Expiação, Justificação e Apostasia no Pensamento de John Wesley

Transcrição

Expiação, Justificação e Apostasia no Pensamento de John Wesley
Expiação, Justificação e Apostasia
no Pensamento de John Wesley
J. Matthew Pinson
INTRODUÇÃO
Os Batistas Livres1 devem muito a John Wesley pela sua dedicação a Cristo e por ter
difundido uma mentalidade de Reino dentro da igreja e na sociedade. Somos
também herdeiros de uma gloriosa tradição de exposição das Escrituras que evita o
calvinismo predestinatário que era forte nos dias de Wesley e está novamente
ressurgindo em nossos dias. Charles Wesley, irmão de John, representa uma bela
tradição de hinos com teologia arminiana abrangente. Se for verdade que as pessoas
aprendem a sua teologia pelos hinos, faríamos bem em cantar os hinos de Charles
Wesley.2
Apesar das afinidades que temos com John Wesley, os Batistas Livres divergem
seriamente de Wesley e a tradição wesleyana em alguns pontos importantes com
relação à salvação e à vida cristã. Isto é porque somos arminianos pré-wesleyanos.
Nosso arminianismo se remete à teologia de Thomas Helwys (1.560—1.609).3 Esta
corrente
de
arminianismo
pré-wesleyana
mantém
muito
da
teologia
e
espiritualidade Reformada que o movimento wesleyano posterior descartaria. Como
já disse em outro lugar, enquanto Arminius “se desviou do calvinismo quanto à
questão de como se passa a estar em estado de graça (predestinação, livre arbítrio e
graça), ele manteve as categorias reformadas do significado do pecado e da
redenção”.4 O mesmo pode ser dito de sua visão, e a de Helwys, quanto à
santificação e à espiritualidade cristã, apesar de Helwys enfatizar o batismo de
discípulos e a importância da conversão cristã mais do que Arminius.
1
NDT: Free Will Baptists (em inglês) ou Batistas do Livre Arbítrio.
Como veremos neste ensaio, muitas vezes existe uma tensão no pensamento wesleyano inicial entre um
arminianismo mais orientado pela graça e uma abordagem mais semipelagiana, mas no final John Wesley se decide por
uma teologia mais semipelagiana ao invés da orientação mais voltada à graça que Arminius e Helwys representam. No
entanto, os hinos de Charles Wesley enfatizam uma orientação mais voltada à graça e geralmente mais palatável ao
arminianismo mais clássico, da Reforma.
3
Veja “Sin and Redemption in the Theology of John Smyth and Thomas Helwys” (Pecado e Redenção na Teologia de
John Smyth e Thomas Helwys – apresentado no Simpósio Teológico Batista Livre, outubro de 2004) de J. Matthew
Pinson e o ensaio “Que o Verdadeiro Arminius se Apresente”
(http://www.globaltrainingresources.net/resource_view.php?title=Que+o+Verdadeiro+Arminius+se+Apresente&resourceID=97).
4
J. Matthew Pinson, “Introdução”, em J. Matthew Pinson, editor, Four Views on Eternal Security (Quatro Posições
Quanto à Segurança Eterna – Grand Rapids, Zondervan, 2002), p. 14-15.
2
2
Em nossa visão da santificação e da espiritualidade cristã, por exemplo, os Batistas
Livres tipicamente se simpatizam mais com a piedade puritana prática e bondosa
como a de John Bunyan do que a orientada para a espiritualidade de crise e de vida
mais elevada dos wesleyanos. O movimento wesleyano tem enfatizado uma
segunda obra de graça e a perfeição cristã, o que têm evitado os que não são
wesleyanos. No entanto, estas posições estão em harmonia com outras crenças
wesleyanas sobre a salvação que este ensaio irá explorar. Na visão wesleyana
tradicional, Cristo não pagou a penalidade pelos pecados, mas somente perdoou
pecadores como um governador perdoa um criminoso culpado, ou então, ele pagou
a penalidade somente pelos pecados passados e não por pecados de forma geral. Se
isto estiver correto e se a justiça de Cristo não é “imputada a todos os crentes para
sua aceitação eterna diante de Deus”,5 então faz sentido não termos certeza da
salvação até que obtenhamos um estado de inteira santificação ou perfeição e de que
precisamos ser “re-justificados” toda vez que pecamos. Batistas Livres divergem de
doutrinas como estas.6
Um entendimento completo da soteriologia de Wesley ajudará a desenvolver um
entendimento bíblico mais claro, como também de um entendimento salvífico
histórico dos Batistas Livres. Este ensaio fará isto ao examinar os pontos de vista de
Wesley quanto à expiação, justificação e à apostasia com uma atenção especial ao
contexto histórico de seu pensamento.
O entendimento de Wesley quanto à expiação e à justificação e as implicações destas
doutrinas para a sua visão de continuação na vida cristã são indicativos da natureza
eclética de sua teologia. Estudiosos modernos têm tentado colocar Wesley
firmemente dentro de uma de várias correntes da tradição teológica cristã. Isto
resultou em designações tais como: “o calvinista Wesley”, “o anglicano Wesley” e “o
católico Wesley”. No entanto, tais classificações deixam de compreender as
complexidades da teologia de Wesley e a diversidade de influências sofridas por ele
5
Esta frase é de 1812 Abstract (Abstrato de 1.812), que diz: “Nós cremos que nenhum homem tem mérito diante de Deus
através de suas próprias obras, poder ou capacidade que tenha em si mesmo, mas somente pela graça é capaz de se aproximar de
Deus, através de Jesus Cristo; crendo que a justiça de Jesus Cristo é imputada a todos os crentes para sua aceitação eterna diante
de Deus”. O 1812 Abstract é a confissão de fé mais antiga dos Southern Free Will Baptists, que foi extraída da 1660
Standard Confession of the English General Baptists (Confissão Padrão de 1.660 dos Batistas Gerais ingleses), que os
primeiros Southern Free Will Baptists trouxeram consigo da Inglaterra. Foi reimpresso em A Free Will Baptist
Handbook: Heritage, Beliefs, and Ministries (“Um Manual Batista Livre: Herança, Crenças e Ministérios” – Nashville,
Randall House, 1998), p . 142-47.
6
Para um tratamento atual desta perspectiva, veja F. Leroy Forlines, The Quest for Truth (“A Busca Pela Verdade” –
Nashville, Randall House, 2000); Robert E. Picirilli, Grace, Faith, Free Will: Contrasting Views of Salvation: Calvinism and
Arminianism (Graça, Fé e Livre Arbítrio: Visões Contrastantes: Calvinismo e Arminianismo – Nashville, Randall House,
2002); Stephen M. Ashby, “Reformed Arminianism” (Arminianismo da Reforma), e em J. Matthew Pinson, editor, Four
Views on Eternal Security (Quatro Posições Quanto à Segurança Eterna – Grand Rapids, Zondervan, 2002).
