai a Chamonix, buscando repouso, e lá é abordado pela criatura, que consegue, após grandes esforços, fazer com que Victor ouça sua história. E aí
passamos por quatro ou cinco capítulos do livro
em que assistimos a uma descrição sofrida e angustiada de abandono, miséria, escárnio e repulsa
do gênero humano para com a criatura, devido ao
seu tamanho e sua aparência monstruosa. A certa
altura, o ser descobre um refúgio contíguo a uma
casa campestre de pessoas pobres. Como pode ver
108
Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
e ouvir parte do que se passa na casa, ingressa num
lento aprendizado da fala, enquanto faz o papel
de “anjo da guarda” (ignorado) da família que ali
habita: um velho e um casal de filhos. Várias circunstâncias favoráveis fazem com que seu aprendizado secreto inclua a leitura. Em suas andanças
pelos bosques, o ser encontra exemplares de O paraíso perdido, do poeta inglês John Milton (gigantesco poema em que se descreve essencialmente a
queda de Satã e o confronto de Adão com seu Criador, e onde Adão é tratado como um ser de grande
nobreza, e sob certos aspectos até superior ao Criador), Vidas paralelas, de Plutarco, e Os sofrimentos
do jovem Werther, de Goethe. Assim passa a conhecer um pouco do gênero humano. Ele descobre nas
suas roupas o diário de Victor, e de sua leitura percebe sua origem. Tenta aproximar-se da família,
iniciando um diálogo com o ancião, que é cego,
mas o filho o expulsa. Até então, a criatura se diz
sempre tomada de bons sentimentos, desejando
com intensidade e ardor apenas o convívio e o afeto do gênero humano. Chegando ao fim o ilusório
idílio em que vivera em seu refúgio, ela é tomada
por revolta, e decide vingar-se de seu criador. Confessa ser o matador de William, e o causador da
condenação de Justine. Em mais uma passagem
tocante, ele ataca Frankenstein por fazer dele um
ser sem direito ao mais mínimo afeto, e pede ao
seu criador que lhe faça uma companheira, para
que ele viva em isolamento com ela, nos confins
do Ártico. Após muita resistência, Victor aceita. Ele
viaja com seu amigo Clerval, e começa sua obra
numa das ilhas Orkneys, no Mar do Norte. Um dia,
vê a criatura espiando-o pela janela. Diante dos
olhos horrorizados da criatura, Victor destrói o que
seria sua companheira. Em áspero diálogo, o ser
promete estar presente à noite de núpcias de Victor.
109
Coleção Convite ao pensar
A seguir, Clerval aparece morto, e Victor fica preso
como suspeito, mas é libertado, passando a preparar seu casamento com Elizabeth, uma companheira de infância. E ela é morta na noite de núpcias
pela criatura. Desesperado, e percebendo que não
há como desligar-se de sua criatura, Victor Frankenstein persegue o monstro até o Ártico, quando é encontrado pelo capitão Walton, que tenta fazer uma
travessia inédita dos mares do Pólo. A ele Victor
narra sua história, e é por ele que tomamos conhecimento do que o romance conta. Exausto, depois
do seu relato Victor Frankenstein morre. E a criatura aparece para chorar sua morte. Interpelado
pelo capitão Walton, dá-se entre os dois um diálogo de grande força dramática, pelo qual fica claro
que, o que a criatura mais desejava era ser acolhido pelo seu criador, e que não havia qualquer prazer na morte dele. Ao final, o monstro abandona
o navio em um barco improvisado num bloco de
gelo, e promete lançar fogo sobre si, pondo um
fim a uma existência que fora marcada pela dor e
pelo abandono. Assim termina o romance: mortos, criador e criatura.
Possíveis fontes de inspiração
Têm sido pesquisadas possíveis fontes para
Mary Shelley escrever sua história de horror.
Conta-se que ela teria visitado uma cidade alemã, Gersheim, ao norte de um castelo que fora dos
Frankensteins (família que realmente existiu), e lá
ouviu a história de Conrad Dipple, que violava túmulos em busca do segredo da vida eterna.
