francisco xavier - Jesuítas em Portugal
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francisco xavier - Jesuítas em Portugal
S. Francisco Xavier 450 anos da sua morte (1552-2002) Colecção MANRESA Autoconhecimento e Discernimento Cristão Domingos Terra, S.J. 2. Espiritualidade Inaciana – 1ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 3. Deus e o Homem segundo Santo Inácio – 2ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA. VV. 4. Jesus Cristo na Espiritualidade Inaciana – 3ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 5. A Trindade na Espiritualidade Inaciana – 4ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 6. Exercícios Espirituais de Libertação Pessoal José Alves Martins, S.J. 7. Ordenar a Vida – Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola Dário Pedroso, S.J. 8. Manual do Peregrino – Caminhando com os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola António Vaz Pinto, S.J. 9. São Francisco Xavier – 450 anos da sua morte (1552-2002) – 5ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 10. Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo – 6ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana AA.VV. 1. V Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana S. Francisco Xavier 450 anos da sua morte (1552-2002) Editorial A. O. – Braga Na capa: Capa (arranjo gráfico): Paginação: Impressão e Acabamentos: Pode imprimir-se: Imprima-se: Depósito Legal nº ISBN São Francisco Xavier (pormenor) Salaverria (1922) – Palácio de Navarra – Pamplona Virgílio Cunha (Editorial A. O.) Editorial A. O. – Braga Fabigráfica – Pousa – Barcelos Amadeu Pinto, S.J. Provincial † Jorge Ferreira da Costa Ortiga Arcebispo Primaz 228152/05 972-39-0632-5 Junho de 2005 © SECRETARIADO NACIONAL DO APOSTOLADO DA ORAÇÃO L. das Teresinhas, 5 – 4714-504 BRAGA Tel.: 253 201 220 * Fax: 253 201 221 [email protected]; www.jesuitas.pt/AO/AO.html APRESENTAÇÃO Apresentamos, finalmente, as conferências sobre «S. Francisco Xavier, nos 450 anos da sua morte», feitas na V Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana, em Fátima, em 2002. Onde essa data já vai! Mas, apesar do atraso, cremos que a publicação vem na melhor altura, pois surge no momento em que vamos entrar nas celebrações, mais festivas ainda, do V Centenário do nascimento do Santo (1506-2006). Temos pena de não ter podido recuperar algumas conferências que só nos foram entregues em gravação oral, nem sempre em bom estado de audição. O fundamentalíssimo estudo do Prof. João Paulo de Oliveira e Costa faz muita falta ao conjunto. Esperamos que no decorrer do novo Centenário Xavierano que vai começar, o Prof. Oliveira e Costa volte ao assunto e publique dalguma forma esse magnífico estudo. Para preencher algumas destas lacunas, incluímos dois elementos novos, que serão certamente muito úteis: uma Cronologia das principais etapas da vida de S. Francisco Xavier, ao princípio, e, no fim, uma lista das Expedições missionárias de jesuítas que se seguiram a ele no Padroado do Oriente. Resta-nos desejar que esta publicação sirva para despertar o interesse pelas próximas Celebrações Centenárias do nascimento de S. Francisco Xavier que vão iniciar-se e abra caminho a muitos outros estudos que dêem a conhecer melhor o Santo aos portugueses. Os Editores ABERTURA Alberto de Brito, sj É um gosto abrir esta V SEEI sem ter que me dirigir formalmente às Autoridades Eclesiásticas, Académicas, Civis ou Militares presentes, mas simplesmente tratar a todos como “amigos” e “irmãos”. Se aqui nos encontramos, é porque a maneira de conhecer e amar Jesus, própria de Inácio de Loiola, nos tocou e nos fez a nós próprios também conhecer, amar e seguir o mesmo Senhor. Em nome do nosso Provincial, P. Amadeu Pinto, e em nome da Rentesp (o grupo encarregado da Renovação Teológica e Espiritual da Província Portuguesa da Companhia de Jesus) cumprimento a todos e a cada um/a. Bem vindos! Algumas pessoas aqui presentes já nos reunimos desde a I SEEI, em 1991, no ano jubilar do V Centenário do nascimento de Santo Inácio e dos 450 anos da Companhia de Jesus. Nesse ano, dada a circunstância, o tema da Semana abordou, no seu conjunto, a espiritualidade inaciana, o itinerário espiritual de Inácio, as linhas de força dos Exercícios, etc. As 2ª, 3ª e 4ª Semanas inseriram-se no movimento geral de toda a Igreja que preparava o grande Jubileu do ano 2000 e já circunscreveram os seus temas: “Visão de Deus e do Homem na Espiritualidade Inaciana” (1995); “Jesus Cristo na Espiritualidade Inaciana” (1997); “A Trindade na vida de Inácio, na espiritualidade e na acção apostólica inaciana” (2000). 8 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte Nesta V Semana, reunimo-nos já não em torno de um tema, mas de uma pessoa – Francisco Xavier – uma vez que se cumprem no próximo dia 3 de Dezembro 450 anos da sua morte. Vamos acompanhar durante três dias, sem calcorrear ou navegar os mais de 100.000 km percorridos por Xavier em apenas 12 anos, mas tentando compreender como se vai fazendo o homem que vive em estado de missão em pleno século XVI (1506 a 1552) e que hoje nos desafia a abrir novos campos de fronteira. Acompanhá-lo-emos nos anos da infância no Castelo desse lugar isolado em Navarra, onde Xavier rezou diante do famoso Cristo do Sorriso, bem como nos tempos de Paris onde frequenta a Sorbonne e mora num dos 50 Colégios que compunham a Universidade: o famoso “Colégio de Santa Bárbara”. O conhecimento de Inácio e os Exercícios Espirituais contribuem para a mudança do brilhante e socialmente conhecido Francisco. A segunda parte da sua estadia em Paris, já pertencendo ao pequeno grupo que faz votos em Montmartre, e a passagem por Itália (Veneza, onde se ordena, Vicenza, onde celebra a primeira Missa, e Roma) desenvolvem em Xavier o sentido de corpo e de pertença àquilo que posteriormente se vem a chamar “Companhia de Jesus”. A passagem por Portugal serve de trampolim para se fazer ao mar e empreender as grandes viagens missionárias. Passando por Moçambique, Índia, Malaca, Molucas, Japão, até às portas da China, relacionando-se com povos e costumes tão distintos, Xavier aprende o processo de inculturação, vivendo, nas palavras do P. Arrupe, “a encarnação da vida e mensagem cristãs numa área cultural concreta, de tal maneira que essa experiência não só chegue a expressar-se com os elementos próprios da cultura em questão, mas se converta no princípio inspirador, normativo e unificador que transforme e recrie essa cultura, originando assim, uma nova criação”. (Carta a toda a Companhia sobre a inculturação, de 7 de Junho de 1978). Abertura 9 Do Colégio de Goa às Universidades do Japão, no ensino da Catequese às crianças ou àqueles que nunca tinham ouvido falar de Jesus, nos baptismos que não param (a ponto de terem que lhe segurar a mão) Xavier vai modificando a sua forma de actuar, como nos dirá o feliz título de uma das conferências que vamos ter o prazer de escutar: “falar na Índia, escutar no Japão” e vai escrevendo repetidos apelos às Universidades europeias, estabelecendo pontes entre o Oriente e o Ocidente. Ao acompanhar este homem que, por ser de Deus é de todos e de cada uma das pessoas e povos por onde passa – e não foram poucos... – espero que também nós, 4 séculos depois, inventemos novos modos de ir ao encontro das necessidades de hoje e procurando evangelizar as pessoas na sua cultura, sendo testemunhas da criatividade do Espírito que em todos trabalha. A experiência de missionação de Xavier na Índia e no Japão talvez nos ajude, por exemplo, a escutar atentamente, quando as pessoas nos dizem hoje que o Evangelho não as interpela. Temos de procurar compreender a experiência cultural que se esconde por detrás do que dizem... Aproveito a oportunidade para agradecer o trabalho de investigação e redacção dos conferencistas que vamos ter o prazer de ouvir e que todos eles aceitaram prontamente o desafio e proposta que lhes foi feita pela Rentesp. Parabéns e Obrigado. Agradeço também à maravilhosa equipa, ao staff, cinzento só na camisa mas trabalhador e brilhante na dedicação, ao estilo de Xavier... Os nomes não estão escritos no programa, como o dos conferencistas: o Ir Avelino de sempre (na expedição dos programas e cartazes), a Orlanda (no atendimento paciente do telefone e correio que chegava todos os dias...), o quarteto incansável (Mariana e António, Inês e Francisco) o P. Venâncio Pina (repórter fotográfi- 10 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte co universalmente conhecido), o P. João Caniço (que preparou os cartazes e imagens da exposição do átrio e se encarrega da animação musical das três Eucaristias), os jesuítas estudantes de Filosofia que animam as orações da manhã, os noviços que preparam e servem ao altar (como compete a noviço), os magníficos 260 ouvintes, sem contar os meteoritos que vão ultrapassar a barreira dos trezentos... A todos o meu reconhecido e sincero obrigado! Teremos ainda o gosto de ver nestes