cefaleia numular.p65 - Sociedade Brasileira de Cefaleia

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cefaleia numular.p65 - Sociedade Brasileira de Cefaleia
RELATO DE CASO
Cefaléia numular
Nummular headache
¹Felipe Galvão Stancioli, ¹Luiz Paulo Bastos Vasconcelos, ²Juliana Cardoso Leal, ²Ariovaldo Alberto
da Silva Júnior, ²Rodrigo Santiago Gómez, ³Antônio Lúcio Teixeira
¹Acadêmico de Medicina da Faculdade de Medicina da UFMG.
²Médico neurologista.
³Professor adjunto do Departamento de Neurologia da UFMG
Ambulatório de Cefaléias do Serviço de Neurologia do Hospital das Clínicas da
Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG
RESUMO
Introdução: A cefaléia numular (CN) é uma cefaléia crônica que
acomete área craniana circunscrita, em forma de moeda, de aproximadamente 1 cm a 6 cm de diâmetro. Apresenta intensidade leve a
moderada, podendo haver exacerbações de curta duração ou períodos de remissão. Objetivos: Relatar um caso de CN e relacionar as
principais características clínicas dos casos descritos na literatura
brasileira e internacional. Métodos: Descrevemos as características
clínicas da CN de um paciente do sexo masculino de 37 anos de idade.
Revisamos de forma sistemática as bases de dados Medline e Bireme
em busca de todos os casos de CN relatados. Conclusão: A CN é
uma cefaléia subdiagnosticada, cuja fisiopatologia e terapêutica permanecem indefinidas.
PALAVRAS-CHAVE
Cefaléia numular; cefaléia em moeda; epicrânias.
ABSTRACT
Introduction: Nummular headache (NH) is a chronic headache
affecting a coin-shaped circumscribed cranial area of approximately
1 cm to 6 cm in diameter. The pain is mild to moderate, and
exacerbations or spontaneous periods of remission can occur.
Objectives: To report a new case of NH and the main clinical features
of the cases described in the Brazilian and international literature.
Methods: We report the clinical characteristics of NH in a 37-yearold male patient. We carried out a systematic review of Medline and
Bireme to locate all case reports and/or case series of NH.
Conclusion: NH is an underdiagnosed headache whose pathophysiology and therapeutics remain uncertain.
KEY-WORDS
Nummular headache; coin-shaped cephalgia; epicranias.
Migrâneas cefaléias, v.9, n.2, p.45-47, abr./mai./jun. 2006
INTRODUÇÃO
A cefaléia numular é uma cefaléia que acomete uma
circunscrita área craniana em forma de moeda com aproximadamente 1 cm a 6 cm de diâmetro. Apresenta intensidade
leve a moderada, podendo haver exacerbações de curta duração ou períodos de remissão. A cefaléia numular está descrita no apêndice da Classificação Internacional das Cefaléias,
2ª edição, 2004 (código A13.7.1)1. Foi descrita, pela primeira vez, por Pareja e colaboradores2 e, até o presente momento, 42 casos foram relatados na literatura.
Neste trabalho, relatamos um novo caso de cefaléia
numular atendido em nosso ambulatório e relacionamos as
principais características clínicas dos casos descritos na
literatura.
RELATO DE CASO
Trata-se de paciente do sexo masculino, 37 anos,
frentista, procedente de Belo Horizonte. Relata cefaléia de
caráter pulsátil há cerca de dois anos, circunscrita na região
parietal esquerda, de intensidade leve em praticamente todo
o tempo. A dor é bem delimitada em área de forma circular
e aproximadamente 5 cm de diâmetro. Mostra-se contínua,
diária, sem períodos de remissão e sem alterações na forma
ou tamanho da área acometida. Não é acompanhada de fenômenos autonômicos. Durante as exacerbações, que duram de 10 a 15 minutos, o paciente relata que sente aumento
de temperatura no local doloroso. Refere uso anterior de
fluranizina com pequena melhora na intensidade da dor, porém, por tempo limitado. A dor não exibe melhora com anal45
ANTONIO LUCIO TEIXEIRA E COLABORADORES
gésicos comuns ou antiinflamatórios.
O paciente nega trauma na cabeça,
comorbidades clínicas e outros tipos
de cefaléias.
O exame neurológico revelou apenas uma área disestésica bem delimitada na região parietal esquerda, mas
com sensibilidade preservada. Os exames laboratoriais e por imagem mostraram-se sem alterações. O paciente
procurou atenção médica uma única
vez, tendo sido orientado quanto ao
tipo de cefaléia apresentada, assim
como em relação à benignidade do
quadro. Não deu continuidade ao tratamento clínico.