A história da criatura também nos traz à memória a lenda judaica do Golem. Este ser teria sido a
criação de um sábio rabino de Praga, que o moldara
a partir do barro, e que lhe dava vida introduzindo
110
Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
em sua boca um papel com palavras mágicas, o Shem.
Este ser tornava-se um serviçal exemplar, que trabalhava sem nada exigir em troca, nem mesmo alimento. Há versões que dizem que ele inclusive defendia
os judeus que eram vítimas de perseguições. Mas seu
criador incorre em uma falha: esquece de tirar o Shem
de sua boca num sábado, como habitualmente fazia,
ocasião em que ele ficava sem vida. O esquecimento
faz com que o Golem inicie uma destruição tresloucada de tudo o que se encontre a seu alcance, parando apenas quando o rabino, alertado quando iniciava
suas orações na sinagoga, consegue retirar o tal papel e deixa-o novamente sem vida. Diz-se que ele
jamais o reviveu, e que seu corpo estaria enterrado
sob a sinagoga de Praga.
Se não são fontes, estas histórias são pelo menos precursoras da idéia de Mary Shelley, que soube tratá-la se não com maestria, certamente com
grande vitalidade e força dramática.
Prometeu
A menção a Prometeu no título do romance faz
com que nos voltemos para esse mito para entender sua ligação com ele. O que se segue neste tópico está baseado especialmente nos trabalhos de
Junito Brandão6 e Raymond Trousson.7
Prometeu, na mitologia grega, é um dos filhos
de Jápeto (um dos Titãs) e Clímene (filha de Oceano), sendo ainda irmão de Epimeteu, Atlas e Menécio. Prometeu foi aliado de Zeus na guerra em
que este derrota os Titãs e se torna o Senhor dos
Deuses. Algumas versões da lenda dizem que Prometeu teria feito os homens a partir do limo da terra, embora isso não seja confirmado na Teogonia de
Hesíodo. O que é sempre afirmado é que Prometeu
111
Coleção Convite ao pensar
era um benfeitor da espécie humana. E Zeus estendeu aos homens a desconfiança que nutria por
ele, por ser ele filho de um dos Titãs, apesar de ter
lutado contra eles e ao lado de Zeus. Foi combinado um encontro dos deuses com os homens para
resolver essa querela e dessa ocasião Prometeu se
aproveitou para induzir Zeus a um engano. Propõe a separação de um boi em duas partes, e ordena aos preparadores do sacrifício que cubram os
ossos do boi com sua banha, e as carnes com seu
couro. Zeus escolhe a primeira parte, e ao se descobrir enganado, priva o homem do fogo, ou simbolicamente, da inteligência. Inconformado,
Prometeu rouba uma centelha do fogo celeste, privilégio de Zeus, e a traz à Terra, “reanimando” os
homens. Nas palavras de Hesíodo, ele “restitui aos
homens a esperança cega”, dando a entender, em
nossa interpretação, que com a mente os homens
passam a ter a capacidade de visualização e de
imaginação. Isso leva Zeus a impor uma dupla
punição. Aos homens, envia Pandora, portadora
de uma caixa que, quando aberta, deixa escapar
todas as desgraças e calamidades, somente ficando ali presa a esperança. E Prometeu é acorrentado a uma coluna, ou a um monte, aonde todos os
dias uma águia vem lhe devorar o fígado, que é
regenerado à noite apenas para servir novamente
de repasto à águia na jornada seguinte.