dias a apresentação de três livros, dois sobre São Francisco Xavier e um sobre Santo Inácio: A Editorial AO de Braga acaba de publicar uma biografia de São Francisco Xavier, escrita pelo P. João Caniço. Não tem a pretensão de substituir os volumes do famoso biógrafo Schurhammer. É um livro que aconselho para rever a matéria dada, para recordar os passos fundamentais da vida de Xavier, para oferecer aos amigos. Banda desenhada sobre FX. A Editorial Tenacitas acaba igualmente de dar a lume um excelente livro de Pedro Miguel Lamet, um autor bem conhecido de todos nós. Escreveu uma biografia do P. Arrupe, que aconselho vivamente, por ser a melhor biografia desse grande... Termino chamando a atenção de duas mudanças no programa, como podem ver na folha colorida das pastas. Vamos seguir o método habitual das outras Semanas: 30 a 40 minutos de exposição, seguidos de perguntas, comentários, questões que a Assembleia deseja apresentar ao conferencista (o papel branco das pastas há-de servir para as notas e questões...). As noites estão propositadamente livres para maior descanso e convívio... Abertura 11 Desde já, podemos apontar na agenda e preparar-nos para a grande celebração dos 500 anos do nascimento de Xavier em 2006. Podemos mesmo exigir que se prepare a conveniente celebração, para a qual pedimos desde já sugestões a esta Assembleia... Primeira Parte UM MISSIONÁRIO QUE SE VAI FAZENDO ETAPAS DA VIDA DE XAVIER Cronologia Para os leitores menos familiarizados com a vida de S. Francisco Xavier, apresentamos aqui a cronologia das principais etapas da sua evolução espiritual e missionária. Baseamo-nos na biografia mais completa do Santo publicada até agora – a de G. SCHURHAMMER: Francisco Javier, su vida y su tiempo, Mensajero, Bilbao, 1991 (4 volumes). Citamos apenas SCHURHAMMER, o volume e as páginas. Servimo-nos também da edição crítica das Cartas e escritos do Santo, na colecção Monumenta Histórica Societatis Iesu (MHSI). Citamos apenas com as iniciais EX (=Epistolae Xaverii) e o número da carta ou documento. I UMA NOBREZA FERIDA EM BUSCA DE GLÓRIA 1506 – 7 de Abril: nascimento de Francisco no castelo de JAVIER (reino de Navarra) 1515 – 11 de Junho: anexação do REINO DE NAVARRA pela Coroa de Castela 16 de Outubro: morte do pai, despojado de cargos na corte1 1516 – Março: Primeiro levantamento dos navarros contra CASTELA 11-12 de Maio: destruição de todas as fortalezas de Navarra incluindo o castelo de JAVIER e a torre 1 Era Presidente do Conselho Real de Navarra. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 16 1521 – Maio: 1523 – Dezembro: 1524 – 23 de Março: 1524-1525: 1525 – Verão: 1525-1530: 1525-1526: 5 Fev.-29 Jul. 1529: Setembro de 1529: 1530 – Março: 1531 – Outono: Fevereiro: forte do Palácio de Azpilcueta Segundo levantamento dos navarros contra CASTELA os irmãos Xavier (Miguel e João) excluídos da amnistia de Carlos V rendição de FUENTERRABÍA e amnistia aos dois irmãos de Xavier reconstrução do Castelo de JAVIER Francisco em busca da glória de doutor na Universidade de PARIS. estudos de Filosofia no Colégio S. Bárbara (dir. Diogo de Gouveia). receia a vida nocturna do Bairro Latino e prefere o desporto doença e morte de sua Mãe junta-se-lhe, no mesmo Colégio, Inácio de Loyola Francisco de Xavier, Mestre em Artes (Filosofia). regente de Filosofia no Colégio de Beauvais. reivindicação jurídica do seu título de nobreza II CONVERSÃO A UMA VIDA NOVA 1532-1533: começa a dar-se conta de más companhias heréticas, graças a Inácio 1533 – 20 de Março: forte abalo pela morte da sua irmã clarissa com fama de santidade2. Começo de nova Madalena. Foi esta irmã que, em momentos de apuros económicos de Xavier em Paris, escreveu à família que não deixasse de custear os estudos do Francisco, «porque esperava em Deus que havia-de ser uma coluna na sua Igreja» (Cf. SCHURAMMER, I, 226, nota 209). 2 Etapas da vida de Xavier 1534 – 15 de Agosto: Setembro: 1535-1536: 1535 – 25 Março: 1536 – Novembro: 17 vida, de confissão e comunhão frequente, com os companheiros de Inácio Votos em Montmartre, com os primeiros companheiros de Inácio3 fervoroso Mês de Exercícios Espirituais orientados por Inácio de Loyola. Estudante de Teologia, como preparação para o sacerdócio Carta a seu irmão João de Azpilcueta, por mão de Inácio de Loyola4 Renúncia à oferta de canonicato no bispado de PAMPLONA III EM DEMANDA DA PALESTINA PARA SE JUNTAR À MISSÃO DE CRISTO 1536 – 15 de Novem.: Partida para VENEZA a caminho da Terra Santa5 1537 – Março-Maio: a caminho de ROMA, para pedirem ao Papa licença de peregrinação à Terra Santa e de receberem a ordenação sacerdotal sem ligação a qualquer diocese. A intenção era, em linguagem paulina, «continuar o que falta à Vida pública de Cristo pelo seu corpo que é a Igreja» como «companheiros de Jesus», pelos mesmos caminhos «cidades e aldeias por onde Cristo Nosso Senhor pregava» (EE 91). Para isso faziam voto de castidade para receber o sacerdócio, voto de pobreza para viver como o Mestre e voto de irem para a Palestina com o propósito de lá ficarem para sempre. Caso não conseguissem lá chegar dentro dum ano, por causa da guerra com os turcos, ir-se-iam pôr à disponibilidade do «Vigário de Cristo» para servir o Reino de Deus onde ele quisesse (Cf. MHSI, Fabri Monum. 9-11). 4 MHSI, EX, I, Epist. 1. É a primeira das cartas que se conservam. 5 Em Veneza, dedica-se com os companheiros ao serviço dos doentes nos hospitais da cidade onde se hospedaram. Xavier no «Hospital dos incuráveis». 3 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 18 Maio: Regresso a Veneza, surpreendido por sonhos missionários no caminho6 Junho (dia 24): Ordenação sacerdotal com os companheiros em VENEZA Julho: Sinais de guerra com os turcos impedem a travessia para a Terra Santa Verão: 40 dias de Deserto em MONTSELICE, numa ermida abandonada e em ruínas7 para preparar-se para a primeira Missa e Vida Pública sacerdotal Setembro: Primeiros ensaios de Vida Pública sacerdotal com pregações nas praças8 30 de Setembro: Concentração dos companheiros em VICENZA. Primeira Missa no mosteiro abandonado de San Pietro in Vivarolo. Decisão de se dispersarem pelas cidades universitárias para conquistar novos «companheiros», enquanto esperavam embarque para a Palestina 1537-1538 – Outubro a Abril: Continuação da Vida Pública sacerdotal em BOLONHA, onde conquista Doménech para o grupo de «companheiros de Jesus» Tendo-se hospedado com Simão Rodrigues num hospital, despertou-o gritando em sonhos: «Mais, mais, mais !». Só mais tarde, ao embarcar para a Índia, lhe revelou a que se referia: «Via eu então (se em sonhos ou desperto não o sei, Deus o sabe) os grandíssimos trabalhos, fadigas e aflições que por fome, sede, frios, viagens, naufrágios, traições, perseguições e perigos se me ofereciam por amor do Senhor, e que o mesmo Senhor me concedia então a graça de que nada disto me bastava, e eu pedia mais e mais com aquelas palavras que vós ouvistes» (SCHURHAMMER, I, 951). Muitas vezes, ao levantar, dizia a outro companheiro: «Jesus, que moído estou! Sabeis que sonhava que levava um índio às costas e que pesava tanto que não conseguia levá-lo ?» (Ibid. 440; tb. 504 e nota 92). 7 Cf. SCHURHAMMER, I, 451. 8 Nas praças da cidade de Montselice, próxima da ermida em que se tinham retirado (Ibid. 462). 6 Etapas da vida de Xavier 19 IV O SONHO DA PALESTINA ABRE-SE A TODO O MUNDO 1538 – Abril: Desfeito o sonho da Terra Santa, dirigemse para ROMA Novembro: a grande decisão de entrega à disponibilidade do Papa9 1539 – Março-Junho: Deliberações sobre a organização do grupo em Instituto 4 de Agosto: D. João III pede missionários para a Índia 3 de Setembro: Aprovação oral do Instituo da «Companhia de Jesus» 1539-1540: Xavier secretário de Inácio, o Fundador da «Companhia de Jesus» 1540 – 14 de Março: Xavier é destinado para a Índia 15 de Março: partida de ROMA10 fins de Junho: Chegada a LISBOA 1540-1541 – Junho-Abril: intensa actividade sacerdotal enquanto espera embarque Novembro-Fevereiro: despedidas do Rei e da corte em ALMEIRIM11 Cf. MHSI, Fabri Monum. 42; SCHURHAMMER, I, 573. Viagem por terra, na comitiva do Embaixador D. Pedro de Mascarenhas, passando por Loreto, Bolonha, sul da França, norte de Espanha (por Loyola), Extremadura, Lisboa. Sobre a viagem, escreve de Bolonha a Inácio (EX, I, Epist. 5) e outra vez já de Lisboa (EX, I, Epist. 6). 11 Recebe, entretanto, a notícia da aprovação oficial da Companhia de Jesus em 27 de Setembro de 1540, pela Bula Regimini militantis Ecclesiae do Papa Paulo III. Na audiência de despedida, com grande surpresa sua, o Rei entrega-lhe 4 Breve, de S.S.Paulo III: o 1º (Cum sicut charissimus), que o nomeava Núncio apostólico para todo o Oriente e lhe dava amplas faculdades para essa missão; o 2º (Hodie pro parte), que acrescentava ainda outras faculdades; o 3º e o 4º (Cum nos nuper e Cum nuper ad), com que o recomendava como Núncio a todos os reis que visitasse (Cf. SCHURHAMMER, I, 931-934) . 