Memória, História e Gênero: Reflexões do Discurso Jurídico Sobre o

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Memória, História e Gênero: Reflexões do Discurso Jurídico Sobre o
Memória, História e Gênero: Reflexões do Discurso Jurídico Sobre o Feminino
SANTOS, Lorizete Maria Polita dos1
HENRIQUES, Maria José Rizzi2
RESUMO: Os estudos de gênero no Brasil apresentam sustentação epistemológicos das áreas
da sociologia, da psicologia, da antropologia, da história, da literatura – entre outras –
formando um considerável acervo sobre a condição das mulheres no Brasil em contextos
sociais e históricos definidos. Memória, imagem e gênero no presente artigo são considerados
em sua perspectiva histórica como categorias analíticas que demarcam o tempo e o espaço da
existência interativa de uma sociedade que forma indivíduos (suas identidades), produz bens
(culturais e de consumo) e textos sobre esse período (literários, filosóficos, políticos,
jurídicos, gravuras, pinturas, esculturas, por exemplo). Desse modo a forma de registro da
memória que diz respeito ao gênero indica a imagem ou representação da realidade e também,
a construção da forma e do conteúdo necessários para que a organização de uma sociedade se
torne operacional em sua funcionalidade. A leitura e análise dos arquivos da Coleção dos
Autos Criminais da Comarca de Toledo (1950 – 1970), acervo do Núcleo de Documentação e
Pesquisa da UNIOESTE - Campus de Toledo, juntamente com leitura de bibliografias
pertinentes ao tema em questão, proporcionou um levantamento e um aprofundamento teórico
sobre os tipos de violência cometidos contra as mulheres e algumas reflexões sobre a
construção da imagem dessa mulher violentada num determinado espaço e tempo histórico.
Considerando que a representação da imagem de algo ou de alguém está submetida aos
valores ideológicos já instituídos em uma sociedade já organizada, as conclusões obtidas até o
momento, ressaltam a imagem da mulher como indivíduo causador de sua própria violência,
remetendo assim, a questão para o âmbito da ideologia dominante.
PALAVRAS – CHAVE: memória, imagem e gênero.
ABSTRACT: Studies about gender in Brazil present epistemological support from areas of
sociology, psychology, anthropology, history of literature and, among others things, forming a
considerable collection about the female condition in Brazil in defined social and historical
contexts. Memory, image and gender in this paper are considered in their historical
perspective as analytical categories that delimit the time and space of interactive existence of
a society that forms individuals (their identities), produces goods (cultural and consumer
goods) and texts about this periods (literary, philosophical, political, juridical, engravings,
paintings, sculptures, for instance). In this way, the form of register of the memory that is
connected with the gender indicates the image or representation of the reality and, as well, the
construction of the form and of the content that are necessary so that the organization of a
society become operational in its functionality. Reading and analysis of the files of the
collection of Criminal Autos from Toledo, Paraná State, Brazil, (1950 – 1970), collection of
Department of Documentation and Research at Universidade do Oeste do Paraná
(UNIOESTE), Toledo Campus, with reading of bibliographies linked to theme in discussion
1
2
Pedagoga graduada na UNIOESTE – Campus Cascavel, ano 2004.
Professora da UNIOESTE – Campus Cascavel.
2
provided a survey and a theoretical profound study about the kinds of violence that are
committed against women and some reflections about the construction of the image of that
violated woman at a certain historical point and space. Considering that the representation of
the image of something or someone is undergone to ideological values that have already been
inserted into a organized society, the conclusions that were obtained up to now protrude the
female image as individual that motivates her own violence, what send the issue to the ambit
of the dominant ideology.
KEY WORDS: memory, image, gender.
INTRODUÇÃO
O fichamento do Catálogo da Coleção dos Autos Criminais da Comarca de Toledo
(1950 – 1970), acervo do Núcleo de Documentação, Informação e Pesquisa (NDP) da
UNIOESTE – Campus Toledo, determinou um aprofundamento teórico sobre a violência na
construção dos signos que determinam a consciência e as formas de sentir e agir humanas
num contexto específico do qual emergem particularidades, regularidades, sentidos e
significados presentes nos discursos aí emitidos.
As fontes primárias pesquisadas pertencem ao banco de dados gerado pela pesquisa
Violência, Gênero e Crime na Região de Toledo – Paraná (1952-2002) desenvolvida pela
Profª. Dra. Yonissa Marmit Wadi, coordenadora do NDP/CCHS e líder do Grupo de Pesquisa
Cultura, Relações de Gênero e Memória da Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
Campus de Toledo.
