entrevistas forjadas: a representação de um “outro

Transcrição

entrevistas forjadas: a representação de um “outro
ENTREVISTAS FORJADAS: A REPRESENTAÇÃO DE UM “OUTRO”
COMO UM “EU”1
FORGED INTERVIEWS:THE REPRESENTATION OF THE “OTHER” AS A “MYSELF”
Emília Mendes*
Resumo
O presente artigo tem por finalidade lançar uma discussão sobre a simulação de ethé e sobre a utilização do
recurso da ficcionalidade no discurso midiático. O corpus trabalhado é composto de uma entrevista ficcional do
escritor Dalton Trevisan feita pelo também escritor Nelson de Oliveira, publicada no caderno Mais! da Folha de São
Paulo em 25 de abril de 2004. O quadro teórico para a análise é composto (i) pela teoria semiolingüística de P.
Charaudeau; (ii) pelo conceito de ethos forjado desenvolvido pela pesquisadora R. Amossy e (iii) pela teoria da
ficcionalidade por nós tratada em vários estudos. Esta pesquisa concluiu que, por meio de representações e de
estereótipos, Nelson de Oliveira forja o ethos de Dalton Trevisan, ou seja, cria um enunciador outro – a partir de
efeitos de real e de ficção – que se faz passar por um “eu” que não pertence à mesma identidade social
representada por Trevisan.
Palavras-chave: Ethos Forjado, Ficcionalidade, Dalton Trevisan, Análise do Discurso.
INTERVIEWS FORGEES: LA REPRESENTATION DE L'AUTRE COMME UN "MOI"
Résumé
Le but de cet article est de proposer une discussion sur la simulation d'ethé et sur l'utilisation du recours à la
ficcionnalité dans le discours médiatique. Le corpus analysé est une interview fictionnelle de l'écrivain Dalton
Trevisan faite par un autre écrivain appelé Nelson de Oliveira parue au journal Folha de São Paulo, le 25 avril
2004. Le cadre théorique utilisé dans notre étude est composé par la théorie semiolinguistique de P. Charaudeau,
par le concept d'ethos forgé développé par R. Amossy et par la théorie de la fictionnalité travaillée dans nos
recherches depuis quelques années. Nous avons conclu qu'à travers les représentations et les stéréotypes, Nelson de
Oliveira forge l'ethos de Dalton Trevisan, autrement dit, à partir des effets de fiction et des effets de réel, il crée un
énonciateur autre qui se fait passer par un moi qui n'appartient point à la même identité sociale représenté par
Trevisan.
Mots-clés: Ethos Forgé, Fictionnalité, Dalton Trevisan, Analyse du Discours.
1 Introdução
O objetivo de nosso trabalho é fazer uma reflexão, de um ponto de vista da análise do discurso e da teoria
da ficcionalidade, sobre o encenar e o incorporar a imagem [ou representação] de uma pessoa e, a partir
disso, construir um discurso. Temos percebido, na mídia atual, certa tendência em se publicarem textos
ficcionais com estrutura e organização genérica muito próximas, para não dizer coincidentes, daquelas dos
textos de estatuto factual publicados em jornais e revistas. Citamos, como exemplo, a recente publicação da
revista Veja intitulada “1808”2, na qual são simuladas situações que poderiam ter acontecido na semana de
chegada da família real portuguesa ao Brasil. Temos uma mistura de fatos históricos realmente
documentados e de mundos possíveis simulados a partir de tais registros históricos. Vale dizer que se trata
de uma série publicada por essa revista denominada “Veja na história”, na qual temos outros eventos
históricos como: Israel – estado independente, II Guerra Mundial e Proclamação da República, dentre
outros.