O mito de Prometeu encerra, entre outros significados, a tendência à revolta e a utilização do
intelecto com fins de satisfação pessoal. Bachelard
enxerga nele a representação da vontade humana
de intelectualidade, de saber tanto ou mais que
nossos pais, de ultrapassar, de ir além, de fazer o
que ainda não foi feito. Mas há no mito uma ambigüidade: favorecendo os homens, ao mesmo tempo
112
Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
ele estabelece uma desconfiança, um distanciamento
entre eles e os céus (os deuses); concede aos homens
um dom, mas nesse mesmo movimento retira deles
a amizade com o plano divino. Há nele um misto
de benevolência e de negatividade: é um ser em que
estão concentradas as capacidades de criação e destruição, o que por sinal faz dele uma figura bem
adaptada aos poetas românticos, contemporâneos,
e vários deles amigos de Mary Shelley, inclusive o
seu marido. Esta interpretação do mito de Prometeu, embora uma entre muitas, parece-me particularmente cativante, e é bastante adequada para se
compreender o jovem Victor Frankenstein como o
Prometeu moderno: ele queria ir muito além da
condição humana de mera criatura, sendo, até certo ponto, bem sucedido. Mas o destruidor também
habitava nele.
ALGUMAS
EXPLOR
AÇÕES
EXPLORAÇÕES
Explorações periféricas
Assim denominei algumas interpretações curiosas da obra de Mary Shelley, e especialmente
do criador e da criatura que polarizam o romance.
Não penso que elas atinjam a essência da obra, mas
valem uma referência.
A Folha de S. Paulo de 20 de janeiro de l995 menciona que, para o psicólogo polonês Kazimerz Popiszyul, a criatura da obra de Mary Shelley seria o
precursor do adolescente rebelde. Segundo ele,
a tensão entre o monstro e seu criador é exemplo
perfeito dos conflitos na relação familiar que desenvolvem e intensificam as piores características dos
filhos: a crueldade, a insensibilidade e o descontrole de emoções. Nela aparece somente um dos pais,
o criador do monstro, situação comum nas famílias
modernas, com pais separados, amor insuficiente e
113
Coleção Convite ao pensar
complexo de rejeição. Razão pela qual os filhos se
transformam em Frankensteins, o monstro que condena o seu criador. 8
Note-se aqui a confusão que norteará a difusão do mito Frankenstein: a do criador com a criatura, dando a ela o nome dele, que ele próprio lhe
negara. De qualquer forma, veremos mais à frente
que há alguma sabedoria nesta confusão. Anotese ainda que, conforme me lembrou o prof. Lev
Vertchenko, a própria Mary Shelley foi criada apenas pelo pai, já que sua mãe falecera pouco após o
parto; assim, a existência da criatura tem um pouco da marca da própria vida da autora.
Aparece ainda no romance, de forma bastante
clara, a idéia romântica, já encontrada em Rousseau,
do Homem natural, ou Homem bom, corrompido
pela sociedade que o cerca. Eu particularmente vejo
ali também a criatura como símbolo dos excluídos,
um mártir da intolerância e do preconceito, em razão da rejeição ao diferente e ao anômalo. É difícil
não ligá-lo aos nossos menores de rua, sempre a nos
causar repulsa, e que não são mais do que o fruto de
uma sociedade ensandecida e imprevidente.
É muito freqüente ainda considerar a obra de
Victor Frankenstein como símbolo dos descaminhos da ciência, e ele próprio como o protótipo do
cientista irresponsável, que não prevê as conseqüências do que faz. E há quem compare a criatura a
um Adão sem Eva, com uma carência afetiva impossível de ser saciada sem a repetição da monstruosidade que o gerou.
Como se vê, são numerosas as interpretações
que o romance de Mary Shelley sugere, fato que,
por si só, prova que não se trata de uma obra menor. Mas, gostaria de aprofundar outra interpretação, em parte sugerida por Harold Bloom,9 e em
parte fruto de reflexões pessoais.
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Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
A criatura como o
duplo de Victor Frankenstein
Mary Shelley estava mergulhada no ambiente
do Romantismo, e por isso dele deve-se falar um
pouco. Todos aprendemos na escola que o movimento romântico é marcado pelo individualismo,
entendido como a busca de uma verdade relativa,
que é a verdade do eu em oposição à verdade da
sociedade. A filosofia do Romantismo dirige-se para
o individualismo e para o culto da autoconsciência,
daí se entendendo a inspiração encontrada pelos
românticos em Prometeu (símbolo da rebeldia, e
doador da consciência). O herói romântico é aquele
que se sente único e superior pela sua excepcionalidade (veja-se, por exemplo, o desejo de glória de
Frankenstein). Essa autoconsciência resvala para um
excesso de consciência, que faz com que o eu não
seja capaz de sustentar a si mesmo. Daí a hipersensibilidade e as tendências patológicas, comuns nos
heróis românticos (e em Victor Frankenstein).
