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OS DEUSES E OS MONSTROS Euclides Guimarães João Carlos Lino Gomes Léa Souki Lídia Avelar Estanislau Lucília de Almeida Neves Tomás de Aquino Silveira Yonne de Souza Grossi OS DEUSES E OS MONSTROS Belo Horizonte 2001 Copyright © 2001 by Os autores Coordenação da Coleção Haroldo Marques e-mail: [email protected] Coordenação Editorial Cláudia Teles e-mail: [email protected] Capa Jairo Alvarenga Fonseca Editoração eletrônica Waldênia Alvarenga Santos Ataide Revisão de textos Simone de Almeida Gomes D486 Os deuses e os monstros / Euclides Guimarães...[et al.]. – Belo Horizonte: Autêntica : PUC Minas, 2001. 128p. (Coleção Convite ao pensar, 2) ISBN 85-86583-91-X 1. Mito. 2. Deuses. 3. Mitologia – Aspectos morais e éticos. I. Estanislau, Lídia Avelar. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. III. Título. IV. Série. CDU 165.612 2001 Direitos adquiridos para a língua portuguesa pela PUC Minas PUC Minas Av. Dom José Gaspar, 500 - Coração Eucarístico 30535-610 – Belo Horizonte – MG Fone: (31) 3319-4271 – Fax: (31) 3319-4129 e-mail: [email protected] Autêntica Editora Rua Januária, 437 - Floresta 31110-060 – Belo Horizonte – MG PABX: (55 31) 3423 3022 www.autenticaeditora.com.br e-mail: [email protected] SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Haroldo Marques 7 DÍVIDA DE GRATIDÃO: PODER E IMAGINÁRIO Lucília de Almeida Neves 11 HOBBES: ÉTICA E POLÍTICA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS João Carlos Lino Gomes 25 DRÁCULA, DE BRAM STOKER Lídia Avelar Estanislau 47 SUBMISSÃO E REVOLTA EM MÁRIO E O MÁGICO, DE THOMAS MANN Léa Souki 71 SOBRE O FILME METRÓPOLIS Euclides Guimarães 85 MODERNIDADE: HISTÓRIA E MEMÓRIA Yonne de Souza Grossi 95 FRANKENSTEIN, DE MARY SHELLEY Tomás de Aquino Silveira 103 SOBRE OS AUTORES 125 Coleção Convite ao pensar 6 APRESENTAÇÃO Haroldo Marques Os mitos modernos se confundem com a história dos homens, refletindo o que somos, nossos medos, nossas aspirações mais ocultas. Estudar os mitos é penetrar no que há de mais autêntico, mais revelador na vida dos homens. Imagens surgidas de nosso interior estão na literatura, no cinema, no teatro ou nas lendas populares. Explodem em nossa consciência e moldam nosso modo de pensar. Os mitos, estas narrativas geniais, fazem parte de nosso dia-a-dia, são como o ar que respiramos. Selecionamos os mitos que, nascidos na modernidade, permanecem como referência: na ciência, Frankenstein; na economia, Drácula; na política, Leviathan; na sociedade, o grande líder, mágico, ilusionista e sedutor. Thomas Hobbes, já no século XVII, inspirado nos relatos bíblicos, desenha o surgimento do Estado moderno, com as cores do monstro Leviathan. Aquele monstro que surgia das águas, misto de baleia e dragão, ser amedrontador que castigava os rebeldes habitantes das margens – os homens em luta. Se o medo caracterizava a natureza dos indivíduos, agora o medo serve para colocá-los lado a lado na vida em comum. O monstro se alimenta, para a segurança de todos e de cada um, 7 Coleção Convite ao pensar com a perda da liberdade, valor incompatível com a sobrevivência e a vida política. Monstro que se apresenta como deus salvador, necessário protetor. Drácula, outro monstro emblemático, nascido na Transilvânia (atual Romênia), é sinônimo do sangue roubado dos que se esforçam na produção de bens e perdem o bem mais precioso – o sangue da própria vida. Aqui, o sangue não é só metáfora mas regra traçada pela civilização moderna. Frankenstein não é o monstro, mas o cientista Victor que alimenta sonho recorrente em todos os pesquisadores: criar a vida em laboratório ou, pelo menos, criar um homem feito de partes de cadáveres. O poder de criar surge como sonho e heresia suprema, pois faz Victor querer se igualar a Deus. A criatura produzida pela ciência traz em si a punição por tamanha ousadia – ele foge ao controle do seu amo e senhor. Metrópolis, o filme de Fritz Lang, mostra imagens pioneiras da cidade moderna, misto de felicidade e progresso, que guarda em suas entranhas as sementes da revolta. A arte antecipa a desolação, as massas, a grandiosidade e a ira de seus habitantes. Nesta terra devastada, descrita pelos poetas e músicos, a memória – marca de identidade humana – tem seus elementos corroídos pelo avanço da insensatez e da barbárie. A história dos homens se faz sem que eles atentem para o passado. Perdida a memória (bem destituído de valor nas atuais circunstâncias), o desastre parece iminente. Mário e o Mágico, pequeno relato de Thomas Mann no início do século, coloca o indivíduo perturbado entre as ilusões que não foram perdidas e as formas de controle cada vez mais totalizantes. 8 Apresentação Temos, bem próxima a nós, a figura do governante que encarna as forças irracionais, adoçadas pela sedução das palavras e pelas imagens que apelam aos sentimentos mais primários. Francisco Goya já lembrava, em seus Caprichos, que “el sueño de la razón produce monstruos”. Os mitos do progresso sem-fim, da felicidade ao alcance das mãos, do fim da história estão sempre gerando deuses. Deuses que se metamorfoseiam em seus opostos – os monstros produzidos pelos ardis da razão. 9 Coleção Convite ao pensar 10 DÍVIDA DE GRATIDÃO: PODER E IMAGINÁRIO Lucília de Almeida Neves À Maria Helena Capelato A História realiza-se em uma dinâmica temporal, tecida por múltiplos fios que compõem uma tapeçaria complexa e heterogênea em seus elementos constitutivos. Na trama da História, dentre diferentes realidades e fatores, estão presentes temporalidades várias, relações espaciais, relações socioculturais, condições econômicas, valores, representações, urdiduras do poder e substratos da memória. Otávio Ianni afirma que a memória é o segredo da história... Ela envolve a lembrança e o esquecimento, a obsessão e a amnésia, o sofrimento e o deslumbramento. [...] Sim, a memória é o segredo da História, o modo pelo qual se articulam o presente e o passado, o indivíduo e a coletividade.1 Analisar a história a partir de sua interação com os tempos da memória é uma tarefa complexa, pois, à memória integram-se lembrança e esquecimento, fragmentação e totalidade. À História, que é um procedimento intelectual de construção do saber, cabe captar, nas diferentes fontes da memória, elementos e informações que possam subsidiar a reconstrução do passado com criatividade e rigor. Dessa forma, o conhecimento histórico estará 11 Coleção Convite ao pensar cumprindo tripla função: realimentar e recriar a memória social; narrar o acontecido e, finalmente, produzir interpretações consistentes sobre o que, sendo passado, é também presente, pois as marcas essenciais dos processos ficam registradas como tatuagens na vida das comunidades através dos tempos que se sucedem. A memória social brasileira tem contribuído para demonstrar que a História do Brasil tem, nas relações políticas e sociais assimétricas, uma de suas principais características. Ao longo dos cinco séculos de sua trajetória foi sendo urdida e solidificada uma cultura de dominação, pela qual, de forma geral, os interesses privados foram se apropriando da máquina pública, imiscuindo-se nos negócios de Estado e fazendo da administração que deveria ser voltada ao interesse coletivo, instrumento de gerenciamento de interesses particulares. Nessa dinâmica de apropriação das instituições nucleares de poder, as elites políticas e econômicas da nação desenvolveram práticas de estabelecimento de vínculos pessoais com os setores populares da população. Tais práticas constituíram uma forma de cultura política através da qual a obrigação dos governantes de implementação de políticas públicas, voltadas ao atendimento das necessidades da população, passou a ser comumente identificada como favor, como dádiva. Da dádiva brotou a dívida. Dívida de gratidão que tende a enredar os “beneficiários” do favorecimento governamental a uma dinâmica de dominação e submissão que, como num prisma multifacetado, apresenta heterogêneas formas de expressão e de efetivação. Dessa forma, as relações de poder no Brasil e, de forma geral, na maioria dos países latino12 Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves americanos, todos profundamente influenciados pela tradição autoritária da cultura ibérica, são, de forma indelével, caracterizadas por forte verticalização do poder, pela ausência de uma efetiva e ampla competição política e por processos recorrentes de exclusão política – estruturalmente vinculados à exclusão social. Tal afirmação pode, à primeira vista, parecer muito ampla e pouco esclarecedora das especificidades históricas de cada formação social, de cada país latino-americano. Mesmo porque já se encontra bastante consolidado o pressuposto de que análises generalizadoras não constituem a melhor e mais adequada forma de abordagem dos movimentos da história, uma vez que cada formação social expressa uma experiência própria, peculiar. Mas, não deixa de ser também verdadeira a existência de traços comuns (religiosos, culturais, políticos, geo-históricos...) à trajetória e à estrutura de diferentes países. Captar as diferenças e as similitudes de realidades históricas peculiares pode constituir-se em um desafio potencializador de análises e interpretações inovadoras. Quando se trata, em especial, de interpretar as diversas formas de autoritarismo que têm grassado na América Ibérica, buscando entender a construção da lógica da dominação nos diferentes países que a integram, a análise histórica comparativa adquire um valor primordial. No presente trabalho, estaremos buscando compreender como se criou e se reproduziu aquilo que se tornaria uma verdadeira categoria inerente à efetivação do processo de dominação na América Latina, que é a chamada dívida de gratidão. Para tanto, recorreremos a uma autora em especial: a historiadora Maria Helena Capelato. Em seu livro Multidões em cena: propaganda política no 13 Coleção Convite ao pensar varguismo e no peronismo (1998), deixou-se seduzir pelo desafio da análise comparativa e produziu instigante interpretação sobre as relações de poder e dominação, nas experiências do getulismo no Brasil e do peronismo na Argentina. Elegendo como eixos centrais de sua reflexão os temas do poder e do imaginário, produziu texto histórico de qualidade ímpar, sustentado em interpretação original e bem estruturada, que analisa dois processos interligados: construção, através da propaganda, da idéia de concessão de benefícios à população pelos detentores do poder e constituição de um imaginário social de esperança, através do qual os beneficiários da “concessão” desenvolvem, em relação aos governantes, laços de gratidão e dependência. A ênfase de nossa abordagem, todavia, se diferenciará parcialmente da de Capelato. Enquanto a autora centrou seus esforços, como já referido, na análise comparativa entre Brasil e Argentina, buscaremos orientar nossos argumentos, principalmente, no que concerne à realidade brasileira. Para tanto, além de nossa interpretação pessoal, recorreremos, de forma complementar, a dois outros autores: Jorge Ferreira, que apresenta uma tese revisionista dos temas da manipulação e gratidão em seu livro Trabalhadores do Brasil: o imaginário popular (1997) e Alcir Lenharo, que acrescentou belíssima contribuição aos estudos históricos sobre política e cultura nos anos trinta, com seu livro Sacralização da política(1986). IMA GENS E SÍMBOLOS: O PO VO E O PODER MAGENS POV A nova geração de historiadores políticos bem sabe que, na rede temporal da história, os mitos fundadores são tão importantes quanto os mitos mantenedores. Dessa forma, datas são eleitas para 14 Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves simbolizarem o início “de um novo tempo” ou mesmo o seu final. A definição da cronologia histórica, portanto, não é aleatória. Relaciona-se à construção e reprodução de mitos, símbolos, imagens. Tal fato tem um significado tão profundo que Eduardo Lourenço diz que “a hora de nascimento de um povo – que pode ser ou não da sua cultura – não se compara a nenhuma outra” e ainda que “a sacralização das origens faz parte da história dos povos como mitologia”.2 No âmbito da história política incluem-se também as práticas de construção de representações e o exercício direto do poder. A compreensão do significado dos símbolos e das imagens no cotidiano das relações sociais e políticas é fundamental à compreensão do complexo processo de constituição de identidade de uma nação, que inclui construção de mitos, elaboração/solidificação da memória coletiva , além da percepção imagética que o povo tem de si mesmo e de seus governantes. Para Capelato, a propaganda política voltada à construção de relações de identidades múltiplas (interpessoais, comunitárias, nacionais), ao tempo de Vargas e Perón, não se furtou à utilização de diferentes recursos, especialmente o do uso de imagens religiosas como as do cooperativismo, da suprema valoração do trabalho e da hierarquização social e política. Também Lenharo desenvolve rica argumentação em torno da idéia de que, no Brasil de Getúlio Vargas, a nação era apresentada e reverenciada como totalidade mística. A todos era destinada uma função específica e honrada na ordem social. Todos eram chamados a colaborar, a cooperar. Todos eram responsáveis pela criação/ construção da nacionalidade. Todos, governantes e governados, através de uma relação hierarquizada mas respeitosa e harmônica, deveriam se integrar 15 Coleção Convite ao pensar ao processo maior e supremo de consolidação da nação. Uma nação unida na alta dimensão de superação de seus atrasos estruturais; uma nação forte e livre de disparidades e de conflitos esterilizadores. O mito mantenedor realizaria, assim, sua potencialidade e destino. Um povo em movimento, uma nação em construção, uma realidade mítica em processo vigoroso de elaboração. Na verdade, o Brasil da segunda metade dos anos 30 e da primeira dos anos 40 passou por um tempo marcado por uma prática política autoritária que utilizava dois recursos para sua efetivação. O primeiro, voltado para a construção da legitimidade do regime, priorizava a cooptação e a adesão do povo aos projetos governamentais. O segundo, em caso de dissidência, resistência e oposição ao programa governamental, utilizava mecanismos coercitivos de diferentes espécies. Ou seja, quando o processo de legitimação sofria alguma objeção ou revés, em decorrência de manifestações de contraposição ao governo, recorria-se à censura, às prisões etc. Como o assunto central deste texto refere-se à construção da legitimidade, traduzida por nós como dívida de gratidão, deixaremos de lado o foco da coerção e centraremos nossas reflexões em torno dos seguintes assuntos-chave, relativos à mobilização social e à construção de estratégias para enredamento do povo ao governo e vice-versa: propaganda e imaginário, construção da idéia nação e novo modelo de cidadania. PROP AGAND A ROPA GANDA POLÍTICA: HARMONIA E PAR TICIP AÇÃO ARTICIP TICIPAÇÃO Ferreira busca em Giznburg o conceito de circularidade cultural e o aplica, de forma sensível, 16 Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves aos anos 30 no Brasil. Demonstra, em seu trabalho, que as idéias produzidas pelas classes dominantes e pelas elites governamentais não foram simplesmente impostas e assimiladas acriticamente pelos “de baixo”. Na verdade, para o autor, os projetos governamentais não foram impostos, nem mesmo se implementaram através de uma via de mão única. De fato, segundo sua interpretação, existiu um processo de circulação de idéias entre governo e população. Entende também que proposições de governantes precisam, para sua implementação, da adesão, ou mesmo de resposta da sociedade civil. Somente assim poderão ultrapassar o terreno da elaboração teórica para se constituírem em práticas políticas e sociais concretas. Em outras palavras: idéias e propostas, mesmo quando predominam práticas governamentais autoritárias, não são impostas, circulam. Portanto, para o autor, entender a propaganda política do Estado Novo implica em analisar os objetivos do remetente (governo) e a forma de internalização e apropriação da mensagem pelo destinatário (população). É inegável que Getúlio Vargas representou uma corrente política que elaborou e implementou um projeto para o Brasil. Um projeto autoritário, estatista e desenvolvimentista, fortemente inspirado no positivismo e no corporativismo, mas sobretudo um projeto nacionalista, que apostava tudo na unidade nacional e na superação de dissensos sociais e políticos. Cabia ao governo conquistar a adesão dos diferentes segmentos da sociedade brasileira para seus objetivos. Nesse largo espectro social de construção da unidade e solidariedade nacional, cabiam empresários, oligarquias rurais, intelectualidade urbana, profissionais liberais, educadores e, principalmente, trabalhadores – a 17 Coleção Convite ao pensar classe operária – a quem Lenharo identifica como “menina dos olhos do presidente”. Buscando atingir esses segmentos sociais e também crianças, jovens e mulheres, foi articulado um amplo sistema de propaganda – um sistema sofisticado, com mensagens específicas para cada um dos destinatários. Todavia, a maior gama de mensagens era destinada aos jovens e aos trabalhadores. Aos trabalhadores, por serem considerados responsáveis diretos pela construção do presente da nação, e aos jovens, por estarem se preparando, no presente, para assumir, no futuro, a direção do país. Era preciso tecer uma rede de lealdade. Em algumas ocasiões, o governo, em função da resposta da população, via-se compelido a realizar concessões e reformular mensagens. Mas, o que na verdade importava, era a criação de laços mútuos: dádiva/dívida/dádiva. Só assim o projeto de construção de uma nacionalidade sólida poderia frutificar e alcançar durabilidade. Para Capelato, os objetivos da propaganda política estadonovista e peronista eram basicamente os seguintes: ! criação de vínculos sólidos entre a população e o governante, através da “mobilização social das massas”; ! divulgação de imagens relativas à distribuição, pelo governo, de bens e benefícios à população (distributivismo social), visando reforçar vínculos de gratidão e dependência da população para com o líder governamental; ! apaziguamento social, através da divulgação de uma concepção de unidade nacional, em torno de um projeto desenvolvimentista, ancorado em forte distributivismo social, processo esse dirigido e implementado pelo Estado. 18 Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves Os mecanismos de propaganda de massa estruturavam-se em torno de peças e ações extremamente criativas. Tanto Capelato quanto Lenharo destacaram que a circulação de imagens e idéias políticas, destinadas a reforçar as estruturas afetivas e de dependência dos governados para com o líder (governante), se processou através de diferentes recursos. Era comum organizarem-se festas cívicas, momentos de audiência governamental (públicos ou privados), comemorações de todo tipo – dia da colheita, dia da raça, culto à bandeira nacional. Além disso, procurou-se difundir uma idéia denominada por Lenharo de “pátria em movimento”, idéia essa muito bem traduzida pelos seguintes versos de Villa-Lobos: Na grandeza infinita é feliz quem vive nesta terra santa que não elege raça nem prefere crença. Oh! Minha gente! Minha terra! Meu país! Minha pátria! Prá frente! A subir! A sambar!3 Era preciso construir um sentimento de participação e mobilização permanente em torno da construção da nação. Para tanto, eram organizadas paradas cívicas e marchas da juventude. Todas precedidas, na sua “linha de frente”, por amplo cartaz no qual a figura do líder ganhava destaque especial através de gigantescas fotografias. No Brasil, chegou-se a organizar um movimento de maior vigor e dimensão: “A Marcha para Oeste”, cujo objetivo prioritário era o do povoamento do interior, mas cujo caráter simbólico era o de afirmação da brasilidade (étnica, cultural, econômica, territorial, política e social). 19 Coleção Convite ao pensar Festas cívicas, dia da raça, construção de monumentos – ao índio, ao trabalhador, ao soldado. Tudo isso se inseria em um processo mais amplo, de uso e abuso de imagens e recursos de toda ordem, direcionados à criação de um processo político e social, marcado pelo selo da unidade e da harmonia. Não faltaram cartilhas (na Argentina alfabetizava-se a partir do nome de Eva), cartazes de propaganda, fixação da figura do líder e da bandeira nacional em réguas, capas de cadernos e de gibis. Mas, o melhor e mais eficaz meio de comunicação e propaganda utilizado no período varguista e também peronista foi o rádio. No dia-a-dia a presença do rádio foi marcante na vida dos brasileiros. Getúlio Vargas dirigia-se à população de forma direta, como faz um pai a um filho. Um paternalismo afetuoso e autoritário, que afagava, concedia e cobrava lealdade. O rádio criava uma sensação de participação e diálogo, que foi muito bem explorada na construção da categoria dívida de gratidão. Todavia, como afirma Ferreira, o processo de construção de símbolos jamais chegou a ser linear. E a dívida de gratidão, mesmo tendo se tornado uma realidade inexorável, não chegou a ocultar, ou mesmo a apagar, a identidade e também as reivindicações dos trabalhadores brasileiros. Em outras palavras, como sujeitos históricos, os próprios trabalhadores apropriaram-se das mensagens propagandísticas a eles destinadas, transformando um processo que poderia ter sido somente dirigido de cima para baixo em um processo compartilhado (inclusive na criação dos próprios laços de dívida e lealdade). Não fosse dessa forma, o mito, a figura legendária de Vargas, não teria sobrevivido ao tempo e perdurado como referência especial na vida política brasileira. 20 Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves NAÇÃO E CID AD ANIA CIDAD ADANIA Para Capelato um dos objetivos primordiais do modo getuliano de fazer política era a criação da harmonia social, através da extinção de conflitos de qualquer natureza: políticos, sociais e econômicos. Tratava-se de substituir uma concepção de cidadania individual, competitiva, própria ao liberalismo da República Velha, por uma nova concepção de cidadania: solidária, cooperativista, vinculada de forma estreita à nação e desvinculada dos valores competitivos do mercado. Para tanto, recorreu-se, em larga escala, à propaganda. O cidadão trabalhador ganhou relevância, importância, nas mensagens que divulgavam o projeto de construção de uma nação soberana e desenvolvida. Ser cidadão era ser trabalhador. O melhor e maior símbolo de cidadania do período era a carteira de trabalho. O trabalho era identificado como forma ideal de emancipação do homem e de valorização da pátria. Na verdade, na década de 30 e, em especial, no período estadonovista, ocorreu uma priorização dos direitos sociais e coletivos da cidadania em relação aos direitos civis e políticos, que foram relegados a um segundo plano. Tal orientação era coerente à perspectiva organicista e corporativista, hegemônica àquela época. Tratava-se de subdimensionar valores individuais que sedimentavam uma concepção liberal de governo e de superdimensionar valores cooperativistas, que afirmavam uma concepção positivista e organicista de sociedade civil em particular, e de nação no seu conjunto.4 O verdadeiro cidadão caracterizar-se-ia por ser alguém útil à comunidade nacional. Um sujeito histórico que deveria: 21 Coleção Convite ao pensar ! deixar-se contagiar pelo otimismo; ! considerar o dever cívico do trabalho como um prazer; ! entender que sua contribuição era vital ao pleno desenvolvimento de todas as potencialidades do corpo da nação. Aliás, Lenharo trabalhou com especial maestria a metáfora e alegoria da nação como corpo: corpo uno, saudável, indivisível, harmonioso. Os conceitos de cidadania e de nação, no decorrer da década de 30, amalgamaram-se. Constituíram-se como elementos de um mesmo processo histórico através do qual o homem cidadão passou a ser identificado como construtor da nação, e a nação passou a ser identificada como totalidade orgânica que acolhe e protege os seus cidadãos. A nação, identificada como corpo, seria formada por partes (cidadãos – sociedade e governo – cabeça) com funções específicas, complementares e não-conflitivas. Ao líder caberia a direção do processo, a preservação da unidade corporal pelo uso adequado e firme da autoridade política. Tratavase, na verdade, de um governo centralizador e intervencionista, que conduzia um projeto nacional cujos principais pressupostos eram: ! sobrevalorização da autoridade governamen- tal executiva; ! desenvolvimentismo econômico; ! distributivismo social; ! nacionalismo; ! cooperativismo; ! valorização de uma concepção de democracia baseada na justiça social, e não na liberdade política; 22 Dívida de gratidão: poder e imaginário – Lucília de Almeida Neves ! valorização dos direitos coletivos da cidadania, em relação aos direitos individuais. Na verdade, tratava-se de um projeto articulado e implementado por um governo de base autoritária, que não considerava a liberdade individual como um valor prioritário e que, em contrapartida, considerava supremo o valor coletivo da nação. Ao líder da nação (governante) caberia agir como árbitro para evitar conflitos. Caberia também promover o bem comum através de concessões e doações aos cidadãos. Trata-se do que Capellatto define como ideologia da outorga, claramente explicitada em discursos oficiais repletos de palavras que enfatizavam/demonstravam uma relação de doação do governo para com a sociedade civil. Uma relação que implicava em receber e, em contrapartida, em agradecer. Estavam, assim, criados dois pressupostos claramente integrados um ao outro: “dívida de gratidão” e “concepção de governante como mito protetor e como pai provedor”, um líder que sabia antecipar-se às demandas e desejos de seus governados, buscando simultâneamente satisfazê-los e neutralizar suas pressões. Na verdade, como afirma Jorge Ferreira, a relação de identidade dos cidadãos trabalhadores com Vargas não foi construída no vazio, ou somente se baseou em conquistas abstratas, divulgadas pela propaganda oficial. O projeto varguista, com todo o autoritarismo que o caracterizou, traduziu-se para os trabalhadores em ganhos materiais e simbólicos efetivos. Não fosse tal fato, a dívida de gratidão, que à primeira vista parece ser um mecanismo exclusivo de submissão, não teria, paradoxalmente, se constituído como uma relação recíproca de cumplicidade e lealdade, que supunha serem, 23 Coleção Convite ao pensar tanto o governante como a sociedade civil, em especial os trabalhadores, sujeitos históricos dotados de capacidade de pressão e negociação. Trata-se de uma concretização histórica do conceito de circularidade social. Conceito este que não desconhece as experiências autoritárias, mas que considera a mediação e a negociação, em quaisquer circunstâncias, como elementos inerentes à dinâmica da própria História da humanidade. NOTAS 1 IANNI. “A Ditadura Militar no Cárcere”, p.10 2 LOURENÇO. Mitologia da Saudade, p.91. 