Uma outra ilustração de caso é o guia resumido da “Molvânia – o país intocado pela odontologia moderna”
encartado na revista Piauí3 nº 13. Somente para melhores esclarecimentos, esse guia da Molvânia faz parte
de uma coleção, ainda inédita no Brasil, de guias ficcionais editados pela Jetlag Travel Guide4. A Piauí, em
conjunto com a editora Companhia das Letras, fez um pequeno volume, quase uma “amostra” adaptada com
16 páginas; já que o livro original em inglês conta com 176 páginas. Esses guias trazem a simulação de
lugares, de opiniões de nativos, dicas de viagens, dados sobre pesos, medidas, moedas, opiniões de turistas,
celebridades ou não, que já passaram pelo local etc. Certamente, jogam com uma visada humorística e
brincam com o gênero “sério” guia turístico, fato esse que não exclui a ficcionalidade como sua via de
construção.
No jornal impresso, verificamos o caso de várias publicações no caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo.
É desse veículo que extraímos o corpus a ser por nós estudado nesta ocasião. O referido jornal publicou
uma série de entrevistas no caderno Mais! cujo título é: “É tudo mentira!”. Trata-se de entrevistas simuladas
de escritores renomados. As entrevistas são feitas/fabricadas por outros escritores e/ou críticos literários.
No caso específico deste artigo, optamos por trabalhar somente a “entrevista fabricada” de Dalton Trevisan,
intitulada “Entrevista com o vampiro”.
Ao observamos esses fenômenos anteriormente mencionados, vemos um deslocamento: a ficcionalidade,
que parecia predominar e ter cadeira cativa nos gêneros literários, dá a impressão de querer ganhar espaço
em outras paragens e migra para gêneros não-literários. Esse fato confirma a tendência apontada por
Maingueneau (2001) de que a mídia estaria fazendo uso dos espaços outrora ocupados pela literatura em
várias áreas de nossa sociedade. Ou seja, a ficcionalidade, que por muitos séculos era um dado do contrato
literário, passa a permear outros gêneros cujo contrato teria uma quase “imposição” de factualidade, como
a maioria dos gêneros jornalísticos, tais como são vistos na atualidade.
À primeira vista, tais produções nos levam a pensar que se trata de uma dimensão lúdica da ficcionalidade,
que tais publicações têm meramente o objetivo do entretenimento. No entanto, é preciso perguntar: por
que esses discursos ganham esse espaço em nossa contemporaneidade? Por que jornais, revistas e alguns
livros (guias, por exemplo), que possuem um contrato de produzir gêneros de estatuto factual, abrem esse
espaço para a simulação de fatos, ou seja, para a ficcionalidade? No caso mais específico do corpus estudado,
como explicar o processo de forjar a identidade do outro – e esse outro entendido aqui num sentido bem
vasto de identidade, cultura, comportamento etc.?
A questão que norteia, de um ponto de vista dos estudos sobre o discurso, nosso estudo é a seguinte:
como se constrói a representação de um “outro” como um “eu” pelo viés da ficcionalidade? Para fazer uma
reflexão sobre essa indagação, pretendemos analisar dois pontos: (a) a ficcionalização da situação de
comunicação e das identidades sociais e discursivas; e (b) a noção de ethos forjado.
Assim sendo, num primeiro momento, falaremos um pouco mais em detalhes sobre nosso objeto de
pesquisa; num segundo momento, traçaremos algumas considerações sobre como compreendemos e
propomos uma teoria da ficcionalidade; em seguida, trataremos das noções de ethos forjado e de
estereótipo, procedendo à aplicação de tais conceitos no caso estudado.
2 “É Tudo Mentira!”
Em 25 de abril de 2004, a Folha de São Paulo publicou uma série de entrevistas no caderno Mais! cujo título
é: “É tudo mentira!”, que vem seguido dos dizeres explicativos: “O Mais! publica entrevistas exclusivas [e
inventadas] com sete autores que [quase] nunca falam”5. Trata-se de entrevistas simuladas dos seguintes
escritores: Thomas Pynchon, Dalton Trevisan, J. D. Salinger, Rubem Fonseca, Herberto Helder, J. M. Coetzee e
Julien Gracq. O Caderno traz também “notas inéditas [e fictícias] de Mário de Andrade”. Vemos que o uso
de colchetes estabelece um jogo, pois o que seria o discurso factual e, portanto, usual no jornal, estaria fora
deles e as restrições contratuais para se ler o texto como possuidor de estatuto ficcional é que se
encontram isoladas. Esse fato provoca uma dupla – e lúdica – indicação de leitura, o leitor se vê entre a
escolha de uma leitura que pode ser feita como factual ou ficcional, de acordo com seu universo de crenças,
seguindo simulações de mundos possíveis.