3
no seu desenvolvimento intelectual.
Ao se examinar as doutrinas de expiação e justificação de Wesley e as ramificações
destes conceitos para a sua visão da perseverança na vida cristã, se reconhece que
Wesley não pode ser bem encaixado em nenhum molde em particular. Pelo
contrário, a teologia de Wesley será vista como uma mistura simbiótica de diversos
elementos de suas origens que o ajudaram a formar sua perspectiva teológica. Tal
estudo deve começar com uma discussão das perspectivas da teologia de Wesley na
erudição moderna7 e prosseguir à consideração das várias pessoas e escolas de
pensamento que influenciaram a teologia de Wesley. Depois de estabelecido este
pano de fundo, será feita uma análise de seu ponto de vista sobre expiação,
justificação e continuidade na vida cristã.
INTERPRETAÇÕES DAS INFLUÊNCIAS INTELECTUAIS DE WESLEY
Os estudos do século vinte sobre Wesley têm produzido opiniões discrepantes sobre
o seu lugar na tradição cristã. Quatro principais escolas de pensamento têm surgido
destes estudos: uma focaliza os elementos católicos da teologia de Wesley, a
segunda salienta o seu tom calvinista ou “da Reforma”, enquanto que uma terceira o
enfatiza como anglicano. A quarta escola consiste de estudiosos que têm
reconhecido o ecletismo da teologia de Wesley.
O “Wesley calvinista”
Alguns estudiosos enfatizam o quanto Wesley é devedor à teologia e à tradição
reformada tal qual mediada pela Igreja Anglicana. Estes estudiosos têm
caracterizado Wesley como “o Wesley calvinista”, enfatizando sua afirmação de que
estava “a um fio do calvinismo”. George Croft Cell foi o primeiro estudioso do
século vinte a dar esta interpretação de Wesley. Cell argumentou que apesar da
divergência que Wesley tinha com Calvino quanto à doutrina da predestinação, ele
estava em completo acordo com Calvino quanto ao pecado original e à justificação.8
Como Wesley enfatizou a prioridade da graça de Deus contra o antropocentrismo
pelagiano, Cell incluiu Wesley no campo reformado. Portanto, ele salienta as
semelhanças e não as diferenças entre Wesley e Lutero, Calvino e os outros
7
Esta discussão historiográfica inicial irá expor os entendimentos gerais sobre onde Wesley se encaixa na tradição
crista. A análise historiográfica com relação específica às doutrinas de Wesley de justificação e a natureza da expiação
serão reservadas para a seção do ensaio que trata dessas doutrinas.
8
George Croft Cell, The Rediscovery of John Wesley (New York: University Press of America, 1983. 1a edição, 1935),
19.
4
Reformadores Magistrais.9 Muitos estudiosos posteriores, como William R. Cannon,
Martin Schmidt e Colin W. Williams, têm seguido Cell ao enfatizar a dependência
de Wesley à teologia reformada e menosprezado as diferenças que ele tinha com
Lutero, Calvino e os Puritanos ingleses quanto à expiação e a justificação.10
O “Wesley católico”
Ironicamente, a pessoa que abriu os estudos sobre Wesley para novas considerações
sobre seu lugar na tradição cristã foi o estudioso católico, Maximin Piette, cuja obra
revisionista influente, John Wesley in the Evolution of Protestantism (John Wesley na
Evolução do Protestantismo), quebrou a visão anterior dele como anticatólico. Piette
enfatizou o quanto Wesley se beneficiou da tradição católica tanto pelo seu apreço
pela teologia patrística quanto pelo seu uso da tradição católica mediada pela Igreja
Anglicana.11 O entendimento básico de Piette do “Wesley católico” tem sido
compartilhado por estudiosos como Jean Orcibal.12 Estes estudiosos tendem a dar
pouca ênfase à experiência de Wesley em Aldersgate – tema salientado pelos
defensores do “Wesley calvinista”. Também diminuem a influência que os
reformadores tiveram sobre Wesley quanto às doutrinas da graça, justificação e a
natureza da expiação.13
O “Wesley Anglicano”
Alguns estudiosos afirmam que a orientação teológica de Wesley se deve
principalmente à sua herança anglicana.14 Estudiosos como C. F. Allison, Richard P.
Heitzenrater, John English e David Eaton apontam para a influência do
arminianismo anglicano do século dezessete absorvida pelos pais de Wesley. Estes
autores também enfatizam as leituras que Wesley fazia de Jeremy Taylor e outros
representantes da “Holy Living School” (Escola de Vida Santa) anglicana.15 H. R.
9
Idem, 243-45.
William R. Cannon, The Theology of John Wesley, with Special Reference to the Doctrine of Justification (New York:
Abingdon, 1946); Martin Schmidt, John Wesley: A Theological Biography, 3 vols. (Nashville: Abingdon, 1972-73. 1a
edição alemã, 1967); Colin W. Williams, John Wesley’s Theology Today (New York: Abingdon, 1960).
11
Maximin Piette, John Wesley in the Evolution of Protestantism (London: Sheed and Ward, 1937). Apesar de esta obra
ter sido publicada em 1925, ainda tem o seu lugar nesta discussão e muitos estudiosos da teologia de Wesley ainda
fazem referência a ela.
12
Jean Orcibal, “The Theological Originality of John Wesley and Continental Spirituality,” trans. J. A. Sharp. In A History
of the Methodist Church in Great Britain, vol. 1, eds. Rupert Davies and Gordon Rupp (London: Epworth, 1965), 102-10.
13
Veja também U. Lee, John Wesley and Modern Religion (New York, 1936).
14
O termo “anglicano” neste ensaio, enquanto anacrônico, é empregado por razões de conveniência. É usado aqui para
falar da ala não-Puritana da Igreja da Inglaterra no século dezessete.
15
C. F. Allison, The Rise of Moralism: The Proclamation of the Gospel from Hooker to Baxter (New York: Seabury, 1966);
Richard P. Heitzenrater, “John Wesley and the Oxford Methodists, 1725-1735” (Ph.D. diss., Duke University, 1972); John
C. English, The Heart Renewed: John Wesley’s Doctrine of Christian Initiation (Macon, GA: Wesleyan College, 1967);
David E. Eaton, “Arminianism in the Theology of John Wesley” (Ph.D. diss., Drew University, 1988).