9 10 20 1541 – 1542 – 1542 – S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 7 de Abril: partida para a INDIA com inesperada missão de Núncio apostólico12. No dia 8 Inácio é eleito Superior Geral e, no dia 22, os companheiros de Roma fazem a profissão religiosa. Só o saberá na Índia. Setembro: para restabelecimento dos doentes, param na ilha de MOÇAMBIQUE Fevereiro: partida de Moçambique, com escala em MELINDE e SOCOTORÁ 6 de Maio: chegada a GOA13 V O NÚNCIO MISSIONÁRIO DO ORIENTE 1542 –Maio-Setembro: Apresentação humilde das suas credenciais ao Bispo de GOA14. Visita às autoridades civis e eclesiásticas. Visita às instituições15. Intenso apostolado sacerdotal e caritativo em todas elas e na cidade. 12 Parte com 2 «companheiros» jesuítas: P. Paulo Camerino (italiano) e Francisco Mansilhas ainda não sacerdote. 13 Os dois companheiros ficaram mais tempo em Moçambique e só chegaram mais tarde, noutras naus, a Goa. 14 Nunca puxará pelos seus pergaminhos de Núncio apostólico, a não ser no fim da vida, quando o novo capitão de Malaca torpedeou a sua embaixada à China (Cf. MHSI, EX, II, doc 121). Todas as visitas que fazia a missões e obras do Padroado, as fazia a título de cortesia e amizade. 15 Cadeia; hospital da Misericórdia, onde se hospeda; Colégio da Santa Fé (S. Paulo), ainda em começos, para formação de clero, catequistas e intérpretes de todas as línguas; capelas da cidade; Lazareto de leprosos… Etapas da vida de Xavier 21 1. MISSÕES NO SUL DA ÍNDIA (1542-1545) 1542 –fins de Setembro: Embarque para o CABO DE COMORIM16 Outubro: Desembarque na COSTA DA PESCARIA (lado oriental do Cabo Comorim). Vindos noutra nau atrasada, chegam a Goa Paulo Camerino e Mansilhas. Outubro-Fevereiro: quatro meses em TUTICORIM 1543 –Março-Setembro: Missão entre os paravás da COSTA DA PESCARIA Outubro: Viagem a GOA17 Novembro: Xavier faz a sua profissão religiosa oficial18 Dezembro: Regresso à Missão com escala em COCHIM19. Esperançosas notícias dos marinheiros sobre o Extremo Oriente. 1544 – Janeiro: escala na missão dos franciscanos em CEILÃO20 Fevereiro: Retoma a missão na COSTA DA PESCARIA. Depois de iniciar Mansilhas na missão, fixa-o em Punicale e visita todas as povoações por onde andou. Graças à corresCom 3 seminaristas paravás de Tuticorim, 2 diáconos e 1 minorista (Cf. SCHURHAMMER, II, 358-359). 17 Para encontrar-se com os companheiros, entretanto chegados, levar seminaristas para o Colégio da Santa Fé, buscar novos colaboradores, despachar correio para a Europa (Ibid. II, 477). 18 Depois de recebida a fórmula com que a fizeram os outros «companheiros» em Roma (Ibid. II, 491). 19 Traz consigo Mansilhas, o sacerdote espanhol Juan de Lizano e o soldado João de Artiaga como auxiliar. Em Cochim, hospeda-se em casa do pároco, visita o convento dos franciscanos e despacha correio nas naus que partem para a Europa. 20 Ia entregar uma carta de D. João III ao rei de Kôttê que os franciscanos tentavam converter (Cf. SHURHAMMER, II, 536, nota 124; 539). 16 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 22 Novembro-Dezembro: Dezembro: 1545 – Janeiro-Abril: Abril-Agosto: pondência intensa que mantém com Mansilhas, é possível seguir o seu percurso: PUNICALE, MANAPAR, LIVARE, NARE, TUTICORIM, VIRANDAPATANÃO, COMBUTURE, MANAPAR, CABO DE COMORIM, MANAPAR, PUNICALE, ALENDALE, TRICHENDUR, MANAPAR, TUTICORIM, MANAPAR (Cartas 21-44) Missão em TRAVANCOR (lado ocidental do Cabo Comorim)21 Matança de cristãos paravás em MANAR (Jaffna, norte de Ceilão). Viagem a GOA para pedir protecção militar dos cristãos ao Governador. Ronda pelas fortalezas portuguesas a pedir protecção aos cristãos22 Decepção e busca de luz em SÃO TOMÉ para a sua missão23 Quando deixou a Costa da Pescaria, já tinha conseguido para lá 4 sacerdotes indígenas que ele tinha feito ordenar e mais 6 seminaristas a preparar-se para o sacerdócio no Colégio da Santa Fé (Cf. SHURHAMMER, II, 477, nota 130). Começou a missão em Travancor com 1 português e 3 índios, como intérpretes e ajudantes (Ibid. 594). 22 Escalas em Cochim, Coulão (Índia); Colombo, Kôtté, Manar, Jaffna (Ceilão); Costa de Coromandel (a norte da Pescaria), Negapatão, Santuário de S. Tomé de Meliapor. Pelo caminho visitou as missões franciscanas entre os «cristãos de S. Tomé» em Cranganor (na Costa ocidental da Índia) e recebeu impressionantes informações do Extremo Oriente pelos marinheiros portugueses chegados a Cochim. 23 Cf. EX, I, Epist 51; SCHURHAMMER, II, 743-749; também EX, Epist 51). Entre os convertidos no seu apostolado destes meses, um foi o rico João d’Eiró que vendeu barco e tudo e seguiu com Xavier para Malaca (Ibid. II, 752754; 762). 21 Etapas da vida de Xavier 23 2. MISSÕES NA INDONÉSIA (1545-1547) 1545 – Agosto: partida para MALACA. Chegam a Goa novos jesuítas: PP. Criminali, Lancilotti, João da Beira. Setembro: chegada a MALACA Setembro-Janeiro: Apostolado na cidade e mais notícias de novas messes24 1546 – Janeiro: partida para as MALUCAS 14 de Fevereiro: chega a AMBOINO. Explora os arredores, chega uma frota espanhola que fora aprisionada. Partida da armada prisioneira para Goa, com cartas de Xavier25. Junho-Julho: expedição missionária a TERNATE Setembro-Dezembro: expedição missionária à ILHA DE MORO. Entretanto Diu é libertada por D. João de Castro (10.Nov.1546). 1547 – Janeiro-Junho: de novo em TERNATE e AMBOINO Julho-Dezembro: de novo em MALACA. Envia 3 recémchegados jesuítas a continuar o seu trabalho nas MALUCAS26. Dezembro: China que se fecha, Japão que se abre27. Informações sobre a China cerrada aos portugueses. Informações do Japão por três Pelos marinheiros portugueses recebe abundantes informações de esperanças missionárias em Macassar (Celebes), e reinos de Supa, Pegu, Birmânia, Sião, Cambodja, Champa (Indochina), Cochinchina, China (Cf. SCHURHAMMER, III, 47-62). 25 Cartas para os jesuítas de Goa e da Europa e para D. João III (EX, Epist. 55-57). 26 Os PP. João da Beira e Nuno Ribeiro e o Ir. Nicolau Nunes (Cf. SCHURHAMMER, III, 2-17). 27 Sobre as informações da China e do Japão (Cf. SCHURHAMMER, III, 63-90); sobre o relatório de Jorge Alvares (Cf. Ibid. 91 e sgs; 346 e sgs). 24 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 24 japoneses chegados a Malaca. Jorge Alvares, descobridor do Japão, prepara-lhe por escrito um relatório. 3. RONDA PELAS MISSÕES ANTES DA EXPEDIÇÃO AO JAPÃO 1547 – Dezembro: Despedida de MALACA com promessa de lhe mandar missionários Jesuítas. Leva relatórios sobre a China e Japão28. 1548 – Janeiro, 13: desembarque em COCHIM. Despede Mansilhas por desobediência a nova missão. Despacha correio pelas naus que partem para a Europa29. Fevereiro: visita aos missionários da COSTA DA PESCARIA. Deixa-lhes, por escrito, uma instrução missionária. Março: continuação da viagem por Cochim a GOA. Chega antes dele também o japonês Anjirô. Encontra novos companheiros vindos da Europa. Vai entrevistar-se com D. João de Castro ausente em BAÇAIM30. Abril-Junho: Regresso, com o Governador gravemente doente, a GOA. Destina Perez e Oliveira a Malaca (Abril 1548). Baptismo dos 3 japoneses do colégio de S. Paulo (20 Maio). Assiste à morte do Governador D. João de Castro (6 de Junho). Participa na execução das suas últimas vontades. Cf. SCHURHAMMER, III, 346 e sgs. Cartas para os jesuítas de Roma, Inácio de Loyola e D. João III (EX, Epist. 59-61). 30 Motivos da entrevista (Cf. SCHURHAMMER, III, 237; 254 e sgs; 256). 28 29 Etapas da vida de Xavier 25 Junho: Novo Governador da Índia: Garcia de Sá (Junho 1548-Abril 1549). Avaliação da missão em Goa: no colégio, no povo. Deixa aos missionários uma Instrução de vida espiritual para os cristãos31. Dá ao novo Governador 3 relatórios sobre o Japão e 1 sobre a China32. Entretanto chegam mais companheiros, com cartas da Europa . Setembro (meados): regressa à COSTA DA PESCARIA. Destina Cipriano e Morais a Socotorá e Baltasar Nunes a Travancor. Anima a tradução do Catecismo a tamil pelo P. Henrique Henriques. Outubro: de novo em COCHIM. Despacha correspondência pelas naus que partem para Portugal. Novembro: de novo em GOA. Encontro com mais jesuítas chegados noutra nau. Aceita a oferta do Colégio da Santa Fé (S. Paulo) e do de Baçaim. Dá luz verde para a fundação de mais colégios nas fortalezas portuguesas. Distribui mais missionários jesuítas pelas diversas missões33. Novembro (fins): volta 2 meses a COCHIM (Dez.1548-Fev. 1549). Negociações para a fundação de mais um colégio. Relatórios sobre as Missões para o Rei, para Inácio e Simão Rodrigues34. 1549 – Fevereiro: vai entrevistar-se com o novo Governador em BAÇAIM Março-Abril: nova visita aos jesuítas de GOA. Depois de EX, doc. 66. Cf. SCHURHAMMER, III, 346-365; 465-469. 33 Cf. SCHURHAMMER, III, 479-480; 495. 34 Ibid. III, 477-514; EX, Epist. 70-79. 