Como foi mencionado, trabalharemos neste momento somente com o caso de Dalton Trevisan. No entanto,
gostaríamos de tecer algumas considerações a respeito do título que foi dado ao Caderno, “É tudo
mentira!”: é provável que a convocação do termo “mentira”, nesse caso, seja uma forma de demarcar um
espaço contratual para a ficção, ou seja, em um espaço onde, a priori, estaria o evento, o fato, estaria o falso.
Isso corrobora o nosso raciocínio anterior sobre a dimensão lúdica da escolha do estatuto que é oferecida
ao leitor. No entanto, vale dizer que mentira e ficção possuem estatutos diferentes: a mentira é de ordem
ética, envolve sempre uma vítima e uma testemunha que a desmascare (Auchlin, 1997a); a ficção, por sua vez,
é contratualmente estabelecida e não há a intenção de enganar. A rubrica adotada no interior do Caderno é
mais esclarecedora do jogo: “exclusivo e fictício”. A nosso ver, o uso do termo “mentira” é uma estratégia
para se chamar a atenção do leitor para o fato de que ele não está diante do contrato que é usualmente
característico do jornal, ou seja, o factual. O uso de “mentira”, no caso em questão, tem por função causar
um efeito hiperbólico.
Nelson de Oliveira, escritor, é o responsável pela “entrevista” com Dalton Trevisan. As restrições do gênero
tal qual é publicado nos cadernos factuais do jornal são seguidas. Num primeiro momento, há uma pequena
biografia do entrevistado, sua obra é comentada e há a alusão ao lançamento de um livro Arara bêbada
(realmente lançado em 2004 pela Editora Record). Após os comentários biográficos, há a alternância de
turnos entre entrevistador e entrevistado. Em seguida, trataremos sobre a idéia de ficcionalidade e de sua
manifestação no discurso.
3 Por uma Teoria da Ficcionalidade
Temos desenvolvido estudos que nos levam a pensar a ficcionalidade (cf. Mendes, 2000, 2004, 2005) como
um fenômeno que pode perpassar qualquer gênero de discurso, em maior ou menor grau. Nessa definição,
trata-se de um processo de simulação de mundos possíveis que se estabelece no interior ou no exterior
(no caso de um contrato situacional) de um gênero. Em uma breve síntese, postulamos a idéia de que a
ficcionalidade é sempre contratual e situacionalmente estabelecida (são levados em consideração: as
identidades sociais e discursivas, as situações de troca e os domínios do saber etc.). Ela pode ocorrer em
pelo menos três formas: (1) ela é constitutiva quando esse mecanismo de simulação é a base da existência do
fenômeno, por exemplo: a língua, a matemática e o sistema binário, dentre outros. Essa modalidade não
interfere no estatuto nem nas relações contratuais empreendidas entre os sujeitos comunicacionais; (2) ela
é colaborativa quando auxilia na constituição de um dado gênero. Um exemplo desse tipo de ficcionalidade é
a utilização de reconstituições ou simulações de fatos em reportagens televisivas. O estatuto do gênero
permanece factual e a simulação de mundo possível somente colabora para a sua composição; (3) ela é
predominante quando há a dominância de simulações de mundos possíveis, logo, o estatuto do gênero é
ficcional. Esse tipo abarcaria a percepção mais clássica que temos do termo “ficção”. Pode ocorrer não só
em gêneros como conto, romance, piada e charge, como também aparecer em gêneros que não seriam a
priori de estatuto ficcional, como é o caso da entrevista por nós trabalhada no presente texto. Nesses casos,
são os dados do contrato situacional que nos ajudam a reconhecer o estatuto factual ou ficcional de um
dado gênero. Seriam estes os dados: domínio de referência (tipos de saber), instituição social, formas de
troca (quem se endereça a quem) e, por fim, dados periféricos, como paratextos e suportes de veiculação.