10
5
McAdoo caracteriza a teologia de Wesley como anglicana em “espírito”, ou método,
em vez de em seu conteúdo.16
O “Wesley eclético”
David Hempton é representativo de uma abordagem das influências intelectuais
sobre Wesley que enfatiza a sua natureza eclética. Ele comenta que Wesley foi
influenciado por
uma gama desconcertante de tradições cristãs: os pais da igreja,
piedade monástica e antigas liturgias; místicos continentais como
Jeanne-Marie Guyon (...); tradições byzantinas de espiritualidade
através de Macarius e Gregório de Nissa; teólogos puritanos ingleses
e escoceses; os Morávios e outros canais de pietismo europeu; sua
mãe e, através dela, a Pascal; clássicos da espiritualidade devocional,
incluindo Tomás à Kempis, Jeremy Taylor e William Law e o cânon
de escritores anglicanos de Hooker aos High Churchmen dos séculos
dezessete e dezoito. Escritores de cada uma destas tradições têm a
tendência de reivindicar a influência mais importante sobre Wesley,
mas a verdade é que o que se destaca mais é o próprio ecletismo de
Wesley.17
Albert Outler, apesar de ser classificado como pertencente à escola de “Wesley como
calvinista”, é o que chegou mais perto de reconhecer a natureza eclética da teologia
de Wesley. Portanto, ele fala de Wesley como um “teólogo popular” cujos objetivos
pastorais e homiléticos, juntamente com suas diversas influências, moldaram de
forma ímpar os seus pontos de vista teológicos. Apesar desta caracterização, no
entanto, Outler tende a colocar grande ênfase nas tributárias reformadas (sobretudo
no âmbito da Igreja da Inglaterra) que desaguam no rio Wesleyano.18
As três primeiras abordagens à teologia de Wesley não são satisfatórias, pois dão
uma ênfase exagerada a uma corrente da diversidade de influências no pensamento
do mesmo. Estas perspectivas empregam um método sincrônico de entendimento
da teologia de Wesley que o obrigariam a escolher entre polaridades da sua
experiência teológica. Somente as abordagens diacrônicas ou simbióticas de
16
Henry R. McAdoo, The Spirit of Anglicanism: A Survey of Anglican Theological Method in the Seventeenth Century
(New York: Charles Scribner’s Sons, 1965), 1.
17
David Hempton, Methodism: Empire of the Spirit (New Haven, CT: Yale University Press, 2005), 714.
18
Albert C. Outler, “The Place of Wesley in the Christian Tradition,” in The Place of Wesley in the Christian Tradition, ed.
Kenneth E. Rowe (Metuchen, NJ: Scarecrow, 1976), 11- 38.
6
Hempton e Outler, que entendem que Wesley absorveu e sintetizou várias
influências de um espectro de expressões teológicas em seu desenvolvimento
intelectual, são adequadas para explicar a singularidade da sua teologia. Esta
abordagem se confirma quando se examina as doutrinas de Wesley de justificação,
natureza da expiação e continuidade da vida cristã, como será demonstrado ao
longo deste ensaio.
AS INFLUÊNCIAS INTELECTUAIS SOBRE WESLEY
Wesley não escolheu seletivamente entre as expressões teológicas reformada e
arminiana
anglicana
destas
doutrinas.
Parece
que
ele
(aparentemente
inconscientemente) absorveu motivos centrais das duas tradições e os amalgamou
em uma teologia ímpar que difere substancialmente dos dois sistemas. Só se podem
compreender as doutrinas de Wesley de justificação, expiação e continuidade na
vida cristã quando se entende as influências intelectuais variadas no seu
pensamento no contexto do seu desenvolvimento intelectual.
Arminianismo anglicano
Das duas influências mais significativas e amplas na teologia de Wesley, a Reforma
e o arminianismo anglicano, este último é o mais básico. A influência mais formativa
foi a dos pais, que estavam mergulhados no arminianismo anglicano. Tanto Samuel
como Susanna Wesley haviam se convertido ao anglicanismo vindo do nãoconformismo e reagido veementemente contra suas origens. A sua resistência ao
predestinarismo de sua criação precipitou uma aceitação vigorosa do arminianismo
anglicano do século dezessete.19 Samuel Wesley deu crédito pela sua decisão de se
converter ao anglicanismo à obra Primitive Christianity (Cristianismo Primitivo), de
William Cave, na qual Cave procura demonstrar a coerência entre o arminianismo
anglicano e a teologia patrística.20 Os pais de Wesley o imergiram no arminianismo
anglicano, como fica evidenciado por várias cartas e discussões entre ele e seus pais.
Seu pai havia recomendado Hugo Grotius como o melhor comentário bíblico que
conhecia e Susanna Wesley o encorajou a ler Jeremy Taylor.21 A criação arminiana
anglicana de Wesley foi confirmada ao entrar em contato com as obras do mais
ilustre escritor arminiano. Wesley começou a ler Jeremy Taylor em 1.725 e falou da
19
Adam Clarke, Memoirs of the Wesley Family Collected Principally from Original Documents, 2a edição (New
York: Lane and Tippett, 1848), 89.
20
Schmidt, vol. 1, part 1, 44.
21
Richard P. Heitzenrater, The Elusive Mr. Wesley (Nashville: Abingdon, 1984), vol. 2, 23.
7
inestimável influência que teve sobre ele. De fato, pode-se dizer que Taylor foi o
veículo pelo qual Wesley foi apresentado ao arminianismo anglicano do século
dezessete.22 Além de Taylor, Wesley também foi fortemente influenciado pelas obras
de William Law, Christian Perfection (A Perfeição Cristã) e A Serious Call to a Devout
and Holy Life (Uma Chamada Séria à Vida Santa e Devota), como também as obras
de Tomás à Kempis.23 O círculo de Wesley em Oxford estava saturado de fontes
arminianas, tanto holandesas quanto inglesas.24 Por exemplo, o amigo íntimo de
Wesley em Oxford, Benjamin Ingham, registrou onze leituras distintas de Hugo
Grotius em seu diário no ano de 1.733.25
Antes de sua conexão com os Morávios, a influência principal que Wesley sofreu foi
dos arminianos anglicanos. Como argumenta persuasivamente C. F. Allison, o
arminianismo anglicano do século dezessete estava completamente imbuído de
moralismo, fugindo da ênfase sola fide da Reforma. Esta perspectiva salientava o
exemplo ético de Cristo na expiação, negligenciava os aspectos judiciais da expiação
e tinha uma tendência ao semipelagianismo em sua doutrina de justificação e da
relação entre fé e obras e as resultantes doutrinas da santificação e da vida cristã.26
Teologia Reformada
Os arminianos anglicanos do século dezessete tiveram grande influência sobre a
teologia de Wesley. No entanto, a teologia reformada mediada pelos Morávios, o
anglicanismo reformado de pensadores como Thomas Cranmer e as leituras dos
reformadores continentais também o influenciaram. Existe um desacordo acadêmico
sobre a natureza e a extensão da influência dos reformadores sobre o pensamento de
Wesley. G. C. Cell, Colin Williams e outros apresentam Wesley como herdeiro dos
reformadores continentais. No entanto, Outler afirma que é “enganador” dizer que
Wesley tinha uma “dívida de consciência” para com Lutero e Calvino e que ficaria
“atônito” com a avaliação que Cell e Williams fizeram dele.27 Uma parte deste
debate surge devido ao problema na identificação das influências sobre Wesley, já
que raramente documentava suas fontes.