3 Citado por LENHARO. Sacralização da política, p.53 4 Sobre o assunto vide: NEVES. “Cidadania: dilemas e perspectivas na república brasileira”, p.200-225. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAPELATO, Maria Helena. Multidões em cena - propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas: Papirus, 1998. FERREIRA, Jorge. Trabalhadores do Brasil - o imaginário popular. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997. IANNI, Octávio. “A ditadura militar no cárcere”. Caros Amigos. São Paulo, Editora Casa Amarela, n.32, 1999. LENHARO, Alcir. Sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986. LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. NEVES, Lucilia de Almeida. “Dilemas de perspectivas da cidadania na República Brasileira”. Revista Tempo, Niterói: UFF, n.4, p.200-225, 1997. 24 HOBBES: ÉTICA E POLÍTICA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS João Carlos Lino Gomes Nosso objetivo, neste texto, é apontar para a possibilidade de uma discussão sobre a teoria política e a ética hobbesianas no que se refere às relações internacionais. O caráter ensaístico do nosso texto está fundado no fato de que este tema é apenas levantado por Hobbes, sem um maior aprofundamento. Para chegarmos a este problema em Hobbes, mostraremos como sua teoria política é devedora de todo um movimento cultural que se convencionou chamar de modernidade. Em nossa hipótese de trabalho, partiremos da idéia de que é impossível, no interior da obra de Hobbes, a extinção do medo da morte violenta do ponto de vista das relações entre países, já que o filósofo não consegue pensar um Estado acima dos Estados particulares que venha a coibir os conflitos que possam surgir entre estes. Acreditamos que o século XX – apesar de todas as conquistas no campo da diplomacia a que inegavelmente assistimos, e levando em consideração a globalização da economia, que tem unido mercados e colocado em questão a própria idéia de soberania (tão cara a Hobbes) – ainda não conseguiu dar conta desta desconfiança mútua que marca a relação entre os Estados. Não nos parece difícil perceber a dificuldade com que a ONU tem arbitrado os vários conflitos 25 Coleção Convite ao pensar que têm explodido no mundo nos últimos anos. É necessário frisar, também, que as forças de paz da ONU somente logram desempenhar sua missão porque são forças armadas. A intervenção armada levada a efeito por países como os Estados Unidos ou por alianças como a OTAN, sem a autorização do conselho de segurança da ONU, é outro indicador do desgaste sofrido por esse organismo nos últimos anos. Tudo isso nos mostra que, em certo sentido, nas relações entre os países, o que ainda está em jogo é a lei do mais forte. Se o Estado é, em Hobbes, a instância que funda a moralidade, e se não temos nesse pensador uma teoria sobre a possibilidade de um Estado dos Estados, as relações internacionais serão sempre movidas por uma ética relativista comandada, em última instância, por aqueles países que podem acenar para os outros com a possibilidade da morte violenta. Isso não significa que a humanidade enfrentará necessariamente, no futuro, guerras de grande porte (até porque elas são caras demais), mas, que a possibilidade do confronto e a fragilidade das diplomacias continuam sendo desafios com os quais os seres humanos têm que lidar. I Thomas Hobbes é um filósofo do século XVII e, portanto, viveu em um momento em que a nossa modernidade tentava construir seu ethos, seu modo de ser. Nesse momento, ela tentava dar a razão de si mesma não só a partir de mudanças históricas concretas mas, principalmente, criando representações que conseguissem estabelecer um fundamento ideológico que justificasse esse novo momento da história. Mas, quando falamos sobre a modernidade, o que está efetivamente em questão? Essa pergunta 26 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes se coloca na medida em que levamos em consideração as análises de Alexandre Koyré, quando esse filósofo escreve que várias épocas na história do ocidente se consideraram modernas com relação à época imediatamente anterior.1 Isso caracteriza uma necessidade de momentos históricos específicos se autolegitimarem, face àquele que pretendem negar. Dessa forma, justifica-se nossa pergunta: qual é a modernidade que se coloca como pano de fundo da obra de Hobbes? Bem, Hobbes é um filósofo político. Um dos primeiros, aliás, que aposta na possibilidade de se levar para a reflexão política o modelo de racionalidade que nasceu com o advento do saber científico moderno. Sendo essa, cremos, uma das chaves importantes para compreendermos esse pensador, temos que compreender como se constituiu essa ciência. A ciência moderna nasce efetivamente com Galileu, no século XVII. Numa caracterização sucinta, ela se diferencia do saber que se elaborou na Idade Média em função da sua libertação com a relação ao mundo da experiência. A experiência que passa a contar para o cientista moderno é aquela construída a partir da elaboração de hipóteses que devem ser verificadas através de experimentos. Como queria o próprio Galileu, o cientista moderno não se submete mais à natureza, mas, pelo contrário, ele a submete. Para tanto, a matemática (geometria) torna-se um poderoso instrumento para a operacionalização da realidade, na medida em que permite a efetivação de cálculos cada vez mais exatos e a tradução da complexa realidade do mundo físico, num conjunto de leis e fórmulas que simplificam o acesso do homem a essa realidade e lhe garantem a apreensão de sua estrutura. Dessa forma, a natureza deixa de ser um 27 Coleção Convite ao pensar organismo possuidor de uma alma e passa a ser entendida como uma máquina, passível de ser explicada a partir de hipóteses corretas e de um uso adequado do método científico. É esse método, segundo Norberto Bobbio, que Thomas Hobbes, conhecedor dos debates acerca da ciência do seu tempo, irá tentar transpor para a sua filosofia política.2 Assim, tal como o cientista moderno, Hobbes não está interessado em encontrar essências na realidade política e moral do homem mas, sim, em compreender as estruturas do agir humano e as leis de constituição da realidade política. O homem, para o filósofo, apesar de se apresentar como um ser dominado por paixões, possui certas estruturas em seu comportamento que dão a este um certo grau de previsibilidade. Com essa perspectiva, Hobbes abandona o ponto de vista greco-medieval de uma razão que busca o sumo bem, e torna-se um dos primeiros pensadores a aplicar o modelo técnico-científico de razão à política. Se em Hobbes a ética está submetida à política – já que, como veremos, só se pode falar de valores morais depois do advento do estado de sociedade – não é possível se pensar, nesse autor, uma ética fundada em valores absolutos e transcendentes. Se no plano das relações pessoais ainda podemos pensar alternativas para essa perspectiva ética, no que concerne às relações internacionais, onde com certeza a guerra aberta não é considerada um bom recurso, um certo estado de tensão latente parece marcar as relações entre os países. Essa tensão, longe de inviabilizar as relações entre os governos, exige um constante repensar das estratégias diplomáticas e dos pactos estabelecidos. Mas, o momento histórico de Hobbes também é importante para compreendermos esse pensador 28 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes e o próprio universo cultural que viu nascer a ciência moderna. Sem dúvida, para levarmos a efeito esta compreensão, temos um elemento histórico importante: a ascensão da burguesia que, sem condicionar mecanicamente o desenvolvimento da ciência moderna, produziu mudanças tanto no nível da história efetiva quanto no do imaginário que criaram, uma nova ordem de demandas por parte do homem e novas formas deste se relacionar com a natureza e com seu próprio semelhante. Sabemos que a burguesia é uma classe social que nasceu no seio da Idade Média. No período medieval, acreditava-se que o mundo tinha uma ordem preestabelecida por Deus, e o homem, dentre as criaturas, ocupava um lugar privilegiado, pois tinha sido feito à imagem e semelhança do criador. A qualidade fundamental desse homem era a razão, a chamada luz natural, que guiada pela fé auxiliaria o ser humano a seguir os caminhos ditados pela verdade revelada, aquela verdade que depois de atingida pareceria tão evidente que não demandaria uma demonstração. Ora, essa visão metafísico-religiosa medieval encontra seu correlato no plano da organização social característica da Idade Média. Para os medievais, a sociedade era constituída basicamente de três ordens: o clero, a nobreza e os servos de terra (a grande maioria). Quem não se encaixava em nenhuma dessas três categorias era visto como alguém que não tinha um lugar no mundo e, dependendo do ponto de vista de quem fazia essa leitura, merecia a piedade cristã ou as penas da lei. Como os burgueses se situavam nesse modelo de cultura? Simplesmente eles não se situavam. A burguesia faz, a partir da revolução comercial do século XIII, o comércio se tornar o eixo da sua experiência. Desvinculando 29 Coleção Convite ao pensar a atividade comercial da luta pela subsistência, os burgueses incrementam o empréstimo a juros, tornam o trabalho uma atividade importante para a própria constituição do homem, fazendo da atividade comercial (ao longo de vários séculos e com muitas idas e vindas) não somente um meio mas um fim fundamental da experiência humana.3 A burguesia começa a criar, a partir de sua ascensão, não só um novo molde para o mundo, mas também, um novo ethos, um modo de ser que fundará uma outra forma de civilização. Mas, nesse processo, os burgueses tornam-se pessoas que não irão se encaixar nem no clero, nem na nobreza e, muito menos, no grupo dos servos de terra. Ao mesmo tempo, eles não são simples mendigos ou marginais merecedores de punição. É um grupo que começa a aumentar o seu patrimônio e adquirir uma mobilidade própria do comércio. A igreja católica passa a condená-los particularmente no que diz respeito ao empréstimo a juros – usura – que é levado a efeito por eles; os senhores feudais ou os proíbem de passar por suas terras ou o permitem em troca de onerosos impostos. Perguntas assolam o imaginário medieval constituído: quem são estes que parecem não dever obediência a ninguém, que se movem com extrema rapidez e fazem dinheiro constantemente, muitas vezes, como no caso dos juros, sem a produção ou a venda de uma mercadoria efetiva? Na impossibilidade de uma resposta satisfatória, as perseguições ao projeto burguês continuavam e a burguesia tinha que fazer algo – e o fez. Como sabemos, uma das características do feudalismo era a descentralização do poder político, ou seja, o poder era exercido efetivamente pelos senhores feudais, e aos reis cabia apenas um poder simbólico. Estes últimos percebem o poder 30 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes econômico da burguesia e esta percebe a importância da idéia de unidade política que, embora na prática não existisse, se encarnava simbolicamente na figura do rei. Assim, o cenário está pronto para os tempos modernos. Os burgueses e os reis se unem e começam a enfraquecer o poder dos senhores feudais. A unificação do poder político e a ascensão do comércio (economia) ao primeiro plano na vida da sociedade constituem as bases fundamentais da modernidade no ocidente.4 Mas, como os elementos subversivos presentes na ascensão da atividade comercial ajudaram a implodir o ideário da Idade Média? Ora, o comércio exige trabalho e este, que era visto ou como indigno ou como mero instrumento para as classes privilegiadas, tanto na Grécia antiga quanto na Idade Média, torna-se a forma fundamental através da qual o homem vai colocar a sua marca no mundo, fazendo com que este seja moldado à sua imagem e semelhança. O trabalho ajuda a criar, no homem, o sentimento de que ele não está situado necessariamente e de uma vez por todas em um lugar específico dentro de determinada ordem. Ele, o homem, começa a se perceber como um ser que pode constituir o seu lugar a partir de sua ação, de suas capacidades. Isso significa que o homem é livre mesmo antes de se ligar a algum grupo específico, pois sua liberdade é, antes de tudo, liberdade individual. Outros elementos foram importantes para a constituição desse sentimento no homem ocidental (e falaremos ainda de alguns deles) mas, sem as mudanças históricas operadas pela ascensão do comércio, parece-nos difícil compreender as raízes da nossa modernidade. Entretanto, como herança desse valor dado à liberdade individual, ao indivíduo que a sustenta e ao trabalho que a constitui, ficará para os modernos a dramática pergunta: 31 Coleção Convite ao pensar como defender o primado do indivíduo sobre a sociedade e, ao mesmo tempo, garantir que esse primado volte-se em beneficio do todo? Em outras palavras: como impedir que os homens, voltados para os seus interesses privados, não venham a diluir a própria idéia de uma vida humana associada? Acreditamos que Thomas Hobbbes tentou, de forma sistemática, dar conta dessas questões. Nossas preocupações com o texto hobbesiano já se insinuavam quando nos defrontamos com a obra de Maquiavel. Na leitura do texto maquiaveliano tivemos a preocupação de compreender as inquietações do pensador florentino com a problemática que iria marcar a modernidade política do ocidente, qual seja: na inexistência de uma fundamentação transcendente para o poder político, tal como acreditava a tradição greco-medieval, cumpria aos modernos buscar as novas bases para essa fundamentação pois, sem elas, o poder se tornaria injustificável. É necessário que os modernos expliquem porque se justifica que uma certa maioria deva se submeter ao domínio de um grupo ou, até mesmo, de uma só pessoa.5 Mas, onde estaria o problema, afinal? Recapitulemos: desde que os filósofos se ocupam da reflexão política, o fato de que uns mandam e outros obedecem tem sido objeto de discussão, quando se tenta justificar esse fato através de uma série de argumentos racionais. Aristóteles, por exemplo, acreditava que a própria natureza (physis) estabelecia o lugar no qual cada homem nascia, e lutar contra essa determinação seria voltar-se contra a natureza, contra a ordem que sustentava o mundo.6 Assim, para o estagirita, tanto a vida dos homens em geral quanto a dos cidadãos tinham um fundamento absoluto que estava para além delas 32 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes (é claro que não podemos esquecer que Aristóteles não estabelece uma relação mecânica entre a natureza e o homem, pois ele acredita que, do ponto de vista da ética, a physis nos coloca naturalmente dispostos para o bem, mas somente através de bons hábitos é que nos tornamos efetivamente bons); e o filósofo privilegia em sua obra política a vida do cidadão que ele julga ser a mais feliz no mundo dos mortais. Vida mais feliz mas também um meiotermo entre a vida dos gozos e prazeres, típica dos que se deixam dominar pela parte apetitiva da nossa alma, e a contemplativa, própria dos deuses ou daqueles que mais se aproximam deles em função de seu apego à parte divina da alma, os filósofos. Já que, entre dois extremos de vida, Aristóteles se preocupa com a vida política, o pensador se vê obrigado a justificar sua preocupação e o faz a partir do estabelecimento de dois princípios: 1) O homem é um animal político; 2) A cidade existe por natureza. Entendamos estas duas posições: a primeira nos mostra que o homem tem uma tendência natural para a vida política. Isto quer dizer que, apesar do fato de que nem todos os homens serão cidadãos da pólis, esta é uma potencialidade que ajuda a definir o homem como humano. A segunda posição, que está interligada com a primeira, nos mostra que a construção política por excelência, ou seja, aquela na qual o homem poderá atualizar o seu ser político, é a pólis, a cidade tal como a Grécia conheceu no século V aC. Isso significa que Aristóteles, apesar de nos mostrar no livro A política que a associação dos homens se dá – num primeiro momento – pela urgência de suprir suas necessidades imediatas, não justifica o existir político a partir destas mas, sim, por um telos, a vida humana associada, que está para além dos nossos apetites individuais.7 33 Coleção Convite ao pensar Ora, essa convicção grega se perdeu com o advento da nossa modernidade. Não trataremos aqui das discussões medievais sobre os fundamentos do poder político porque elas fogem dos nossos objetivos neste texto – estamos, aqui, tentando traçar somente um paralelo entre o início da tradição do pensamento político ocidental e a Idade Moderna como o momento da constituição de uma outra forma de se experimentar e, particularmente, no que nos diz respeito como filósofos, pensar a política –, e também porque, em grande medida, a idéia de um fundamento transcendente do poder continuou fazendo fortuna na Idade Média. II Neste momento do nosso texto, nossa atenção deve se voltar para uma época específica, a Renascença, e, nesta época, para um pensador: Maquiavel. Um dos problemas centrais do pensamento maquiaveliano diz respeito à fundação do poder político. A Renascença foi um período em que o ocidente experimentou uma profunda ruptura no quadro dos seus valores tradicionais (o quadro dos referenciais greco-medievais) e também a dificuldade de se estabelecer um novo horizonte axiológico que iria orientar as ações do homem no mundo. Sem entrar na discussão sobre se a Renascença seria melhor definida como o fim da Idade Média ou a porta de entrada da modernidade, o certo é que no Renascimento (e aqui, em função de estarmos discutindo Maquiavel, temos em vista o Renascimento italiano) aconteceram fatos importantes, tais como: o deslocamento da terra da sua posição de centro do universo, operado por Copérnico – que teve como impacto antropológico a perda sofrida pelo homem de um centro no universo (o homem passa, então, a ter de construir um 34 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes centro que ele descobre estar em si mesmo, como um ser de ação e liberdade); a invenção da imprensa, que permitiu uma maior agilidade na propagação de novas idéias; as grandes navegações, que ampliaram o mundo conhecido; a reforma, que operou uma cisão na cristandade ocidental com o advento de uma nova religião cristã, o protestantismo, mais próxima das mudanças simbólicas que ocorriam do que a igreja católica naquele momento; e o surgimento dos Estados Nacionais, caracterizados pela centralização do poder nas mãos dos reis (cuja aliança com a burguesia ascendente já demonstramos), pelo estabelecimento dos exércitos nacionais profissionais e pelo esforço dos Estados no sentido de demarcar/ delimitar seus territórios (algo extremamente complexo no sistema de feudos da Idade Média). Maquiavel (nascido na cidade italiana de Florença) vive, nesse período, em uma Itália não unificada (dividida em várias cidades-estado) e com profundos conflitos internos e externos, problemas de definição territorial e exércitos não raro formados por mercenários, sem nenhum compromisso moral com aqueles que os contratavam. Ao mesmo tempo, o florentino se encontra em um país que está no centro das crises européias, das querelas entre o papado e os reis, do financiamento das grandes navegações e do florescimento do que hoje chamamos de capitalismo financeiro (os banqueiros italianos foram fundamentais para o amadurecimento do sistema capitalista europeu). Desejando que seu país se tornasse forte e comandado por um poder central que impedisse o seu esfacelamento, o pensador construiu suas reflexões a partir desta pergunta subjacente em suas principais obras: qual é o fundamento do poder político? Ou seja: por que é necessária a constituição de uma instância que esteja acima dos interesses pessoais 35 Coleção Convite ao pensar dos homens e venha a coagi-los a viver associadamente? Em Maquiavel a resposta é clara: os homens são naturalmente maus e, como são regidos por paixões, somente um poder que possa se sobrepor a eles pode mantê-los juntos e respeitando as leis. Sendo assim, não é prudente, da parte de quem encarna o poder político, acreditar que a política é necessariamente da ordem da razão, pois ela não é. A política não é ciência, ela é técnica e jogo. Dessa forma, o campo político se afigura para os homens como um espaço onde a imprevisibilidade das ações humanas deve ser considerada, e nem a razão prática de Aristóteles, que, ao contrário da razão teórica, trabalha a partir da lógica do provável, pode nos auxiliar, pois o mundo da política – em Maquiavel – não encontra o seu fundamento na moral. É claro, podemos pensar, que um jogo pressupõe regras, uma lógica cuja observação faz diferença entre o bom e o mau jogador. Mas, se a observação é correta, ela não serve como um argumento contrário à nossa idéia de que Maquiavel não vê uma racionalidade imanente à política. Isto porque os jogos possuem regras justamente para verificar a criatividade dos jogadores, precisamente para medir a capacidade dos jogadores de instaurar o diferente (um certo estilo de jogar, uma jogada diferente, um blefe). Dessa forma, quem está no poder tem de saber agir de acordo com as circunstâncias, e nunca deverá acreditar na existência de padrões de comportamento que lhes possam dar a chave do embate político. Se a esfera da política é racionalizável, ela não é em si mesma racional. Isso significa que, se podemos compreender pela razão a ação dos homens ou até mesmo, em algumas situações, antecipar-lhe a efetivação, é também possível ao governante ser um bom observador das ações 36 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes humanas e um hábil aplicador da sua faculdade de compreendê-las. Se existem ações racionais ou mesmo se elas ocupam um lugar maior ou menor na vida das pessoas, este, a nosso ver, não é o problema de Maquiavel. A questão que nos parece clara é que, para o florentino, não há uma associação imediata entre razão e ação. Sendo assim, a capacidade de administrar as paixões humanas é uma das qualidades fundamentais de quem governa (os economistas, face à instabilidade de sistemas econômicos que flutuam em função dos sentimentos das pessoas, tiveram que aprender duramente essa lição, na segunda metade do século XX). Pois bem, em nossa investigação sobre o texto maquiaveliano algo ficou claro para nós: Maquiavel com certeza não se orienta mais dentro dos limites da razão grega, pois não associa a razão com o bem e nem acredita que as ações políticas sejam em si mesmas racionais (seja num modelo mais estrito de racionalidade, como a platônica, seja num modelo mais flexível como o aristotélico, que admite que a ética e a política, diferentemente da física e da metafísica, só podem ser pensadas sob o prisma da razão prática que, como vimos, se aplica sobre raciocínios prováveis e nunca sobre os exatos). Entretanto, ao mesmo tempo, não nos parece claro o modelo de racionalidade ao qual o florentino se remete quando tenta pensar o mundo da política. Mas, com certeza há algum modelo pois, como já afirmamos, se o pensador não toma a política como racional em si, é certo que ele não lhe nega a possibilidade de ser apreendida pela razão. Se assim não fosse, não se justificaria em Maquiavel a reflexão sobre a possibilidade da fundação de um Estado que estabelecesse uma ordem nas paixões dos homens. 