31 32 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 26 distribuir cargos e missões, deixa-lhes Instruções por escrito35 15 de Abril-Junho: Regresso a MALACA. Escala em COCHIM (20 de Abril). Começa os preparativos para a expedição missionária ao Japão. Recebe a notícia do martírio do P. António Criminali36. Antes da partida para o Japão despacha correspondência37 4. MISSÃO NO JAPÃO (1549-1551) 1549 – 24 Junho-15 Agosto: Viagem no junco dum «Pirata» chinês ao JAPÃO38 1549 – Agosto-Outu.: Os começos em KAGOSHIMA Agosto: descoberta dum novo mundo cultural Agosto-Setembro: Audiência do duque de Satsuma (Takahisa) em IJÛIN, que lhes deu casa e licença para pregar. Setembro-Outubro: Primeiros contactos com o povo e com os bonzos. Apostolado de Anjirô (Paulo da Santa Fé), aprendizagem da língua. Novembro: Regresso do junco do «Pirata» a Malaca com Domingos Dias e cartas de Xavier39, Torres, Fernandez e Anjirô. EX, Epist. 80-81. Cf. SCHURHAMMER, III, 199 e nota 553. 37 Para os seus missionários, para o Rei, para os jesuítas da Europa: EX, Epist. 82-89. 38 Como companheiros levava o P. Cosme de Torres e o Ir. Juan Fernández de Oviedo, o mestiço Domingos Dias, dois criados (o chinês Manuel e o malabar Amador), Anjirô e, provavelmente os seus dois outros companheiros japoneses (Cf. SCHURHAMMER, III, 82-83 e nota 109). 39 4 Cartas para vários jesuítas de Goa e 1 para D. Pedro da Silva, capitão de Malaca (EX, Epist. 90-94). 35 36 Etapas da vida de Xavier 27 1549-1550 – Inverno: O catecismo japonês Dezembro-Junho: Apostolado em ICHIKU Julho: Primeira viagem a HIRADO Agosto: Regresso e despedida de KAGOSHIMA 1550-1551 – Agosto-Janeiro: A caminho da corte do Imperador em MIYAKO Setembro-Outubro: De novo em HIRADO Novembro-Dezembro: Começos de apostolado em YAMAGUSHI. Audiência do duque de Yamagushi (Yoshitaka), como simples religioso. Dezembo-Janeiro: Tenta de novo viagem por Sakai a MIYAKO. 1551 – Janeiro-Abril: Regresso a YAMAGUSHI com paragem em Hirado para visitar Torres e seus cristãos. Abril (fins): Nova audiência do Duque já na qualidade de diplomata40 Maio-Julho: Pregação e disputas Julho-Agosto: Nome de Deus em japonês: Dainichi ou Deusu? Julho-Setembro: Em luta com os bonzos Setembro: Grande colheita 1551 – Agost.-Nov.: Na corte do duque de BUNGO Agosto-Setembro: A chamada a BUNGO Setembro: Audiência do duque de Bungo (Yoshishige). Discussões do P. Torres em Yamagushi. Guerra civil em Yamagushi e morte do duque Yoshitaka (30.Set.). 1551 – 15 Novembro: Partida do Japão no junco de Duarte da Gama Na qualidade de diplomata do Governador da Índia e do Bispo de Goa. Entrega-lhe os presentes destinados ao Imperador (Cf. SCHURHAMMER, IV, 277 e sgs). 40 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 28 fins de Novembro: Chegada a SANCHÃO Informações incertas sobre o cerco de Malaca (5 Junho-16 Setembro). Apelo clandestino de prisioneiros portugueses na China, lido em Sanchão41. Dezembro: Partida para Malaca, na caravela de Diogo Pereira. Carta de SINGAPURA para Malaca, a pedir lugar nas naus da Índia42. 5. TENTATIVA DE MISSÃO NA CHINA 1551 – 27 Dezembro: Acolhimento triunfal à chegada a MALACA. Recebe oficialmente o cargo de Superior Provincial dos jesuítas do Oriente. Primeiras notícias das Missões da Índia. Revela os planos de embaixada à China com Diogo Pereira43. 30 Dezembro: Embarque para a ÍNDIA com o embaixador do Duque de Bungo e 4 japoneses que vieram com ele. Na viagem lê a correspondência de 2 anos, que lhe entregaram em Malaca44. 1552 –24 Janeiro-princípios Fevereiro: Escala de duas semanas em COCHIM. Hospeda-se no colégio dos jesuítas. Encontro com o novo Governador da Índia D. Afonso de Noronha. Apresentalhe o embaixador do duque de Bungo. Obtém apoio para a embaixada à China45. Recebe informações por Henrique Henriques e Lanciloto das suas Missões. Informações Cf. SCHURHAMMER, IV, 396-402. EX, Epist. 95. 43 Cf. SCHURHAMMER, IV, 436-439. 44 Cf. Ibid. IV, 441-537. 45 Cf. SCHURHAMMER, IV, 544. 41 42 Etapas da vida de Xavier 29 pelos franciscanos das suas Missões. Despacho de cartas para a Europa pelas naus de partida46. Devolução da igreja da Madre de Deus à sua Confraria. 1552 –meados Fevereiro-meados Abril: Dois meses em GOA. Visitas à chegada: Bispo, franciscanos, dominicanos, Governador. Colégio: encontra 39 jesuítas chegados nas suas ausências. Destino de alguns às diversas missões. Organização do governo para a sua ausência à China. Nomeação de Gaspar Barzeu como Reitor do Colégio e Vice-Provincial. Últimas cartas para a Europa. Últimas exortações. 1552 – 17 Abril: Adeus a GOA. Parte com todas as credenciais e presentes para a embaixada à China47. 1552 –17 Abril-31 Maio: De Goa a MALACA. De Malaca envia missionários ao Japão. Objectivos da embaixada à China48. 15-25 Junho: Embargo da embaixada à China pelo novo capitão de Malaca. Xavier apela para os seus direitos de Núncio apostólico em vão49. Resolve, mesmo assim, ir à China. 1552 – 17 Julho: Partida para a CHINA. Sem embaixada, com 2 companheiros e 1 criado50. 21-22 Julho: escala em SINGAPURA donde escreve algumas cartas51. Cartas para Inácio de Loyola, companheiros da Europa, Simão Rodrigues e Rei (EX, Epist. 96-99) . 47 Cf. SCHURHAMMER, IV, 721-722; 726 e nota 505. 48 Cf. Ibid. IV, 753; 775. 49 Cf. Ibid. IV, 751-760; EX, doc. 121. 50 O Ir. Álvaro Ferreira, António China, intérprete chinês, e o criado indiano Cristóvão. 51 Cartas a jesuítas e a amigos (EX, Epist. 125-129). 46 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 30 23 Julho-fins Agosto: De Singapura a SANCHÃO Setem.-3 Dezembro: Diante das portas cerradas da CHINA. É hospedado por Jorge Alvares na sua cabana improvisada. A seu pedido os portugueses constroem uma palhota para Capela. Contrato com um comerciante chinês para o introduzir clandestinamente na China. Mais cartas por uma embarcação que regressava a Malaca52. Desistência de dois companheiros. 12-13 Novembro: Últimas cartas pelos últimos navios a sair para Malaca53. VI MORTE 1552 – Novembro: 19 Sábado: O mercador chinês não aparece para o encontro 21 Segunda: Perde os sentidos depois da Missa 22 Terça: Acolhido na nau de Diogo Pereira, a única que ficou 23 Quarta: Regressa da nau «abrasado em grande febre». Recebe uma sangria. Desmaia. Não consegue comer 24 Quinta: recebe nova sangria. Delira aos poucos. Continua sem comer 25 a 27: Passa-os «em paz e sossego», delirando de vez em quando 28 a 30: Perde de todo a fala e o conhecimento. Não pode comer Cartas para o Superior de Malaca, para o Vice-Provincial de Goa e para o amigo Diogo Pereira (EE, Epist. 130-133). 53 Para os mesmos (EX, Epist. 134-137). 52 Etapas da vida de Xavier 1552 – 31 Dezembro: 1 Quinta: Recupera a fala e o conhecimento 2 Sexta: Profetiza o futuro trágico do seu criado malabar Cristóvão. Volta a perder a fala. 3 Sábado: morte junto do criado Cristóvão e do intérprete António China às duas da madrugada (824-827) O corpo é sepultado em Sanchão VII GLORIFICAÇÃO 1553 – 17 Fevereiro: Trasladação do corpo incorrupto 22 de Março: Acolhimento triunfal em MALACA. É de novo sepultado na igreja de Nª Sª do Monte ou da Anunciada (hoje de S. Paulo) 15 de Agosto: desenterrado incorrupto, é depositado num caixão e transportado de barco para Goa (Vários contratempos na viagem). 1554 – 16 de Março: É recebido triunfalmente em GOA. Ali se conserva incorrupto na Basílica do Bom Jesus 1619 – 25 Outubro: Xavier é beatificado pelo Papa Paulo V 1622 – 12 de Março: é canonizado pelo Papa Gregório XV 1748 – 24 Fevereiro: Bento XIV proclama Xavier Patrono principal das Índias, isto é, de todas as nações desde o Cabo da Boa Esperança até aos últimos arquipélagos do Pacífico. FRANCISCO XAVIER COMPANHEIRO JESUÍTA Luís Rocha e Melo Ouviremos, ao longo destes dias, os dados biográficos de Francisco Xavier e todo o empreendimento apostólico que desenvolveu nas costas da Índia, nas Molucas e no Japão. A sua energia apostólica deixa espantado qualquer biógrafo1, e deslumbrado qualquer leitor, que entenda o que é isso de deixar tudo para seguir a Jesus Cristo, e o que é isso de «salvar as almas». Das suas façanhas apostólicas falarão outros, nesta Semana de Espiritualidade Inaciana. Com grande dificuldade e temeridade, tocame tentar responder, no tema de que fui incumbido, a perguntas que se levantam, perante essas façanhas: que fogo interior o anima a partir para o fim do mundo, sem qualquer segurança? Donde vem a energia para doze anos de abnegação contínua, ao serviço da salvação das almas, em condições de pobreza que nos fazem estremecer, esquecido de si até à morte? Qual é o segredo das suas consolações e permanente alegria, no meio de privações sem conta, de perigos, de problemas para resolver e de solidão? Que itinerário espiritual percorreu Francisco Xavier? Não sei se poderei responder às perguntas; creio que não. Sei apenas que, ao contemplar a vida de Xavier, nos Francisco Xavier «pertence ao património cultural da humanidade, pela mesma razão, sem dúvida, que a de Alexandre ou a de Cristóvão Colombo». A sua actividade pode-se comparar à de S. Paulo, LEON-DUFOUR, Xavier, Saint François Xavier, Itinéraire Mystique de l’Apôtre, Ed. du Vieux Colombier, Paris, 1953, p. 8. 