Os documetos localizados em inquéritos arquivados e processos criminais com
absolvição dos réus (1954-1980) são os que se encontram disponíveis no Núcleo de
Documentação, Informação e Pesquisa; os dados coletados dos processos de réus condenados
(1954-1980) e dos autos criminais (1981-2002-inquéritos e processos) encontram-se no
Fórum da Comarca de Toledo; os boletins de ocorrência (1952-2002) que pertencem à 20ª
Subdivisão Policial de Toledo estavam em fase de fichamento em junho de 2005 com
levantamento de dados ocorridos em 1952-1990 e 1995-2000 abrigados em banco de dados a
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ser utilizado no mapeamento da violência de gênero em Toledo e região.
No presente estudo nossos objetivos estiveram demarcados pela utilização dessas
fontes primárias como registro (suporte documental) em sua materialidade histórica tendo em
vista que em pesquisa não há dissociação entre produção do conhecimento histórico e
compreensão histórica da produção documental.
O conceito de gênero foi ao longo da história utilizado universalmente em sua
abstração para definir na cultura ocidental desempenhos, atribuições, funções, sustentados na
diferença sexual. Embora cultura, classe, raça, etnia e gênero abrangessem uma pluralidade de
homens e mulheres, diferenciados ainda mais em suas trajetórias particulares de vida, os
discursos dominantes propagaram e instituíram relações de poder entre os sexos, com
diretrizes que definiram os espaços público e privado para homens e mulheres que cercearam
a emancipação profissional, econômica, jurídica, política entre outros aspectos de mulheres.
Gênero, sem dúvida alguma, abrange a singularidade sexual, mas também, o
conjunto de condicionantes históricos, políticos e sociais que produzem a transformação dessa
singularidade em construção ideológica volitiva, cognitiva, afetiva, emocional que determina
genericamente a ação das mulheres no mundo em que vivem.
A renovação do modo de produção capitalista em âmbito mundial, a partir da década
de 60 do século passado, produziu um amplo movimento de emancipação das mulheres, que
propiciou inúmeras estratégias de resistência.
Recuperar a memória histórica de gênero pelo registro de fontes primárias faz parte
dessas estratégias na medida que esclarecem a imagem ou representação da realidade sobre
mulheres, sua operacionalidade e funcionalidade existentes em um tempo e espaço
específicos.
MEMÓRIA E HISTÓRIA
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Nos últimos anos as questões que permeiam a memória ganharam atenção especial,
pois os problemas encontrados no que tange a conservação da memória histórica é muito
amplo e vasto. “ A memória, pois, tanto como prática, como representação, está viva e atuante
entre nós. Isso, porém, não significa estabilidade nem mesmo situação de equilíbrio e
tranqüilidade.” (MENESES. In: SILVA, 1999, P.13).
Meneses em seu artigo A Crise da Memória, História e Documento: reflexões para
um tempo de transformações analisa a crise pela qual passa a memória salientando cinco
dimensões relevantes que colaboram no seu entendimento: 1) a dimensão epistemológica,
preocupa-se com a própria noção de passado e com as relações tecidas com ele; 2) a dimensão
técnica, que diz respeito ao processo progressivo de conhecer e manifestar a memória; 3) a
dimensão existencial, que se refere às práticas sociais e que permeia as funções e a eficácia da
memória; 4) dimensão política, que trata das pressões de amnésia que vigoram em todas as
esferas das sociedades capitalistas; e 5) a dimensão socioeconômica, que enfoca a economia
da informação e suas variações na interferência no campo da memória. (MENESES. In:
SILVA, 1999. p. 13 – 21).
Essas dimensões abordadas por Meneses contribuem para a compreensão do
problema da memória como documentação histórica. Pois, memória representa a identidade
individual, coletiva e nacional, numa operação ideológica, enquanto que, História representa a
forma intelectual do conhecimento, em sua operacionalidade cognitiva.
“De todo o exposto, até aqui, evidencia-se como imprópria qualquer
coincidência entre memória e História. A memória, como construção social,
é formação de imagem necessária para os processos de constituição e
reforço da identidade individual, coletiva e nacional. não se confunde com a
História, que é forma intelectual de conhecimento, operação cognitiva. A
memória, ao invés, é operação ideológica, processo psíquico-social de
representação de si próprio, que reorganiza simbolicamente o universo das
pessoas, das coisas, imagens e relações, pelas legitimações que produz. A
memória fornece quadros de orientação, de assimilação do novo, códigos
para classificação e para intercâmbio social. Nessa perspectiva, o estudo da
memória ganharia muito se fosse conduzido no domínio das representações
sociais”. (Meneses,1992,p.22).