37 Coleção Convite ao pensar Esta responsabilidade de pensar a razão moderna conjugada com a política recaiu sobre o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679). Nosso interesse na obra de Hobbes, é caracterizar o conceito de razão subjacente às reflexões desse filósofo (uma razão que é puro cálculo), e mostrar que essa razão funda uma ética que, se pode ser administrada no plano das relações interpessoais no seio de um certo Estado (uma ética que em linhas gerais se constituiria a partir do medo que estaria subjacente às relações humanas), no nível das relações internacionais ainda seria um problema com o qual os homens têm que lidar. Isso nos ocorre apesar de reconhecermos, como já foi frisado anteriormente, os avanços que a diplomacia tem feito no ocidente e a nova configuração que a política internacional tem adotado diante do fenômeno da globalização. Nosso interesse por esse tema se aguçou particularmente quando percebemos que Hobbes não aprofunda a discussão sobre as relações entre os Estados que viveriam, para ele, numa constante tensão face à possibilidade de um efetivo conflito. Nosso problema deve ser assim apresentado: em Hobbes, não tem sentido falar de uma moralidade anteriormente ao advento do Estado, pois somente este pode definir, dentro de um certo universo, o que é justo e o que é injusto, o que é certo e o que é errado. Na definição desses conceitos, o Estado não parte de princípios estabelecidos a priori e válidos universalmente (à maneira do imperativo categórico de Kant). O moralmente correto e o seu oposto só se definem dessa forma a partir do arbítrio do Estado. A moral, então, se funda em imperativos hipotéticos em que a avaliação de uma dada ação só será possível se se levar em conta as condições subjacentes à efetivação desta. Cabe ao poder político, por exemplo, definir em que situação a 38 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes morte de um homem será definida como crime ou legítima defesa. Ora, para que esta moral fundada em imperativos hipotéticos possa funcionar, Hobbes não pode confiar na boa consciência dos homens (na qual, aliás, ele não acredita). É necessária a instauração das leis civis para que a moralidade venha efetivamente se estabelecer. Sendo assim, a esfera do Direito é um elemento fundamental na teoria política hobbesiana, e nós a definimos aqui, tal como Hans Kelsen, como aquele ordenamento social que cria expectativas de conduta nos homens, a partir do estabelecimento de regras e das correspondentes sanções para o caso do seu descumprimento.8 Do Estado mais democrático ao mais autoritário esta idéia básica tem de ser seguida. Vale lembrar que uma das lutas mais árduas do nosso século, a luta pelos direitos humanos, pode ser definida, em última instância, como o esforço para fazer presente nos códigos legais de todo mundo dispositivos que reprimam a tortura, a prisão ilegal etc. Pois bem, se o Direito garante a moral, no plano interno aos Estados teríamos como pensar hobbesianamente o estabelecimento da paz interna. Mas, e no plano internacional, como garantir uma regulação moral nas relações entre os Estados, fundada num Direito efetivamente internacional? Hobbes não enfrenta o problema e acreditamos que isso se dá em função do seu apego à idéia de soberania. Como se sabe, segundo essa idéia, o poder soberano é irrevogável, absoluto e indivisível. Pensar uma instância que estivesse acima dos Estados (uma espécie de Estado dos Estados) e que, dessa forma, fundasse a legalidade e conseqüentemente a moralidade, seria contraditório. Isso porque esse Estado dos Estados passaria a ser o soberano por excelência, e diluiria o poder soberano dos outros países. 39 Coleção Convite ao pensar No próprio momento histórico em que Hobbes vive, a preocupação dos países é justamente a sua autoconstituição e não o reconhecimento dos outros. Assim, resta a cada país conviver com o medo de ser anulado pelo outro. O estado de natureza suplantado pelo estado de sociedade seria uma realidade possível somente no plano de uma política interna. A nossa hipótese é a de que esse é o problema com o qual teremos efetivamente que lidar no próximo século. Questões ligadas à representatividade ou não da ONU, e sobre a possibilidade de um eficaz controle jurídico da Internet, recolocam com muita força a discussão sobre a possibilidade de um Direito, tal como o definimos, que não possa ser desrespeitado por países que tenham maior poderio militar e econômico; e um passo nesse sentido pode ser percebido: a idéia de soberania é uma das que têm sido questionadas face aos novos ventos que varrem a política internacional. Agora, se é a idéia de um estado de natureza internacional – que poderá nunca ser diluído – que nos preocupa, cabe refletirmos um pouco sobre esse conceito tal como ele aparece em Hobbes pois, como se sabe, esse é um dos pontos centrais do seu pensamento. Sem entrar nas discussões que cercam o conceito, podemos defini-lo como aquele estado em que todos os homens tinham direito a tudo (pois não havia leis para regular o meu e o teu) e tentavam, sem nenhum respaldo legal, garantir a própria vida e os meios para mantê-la. Esse conceito é utilizado por Hobbes para mostrar como os homens tiveram necessidade de criar o estado de sociedade e as leis civis. Em nenhum momento Hobbes toma o estado de natureza como historicamente existente, pois ele se constitui apenas como uma hipótese. Nesse hipotético estado, os homens viveriam na mais completa liberdade mas, 40 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes como para Hobbes o homem não é um animal essencialmente político, e o egoísmo é a base da sua natureza, essa liberdade acabaria por ser implodida, pois cada homem, na ausência de uma autoridade superior a ele que pudesse ser reguladora dos conflitos existentes, tentaria defender ferozmente o seu direito contra os outros e, com isto, a própria vida humana se tornaria inviável.9 É claro que, para Hobbes, no estado de natureza já existiam as leis naturais mas, contrariamente a outros pensadores, ele não as vê propriamente como leis e, sim, como preceitos que mais sugerem formas de conduta do que prescrevem comportamentos. Sendo assim, para o pensador inglês, as leis de natureza estabelecem princípios que deverão ser tornados obrigações a partir da constituição das leis civis que só serão possíveis a partir da instauração do estado de sociedade.10 As duas primeiras leis são claras para Hobbes, quais sejam: 1) a busca da paz como garantia da vida; 2) a aceitação por parte de todos de abrir mão do direito a todas as coisas. As outras leis elencadas pelo filósofo ligam-se, de uma maneira ou de outra, a essas duas. Ora, a busca da paz e a aceitação da perda do direito a todas as coisas seriam inviáveis, na perspectiva hobbesiana, num estado onde todos fossem livres para fazer o que bem entendessem. Para resolver essa questão, Hobbes elaborou um modelo teórico em que os homens, por medo da morte violenta em função do egoísmo que é característico de suas vidas, aceitariam abrir mão dos seus direitos em nome de um soberano (que poderia ser um homem ou uma assembléia), e este é quem definiria os direitos e deveres que deveriam ser estabelecidos para o grupo. Veríamos, assim, o nascimento do estado de sociedade a partir de um pacto que os homens fariam entre si, pois eles iriam 41 Coleção Convite ao pensar preferir perder a liberdade desde que conseguissem manter a própria vida. Esse pacto, é necessário frisar, só se constituiria entre os súditos e não entre estes e o soberano. Isso porque, se o soberano estivesse submetido a um pacto, o seu poder não seria total (estaria limitado), e teríamos a perda do princípio de soberania que estabelece que não pode haver no Estado nenhum poder acima do poder soberano. É em função disso que Hobbes vai denominar o Estado que se instaura a partir do surgimento da sociedade de Leviatã, monstro bíblico que no livro de Jó indica o infinito poder de Deus. Pois bem, instituído o soberano, instituído estará o Estado. Os homens agora poderiam viver em paz, pois, os preceitos estabelecidos pelas leis naturais iriam encontrar sua correta expressão e a exigência do seu cumprimento nas leis civis. Mas aqui temos o início do nosso problema. Cada súdito de um Estado é um sistema diante das partes e órgãos que constituem seu corpo, mas é um elemento diante do Estado. Muitos dos problemas humanos estariam resolvidos se essa equação parasse nesse ponto. Entretanto, a questão é que não existe apenas um Estado, eles são vários. Hobbes, como outros pensadores do seu tempo, tem consciência das conquistas levadas a efeito pelos Estados Nacionais no processo de formação destes. Algumas dessas conquistas já foram elencadas em nosso texto tais como: a delimitação territorial, a centralização do poder político e a formação de exércitos nacionais profissionais. Sendo assim, essas mudanças nos mostram que os Estados no século XVII, além de buscarem sua aceitação por parte dos súditos, tinham de lutar também pelo reconhecimento de suas fronteiras e de sua autonomia política face a outros Estados (daí a importância do conceito de soberania). 42 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes Dessa forma, se os indivíduos são particulares diante do universal que é o Estado, este, por sua vez, torna-se indivíduo diante de uma comunidade internacional que estava se formando e iria se sustentar a duras penas, tendo provavelmente as suas mais severas provações nas duas guerras mundiais que macularam o nosso século. Hobbes percebe a dificuldade para a manutenção da paz entre os Estados e isto está ligado, de certa forma, à sua visão do homem.11 Assim, os Estados são constituídos por homens e estes, para o filósofo, são egoístas por natureza. Nada impede que esse egoísmo humano se transfira para os Estados quando estes se colocam uns diante dos outros. O medo recíproco, a falta de confiança com relação às intenções do outro, a necessidade de obter as maiores vantagens, podem acabar por se intrometer nas relações desses sujeitos jurídicos que são os Estados. Nossa conclusão é clara: se o estado de natureza deve ser substituído pelo de sociedade no seio de uma dada comunidade histórica, para Hobbes, no plano das relações internacionais, ele permanecerá sempre. Não há no pensador uma instância transnacional que possa fazer o papel de um Estado dos Estados, obrigando ao cumprimento dos pactos e punindo os infratores (que se recorde o conceito de Direito já situado por nós). Isso não significa que os Estados viverão sempre em guerra mas, sim, que o medo do não cumprimento dos acordos e a possibilidade de que isto venha a ocorrer serão, do ponto de vista hobbesiano, sempre o ponto chave das relações internacionais. O pensador Karl Deutsch, ao discutir sobre os dilemas do Direito internacional em nosso século, escreve: 43 Coleção Convite ao pensar Em geral, porém, o caráter auto-aplicável do Direito internacional, requer ou uma igualdade aproximada das posições de poder das partes envolvidas (permitindo o uso das táticas do tipo “olho por olho” entre elas), ou, ainda, uma expectativa de futura reversão de papéis entre elas (permitindo o uso de táticas do tipo “olho por olho” num futuro previsível). Se os dois lados, em uma causa internacional, se mostram igualmente fortes, cada um deles pode revidar eficazmente ao que o outro eventualmente possa fazer.12 Se a inexistência de um Estado dos Estados tivesse como pano de fundo a certeza de uma natureza humana voltada para o bem, o receio de Hobbes não se justificaria. Mas, sua concepção de política, de ética e de razão rompem com a tradição do pensamento político antigo, onde se acreditava que a busca de uma vida humana associada fazia parte da natureza humana, a cidade era a reprodução da ordem do cosmos e a razão se identificava com o que haveria de divino no homem. Na teoria hobbesiana, a racionalidade calculadora (instrumental) constitui uma ética fundada em imperativos hipotéticos, e esta tem um cunho efetivamente relativista. Sendo assim, poderíamos duvidar da possibilidade de se fundar as relações internacionais em parâmetros que venham a permitir uma melhor convivência humana? Acreditamos que não. Isso se conseguirmos criar um compromisso entre os países que constituem a chamada comunidade internacional, de forma que fechem moral e legalmente com alguns princípios mantenedores da paz e da justiça, e sejam criados mecanismos cada vez mais eficazes para que os países que venham a trair esses princípios sejam responsabilizados efetivamente. A questão que fica em aberto é se teremos um dia uma comunidade internacional total. Seja como for, a não ser que inventemos um 44 Hobbes: ética e política nas relações internacionais – João Carlos Lino Gomes novo modelo de razão, esta possível comunidade certamente não será composta de seres naturalmente voltados para o bem; além disso, cumpre estabelecer regras para o seu funcionamento. Se o modelo de Estado de Hobbes foi superado pelo Estado de Direito e suas conquistas, o desafio de construir uma sociedade humana que consiga viver unida e em paz numa cultura que dissociou a ética da política – enfrentado pelo nosso autor – continua como uma tarefa para nós. NOTAS 1 Ver KOYRÉ, Estudos de história do pensamento científico. 2 Ver BOBBIO, BOVERO. Sociedade e Estado na filosofia política moderna, p.13-26. 3 Sobre as dificuldades da burguesia diante da autoridade da Igreja e do imaginário cristão, ver LE GOFF. A bolsa e a vida – a usura na Idade Média. 4 Sobre a decadência da economia feudal e a ascensão do capitalismo, ver CONTE. Da crise do feudalismo ao nascimento do capitalismo. 5 Sobre a questão do poder em Maquiavel, ver LINO GOMES, J.C. Ética, política e poder em Maquiavel, Síntese 60, (1993): 79-91. 6 Ver ARISTÓTELES. La Política. Livro I, cap. 1, 1252a; 1252b. 7 ARISTÓTELES. op. cit., Livro I, cap. 1,1253a. 8 Sobre esta concepção de Direito, ver KELSEN. Derecho y paz en las relaciones internacionales, p.25-48. 9 Ver HOBBES. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, p.74-77. 10 HOBBES. op. cit., p.78-85. 11 Sobre as situações em que Hobbes concebe a existência do estado de natureza, ver BOBBIO. Thomas Hobbes. 12 DEUTSCH. Análise das relações internacionais, p.228-229. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. Porto: Afrontamento, 1984. ARISTÓTELES. La Política. Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1989. 45 Coleção Convite ao pensar BOBBIO, Norberto, BOVERO, Michelangelo. Sociedade e estado na filosofia política moderna. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991. CONTE, Giuliano. Da crise do feudalismo ao nascimento do capitalismo. Lisboa: Editorial Presença, [s.d.]. DEUTSCH, Karl Wolfang. Análise das relações internacionais. Brasília: Editora da UNB, 1982. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1979. KELSEN, Hans. Derecho y paz em las relaciones internacionales. México: Fondo de Cultura Económica, 1986. KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Brasília: Editora da UNB, 1982. LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida – a usura na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1979. SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das letras, 1996. 46 DRÁCULA, DE BRAM STOKER Lídia Avelar Estanislau Para Renato e Mauro. Também para a professora Maria Nazareth Soares Fonseca, que me ensina a ousadia da Literatura. Afinal, como propõe Michel Maffesoli, “é hora de reconhecer que a sociologia pode ser audaciosa”. O vampiro1 Tu que, como uma punhalada Em meu coração penetraste, Tu que, qual furiosa manada De demônios, ardente, ousaste, De meu espírito humilhado, Fazer teu leito e possessão – Infame à qual estou atado Como galé ao seu grilhão, Como ao baralho o jogador, Como à carniça o parasita, Como à garrafa o bebedor – Maldita sejas tu, maldita! Supliquei ao gládio veloz Que a liberdade me alcançasse, E ao veneno, pérfido algoz, Que a covardia me amparasse. Ai de mim! com mofa e desdém, Ambos me disseram então: “Digno não és de que ninguém Jamais te arranque à escravidão, Imbecil! – se de teu retiro Te libertássemos um dia, Teu beijo ressuscitaria O cadáver de teu vampiro!” Não poderia ser outra a epígrafe para o tema que me foi proposto pelo programa “Convite ao 47 Coleção Convite ao pensar pensar”, do Departamento de Filosofia e Teologia da PUC Minas, convite que não nos deixa alternativa, já que nenhum de nós, professores e alunos, podemos nos recusar a pensar. Ao aceitar o desafio deste convite irrecusável, ponderei que vampiros jamais fizeram parte do meu interesse, embora, ao longo da minha vida como socióloga, tenha me deparado com muita gente que vive do sangue alheio, pois o vampirismo pode ser pensado como uma das metáforas do capitalismo: um modo de produção que, como demonstrou Marx, apropriase da força de trabalho sugando a energia dos trabalhadores através de uma exploração legal, porém perversa. Confesso, entretanto, que este trabalho seria impossível sem a colaboração de minha filha, a quem agradeço publicamente, pois não só me apresentou uma relação de títulos da literatura e do cinema, como debateu comigo sobre o vampirismo e seu fascínio. Devo acrescentar, ainda, que esta leitura do Drácula, de Bram Stoker, talvez seja um pouco decepcionante, especialmente para os entendidos, caracterizando-se como um modesto ensaio, no sentido corriqueiro do termo. MASCULINO E FEMININO O substantivo masculino “vampiro”, ensinanos Mestre Aurélio, vem do húngaro vampir, através do alemão Vampir e do francês vampire e remete-nos a uma entidade lendária que, de acordo com a superstição popular, sai das sepulturas, à noite, para sugar o sangue dos vivos. Seu sinônimo é o substantivo feminino estrige, palavra latina (strige) que também significa coruja e feiticeira. Em sentido figurado, vampiro é aquele que enriquece à custa alheia e/ou por meios ilícitos, assim como aquele que explora os pobres em benefício próprio. De vampiro deriva vampe, do inglês vamp, 48 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau substantivo feminino que designa a atriz que faz papel de mulher fatal – por extensão, toda mulher fatal é uma vampe. No Brasil, o morcego hematófago, portador de duplos incisivos superiores que o diferenciam dos demais morcegos, é também chamado de vampiro. Alimentar-se de sangue humano é uma monstruosidade e o que define um monstro é sua oposição à humanidade. “Não há monstro entre iguais”, escreve o crítico de cinema Luiz Nazário, acrescentando que “o monstro é definido a partir de uma comunidade de não-monstros”. Os atributos da condição humana, portanto, são antinômicos aos atributos do monstro e, por esta razão, este deve ser exterminado. Na dramaturgia do horror, onde o vampiro é personagem de destaque, estão presentes algumas características do monstro, como a longevidade e a conseqüente decrepitude. A decrepitude permanece importante atributo de múmias e vampiros, que sempre vêem sua falsa juventude desmascarada: ninguém mais decrépito que o morto-vivo encarnado por Gary Oldman em Bram Stoker’s Dracula, com enorme cabeleira branca trançada e uma adormecida sensualidade excitando-se, depois de séculos, ao sorver a gota de sangue fresco escorrida da lâmina de barbear do jovem hóspede incauto.2 Acrescentem-se alguns atributos clássicos do monstro como a ubiqüidade, a invisibilidade, a incredibilidade, a materialidade, a reprodutibilidade, a indestrutibilidade, a voracidade, a ferocidade, o mascaramento, o descontrole, o relativismo, o agarramento, a contaminação, a mutabilidade, o gigantismo, o nanismo, a unicidade, a reversão, a hereditariedade, a despersonalização, a imortalidade e a progressividade, pois “toda história de terror com suspense evolui num crescendo, multiplicando 49 Coleção Convite ao pensar as forças do Mal e reduzindo as chances do Bem, para que o confronto derradeiro represente uma redenção”.3 A monstruosidade começa a impor-se a partir dos olhos, da boca e das mãos. As mãos em arco e os olhos dilatados são apêndices do desejo monstruoso de agarrar e devorar. Esse é possibilitado pelas mandíbulas, que não cabem dentro das bocas, que saem delas em pontas afiadas, crescendo, para se fincarem no pescoço da vítima, seja no beijo perverso de Drácula ou na laceração do lobisomem, deixando marcas na pele ou arrancando-lhe pedaços.[...] A representação imaginária da monstruosidade concentra-se, pois, no complexo olhos-bocamãos, numa máscara que revela a intencionalidade maligna inscrita no corpo corrompido.4 Em sua teoria da monstruosidade, Luiz Nazário assegura que “todo monstro é, materialmente, uma máscara: seu horror é externo, sua representação dá-se por intermédio da fantasia”. Do monstro não se pode esperar reciprocidade, pois ele é, ”por definição, um ser que não ama, ou que ama mas não sabe amar, incapaz de relacionar-se, trocar afetos, construir a mediação entre os desejos e sua realização na sociedade”. Entretanto, a monstruosidade é ao mesmo tempo horrível e maravilhosa, o que explica porque “o monstro arrepia, seduz, fascina, paralisa ou hipnotiza suas vítimas”, antes de atacá-las. Dotando a diversão de um caráter perverso, o monstro é socializador: é superego, repressão, complexo de culpa, princípio de realidade, com sinal negativo.[...] Mas, se o monstro acusa, não se deixa acusar; se é socializador, ele mesmo não está socializado: é id, liberdade, ausência de culpa, princípio de prazer, com um sinal negativo.[...] O monstro não é, de fato, uma criatura biológica, mas basicamente uma força, um símbolo.[...] Perseguindo machos e fêmeas com o mesmo apetite, não são indivíduos que o monstro deseja [...]