1 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 34 aproximamos do mistério de Deus, de um Deus morto e ressuscitado, em Jesus Cristo, que forma e transforma a vida de Francisco, e o leva pelos caminhos de um total abandono. Falo de abandono, como ponto limite da confiança em Deus, que se lhe revela, se lhe comunica e o envia em missão, impossível aos homens. Falo de abandono nas mãos de Deus, cujo limite é o de não ter limites e cuja medida é a de não ter medidas. A sua partida de Roma para Lisboa e para Goa manifesta, em Francisco, uma intrépida determinação de querer o que Deus quer, o que lhe fora manifestado, nesse momento, pelo desejo de sua Santidade, o papa Paulo III, por intermédio de Inácio de Loyola. A actividade apostólica desenvolvida na costa ocidental da Índia, até ao cabo Comorín, só era possível na confiança inabalável em Deus, a quem nada é impossível, e na mística do serviço, concretizado em actividade que, aparentemente, pelo menos, transcende as forças normais de um ser humano. A sua partida do cabo Comorín para as Molucas e para o Japão só se explica se Deus infundiu nele, além de tudo o mais, a energia do abandono. Tinha plena consciência de que partia, sozinho, para a morte2. É o mistério de um Deus apaixonado pelos homens, que derrama, na alma de Francisco, a mesma paixão que levou Jesus Cristo até à cruz, abandonado nas mãos do Pai. A obra de Xavier é obra de Deus nele, plenamente acolhida, em liberdade que se abre ao mistério. Em actividade que o ocupa todo o dia, e em oração que o ocupa boa parte da noite, Francisco tem um rumo de vida bem determinado: o de se deixar conduzir sempre por Deus, a Santíssima Trindade que o visita e o inspira, nas pequenas e nas grandes decisões que é convidado a tomar, e que o anima e lhe dá forças para enfrentar o impossível. Não dá um passo que não seja resposta, em docilidade, ao que Deus lhe pede. Nessa permanente oração e na escuta da vontade de Deus, não hesita em desafiar, conDi-lo em algumas das suas cartas. Enganou-se, pois veio a falecer mais tarde, por doença, em Sanshuan, perto da China. 2 Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta 35 tra tudo e contra todos, os critérios mais elementares da prudência humana. A sua segurança está no Senhor que o chama e que o envia, e em mais nada. Juncos impróprios para navegar em mar alto, piratas, tempestades mais que prováveis, algumas desencadeadas, notícias de barbaridades cometidas pelos indígenas não são obstáculo à sua determinação de partir para as Molucas, porque a sua segurança está só em Deus. Sabia perfeitamente que ia a caminho da morte, mas o Senhor tinha-lhe revelado, no íntimo do coração, que a sua vontade era a de que o Evangelho fosse anunciado também nas ilhas Molucas. Depois, mete-se pelo Japão acima, atravessa montes e vales, durante semanas, no meio da neve e do frio, para nada ou para quase nada: o rei de Myaco já não tinha poder nenhum. Não podia autorizá-lo sequer a pregar o Evangelho, abertamente. Não faz mal; volta para trás, para mais umas semanas de neve e de frio, sem desânimo nenhum pelo aparente fracasso, pelas energias gastas e pelo tempo aparentemente perdido. A sua segurança também não está no êxito apostólico das suas viagens e das suas pregações, ou na quantidade dos convertidos à Boa nova do Evangelho, por ele anunciada. Deus é grande e é Ele a sua única segurança. Essa é a mística do abandono. 1. Companheiro de Jesus É um companheiro jesuíta, assim diz o título que me foi confiado. Se Xavier, Inácio de Loyola e os outros companheiros ouvissem este título, dariam saltos no túmulo: eram apenas companheiros de Jesus e amigos no Senhor, «pobres padres de Cristo» – assim se chamaram a si próprios na primeira fórmula do Instituto, em 1539 – ou «apóstolos» – assim ficaram conhecidos em Portugal e nas Índias3. Inácio Ib., p. 80, nota (a) e (b). O nome de jesuítas aparece muito mais tarde. Sendo companheiros de Jesus, algumas pessoas começaram a chamar-lhes jesuítas, e a designação divulgou-se cada vez mais, até aos dias de hoje. Si itis cum Jesu, cum Jesu itis, diz o trocadilho. 3 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 36 foi o primeiro que soube não resistir ao chamamento de Deus, foi pai e mestre dos outros, conduziu-os pelos caminhos do amor e da entrega, à imagem do único Mestre e Senhor, mas depois eram um corpo de companheiros e amigos, dispostos a dar a vida por Cristo e pela salvação do mundo, ao serviço da Igreja. Companheiros uns dos outros e amigos uns dos outros, porque amigos de Jesus que, na sua ressurreição, tem o poder de reunir ou congregar e fazer amigos para sempre, mesmo que a futura missão os separasse definitivamente uns dos outros. A disponibilidade de Mestre Francisco para o que Deus quer revelou-se desde o princípio. Depois dos votos de pobreza e castidade, proferidos em dia da Assunção de Nossa Senhora, na cripta da capela de Montmartre, juntamente com os outros companheiros4, e dos Exercícios que fez sob a orientação de Inácio de Loyola, em 1534, Xavier entendeu o que significava ser companheiro de Jesus. Entregara-se aos Exercícios de alma e coração5. Daí por diante, desejava apenas «alistar-se sob a bandeira da cruz, na nossa Companhia, que desejamos se assinale com o nome de Jesus, para combater por Deus Pedro Fabro, Simão Rodrigues, Laínez, Salmerón e Bobadilla fizeram Exercícios juntos, sob a orientação de Inácio. Francisco Xavier fê-los mais tarde, durante as férias, por causa das aulas que dava no colégio Dorman-Beauvais, já depois de proferidos os votos de Montmartre. «Retitou-se para uma casa solitária, para tratar durante quarenta dias unicamente com o seu Deus. Só de tempos a tempos o visitava Íñigo com o objectivo de lhe propor a matéria das meditações para uns dias, e fazer-lhe algumas advertências sobre o aproveitamento espiritual e acerca dos diversos métodos de oração, penitência e discreção de bons e maus espíritos, segundo a diversa disposição da alma, e sobre a maneira de sentir com a Igreja e outras coisas parecidas». SCHURHAMMER, Jorge, Vida de San Frabcisco Javier, Ed. Cultura Misional, Bilbao, 1936, p. 32-35. 5 «O que Francisco viu e experimentou nestes santos Exercícios – conta Schurhammer – era algo que jamais devia esquecer-se». No fim deles, «uma ânsia ardente, um santo amor abrasava o seu coração»: o de Jesus Cristo Crucificado, seu Rei e Senhor. Ibidem. 4 Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta 37 e servir somente ao Senhor e ao Romano Pontífice, seu Vigário na terra»6. Sabendo que andavam por Itália uns novos padres, que eram gente letrada e vivia em pobreza, com grande fruto para as almas, o rei D. João III confiou a Pedro Mascarenhas, embaixador de Portugal em Roma, o encargo de pedir ao Papa que mandasse alguns desses, para a missionação da Índias. Paulo III deixou o assunto nas mãos de Inácio. Em princípios de 1540, Inácio de Loyola chamou Simão Rodrigues e Bobadilha para lhes confiar a nova missão. Rodrigues veio prontamente de Sena, afectado por febres quartãs, mas pronto e alegre para partir. Vindo de Nápoles, Bobadilha chegou a Roma a 14 de Março, véspera da partida para Lisboa; «mas trazia tais febres às costas, debilitado por longa e penosa enfermidade, que tanto o médico como os seus companheiros eram de opinião que, em tais circunstâncias, não podia pôr-se a caminho de Lisboa»7. Mascarenhas, por outro lado, não queria adiar a partida que tinha marcado para 15 de Março. Também andava com febres romanas, tinha saudades da mulher e da pátria, e contava os dias que faltavam para voltar à sua terra. Mas não queria ir sem os padres. Inácio também estava de cama com as mesmas febres romanas que, pelos vistos, não poupavam ninguém, nessa altura. Chamou Francisco e fez-lhe o seguinte discurso: «Bem sabeis, irmão e mestre Francisco que dois de nós hão-de passar para a Índia, por ordem de Sua Santidade, e que Bobadilha, que estava destinado para esta empresa, não pode partir por causa da sua enfermidade, e tampouco o embaixador pode esperar por ele, com a pressa que tem. Deus quer nisto servir-se de vós; esta é a vossa empresa, a vós toca esta missão». Permitam-me que conte 6 Fórmula do Instituto, Constituições da Companhia de Jesus – Normas Complementares, A.I. Braga, 1997. 7 SCHURHAMMER, J. o.c., p. 74. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 38 em espanhol, por ser mais engraçada, a resposta alegre de Francisco: «Heme aquí, Padre; aparejado estoy»8. Não sei se teve vinte e quatro horas para ir ao Papa pedir-lhe a bênção, reunir alguns trapinhos, despedir-se dos amigos e escrever três notas num papel – uma em que prometia obediência às Constituições da futura Companhia, outra em que prometia pobreza, castidade e obediência nas mãos do Geral que fosse escolhido, e outra em que deixava o seu voto a Inácio na eleição do futuro Geral9. No dia seguinte, partia para Lisboa, na companhia de Pedro Mascarenhas, «pronto e diligente para cumprir sua santíssima vontade» (EE, 91). Um ponto de partida que revela a mística de um companheiro de Jesus, que poderia dizer como Paulo: «Para mim viver é Cristo, morrer é lucro» (Fl 1, 21). A disponibilidade de Xavier, ao prontificarse, de um dia para o outro, sem qualquer objecção de consciência, a deixar tudo e a partir para sempre, para mundo desconhecido e longínquo, exclusivamente confiado na Providência divina, é o começo de um projecto de Deus para Francisco Xavier, nos doze anos seguintes. Companheiro de Jesus, interessava-lhe segui-lo e imitá-lo em passar todas as injúrias e vitupérios e toda a pobreza, assim actual como espiritual (EE 97-98): havia de contentar-se em comer como Ele, e também com beber e vestir, etc., do mesmo modo havia de trabalhar com Ele durante o dia e vigiar durante a noite, etc., para depois ter parte com Ele na vitória, assim como a teve nos trabalhos (EE 93, 98). «Se Francisco implantou a cruz de Cristo em terras longínquas – diz Léon Dufour – é porque a tinha bem implantada no seu coração de carne»10. No desenrolar dessa vida que levou a fé cristã a boa parte do Oriente, há que salientar um aspecto revelador da sua mística de Ibidem. Ib., p. 77 10 LEON – DUFOUR, o.c. p. 9 8 9 Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta 39 abandono, e perfeitamente de acordo com ela: as suas opções são orientadas, preferencialmente, para os pobres, para os humildes, para os doentes, para os perseguidos. As suas brilhantes disputas teológicas com os bonzos do Japão, as suas visitas aos palácios de reis, de governadores ou de chefes militares eram essenciais, enquanto meios, para anunciar a boa nova de Jesus Cristo em terra de infiéis. Precisava de autorização para isso, e não podia aparecer diante dos reis mal vestido, como pobre pedinte. Para visitar o rei de Yamaguchi, por exemplo, conseguiu arranjar roupas elegantes para se vestir, apresentou-lhe cartas de recomendação do governador da Índia e do bispo de Goa, e ofereceu ao monarca treze presentes. Entre eles, um relógio de grande valor artístico que dava todas as horas, as doze do dia e as doze da noite, outro de música que tocava automaticamente, uns óculos com os quais os velhos voltavam a ver como se fossem jovens, um espelho de vidro e, imagine-se, até... vinhos portugueses!11 Nunca tais coisas se tinham visto em Yamagushi. É claro que conseguiu, imediatamente, autorização para pregar o Evangelho na cidade. Para além desses meios, que utilizava se eram precisos, as preferências de Xavier iam para as almas a salvar, para os pobres e para os doentes, a partir de uma vida em radical pobreza e humildade, sem as quais não haveria abandono. Ao chegarem a Lisboa, ele e Simão Rodrigues recusam, delicadamente, a oferta de alojamento no palácio, feita pelo Rei D. João III, e pedem-lhe que lhes permitisse mendigar pelas portas de Lisboa e albergar-se no hospital de Todos os Santos12. Meses depois, levando no bolso a patente de Delegado Pontifício (Núncio Apostólico) para as Índias, Francisco recusa o criado de quarto e o camarote próprio na messe dos oficiais, que lhe era destinado na nau Santiago, de partida para Índia, como recusa, também delicadamente, sentar-se à mesa do governador, durante 11 12 SCHURHAMMER, J., o.c., p.229-300 SCHURHAMMER, J., o.c., p. 88 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 40 a viagem. Prefere o convés onde era alojado o resto da tripulação. Conversa com os marinheiros, ensina-lhes o catecismo, e durante uma epidemia que assolou o navio, junto à costa da Guiné, Francisco assistia, dia e noite, os seus companheiros doentes: «lavava-os, lavava-lhes a roupa juntamente com a sua, pedia esmola, para eles, aos seus amigos oficiais, trazia-lhes de comer e de beber, consolavaos, ouvia as suas confissões, preparava os agonizantes para uma boa morte e, bem cedo, não se ouvia ninguém tratá-lo senão pelo nome de «padre santo»13. E sempre assim foi quando desceu a Costa da Pescaria, para o sul da Índia, ou quando subiu para o norte em direcção às Molucas e Japão. A teologia do tempo, que tão bem aprendera em Paris, assegurava um lugar no inferno a quem morresse sem ser baptizado. Um zelo devorador pela salvação dos pagãos impelia-o, por isso, sem descanso, a pregar e a baptizar, e pedia a Inácio, a Simão Rodrigues e às universidades da Europa, que enviassem missionários bem provados, pois aquele mundo era vastíssimo e ele não chegava para tudo. A razão de ser dessa paixão pelas almas, necessitadas de salvação, devemos procurá-la no centro mais profundo do seu diálogo permanente com Deus, que o chama e o envia, e a quem ele se abandona. Só a caridade de Deus derramada e acolhida o leva a esquecer-se de si e a pensar apenas na salvação dos outros. O segredo da sua vida está em que essa caridade, derramada no seu coração pelo Espírito Santo, preside a todos os seus movimentos. A procura permanente da vontade de Deus, que discerne, de dia e de noite, é um eixo vertical que norteia todos os seus desejos, os seus sonhos, as suas iniciativas, as suas viagens, o seu estilo de vida. Não é perfeito desde o dia da conversão, mas caminha desassombradamente para a identificação plena com Jesus Cristo, pobre e humilhado, que se abandona inteiramente nas mãos do Pai. 13 ib. p. 100 Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta 41 Pedira a Inácio e a Simão Rodrigues, então provincial de Portugal, que enviassem para a Índia missionários bem provados, pois o terreno a evangelizar não se compadecia com debilidades de carácter nem cedências ao egoísmo, nem com fugas para a frente a repugnâncias de toda a ordem. Jesus Cristo crucificado anuncia-se, sobretudo, com o testemunho da própria vida. No frio, na chuva e na fome que experimentaram muitas vezes, nas viagens pela Europa, nos hospícios em que se albergavam e nos doentes que tratavam, nos perigos e nas perseguições que enfrentaram e em tantos outros contratempos, os primeiros companheiros foram bem provados. A confiança na Providência – esse abandono de que estamos a falar – é dom de Deus acolhido e exercido, que se transforma em energia de combate contra todas as formas do mal e robustece, de forma progressiva, a capacidade de cada um para enfrentar as dificuldades e as repugnâncias da missão. Os companheiros de Jesus fizeram voto de pobreza e tomaram-no a sério. Viviam de esmolas, não as acumulavam, não sabiam se teriam uma enxerga para passar a noite, nem o que comeriam no dia seguinte. Em qualquer cidade onde chegassem, procuravam os hospitais para se albergarem e tratarem os doentes. Não deixavam a oração, nem de dia nem de noite, pois aprenderam com Inácio a estar na fonte e no centro da fé e da vida, e sabiam que as suas opções pelo seguimento de Cristo e pelo seu estilo de vida, só podiam subsistir na energia da fonte. Todos os biógrafos de Xavier o apresentam como homem terno, simpático, acolhedor, sempre sorridente, que a todos metia no coração. A qualidade temperamental, transforma-se também, na personalidade de Francisco, em energia apostólica. A afectividade que transparece no seu rosto, devidamente canalizada na direcção do amor e da entrega de vida, é energia de comunicação com os seus semelhantes, fossem eles os irmãos na Companhia, os índios de Goa e da Pescaria, ou os japoneses de Yamagushi. Uma impressionante austeridade de vida não é, no seu caso, incompatível com a cordialidade ou a afabilidade. Por outro lado, a coerência da vida com as S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 42 palavras que saem da sua boca, quando anuncia o Cristo morto e ressuscitado, interpela as consciências e abre os corações à Palavra anunciada. Essa afectividade, devidamente canalizada, e essa coerência entre a vida e a Palavra vêm da sintonia com o seu Rei e Senhor, que lhe é dada por Deus nas longas horas de oração que manteve até ao fim. Variadas testemunhas oculares dizem terem-no “espiado” durante a noite: levantava-se, saía da sua choça e ia para outra: aí ficava em oração pela noite dentro, de joelhos, diante de um crucifixo colocado sobre a mesa14. Dormia poucas horas. Nas suas cartas fala frequentemente das consolações que o Senhor lhe dava, ao ponto de o fazerem soluçar; consolações contínuas, no meio de provações sem conta, a ponto de exclamar: «Ó Senhor, não me deis tantas consolações; mas já que mas dais, pela vossa bondade infinita e misericórdia, levai-me para a vossa santa glória, pois é tanta a pena de viver sem vos ver, depois de tanto vos comunicardes às criaturas»15. A um indígena, ordenado presbítero mais tarde, ficou-lhe na memória um dia de viagem com Francisco; acompanhava-o na visita a umas pessoas e, ao fim de duas horas de caminhada, não conseguiu arrancar-lhe mais do que estas palavras misteriosas: «Não há nada a fazer; este dia, quere-lo Deus para si»16. Ia absorto, e não podia desviar a atenção do seu Senhor que o visitava. Vivia constantemente em estado de consolação17, e perguntava aos seus irmãos na Companhia pelas consolações deles. O mistério de Deus manifesta-se de muitas maneiras, muitas vezes na obscuridade e na aridez. Em Francisco Xavier, podemos discerni-lo, nesta fase da sua vida, na alegria permanente em 14 LEON-DUFOUR, X., o.c., p. 89 ; cfr. SCHURHAMMER, J., o.c., p. 178- -179 SCHURHAMMER, J., o.c., p. 142. O autor cita Monumenta Xaveriana, I, 293. Xavier não teve apenas consolações. Como todos os místicos, teve também horas de obscuridade no seu percurso espiritual. Não lhe faltaram dúvidas sobre a missão, e amarguras com alguns desencantos. Essas horas de obscuridade e de sofrimento são purificadoras de tudo o que ainda não é amor verdadeiro. 