22
John Wesley, The Works of John Wesley, editado por Thomas Jackson, 14 volumes (Londres: Wesley Methodist Book
Room, 1872; reimpresso Grand Rapids: Baker, 1986), XI, 366; John Deschner, Wesley’s Christology: An Interpretation
(Dallas: Southern Methodist press, 1960, 1985), 197.
23
Albert C. Outler, ed., John Wesley (New York: Oxford University Press, 1964), 7.
24
Eaton, 255-70.
25
Veja Richard P. Heitzenrater, ed., Diary of an Oxford Methodist: Benjamin Ingham, 1733- 34 (Durham: Duke University
Press, 1985).
26
Veja Allison, 65-70.
27
Outler, ed., John Wesley, 119-20.
8
Apesar de ser difícil avaliar o grau em que Wesley foi influenciado pelos
reformadores continentais, a sua absorção de certos aspectos da teologia reformada
através dos morávios, dos padrões doutrinários da Igreja da Inglaterra e de Thomas
Cranmer não deixa dúvidas.28 Outler afirma que as investigações das Homilias da
Igreja da Inglaterra durante sua controvérsia com os Morávios “marcou o estágio
final da maturação de Wesley como teólogo (...). Enfim, com sua conversão
‘moraviana’ em Aldersgate, seguido pelo seu desencanto com o moravianismo na
Alemanha e Fetter Lane, seu encontro com Edwards e a reapropriação vital de sua
herança anglicana – a moldura da teologia de Wesley estava finalmente pronta e
subsequentemente assim permaneceria”.29
John Goodwin e Richard Baxter
Além do arminianismo anglicano do século dezessete e do pensamento reformado,
Wesley foi grandemente influenciado por dois teólogos que não eram anglicanos: os
Independentes, John Goodwin e Richard Baxter. Há muitas citações favoráveis de
Goodwin e Baxter nos escritos de Wesley. Em 1.745 ele reimprimiu um resumo da
obra de Baxter, Aphorisms of Justification (Aforismos da Justificação), originalmente
publicado em 1.649. O Predestination Calmly Considered (A Predestinação Considerada
com Calma) tem muita semelhança com os números XIX-XLV de Aphorisms, de
Baxter, e a doutrina de justificação de Wesley revela a influência desse teólogo.30
Apesar das muitas referências positivas a Goodwin nas obras de Wesley e a
reimpressão por ele de Imputatio Fidei, or A Treatise of Justification (1.642), de
Goodwin, os estudiosos não consideram a influência de Goodwin sobre Wesley. No
entanto, Goodwin talvez tenha tido mais influência sobre a doutrina da justificação
de Wesley nos últimos 30 anos de sua vida do que qualquer outro pensador, como
se evidencia pelo seu prefácio ao tratado de Goodwin.
Este curto resumo das influências intelectuais sobre Wesley argumenta que o
desenvolvimento teológico inicial foi formado principalmente pelo arminianismo
anglicano do século dezessete. Contudo, isto foi compensado pela teologia
reformada que recebeu dos morávios, suas leituras dos reformadores continentais e
mais diretamente de Thomas Cranmer, e do padrão doutrinário da Igreja da
Inglaterra. Esta mistura tornou-se ainda maior pela influência que recebeu de dois
não-conformistas do século dezessete, Richard Baxter e John Goodwin.
28
Idem, 121-33.
Idem, 16.
30
Idem, 148-49.
29
9
INTERPRETAÇÕES DA TEOLOGIA DE WESLEY
Os estudos acadêmicos da visão de Wesley sobre a expiação, justificação e
continuidade na vida cristã têm sido variados. Destas três doutrinas, o
entendimento de Wesley quanto à justificação é a que mais tem sido estudada, mas
não tem sido analisada no contexto de sua doutrina da natureza da expiação e da
perseverança na vida cristã. A dificuldade com muitos destes estudos sobre a
doutrina de justificação de Wesley é a falta de competência teológica gritante que
geralmente os acompanha.
Enquanto muito tem sido escrito sobre o ponto de vista da extensão da expiação,
muito pouco se escreveu sobre seu entendimento quanto à natureza da expiação. Os
três principais estudiosos que deliberam sobre este assunto são Williams, Renshaw e
Deschner. Em sua breve exposição sobre a natureza da expiação, Williams deixa de
ver as conotações judiciais fortes na doutrina da expiação de Wesley. Ele se equivoca
ao afirmar que: “Wesley não coloca o elemento da substituição penal de seu ensino
dentro de um quadro legal em que Deus se submete a uma ordem eterna imutável
de justiça”.31 Renshaw, mesmo entendendo a ênfase de Wesley em Deus como juiz, é
simplista ao caracterizar o ponto de vista de Wesley da doutrina da expiação como
uma mistura entre as categorias reformada e grotiana.32 Deschner é mais sofisticado
em sua visão da doutrina da expiação de Wesley, vendo-o essencialmente como
uma modificação da teoria da satisfação penal. No entanto, ele deixa de
fundamentar a doutrina da natureza em seu contexto histórico e teológico.33
Os estudiosos têm deliberado muito sobre a doutrina da justificação de Wesley.
Enquanto alguns autores notam algumas nuances católicas em Wesley (Piette,
Orbical e Lee), a maioria (Cannon, Cell, Schmidt, Skevington, Wood e Williams)
vêem a doutrina da justificação de Wesley como similar à dos reformadores
continentais. Estes últimos deixaram de desvendar as distinções complexas entre as
influências católicas e reformadas no que diz respeito à imputação da justiça de
Cristo. Além do mais, deixaram de enxergar a importância da influência de Baxter e
Goodwin em Wesley. Alguns estudiosos (Clifford, Lindstrom e Outler) interpretam
corretamente a doutrina da justificação de Wesley, mas deixam de ligá-la de forma
significativa à sua doutrina da natureza da expiação. Apenas Deschner é bem
sucedido neste aspecto, no entanto, seu estudo destas doutrinas, limitado à
31
Colin W. Williams, John Wesley’s Theology Today (New York: Abingdon, 1960), 84.
John Rutherford Renshaw, “The Atonement in the Theology of John and Charles Wesley” (Ph.D. diss., Boston
University, 1965), 126.
33
Deschner, 152-57.