. O sexo de seu parceiro-vítima é 50 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau indiferente a Drácula;[...] ele se sacia com o sangue humano, comum a homens e mulheres. [...] O Monstro e o Vampiro são anti-humanos na afirmação objetiva de um desejo simbólico. Nisto assemelham-se, respectivamente, ao Totalitário e ao Capitalista, que afirmam serem o poder e o lucro desejos humanos naturais: o Monstro devassa, o Vampiro acumula.5 A economia do terror organiza-se segundo o princípio do vazio – “o vampiro é como um tanque que precisa ser eternamente preenchido de sangue” – e o princípio do pleno. Nos filmes, Drácula perde a palidez e ganha peso após atacar suas vítimas e assim, pode-se dizer que todo monstro é um vazio que tende ao pleno e um pleno que tende ao vazio, pois seu destino é ser perseguido, capturado e destruído pelos humanos, depois de persegui-los, capturá-los e destruí-los. Drácula, como qualquer outro monstro, encarna, ao mesmo tempo, o princípio da realidade e o princípio do prazer, ambos enquanto máscaras, “já que a ordem monstruosa é a metafórica representação de uma ordem humana proibida e a simbólica justificação da ordem humana estabelecida”, explica Luiz Nazário, em sua análise da natureza dos monstros. A classificação do vampiro é complexa, pois se enquadra na categoria dos monstros antropomorfos, mas pela metamorfose pode tornar-se um cão, um lobo, um morcego, classificando-se, então, como um monstro zoomorfo. Algumas vezes, entretanto, apresenta-se sem forma definida, enquadrando-se também na categoria dos monstros polimorfos. Por sua habilidade em penetrar nos ambientes através de mínimas frestas adquire uma característica dos monstros microscópicos, espalhando seu poder de extermínio em endemias, epidemias e pandemias, como “o vírus da AIDS, que já matou mais de 5 milhões de pessoas e contaminou 25 milhões”.6 51 Coleção Convite ao pensar HISTÓRIA E FICÇÃO7 A leitura das quatrocentas e cinqüenta e oito páginas do romance foi penosa e não me fascinou a saga dos Dráculas, “cuja folha de serviços jamais será igualada pela dos Habsburgos ou dos Romanoffs”8 – casas reais que, como outras tantas, marcaram de sangue a história universal, sobretudo pela instituição da escravatura e da tortura. A narrativa de Bram Stoker mescla literatura e história, registrando um processo de desumanização que vem desde o século XV, com o príncipe Vlad II – Dracul, pai de Vlad Tepes, o Empalador, assim chamado pelo uso de sua tortura favorita. Conta-se (e consta) que nas cruzadas contra os turcos, após uma batalha realizada em 1471, Drácula mandou empalar pelo umbigo 2.300 prisioneiros. Em setembro de 1445, o príncipe Vlad Dracul (Vlad, o Diabo) capturou na Bulgária cerca de 112 mil pessoas “que pareciam egípcias” [de pele escura] e levou-as para a sua Valáquia natal, “sem bagagem, nem animais”, tornando-se assim o primeiro importador por atacado de escravos ciganos.[...] A época de Drácula (1431-1476) precedeu a escravidão generalizada nos principados romenos. Decerto havia modelos reais para as legiões de escravos ciganos que aparecem no Drácula, de Bram Stoker (cavando e empacotando a terra da Transilvânia que mantinha “vivo” o conde em suas viagens). Além disso, o Drácula histórico, Vlad Tepes, parece ter acreditado que os ciganos constituíam uma classe de guerreiros particularmente destemida (ou temerária). No poema épico Tiganíada, de Ion Budai-Deleanu (17601820), está dito que Drácula liderava um exército de ciganos. [...] Aí, o Empalador não é o arquivilão do folclore [sic] germânico e eslavo (e quase universal), e sim um herói nacional, descrito na linguagem dos camponeses romenos, que tinham dele essa imagem, e servindo à causa de um estado romeno independente.(Tiganíada é considerado o primeiro poema escrito em romeno).9 52 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau Registros históricos evidenciam que até 1856, por mais de quatrocentos anos, os ciganos foram escravizados na Valáquia, na Moldávia e na Transilvânia, principados feudais que constituem a Romênia moderna. O processo de miscigenação explica porque os romenos, em geral, têm a pele mais escura do que seus vizinhos eslavos. No Brasil, até 1888, africanos foram escravizados e também aqui a miscigenação explica o povo brasileiro, “mestiço na carne e no espírito”, nos termos de Darcy Ribeiro.10 Ser cigano na Europa Oriental é como ser negro no Ocidente, e o acesso à etno-história, lá como aqui, é dificultado pela queima, involuntária ou intencional – como fez Rui Barbosa – de importantes documentos.11 Ciganos e negros compartilham da maldição bíblica de um dos filhos de Noé, Cam – camita designa os povos do norte da África – versão mítica da origem do cativeiro relatada no Livro do Gênesis. O fato é que se consumou em plena cultura moderna a explicação do escravismo como resultado de uma culpa exemplarmente punida pelo patriarca salvo do dilúvio, para perpetuar a espécie humana. A referência à sina de Cam circulou reiteradamente nos séculos XVI, XVII e XVIII, quando a teologia católica ou protestante se viu confrontada com a generalização do trabalho forçado nas economias coloniais. O velho mito serviu então ao novo pensamento mercantil, que o alegava para justificar o tráfico negreiro, e ao discurso salvacionista, que via na escravidão um meio de catequizar populações antes entregues ao fetichismo ou ao domínio do Islão. Mercadores e ideólogos religiosos do sistema conceberam o pecado de Cam e sua punição como o evento fundador de uma situação imutável.12 Se na Romênia os termos cigano e escravo são intercambiáveis e descrevem uma casta social particular, o mesmo ocorreu no Brasil no que se refere ao negro. Lá como aqui, o ódio e a violência contra 53 Coleção Convite ao pensar ciganos e negros e a sua transformação em “problema social” – com todas as conotações de criminalidade – trazem, ainda hoje, a marca da escravidão refletida na dificuldade dos povos outrora escravizados de superar a sua própria falta de expectativas. No que se refere às mulheres, mesmo não sendo consideradas propriamente humanas, as ciganas e as negras davam boas concubinas e mais de cem anos depois, na Romênia como no Brasil, ciganos e negros padecem de invisibilidade histórica. Invisibilidade que atinge também os povos indígenas, cuja luta de resistência encontra sua mais perfeita tradução na expressão outros quinhentos... Nessa perspectiva, vampiros foram todos aqueles senhores proprietários de escravos, inclusive os bandeirantes, e, segundo a crença – particularmente difundida na Europa Central e Oriental – aqueles que foram vítimas de vampiros também se transformam em vampiros: são esvaziados de seu sangue e, ao mesmo tempo, contaminados. Após o beijo/mordida, mutações incontroláveis ocorrem – como na virulência da AIDS – nos corpos tocados pelo vampiro, que multiplica sua espécie através da contaminação do sangue. O universo ideológico do contágio é o totalitarismo, que nivela todas as diferenças sob o signo da morte. Esta leitura encontra eco na simbologia do vampiro: O fantasma atormenta os vivos pelo medo, o vampiro os mata tirando sua substância: só consegue sobreviver graças à sua vítima. A interpretação, aqui, basear-se-á na dialética do perseguidor-perseguido, do devorador-devorado. O vampiro representa o apetite de viver, que renasce tão logo é saciado e que se esgota em se satisfazer em vão, enquanto não for dominado. Na realidade, transferimos essa fome devoradora ao outro, quando tal não passa de um fenômeno de autodestruição. O ser se atormenta e se devora a si mesmo; enquanto não se vir responsável 54 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau por seus próprios fracassos, responsabiliza e acusa o outro. Quando, ao contrário, o homem [sic] está plenamente assumido, quando exerce plenamente sua responsabilidade, quando aceita a sua sorte de mortal, o vampiro desaparece. Ele só existirá enquanto um problema de adaptação consigo mesmo ou com o meio social, não é resolvido. Nesse caso somos psicologicamente corroídos...devorados, e nos tornamos um tormento para nós mesmos e para os outros. O vampiro simboliza uma inversão das forças psíquicas contra nós mesmos.13 A simbologia do sangue, por sua vez, é universalmente associada à vida: bebida da imortalidade, veículo da se(x)sensualidade e da alma humanas, fonte da vitalidade. A comunhão pelo sangue manifesta-se nos ritos religiosos católicos, mas também em rituais de “civilizações extra-européias” – para lembrar, mais uma vez Darcy Ribeiro –, nos sacrifícios e nos pactos de fraternidade. Em muitas culturas & civilizações o sangue é a origem de todos os seres-minerais, vegetais, animais. No candomblé, por exemplo, religião de matriz africana com forte presença em todo o Brasil, os elementos portadores do axé agrupam-se em três categorias: sangue vermelho, compreendendo o sangue humano ou animal, o azeite e o mel (sangue de frutas e flores), o cobre, o bronze; sangue branco, compreendendo a água, o sêmen, a saliva, as secreções, o plasma, a seiva, o sal, o giz, a prata, o chumbo; e o sangue preto, compreendendo as cinzas, o sumo escuro das plantas, o carvão, o ferro. Dessa simbologia do sangue vermelho, branco e preto (o amarelo é considerado uma nuança do vermelho, assim como o azul e o verde são nuanças do preto) é que se constitui o aiyé e o òrun, o mundo e o além.14 Nas referências culturais africanas, assim como nas culturas tradicionais, não há separação entre este e o outro mundo, ou dito de outra forma, não há oposição entre o 55 Coleção Convite ao pensar sagrado e o profano, assim como não há distinção entre natureza e cultura, como explica o professor Muniz Sodré: A “natureza” só existe para o “civilizado”. Para as culturas tradicionais, não existe o “natural”, tudo é ritualisticamente simbólico, tudo se submete às obrigações da regra. Ser enfeitiçado, seduzido ou encantado é ser vertiginosa e ritualísticamente absorvido por um Destino; é deixar de ser sujeito de uma consciência, de uma razão, de uma verdade fadada à transparência.15 No Brasil, os povos indígenas – zeladores de tradições que mudam a todo instante, e mudam sempre para permanecerem verdadeiras – ainda que expropriados na dimensão material de suas culturas, transfiguram-se, transmudam-se, lançando mão de sofisticados modos de negociação, com outros grupos étnicos daqui e d’acolá, resistindo ora em bloco, ora em diáspora, nestes cinco séculos de contato.16 É interessante ressaltar que Frei Vicente do Salvador, nosso primeiro historiador, segundo Laura de Mello e Souza, considerou como trabalho do diabo o esquecimento do nome dado por Pedro Álvares Cabral à terra – Santa/Vera Cruz – substituído pelo de Brasil. E, para explicar tal designação decorrente da exploração do vermelho pau-brasil, seu texto remete ao combate entre o céu e o inferno, entre a luz e a treva, determinando o permitido e o proibido. Na primeira leitura cinematográfica do romance de Stoker, no Nosferatu realizado em 1922 por Friedrich Murnau, a fragilidade de Max Schreck, no papel do Conde Orlock, serve ao propósito do cineasta de projetar a própria homossexualidade na imagem do vampiro. Tal como o morto-vivo, condenado a viver na sombra, o homossexual não pode [sic] mostrar seu desejo à luz do dia, privado da felicidade cotidiana, exclusiva dos casais heterossexuais. Tanto 56 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau o vampiro quanto o homossexual representam uma ameaça fatal às instituições fundamentais da civilização: daí sua vinculação com a morte. Werner Herzog manteve o caráter homossexual ou bissexual do vampiro em Nosferatu, encarnado por Klaus Kinski.17 Na dialética do bem e do mal, este costuma ser visto como hereditário. O vampiro, como outras criaturas do mal, ainda que escolha suas vítimas, parceiros ou sucessores, sofre “de um mal hereditário, que se transmite justamente pela mordida que inocula o sangue saudável com uma doença infecto-contagiosa”.18 NEM BEM NEM MAL A narrativa de Bram Stoker opõe deus(es) e diabo(s) – ou dito de outro modo, polariza o mundo anglo-saxão e o mundo eslavo – e assim registra o estranhamento do encontro entre diferentes, tal como também se deu durante a colonização, sem sombra de dúvida um processo vampiresco. Os habitantes das terras longínquas que os europeus acreditavam serem fantásticas constituíram uma outra humanidade, fantástica também, e monstruosa. Conforme ocorreram as grandes descobertas, foram elas migrando da Índia à Etiópia, à Escandinávia, e finalmente à América. No mundo precário do homem medieval, surgia a necessidade de nomear e encarnar o desconhecido a fim de manter o medo nos limites do suportável: monstros descritos pela religião (Satã), monstros descritos pelo bestiário (unicórnio, dragão, formiga-leão, sereias etc.), monstros humanos individuais (aleijados, tarados) e monstros que habitavam os confins da Terra, parecendo-se com homens normais (ou seja, europeus do oeste) mas trazendo traços monstruosos hereditários.[...]. Apesar de disseminado no cotidiano, o monstro tenderia, a partir do século XV, a se demonizar, instalado-se de um só lado do mundo, pactuando com o diabo, desarmonizando-se.19 57 Coleção Convite ao pensar O escritor irlandês Bram Stoker (1847-1912) – reverte o processo colocando o monstro no centro da Europa, e esse guardião do tesouro da imortalidade encontra, segundo Luiz Nazário, outros referenciais históricos na aristocracia decadente: Gilles de Rais, que violou e torturou cerca de 300 crianças; a condessa Elizabeth Bathory, que matou 650 virgens para banhar-se em seu sangue e o Marquês de Sade, que se envolveu com torturas e assassinatos. Bárbara Belford, que escreveu uma biografia de Bram Stoker, sugere que o grande ator do Lyceum Theatre de Londres, Henry Irving – “que arrebatou e absorveu” Stoker – foi o verdadeiro modelo para o Drácula. Os vampiros da literatura e do cinema são quase sempre aristocratas, nobres, condes, condessas, marquesas, personagens principescas. Eternizando-se através do sangue alheio, sobrevivendo em função de outras vidas, o vampiro é um parasita que encarna, no imaginário burguês, a classe decadente dos nobres.[...] Os nobres são “mortos-vivos” que sobrevivem à custa do sangue alheio. Nessa projeção, o burguês preserva sua boa consciência: suga o sangue dos trabalhadores, mas é o nobre quem se encontra pintado de vampiro, porque nada produz.20 As personagens principais são inglesas, mas há um americano do Texas, um médico holandês e o estranho Conde. A condição de estrangeiro de Drácula é explícita, mas em Londres ele pretende manter seu status através da compra de várias propriedades: “Já fui patrão por tanto tempo que prefiro continuar sendo patrão...ou ao menos que ninguém se arvore com poderes de patrão sobre o que eu sou”; e complementa, numa postura etnocêntrica, muito próxima à dos britânicos: “Nós, os nobres transilvânicos, não gostamos de que as nossas carcaças sejam sepultadas na vala comum, entre os demais mortais”, ou ainda, “o que valem os peões sem o seu rei?” Bram 58 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau Stoker nos apresenta as personagens através dos diários e cartas por elas escritas ou gravadas, e no seu texto O Conde – “que nem dormia, nem estava morto“ – vai se construindo e se desconstruindo aos olhos do leitor: de “Rei-Vampiro ao primitivo pó”, de poderoso sedutor a “delinqüente qualificado como criminoso típico”, pela análise racista de Nordau e Lombroso. Mais sofisticada é a visão do vampirismo como metáfora do totalitarismo: de fato, o vampiro transforma a natureza humana e funda uma nova comunidade, num tribalismo perverso onde todos são iguais entre si pela dependência do sangue.[...] De qualquer ponto de vista, o vampirismo é a sublimação fantástica da sede de poder, expressa na imortalidade da condição de morto-vivo.21 A ambigüidade da personagem principal do romance – ao mesmo tempo morto e imortal – torna o vampiro eterno e atual. Numa leitura psicológica do mito, o vampirismo associa-se ao homoerotismo. Muitos leitores, entretanto, “atribuem ao vampiro um caráter lúbrico e enérgico, fazendo dele um Dom Juan insaciável (a dentada no pescoço e a sucção da jugular sendo sua forma de coito e orgasmo)”. Mas, para o cantor e compositor Jorge Mautner, “o vampiro é o pilar freudiano da bissexualidade”.22 É o próprio compositor quem afirma: Os vampiros são às vezes bons, e às vezes maus. E às vezes bons e maus! Os vampiros segundo alguns são seres extraterrestres que viajam em discos voadores invisíveis. Segundo outros, os vampiros são antigos seres humanos sábios, espécie de mandarins-gurus que obtiveram grandes e eficazes resultados quanto à longevidade, atingindo assim a vida eterna, velha meta dos taoístas e de vários outros magos tanto do Oriente quanto do Ocidente.23 Já Nelson Liano Jr., que dividiu com o bruxo mediático Paulo Coelho a primeira versão, publicada em 1986, do Manual Prático do Vampirismo, afirma: 59 Coleção Convite ao pensar A razão filosófica greco-romana impulsionou o desenvolvimento tecno-social do ocidente sempre com base numa crença oficial capaz de determinar o bem e o mal. Por isso, aquilo que transcende a racionalidade, se torna um atraente caminho em busca do incansável, capaz de libertar o espírito do peso dos dogmas preestabelecidos. As pessoas precisam criar mitos, sejam eles ficcionais ou reais, para se refletirem dentro de sua própria solidão, e às vezes acabam criando monstros para ocuparem os espaços vazios da imaginação. E o vampiro é essa fera que habita os corações daqueles que preferem uma solução narcísica de existência.[...] O escritor Bram Stoker, criador de Drácula, certamente era um grande admirador de Nietzche, pois a sua personagem possui todas as características do super-homem niilista.24 Aqui, o mito de Drácula parece aproximar-se do herói épico dos camponeses romenos. (Ou seria privilegiar o mito do Oriente um dia perdido? De novo, outra canção de Gilberto Gil “2001: se oriente rapaz, pela constelação do Cruzeiro do Sul”). O mito explica, então, a punição de ter transgredido a morte, que será negada tanto no mito da reencarnação, como no mito da ressurreição. Para os entendidos, o tema do vampiro é “cult” sobretudo pelo que chamei de se(x)sensualidade. O medo está associado diretamente ao erótico. Um condenado à morte, no momento de ser executado tem ereção capaz de levá-lo ao orgasmo. Por todas essas associações, os filmes de vampiro se tornaram cult-movies em todas as grandes cidades do mundo. São momentos de suspense, terror, pânico, humor e sobretudo de sensualidade que vão se sucedendo na tela, tirando o fôlego do espectador.[...] Essa constante possibilidade de transgressão torna o vampiro atraente. [...] O vampiro beija a vítima somente depois de seduzi-la, seja homem ou mulher.25 E se “o vampiro pode satisfazer-se tanto em homens como em mulheres, numa luxúria que 60 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau contamina as vítimas, sua verdadeira natureza é bissexual”: A conexão entre a sucção do sangue e o ato sexual é estabelecida claramente na passagem do Drácula de Stoker em que Lucy, vampirizada, perde seu caráter virginal, aparecendo aos heróis obscena e repugnante.[...] Durante o ato da penetração da estaca, a noiva vampirizada assume uma máscara de lascívia obscena – que caracterizará todas as vamps – confirmando a pecha maldita que a tradição religiosa atribui à sexualidade feminina.26 Para os leigos o vampiro não beija: agarra e morde! “O medo que sentimos diante do estranho”, segundo Luiz Nazário, “tem sua origem no medo de ser agarrado [...] pois o agarramento – das brincadeiras de pega-pega aos estupros – contém uma enorme carga de perversidade”. O vampiro é opaco e não se refrata, não se deixa refletir no espelho, mas conhece o seu poder: “as moças que vocês amam já são minhas. E, através delas, também vocês virão a ser meus...”, ameaça a personagem do romance. O Drácula descrito por Bram Stoker, peludo e de lábios muito vermelhos, exala um cheiro horrível; deixa as pessoas abobalhadas; rouba a beleza e a força alheias; cresce e encolhe; dorme de dia e acorda à noite, quando se ergue excitado e rijo do ataúde, subindo pelas paredes. Como o membro viril está preso ao testículo, o vampiro está ao caixão, que tem de carregar por toda parte: a terra natal onde repousa é sua potência sexual, e a capa preta que adotou no cinema remete ao prepúcio. Esse falo que o vampiro representa é essencialmente mau, perverso, violentador, viciando os que o experimentam: Drácula não penetra senão convidado mas, depois que penetra, não precisa mais de convite. O fato do espelho não refletir sua imagem liga-se à idéia de que o falo é a parte secreta do homem, que não se exibe publicamente. E as receitas para liquidar o vampiro reafirmam o simbolismo: o sol, a água corrente, o alho e as coisas sagradas o amolecem, mas ele só 61 Coleção Convite ao pensar desaparece mediante um ritual simbólico de castração – fulminado a bala benta, com uma estaca cravada no coração ou tendo a cabeça cortada.27 No imaginário do século XIX, o vampiro representa a “promiscuidade e a coleta contra os valores da família e do trabalho” e, portanto, deve ser destruído pela religião, através da cruz e água benta; pela ciência, com o emprego do sol, da água corrente e do alho, mas sua destruição depende, também, do emprego da força, através da bala de prata, da estaca cravada no coração e do corte da cabeça. No século XX a se(x)sensualidade explícita do Drácula de Bram Stoker foi disfarçada pelo moralismo da adaptação teatral, realizada por Hamilton Deane, com grande sucesso na Inglaterra, em 1926. Na Broadway, adaptada por John Baldeston, em 1927, o sucesso foi ainda maior com o ator húngaro Bela Lugosi personificando Drácula. Nos anos 30, a peça foi readaptada para o cinema e o vampiro recebeu o “look” de galã de Hollywood: a capa preta, o gel nos cabelos, o comportamento heterossexual. No final dos anos 50, o ator Christopher Lee consagrou-se no papel de Drácula, numa série de filmes que comprovam o fascínio exercido pelo mito do vilão que se tornou herói, no universo em expansão da contracultura.28 Suas ligações com a morte foram esquecidas e seu erotismo perverso difundiu-se na realidade. Ao familiarizar-se com o público, ao transformar-se em “tipo”, o vampiro tornou-se o queridinho das mulheres.[...] A relação de sedução exercida por Mickey Rourke sobre Kim Basinger, em 9 ½ Weeks, de Adrian Lyne, conserva fortes traços de vampirismo incorporado à vida afetiva dos casais modernos.[...] Para os produtores desses filmes, Drácula é “o último herói romântico”. Sintomático que Édipo reivindique, na crise mundial da representação, um símbolo da bissexualidade para revalidar o romantismo 62 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau maquiavélico que, por um lado, exalta a mulher, trata-a como uma dama e, por outro, dita-lhe ordens e chupa-lhe o sangue.[...] Nas novelas de Anne Rice, vampiros concedem entrevistas, vão a concertos de rock, andam de moto com walkman nos ouvidos, montam peças de teatro sobre vampiros.29 No cinema, cada vez mais, percebe-se a aliança entre perversão e consumismo, mesmo nas belas e premiadas imagens do “Drácula de Bram Stoker”, dirigido por Francis Ford Coppola, com figurinos e maquilagem inspirados em Ernest Klint. Em “Entrevista com o Vampiro” – grande sucesso de bilheteria em todo o mundo – apesar da perspectiva original, pois o diretor apresenta o mundo na ótica dos vampiros, permanecem a perversão e a maldade. A leitura de Roman Polanski – “perdoe-me, mas seus dentes estão em meu pescoço” – e também a de Mel Brooks na linha da comédia, ou a de John Kandis, criando uma “vampira politicamente correta, que só se alimenta do sangue de criminosos”, assim como inúmeros outros filmes que atraem multidões, indicam que o vampirismo não mais se limita às páginas impressas dos livros ou às imagens das telas de cinema. Em Nova York, no Queens, funciona o Centro de Pesquisas sobre Vampiros, assim como na Transilvânia, em 1995, os adeptos do vampirismo realizaram o I Congresso Mundial sobre Drácula, com apoio da Sociedade Transilvana de Drácula.30 No site sobre Drácula na Internet lê-se que o vampiro é indestrutível, e que sempre ressuscita. MET AMORFOSES DO VAMPIRO ETAMORFOSES A monstruosidade e o terrorismo fazem parte da História materializando-se nas guerras, nos regimes políticos totalitários, no racismo, no sexismo e, sobretudo, no xenofobismo. Nas ciências, nas 63 Coleção Convite ao pensar artes, na própria filosofia, a intolerância, mesmo que disfarçada com elegância, manifesta-se no cotidiano, banalizando a vida. A cultura contemporânea adota um esquema fractal, segundo Jean Baudrillard, no qual “o bem já não é perpendicular ao mal, nada mais se coloca em abcissas e ordenadas”.31 Já não há modo fatal de desaparecimento, mas sim um modo fractal de dispersão. Nada mais se reflete de fato, nem em espelho, nem em abismo (que nada mais é que o desdobramento infinito da consciência). A lógica da dispersão viral das redes já não é a do valor nem a da equivalência.[...] Depois do estádio natural, do estádio mercantil, do estádio estrutural, eis que chega o estádio fractal do valor.[...] Já não há nenhuma referência: o valor irradia em todas as direções, em todos os interstícios, sem referência ao que quer que seja, por pura contiguidade.