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Então, a História tem a memória como objeto de estudo e, por isso, registra o que
emana dela. Sendo assim, a preocupação com a totalidade dos acontecimentos deve estar
presente, caso contrário, corre-se o risco de registrar somente aquilo que convém a uma
determinada classe social e/ou à ideologia dominante.
A preocupação em conservar a memória se dá, especialmente numa sociedade de
desenvolvimento econômico periférico como a nossa, pela necessidade da utilização dos
recursos e técnicas da informática em todos os níveis, notadamente na veiculação de novas
formas de transmissão e circulação do conhecimento. Se por um lado ganha-se rapidez no
processo e na transmissão da comunicação, por outro, são utilizadas práticas e representações
abreviadas dos acontecimentos.
A memória possui laços estreitos com a história da mulher na coleta de dados, nas
informações sobre o contexto e no desvelamento das condições em que as mulheres lutam por
seus direitos. É com o diálogo do campo da memória e do campo da história que é possível ao
historiador, entrecruzando passado e presente, traçar um panorama significativo em torno das
questões que determinaram a construção dos sujeitos históricos sociais.
A relação interfática historiografia e filosofia da linguagem fundamenta-se em
Mikhail Bakhtin na compreensão da linguagem na formação ideológica dos indivíduos
histórico-sociais, considerando-se que os signos ideológicos produzem enunciados que
refletem e refratam a realidade (BAKHTIN,1999), promovendo assim, no devir histórico a
manutenção e sustentação de padrões estabelecidos ou a censura e reprovação daquilo ou
daquele que subverte a ordem .
No campo semiótico estabelece-se o discurso da violência, seja nos interesses
ideológicos antagônicos de classes ou na forma ideológica de uma classe social, que forja
enunciados articuladores de um processo de conhecimento, de uma visão de mundo, de uma
consciência social, de uma identidade expressa nos sentidos e significados dos signos
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contidos no circuito da comunicação e que organiza a vida social em pares recíprocos sob o
corolário
da
diferença:
homem/mulher,
pureza/impureza,
natural/desnaturado,
ordem/desordem do mundo.
Para uma melhor compreensão do significado da palavra violência é necessário citar
Bakhtin quando postula:
“... a palavra é a arena onde se confrontam valores sociais contraditórios; os
conflitos da língua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do
sistema: comunidade semiótica e classe social não se recobrem. A
comunicação verbal, inseparável das outras formas de comunicação, implica
conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à
hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu
poder, etc.” (BAKHTIN, 2002, p. 14).
Ou seja, para Bakhtin, a palavra não é neutra, mas viva e é resultado de um processo
de interação na realidade viva. (BRAIT, 2005, p.178).
A polissemia da palavra violência indica: qualidade de violento, ato violento, o ato
de violentar e, no seu referente jurídico, o constrangimento físico ou moral, o uso da força, a
coação. Nota-se a ênfase naquilo que denota ação de alguém para com outro. Talvez seja esse
o motivo de ao ouvir a palavra violência a primeira lembrança seja aquela que expressa
agressão para logo em seguida lembrar punição. Seria intrínsico ao conceito de violência a
relação crime/castigo?
Segundo Bakhtin, “ a classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um
caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos
índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente”(BAKHTIN,
2002, pg.47).
Seria então o significado da palavra violência construído historicamente de acordo
com os interesses da classe dominante em cadeia sígnica de discursos monológicos?
O caráter polissêmico da palavra indica que é possível várias produções de sentido.
Os estudos na área enfatizam que a violência sujeita a penalidade jurídica é apenas uma das
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faces desse fenômeno, existindo vários desdobramentos nesse aspecto, a violência
institucional, a política, a revolucionária e a social que abarca todas as outras
(ODALIA,1985). Essas diferentes manifestações são encontrados nos discursos e nos
enunciados expressos nos autos, aqui adotados como fontes primárias, demonstrando a
construção da violência como signo ideológico possibilitando, assim, o seu estudo pela teoria
de Bakhtin.