DISCUSSÃO
Tabela 1
Características clínicas da cefaléia numular nos casos descritos na literatura
Sexo:
Homens/Mulheres
Idade de
aparecimento: média
(limites)
Duração:
média (limites)
História de trauma na
cabeça
Lado:
direito/esquerdo/
mediano
Localização:
Occipital/Parietal/
Temporal/Frontal
Tamanho: média
(limites)
Forma:
circular/elíptica
Brito et al10
2005 (n=2)
Stancioli
et al.
2006
(n=1)
0/1
4/6
1/1
1/0
65
45
-
38 (22-54)
35
- (1m-50a)
7a
3m
-
2 a (1m-4a)
2a
4
1
0
-
-
0
0
9/4/0
11/2/1
1/0/0
0/0/1
-
2/0/0
0/1/0
3/8/2/0
1/7/5/1
0/1/0/0
0/1/0/0
-
0/2/0/0
0/1/0/0
3,3 (2-6)
- (1-6)
2
5
-
4 (3-5)
5
9/4
12/2
1/0
0/1
-
2/0
1/0
Pareja et al.
20043 (n=14)
5/8
3/11
0/1
52 (26-70)
38 (13-72)
3,7 a (1m-19a)
Exacerbação
8
8
1
-
-
2
1
Dor em pressão
7
-
0
0
-
2
0
Dor em facadas
4
-
0
0
-
0
0
Dor latejante
0
-
1
0
Outro tipo de dor
2
-
0
1
9
10
0
7
3
8/5
7/7
A cefaléia numular (CN) foi priDisestesia
Outra cefaléia
meiramente descrita em 2002 por
associada
Pareja e colaboradores em uma série
Curso:
Contínuo/Episódico
de 13 casos.2 Dois anos depois, 14
novos casos foram relatados pelos
mesmos autores,3 que estimaram a incidência da CN em
6,4/100.000/ano. Até hoje, foram descritos 42 casos na
literatura. Acredita-se, no entanto, que esse número seja
subestimado, tanto por falta de conhecimento sobre esse
tipo de cefaléia, quanto pela pequena procura dos pacientes por assistência médica, uma vez que os sintomas são
geralmente leves e pouco incômodos.
A CN é uma cefaléia crônica, de intensidade leve a
moderada, com dor circunscrita em área pequena e bem
delimitada do crânio. Pode haver períodos de remissão espontânea, como também períodos de exacerbação. Qualquer região da cabeça pode ser acometida, e a área dolorosa, que tem sempre forma circular ou elíptica, mantém
inalteradas suas características semiológicas de forma e
tamanho.
A dor pode ser dos tipos: pressão, dormência, em facada, pulsátil entre outros. Durante e entre os períodos
sintomáticos, a área afetada pode mostrar variáveis combinações de hipoestesia, disestesia, parestesia, dolorimento
e/ou desconforto. Parece não haver relação com trauma
craniano ou outras cefaléias associadas. Não há lesão das
estruturas subjacentes, e os exames laboratoriais e neuroradiológicos não apresentam alterações. É considerada
como resultante de um processo benigno de origem desconhecida, não devendo ser atribuída a nenhum outro transtorno. Todas as características clínicas apresentadas pelo
paciente relatado condizem com as acima relacionadas.
46
Cohen
2005 5
(n=10)
Monzillo et al. Evans 20058
20044 (n=1)
(n=1)
Pareja et al.
20022 (n=13)
0
1
-
0
0
1
-
0
1
0
0
-
0
0
0/1
1/0
-
0/2
1/0
Em revisão sistemática das bases de dados Medline e
Bireme, encontramos 42 casos de CN relatados desde
2002. As principais características desses pacientes estão resumidas na tabela 1. Pareja e colaboradores2,3 já haviam notado uma ligeira preponderância entre as mulheres, o que foi confirmado pela análise global dos casos:
67% dos pacientes eram mulheres (28/42), enquanto 33%,
homens (14/42). A idade média de aparecimento da dor
foi de 45 anos, variando de 13 a 72 anos. Assim, apesar
de acometer principalmente os adultos, foram diagnosticados também pacientes jovens e idosos.
A dor foi caracterizada como em pressão em 50%
(9/18), facadas em 22% (4/18), latejante em 11% (2/18)
ou outro tipo em 17% (3/18) dos casos. Ressalta-se que
pode haver alternância dos tipos de dor nos períodos de
exacerbação. Além da dor, a área afetada pode apresentar
variáveis combinações de hipoestesia, disestesia, parestesia, dolorimento e/ou desconforto. Essas alterações de
sensibilidade estiveram presentes em 66% (21/32) dos
pacientes.
A CN pode estar localizada em qualquer parte da cabeça, mas usualmente acomete a região parietal, sobretudo sua porção mais convexa, o tuber parietale. A distribuição encontrada por regiões foi a seguinte: parietal em
62,5% (20/32), temporal em 22% (7/32), occipital em
12,5% (4/32) e frontal em 3% dos casos (1/32). Com
relação ao hemisfério craniano: 72% no lado direito (23/
Migrâneas cefaléias, v.9, n.2, p.45-47, abr./mai./jun. 2006
CEFALÉIA NUMULAR
32), 22% no lado esquerdo (7/32) e 6% ultrapassaram a
linha média (2/32).