[...] Em rigor, já não se deveria falar de valor, já que essa espécie de multiplicação e de reação em cadeia torna impossível qualquer avaliação.32 A globalização, anulando espaços e tempos, colocou no centro da cena a diferença, que a antropologia contemporânea elegeu como um de seus temas principais. Entretanto, apesar do conceito de multiculturalismo apresentar uma mensagem de tolerância, nas sociedades imperialistas permanece, manifesto ou latente, o horror ao diferente, ao estranho, ao estrangeiro, sob variadas formas de discriminação. O cinema americano é pródigo em exemplos onde as forças do mal são associadas aos que vêm de um outro planeta, de um outro país, de uma outra cultura, enfim, de um outro mundo. A despeito dos avanços dos movimentos dos direitos civis e da crescente presença de atores, diretores e produtores negros no cinema americano, a aversão ao Outro agora atinge o negro numa camada profunda da psique coletiva. Mesmo quando a mensagem explícita é o anti-racismo, o negro é associado a uma forma monstruosa de vida. [...] De fato, não só os 64 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau negros passaram a ser sistematicamente discriminados nos filmes de Hollywood, mas o estrangeiro em geral, sobretudo o imigrante clandestino, chamado de “Alien” pela polícia americana.[...] Os estrangeiros são agora equiparados a monstros.[...] Os maus são pessoas de outras culturas, cujo extermínio é legitimado pelo fato de que entre os combatentes, encontram-se elementos “bons” dessas culturas, reafirmando a humanidade da sociedade multicultural, que só aniquila os inassimiláveis.33 Charles Baudelaire (1821-1867), a quem devemos o conceito de modernidade, afirmou que “os encantos do horror só inebriam os fortes”.34 Na leitura do filósofo Walter Benjamin, “os poetas encontraram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu assunto heróico”. Em As flores do mal, publicado com escândalo em 1857 e hoje considerado uma obra-prima, Walter Benjamin percebeu a noção mais livre e compreensiva que o poeta tinha sobre os deserdados. Há uma constelação especial de circunstâncias onde, também no ser humano, se reúnem grandeza e indolência. Ela governa a existência de Baudelaire. Ele a decifrou, denominando-a “a modernidade”.[...] Como não possuía nenhuma convicção, estava sempre assumindo novos personagens. Flâneur, apache, dândi e trapeiro, não passavam de papéis entre outros. Pois o herói moderno não é herói – apenas representa o papel de herói. A modernidade heróica se revela como uma tragédia onde o papel do herói não está disponível.35 Mas, segundo Walter Benjamin, o satanismo de Baudelaire não deve ser tomado demasiadamente a sério, pois o poeta descreve como, ao anoitecer “demônios insepultos no ócio/acordam do estupor, como homens de negócio”.36 A imagem baudelaireana parece ter influenciado Tim Burton, diretor da bem-sucedida série de filmes sobre Batman, que declarou: “Gosto desta metáfora que vai do mundo 65 Coleção Convite ao pensar dos negócios ao mundo dos vampiros.” Assim, também o Drácula, de Bram Stoker não deve ser levado ao pé da letra, sobretudo se considerarmos que as imagens de monstros devoradores, em todas as civilizações, simbolizam a necessidade de uma regeneração. O que pretendi acentuar nesta leitura foi que as antigas assim como as novas máscaras do vampiro e sua sede de sangue (um exagero metafórico do desejo sexual) foram deslocadas. Já se edita Drácula para crianças, como a série com vários títulos sobre “O pequeno vampiro”, da escritora alemã Angela Sommer-Botenburg, traduzida em 19 línguas, inclusive para o português, pela editora Martins Fontes, e exibida com sucesso pela televisão de vários países europeus. Quando a tortura e a violência invadem os palcos e as telas, com apoio da tecnologia dos efeitos visuais; quando humanos e monstros se confundem, o Drácula, de Bram Stoker, não passa de um programa infanto-juvenil, quando comparado ao vampirismo das atuais condições da vida urbana globalizada, virtual, a cada minuto mais impessoal e desumanizada. Charles Baudelaire, considerado “o mais misterioso de todos os poetas da literatura ocidental”, cujo poema “O vampiro” foi prólogo desta leitura de Drácula, parece-me bem mais sedutor e o retomo, como epílogo, no poema: As metamorfoses do vampiro37 E no entanto a mulher, com lábios de framboesa, Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa, E o seio a comprimir sob o aço do espartilho, Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho: – “A boca úmida eu tenho e trago em mim a ciência De no fundo de um leito afogar a consciência. As lágrimas eu seco em meus seios triunfantes, E os velhos faço rir com o riso dos infantes. 66 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau Sou como, a quem me vê sem véus a imagem nua, As estrelas, o sol, o firmamento e a lua! Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios, Quando um homem sufoco à borda de meus lábios, Ou quando o seio oferto ao dente que o mordisca, Ingênua ou libertina, apática ou arisca, Que sobre tais coxins macios e envolventes Perder-se-iam por mimos anjos impotentes!” Quando após me sugar dos ossos a medula, Para ela me voltei lânguido e sem gula À procura de um beijo, uma outra eu vi então Em cujo ventre o pus se unia à podridão Os dois olhos fechei em trêmula agonia, E ao reabri-los depois, à plena luz do dia, A meu lado, em lugar do manequim altivo, No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo, Pendiam do esqueleto uns farrapos poeirentos, Cujo grito lembrava a voz dos cata-ventos Ou de uma tabuleta à ponta de uma lança, Que nas noites de inverno ao vento se balança. NOTAS 1 2 BAUDELAIRE. As flores do mal. NAZÁRIO. Da natureza dos monstros. 3 Idem. 4 Idem. 5 Idem. 6 Idem. 7 À historiadora Elizabeth Salgado de Souza agradeço o material sobre os ciganos. 8 STOKER. Drácula. Todas as citações desta obra estão em itálico, sem referência de páginas para estimular o suspense. 9 FONSECA. Enterrem-me em pé: a longa estrada dos ciganos. Grifos da autora. 10 RIBEIRO. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 11 Em 14 de dezembro de 1890, Rui Barbosa instituiu comissão destinada a arrecadar e queimar, tendo em vista sua destruição imediata, “todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula de escravos, ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos 67 Coleção Convite ao pensar sexagenários”, considerando que tais documentos representavam “vestígios nos arquivos públicos da administração dessa nódoa social”. Ver CAMPOLINA et al. Escravidão em Minas Gerais. 12 BOSI. Dialética da colonização.. 13 CHEVALIER et al. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 14 Ver SANTOS. Os nagô e a morte: pàde, asèsè e o culto Égun na Bahia. Quanto à simbologia das cores, remeto ao dicionário citado na nota anterior. 15 SODRÉ. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. As aspas são do autor, os grifos são meus. 16 KRENAK. Novas exigências globais e realidades indígenas regionais. 17 NAZÁRIO. Da natureza dos monstros. 18 Idem. 19 SOUZA. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. 20 NAZÁRIO. Da natureza dos monstros. 21 Idem. 22 Jorge Mautner compôs e gravou a canção Vampiro, sucesso na interpretação de Caetano Veloso, no disco Cinema Transcendental, gravado em 1979. 23 MAUTNER. Vampiros. 24 LIANO JR. Manual prático do vampirismo. 25 Idem. 26 Idem. 27 Idem. 28 Idem. 29 Idem. 30 Idem. 31 BAUDRILLARD. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. 32 Idem. 33 NAZÁRIO Da natureza dos monstros. 34 BAUDELAIRE. A modernidade de Baudelaire. 35 BENJAMIN. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 36 Idem. 37 BAUDELAIRE. As flores do mal. 68 Drácula , de Bram Stoker– Lídia Avelar Estanislau REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BAUDELAIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. São Paulo: Papirus, 1990. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas, v III. São Paulo: Brasiliense, 1989. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CAMPOLINA, Alda Maria Palhares et al. Escravidão em Minas Gerais. Belo Horizonte: SEC/APM, 1988. (Cadernos do Arquivo 1). CHEVALIER, Jean et al. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. FONSECA, Isabel. Enterrem-me em pé: a longa estrada dos ciganos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. KRENAK, Ailton. “Novas exigências globais e realidades indígenas regionais”. In: BAY: A educação escolar indígena em Minas Gerais. Belo Horizonte: SEEMG, 1998. LIANO JR., Nelson. Manual prático do vampirismo. Rio de Janeiro: Eco, 1990. MAUTNER, Jorge. Vampiros. In: LIANO JR., Nelson. Manual prático do vampirismo. Rio de Janeiro: Eco, 1990. NAZÁRIO, Luiz. Da natureza dos monstros. São Paulo: Arte & Ciência, 1998. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: pàde, asèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986. SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: CODECRI, 1983. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. STOKER, Bram. Drácula. Porto Alegre: L&PM, 1996. 69 Coleção Convite ao pensar 70 SUBMISSÃO E REVOLTA EM MÁRIO E O MÁGICO, DE THOMAS MANN Léa Souki Por que, entre a vasta obra de Thomas Mann, escolhi a novela Mário e o mágico como um “Convite ao pensar”? Creio que, nessa pequena novela, o autor trata de uma noção importante e muito atual, qual seja, a capacidade de certos indivíduos levarem multidões à obediência, sem o uso da força física, mas pela persuasão. Como contraponto, Mann nos revela ainda a possibilidade da revolta contra o tirano. Antes, devo ressaltar que este texto não pretende ser uma análise literária da novela de Mann, mas uma tentativa de motivar e instigar à reflexão através de uma obra cujo tema trata da teoria política e da ética. Para tanto, concentrei meu objetivo em três focos. No primeiro, tecerei algumas considerações sobre aspectos da novela no seu momento histórico; no segundo, fornecerei algumas sucintas informações biográficas sobre o autor, assim como de circunstâncias históricas da Alemanha, no período da ascensão do fascismo; a última parte será dedicada à conceitualização da obediência, baseada na crença em qualidades extracotidianas do líder. Thomas Mann entende a composição artística como uma colocação das coisas no lugar, ao mesmo tempo que uma elucidação sobre acontecimentos 71 Coleção Convite ao pensar vividos. Conforme diz o próprio autor em Esboço de uma vida, ele não havia inventado nada dessa história. Com exceção do final, tudo já lhe havia acontecido um ano antes, em um balneário.1 Muito atento ao que acontecia à sua volta, Mann tenta mostrar, no cotidiano dos comportamentos individuais, a sinalização dos ingredientes de uma liderança autoritária. Nesse balneário, havia um garçom, um mágico, e o hoteleiro, assim como em Morte em Veneza, sua outra novela italiana, havia o “viajante no cemitério de Munique”, o velho bonito, o gondoleiro suspeito, Tadzio e sua família, a cólera. Desse modo, o artista põe as coisas no lugar e a composição serve como um instrumento de interpretação. Nessa obra, Mann descreve experiências que ele teve em comum com sua nação, transformando-as em arte. O autor narra a história de um malestar progressivo, inevitável, que se agrava até tornar-se intolerável. Os acontecimentos vão em um crescendo, percebem-se os sinais de uma catástrofe iminente e nada se pode fazer para impedi-la. O leitor sente alívio quando o tiro ecoa da platéia e o pacato garçom salva-se da humilhação e se investe de dignidade. Assim começa a história: Torre di Venere me deixou a lembrança de uma atmosfera desagradável. Havia no ar, desde o começo, uma contrariedade, uma irritação, uma superexcitação. E depois, para terminar, houve o choque com este terrível Cipolla, em quem toda a malignidade do ambiente parecia se encarnar e se concentrar perigosamente, figura nefasta e muito impressionante para os olhos humanos. O final foi medonho (pareceu-nos, depois de tudo, que ele já estava determinado de antemão pela natureza das coisas) e a infelicidade quis ainda que as crianças assistissem a ele. Foi uma 72 Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki triste situação, bastante chocante em si, que nasceu de um mal-entendido causado pelas enganadoras promessas desse curioso homem. Eles não compreenderam, graças a Deus, onde terminava o espetáculo e começava a catástrofe, e nós as deixamos na doce ilusão de que tudo tinha sido teatro.2 A história de Mário e o mágico é uma reflexão sobre a condição de liberdade relativa que a nós, humanos, é concedida, e sobre certos perigos que ameaçam nossas limitadas autonomias. Cipolla é um hipnotizador que se passa por mágico, e que, em suas sessões públicas, é capaz de levar um homem, rapidamente, a se comportar como um fantoche. Caberia aqui perguntar: a alusão seria a Hitler ou a Mussolini? Nas palavras de Mann, Cipolla era “o moderno domador de multidões”, “homem de vontade e ação cuja astúcia e energia estavam inteiramente a serviço do mal”. Seu bigodinho lustrado e sua capa evocavam uma certa teatralidade, ao mesmo tempo rancorosa e sem humor. Inicialmente, em 1932, Mann teria negado o conteúdo político dessa novela, preferindo colocá-la no plano da ética. Mais tarde, porém, em 1948, no texto intitulado Dezesseis anos, ele fala de “uma história com fortes ramificações políticas, que se inclina em segredo sobre a psicologia do fascismo e também sobre a da ‘liberdade’, com sua doutrina da boa vontade, que a coloca num estado de inferioridade diante do robusto querer do seu adversário”.3 Muito se tem especulado sobre o engajamento político de Mann. Creio que o mais apropriado seria considerá-lo como algo que se foi configurando ao longo de sua vida, ao mesmo tempo em que procurava preservar sua liberdade como intelectual. Sabe-se da simpatia que Mann nutriu pelo nacionalismo na mocidade. Aliás, o mesmo ocorreu com grande parte da intelectualidade alemã, 73 Coleção Convite ao pensar mesmo porque, naquela época, o nacionalismo não estava restrito aos pobres de espírito, uma vez que ele não havia mostrado sua virulência. Contudo, a partir da década de 20, Mann já se posicionava publicamente, não reconhecendo no nazismo as características do sentimento de ser alemão que ele alimentava. Em janeiro de 1925, quando revia seu discurso Goethe e Tolstoi, escreveu: “Não me proponho a tratar do fascismo alemão, nem das circunstâncias inteiramente compreensíveis que lhe deram origem... É uma religião popular pagã, um culto a Wotan: é para ser ofensivo – e pretendo ser ofensivo – uma romântica barbárie”.4 Para melhor compreender essa dimensão de sua vida e obra, é pertinente considerar alguns aspectos de sua biografia, bem como do momento de ascensão do fascismo alemão. Mann era filho de um próspero comerciante e senador de Lubeck, cidade do norte da Alemanha, e de uma brasileira, nascida Júlia da Silva Bruhns, descendente de alemães e portugueses. Tanto ele como o irmão, Heinrich, em tenra idade, submeteram-se à vontade do pai em torná-los comerciantes. Enquanto o pai vivia, os irmãos tiveram que entrar como aprendizes em firmas comerciais, embora a pressão para uma carreira de negócios fosse muito maior sobre Heinrich do que sobre seu irmão mais jovem. Contudo, foi Júlia Mann aquela que efetivamente iria marcar sua influência em toda a família, com seu interesse pela arte e sua preocupação em criar condições para que os filhos seguissem uma carreira artística. Quando se enviuvou, ainda jovem, mudou-se para Munique e, aí, montou um salão para saraus, onde recebia artistas e escritores. A história dos dois irmãos e suas respectivas obras são marcadas pela presença de Júlia, uma mulher corajosa e determinada. 74 Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki Em 1898, aos vinte e três anos, Mann publicou seu primeiro livro de contos, O senhorzinho Friedeman. Em 1901, lançaria o famoso romance Buddenbrook, história de três gerações de uma família de Lubeck, livro muito influenciado pela literatura francesa, especialmente pelo naturalismo de Zola. Mário e o mágico foi escrito em sua casa de praia no mar Báltico, em 1929, e publicado em 1930. Deve-se observar que, para alguns, o livro pareceu uma estranha e profética história de feitiçaria. A novela nasceu em um dos intervalos do primeiro volume de José, sua trilogia bíblica sobre José do Egito, a qual ele só veio a terminar nos anos 50, em seu exílio nos Estados Unidos, do mesmo modo que Morte em Veneza foi criado enquanto Mann compunha A montanha mágica. Eis o que disse o próprio autor sobre o seu método de trabalho: “Habitualmente meus trabalhos narrativos acompanham-se de pequenos brotos sob forma de ensaios. Freqüentemente a incitação de escrevê-los pode vir de fora, mas no fundo eles só têm a finalidade de fortificar-me no meu propósito de narrador”. Um outro dado que merece registro na biografia de Mann é que, pouco depois de ter começado a escrever José, em 1926, ele receberia o Prêmio Nobel, em 1929. A respeito do prêmio, Mann escreveu a André Gide: O mais divertido de tudo é que o crítico e professor de literatura Book, de Estocolmo, que costumeiramente tem uma influência decisiva na escolha do ganhador do Prêmio Nobel, proclamou publicamente a monstruosidade artística do livro e disse que eu estava recebendo o prêmio exclusivamente, ou pelo menos em grande parte, por causa do meu antigo romance Os Buddenbrook.5 Já em Esboço de uma vida, Mann também fala do “documento lindamente executado que o rei 75 Coleção Convite ao pensar Gustavo me deu, de que eu devo o prêmio principalmente à estima que os povos nórdicos têm pelo meu romance juvenil sobre a vida familiar em Lubeck”.6 Nessa época, diante das homenagens que recebia, Mann tinha cada vez mais que lidar com o crescimento do nacionalismo na Alemanha. O resultado das eleições de 1930 e o engajamento de intelectuais, artistas e filósofos na causa nacionalista chegavam ao seu círculo mais íntimo. Parecia o sinal dos tempos. Seu compadre e confidente, Ernest Bertam, professor em Colônia, se aproximara definitivamente do nacionalismo, e a ele se seguiram outros. Sobre esse período, bem como sobre seus compromissos com a República de Weimar, Mann escreveu, em Dezesseis anos: Devemos pensar que, na época que comecei José, as tensões políticas interiores do pós-guerra na Alemanha já haviam atingido seu apogeu, e nesses anos de 1920, por causa de minhas obras políticas, eu realizei minha obra artística sob a pressão, as perturbações morais e o peso do ódio nacional. A situação honrosa oficial que a República me reconhecia não mudava nada, e me obrigava a todas as espécies de discursos solenes. Os artigos, conferências, manifestações oficiais, adjurações políticas, prosseguiam paralelamente. Sua indignação e preocupação prosseguiam em um crescendo de compromissos e declarações públicas que, por fim, o indispuseram com os nazistas. As posições de Mann, na verdade, se tornaram bastante divulgadas. Os amigos e muitos admiradores literários se inquietavam por suas declarações políticas e viam nesse engajamento uma investida na arena política, indigna de um escritor de sua estatura. Por outro lado, deve-se lembrar de que tal engajamento foi uma reação à sua impotência criativa anterior à guerra, uma reação que 76 Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki provavelmente iria fortalecê-lo. Em síntese, o desejo de “participar” foi um sinal de coragem que, certamente, o ajudou a sobreviver à inveja, à privação e aos constrangimentos que enfrentaria até a morte. Pode-se afirmar que nem Hitler nem o macarthismo destruíram a resistência construtiva do gênio que sobreviveu ao Estado terrorista alemão e, posteriormente, à desilusão em seu exílio nos Estados Unidos. Neste último caso, não se pode esquecer do fato de que Mann sentira-se incomodado com a superficialidade e a má recepção de certos críticos norte-americanos em relação a José. De volta ao contexto no qual foi escrito Mário e o mágico, em 30 de janeiro de 1933, Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha por Hindemburg. Três semanas depois, Heinrich e Thomas estavam no exílio. Mas não foram as confissões públicas de Mann e sua adesão aos social-democratas que lhe valeram a expulsão da Alemanha e, sim, a conferência por ele pronunciada em comemoração ao cinqüentenário da morte de Richard Wagner. A conferência provocou a indignação dos mais importantes funcionários, professores e artistas de Munique. Conforme declaração dos 45 signatários do protesto, a cidade natal do compositor se indignava por ele (Mann) ter “caluniado nosso grande gênio musical”. Estando fora da Alemanha, pois viajara para ler a conferência em Amsterdã, Bruxelas e Paris, Mann planejava seguir de férias para a Suíça, junto com sua mulher, Katia. Foi aí que recebeu a notícia do incêndio do Reichstag e da vitória de Hitler, com 288 cadeiras, na eleição geral de 5 de março. Os signatários do protesto, que esperavam seu regresso para agir, provavelmente se frustraram com a decisão de Mann de não voltar à Alemanha. 77 Coleção Convite ao pensar Alguns dias antes, seu irmão, Heinrich, havia se exilado em Paris. De Munique, seus filhos, Erika e Klaus, aconselharam os pais a não voltarem. É que a casa da família havia sido ocupada pelo comandante da Casa Parda de Munique, o qual estava interessado no automóvel do escritor. Erika, a filha mais velha, ainda conseguiu recuperar alguns escritos do pai. A vitória nazista nas eleições de 5 de março de 1933 selava o fim de Weimar. Contando com maioria absoluta, Hitler pôde aprovar o seu “Ato de Incumbência” no Reichstag, o que dava a seu gabinete o poder de legislar sem o referendo do parlamento. Dois meses depois, todos os outros partidos políticos, inclusive os nacionalistas que o apoiaram, foram fechados. Nos meses seguintes, Mann adotou uma posição discreta em relação aos acontecimentos e coube a Heinrich, em Paris, defender a causa do antifacismo alemão. Nas cerimônias de queima de livros montadas em todo o Reich, em maio de 1933, Mann foi poupado, o mesmo não ocorrendo com Heinrich. Retornemos agora ao tema de Mário e o mágico, para, em seguida, tentarmos esclarecer certos aspectos da liderança carismática. Cippola, o mágico, é um domador de multidões, mas é também uma “cebola”, formado de camadas superpostas, sem nada diferente em seu interior. O mágico tem uma capacidade teatral e persuasiva de gerar a submissão. A platéia não se distancia, ao contrário, parece estar hipnotizada. Tanto que ocorre um intervalo na apresentação do mágico e ninguém se retira. O próprio autor não explica sua permanência no local: Antes de qualquer outra coisa, é preciso dizer que neste momento houve um intervalo e o homem que 78 Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki nos tinha sob seu domínio retirou-se. Confesso que temi este ponto de minha história desde o momento em que a comecei. Geralmente não é difícil ler o pensamento das pessoas, e aqui foi muito fácil. É claro que vocês irão me perguntar por que não fomos embora finalmente. E sinto-me na obrigação de ficar devendo uma resposta. Eu mesmo não compreendo e não saberia realmente me justificar.7 As crianças, por exemplo, insistem em permanecer ali, incapazes de distinguir o grotesco do trágico. Há um clima premonitório e, ao mesmo tempo em que se percebe a manipulação do mágico, não se pode dela escapar, não há como evitá-la. O fim explosivo e catastrófico está no ar. Em resumo, o autor chega a um balneário com a família e vários acontecimentos incômodos sugerem que ele desista e vá embora. Contudo, ele fica, a sensação é desagradável, mas o prende. Mann ficou satisfeito quando um crítico disse, a respeito dessa novela, que ela não tinha nada contra os italianos. Talvez ele tenha preferido ver a fera através do espelho e assim preferiu falar dos “meridionais”: Ele soube se impor pela palavra. Entre os meridionais, a linguagem é um ingrediente da alegria de viver, e dão a ela um valor social muito mais importante do que o fazem no norte. Entre os povos do sul, tem-se em grande honra esse elo nacional, que é a língua materna.8 Cippola soube se fazer cativar a ponto de gerar obediência e, junto, a perda da dignidade. A obediência que ele gera é “voluntária”, na medida em que a força física não é usada, não obstante a persuasão tenha ultrapassado os limites da dignidade. Sobre isto, é esclarecedor o que o autor fala a respeito da confusão de emoções contida no espetáculo: 79 Coleção Convite ao pensar Curioso e cativante, inquietante e doloroso, e também humilhante. Talvez mais ainda. Essa sala constituía o ponto de condensação de toda a curiosa singularidade, de toda a insegurança, de toda a tensão de que a atmosfera de nossa estada em Torre estava carregada. Esse homem cujo retorno esperávamos parecia encarnar tudo isso. E como não havíamos feito uma “grande” partida, seria ilógico fazer uma “pequena” partida. Aceitem ou recusem essa explicação. Em todo caso, não tenho uma melhor.9 Cippola não age sozinho. Mário, o garçom, é humilhado, revelando sua própria intimidade ao público, público que, seduzido por Cippola, torna-se seu aliado. Os que percebem a trama não conseguem sair ou tomar qualquer iniciativa. Não há ninguém na platéia capaz de escapar à experiência totalitária. Os poucos inquietos ali presentes são incapazes de tomar qualquer decisão. Tomemos agora de empréstimo alguns recursos da teoria política. Uma importante reflexão sobre a obediência remonta a Ettiene La Boettie (1500), em seu conhecido Discurso da servidão voluntária. Dito de maneira bastante simplificada, segundo ele as pessoas obedecem por hábito, porque não sabem que podem deixar de fazê-lo; por sedução, porque os governantes as encantam; e para amealhar bens, isto é, por interesse. Quatro séculos mais tarde, Max Weber reelaborou essas três condições da obediência, baseando-se na construção dos três tipos puros de dominação legítima: tradição, carisma e racionalidade. Essa abordagem é uma construção teórica, apresentada através do recurso da comparação, e conceituada através de tipos ideais, aqueles que não se encontram em estado puro na realidade. Em que medida o esquema teórico dos três tipos de dominação legítima, construído por Weber, pode ser útil para a compreensão da obediência 80 Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki da maneira como a estamos tratando aqui, obediência e perda da dignidade? Como já foi sugerido anteriormente, Mário e o mágico é um libelo contra o fascismo e, especificamente, contra aquele líder carismático que doma e amordaça multidões. No caso de Hitler, não podemos nos esquecer do caráter legal de sua ascensão – ele chegou ao poder através de eleições. A coerção estava, naturalmente, embutida. Em sua ascensão prevaleceram os ingredientes de sedução. O calor do encantamento que ele gerou, politicamente, foi um aval para sacrifícios futuros. Portanto, não estava escrito na testa do sedutor de multidões que, por trás do consentimento, viria a coerção, e que, detrás dos interesses coletivos, estavam os interesses particulares, daí sua força de transformação. Para compreender melhor esse tipo de relação, pode nos ser útil a distinção entre consentimento informado e consentimento manipulado. De uma maneira bastante sucinta, considera-se o consentimento manipulado aquele que ocorre quando as metas, não sendo coletivas, se apresentam como tal. Portanto, quem tem controle e influência sobre os outros se apresenta como portador das metas coletivas do grupo. A manipulação ocorre na medida em que o controlador deverá obscurecer o caráter privado de seus objetivos, os quais não poderão ser compreendidos. Assim, o controle e a influência sobre a ação dos outros são exercidos contra a vontade deles ou sem o seu entendimento. O consentimento informado, ao contrário, ocorre na situação em que existem metas coletivas e o consentimento sobre a ação dos outros se dá através de uma avaliação que pode ser racional e constatável. Ou seja, pode-se conhecer as razões do consentimento, portanto, não é necessário haver obscurecimento da consciência ou do que estamos entendendo aqui como manipulação. 