32
10
Cristologia de Wesley, é breve e deixa de compreender como elas formaram o ponto
de vista de Wesley quanto à continuação na vida cristã.34
A VISÃO DE WESLEY QUANTO À NATUREZA DA EXPIAÇÃO
Em sua doutrina da natureza da expiação, Wesley deixa transparecer a clara
influência dos reformadores e do anglicanismo reformado na sua retenção, apesar
de modificada, de uma teoria básica da satisfação penal da expiação. A visão dos
reformadores quanto à expiação foi rejeitada pelos arminianos anglicanos do século
dezessete, tais como Jeremy Taylor, Richard Baxter e John Goodwin. Apesar de ter
reconhecido o quanto devia a estes pensadores, Wesley divergiu deles na doutrina
da expiação. Apesar de não ter revelado suas fontes na formação da doutrina de
satisfação penal da expiação, é seguro dizer que Cranmer, as Homilias da Igreja da
Inglaterra e os próprios reformadores, o influenciaram a manter os elementos
centrais da doutrina reformada da natureza da expiação.35
Wesley manteve a compreensão reformado de Deus como juiz e da humanidade
como violador da justiça divina. Os pecados da humanidade acumularam a
penalidade da ira de Deus, que é a morte eterna.36 A única maneira que uma pessoa
poderia escapar da ira de Deus é se Cristo carregasse sobre si a culpa pelo pecado,
que foi o que Ele fez na cruz. Para explicar este conceito, Wesley reteve a linguagem
da Reforma de obediência passiva. Em sua obediência passiva, Cristo se submeteu
voluntariamente à ira de Deus e recebeu o castigo da humanidade pelo pecado,
evitando assim a ira de Deus. A morte de Cristo é “propiciação – apaziguar um
Deus ofendido. Mas se, como ensinam alguns, Deus nunca ficou ofendido, não
havia necessidade para uma propiciação”.37 Portanto, a penalidade divina pelo
pecado, dispensada por Deus, é satisfeita pela obediência passiva de Cristo na cruz.
Wesley se alinhou aqui com a tradição da satisfação de Anselmo de Canterbury, que
encontrou sua maior expressão em Lutero, Calvino e Cranmer. Apesar de sua maior
dependência ser dos arminianos anglicanos do século dezessete, de Baxter e de
34
Poucos estudiosos procuraram estender seus estudos para incluir o entendimento do ponto de vista de Wesley da
continuação da vida cristã. O mais próximo que chegam disto é estudar sua doutrina da inteira santificação, que é logica
e teologicamente distinta de seu entendimento quanto à continuação na vida cristã. Alguns autores mencionam o
ponto de vista de Wesley quanto ao “se desviar”, mas deixam de reconhecer o quão crucial é sua visão da expiação e da
justificação para um entendimento mais amplo da perseverança cristã.
35
Devo muito a Wesley’s Christology: An Interpretation, de John Deschner, por suas considerações perceptivas quanto a
doutrina da expiação de Wesley e que têm sido de grande ajuda para mim.
36
Works, IX, 481-82; “Of Hell,” Works, VI, intro, 4; II, 2.
37
John Wesley, Explanatory Notes Upon the New Testament (Peabody, MA: Hendrickson, 1986), Romanos 3:25.
11
Goodwin, sua doutrina de expiação era radicalmente diferente da deles. Estes
pensadores dependiam da teoria governamental da expiação de Hugo Grotius, que
defendia que Deus poderia livremente perdoar pecadores sem qualquer satisfação
pela violação da justiça divina. Na visão governamental, a morte de Cristo é aceita
por Deus como governador ou governante em vez de juiz. A morte de Cristo é um
símbolo da punição do pecado em vez da punição propriamente dita. A penalidade
pelo pecado, em vez de ser cumprida ou satisfeita, é colocada de lado e o pecador
que crê é perdoado, como um governante perdoa um criminoso culpado. A
declaração de Goodwin quanto à sua teoria em Imputatio fidei (1.642) é especialmente
relevante, tendo em vista o fato de que Wesley reimprimiu esta obra em 1.765: “A
sentença ou maldição da Lei não foi realmente executada sobre Cristo em sua morte,
mas esta morte de Cristo foi uma base ou consideração para Deus, sobre a qual
poderia anular a Lei e eliminar ou suspender a execução da penalidade ou da
maldição pendente”.38 As declarações de Goodwin contrastam fortemente com o
comentário de Wesley sobre Romanos 3:26, onde fala de Deus “demonstrando
justiça sobre seu próprio Filho” para que Deus “pudesse se mostrar estritamente e
inviolavelmente justo na administração do seu governo ao mesmo tempo em que é o
justificador misericordioso do pecador que crê em Cristo. O atributo de justiça deve
ser preservado inviolado; e inviolado está preservado, se realmente existiu a imposição
de punição a nosso Salvador”.39 Portanto, Wesley não mediu esforços para afirmar uma
visão retributiva ou da satisfação penal da expiação em contraste com a visão
governamental. Nesta visão, Wesley estava em completo acordo com o artigo trinta
de Thirty-nine Articles (Trinta e nove artigos), que diz que Cristo realizou “perfeita
redenção, propiciação e satisfação” pelos pecados e que “não existe nenhuma outra
satisfação pelo pecado, a não ser esta”. Diferentemente dos governamentalistas de
sua origem arminiana anglicana, Wesley cria, juntamente com os reformadores, que
a penalidade pelo pecado deve ser paga e que foi satisfeita por Cristo na Sua
obediência passiva na cruz.
No entanto, antes que se possa pensar que o caso está decidido pela dependência
total de Wesley às categorias reformadas, deve ser salientado que enquanto Wesley
enfatizava a natureza da satisfação penal da expiação de Cristo, ele a modificou.
Entretanto, a modificação desta teoria era sem igual ao evitar as conotações
governamentalistas de grande parte do arminianismo inicial inglês. Em grande
parte da teologia reformada, a expiação de Cristo incluía não somente a obediência
38
39
John Goodwin, Imputatio Fidei. Or A Treatise of Justification (London, 1642), Part II, 13.
Notes, Romans 3:26. Fonte em itálico acrescentado.