A violência instituída pelo modo de produção capitalista tem característica estrutural,
a sociedade está cindida em classes apresentando, de um lado, uma classe que detêm o
processo de produção e que usufrue dos bens de consumo e, de outro, aquela que vive em
diferentes níveis de pobreza e de marginalização sobrevivendo do contrabando de armas e de
drogas, originando assim, o mundo da contravenção tido como subvertido, desordenado e
desordenador.
As diversas classes sociais, características das sociedades capitalistas, não estão
isentas de violência porque a sua capilaridade atravessa todos os poros sociais se fazendo
presente na luta do Movimento Sem Terra pela terra, nas relações familiares, nos meninos de
rua, na prostituição e trabalho infantil, no trabalho escravo adulto e nas relações homem e
mulher.
A forma estrutural instituída da violência ocorre pela instauração da sociedade
capitalista, quando transforma todas as relações sócio-históricas em mercadoria. À medida
que esta transformação acontece, os valores humanos ético-morais descaracterizam-se,
subjugando-se a ótica capitalista.
MEMÓRIA, HISTÓRIA E GÊNERO
Ainda que o liberalismo econômico das democracias capitalistas funcionalmente
orientado para a lógica do mercado apresente a Declaração Universal dos Direitos Humanos
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de 1984 como um divisor de águas, a conquista dos direitos das mulheres não ocorreu sob
esse discurso. Foi necessário que as mulheres se incluíssem nesses direitos afirmando a
equivalência de gênero.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin descreve a enunciação “como
sendo de natureza constitutivamente social, histórica e que, por isso, liga-se a enunciações
anteriores e a enunciações posteriores, produzindo e fazendo circular discursos” (BRAIT. In:
BRAIT, 2005,p.68).
Para Beth Brait as obras de Bakhtin (Marxismo e Filosofia da Linguagem, Questões
de Literatura e Estética: a teoria do romance e Estética da Criação Verbal) apresentam o
enunciado como ligado ao discurso verbalizado, ao evento e a palavra; todo processo de
interação da comunicação é enunciativo discursivo. Todo enunciado apresenta condições
como os interlocutores, o horizonte espacial comum a eles, o conhecimento, a compreensão e
a avaliação comum que esses interlocutores tem sobre o evento. (BAKHTIN, 1976,p.5).
Esses aspectos fazem parte da situação extraverbal do enunciado e o tornam um
enunciado concreto, isto é, aquele que integra o aspecto verbal, o não–verbal, a situação e o
contexto histórico para promover a significação. “Consequentemente, um enunciado concreto
como um todo significativo compreende duas partes: (1) a parte percebida ou realizada em
palavras e (2) a parte presumida (...) (BAKHTIN, 1976, p.6).
Os enunciados concretos estão interligados ao contexto extraverbal da vida, na
enunciação, pois ele tem sua origem no próprio processo que ocorre na interação social entre
os sujeitos que participam da enunciação: o lugar do sujeito, a sua situação discursiva, a
circulação dos discursos e o dialogismo entre discursos que são histórico–sociais.
Os estudos realizados até o momento indicam que a coação sexual esteve amparada
pela visão de mundo machista e pratriarcalista, em tonalidade ambígua que transita entre os
preceitos religiosos dominantes (judaico-cristão) existente desde a colonização do Brasil e o
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código de virilidade que brota em condições de liberdade sexual e promiscuidade.
Dos casos analisados existem dois que parecem validar essa condição sócio-histórica,
o Padre que na prática sexual com sua empregada dizia “estar sob o domínio do demônio” e o
pai que na prática sexual com sua filha citava a Bíblia justificando seu ato, pois, “era seu pai e
Ló fez o mesmo com suas filhas, então, mulher era para isso mesmo”.
A violência, nos casos analisados, é de ameaça física e assédio sexual não havendo
indícios de comportamento persuasivo, afetivo, de aliciamento amoroso; ela está circunscrita
ao mundo privado, naturalizado por relações hierárquicas de poder do homem sobre a mulher.
Nos casos estudados o assédio depõe a favor de uma tradição cultural da virilidade
do macho dominante, com descaso para com a vítima em relação a transmissão de doenças, à
possibilidade de ocorrência de problemas ginecológicos, à uma gravidez indesejada, à
exposição moral e à indução a comportamentos prejudiciais à sua saúde (sexo inseguro,
prostituição, abuso alcoólico, etc.).