81 Coleção Convite ao pensar De outra parte, vamos tentar entender o carisma, lembrando que o conceito é comparativo, isto é, comprende-se melhor esse tipo de dominação comparando-o com os tipos tradicional e racionallegal. Na tradição, obedece-se à pessoa em virtude do hábito; no carisma, obedece-se à pessoa do líder em virtude do afeto capaz de gerar a crença em suas qualidades extracotidianas; na dominação racionallegal, obedece-se não à pessoa, mas ao cargo que ela ocupa em virtude da disciplina de serviço e baseando-se no critério da competência específica. Aqui são necessários alguns esclarecimentos. O senso comum hoje utiliza o termo carisma como atributo de uma pessoa ou também como puro charlatanismo. Na teoria de Weber, só é considerada carismática a liderança que faz seguidores. O charme pessoal, o encanto de um ator, atriz ou apresentador de programa de televisão costumam ser chamados incorretamente de carisma, pelo menos do ponto de vista técnico. Outro engano comum no uso do termo é confundi-lo com demagogia, ou com o charlatanismo, simplesmente. De acordo com Weber, o líder carismático pode ser o grande demagogo, o herói guerreiro e o profeta. No conjunto do seu esquema teórico, o carisma como o “sempre novo” é visto como o tipo de liderança mais autoritária, mas também a que tem o maior poder de transformação. Sendo assim, entende-se a razão que levou Weber, ao final da vida, preocupado com a “jaula de ferro” da racionalidade instrumental, a pensar no surgimento de um novo profeta como solução para a humanidade. Com isto, quero dizer que utilizar o conceito de carisma não seria de todo correto para o caso de Mário e o mágico, mas também não seria de todo incorreto. A relação desigual, que é capaz de encantar e gerar formas de obediência as mais devastadoras, 82 Submissão e revolta em Mário e o mágico, de Thomas Mann – Léa Souki é descrita por Mann tanto no seu aspecto de transformação como de destino inevitável. Além disso, é magistral a maneira como Mann revela a violência embutida na sedução do mágico. Cippola é capaz de fazer um púbico inteiro (quase toda a pequena cidade estava presente à sessão) crer em suas qualidades extracotidianas e, por isso, gerar um fascínio que leva à obediência. Obediência que foge aos limites da dignidade. Alguém se humilha sem ser coagido fisicamente e a submissão é tamanha que alguns agradecem a oportunidade de vivenciá-la. Até que um garçom busca recuperar sua dignidade. Mann fala-nos, assim, da capacidade de revolta contra o tirano: “Mário volta-se bruscamente, ergue rapidamente o braço, e dois tiros ecoam, entre os aplausos e risos”. NOTAS 1 Na realidade, foi Erika, filha mais velha do escritor, quem lhe sugeriu o final explosivo, o que adicionou à novela muito do seu caráter inquietante. 2 MANN. Mário e o mágico, p.17 3 MANN. Mário e o mágico, p.179. 4 HAMILTON. Os irmãos Mann, p.354. 5 Carta de 20/01/30 - Apud HAMILTON. Os irmãos Mann, p.344. 6 Apud HAMILTON. Os irmãos Mann, p.344. 7 MANN. Mário e o mágico, p.47. 8 MANN. Mário e o mágico, p.35. 9 MANN. Mário e o mágico, p.48. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HAMILTON, N. Os irmãos Mann. São Paulo: Paz e Terra, 1985. MANN, T. Mário e o mágico. São Paulo: Círculo do Livro, 1973. WEBER, M. “Los tres tipos puros de dominácion legítima”. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Eonómica, 1973. 83 Coleção Convite ao pensar 84 SOBRE O FILME METRÓPOLIS Euclides Guimarães O texto que se segue resulta da transcrição feita sobre a gravação da pequena participação que tive no programa cultural “Convite ao pensar”, quando fui convidado para falar sobre o filme Metrópolis, de Fritz Lang. Sobre a transcrição foi feita uma revisão com vistas a adaptar a fala ao texto, mas procurei preservar as características da oralidade que, acredito, proporcionam mais fidelidade à natureza do texto. Metrópolis é um clássico do cinema alemão dos anos 20, filme que representa de forma exemplar um dos momentos mais brilhantes da história da arte, período do auge do expressionismo. Para facilitar o entendimento do que vou comentar aqui, devo dizer que minha formação não é de filósofo, nem de artista ou crítico de cinema, e sim, de sociólogo, de forma que minha análise se volta mais para o contexto. Digamos que nós, sociólogos, somos um pouco mais preocupados com fatos, de sorte que permeio minha participação pela focalização do momento histórico e teórico em que o filme Metrópolis é realizado. Em outras palavras, interessa-me mais o contexto que o texto (no caso, o filme). Organizo minha participação da seguinte forma: numa primeira parte, olho para um momento 85 Coleção Convite ao pensar da história da cultura e analiso essa matéria de uma forma mais ligada ao espírito da época. Numa segunda parte, falo sobre Fritz Lang, o autor do filme Metrópolis, que teve uma vida muito emblemática, muito representativa do que foi esse período, uma vida coincidente com as vidas de tantos outros intelectuais que viveram esse conturbado momento, a primeira metade do século XX. Mais no fim, pretendo fazer alguns comentários sobre o filme, resumidamente, apenas para dar algumas indicações de como vocês podem olhar para essa obra, que é brilhante, uma obra muito interessante, mas ao mesmo tempo um pouco distante do modo de olhar do espectador contemporâneo. Na verdade, trata-se de um filme lançado em 1926, ainda no tempo do cinema mudo, feito com os recursos do cinema da época, o que nos obriga a maleabilizar o olhar para poder entender essa obra, de forma que se possa assistir ao filme um pouco com os olhos daquele período. Eu diria que duas décadas foram especialmente importantes para a história da cultura no século XX, a década de 20 e a década de 60, e que ambas estão intimamente interligadas. As vanguardas dos anos 60, em regra, estavam muito inspiradas nas obras dos anos 20. Normalmente se encontram claras alusões a artistas ou a obras dos anos 20 nas obras dos anos sessenta. Por exemplo, na Tropicália, Gilberto Gil e Torquato Neto lançam uma música chamada “Geléia geral”, cuja letra encontra-se repleta de versos do “Manifesto antropofágico”, de Oswald de Andrade. Nessa mesma década, nasce um grupo de Rock chamado “The doors”, cujo próprio nome é tirado de um livro de Aldous Huxley intitulado “The doors of perception”. Uma banda chamada Black Sabbath inventa um movimento 86 Sobre o filme Metrópolis – Euclides Guimarães chamado Heavy Metal, e o principal homenageado é um bruxo do início do século chamado Alister Krauley. Um outro grupo nos EUA, auto-intitulado “Os Beatneeks”, aparece nesse cenário chamando como precursores poetas da virada do século como Whitman e Thoureau, mas principalmente um escritor dos anos 20, de grande envergadura, talvez o maior da época, John Fante. Estou dando esses exemplos apenas para ilustrar o fato de que é incontestável a influência das vanguardas dos anos 20 sobre as dos anos 60. E, de fato, o clima intelectual dos anos 20, momento em que o filme Metrópolis é realizado, caracteriza-se como um dos mais ousados da história, pois se nos anos 60 havia essa referência aos anos 20, nesses, o que estava acontecendo era uma coisa muito inovadora. É claro que essa inovação não foi toda situada nos anos 20, mas, nas primeiras décadas do século, como acontece com o “expressionismo”. Sendo, entre as vanguardas daquela época, o movimento que angariou mais nomes e também o mais abrangente, o expressionismo nasce na virada do século, mas vai ter o seu momento máximo nos anos 20. Só então o movimento passa a abranger outros campos além da literatura e das artes plásticas, notadamente o cinema. A maior parte dessas vanguardas nasceu antes dos anos 20, mas é nessa década que elas encontram seu apogeu. O expressionismo é muitas vezes identificado como a arte da guerra, por ter tematizado preferencialmente as agruras da Primeira Guerra Mundial, mas sua maior produtividade ocorre nos anos seguintes. Também o surrealismo, tido como a mais radical das vanguardas modernas e, como tal, sintetizadora do espírito da arte do início do século, é próprio dos anos 20. 87 Coleção Convite ao pensar Outro dado importante sobre os anos 20 é que se trata da década que presencia o advento do que hoje denominamos “meios de comunicação de massas”. Surge a indústria fonográfica, a radiodifusão, o best seller. Podemos dizer que, se no início da década cada localidade do planeta vive encerrada em sua cultura, no final já existe uma padronização, já existem tendências culturais generalizadas, que praticamente englobam todo o Ocidente. Muito bem, foi também sob a influência desse contexto que o cinema deixou de ser uma engenhosidade ótico-cinética, para reivindicar a condição de um revolucionário suporte para a arte. Entre os primeiros cineastas imbuídos dessa idéia encontramos esse nome, esse austríaco que nasceu no final do século XIX e que já em 1906, com não mais que 18 anos de idade, estava se mudando para Berlim para tentar a vida como roteirista de cinema. Esse é o Fritz Lang. Nesse sentido, a vida de Lang corresponde perfeitamente aos acontecimentos intelectuais de seu tempo. Berlim se tornou, especialmente no início do século XX, uma cidade muito importante. Logo depois da Primeira Grande Guerra emerge na história da Alemanha um período que ficou conhecido como “República de Weimar”, período crucial, até pelas grandes contradições que carregou. Se, do ponto de vista socioeconômico, foi um desastre, a ponto de dar margem ao surgimento do nazismo, do ponto de vista cultural, foi um grande momento da história. Uma época de grande profusão e experimentação artística, de efervescência cultural, de grandes debates. Um movimento chamado “A ponte” inaugurou em Berlim outro dos grandes marcos das vanguardas modernas, o Dadaísmo. Toda a cultura germânica fervilhava por essa época; em Weimar nasce a “Escola Bauhaus” de arquitetura, em Frankfurt, a Teoria Crítica, uma das mais 88 Sobre o filme Metrópolis – Euclides Guimarães expressivas forças da filosofia e da sociologia contemporâneas. Também a fenomenologia de Husserl e Heidegger, a lógica de Frege e Wittgenstein completavam o quadro de um dos maiores momentos da história do pensamento ocidental. No campo das ciências e tecnologias circulam homens da envergadura de um Einstein ou um Von Brown, na psicanálise Freud, na literatura Hesse, Thomas Mann, Gertrude Stein. É importante, para que situemos o clima e o debate cultural da época, perceber quanto os cenários se definiam em torno de certos centros urbanos, certas instituições como as universidades ou mesmo de logradouros das cidades, pontos de encontro que emanavam influências em caráter quase instantâneo, onde se reuniam cabeças pensantes de vários países, formações e idéias, todos unidos pelo cosmopolitismo, o futurismo cheio de ideais, o desejo do novo, o experimentalismo e o astral vanguardista. É justamente nesse cenário que o cinema aparece como uma grande alternativa para a linguagem artística, preenchendo melhor que qualquer outro conjunto de recursos expressivos a grande norma de conduta das vanguardas: “É preciso ser absolutamente moderno.” Com tais palavras, ainda no final do séc. XIX, Rimbauld resumiu e antecipou a grande vocação dos tempos modernos, quando então se delineava a busca incansável pela criatividade, pela originalidade, pelo novo. Por trás dessas palavras estava embutida a necessidade da ruptura, isto é, romper com tudo que existiu antes, começar de novo a história da civilização, porque a história que nos foi dada até agora é sobretudo frustrada. Esse processo de começar de novo é bastante complicado, tanto que acabou por atropelar as próprias vanguardas e transformar o modernismo em algo, por assim dizer, mais light, a partir dos anos 89 Coleção Convite ao pensar 30. Mas, nos anos 20, esse clima está no auge; então, o cinema aparece como o suporte preferencial, onde os artistas de vanguarda podem testar, de uma forma completamente inédita, sua criatividade, seu experimentalismo. Fritz Lang circula antes de 1906 nesse cenário, tentando a sorte como roteirista, mas era também um bom desenhista; neste caso, é muito influenciado tanto pela literatura policial – que a essa altura já se encontra mercadologicamente estabelecida, isto é, já tem seu público fiel – como também pela nascente ficção científica. Esta vinha se tornando uma espécie de “menina dos olhos” dos jovens artistas daquele momento. Tendo, como o gênero policial, suas origens no século XIX, a ficção científica estava em franco crescimento, justamente em função do espanto que as descobertas e as máquinas estavam causando, para não falar da própria força da ciência como conhecimento capaz de coordenar o caminho de um novo mundo. Extremamente significativo nesse sentido é o trabalho de H. G. Wells intitulado A ilha do Dr. Moreau, em que se discute até onde qualquer atitude pode ser validada em nome da ciência. Até que ponto empecilhos éticos podem ser colocados para o desenvolvimento da ciência? A questão permanece tão atual quanto naquele tempo, como podem confirmar os debates que hoje são travados em torno da engenharia genética, da clonagem e dos transgênicos. H. G. Wells era uma espécie de ídolo para jovens como Lang, de sorte que sua obra influenciou diretamente o que mais tarde apareceria no cinema desse autor, especialmente em Metrópolis. O jovem Lang havia saído de Viena, carregando consigo todas essas influências modernas, muito a contragosto da família, o que também não é de 90 Sobre o filme Metrópolis – Euclides Guimarães se estranhar, já que o pai era um eminente arquiteto, e o filho já havia iniciado seus estudos em arquitetura, demonstrando grande talento para o desenho. Além disso, Viena significava estabilidade e sucesso, enquanto Berlim era incerta. Pesam ainda sobre isso os aspectos quase sempre muito insalubres relacionados à vida de um intelectual europeu no início do século. A cena cultural, freqüentemente denominada “boêmia”, envolvia virar madrugadas, consumir álcool e drogas, se expor a epidemias fulminantes como a sífilis e a tuberculose, e viver nas fronteiras da imoralidade. Mas, naquela época, a inquietude facilmente contagiava os jovens intelectuais que, em busca de uma modernidade a se conquistar, lançavam-se de corpo e alma nas aventureiras cenas das grandes cidades. Lang certamente foi um desses jovens, um tipo realmente emblemático do momento histórico em que viveu. Em 1910, o nome de Fritz Lang encontra seu primeiro momento de sucesso. Ele passa a ficar conhecido por sua participação como roteirista no filme “O gabinete do Dr. Caligari”, de Robert Weil, filme tão ou mais importante que Metrópolis. Pouco depois, casa-se com uma mulher também muito importante, Thea Von Habour. Trata-se de uma escritora que é autora, entre outras obras, do romance intitulado Metrópolis, do qual Lang extrai a história do filme. No final da década de 20, vem o período de emergência das ditaduras que vão transformar radicalmente o cenário da Europa para a década seguinte. Então, aparece Stalin na URSS, e, na Alemanha, começa o clima que vai desembocar no nazismo. Fritz Lang desde o início se coloca contra o nazismo, mas fortes argumentos sustentam tal ideologia, de sorte que muitos de seus amigos aderem e trabalham para o movimento. Uma dessas 91 Coleção Convite ao pensar pessoas foi surpreendentemente Thea Von Habour, mulher de Fritz Lang. Isto resultou portanto na separação e no exílio de Lang. O exílio dos intelectuais que estavam fugindo do nazismo era algo mais ou menos fixo também. Eles iam para Genebra ou Zurich, devido à famosa neutralidade suiça, alguns iam para Paris, mas o certo é que toda a Europa passou a ser insegura, na medida em que, além da ameaça constante da expansão do nazismo, havia o perigo renitente da ação terrorista do serviço secreto de Hitler, a Gestapo. Enquanto isso, aparecia o convite de um novo mundo que, naquele momento, esticava tapete vermelho para qualquer renomado intelectual europeu que nele quisesse se asilar: a América. Incontáveis judeus, alemães, italianos e europeus de um modo geral encontraram nos EUA um novo lar, incentivados por propostas irrecusáveis das universidades, empresas, institutos de pesquisa, editoras, produtoras cinematográficas etc. Nos EUA dos anos 30 configurou-se uma nova fase na história da cultura ocidental, a era da comunicação de massas: nasce o best seller, o star system, a parada de sucessos e a mais sintomática das indústrias culturais, o supercinema de Hollywood. O exílio para os EUA foi também a opção de Lang. O novo capítulo na história da cultura foi também um novo capítulo na história de Lang. Nos EUA, provavelmente, a opção de Lang teria sido continuar sua carreira, mas se existe algo que não combina com o espírito norte-americano é o expressionismo. De fato, os americanos sempre foram muito mais ligados a uma espécie de “realismo high tech”, que ao expressionismo. O tipo de cinema que Lang fazia teria soado hermético e enfadonho para as propostas da cultura americana, de forma que sua carreira sofreu uma incrível guinada. Talvez seu 92 Sobre o filme Metrópolis – Euclides Guimarães entendimento do novo contexto em que se inseria o tenha levado a uma outra postura profissional: Lang se torna empresário. Continua no cinema, dada sua longa experiência na área, mas agora como empresário. Dessa forma encerra-se uma carreira artística que passaria para a história como uma das mais arrojadas manifestações do expressionismo alemão. Cabe agora apontar algumas das características marcantes do movimento expressionista, as quais se mostram, por assim dizer, abundantes no filme Metrópolis. Primeiramente, é importante destacar a denúncia da reificação do homem. O operário robotizado, oprimido pela máquina enquanto transformado em parte dela é, seguramente, um dos temas prediletos de todo o modernismo da época. O cinema se põe a serviço de alegorizar esse processo, o qual se mostra, como nunca, ameaçador. Ao mesmo tempo, pensar o futuro significava também pensar uma estética para o futuro. Inspirada nesse mesmo processo de industrialização intensa, aparece essa visão do homem do futuro, vestido com trajes metálicos, prateados, brilhantes. Metrópolis inaugura essa perspectiva estética para a visualização do homem do futuro, que depois será propalada por tantas outras obras de ficção científica, não só no cinema, mas especialmente nos quadrinhos e na televisão. Outra coisa muito própria do expressionismo alemão é essa questão do artificialismo, uma espécie de alegoria cenográfica. Cada personagem representa não apenas uma vida, mas um papel social que está sendo marcante na situação histórica que a obra retrata. Em praticamente todo o cinema expressionista é assim: você tem um personagem vivendo uma situação pessoal, mas na verdade não se trata de uma situação pessoal. Esse personagem representa uma classe social, ou uma categoria 93 Coleção Convite ao pensar profissional, ou uma categoria intelectual; se ele é um artista, ele não é “um” artista, ele é “o” artista daquele momento; se ele é um operário, ele não é um operário, ele é a engrenagem industrial daquele momento. Trata-se desse processo alegórico, artificial mas, fundamentalmente, simbólico – e lembremos que o simbolismo ainda é muito forte entre as vanguardas modernas do início do século. Toda essa alegoria talvez seja a mais importante marca do filme Metrópolis, a presença constante da máquina, o homem como parte da máquina, os braços que trabalham como ponteiros de um relógio. Não apenas os expressionistas, mas outros grandes artistas e outros movimentos também se colocarão a serviço dessa denúncia: Chaplin, Gris, Lèger, Ensor, Huxley, Orwel são alguns exemplos, entre muitos. Por essas poucas indicações creio que abro certos caminhos para que se veja esse filme com outros olhos. As tantas décadas de evolução na linguagem e na tecnologia que nos separam do tempo em que foi rodado esse filme exigem que se maleabilize o olhar, pois, de outro modo, incorreríamos no erro de julgamentos pobres e no perigo de se perder o indiscutível teor artístico da obra. 94 MODERNIDADE: HISTÓRIA E MEMÓRIA Yonne de Souza Grossi Somos memória. Jorge Luis Borges Há coisas que estão presas na memória do tempo, como um momento, uma lembrança, uma experiência. Através delas se pode desfiar a teia do acontecimento instituinte, urdir a trama das relações indeterminadas, descobrir lacunas que cobrem processos. Natalie Zemon indicaria o caminho da “atenta escuta às vozes do passado”.1 Dirá Euzensberger: “Se mil olhos viram Durruti, é justo que mil bocas contem o que viram.”2 Paul Ricoeur oferece o “exercício da suspeita” e a “vontade de escutar”, como ingredientes do processo da interpretação; Alfredo Bosi lembra que interpretar significa uma escolha, entre as múltiplas possibilidades eleitas, capaz de abrir a questão problematizada.3 O problema da significação coloca-se para a história, ascendendo a posições diferenciadas quanto à maneira de se lidar com a realidade; ou seja, com o espectro de singularidades