O tamanho médio encontrado foi de 3,5 cm, variando
de 1 cm a 6 cm. A forma foi circular em 78% (25/32) dos
casos e elíptica nos outros 22% (7/32). É interessante como
os pacientes apontam e delimitam com precisão o local
doloroso. A dor invariavelmente permanece confinada na
mesma área sintomática e não se modifica em forma ou
dimensão ao longo do tempo.
A CN pode ser caracterizada como uma cefaléia crônica, sendo a média de duração de 3,5 anos. Ressalta-se
que a duração da dor pode ser bastante variável: de um
mês a cinqüenta anos. Por ser uma dor de intensidade leve
e pouco incômoda, os pacientes não recorrem ao auxílio
médico no início do sintoma. Aqueles que procuram os
médicos geralmente o fazem devido ao medo de uma possível comorbidade. Esses pacientes são, provavelmente,
os que relataram dor com poucos meses de duração.
Os pacientes com CN podem apresentar períodos de
remissão espontânea. Esses períodos podem durar de dias
a meses e, até o momento, não foram elucidados quais os
fatores atenuantes ou os fatores de influência para o desaparecimento da dor. Assim, propomos a classificação dos
pacientes com CN em dois grupos: o primeiro, dos indivíduos com dor contínua e diária (CN contínua), englobando 53% (17/32) dos casos; o segundo, dos sujeitos com
períodos sintomáticos intercalados com assintomáticos (CN
episódica), nos restantes 47% (15/32) dos casos. Ambos
os grupos, entretanto, podem sofrer períodos de exacerbação caracterizados por dor lancinante de vários segundos ou que aumentam gradualmente em minutos. Essas
crises mostraram-se presentes em 65% (20/31) dos pacientes. Durante as crises, a dor, além de aumentar de intensidade, pode mudar de qualidade. Citamos, por exemplo, o
paciente de Monzillo e colaboradores,4 cuja dor assumia
característica latejante somente nos períodos de maior intensidade.
A possibilidade de a dor ser decorrente de trauma craniano foi levantada na literatura.2,3,4,10 No entanto, apenas
16% (5/31) dos pacientes relataram trauma na cabeça, sendo que, em dois deles, não se pôde estabelecer relação
temporal com o início do sintoma.2,3 A hipótese de outras
cefaléias como causa da CN também parece pouco provável. Isso porque apenas 31% (10/32) dos indivíduos com
CN queixaram-se de outro tipo de cefaléia. Neles, a área
dolorosa da CN não correspondeu a um prolongamento de
uma cefaléia mais extensa coexistente. Além disso, a CN
tem curso independente, havendo nítida distinção temporal e espacial em relação a outras cefaléias. A origem
psicogênica também é possível, embora a maior parte dos
pacientes não apresente transtornos psiquiátricos.3,5,6
A fisiopatologia da CN ainda é desconhecida. AcrediMigrâneas cefaléias, v.9, n.2, p.45-47, abr./mai./jun. 2006
ta-se que seja uma neuralgia localizada de ramo terminal
do nervo trigêmeo.2 Nesse sentido, Pareja e colaboradores
propuseram sua classificação em epicrânia, ou seja, consideraram a dor originada de tecidos epicranianos.7
O tratamento é geralmente desnecessário e, até o presente momento, não há tratamento específico para esse tipo
de cefaléia.5,6,8,9 Analgésicos ou AINEs são normalmente suficientes. Entretanto, pacientes com dor moderada ou intensa podem requerer tratamento profilático. Tentativas com
drogas antimigranosas, antiepilépticas e antidepressivas provaram ser ineficazes na maioria dos casos.6 Nosso paciente
apresentou apenas resposta parcial e transitória à fluranizina,
ao passo que os analgésicos comuns e antiinflamatórios
nunca obtiveram resultado satisfatório.
A CN é certamente subdiagnosticada, sendo necessária atenção para esse novo tipo de cefaléia, o que possibilitaria sua melhor caracterização clínica, entendimento
fisiopatológico e terapêutico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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5. Cohen GL. Nummular headache: what denomination? Headache
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Expert Rev Neurother 2003;3:289-292.
10. Brito CM, Sarmento EM, Moreira Filho PF, et al. Cefaléia numular:
relato de dois casos. Migrâneas e cefaléias 2005;8:91-92.
Recebido: 29/05/2006
Aceito: 29/05/2006
Endereço para correspondência
Dr. Antonio Lucio Teixeira
Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, UFMG.
Avenida Prof. Alfredo Balena, 190 – Santa Efigênia
30130-100 – Belo Horizonte, MG
Tel./Fax: 31-34992651 - E-mail: [email protected]
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