16 LEON-DUFOUR, o.c., p. 89 17 Xavier não teve apenas consolações, como notámos atrás, cf. Nota 15. 15 Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta 43 que vive, e nas dilatações da alma, mais ocasionais, que conta nas suas cartas, ou que aparecem em testemunhos de quem o conheceu. Essa alegria permanente que só pode ser a de Cristo nele: «Manifestei-vos estas coisas para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11). Esse é o segredo mais profundo da sua vida onde não podemos entrar, a não ser temerosamente, e guiados pelo Espírito Santo. Não o disse nunca, mas poderia dizer com S. Paulo: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim» (Gl, 2, 20). O segredo da sua vida está na união permanente com Deus que o modelou ao seu jeito, a partir do homem Franscisco, terno, bondoso e apaixonado, que se deixou alcançar. Não lhe faltaram graças de natureza mística embora, na sua modéstia, não fale senão das muitas consolações com que o Senhor o favorecia18. 2. O companheiro jesuíta Os primeiros companheiros de Xavier foram Pedro Fabro e Inácio de Loyola que habitaram o mesmo quarto no Colégio de Santa Bárbara, juntamente com o professor Juan de Peña. Estávamos em 1529. Pouco depois, juntaram-se ao grupo Simão Rodrigues, Laínez, Na humildade, própria dos homens de Deus, recusava-se a aceitar como milagrosos alguns acontecimentos. Um deles, o menino de Combuture, junto ao cabo de Comorín, caíra a um poço e foi de lá retirado, já rígido e pálido. A mãe, desesperada, levou-o ao P. Francisco que se pôs de joelhos, rezou e fez sobre ele o sinal da cruz. «O menino abriu os olhos, e a vida penetrou de novo naqueles rígidos membros», SCHURAMMER, J. o.c., p. 142. A Mestre Diogo que se referia ao facto, e lhe perguntava como fora isso da ressurreição de um morto, Xavier respondeu: «Ressuscitar, eu, a alguém...? Um pecador como eu...? As pessoas trouxeram-me aquele menino, tal como estava – e parecia estar vivo – e eu disse-lhe que, em nome de Deus, se levantasse, e ele levantou-se, e o povo ficou deslumbrado com isto», ibidem, p. 147. A quem quer que lhe falasse no assunto, dizia sempre: o menino ainda estava vivo! 18 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 44 Salmerón e Bobadilha, os quatro que, com Pedro Fabro, fizeram os Exercícios, em 1534, sob a orientação de Inácio. Movidos por ideal comum e por objectivos comuns, o grupo constituiu-se como grupo de amigos no Senhor. Separados temporariamente, algumas vezes, por razões de apostolado, viveram juntos até 1539. A partir de Março de 1540, Xavier nunca mais viu os companheiros até à morte, ocorrida na ilha de Sanshuan, às portas de Cantão, na China, em 1552. Os outros cinco também não ficaram juntos, debaixo do mesmo tecto. Esses doze anos da vida dos companheiros bastariam para demonstrar que a essência de uma comunidade não é o espaço geográfico que a limita, mas a união dos corações que perdura no espaço e para além do tempo, quando o seu fundamento é Jesus Cristo, Senhor do coração de todos. O voto de obediência a um deles, longamente deliberado em 1539, tinha por finalidade coordenar a missão apostólica do corpo, e ser vínculo de unidade de todos os seus membros. Sozinho durante muito tempo, entregue à Providência e à criatividade pessoal, na procura da vontade de Deus a seu respeito, Xavier nunca perdeu de vista o seu voto de obediência ao futuro Geral da Companhia, deixado por escrito horas antes da partida para Portugal, a caminho da Índia. A amizade natural, fundamentada em Cristo, e movida por objectivos comuns, tinha sido reforçada pelo nó da obediência que transformava o grupo em corpo ou em comunidade. Os amigos no Senhor são agora também dependentes no Senhor, porque o seu único objectivo, ao qual tudo o mais se subordina, é a maior glória de Deus e a salvação das almas. Deixaram de viver para si mesmos ou de morrer para si mesmos19. Criaram uma dependência querida e desejada, depois de devidamente reflectida; por isso a vivem na plena liberdade dos filhos de Deus, que mais nada querem além da sua maior glória e louvor. «Se vivemos, é para o Senhor que vivemos; e se morrermos é para o Senhor que morremos», (Rm 14, 7-8). 19 Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta 45 Sem outro meio de comunicação além do correio, que chegava uma ou duas vezes por ano20, Francisco sentia-se dependente de Inácio e dos outros irmãos da Europa. Os laços eram afectivos e de missão comum ou, por outras palavras, de um amor que engloba todos os aspectos. A dez mil quilómetros de distância, corriam as lágrimas pela cara de Xavier, cada vez que recebia uma carta de Inácio, de Simão Rodrigues ou de outros da Europa, ou até dos seus irmãos que já estavam em Goa quando ele pregava nas Molucas ou no Japão. Com uma tesoura, recortava as assinaturas de Inácio e dos outros companheiros que lhe escreviam21, e dependurava-as ao peito, como se fossem relíquias: um companheiro terno, afectivo, apaixonado, que chora de emoção ao receber uma carta, e continua em comunhão com os seus amigos, sempre presentes no pensamento e na oração. Mas há um vínculo ainda maior: Xavier sabe-se membro de um corpo em missão, ligado a ele por vínculo que faz de todos um só corpo e dá a todos uma única missão. Essa é a mesma de Jesus, de quem somos companheiros, e é a mesma da Igreja, que é o corpo de Jesus. Francisco pedia conselhos a Inácio, a Coduri, a Simão Rodrigues e a outros22. A necessidade destes conselhos deve ser procurada, não Houve um intervalo de quatro anos na correspondência entre Xavier e Inácio. 21 SCHURHAMMER, J., o.c., p. 180. 22 Ainda de Lisboa, dias antes de partir para as Índias, Xavier escrevia a Inácio e a João Coduri nestes termos: «Pelo amor e serviço de Deus Nosso Senhor, pedimo-vos que nos escrevais no próximo mês de Março, quando as naus de Portugal partirem para as Índias, sobre tudo o que vos pareça bom, a propósito da conduta que deveremos ter entre os infiéis; porque, mesmo admitindo que a experiência nos ensinará, em parte, a conduta que devemos ter, nós esperamos em Deus Nosso Senhor que será do agrado de sua divina Majestade fazer-nos conhecer por vosso intermédio, todo o resto, sobre a maneira de como devemos servi-lo, pois tememos o que se faz habitualmente e acontece a muitas pessoas, a saber: seja por causa do seu descuido, seja por se recusarem a pedir e a receber conselhos de outrem, Deus Nosso Senhor costuma recusar muitas coisas que lhes concederia 20 46 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte apenas no desejo de se enriquecer com a experiência de outros, mas na consciência que Xavier tem de ser membro de uma comunidade, e de que o Senhor não estaria presente sem a mediação da comunidade. «Receber conselhos é uma “passividade” em relação aos irmãos e ao Senhor. Francisco tem medo de se achar sozinho, gosta de depender»23. A Providência reservava-lhe, no entanto, contrariamente a esse gosto e desejo, um caminho de solidão e de abandono. Em dez anos, recebeu cinco vezes correio de Roma, e duas de Portugal. Podia antecipar-se a Teresa de Ávila e dizer: só Deus basta! O seu sonho estava ainda na China, essa grande e misteriosa nação, onde havia milhões e milhões de almas para salvar. Mas aí, tinha Deus outro plano. Já muito perto do sonho, na ilha de Sanshuan, às portas de Cantão, acompanhado apenas pelo fiel amigo António, umas febres malignas levaram-no à cama, numa palhota da ilha deserta. Era a hora do abandono final. Quinze dias depois, sozinho, durante a noite, deixava o último grito do seu abandono: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. se, humilhando o nosso espírito, nós pedíssemos ajuda e conselho sobre o que devemos fazer, principalmente às pessoas por meio das quais foi do agrado de sua divina Majestade fazer-nos compreender em que é que deseja servir-se de nós; rogamus vos, Patres, et obsecramus iterum atque iterum in Domino, per illam nostram in Christo Jesu conjunctissimam amicitiam (Pedimo-vos, Padres, e vos suplicamos, uma e outra vez, pela nossa íntima amizade em Jesus Cristo...), que nos escrevais os conselhos e os meios de melhor servir a Deus Nosso Senhor, segundo a maneira que vos pareça que devemos agir, pois assim é nosso desejo que a vontade de Cristo Nosso Senhor nos seja manifestada por vosso intermédio». Lettres de S. François Xavier, Bruxelles, Paris, 1922. Carta a Inácio e João Coduri de 18 de Março de 1541. Como se Inácio e Coduri, em Roma, pudessem adivinhar a melhor maneira de proceder em Goa, entre os infiéis. 