que o existente registra, com os limites expostos pelas rupturas, com os intervalos possibilitados pelas permanências.4 Essa busca de interpretação, para se conseguir significar, é uma das linhas de força do conhecimento. No tema proposto, o campo territorializado ultrapassará o perfil de um personagem. Perscrutará um contexto mais amplo, sem o qual os protagonistas seriam inexeqüíveis. Apagados, deixariam 95 Coleção Convite ao pensar sombras tênues sem configurações capazes de se efetivar com nitidez. Atravessam as três últimas décadas do século XX, acolhendo seus desafios e dilemas. Como interpretar a tessitura desse processo? Como perceber as passagens, caso tenham sido construídas? De que temporalidade falamos quando se pensa na relação das memórias com o passado? Nós somos as histórias que contamos, mas, sem a memória, como a experiência irá aflorar? Como fazer se as temporalidades estão fragmentadas? Se o vivido não deixa nem herdeiros nem obras? Como dar o testemunho de uma época? Como evitar a perda de momentos significantes? Jornadas também são habitações que recebem e acolhem marcas, construindo espaços de memória. A memória, na Grécia antiga, era precondição do pensamento. Deusa da memória, Mnemosine era também considerada deusa da sabedoria. Assim, a ciência da recordação era base do processo de aprendizagem. Aristóteles deu-lhe lugar de honra entre as disciplinas do pensamento. Para Cícero, a memória regia todas as pedagogias e era origem e fonte do pensamento. Santo Agostinho, em passagem das Confissões, a compara a um palácio onde “se encontra todo o tesouro de nossa percepção e experiência”. Os escolásticos medievais reviveram a arte da memória, segundo Tomás de Aquino. Seu grande florescimento na Renascença tornou-a matriz tanto para a arte como para a ciência.5 Hoje, a experiência da lembrança, segundo frankfurtianos, torna possível armar cenários de subversão do normatizado e do instituído. Inclusive, assistimos a um desejo imenso de memória em nossa época. Pierre Nora alicia situações estruturais que poderiam explicar esse desejo de memória.6 Houve um movimento de alteração do tempo. A história se faz com rapidez, o fato se torna notícia, o 96 Modernidade: história e memória – Yonne de Souza Grossi novo, a ânsia pelo novo direciona as vidas, sendo o efêmero uma sensação constante. O passado cede lugar ao eterno presente, ameaçando, por vezes, a perda da identidade. Face o contemporâneo rápido de cunho desintegrador, tentamos segurar vestígios e sinais. O termo aceleração da história foi criado por Nora para clarificar esse fenômeno inusitado. Eis porque desejamos renovar algumas lembranças. Penetrar em alguns reinos territorializados: ora malditos, ora ameaçadores. Estariam situados no campo de hybris, a desmedida? Sua qualificação seria capaz de despertar sujeitos de reflexão? Tocaremos três reinos que recortam uma visita a lugares antigos, habitados pela razão e pela paixão. Outros se definem como princípio de realidade. Seu campo, dissemos, circunscreve as três últimas décadas deste século. Seu poder prepondera territórios de rupturas e de permanências, limites que, não raro, expõem fraturas. Intervalos que alicerçam possibilidades. Seu itinerário descobre terras que dão a impressão de nivelamento e de profundidade. Há uma presença de história. “Somos, ainda hoje, uns desterrados em nossa terra.” Esta frase luminosa, que abre o clássico Raízes do Brasil, do professor Sérgio Buarque de Holanda, condensa a substância de sua geração. Simboliza o marco da consciência intelectual brasileira, representa uma figura histórica, quase mítica: a intelligentsia nacional. De origem russa, no seu sentido original, a palavra intelligentsia definia “um grupo de pessoas de cultura unidas por idéias críticas ao sistema, opostas à especialização acadêmica, e marcadas por uma forte conotação ética”.7 Esses seriam intelectuais ligados à cultura pública: escritores de fronteira, ensaístas talentosos, críticos, polemistas. Não se submetem à universidade e sim à esfera pública. Sua autonomia livra-os de uma 97 Coleção Convite ao pensar submissão a disciplinas especializadas. Entre outros, temos Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Josué de Castro, Caio Prado Júnior, Celso Furtado. O peso do academicismo só se fará sentir na geração nascida após a Segunda Guerra. É que “a sociedade dos cafés propiciou o aforismo e o ensaio; o campus da escola superior produziu a monografia e a conferência – e a aplicação de subvenção”. Também, os intelectuais mais jovens não necessitam ou desejam um público amplo; eles são exclusivamente professores: os campi são seus lares, os colegas, sua audiência; as monografias e os jornais especializados, seu meio de comunicação. O que representa, para Emir Sader, “um extremado capitalismo acadêmico”. Os trabalhos acadêmicos representam situações vivenciadas nas universidades e não atendem a necessidades públicas e sim a exigências institucionais. Diagramas, tabelas, registros computadorizados transformam a sociedade em um canteiro de obras. A hiperespecialização deixa de lado questões essenciais. Termos como justiça, direito, sociedade, nação, tirania, são substituídos por jogo, atitude, comportamento, subjetividade. Assim, “a derrota dos anos sessenta só foi completa quando se consolidou no campo das idéias e da teoria”. Dessa forma, as escolhas políticas radicais, ainda que configurem um campo eletivo dos intelectuais, acadêmicos, deixam claro que sua produção científica não só é inacessível extramuros, como não tocam em temas de interesse da esfera pública. Os anos de regime político-militar contribuíram, não raro, para que intelectuais escondessem e se encolhessem nas universidades. Mas, não se pode atribuir a perda da intelligentsia brasileira apenas aos ditames do autoritarismo, com sua mecânica repressiva e de censura. O crescimento das cidades, 98 Modernidade: história e memória – Yonne de Souza Grossi a expansão da universidade e conseqüente especialização são outros momentos do processo. Entretanto, os anos de tirania contribuíram para urdir e tramar esse reino de enclausuramento da intelligentsia brasileira. O que fazer? Como pensar, hoje, o itinerário de uma geração que se aparta de suas sucessoras? Parte daquela geração dos anos sessenta abriga um projeto revolucionário, cujo desprendimento e disponibilidade alicerçavam jovens em ideais humanistas. A descrença no capitalismo como capaz de resolver problemas tecidos pela desigualdade social e injustiças induzia à luta. Também, a cena política abria espaço para um novo personagem: os trabalhadores do campo. Em 1962, a cidade de Belo Horizonte foi palco de realização do primeiro congresso de favelados, para se discutir a questão da propriedade urbana; congresso este partilhado com os trabalhadores rurais, cuja bandeira ecoava dizeres emblemáticos: reforma agrária, na lei ou na marra.8 A ausência de um imaginário político que acionasse o vetor de opções, impulsionava a reinvenção de caminhos utópicos: a certeza de que os anos sessenta aconteceram para tudo mudar. Edgar Morin foi testemunha do maio de 1968 francês; no Brasil, assistindo às nossas passeatas, declarou ser um “êxtase da história”. Raymond Aron admitiu que a França mudara, mas se pasmou com a “demência coletiva”. Na Alemanha, Jurgens Habermas considerou os rebeldes em 1968 uns “fascistas de esquerda”. Hoje, reconhece que mudanças culturais, da ecologia ao individualismo, têm uma das matrizes naquele ano.9 O mundo parecia ter girado a mítica roda da fortuna. Um apelo anunciava que a inserção naquele tempo histórico era quase inevitável. A hora era de escolha, não de contingência. 99 Coleção Convite ao pensar As gerações que vieram depois habitaram um reino que se foi estreitando: sem liames com o passado, as energias utópicas se perdendo. Reino maldito que hospeda muros caídos, regimes em ruínas. Pode-se constatar que nem mesmo os movimentos sociais são tocados pela paixão libertária, forçando passagens perigosas, explorando terras desconhecidas. Como marco simbólico, o ano de 1989, com a queda do muro de Berlim – o fim e o início de uma era. Mais uma vez, utopia e política agenciam o drama da aventura humana. Segundo Abensour, hoje trabalhamos a história sem descortino do futuro. Sem criar cenários de emancipação humana. Todavia, a utopia – enquanto o não-lugar, algo além de nós – pode caminhar junto ao político, espaço livre da palavra e da ação. Quem sabe, seria possível pensar a transformação histórica, que prescinde de uma visão social de conjunto?10 Como fazer? Outra dimensão a se considerar expressa-se como um reino que, de certa forma, devasta idéias libertárias: o individualismo exacerbado. Há uma hiperprivatização do sujeito. Este se apresenta autônomo, racional em suas escolhas, mas apático em relação a questões de interesse público. Em contrapartida, as contradições de uma sociedade que se tornou complexa o coloca em confronto com o nivelamento das massas. Tal dilema o transforma num ser cindido, vazio, indiferente, às vezes.11 No entanto, para Gilles Lipovetsky, o individualismo deita suas raízes nos séculos XVII e XVIII. Segue a esteira de Tocqueville que o estuda na América do Norte, e o seu alastrar-se pela Europa. O debate político o coloca como um dos momentos constituintes da democracia. Toda a lógica da vida econômica, política, moral etc. baseia-se no indivíduo. 100 Modernidade: história e memória – Yonne de Souza Grossi Entretanto, as manifestações do individualismo atual desprendem-se de suas fontes primeiras, ordenadoras e disciplinares de comportamentos; agora se tornou permissível, agenciando desejos sem o constrangimento das escolhas. Palavras como austeridade, coletividade, costumes são substituídas por liberdade, subjetividade, realização pessoal e profissional. O indivíduo torna-se um objeto apropriado pelo desejo. Indivíduo narcísico. Seu interesse é pelo agora. As utopias que ordenavam as ações políticas, dando sentido à vida, perdem sua razão. A natureza e o grau de importância das opções são revertidos. A identidade não se configura no coletivo das grandes associações. Buscam-se pequenas organizações de interesses especializados: de alcoólicos, de divorciados, consumidores de determinados produtos e de determinados jogos etc. Como inferiu Tocqueville, no século XIX, os laços de solidariedade tendem ao enfraquecimento. A flexibilidade dá a tônica, no dizer de Lipovetsky, o que, no limite, poderá criar o vazio. Para Tocqueville o resultado seria a apatia e a atomização do social. Lembro Saramago em seu In Nomine Dei: “Entre o homem, com a sua razão, e os animais com o seu instinto, quem, afinal, estará mais bem dotado para o governo da vida?” NOTAS 1 DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.21. 2 Hans Magnus Euzensberger em entrevista à Folha de S. Paulo quando do lançamento de seu livro O curto verão da anarquia – Buenaventura Durruti e a guerra civil espanhola. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 3 RICOEUR, Paul. Da interpretação. Ensaio sobre Freud. São Paulo: Imago, 1977. C.1 e 2. BOSI, Alfredo. Céu, inferno. São Paulo: Ática, 1988. p.274-287. 101 Coleção Convite ao pensar 4 PAIVA, Clotilde A., ARNAUT, Luiz D. H. “Fontes para o estudo de Minas oitocentista: listas nominativas”. Anais/V Seminário sobre a Economia Mineira. Belo Horizonte: UFMG/CEDEPLAR, 1990. p.85-106. (Ver, sobretudo, a 1a parte). 5 Raphael Samuel. “Teatros de Memória”. Projeto História. São Paulo, (14), fev. 1997, pp. 41-42. 6 Márcia Mansor D’Aléssio. “Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora”. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 13, no 25/ 26, set. 92/ago. 93, pp. 97-98. 7 A discussão que se segue encontra-se no artigo de Emir Sader. “Nós que amávamos tanto O capital”. Praga. São Paulo: Boitempo Editorial, n.1, set./dez. de 1996, p. 62-64. 8 REFORMA Agrária, na Lei ou na Marra. Estado de Minas. Belo Horizonte, 1962. (Mimeogr.) 9 VENTURA, Zuenir. 1968. O ano que não terminou. 17.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p.13. 10 ABENSOUR, Miguel. O novo espírito utópico. Campinas: Papirus, 1990. 11 Nesta discussão, muito nos estimulou a exemplar dissertação de mestrado de Silvana Seabra de Oliveira, Para uma releitura dos anos 70: a cultura individualista. Belo Horizonte: Departamento de Sociologia, UFMG, 1994. p.26 e seguintes. 102 FRANKENSTEIN, DE MARY SHELLEY Tomás de Aquino Silveira Há alguns meses, a professora Sílvia Contaldo de Lara telefonou-me solicitando a mim, um professor de Física, que falasse sobre Frankenstein, o livro de Mary Shelley, e suas implicações para a ciência, a filosofia, e a sociedade. Achei uma curiosa coincidência, pois conheci esse livro há mais de vinte anos, e sempre nutri por ele uma genuína admiração, fatos esses que jamais mencionei para a professora Sílvia, ou para qualquer outro colega da PUC-Minas. De fato, conheci o livro por meio de uma edição da Ediouro,1 que era o décimo volume de uma coleção chamada “Angústia”, que iniciava exatamente com o Drácula, de Bram Stoker. Desde então, a história esteve presente em mim, e o mínimo que se pode dizer é que ela é extremamente perturbadora, e penso que vocês concordarão comigo, à medida que eu apresentar o romance e o que penso dele. É interessante anotar que, para preparar este texto, retomei o velho volume que pertence a meu irmão, mas logo depois descobri que a Folha de S. Paulo tinha recentemente reeditado o livro, em conjunto com a Ediouro2. Após adquirir o livro, qual não foi minha surpresa ao perceber que a velha edição era incompleta, havendo omissão do correspondente a dez páginas da edição mais recente. Além do mais, esta é uma edição mais bem cuida103 Coleção Convite ao pensar da, com comentários e uma biografia da autora. Então, com a oportunidade deste trabalho, redescobri a obra e, pela primeira vez, pude conhecê-la por inteiro! O tema “Frankenstein” surgiu no romance acima referido, muito mencionado, mas pouco lido, da escritora Mary Shelley, e acabou seguindo seus próprios caminhos. Hoje ele tem, sem sombra de dúvida, uma maciça presença entre nós. Por ocasião do centenário do cinema, a Folha de S. Paulo publicou uma pesquisa3 onde se listavam as personagens mais filmadas pelo cinema, em número de filmes, excluídas as personagens religiosas e os políticos contemporâneos. Frankenstein alcançou o segundo lugar, com 160 filmes, só perdendo para Sherlock Holmes, com 197 filmes. Em terceiro lugar vinha Drácula, com 109 filmes, seguido de Tarzan (94 filmes), Cinderela (69 filmes), e outros. Recentemente o Discovery Channel apresentou um documentário em que ele comparava Frankenstein ao progresso científico da humanidade. Na enciclopédia virtual Cinemania 99, aparece o registro de nada menos que 3l filmes com seus títulos contendo o nome “Frankenstein”. Já em 1910 Thomas Edison produziu o primeiro deles. O mais célebre é, no nosso entendimento, Frankenstein, de 1931, dirigido por James Whale, em que despontou para a fama o ator Boris Karloff, intérprete da criatura monstruosa produzida pelo cientista Frankenstein, com uma maquiagem fantástica, e que gravou em nossas mentes a primeira (e mais marcante) imagem concreta da criatura, com remendos e parafusos.4 Esse filme baseou-se em uma versão resumida do romance original feita para o teatro, e distanciou-se muito da forma inicial. E foi ele um marco na carreira do diretor, que revisitou a personagem monstruosa em “A noiva de Frankenstein” (1935), e em “O filho de 104 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira Frankenstein” (1939), este já sem Boris Karloff. Como curiosidade, lembramos que James Whale é ele mesmo personagem de um notável filme recentemente exibido em Belo Horizonte, Gods and monsters, que trata de seus últimos anos de vida. Uma versão mais fiel (mas não totalmente) ao romance foi a experiência de Kenneth Branagh com Mary Shelley’s Frankenstein (1994), filme que acabou merecendo muitas críticas pelo fracasso em transmitir a poesia que emana da obra original, dela guardando apenas o caráter de história de horror. Nele, a criatura monstruosa é encarnada por Robert de Niro, e o papel do jovem cientista é feito pelo próprio Kenneth Branagh. A televisão americana exibiu no início da década de setenta uma versão ainda mais fiel, e muito elogiada, com quatro horas de duração: Frankenstein: the true story. Por outro lado, a expressão “frankenstein” é freqüentemente empregada como sinônimo de: monstruosidade; entidade formada de partes que não combinam; criatura que se volta contra seu criador. Diante desses breves exemplos, perguntamonos: como esse tema adentrou a sociedade? Como tudo começou? Para isso, necessitamos conhecer, ainda que brevemente, a obra original. MAR Y SHELLEY E ARY SEU “FRANKENSTEIN” Mary Shelley Mary Woolstonecraft Shelley (1797-1851), inglesa, nascida Mary Woolstonecraft Godwin, era filha de William Godwin e de Mary Woolstonecraft. O pai, além de poeta, foi filósofo influente em seu tempo, destacando-se como teórico do anarquismo. A mãe é considerada por muitos como a primeira feminista, tendo falecido poucos dias após o nascimento de Mary. Esta teve uma vida movimentada, 105 Coleção Convite ao pensar tendo crescido em um ambiente de intelectuais, especialmente aqueles ligados ao Romantismo. Para se ter uma idéia, ela uniu-se ao poeta Percy Bysshe Shelley em 1814, quando este era casado, e em 1816 casou-se com ele – daí seu sobrenome – três semanas após o suicídio de sua esposa. Uma irmã de Mary suicida-se mais ou menos na mesma época, sendo comum explicar-se este fato por estar tal irmã apaixonada pelo poeta, mas ter sido por ele preterida em favor da irmã mais nova. Mary teve quatro filhos com Shelley, dos quais só um, Percy Florence, sobreviveu à infância. O casamento durou seis anos, pois em 1822 o poeta morreu no naufrágio de seu barco, provocado ou por uma tempestade, ou por um ataque de piratas (não se sabe bem o que realmente ocorreu). Mary escreveu outros livros, como o romance de época Valperga (1823), The last man (1826), e outros; mas o que lhe garantiu a celebridade foi aquele cujo tema trataremos a seguir. A obra: Frankenstein or the modern prometheus O romance começou a aparecer no verão de 1816, na Suíça, conforme relato da própria autora numa edição que se fez do romance, em 1831. O casal, na ocasião, era vizinho do poeta Lord Byron (1788-1824). Por se tratar de um verão bastante chuvoso, habitualmente reuniam-se no chalé dos Shelley quatro pessoas: o casal, Lord Byron, e o amigo Polidori. Por sinal, tais reuniões são, elas mesmas, tema de um filme (The haunted summer), que até onde sei não foi exibido em nosso país. Como passatempo, Byron propõe que cada um do grupo escreva uma história fantasmagórica. Numa noite insone, Mary tem a visão da cena central da 106 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira história: um jovem cientista apavorado diante da criatura grotesca a que acaba de dar vida. A partir disso ela escreve um conto de poucas páginas. Mas Shelley fica impressionado com a história, e incentiva Mary a criar um romance a partir do conto primordial, e o resultado é a publicação da primeira edição da obra em 1818, com uma trama complexa e repleta de lances dramáticos. Em pouco tempo o livro se transforma em um sucesso. Em 1831 ela publica uma nova edição, com algumas alterações e um prefácio com o relato acima referido. Por se tratar de um livro muito mencionado mas pouco lido, penso que vale a pena fazer uma sinopse da história. O livro gira em torno de Victor Frankenstein, jovem suíço inicialmente interessado no trabalho de Paracelso, depois estudioso dos fenômenos da eletricidade e do galvanismo, e que se torna estudante de filosofia natural (o que corresponderia às ciências físicas hoje) em Ingolstadt, cidade alemã da Baviera, que fica entre Munique e Nuremberg. Influenciado por um professor de Química, Monsieur Waldman, ele acaba desenvolvendo o sonho de criar um ser ideal, dando vida à matéria morta, e constrói um ser gigantesco, segundo ele, para facilitar o trabalho com os órgãos, fazendo-os em escala mais ampla. E acaba por lhe instilar vida, numa passagem que merece ser reproduzida: À luz bruxuleante da vela, quase extinta, vi abrirem-se os olhos amarelos e baços da criatura. Respirou. Sim, respirou com esforço, e um movimento convulso agitou-lhe os ombros. Quem poderia descrever o quadro de minhas emoções diante de tal catástrofe? [...] Mais mutáveis que os acidentes da vida são os da própria natureza humana. Eu trabalhara duramente durante dois anos para infundir vida a um corpo inanimado. Para tanto sacrificara o repouso e expusera a saúde. Eis que, 107 Coleção Convite ao pensar terminada minha escultura viva, esvaía-se a beleza que eu sonhara, e eu tinha diante dos olhos um ser que me enchia de terror e repulsa.5 Horrorizado com sua obra, abandona-a. E aí vai um pouco de interpretação: aquele que até então estava imbuído do ímpeto e da natureza de criador, descobre-se mera criatura e fica aterrorizado com o que fizera. E entra em violenta crise depressiva. Notemos que, na citação feita, há uma descrição do estado interno do cientista. De fato, uma grande parte do romance consiste em descrições de estados interiores, ora do criador, ora da criatura. E são descrições fortes e tocantes, o que mais uma vez nos impressiona, tendo em vista a juventude da autora. Tempos depois, William, o irmão mais novo de Victor, morre, e a suspeita recai sobre uma irmã “de criação”, Justine. Ao voltar para sua terra para ver os familiares, Victor passa pelo local do crime, e vê nas proximidades a criatura, que foge. (Note-se que o ser não tem nome, sendo sempre referido como “a criatura”, ou “o monstro”). Victor passa a ter certeza que a criatura é o criminoso. Mas silencia, e Justine, que fora encontrada com o medalhão da mãe (que estava com o menino) é executada. O jovem cientista passa por nova crise. Um dia vai a Chamonix, buscando repouso, e lá é abordado pela criatura, que consegue, após grandes esforços, fazer com que Victor ouça sua história. E aí passamos por quatro ou cinco capítulos do livro em que assistimos a uma descrição sofrida e angustiada de abandono, miséria, escárnio e repulsa do gênero humano para com a criatura, devido ao seu tamanho e sua aparência monstruosa. A certa altura, o ser descobre um refúgio contíguo a uma casa campestre de pessoas pobres. Como pode ver 108 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira e ouvir parte do que se passa na casa, ingressa num lento aprendizado da fala, enquanto faz o papel de “anjo da guarda” (ignorado) da família que ali habita: um velho e um casal de filhos. Várias circunstâncias favoráveis fazem com que seu aprendizado secreto inclua a leitura. Em suas andanças pelos bosques, o ser encontra exemplares de O paraíso perdido, do poeta inglês John Milton (gigantesco poema em que se descreve essencialmente a queda de Satã e o confronto de Adão com seu Criador, e onde Adão é tratado como um ser de grande nobreza, e sob certos aspectos até superior ao Criador), Vidas paralelas, de Plutarco, e Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. Assim passa a conhecer um pouco do gênero humano. Ele descobre nas suas roupas o diário de Victor, e de sua leitura percebe sua origem. Tenta aproximar-se da família, iniciando um diálogo com o ancião, que é cego, mas o filho o expulsa. Até então, a criatura se diz sempre tomada de bons sentimentos, desejando com intensidade e ardor apenas o convívio e o afeto do gênero humano. Chegando ao fim o ilusório idílio em que vivera em seu refúgio, ela é tomada por revolta, e decide vingar-se de seu criador. Confessa ser o matador de William, e o causador da condenação de Justine. Em mais uma passagem tocante, ele ataca Frankenstein por fazer dele um ser sem direito ao mais mínimo afeto, e pede ao seu criador que lhe faça uma companheira, para que ele viva em isolamento com ela, nos confins do Ártico. Após muita resistência, Victor aceita. Ele viaja com seu amigo Clerval, e começa sua obra numa das ilhas Orkneys, no Mar do Norte. Um dia, vê a criatura espiando-o pela janela. Diante dos olhos horrorizados da criatura, Victor destrói o que seria sua companheira. Em áspero diálogo, o ser promete estar presente à noite de núpcias de Victor. 