Sendo uma reação ao Classicismo, o Romantismo é irracionalista, sendo portanto marcado por
contradições, sendo um exemplo delas a que se
verifica entre o culto da glória pessoal e o culto da
apatia. Vários estudos mostram que no plano da
individualidade, no plano da subjetividade, essa
contradição ou dissociação é marcada pelo tema
do duplo, ou seja, da divisão do eu, freqüentemente
em partes que se opõem, tema muito comum no
Romantismo. Na visão da psicologia junguiana, o
duplo seria “como uma parte não apreendida pela
imagem de si que tem o eu, ou por ela excluída:
daí seu caráter de proximidade e de antagonismo.
Trata-se das duas faces complementares do mesmo ser”.10 Um exemplo, dentre muitos, é o do romance Opiniões do gato Murr, de Hoffmann, (Kater
115
Coleção Convite ao pensar
Murr, no original, de 1819), onde à genialidade desvairada do músico Kreisler contrapõe-se o bom senso crítico de seu gato. Daí, chegamos a uma chave, a
meu ver bastante adequada, sugerida por Harold
Bloom, para ir mais a fundo no significado da obra
de Shelley: a criatura é o duplo de Frankenstein, a
metade antagônica, “um simulacro de si mesmo”
(conforme uma sugestão da profª. Marie-Anne Kremer), o outro eu, ou quem sabe, a “sombra”, no
contexto da psicologia analítica. É até sintomático
que, popularmente, tenha havido a confusão do
nome do criador com o da criatura. Vox populi, vox
dei. Lembremos que a “sombra” contém os aspectos ocultos, reprimidos e desfavoráveis da personalidade, mas possui também os instintos normais
e os impulsos criadores.
Nessa interpretação, Frankenstein tentou transcender-se naquela criatura, criando algo melhor, e
que fosse o seu reflexo. Mas, encararmos o nosso
próprio reflexo é algo difícil e perigoso, embora
mais cedo ou mais tarde necessário. O jovem Victor não conseguiu ver a si mesmo refletido nos
“olhos baços e amarelados” do monstro. Para reforçar esta idéia, notemos que há um vínculo indissolúvel entre os dois: durante a maior parte do
romance a criatura tenta se aproximar do criador,
e mais tarde, após a morte da noiva de Frankenstein, é o criador que passa a perseguir a criatura.
Numa reflexão nossa, procurando nos colocar
no ponto de vista da criatura, vemos que ele, como
ser humano – se for legítimo usarmos para ele essa
expressão – é feito para o encontro. Para o homem,
o corpo é o limite (no sentido positivo) através do
qual, ou pelo qual, o sujeito encontra o outro, dialoga, busca, sente o outro. Para o monstro, o corpo
é o próprio obstáculo, é a barreira (limite no sentido negativo) que o impede de encontrar o outro.
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Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
Aprofundando a idéia do monstro como concretização da “sombra” do criador, notamos que
ele – e este é, talvez, o aspecto mais perturbador
do romance – tem mais dignidade e grandeza que
seu criador (aliás, como o Adão de O paraíso perdido). Ele é dotado de uma vontade intrépida, inabalável, primeiramente dirigida para a busca de afeto,
de convívio; quando esta se afigura acima de suas
possibilidades, sua vontade se dirige a uma vingança implacável contra seu criador; e finalmente,
ela aponta para a autodestruição, mais uma vez
sem conhecer fraqueza. É como um impulso da
natureza, irresistível, inevitável, impossível de ignorar; é, sem dúvida, a energia da “sombra”, que
pode conter aspectos negativos, mas é onde reside
a nossa criatividade.
Como Frankenstein não consegue integrar sua
“sombra”, torna-se um homem fraco, indeciso,
sujeito a freqüentes crises de depressão, e imerso
em irritantes exortações de autopiedade. O monstro na verdade busca a integração com o criador.