12
passiva como também a ativa.40 A obediência ativa consistia da justiça perfeita de
Cristo e da sua completa obediência à lei e o cumprimento dela. Os reformadores
sustentavam que ambos os aspectos da obediência de Cristo funcionam juntos para
satisfazer as justas demandas da lei divina. A justiça divina requer justiça absoluta
por parte dos seres humanos para que sejam aceitos por Deus e os seres humanos
não podem produzir em si mesmos tal justiça absoluta. Portanto, a justiça absoluta
de Cristo deve ser imputada ou creditada a eles para sua justificação. Aqui Wesley
divergiu da teoria da satisfação penal da expiação, insistindo que a eficácia da
expiação de Cristo está principalmente em sua obediência passiva ou o fato de ter
tomado sobre si a pena pelo pecado em vez do seu cumprimento positivo da lei. Em
seu prefácio a Imputatio Fidei, de John Goodwin, cujo título ele mudou para “A
Treatise on Justification” (Um Tratado sobre a Justificação), Wesley declarou que a
morte de Cristo é “certamente a parte principal, senão o todo” da expiação.41
“Apesar de crer que Cristo cumpriu a Lei de Deus, não afirmo que ele o fez para
adquirir a nossa redenção. Isto foi adquirido pela morte dele em nosso lugar”.42 Para
Wesley, a obediência ativa de Cristo foi coincidente à expiação, não formalmente
essencial. Portanto, apesar de afirmar a realidade da obediência ativa de Cristo, ele
negou a sua eficácia salvífica.
Wesley modificou ainda a visão de satisfação penal da expiação com a sua distinção
entre pecados passados e futuros. Enquanto o anglicanismo reformado insistia que a
oblação de Cristo pelos pecados da humanidade foi por todos os pecados, originais
e atuais (Thirty-nine Articles – Trinta e Um Artigos), Wesley afirmava que Cristo
expiou somente os pecados passados do crente. A expiação de Cristo não era pela
condição do pecado, nem para remover a maldição do pecado original, mas uma
“propiciação” pela “remissão de pecados passados”.43 Nem o pecado em geral e
nem o pecador é perdoado; tão somente os pecados do passado são perdoados, pois
Deus não pode perdoar pecados antes que aconteçam. Este conceito transparece em
“A Dialogue between an Antinomian and His Friend” (Um Dialogo entre um
Antinomiano e seu Amigo), em que Antinomiano diz a Cristo: “ele curou, tirou, pôs
um fim em nossos pecados e totalmente os destruiu todos”. Seu amigo responde:
“Curou ele a ferida antes que ela tivesse aparecido e colocou fim aos nossos pecados
40
Alguns pensadores reformados, como John Owen, não insistiam que se afirmasse a obediência ativa de Cristo para
que se tivesse uma visão da expiação de satisfação. A visão de Wesley, apesar de diferente da maioria das teorias
protestantes de satisfação, ainda satisfazia os requisitos rigorosos de um entendimento da expiação mais geral pela
substituição penal.
41
Works, X, 331.
42
Works, X, 386.
43
Notes, Romans 3:25. Aqui Wesley define “pecados passados” como “todos os pecados que antecedem ao momento
da crença”.
13
antes que tenham tido um início? Isto é um absurdo tão gritante e palpável que eu
não entendo como você pode engoli-lo”.44 A concepção de Wesley de que Cristo
expiou apenas pecados passados, em vez de pecados em geral, exerceu grande
influência em sua visão de justificação e de continuidade na vida cristã.
Tem-se defendido aqui que a doutrina de Wesley da natureza da expiação estava
firmemente embasada nas categorias de satisfação penal da teologia reformada e era
teologicamente distinta da teoria governamental de Grotius que era empregada
pelos arminianos anglicanos como também por Baxter e Goodwin. No entanto,
Wesley modificou esta satisfação penal ao desabonar a obediência ativa de Cristo na
expiação como também a sua noção de que Cristo expiou apenas os pecados
passados. Esta teoria da expiação depende da lógica da satisfação penal, mas no
“espírito” do governamentalismo. É um exemplo claro da amalgamação criativa que
faz a teologia de Wesley realmente ímpar entre os teólogos.45
A VISÃO DE WESLEY DA JUSTIFICAÇÃO
A doutrina de justificação de Wesley deixa transparecer uma dependência de sua
herança arminiana anglicana e sua admiração por John Goodwin e Richard Baxter,
como também de uma total divergência com as categorias reformadas. Ele afirma:
“A noção bíblica simples de justificação é perdão pelos pecados. É o ato de Deus Pai,
pelo qual, por causa da propiciação feita pelo sangue de seu Filho, ele ‘demonstra
sua justiça (ou misericórdia) pela remissão dos pecados do passado’”.46 Esta
afirmação revela sua noção de que a justificação é “a expiação de Cristo sendo
realmente aplicada à alma do pecador que agora nele crê”.47 Sua teoria da expiação
influencia diretamente sua visão de justificação. Como visto anteriormente, o
aspecto principal da expiação é a obediência passiva de Cristo. O pecador que crê é
justificado por causa da “propiciação feita pelo sangue” de Cristo, isto é, a punição de
Cristo pelo bem da humanidade pecadora. Esta propiciação é aplicada ao pecador,
sendo o resultado a remissão de pecados, isto é, o perdão de pecados.
Wesley cria que somente a obediência passiva de Cristo, e não a sua obediência
ativa, é aplicada ao pecador na justificação. Portanto, Cristo levou sobre si a punição
44
Works, X, 267.
Apesar de estar fora do alcance deste ensaio, pode-se dizer que os teólogos Wesleyanos depois da primeira geração
descartaram a visão eclética de Wesley sobre a expiação e optaram pela teoria de Grotius por ser mais logicamente
consistente.
46
“Justification by Faith,” Works, V, II, 5.
47
“Salvation by Faith,” Works, V, II, 7.
45
14
do crente e desviou a ira de Deus dele(a), mas não providenciou a justiça positiva
para o pecador que crê. Wesley se desviou da doutrina de justificação da Reforma
que insistia na justificação forense – uma justiça divinamente providenciada que é
imputada ao que crê para a sua eterna aceitação com Deus. O Batista Geral inglês,
Thomas Grantham, era um exemplo desta visão forense da justificação:
Que Deus imputa Justiça ao Homem sem Obras é muito claro e
nunca pode ser negado. O que é imputado não é nossa ação, mas
expressamente considerado um Dom gratuito, ou Graça, e isso não
pode ser a Justiça de outro, senão Cristo (...) porque por nenhum
outro modo pode a Justiça de Deus ser nossa (...) não há nenhum
justo, nenhum sequer. A não ser que a Justiça de Cristo seja aplicada,
não há Justiça a ser imputada aos Pecadores.48
Wesley divergiu muito deste ponto de vista. Longe de crer que a justiça de Cristo é
imputada aos que creem para que sejam (de maneira forense) considerados justos
aos olhos de Deus, Wesley afirmou que a justificação
de modo algum implica que Deus nos julga contrário à real natureza
das coisas, que ele nos estima mais do que realmente somos ou crê
que somos justos quando realmente somos injustos. Certamente que
não. O julgamento do Deus que tem toda a sabedoria é sempre de
acordo com a verdade. Também não é coerente com a sua sabedoria
infalível pensar que sou inocente, julgar que sou justo ou santo,
porque outro o é. Ele não pode me confundir com Cristo da mesma
forma que não o faz com Davi ou Abraão.49
Wesley não quer saber de justiça forense ou de imputação da justiça de Cristo. Ele
advertiu que tal linguagem é usada muitas vezes como “cobertura para a
injustiça”.50 Ele achou difícil conceber um evangelho que permite um crente cometer
pecado sem impunidade por ter sido imputado com a justiça de Cristo:
Um homem é admoestado, vamos dizer por embriaguez: “Ah”, diz
ele “eu não alego possuir alguma justiça em mim mesmo; Cristo é
minha justiça”. Outro foi avisado que o “extorsionário, o injusto, não
herdará o reino de Deus:” Ele responde com toda a convicção: “Sou
48
Thomas Grantham, Christianismus Primitivus, or The Ancient Christian Religion
(London, 1678), book II, chapter 3, 67.