109 Coleção Convite ao pensar A seguir, Clerval aparece morto, e Victor fica preso como suspeito, mas é libertado, passando a preparar seu casamento com Elizabeth, uma companheira de infância. E ela é morta na noite de núpcias pela criatura. Desesperado, e percebendo que não há como desligar-se de sua criatura, Victor Frankenstein persegue o monstro até o Ártico, quando é encontrado pelo capitão Walton, que tenta fazer uma travessia inédita dos mares do Pólo. A ele Victor narra sua história, e é por ele que tomamos conhecimento do que o romance conta. Exausto, depois do seu relato Victor Frankenstein morre. E a criatura aparece para chorar sua morte. Interpelado pelo capitão Walton, dá-se entre os dois um diálogo de grande força dramática, pelo qual fica claro que, o que a criatura mais desejava era ser acolhido pelo seu criador, e que não havia qualquer prazer na morte dele. Ao final, o monstro abandona o navio em um barco improvisado num bloco de gelo, e promete lançar fogo sobre si, pondo um fim a uma existência que fora marcada pela dor e pelo abandono. Assim termina o romance: mortos, criador e criatura. Possíveis fontes de inspiração Têm sido pesquisadas possíveis fontes para Mary Shelley escrever sua história de horror. Conta-se que ela teria visitado uma cidade alemã, Gersheim, ao norte de um castelo que fora dos Frankensteins (família que realmente existiu), e lá ouviu a história de Conrad Dipple, que violava túmulos em busca do segredo da vida eterna. A história da criatura também nos traz à memória a lenda judaica do Golem. Este ser teria sido a criação de um sábio rabino de Praga, que o moldara a partir do barro, e que lhe dava vida introduzindo 110 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira em sua boca um papel com palavras mágicas, o Shem. Este ser tornava-se um serviçal exemplar, que trabalhava sem nada exigir em troca, nem mesmo alimento. Há versões que dizem que ele inclusive defendia os judeus que eram vítimas de perseguições. Mas seu criador incorre em uma falha: esquece de tirar o Shem de sua boca num sábado, como habitualmente fazia, ocasião em que ele ficava sem vida. O esquecimento faz com que o Golem inicie uma destruição tresloucada de tudo o que se encontre a seu alcance, parando apenas quando o rabino, alertado quando iniciava suas orações na sinagoga, consegue retirar o tal papel e deixa-o novamente sem vida. Diz-se que ele jamais o reviveu, e que seu corpo estaria enterrado sob a sinagoga de Praga. Se não são fontes, estas histórias são pelo menos precursoras da idéia de Mary Shelley, que soube tratá-la se não com maestria, certamente com grande vitalidade e força dramática. Prometeu A menção a Prometeu no título do romance faz com que nos voltemos para esse mito para entender sua ligação com ele. O que se segue neste tópico está baseado especialmente nos trabalhos de Junito Brandão6 e Raymond Trousson.7 Prometeu, na mitologia grega, é um dos filhos de Jápeto (um dos Titãs) e Clímene (filha de Oceano), sendo ainda irmão de Epimeteu, Atlas e Menécio. Prometeu foi aliado de Zeus na guerra em que este derrota os Titãs e se torna o Senhor dos Deuses. Algumas versões da lenda dizem que Prometeu teria feito os homens a partir do limo da terra, embora isso não seja confirmado na Teogonia de Hesíodo. O que é sempre afirmado é que Prometeu 111 Coleção Convite ao pensar era um benfeitor da espécie humana. E Zeus estendeu aos homens a desconfiança que nutria por ele, por ser ele filho de um dos Titãs, apesar de ter lutado contra eles e ao lado de Zeus. Foi combinado um encontro dos deuses com os homens para resolver essa querela e dessa ocasião Prometeu se aproveitou para induzir Zeus a um engano. Propõe a separação de um boi em duas partes, e ordena aos preparadores do sacrifício que cubram os ossos do boi com sua banha, e as carnes com seu couro. Zeus escolhe a primeira parte, e ao se descobrir enganado, priva o homem do fogo, ou simbolicamente, da inteligência. Inconformado, Prometeu rouba uma centelha do fogo celeste, privilégio de Zeus, e a traz à Terra, “reanimando” os homens. Nas palavras de Hesíodo, ele “restitui aos homens a esperança cega”, dando a entender, em nossa interpretação, que com a mente os homens passam a ter a capacidade de visualização e de imaginação. Isso leva Zeus a impor uma dupla punição. Aos homens, envia Pandora, portadora de uma caixa que, quando aberta, deixa escapar todas as desgraças e calamidades, somente ficando ali presa a esperança. E Prometeu é acorrentado a uma coluna, ou a um monte, aonde todos os dias uma águia vem lhe devorar o fígado, que é regenerado à noite apenas para servir novamente de repasto à águia na jornada seguinte. O mito de Prometeu encerra, entre outros significados, a tendência à revolta e a utilização do intelecto com fins de satisfação pessoal. Bachelard enxerga nele a representação da vontade humana de intelectualidade, de saber tanto ou mais que nossos pais, de ultrapassar, de ir além, de fazer o que ainda não foi feito. Mas há no mito uma ambigüidade: favorecendo os homens, ao mesmo tempo 112 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira ele estabelece uma desconfiança, um distanciamento entre eles e os céus (os deuses); concede aos homens um dom, mas nesse mesmo movimento retira deles a amizade com o plano divino. Há nele um misto de benevolência e de negatividade: é um ser em que estão concentradas as capacidades de criação e destruição, o que por sinal faz dele uma figura bem adaptada aos poetas românticos, contemporâneos, e vários deles amigos de Mary Shelley, inclusive o seu marido. Esta interpretação do mito de Prometeu, embora uma entre muitas, parece-me particularmente cativante, e é bastante adequada para se compreender o jovem Victor Frankenstein como o Prometeu moderno: ele queria ir muito além da condição humana de mera criatura, sendo, até certo ponto, bem sucedido. Mas o destruidor também habitava nele. ALGUMAS EXPLOR AÇÕES EXPLORAÇÕES Explorações periféricas Assim denominei algumas interpretações curiosas da obra de Mary Shelley, e especialmente do criador e da criatura que polarizam o romance. Não penso que elas atinjam a essência da obra, mas valem uma referência. A Folha de S. Paulo de 20 de janeiro de l995 menciona que, para o psicólogo polonês Kazimerz Popiszyul, a criatura da obra de Mary Shelley seria o precursor do adolescente rebelde. Segundo ele, a tensão entre o monstro e seu criador é exemplo perfeito dos conflitos na relação familiar que desenvolvem e intensificam as piores características dos filhos: a crueldade, a insensibilidade e o descontrole de emoções. Nela aparece somente um dos pais, o criador do monstro, situação comum nas famílias modernas, com pais separados, amor insuficiente e 113 Coleção Convite ao pensar complexo de rejeição. Razão pela qual os filhos se transformam em Frankensteins, o monstro que condena o seu criador. 8 Note-se aqui a confusão que norteará a difusão do mito Frankenstein: a do criador com a criatura, dando a ela o nome dele, que ele próprio lhe negara. De qualquer forma, veremos mais à frente que há alguma sabedoria nesta confusão. Anotese ainda que, conforme me lembrou o prof. Lev Vertchenko, a própria Mary Shelley foi criada apenas pelo pai, já que sua mãe falecera pouco após o parto; assim, a existência da criatura tem um pouco da marca da própria vida da autora. Aparece ainda no romance, de forma bastante clara, a idéia romântica, já encontrada em Rousseau, do Homem natural, ou Homem bom, corrompido pela sociedade que o cerca. Eu particularmente vejo ali também a criatura como símbolo dos excluídos, um mártir da intolerância e do preconceito, em razão da rejeição ao diferente e ao anômalo. É difícil não ligá-lo aos nossos menores de rua, sempre a nos causar repulsa, e que não são mais do que o fruto de uma sociedade ensandecida e imprevidente. É muito freqüente ainda considerar a obra de Victor Frankenstein como símbolo dos descaminhos da ciência, e ele próprio como o protótipo do cientista irresponsável, que não prevê as conseqüências do que faz. E há quem compare a criatura a um Adão sem Eva, com uma carência afetiva impossível de ser saciada sem a repetição da monstruosidade que o gerou. Como se vê, são numerosas as interpretações que o romance de Mary Shelley sugere, fato que, por si só, prova que não se trata de uma obra menor. Mas, gostaria de aprofundar outra interpretação, em parte sugerida por Harold Bloom,9 e em parte fruto de reflexões pessoais. 114 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira A criatura como o duplo de Victor Frankenstein Mary Shelley estava mergulhada no ambiente do Romantismo, e por isso dele deve-se falar um pouco. Todos aprendemos na escola que o movimento romântico é marcado pelo individualismo, entendido como a busca de uma verdade relativa, que é a verdade do eu em oposição à verdade da sociedade. A filosofia do Romantismo dirige-se para o individualismo e para o culto da autoconsciência, daí se entendendo a inspiração encontrada pelos românticos em Prometeu (símbolo da rebeldia, e doador da consciência). O herói romântico é aquele que se sente único e superior pela sua excepcionalidade (veja-se, por exemplo, o desejo de glória de Frankenstein). Essa autoconsciência resvala para um excesso de consciência, que faz com que o eu não seja capaz de sustentar a si mesmo. Daí a hipersensibilidade e as tendências patológicas, comuns nos heróis românticos (e em Victor Frankenstein). Sendo uma reação ao Classicismo, o Romantismo é irracionalista, sendo portanto marcado por contradições, sendo um exemplo delas a que se verifica entre o culto da glória pessoal e o culto da apatia. Vários estudos mostram que no plano da individualidade, no plano da subjetividade, essa contradição ou dissociação é marcada pelo tema do duplo, ou seja, da divisão do eu, freqüentemente em partes que se opõem, tema muito comum no Romantismo. Na visão da psicologia junguiana, o duplo seria “como uma parte não apreendida pela imagem de si que tem o eu, ou por ela excluída: daí seu caráter de proximidade e de antagonismo. Trata-se das duas faces complementares do mesmo ser”.10 Um exemplo, dentre muitos, é o do romance Opiniões do gato Murr, de Hoffmann, (Kater 115 Coleção Convite ao pensar Murr, no original, de 1819), onde à genialidade desvairada do músico Kreisler contrapõe-se o bom senso crítico de seu gato. Daí, chegamos a uma chave, a meu ver bastante adequada, sugerida por Harold Bloom, para ir mais a fundo no significado da obra de Shelley: a criatura é o duplo de Frankenstein, a metade antagônica, “um simulacro de si mesmo” (conforme uma sugestão da profª. Marie-Anne Kremer), o outro eu, ou quem sabe, a “sombra”, no contexto da psicologia analítica. É até sintomático que, popularmente, tenha havido a confusão do nome do criador com o da criatura. Vox populi, vox dei. Lembremos que a “sombra” contém os aspectos ocultos, reprimidos e desfavoráveis da personalidade, mas possui também os instintos normais e os impulsos criadores. Nessa interpretação, Frankenstein tentou transcender-se naquela criatura, criando algo melhor, e que fosse o seu reflexo. Mas, encararmos o nosso próprio reflexo é algo difícil e perigoso, embora mais cedo ou mais tarde necessário. O jovem Victor não conseguiu ver a si mesmo refletido nos “olhos baços e amarelados” do monstro. Para reforçar esta idéia, notemos que há um vínculo indissolúvel entre os dois: durante a maior parte do romance a criatura tenta se aproximar do criador, e mais tarde, após a morte da noiva de Frankenstein, é o criador que passa a perseguir a criatura. Numa reflexão nossa, procurando nos colocar no ponto de vista da criatura, vemos que ele, como ser humano – se for legítimo usarmos para ele essa expressão – é feito para o encontro. Para o homem, o corpo é o limite (no sentido positivo) através do qual, ou pelo qual, o sujeito encontra o outro, dialoga, busca, sente o outro. Para o monstro, o corpo é o próprio obstáculo, é a barreira (limite no sentido negativo) que o impede de encontrar o outro. 116 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira Aprofundando a idéia do monstro como concretização da “sombra” do criador, notamos que ele – e este é, talvez, o aspecto mais perturbador do romance – tem mais dignidade e grandeza que seu criador (aliás, como o Adão de O paraíso perdido). Ele é dotado de uma vontade intrépida, inabalável, primeiramente dirigida para a busca de afeto, de convívio; quando esta se afigura acima de suas possibilidades, sua vontade se dirige a uma vingança implacável contra seu criador; e finalmente, ela aponta para a autodestruição, mais uma vez sem conhecer fraqueza. É como um impulso da natureza, irresistível, inevitável, impossível de ignorar; é, sem dúvida, a energia da “sombra”, que pode conter aspectos negativos, mas é onde reside a nossa criatividade. Como Frankenstein não consegue integrar sua “sombra”, torna-se um homem fraco, indeciso, sujeito a freqüentes crises de depressão, e imerso em irritantes exortações de autopiedade. O monstro na verdade busca a integração com o criador. Impedido, não consegue dele se desvincular. Tenta, com o pedido da criação da fêmea. Mas não há remédio. No dizer de Bloom, ele mesmo já é uma emanação, um duplo de seu criador, que o renega. Há uma quebra do ciclo, a fragmentação, a incompletude. Na linguagem da psicologia analítica, o processo de individuação de Victor Frankenstein é estancado. O homem está incompleto. Daí se segue o inevitável: a autodestruição – os dois morrem infelizes, desamparados, condenados. O impulso prometéico (produzir a obra que nos transporte para além do que somos) é extremamente positivo. É nele que encontramos a raiz das maravilhas da sociedade ocidental. Mas não se pode depositar apenas nele a realização do ser humano. 117 Coleção Convite ao pensar Não é na obra que você se realiza. Antes de se realizar na obra, o homem se realiza nessa viagem interior, que Carlos Drummond chamava de “Viagem de Si a Si-Mesmo”, a mais perigosa, a mais árdua, a mais longa, a mais difícil, mas a mais necessária. Frankenstein colocou na sua obra a sua redenção, e esqueceu-se de, antes, redimir-se a si mesmo. Como nos assevera Harold Bloom, incapaz de amar, ele condenou a sua obra e a si mesmo. Tentou romper a barreira que separava o humano do divino, mas acabou criando uma morte em vida. Não conseguiu realizar o mergulho no autoconhecimento, encarar os olhos do Monstro Interior, e recuperar dali a mais profunda (e completa) humanidade. Esta é a impressão que Mary Shelley, aos vinte e um anos de idade, nos transmitiu, com invulgar sabedoria: nós temos Prometeu dentro de nós, essa pulsão de buscar a glória pessoal. Mas se isso não for acompanhado de uma vida interior, de um retorno a si mesmo, de um autoconhecimento, de um contato com sua “sombra”, e de uma integração consciente e construtiva desses elementos da nossa personalidade, tal glória pessoal acaba resultando em algo vazio, que muitas vezes nos leva a descaminhos, e até a uma autodestruição. 118 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira N. E.: Optou-se por manter aqui as perguntas e respostas do debate ocorrido após a exposição do autor, por julgá-las enriquecedoras ao texto. P: Por que Frankenstein não conta para ninguém tudo o que está acontecendo com ele, exceto para o capitão do navio, no final da história, quando ele está morrendo? Por que ele carrega essa luta solitária? R: Ele diz, ao longo do livro, que não revela o que aconteceu por medo de ser tomado como louco. Quando Justine está para ser condenada à morte pelo assassinato do irmão mais novo de Victor, ele por várias vezes sente o impulso de revelar tudo, mas não o faz por essa razão e por temer ser obrigado a revelar o segredo de sua obra, o que abriria possibilidade de que outras pessoas repetissem o feito e criassem monstruosidades ainda mais aterrorizantes do que a que ele engendrara. Isso é o que está manifesto na obra. Mas penso que há algo subjacente aí. Quando ele cria esse ser, ele faz, como dissemos, uma dissociação de si mesmo, e aquele ser passa a encarnar o que, na psicologia analítica, nós chamamos de “sombra”. E embora ela tenha aspectos negativos, é nela que também reside a energia da criação, e os impulsos instintivos. Assim, os aspectos de impulso e de energia do jovem cientista ficam como que concentrados naquela criatura, e Victor torna-se um ser indeciso, claudicante. Lembro-me, por exemplo, do romance A estranha história de Peter Schlemihl (1814), de Chamisso, no qual o personagem central vende sua sombra para o demônio em troca de riqueza e consideração, e a partir daí deixa de ser reconhecido pelas pessoas; ele não consegue tomar decisões, não consegue ter uma atitude definida. Analogamente, Victor Frankenstein 119 Coleção Convite ao pensar fica incompleto ao falhar na integração dessa parte de sua personalidade. P: Prometeu passa por um grande sofrimento. Não haveria uma ligação desse sofrimento de Prometeu com o sofrimento de Frankenstein? R: Certamente, mas há uma diferença importante. No mito, Prometeu acaba sendo libertado. Zeus permite isso não tanto por compaixão, mas para que haja a glorificação de Héracles, seu filho, que é incumbido dessa tarefa, rompendo as correntes de Prometeu e matando a águia. No caso do romance, Frankenstein é submetido a um sofrimento, mas ele não consegue a liberação. Vou lembrar aqui uma passagem do romance. Ele está contando sua história para Walton, o capitão de um navio que estava tentando uma passagem inédita pelas águas (ou gelos) do Ártico, e que fracassa, após seus comandados se amotinarem por temor de perecimento de todos. Então Walton era outro Prometeu, e um Prometeu fracassado. Pouco antes de morrer, Victor se dirige a ele e diz o seguinte: Adeus,Walton! Busque a felicidade num viver tranqüilo e evite ser dominado pela ambição, mesmo que seja essa, aparentemente, construtiva, de distinguir-se no campo da ciência e dos descobrimentos. Mas por que falo isto? Na verdade, se eu me arruinei nessas esperanças, pode ser que outro seja bem-sucedido.11 Ele está quase entendendo que a obra não é o fundamental. Mas a última frase mostra que a ilusão continua. Ele morre ainda acreditando que a glorificação humana está na obra, na realização. Então não há salvação. Qual seria a redenção de Frankenstein? Seria aceitar o outro que, ao fim e ao cabo, era parte de si mesmo. Seria fazer a transição de aceitar a diferença que era ele mesmo, e 120 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira também entender a alteridade dessa criatura, entender o ponto de vista dela. Se ele conseguisse fazer isso ele seria redimido, e redimiria a criatura, o monstro inominado. P: Pode haver uma leitura mítica com relação à questão de ultrapassar os limites. O capitão Walton tem uma ambição muito grande, tentando um empreendimento que ninguém tinha feito. E Frankenstein conta sua história advertindo-o do perigo que é o homem ultrapassar seus limites. Há essa questão em relação ao poder divino. Quando ele constrói essa criatura, ele está desafiando Deus, como Prometeu desafiou Zeus. Walton desafia a Natureza; Frankenstein desafia Deus, e por isso ele cai em total desgraça. E o monstro, também, em certas passagens, sente-se como Prometeu. Há várias referências a correntes. Há várias referências ao mito da queda, da Bíblia. A primeira transgressão teria sido a de Adão e Eva. E aí é posta a questão da ciência: até onde a ciência poderia ir? Penso no caso, por exemplo, da clonagem. R: Sim, não há dúvida de que essa leitura é valiosa. Mas eu gostaria de esclarecer bem a idéia que quero transmitir. Quando digo que o impulso prometéico foi, de certa forma, a perdição de Frankenstein, isto não significa que se devam estabelecer barreiras muito restritivas ao desenvolvimento da ciência, que é uma manifestação desse impulso prometéico. O que aqui se sustenta é que o cientista – afinal, o romance fala de um jovem cientista – muitas vezes se julga como um deus em virtude da grandeza de sua obra. Mas esse criador, esse cientista, no mais das vezes é uma pessoa com as mesmas fraquezas do comum dos homens. O que é necessário, é que antes, ou simultaneamente ao seu trabalho, o criador não se esqueça de pensar como ser humano, de pensar o ser humano, de pensar as conseqüências do que faz, de fazer discussões 121 Coleção Convite ao pensar éticas. A ciência que não se pensa acaba sendo problemática, e não é raro que dela advenham desgraças e perdição ao invés de progresso. P: Esse mergulho no eu não é um beco sem saída? Frankenstein morre no final junto com seu monstro. E ele não consegue revelar isso para ninguém. Ele parece preso. R: O mergulho em si mesmo a que me refiro não é um ensimesmamento. O que ocorre com Frankenstein é que ele fica numa introjeção da qual ele não sai. O que estou defendendo é a necessidade do autoconhecimento, da exploração psicológica do ser humano. Não se trata de uma introjeção doentia. P: Mas quanto mais eu fico em mim mesmo, mais distante fico do outro. Não é assim? R: Eu não penso assim. Conhecer o eu é aproximar-se do outro. Qual é o ser humano mais próximo de você? É você mesmo! A compreensão do outro somente vem para aquele que realmente mergulhou nas suas profundezas e encarou seus demônios. Somente assim a pessoa será capaz de compreender as limitações do outro, de tolerar as diferenças. Aliás, este é o lema de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo.” P: Sim, é o lema de Sócrates. Mas como fazer isso sem negar o outro, sem cair em si mesmo? R: Essa experiência de voltar-se para si mesmo não é egocentrismo; não é o caso da pessoa que só vê a si mesma. A pessoa que se percebe, que consegue identificar seus demônios interiores, que consegue lutar com eles e trazê-los à luz, obtém acesso a energias interiores que antes não eram percebidas, e isso a torna uma pessoa transparente e disponível para o encontro com o outro. O encontro com o outro é sempre superficial se não parte 122 Frankenstein, de Mary Shelley – Tomás de Aquino Silveira de uma interiorização. Eu insisto nesse ponto, tanto em relação ao livro como em relação à sociedade, porque nós somos extremamente voltados para o externo. Nós somos realizadores; somos “Prometeus” em busca de realizações, e só avaliamos as pessoas pelo que elas fazem, e não pelo que elas são. E isso ocorre exatamente pela pouca consideração que temos pelos aspectos internos do homem, pelo Ser. NOTAS 1 SHELLEY, Mary. Frankenstein. Trad. de Éverton Ralph. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. 2 SHELLEY, Mary. Frankenstein ou o moderno Prometeu. Trad. de Éverton Ralph. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1998. (Biblioteca Folha. Clássicos da Literatura Universal; 3). 3 FOLHA DE S. PAULO, 30 nov. 1995. Caderno Especial, p.5. 4 Aliás, é o rosto do monstro encarnado por Boris Karloff que aparece na capa daquela edição por meio da qual tomei contato pela primeira vez com a obra de Mary Shelley. 5 SHELLEY. Frankenstein, p.52-53. 6 BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, v. I. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 166-167. 7 TROUSSON, Raymond. “Prometeu”. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p. 784-793. 8 9 AUGUSTO, Sérgio. “Frankenstein é adolescente rebelde”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 jan. 1995. Caderno 5, p.6. BLOOM, Harold. “Frankenstein, o idiota da moral”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 jan. 1995. Caderno 6, p.11. (Tradução de Arthur Nestrovski). 10 BRAVO, Nicole Fernandez. “Duplo”. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. p.263. 11 SHELLEY. Frankenstein, p.211. 123 Coleção Convite ao pensar 124 SOBRE OS AUTORES Euclides Guimarães Professor do Departamento de Sociologia da PUC Minas. e-mail: [email protected] João Carlos Lino Gomes Professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da PUC Minas. e-mail: [email protected] Léa Souki Professora Titular do Departamento de Sociologia da PUC Minas. e-mail: [email protected] Lídia Avelar Estanislau Professora do Departamento de Sociologia da PUC Minas. Lucília de Almeida Neves Professora Titular do Departamento de História e do Mestrado em Ciências Sociais da PUC Minas. e-mail: [email protected] Tomás de Aquino Silveira Professor do Departamento de Física e Química da PUC Minas. e-mail: [email protected] Yonne de Souza Grossi Professora de Sociologia da PUC Minas. e-mail: [email protected] 125 Coleção Convite ao pensar 126 127 Este livro foi composto em tipologia Palatino11/14 e impresso em papel pólen soft 80g. na FUMARC