Impedido, não consegue dele se desvincular. Tenta, com o pedido da criação da fêmea. Mas não há
remédio. No dizer de Bloom, ele mesmo já é uma
emanação, um duplo de seu criador, que o renega.
Há uma quebra do ciclo, a fragmentação, a incompletude. Na linguagem da psicologia analítica, o
processo de individuação de Victor Frankenstein
é estancado. O homem está incompleto. Daí se segue o inevitável: a autodestruição – os dois morrem infelizes, desamparados, condenados.
O impulso prometéico (produzir a obra que nos
transporte para além do que somos) é extremamente positivo. É nele que encontramos a raiz das maravilhas da sociedade ocidental. Mas não se pode
depositar apenas nele a realização do ser humano.
117
Coleção Convite ao pensar
Não é na obra que você se realiza. Antes de se realizar na obra, o homem se realiza nessa viagem
interior, que Carlos Drummond chamava de “Viagem de Si a Si-Mesmo”, a mais perigosa, a mais
árdua, a mais longa, a mais difícil, mas a mais necessária. Frankenstein colocou na sua obra a sua
redenção, e esqueceu-se de, antes, redimir-se a si
mesmo. Como nos assevera Harold Bloom, incapaz de amar, ele condenou a sua obra e a si mesmo. Tentou romper a barreira que separava o
humano do divino, mas acabou criando uma morte em vida. Não conseguiu realizar o mergulho no
autoconhecimento, encarar os olhos do Monstro
Interior, e recuperar dali a mais profunda (e completa) humanidade.
Esta é a impressão que Mary Shelley, aos vinte
e um anos de idade, nos transmitiu, com invulgar
sabedoria: nós temos Prometeu dentro de nós, essa
pulsão de buscar a glória pessoal. Mas se isso não
for acompanhado de uma vida interior, de um retorno a si mesmo, de um autoconhecimento, de um
contato com sua “sombra”, e de uma integração
consciente e construtiva desses elementos da nossa personalidade, tal glória pessoal acaba resultando em algo vazio, que muitas vezes nos leva a
descaminhos, e até a uma autodestruição.
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Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
N. E.:
Optou-se por manter aqui as perguntas e respostas
do debate ocorrido após a exposição do autor, por julgá-las enriquecedoras ao texto.
P: Por que Frankenstein não conta para ninguém
tudo o que está acontecendo com ele, exceto para o capitão do navio, no final da história, quando ele está morrendo? Por que ele carrega essa luta solitária?
R: Ele diz, ao longo do livro, que não revela o
que aconteceu por medo de ser tomado como louco. Quando Justine está para ser condenada à morte pelo assassinato do irmão mais novo de Victor,
ele por várias vezes sente o impulso de revelar tudo,
mas não o faz por essa razão e por temer ser obrigado
a revelar o segredo de sua obra, o que abriria possibilidade de que outras pessoas repetissem o feito e
criassem monstruosidades ainda mais aterrorizantes do que a que ele engendrara. Isso é o que está
manifesto na obra. Mas penso que há algo subjacente aí. Quando ele cria esse ser, ele faz, como dissemos, uma dissociação de si mesmo, e aquele ser
passa a encarnar o que, na psicologia analítica, nós
chamamos de “sombra”. E embora ela tenha aspectos negativos, é nela que também reside a energia
da criação, e os impulsos instintivos. Assim, os aspectos de impulso e de energia do jovem cientista
ficam como que concentrados naquela criatura, e
Victor torna-se um ser indeciso, claudicante. Lembro-me, por exemplo, do romance A estranha história de Peter Schlemihl (1814), de Chamisso, no qual o
personagem central vende sua sombra para o demônio em troca de riqueza e consideração, e a partir
daí deixa de ser reconhecido pelas pessoas; ele não
consegue tomar decisões, não consegue ter uma atitude definida. Analogamente, Victor Frankenstein
119
Coleção Convite ao pensar
fica incompleto ao falhar na integração dessa parte
de sua personalidade.