É interessante dizer que, nos gêneros em que há ocorrência dos tipos de ficcionalidade colaborativa e
predominante, encontramos, em seu interior, um entrelaçamento de efeitos de real e efeitos de ficção. Esses
efeitos foram definidos por Charaudeau (1983). No presente artigo, gostaríamos de nos valer do trabalho
desse pesquisador, mas com algumas reformulações. De acordo com Charaudeau, o efeito de real estaria
ligado à figura do “comprovável” e da objetividade; por sua vez, o efeito de ficção estaria ligado à
irracionalidade e à subjetividade.
A idéia que gostaríamos de sustentar aqui é uma caracterização dos efeitos a partir da experiência que
temos do discurso. Não levaríamos em consideração a oposição nem sempre verdadeira entre
“real”/objetividade e “ficcional”/subjetividade proposta pelo teórico mencionado. A nosso ver, a questão da
objetividade/subjetividade seria vista como uma marca lingüística, e não como a expressão do sujeito ou a
configuração do objeto. A escolha de uma enunciação com marcas que indicam subjetividade (eu) ou
objetividade (ele) é uma estratégia que o sujeito comunicante utiliza para construir os gêneros de discurso;
trata-se de um posicionamento, como o pensam Amossy e Koren (2004).
Na perspectiva que temos desenvolvido (Mendes, 2008), aos efeitos de real e ficção, agruparíamos os efeitos
de gênero (Charaudeau, 1992). O conjunto desses efeitos pode compor qualquer gênero de discurso,
independentemente de seu estatuto. Eles estão ligados aos diversos estágios de desenvolvimento da
competência discursiva, como a concebe Auchlin (1997b, 2003) e sua identificação se dá externamente pelo
estatuto e internamente pelo viés da heterogeneidade discursiva. Assim sendo, um “efeito” é uma reunião de
vários critérios, e é sempre relativo à situação de comunicação. Em suma: um efeito é definido em função
dos fatos do mundo e da competência que cada um possui para processar/reconhecer tais fatos.
Percebemos um jogo entre efeitos de real e de ficção na construção forjada da entrevista. A identificação de
tais efeitos é crucial para o entendimento dos mecanismos de fabricação das representações simuladas. No
entanto, antes de passarmos para a análise de nosso corpus, teceremos ainda algumas considerações teóricas
que nos auxiliarão em nosso estudo.
4 Ethos e Estereótipo: breves considerações
Chegamos, neste momento, a um ponto-chave: a representação de si e o forjar essa representação. Partimos
da hipótese seguinte: ao simular a identidade de um outro como um eu, o autor do texto, Nelson de
Oliveira, forja as representações ethóticas de Dalton Trevisan. O processo se daria por meio da identificação
de representações e de estereótipos e de suas respectivas simulações. De acordo com Amossy (2005), a
noção de estereótipo desempenha um papel importante na configuração das imagens de si no discurso, ou
seja, do ethos:
De fato, a idéia prévia que se faz do locutor e a imagem de si que ele constrói em
seu discurso não podem ser totalmente singulares. Para serem reconhecidas pelo
auditório, para parecerem legítimas, é preciso que sejam assumidas em uma doxa,
isto é, que se indexem em representações partilhadas. É preciso que sejam
relacionadas a modelos culturais pregnantes, mesmo se tratar de modelos
contestatórios (p. 125).