49
“Justification by Faith,” Works, V, II, 4.
50
“The Lord Our Righteousness,” Works, V, II, 19.
15
injusto em mim mesmo, mas tenho uma justiça imaculada em
Cristo”. Desta forma, mesmo estando um homem longe da prática
como da disposição cristã; mesmo que não tenha nem a mente do
que estava em Cristo e nem de algum modo anda como ele andou;
no entanto tem uma armadura de prova contra toda convicção no
que ele chama de “a justiça de Cristo”.51
A visão de Wesley com respeito à justificação tem sido debatida devido ao uso da
palavra “imputada” ao falar da justiça do crente. No entanto, a sua rejeição da ideia
de obediência ativa de Cristo como um componente eficaz da expiação demonstra
sua rejeição de qualquer conceito forense de justificação. Entretanto, para esclarecer
qualquer mal-entendido remanescente sobre Wesley, em sua obra de 1.773
intitulada “Remarks on Mr. Hill’s Farrago Double-Distilled” afirmou que “esta
frase, a justiça imputada de Cristo, eu nunca usei”, e advertiu a todos que “deixem de
lado esta frase ambígua e não-bíblica”.52
A ideia de Wesley de que a morte de Cristo expiou somente os pecados cometidos
antes da conversão se aplica à sua ideia de justificação. Se a expiação for somente
para os pecados do passado, então a justificação é somente para os pecados
passados. Portanto, Wesley pode equiparar justificação com perdão – remissão de
pecados passados – sem nenhuma necessidade de uma doutrina de imputação. Esta
formulação da doutrina da justificação se desviava da teologia reformada e se
alinhava com Goodwin, Baxter e o arminianismo anglicano do século dezessete com
a sua dependência do governamentalismo de Grotius. Wesley, no entanto, chegou à
mesma posição por um caminho diferente. Ele não afirmou, como os
governamentalistas, que a justiça de Cristo não é imputada ao que crê porque a
penalidade do pecado foi colocada de lado e Deus livremente perdoou os pecados.
Ao contrário, sustentava que a penalidade pelo pecado foi satisfeita na morte de
Cristo e que esta satisfação é apropriada ao que crê, mas que isto justifica o crente
somente de seus pecados passados. Portanto, os governamentalistas trabalharam a
questão da perspectiva do livre perdão de Deus ao pecador baseado no afastamento
da lei, enquanto que Wesley sustentava que os pecados passados são cancelados por
causa da oblação de Cristo. Mas no que concerne a imputação da justiça de Jesus
Cristo, o resultado final é idêntico: a justiça no crente é puramente prática; é inerente
e não forense.
51
52
Idem.
Works, X, 430.
16
A VISÃO DE WESLEY DE PERSEVERANÇA
A doutrina da justificação de Wesley é extremamente importante para a sua
doutrina de perseverança na vida cristã. Wesley concordou com seus precursores
arminianos que é possível para um crente cair da graça, apostatar da vida cristã.
Para Wesley, esta possibilidade se manifesta de duas maneiras: a primeira é através
da apostasia irremediável e a segunda é através do pecado intencional.
Apostasia Irremediável
Wesley viu exemplos de apostasia irremediável em passagens bíblicas como 1
Timóteo 1:19-20 e Hebreus 6:4-6. Em 1 Timóteo 1, Paulo afirma que alguns “fizeram
naufrágio na fé”. Wesley via esta condição como irremediável, “pois navios que
sofrem naufrágio não podem posteriormente serem salvos”.53 Sua exegese de
Hebreus 6:4-6 se alinhou com a posição arminiana padrão: “O apóstolo descreve
aqui o caso daqueles que descartaram tanto o poder quanto a forma de piedade (...).
Destes apóstatas propositais ele declara: é impossível outra vez renová-los para
arrependimento (apesar de terem sido renovados uma primeira vez)”.54 Esta apostasia
“total” ou “final”, sustentava Wesley, é o resultado de uma deserção da fé – a
renúncia da expiação de Cristo – e, portanto, não pode ser remediada.55
No entanto, enquanto Wesley afirma repetidamente em várias de suas obras que o
naufrágio na fé constitui uma apostasia final e irremediável, em alguns lugares ele
luta com este conceito. Por exemplo, em seu sermão, “A Call to Backsliders” (Uma
Chamada aos Desviados), ele indica que mesmo aqueles culpados deste tipo de
apostasia, descrita em 1 Timóteo 1:19-20 e Hebreus 6:4-6, ainda podem ser
restituídos:
Se lhe perguntarem: “Algum verdadeiro apóstata encontra
misericórdia em Deus? Alguém que já ‘fez naufrágio em sua fé e em
boa consciência’, pode recuperar o que perdeu? Você conhece ou
tem visto exemplos de pessoas que encontraram a redenção no
sangue de Jesus e depois caíram e, no entanto, foram restituídos,
‘renovados mais uma vez para o arrependimento’?”. Sim, e não
somente um ou uma centena, mas estou persuadido que são vários
milhares (...). Realmente, está tão longe de ser uma coisa rara para
53
Notes, 1 Timothy 1:20.
Notes, Hebrews 6:6.
55
“Serious Thoughts on the Perseverance of the Saints,” Works, X, 284-298.
54
17
um crente cair e ser restaurado, que é mais ou menos incomum
achar algum crente que não esteja consciente de ter se desviado de
Deus em um grau menor ou maior e talvez até mais de uma vez,
antes de serem estabelecidos na fé.56
Apostasia através do Pecado Intencional
A segunda avenida da apostasia, segundo Wesley, é o pecado intencional. Enquanto
que o primeiro tipo de apostasia, apostasia total, segue logicamente da doutrina de
Wesley de resistência à graça, o segundo tipo é devido a seu ponto de vista quanto à
justificação. Como somente os pecados passados são expiados e perdoados na
justificação, os pecados futuros também devem ser perdoados. Deve-se lembrar da
afirmação de Wesley de que é um absurdo dizer que Deus pode perdoar pecados
que ainda não ocorreram. Da mesma forma em que Deus perdoou o que crê pelos
pecados passados, assim também os pecados do crente devem ser perdoados.57 A
falta de recebimento de perdão pelos pecados pós-conversão resulta em apostasia.