P: Prometeu passa por um grande sofrimento. Não
haveria uma ligação desse sofrimento de Prometeu com
o sofrimento de Frankenstein?
R: Certamente, mas há uma diferença importante. No mito, Prometeu acaba sendo libertado.
Zeus permite isso não tanto por compaixão, mas
para que haja a glorificação de Héracles, seu filho,
que é incumbido dessa tarefa, rompendo as correntes de Prometeu e matando a águia. No caso do romance, Frankenstein é submetido a um sofrimento,
mas ele não consegue a liberação. Vou lembrar aqui
uma passagem do romance. Ele está contando sua
história para Walton, o capitão de um navio que
estava tentando uma passagem inédita pelas águas
(ou gelos) do Ártico, e que fracassa, após seus comandados se amotinarem por temor de perecimento de todos. Então Walton era outro Prometeu, e
um Prometeu fracassado. Pouco antes de morrer,
Victor se dirige a ele e diz o seguinte:
Adeus,Walton! Busque a felicidade num viver tranqüilo e evite ser dominado pela ambição, mesmo
que seja essa, aparentemente, construtiva, de distinguir-se no campo da ciência e dos descobrimentos. Mas por que falo isto? Na verdade, se eu me
arruinei nessas esperanças, pode ser que outro seja
bem-sucedido.11
Ele está quase entendendo que a obra não é o
fundamental. Mas a última frase mostra que a ilusão continua. Ele morre ainda acreditando que a
glorificação humana está na obra, na realização.
Então não há salvação. Qual seria a redenção de
Frankenstein? Seria aceitar o outro que, ao fim e
ao cabo, era parte de si mesmo. Seria fazer a transição de aceitar a diferença que era ele mesmo, e
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Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
também entender a alteridade dessa criatura, entender o ponto de vista dela. Se ele conseguisse
fazer isso ele seria redimido, e redimiria a criatura,
o monstro inominado.
P: Pode haver uma leitura mítica com relação à
questão de ultrapassar os limites. O capitão Walton tem
uma ambição muito grande, tentando um empreendimento que ninguém tinha feito. E Frankenstein conta sua
história advertindo-o do perigo que é o homem ultrapassar seus limites. Há essa questão em relação ao poder divino. Quando ele constrói essa criatura, ele está desafiando
Deus, como Prometeu desafiou Zeus. Walton desafia a
Natureza; Frankenstein desafia Deus, e por isso ele cai
em total desgraça. E o monstro, também, em certas passagens, sente-se como Prometeu. Há várias referências a
correntes. Há várias referências ao mito da queda, da
Bíblia. A primeira transgressão teria sido a de Adão e
Eva. E aí é posta a questão da ciência: até onde a ciência
poderia ir? Penso no caso, por exemplo, da clonagem.
R: Sim, não há dúvida de que essa leitura é
valiosa. Mas eu gostaria de esclarecer bem a idéia
que quero transmitir. Quando digo que o impulso
prometéico foi, de certa forma, a perdição de
Frankenstein, isto não significa que se devam estabelecer barreiras muito restritivas ao desenvolvimento da ciência, que é uma manifestação desse
impulso prometéico. O que aqui se sustenta é que
o cientista – afinal, o romance fala de um jovem
cientista – muitas vezes se julga como um deus em
virtude da grandeza de sua obra. Mas esse criador,
esse cientista, no mais das vezes é uma pessoa com
as mesmas fraquezas do comum dos homens. O
que é necessário, é que antes, ou simultaneamente
ao seu trabalho, o criador não se esqueça de pensar
como ser humano, de pensar o ser humano, de pensar as conseqüências do que faz, de fazer discussões
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Coleção Convite ao pensar
éticas. A ciência que não se pensa acaba sendo problemática, e não é raro que dela advenham desgraças e perdição ao invés de progresso.
P: Esse mergulho no eu não é um beco sem saída?
Frankenstein morre no final junto com seu monstro. E ele
não consegue revelar isso para ninguém. Ele parece preso.