No caso em que analisamos, a imagem de si criada por Dalton Trevisan e que pode ser partilhada pelo
auditório é aquela apreendida por sua obra de ficção, pelos testemunhos, pelos laços de amizade e por sua
própria aversão à imprensa, dentre outros. Será a partir dessas representações partilhadas que será possível
fazer uma simulação de um mundo possível, ou de vários mundos possíveis, do universo dessa pessoa. Se
não houvesse nenhum dado que fosse associado a Dalton Trevisan, o leitor não reconheceria a sua imagem
no texto de Nelson de Oliveira.
No corpus estudado, há uma junção de representações e estereótipos. As representações, de acordo com
Charaudeau e Maingueneau (2002), constroem uma representação do real por meio das próprias imagens
mentais veiculadas por um discurso. Elas se configuram em discursos sociais que testemunham sobre um
saber de conhecimento sobre o mundo, sobre um saber de crenças que encerram sistemas de valores dos
quais os indivíduos se dotam para julgar essa realidade. Esses discursos de conhecimento e de crença
desempenham um papel identitário, isto é, constituem a mediação social que permite aos membros de um
grupo construírem uma consciência de si e que parte de uma identidade coletiva. Já a estereotipagem, de
acordo com Amossy (2005):
é a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação
cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado. Assim, a comunidade avalia e
percebe o indivíduo segundo um modelo pré-construído da categoria por ela
difundida e no interior da qual ela o classifica. Se se tratar de uma personalidade
conhecida, ele será percebido por meio da imagem pública forjada pelas mídias (p.
125).
Em suma, vale dizer que as representações são imagens dinâmicas e o estereótipo, imagens cristalizadas. No
corpus estudado, temos o uso desses dois processos para a criação da entrevista ficcional. Do lado das
representações, temos o uso da imagem de escritor arredio de vida reclusa e avesso à imprensa. Do lado do
estereótipo, temos a imagem cristalizada de Vampiro, mais especificamente “Vampiro de Curitiba”. No
entanto, vale dizer que no caso em questão há uma fusão entre a representação e o estereótipo: “ser
arredio e de vida reclusa” é, ao mesmo tempo, uma imagem de Trevisan e do estereótipo de “vampiro”
como o conhecemos em nossa sociedade. Assim sendo, por meio de representações e estereótipos, Nelson
de Oliveira forja o ethos de Dalton Trevisan, um enunciador outro que se faz passar por um “eu” que não
pertence à mesma identidade social. Em nossa pesquisa, pensamos que esse processo poderia receber o
nome de ethos forjado. Essa noção não é uma formulação própria, trata-se de uma formulação de Ruth
Amossy em curso ministrado por essa professora na FALE/UFMG em março/2007. A partir das discussões
oriundas desse encontro, podemos pensar que o ethos forjado seria a fabricação da imagem de um outro
como um eu, por meio de representações e estereótipos.
5 Análise do Corpus
No processo de forjamento do ethos de Trevisan, Nelson de Oliveira, além do uso de representações e
estereótipos, se vale de efeitos de real e de ficção. Os efeitos de real são identificados a partir dos dados
biobibliográficos reais:
O vampiro mais famoso do Brasil nasceu em Curitiba, em 14 de junho de 1925,
cidade na qual vive até hoje. Diplomou-se pela Faculdade de Direito do Paraná e
fundou uma das revistas literárias mais importantes da década de 40, a "Joaquim"
(em homenagem a todos os joaquins do Brasil), recentemente reeditada em edição
fac-similar pela Imprensa Oficial do Paraná. Seus primeiros contos, cujo neo-realismo
extrapola o mero registro dos conflitos sociais, foram editados em folhetos que
lembram muito a literatura de cordel. A partir de 1959, com a publicação das
"Novelas Nada Exemplares", a sua obra passou a ter repercussão nacional. Depois
vieram "Cemitério de Elefantes" (1964), "Morte na Praça" (1964) e mais de duas
dezenas de novos livros, sendo o mais recente "Arara Bêbada", recém-publicado.