Wesley cria que o pecado em si leva à apostasia, quebrando assim a comunhão com
Deus. Wesley usa o Rei Davi como exemplo do modelo de apostasia através do
pecado intencional:
Explico isto usando um incidente específico: Davi tinha nascido de
Deus e viu a Deus pela fé. Ele amava a Deus com sinceridade. Ele
podia verdadeiramente dizer: “Quem mais tenho eu no céu? Não há
outro”, nem pessoa e nem algo, “em quem eu me compraza na
terra". Mas ainda permaneceu em seu coração aquela corrupção da
natureza, que é a semente de todo o mal.
“Andava passeando no terraço da casa”, (2 Sm. 11:2) provavelmente
louvando o Deus, quem sua alma amava, quando ele olhou para
baixo e viu Bate-Seba. Ele sentiu uma tentação; um pensamento que
tendia ao mal. O Espírito de Deus não deixou de convencê-lo disto.
Ele sem dúvida ouviu e conhecia a voz de advertência; mas ele
cedeu em alguma medida ao pensamento e a tentação começou a
prevalecer sobre ele. Apesar de ter o espírito manchado, ele ainda
via a Deus, mas era mais obscuro do que antes. Ele ainda amava a
Deus, mas não com a mesma intensidade, a sua afeição não tinha
56
57
“A Call to Backsliders,” Works, VI, 525.
Notes, 1 John 1:9.
18
mais a mesma força e ardor. No entanto Deus o cutucou novamente,
apesar de seu espírito estar machucado e, a voz ficando cada vez
mais fraca, ainda sussurrou: “O pecado jaz à porta, olhe para mim e
serás salvo”. Mas ele não ouvia. Ele olhou outra vez, não para Deus,
mas para o objeto proibido, até que a natureza fosse superior à graça
e acendeu a luxúria em sua alma.
O olho de sua mente agora estava fechado novamente e Deus
desapareceu de sua vista. Fé, o divino, a inter-relação sobrenatural
com Deus e o amor para com Deus cessaram por completo. Ele,
então, correu como um cavalo em batalha e conscientemente
cometeu o pecado externo.58
Diferentemente da apostasia total, este segundo tipo de apostasia é remediável.
Wesley usou um termo para este tipo de apostasia: “se desviar, estar desviado”. Em
sua obra Journals, ele oferecia vários exemplos de pessoas que ele acreditava terem
apostatado e que foram restaurados à salvação.59 Em seu sermão “A Call to
Backsliders” (Um Chamado aos Desviados), Wesley descreve crentes que pensam
que nunca poderão cair da graça, mas, no entanto, “perderam totalmente a vida de
Deus e o pecado reina sobre eles”.60 “É impressionante”, declara Wesley, “que
muitos que caíram, seja da graça justificadora ou da graça santificadora (...) foram
restaurados (...) e frequentemente em um instante, a tudo o que tinham
anteriormente (...). Em um momento receberam mais uma vez tanto a remissão de
pecados como também um lugar entre os que foram santificados”.61
Esta visão semipelagiana da continuação na vida cristã emana naturalmente da
doutrina de justificação de Wesley. Se somente os pecados passados são remidos,
então o crente está “por conta própria” quanto aos pecados futuros:
Se disseres: “Mas eu pequei novamente após ter redenção pelo
sangue?” (...) É adequado que deves se detestar (...). Mas crês agora?
(...) Em qualquer momento em que verdadeiramente crerdes no
nome do Filho de Deus, todos os teus pecados antecedentes àquela
hora desaparecerão (...). E não penses dizer: “Fui justificado uma
vez; meus pecados me foram certa vez perdoados” (...) “Aquele que
comete pecado é do diabo”. Portanto, és do teu pai, o diabo. Não
58
“The Great Privilege of Those Who Are Born of God,” Works, V, 230.
Works, II, 33, 278, 337, 361; III, 21.
60
Works, VI, 526.
61
Idem.
59
19
pode ser negado: Pois fazes as obras do teu pai (...). Tenhas cuidado,
pois a tua alma não terá descanso até que o seu amor perdoador seja
mais uma vez revelado; até que ele “sare a tua condição de
desviado” e te encha com a “fé que obra pelo amor”.62
Portanto, Wesley enfatizava a necessidade de santidade pessoal e penitência
contínua para continuação na vida cristã, insistindo que o crente deve continuar a
ser perdoado para permanecer um cristão. É importante notar a surpreendente
semelhança entre Wesley e John Goodwin. Na sua obra de 1.651, Redemption
Redeemed (Redenção Redimida), Goodwin ofereceu a mesma análise de dois tipos de
apostasia que Wesley posteriormente propôs.63 Wesley revelou sua apreciação por
Redemption Redeemed em julho de 1.768 em uma carta escrita a Walter Sellon que
estava preparando uma reimpressão da obra: “Estou contente que estejas assumindo
a obra ‘Redemption Redeemed’. Mas não se esqueças da resposta que Dr. Owens
deu a ela porque senão deixarás uma abertura por onde podem escapar os
calvinistas. Deves despedaçar as evasões do doutor colocando as tuas respostas no
corpo da obra, abaixo de cada item, ou então como notas nas margens”.64
CONCLUSÃO
O entendimento de Wesley quanto à natureza da expiação, justificação e
continuação na vida cristã são únicos na teologia cristã. Sua modificação da teoria de
satisfação penal da expiação, que diz que Cristo expiou apenas os pecados passados
dos que creem, é sua única contribuição peculiar ao pensamento cristão do ocidente.
Sua visão resulta em um entendimento de justificação e de vida cristã que tem a
santidade inerente do crente individual no seu centro. Estas doutrinas formam a
base para o entendimento de santificação – a perfeição cristã – que também é ímpar.
A originalidade teológica de Wesley faz com que ele seja difícil de ser analisado.
Aqueles que procuram classificá-lo, forçando-o em um dos moldes pré-existentes,
seja anglicano, arminiano, calvinista ou católico, deixam de compreender a
complexidade da sua absorção simbiótica e da sua amalgamação das fontes da
história de sua formação intelectual.
Publicado originalmente em: Integrity: A Journal of Christian Thought, vol. 4, 2008, p. 73-92.
Tradução de Kenneth Eagleton e revisão de Rejane Eagleton. Traduzido e publicado com autorização.
62
“The First Fruits of the Spirit,” Works, V, 95-96.
John Goodwin, Redemption Redeemed (London, 1651), 345-48.
64
Works, VIII, 44.
63