R: O mergulho em si mesmo a que me refiro não
é um ensimesmamento. O que ocorre com Frankenstein é que ele fica numa introjeção da qual ele não
sai. O que estou defendendo é a necessidade do autoconhecimento, da exploração psicológica do ser
humano. Não se trata de uma introjeção doentia.
P: Mas quanto mais eu fico em mim mesmo, mais
distante fico do outro. Não é assim?
R: Eu não penso assim. Conhecer o eu é aproximar-se do outro. Qual é o ser humano mais próximo
de você? É você mesmo! A compreensão do outro
somente vem para aquele que realmente mergulhou nas suas profundezas e encarou seus demônios. Somente assim a pessoa será capaz de
compreender as limitações do outro, de tolerar as
diferenças. Aliás, este é o lema de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo.”
P: Sim, é o lema de Sócrates. Mas como fazer isso
sem negar o outro, sem cair em si mesmo?
R: Essa experiência de voltar-se para si mesmo não é egocentrismo; não é o caso da pessoa que
só vê a si mesma. A pessoa que se percebe, que
consegue identificar seus demônios interiores, que
consegue lutar com eles e trazê-los à luz, obtém
acesso a energias interiores que antes não eram
percebidas, e isso a torna uma pessoa transparente
e disponível para o encontro com o outro. O encontro com o outro é sempre superficial se não parte
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Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira
de uma interiorização. Eu insisto nesse ponto, tanto em relação ao livro como em relação à sociedade, porque nós somos extremamente voltados para
o externo. Nós somos realizadores; somos “Prometeus” em busca de realizações, e só avaliamos as
pessoas pelo que elas fazem, e não pelo que elas
são. E isso ocorre exatamente pela pouca consideração que temos pelos aspectos internos do homem, pelo Ser.
NOTAS
1
SHELLEY, Mary. Frankenstein. Trad. de Éverton Ralph. Rio de
Janeiro: Ediouro, [s.d.].
2
SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o moderno Prometeu. Trad. de
Éverton Ralph. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha,
1998. (Biblioteca Folha. Clássicos da Literatura Universal; 3).
3
FOLHA DE S. PAULO, 30 nov. 1995. Caderno Especial, p.5.
4
Aliás, é o rosto do monstro encarnado por Boris Karloff que
aparece na capa daquela edição por meio da qual tomei contato
pela primeira vez com a obra de Mary Shelley.
5
SHELLEY. Frankenstein, p.52-53.
6
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, v. I. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 166-167.
7
TROUSSON, Raymond. “Prometeu”. In: BRUNEL, Pierre (Org.).
Dicionário de mitos literários. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1998, p. 784-793.
8
9
AUGUSTO, Sérgio. “Frankenstein é adolescente rebelde”. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 20 jan. 1995. Caderno 5, p.6.
BLOOM, Harold. “Frankenstein, o idiota da moral”. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 29 jan. 1995. Caderno 6, p.11. (Tradução de
Arthur Nestrovski).
10
BRAVO, Nicole Fernandez. “Duplo”. In: BRUNEL, Pierre (Org.).
Dicionário de mitos literários. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1998. p.263.
11
SHELLEY. Frankenstein, p.211.
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SOBRE OS AUTORES
Euclides Guimarães
Professor do Departamento de Sociologia da PUC
Minas.
e-mail: [email protected]
João Carlos Lino Gomes
Professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC Minas.
e-mail: [email protected]
Léa Souki
Professora Titular do Departamento de Sociologia
da PUC Minas.
e-mail: [email protected]
Lídia Avelar Estanislau
Professora do Departamento de Sociologia da PUC
Minas.
Lucília de Almeida Neves
Professora Titular do Departamento de História e
do Mestrado em Ciências Sociais da PUC Minas.
e-mail: [email protected]
Tomás de Aquino Silveira
Professor do Departamento de Física e Química da
PUC Minas.
e-mail: [email protected]
Yonne de Souza Grossi
Professora de Sociologia da PUC Minas.
e-mail: [email protected]
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Este livro foi composto em tipologia
Palatino11/14 e impresso
em papel pólen soft 80g.
na FUMARC

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