Sobre a sua literatura a opinião é unânime: Dalton Jérson Trevisan é tido hoje, pelos
principais críticos, como o grande contista vivo da língua portuguesa (FSP,
25/04/2004: grifos nossos).
Dos livros que escreveu qual é o seu predileto?
"Arara Bêbada". Esse que a Record está lançando. Meu melhor livro é sempre o
último que escrevi. Não gosto muito dos primeiros. Se pudesse, mudava tudo neles.
Como também detesto reler conto antigo, deixo tudo como está. Sou um revisor
compulsivo, mas só até o livro ser publicado. Antes de mandar para a editora, refaço
dez, 20 vezes o mesmo conto. Não descanso nunca, é um inferno. Até publico alguns
por conta própria (FSP, 25/04/2004: grifo nosso).
Quais os livros que o marcaram?
Quando estudava direito, lia muito Graciliano Ramos. Depois descobri o Newton
Sampaio, que me mostrou outro caminho. O Newton foi o maior contista do Paraná.
Morreu jovem, aos 25. Hoje só leio Machado de Assis. Leio e releio. Não me
interessam os outros (FSP, 25/04/2004: grifos nossos).
Nas trocas de turno entrevistador/entrevistado citadas, observamos a construção de uma identidade a
partir de referências que podem ser atestadas seja nos próprios livros de Trevisan, seja em enciclopédias ou
outras fontes de referência como sites, por exemplo. Os dados de seu nascimento, sua formação, a menção
ao recente lançamento do livro Arara bêbada e suas preferências literárias são todos factuais e funcionam,
nesse gênero entrevista cujo estatuto é ficcional, como um efeito de real. No entanto, algumas opiniões não
seriam recuperáveis ou identificáveis com tanta especificidade; por exemplo: “Sou um revisor compulsivo,
mas só até o livro ser publicado. Antes de mandar para a editora, refaço dez, 20 vezes o mesmo conto. Não
descanso nunca, é um inferno. Até publico alguns por conta própria.” e “Hoje só leio Machado de Assis. Leio
e releio”. Temos também um efeito de ficção – que é ao mesmo tempo um estereótipo – na abertura do
texto que precede a entrevista: “O vampiro mais famoso do Brasil”. Valendo-nos do interdiscurso, sabemos
que se trata do conto mais reconhecido de Trevisan e que “o vampiro de Curitiba” transformou-se em seu
epíteto.
Os efeitos de ficção são identificados a partir de citações da própria obra ficcional de Trevisan. As imagens
de seus personagens migram para a imagem forjada do escritor construída por Oliveira:
Sua recusa em dar entrevistas se deve à timidez ou ao puro jogo de marketing?
Não suporto responder perguntas. Detesto falar sobre os meus livros.
Simplesmente porque perco a fala, paro de respirar. É verdade, sou arredio, sempre
fui. Incuravelmente tímido. Um pouco menos com as loiras oxigenadas. Já está
gravando? (FSP, 25/04/2004: grifos nossos).
Ao lermos a obra ficcional de Trevisan, deparamo-nos com um personagem que perpassa vários de seus
contos, Nelsinho, advogado, que tem um fraco por loiras. Esse mesmo Nelsinho está no conto “Vampiro de
Curitiba”, no qual encontramos as passagens:
Tarde demais: já vi a loura: milharal ondulante ao peso das espigas maduras. É
oxigenada, a sobrancelha bem preta – como é que posso deixar de roer unha? Por ti
serei maior que o motociclista no Globo da Morte. Deixa estar, você quer um
homem bonitão, de bigodinho. Ora bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou
simpático, isso não vale nada? É uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás dela
como quando era menino ia atrás da bandinha do Tiro Rio Branco (Trevisan, 1970, p.
6).
Nessa passagem, podemos ver algumas características contidas na caracterização feita por Oliveira: uma
timidez e nervosismo revelados pela idéia de roer unhas e a atração pela loira oxigenada. Com esta
estratégia de forjar o ethos de Trevisan a partir de sua obra ficcional, Oliveira permite ao leitor acionar a sua
competência discursiva preexistente e reconhecer a fusão das duas personalidades: a ficcional (mas pública)
e a factual (resguardada pelo escritor).
