Jardim das Torturas

Transcrição

Jardim das Torturas
Virginia de Medeiros
Jardim das Torturas | Obra em Processo
2012/2013
Jurandy Valença
David Schumaker
Mirs Monstrengo
Diego Ciarlariello
Jaime Celiberto
Mirelle Santos
Martha Abdalla
Trilha sonora Rovilson Pascal.
Sonoplastia Sandra Miyazawa
Designer Henrique Lukas
Jardim das Torturas
“São máquinas celibatárias que pedem alguém que as complete”
Gilles Deleuze
Curadoria e texto
Direção de arte e iluminação
Graffit
Fotografia
Direção de Fotografia
Figurino
Essa exposição é quase como a confissão de um segredo íntimo, quase. Porque pela sua condição o segredo não se pode revelar. Mas aqui, o segredo não “é
um saber que se esconde do outro, um saber que se oculta e dissimula. Virginia de Medeiros nos permite em
“Jardim das Torturas” um acesso muito particular ao
universo sadomasoquista, e aborda um aspecto misterioso e intrigante da diversidade humana que é o prazer sensual que se pode extrair do sofrimento. Um universo que tem seus códigos de conduta e vocabulário
próprios, onde obediência, submissão, dominação,
humilhação, escravo e coleira são palavras que se esvaziam do sentido comum e ganham outros significados. E as categorias se dividem em diferentes práticas
BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão,
Sadismo e Masoquismo), sigla que nasceu nos anos
90 e abrange diferentes grupos de praticantes numa
relação de dominação e submissão física ou psíquica
entre Dominador ou Dominatrix e Escravo ou Escrava.
“Jardim das Torturas” é uma exposição em processo,
um recorte do universo sadomasoquista que nasceu do
encontro, do convívio, da confiança e da cumplicidade
da artista com o Dominador Dom Jaime, conhecido
também por Mestre Yago, filósofo sadomasoquista,
e com suas duas Escravas, Madelina e M. Ele e suas
escravas vivem sob o mesmo teto há seis anos numa
relação 24/7 SSC [dominação psicológica e sexual vinte
e quatro horas por dia, sete dias por semana; com base
na liturgia BDSM: ser São, ser Segura e ser Consensual]. A artista chegou até Dom Jaime por intermédio do
Blog “SM sem Mistério”, um instrumento informativo
que conduz o público interessado pelos caminhos do
BDSM mostrando-lhes novas teorias e práticas. No seu
blog, o Mestre Yago afirma que a “dor por dor, não causa
prazer. É um contexto inteiro que vai dar significado a
Dor. Existe um estado de dor no orgasmo em qualquer
relação sexual. Reconhecer esse estado prazeroso natural é entender que a natural expansão e intensificação
da dor é uma matemática ligada a física quântica”. A
partir dessa experiência e de sua pesquisa é que Virginia construiu o corpo do projeto que foi contemplado no
Edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes
Visuais 2012, e agora tem sua primeira parte apresentada no Ateliê Aberto, em Campinas, São Paulo. O projeto foi desenvolvido durante a residência de Virginia no
Instituto Hilda Hilst, tambem localizado em Campinas.
O foco central da artista neste processo partiu da
seguinte questão: Como adentrar neste universo
rompendo os estigmas que resumem esta prática à
mente sádica e doente, masoquista e auto destrutiva,
portadores de uma parafilia, etc? A resposta, Virginia de
Medeiros encontrou nos diários íntimos das Escravas.
Depois das sessões sadomasoquistas, obedecendo ao
seu Dono, as Escravas escrevem um diário pessoal descrendo em detalhes tudo que vivenciaram. Um espaço
de subjetivação do seu estado enquanto indivíduo. Virginia defende que o processo de subjetivação “é sempre
ético, por oposição a moral. A moral julga baseada em
um conjunto de regras coercitivas. As regras da ética
são facultativas e avalia o que fazemos e o que dizemos
em função do modo de existência que isto implica”.
A exposição, de caráter processual, reúne diversos elementos que a artista vem desenvolvendo junto com
o grupo: um ensaio fotográfico, dirigido pelo Dom
Jaime, com base no romance “A História de O”, livro
que ocupa um papel importante na vida do Mestre
e suas Escravas e, coincidentemente, foi o primeiro
contato da artista com o universo SM. No ensaio fotográfico, Virginia se submete ao papel de Escrava, e
junto com Madelina e M se deixa conduzir pelo dominador Dom Jaime em uma experiência de confiança
que a aproxima da relação de escravidão SM. Parte dos
diários foram transcritos pela artista e serão exibidos
em chapas de cobre, seguindo os princípios das gravuras em metal. O espaço expositivo da Galeria é tomado
como um corpo a ser manipulado, que não só abriga as
obras mas que também é parte constituinte delas. Uma