As conseqüências da violência para a saúde mental da vítima são referências que
surgem só a partir da década de 80 do século passado com o aparecimento de grupos
feministas, entre eles, o SOS–Mulher que fornecia atendimento psicológico, social e jurídico
às mulheres. A atuação do movimento feminista paulista colabora para a criação do Conselho
Estadual da Condição Feminina no estado de São Paulo em 1983 e para a criação da primeira
Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher em 1985 (Decreto Nº 23.769/85)3.
O Relatório 2001 da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos discorre sobre as
alterações de competência, de atribuições das Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher, as
alterações da administração da justiça criminal, os problemas encontrados nos Juizados
Especiais Criminais, a ocupação de cargos por gênero, a desigualdade da distibuição dessas
3
O Decreto Nº 23.769/85 que criou a primeira delegacia da mulher na Secretaria de Segurança Pública de São
Paulo, estabeleceu a competência dessa delegacia especializada para investigar e apurar, entre outros, delitos
de lesão corporal, ameaça, constrangimento ilegal, atentado violento ao pudor, adultério, etc.
(http://www.social.org.br/relatorio2001/relatorio/023.htm).
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delegacias no estado, a permanência da impunidade do agressor entre outros aspectos.
O discurso jurídico sobre a violência contra a mulher apresenta todas essas
condições, instituíndo-se nele o dialogismo passado/presente e cultura/história.
ENUNCIADO E ENUNCIAÇÃO
Na análise da violência contra a mulher as vítimas se caracterizaram como menores
de idade, de classe com baixo rendimento econômico. São empregadas domésticas,
trabalhadoras temporárias, filhas de agricultores, filhas de funcionários de fábricas de
cerâmicas, analfabetas em sua maioria.
A caracterização do agressor é de homens maiores de idade, da mesma classe social
das vítimas, em sua maioria com escolaridade de ensino fundamental (1ª a 4ª séries), contando
contudo com indivíduos analfabetos. Os agressores se distribuem em uma extensa faixa de
atividade de trabalho semi-qualificado: agricultores, peões de fazenda, trabalhadores de
cerâmica, olarias, entre outras.
Não havia no período mediações para tornar visível a violência contra a mulher e
sequer organismos instituídos com o objetivo de fornecer amparo à vítima em relação a
possibilidade de disfunção sexual, ansiedade, stress pós-traumático, depressão e demais
transtornos psiquiátricos.
A sujeição da mulher surge em enunciados masculinos de ironia, deboche, nomes
pejorativos, palavrões, xingamentos, sem no entanto aferir práticas sexuais alternativas,
denominadas “anormais”(sexo oral, sexo anal, mútua masturbação).
Os enunciados concretos indicam o desconhecimento dos direitos da vítima, a
impunibilidade dos réus, a minimização do problema, o descaso com a vítima, a efetivação de
acordos entre as partes com a retirada da queixa e a revitimização da vítima atribuindo-lhe
responsabilidade ou culpa da violência sofrida.
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A representação da mulher é de um objeto que não merece proteção real e que não
tem direitos iguais aos homens, predominando a imagem ideológica patriarcal de que a
mulher deve estar submissa ao desejo sexual masculino.
Na enunciação revela-se o exercício do poder masculino através da violência
amparado pela cultura machista, pelo patriarcalismo, a deficiência dos meios legais de
proteção as vítimas e a discriminalização da mulher.
Nega-se na inferioridade feminina a sua fragilidade, pois se assim fosse seria
merecedora de proteção; nega-se a periculosidade das mulheres em seu potencial ofensivo,
pois se assim fossem seriam consideradas iguais aos homens; afirma-se o seu valor sexual
comprovado pela impunibilidade dos réus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A voz da vítima, presente no seu relato na interação comunicativa entre réu-vítimadelito, na concepção de Bakhtin, é o sujeito social, histórico que se constrói na linguagem
pelo outro; na interação, a compreensão ativa e responsiva dos interlocutores produz
significação através dos signos (ideológicos).
No dialogismo discursivo, a voz da vítima não é polêmica, não propicia a existência
de outras vozes; secundarizada, ironizada e inferiorizada, o dialogismo se mascara para
produzir uma só voz masculina, em discurso aparentemente monofônico, reprodutor
ideológico do contexto imediato.
A mulher que sofreu a violência forja nessas condições sócio-históricas a
consciência dada pelo outro, de sua impotência e inferioridade historicamente compartilhada
pela não solução de conflitos, da não equivalência de seus direitos, de sua representação na
imagem do corpo, da sua primordial função, de exclusiva satisfação sexual masculina,
independente das barreiras impostas por laços de parentesco, morais, éticos e religiosos.
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