Vejamos também a seguinte passagem:
O sr. é um dos escritores mais lidos do Brasil, isso há décadas.Tem conseguido viver só dos
direitos autorais?
Sim. Mas modestamente. Não tenho luxos. Sou viúvo. Não tenho escritório nem
secretária nem vícios caros. Moro nesta casa há 40 anos. Nunca foi reformada, como
pode ver. Tem gente que acha que fiquei rico com os meus livros. Vêm aqui, torram a
minha paciência, pedem dinheiro emprestado. Ficam espantados porque não moro
numa cobertura com piscina. Já ganhei muito dinheiro. Mas queimei tudo. Com
uísque, baralho e mulher. Principalmente com mulher. Isso quando era casado. Hoje
não (FSP, 25/04/2004: grifo nosso).
Temos aqui o contraste de uma vida atual com uma vida passada: o tempo de casado x o tempo de viúvo.
Notamos a fusão da vida do personagem Nelsinho com a vida de Trevisan na composição de seu ethos: em
várias situações, vemos o referido personagem à procura de mulheres (até mesmo em dia escasso como
uma Sexta-feira Santa, no conto “A noite da paixão”), a narração de sua vida boêmia e de sua devassa vida
de advogado sem escrúpulos. Parece-nos que esse efeito de ficção também se estende a outras obras, como
os vários contos em que Trevisan narra a dura vida de mulheres que padecem pelos atos de seus maridos.
No conto “Abgail”, a personagem de mesmo nome é friamente assassinada por seu marido. Vários são os
contos em que o nome Maria aparece, e todas as personagens que recebem esse nome são sofredoras, de
vida difícil: “Todas as Marias são coitadas”, “As Marias”, “Maria Pintada de Prata” “João sem Maria” etc. Esse
efeito de ficção talvez queira mostrar uma descrença dramática existente na própria obra do autor que
poderia ser incorporada à sua imagem forjada, pois em uma de suas coletâneas denominada exatamente de
Os desastres do amor, podemos observar os desencontros afetivos entre homens e mulheres.
Em uma outra troca de turnos da entrevista, notamos um efeito de ficção que também possui uma visada
irônica:
Como o sr. se vê como escritor. Conseguiria traçar seu auto-retrato?
De jeito nenhum. Eu jamais me vejo. Detesto espelhos (FSP, 25/04/2004: grifo nosso).
Observamos, nessa passagem, um jogo com o fato de que, de acordo com a lenda a esse respeito, os
vampiros não têm a sua imagem refletida em espelhos. Há um efeito de ficção nesta fusão entre personagem
e criador, mas há também um efeito factual pelo fato de o escritor não querer que sua imagem seja refletida
pela mídia, pelo fato de optar pela não visibilidade nos canais de comunicação usuais.
Neste processo de incorporação forjada, há também uma simulação do estilo de Trevisan, a utilização de
ironias e irreverências características da obra do referido autor. A utilização desse recurso é feita para tratar
das imagens factuais criadas por outras pessoas, por testemunhos, sobre o sujeito em carne e osso, pessoa
física, Trevisan:
O escritor Jamil Snege, também curitibano, conta nas memórias dele que o sr. passou
muito tempo recuperando e destruindo os exemplares dos seus primeiros livros.
Besteira. O Turco sempre foi de exagerar as coisas. Cerca de 90% do que ele
escreveu nesse livro é invenção. Nunca roubei meus próprios livros das bibliotecas.
Muito menos da casa dos amigos, como ele disse. Eu pedia emprestado, isso sim.
Não devolvia mais, queimava. Mas não roubava (FSP, 25/04/2004).
Como o sr. se sente dentro da literatura brasileira contemporânea?
Bastante isolado. Desconfortável. Não gosto de escritores. São vaidosos, pedantes.