das paredes, como uma pele, recebe um espartilho de
piercings. Um penetrável de correntes reverbera um
som que preenche o espaço e traduz a excitação sonora que o tilintar dos objetos de tortura causam nas
Escravas, e que parece ecoar as palavras do Marquês
de Sade: “Entre os verdadeiros libertinos, admiti-se que
as sensações comunicadas pelo órgão do ouvido são as
que mais agradam e deixam as mais vivas impressões”.
O cenário sonoro criado por Virginia é repleto de
sons de açoites, correntes, algemas, estalos, zunidos
de chibatas, chicotes e gemidos. A fachada da galeria
recebe um graffite feito pelo artista Mirs Monstrengo,
reproduzindo uma imagem de submissão de Guido
Crepax. Referência que traduz e alimenta a prática
de dominação de Dom Jaime sobre as Escravas: uma
dominação suave e firme ao mesmo tempo, como elas
mesmas afirmam. No porão da Galeria, no dia da abertura, a artista apresenta uma performance vivenciando as posições de submissão que o corpo das Escrava
experimenta em uma sessão SM: prone, guia da coleira,
flip side, auction, inspeção, quadrúpede, entre outras.
Por meio dessas operações simbólicas, Virginia de Medeiros, coloca em fricção sob o signo da carne vários
discursos em seu trabalho; o estético, o moral, o político e o sexual. Notoriamente, nessa exposição, todos eles
estão subordinados à linguagem do erotismo e mais
que tudo, do desejo. A artista promove mediações entre
algumas polaridades que são marcantes em sua obra
como o permitido-interdito, dor-prazer, dominaçãosubmissão, público-privado, masculino-feminino. “Jardim das Torturas”, mais do que ser uma exposição para
ser olhada, é para ser lida, ouvida, sentida, descoberta.
O sentido destas obras não está localizado no desenho
da fachada, nas imagens das fotografias, nas correntes
ou no espartilho que amarra uma parede, nem muito menos na situação/instalação a ser descoberta no
porão pelo espectador. O sentido acontece no encontro
entre este e a obra. Entre nós e as obras. E nossa reação
é de quem surpreendeu um segredo que nunca será
desvendado completamente. Afinal, essa é a sua natureza. E é nela que se encontra esse jardim que seria a
delícia de Bosch, no qual a fauna é formada por corpos,
bocas, mãos, pés, vaginas, falos, orifícios, olhos e ouvidos; e a flora são algemas, chibatas, chicotes, máscaras,
mordaças, cordas, correntes, nós. E também eu e você.
Jurandy Valença, dezembro de 2013.
Agradecimentos
Ao atravessar a porta de número 95, adentrei num jardim peculiar. Flores obscenas são cultivadas na carne pelo dedicado chicote de Dom Jaime, dominador sadomasoquista. Elas desabrocham sobre a
pele de suas orgulhosas Escravas. “Para satisfazê-las será preciso nada menos do que as mãos amarradas nas costas e os joelhos afastados, os corpos escancarados, o suor e as lágrimas. ” Neste
Jardim, flores roxas, vermelhas e verdes exalam um odor inebriante que fazem da servidão e da tortura uma pura alegria! Obrigada Dom Jaime, Madelina e Mi pela confiança e pelo tanto que
apreendi! Agradeço a todos que partilharam de forma sensível e vigorosa para a existência deste trabalho.
A Marcia Castro pelo amor solar, estrutura da minha alma; a Marcio Harum que me apresentou ao Instituto Hilda Hilst; a Jurandy Valença pela energia criativa que move paisagens e passagens; a Olga
Bilenky que me acolheu na Casa do Sol e em seu coração; a Daniel Fuentes, presidente do Instituto Hilda Hlist, pelo apoio; a Adriane Pianowski pelo pueril brilho nos olhos e sua casa usina de energia;
a Marta Abdala que primorosamente modelou o figurino com delicadas mãos que nunca esquecerei; a Diego Ciarlariello que fotografou o ensaio numa espécie de bailado; a Mirs Monstrengo por
partilhar a sua arte; a David Schumaker pela devota dedicação; a Branca de Oliveira que me ofereceu seu Atelier e seu conhecimento para realizar as gravuras em metal; a Serginho e Lu que chegaram
de surpresa e com a suavidade de quem sabe, ajudando no processo. Obrigada a Dri Hitomi, amiga que sempre me salva; a Gabriela Greeb pela conversa na figueira, a Chico Fransé que ofereceu da sua
casa-templo objetos que me apetecessem, a Henrique Lukas pela admiração e o desejo de ajudar, a Samantha Moreira pela realização desta exposição no Ateliê Aberto, e à Bolsa Funarte que possibilitou esta experiência. E um agradecimento especial à Figueira da Casa do Sol e a Hilda Hilst.
Esta obra foi selecionada pelo Edital Bolsa Funarte de Estímulo à
Produção em Artes Visuais 2012.

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