As suas intriguinhas de província me aborrecem. Acham que merecem o Nobel.
Também não gosto dos leitores. Pelo menos não dos mais fanáticos, dos imbecis que
vêm me encher o saco. Querem conversar sobre os meus livros, querem autógrafos,
querem escrever teses sobre mim. Odeio os professores de literatura, os críticos
(FSP, 25/04/2004).
As imagens que vemos construídas nessas trocas refletem um ethos de escritor arredio, em conflito com a
própria obra e a sua publicação, imagem essa que justificaria o distanciamento feito por Trevisan em relação
à vida pública, à sua negação em ser celebridade. Essa imagem de distanciamento é forjada a partir de
testemunhos, seja por meio do discurso reportado do escritor também curitibano Jamil Snege, seja por
meio do próprio depoimento do sujeito enunciador forjado Trevisan. Vemos ironia na passagem: “... Nunca
roubei meus próprios livros das bibliotecas. Muito menos da casa dos amigos, como ele disse. Eu pedia
emprestado, isso sim. Não devolvia mais, queimava ...”. Vemos que Oliveira se baseia em um interdiscurso das
anedotas produzidas a respeito de alguém que cria mistério sobre si mesmo por ser recluso e, por
conseqüência, acaba fomentando imaginários e especulações a respeito de sua existência.
Notamos que estruturação da imagem de arredio perpassa todas as instâncias da obra literária e de sua
circulação: aversão aos colegas escritores, aos leitores, aos professores de literatura, aos críticos, aos
pesquisadores e, por conseqüência, à imprensa, que é uma das instâncias responsáveis por mediar a
construção do valor da obra literária atualmente.
De maneira geral, observamos que a metáfora do vampiro – ser solitário, de vida reclusa e hábitos noturnos
– perpassa toda a construção da entrevista forjada. Oliveira se baseia, sobretudo, neste estereótipo.
6 Conclusão
Pretendemos, com este trabalho, mostrar que o recente fenômeno ocorrido na mídia – no qual se nota uma
tendência em se criar estatutos ficcionais para gêneros que até então tinham estatuto factual – está calcado
num trabalho de manuseio de representações e de estereótipos existentes no seio de nossa sociedade.
Somente essas duas noções seriam capazes de garantir a verossimilhança para a simulação de mundos
possíveis necessária nesse tipo de situação. O recurso a uma dimensão dos efeitos também é uma
ferramenta eficaz nesses casos. A identificação dos efeitos, das representações e dos estereótipos se dá pela
competência discursiva que cada indivíduo desenvolve, aprimora e amadurece ao longo de sua vida.
Percebemos, assim, que a ficcionalidade veiculada na mídia migra cada vez mais para gêneros não-literários,
inaugurando novos espaços e lançando por terra o mito de uma especificidade do discurso literário em
relação aos demais discursos.
Notas
[1]
O presente trabalho foi realizado com o apoio do PRODOC-CAPES (Programa de Apoio a
Projetos Institucionais com a Participação de Recém-doutores) – Brasil.
2 Ver http://veja.abril.com.br/especiais/1808/index.html.
3 Editado pela Abril, outubro/2007.
4 A Jetlag Travel Guide, pelo que temos conhecimento, publicou três volumes: Molvania; San
Sombrero: A Land of Carnivals, Cocktails and Coups e Phaic Tan. Os co-autores dos livros são: Santo
Cilauro, Tom Gleisner & Rob Sitch.
5 Ver http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2504200404.htm.
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Dados da autora:
*Emília Mendes
Doutora em Letras: Estudos Lingüísticos – UFMG – e Pesquisadora do PRODOC/CAPES veiculado ao
Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos – FALE/UFMG
Endereço para contato:
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras – FALE/UFMG
Av. Antônio Carlos, 6627
31.270-901 Belo Horizonte/MG – Brasil
Endereço eletrônico: [email protected]
Data de recebimento: 9 jun. 2008
Data de aprovação: 10 out. 2008