23 LEON-DUFOUR, X., o.c., p.74-75. FRANCISCO XAVIER O AMIGO APÓSTOLO Francisco de Sales Baptista Introdução Antes de mais, convém delimitar o assunto a que se refere o título desta conferência – o amigo apóstolo. Xavier era uma personalidade extraordinariamente irradiante. Sabia conquistar amigos por toda a parte. Mas uma coisa era a amizade que o fazia tão companheiro dos primeiros jesuítas com quem fundou a Companhia de Jesus; outra, a que tinha com a roda de amigos, sobretudo portugueses, que com ele se cruzaram nos caminhos da vida; outra, finalmente, a que dedicava aos cristãos por ele convertidos do paganismo. Também Jesus tinha vários círculos de amigos: um, era o grupo dos 12 apóstolos com quem partilhava a sua vida e tudo o que tinha; outro, o dos discípulos e amigos que tinha por toda a parte e que o serviam e hospedavam muitas vezes; outro, finalmente, o das multidões que atraía a si com a sua dedicação apostólica. Do companheirismo e profunda amizade que Xavier mantinha com o grupo de amigos com quem se lançou na aventura da Companhia de Jesus, já nos falou a anterior conferência. Da dedicação missionária com que cuidava dos cristãos convertidos do paganismo, vai ocupar-se a conferência seguinte. Aqui, limitamo-nos a falar das amizades que tinha com os que já eram cristãos e de alguma maneira eram seus colaboradores e benfeitores. Eram sobretudo portugueses, que o ajudavam com seus bens e influências, ou simples companhei- S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 48 ros de viagem com quem se aventurava a grandes tempestades pelos mares do Oriente, ou até pessoas desencaminhadas que trouxera ao bom caminho com a sua simpatia e enorme compreensão. É longa a lista. As referências amigas com que aparecem nas suas Cartas, fazem lembrar as listas de recomendações de S. Paulo para os amigos e colaboradores que também ele tinha por toda a parte. É ver, por exemplo, o final da epístola aos Romanos (Rom 16,1-16)1. Toda esta gente acabava por reconhecer em Xavier uma amizade a toda a prova. Como diz um dos seus contemporâneos: «É tanta a opinião que por toda a Índia se tem dele que, de todos, assim dos grandes como dos pequenos, aquele que é mais seu amigo se tem pelo mais bem-aventurado«2. Intitulamos «O amigo apóstolo», porque a amizade de Xavier era perfeitamente integrada: o amigo era inseparável do apóstolo e do santo. Era amigo com toda a solicitude de apóstolo e com toda a elevação cristã da sua santidade. Vamos ver, portanto 1. A irradiação humana da sua amizade 2. A elevação cristã da sua amizade 3. A integração apostólica da sua amizade 1. A irradiação humana da sua amizade Na base das suas amizades estava, sem dúvida, a irradiação humana da sua figura desportiva e alegre, do seu feitio generoso e ousado, do seu carácter recto e comprometido. Cf. ZUBILAGA, Félix: Cartas y escritos de San Francisco Javier, BAC, Madrid, 1953: Carta 5,4. Citamos a numeração dos escritos e respectivos parágrafos nesta edição, que é também a da edição crítica da MHSI- Epp.Xav. menos acessível. Cf. tb. SCHURHAMMER, Georg: Francisco Javier – Su vida y su tiempo, Mensajero, Bilbao, 1992 (4 vols): I,736. Por estas recomendações podemos conhecer muitos colaboradores e amigos que Xavier tinha por toda a parte. Cf. Cartas 7,1; 12,3.6; 16,2.3.7; 19,4; 30,3; 36,2; 47,4; 49,8; 50,9; 54,5; 57,3; 61,15; 62; 65,4; 79,6; 99,1-25; etc. 2 MHSI-Mon.Ind. (= Monumenta Histórica Societatis Iesu – Monumenta Indica): MORAIS, Manuel: Mon.Ind. I,460-462 1 Francisco Xavier, o amigo apóstolo 49 Já pela sua figura exterior, no ser ar desportivo e alegre, era uma personalidade simpática. Assim o descreve o grande historiador Schurhammer aos dezoito anos, baseado em dados dos seus familiares e amigos: era de estatura proporcionada e «corpo ágil, mais alto que baixo, de rosto bem parecido e radiante, cabelo negro e, nos seus olhos, entre negros e castanhos, resplandecia serena a limpidez do seu coração»3. Entre os seus companheiros de Paris, era conhecida a sua atracção pelo desporto. A tal ponto que, depois da sua conversão, ao fazer o mês de Retiro, para mortificar esta sua paixão, atou-se de pés e braços com tal rudeza e força que esteve a ponto de lhe gangrenarem as feridas que causou e só por milagre escapou de lhe ser amputado um dos membros. Mas, mais que a aparência física, era o seu feitio alegre e desportivo que tornava agradável a sua convivência. Todos os que o conheceram notam essa alegria espontânea e desportivismo brincalhão, capaz de rir com os que riem e até de si mesmo, com um bom humor que nunca perdeu. A alegria inundava-lhe constantemente o rosto. Era a primeira impressão que sobressaía em qualquer encontro com ele4. SCHURHAMMER, op.cit. I,84 e Notas; Cf. I,135,Nota245: «Gonçalves da Câmara escreve: ‘Era na ilha de Paris um dos melhores saltadores’. Eustathius von Knobelsdorf, que esteve em Paris de 1541 a 1543 e publicou ali em 1543 o seu livro Lutetiae Parisiorum descriptio, é o primeiro a contar-nos os desportos académicos. Fala de esgrima, lançamento de jabalina, tiro, levantamento de pesos, salto, corridas. Era preferido o jogo da pelota (ténis de frontão) para o qual havia na cidade muitos locais»; Cf. tb. 289-290 e Notas 245, 246. 4 Cf. UBILLOS, El espíritu de San Francisco Javier, Mensajero, Bilbao, 1946: 135-137; 139-142. Um jovem missionário, que chegou à Índia com desejos de o conhecer, assim o descreve às primeiras impressões: «Que afabilidade tem, sempre rindo! Com rosto alegre e sereno, sempre ri e nunca ri: sempre ri, porque tem sempre uma alegria espiritual com que a caridade e o júbilo do espírito se (lhe) manifestam no rosto… E, contudo, nunca ri, porque sempre recolhido em si, nunca se dissipa com as criaturas» (M. NUNES BARRETO, 7.Dez.1552: MHSI-Mon.Ind.II,494-495). Teixeira, estudante jesuíta, que se ocupava em servir Xavier quando voltou do Japão, assim o descreve: «Andava quase sempre com os olhos postos no céu, com cuja 3 50 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte Essa alegria passava muitas vezes ao ar brincalhão com que se metia com as pessoas ou comentava os acontecimentos. Por exemplo, antes da conversão, embora já muito amigo de Inácio, não alinhava nada nos seus fervores e ideais. Muito o picava por causa disso ! E quando soube que Salmerón e Laínez tinham vindo de Alcalá para Paris, só pelo que ouviam dizer de Inácio, fartava-se de rir com eles. Escreve um contemporâneo: «Sendo jovem, brincalhão e ufano da sua nobreza biscainha, e já mais adiantado na filosofia, fazia troça da maneira de viver de Inácio que, naquela altura, vivia de esmolas… Raramente se metia com ele sem o gozar nos seus desígnios e sem atirar uma piada a Laínez e Salmerón por terem vindo de Alcalá a Paris à busca dele por devoção, fundada no que ouviam contar das suas virtudes extraordinárias e perfeição»5. vista dizem que achava particular consolação e alegria. E assim mantinha o seu rosto tão alegre e inflamado, que causava muita alegria a todos os que o viam. E aconteceu algumas vezes alguns Irmãos que andavam tristes irem vê-lo para se alegrar e só com isso se sentirem inflamados com a sua presença. Era muito amável e recebia as pessoas de fora com grande afabilidade. Era alegre e familiar com os de casa, especialmente com aqueles que percebia serem humildes e simples e que tinham de si mesmos pouca opinião e estima… Nesta sua chegada a Goa, foi visitado por muita gente, pela muita devoção e amor que todos lhe tinham. A todos recebia com muita afabilidade e atenção, indo recebê-los logo que o chamavam, a ponto de algumas vezes ter deixado seis e sete vezes de rezar uma das Horas do Breviário que tinha começado, para ir falar com os que o procuravam e outras tantas vezes ter voltado a recomeçar, com tanta devoção como se até então tivesse estado em oração» (SCHURHAMMER IV,640). 5 SCHURHAMMER I,222,Nota189. Mais tarde há-de usar o mesmo ar bricalhão para trazer ao bom caminho os seus amigos (Cf. ibid II,290-292; 798800; 1017-1018). «Quando tinha notícia de algum que levava vida especialmente escandalosa, esforçava-se antes de tudo por assegurar-se da sua amizade e confiança. Metia-se com ele e, com ar alegre de sacerdote pobre, fazia-se convidado para comer em sua casa. Em conversa agradável, sabia apreciar tudo o que lhe serviam. No fim gostava de conhecer também a cozinheira. Chamavam a escrava. O Padre elogiava a sua arte culinária; agradecia-lhe o bom trato que lhe dera; dizia-lhe que tinha de ser uma santa e despedia-se do seu amigo. Nem palavra de alusão à sua vida de pecado, nem muito menos um sermão de penitência. Às vezes, bastava apenas isto para fazer reflectir o pecador e movê-lo a deixar as suas relações ilícitas. Outras vezes, se já havia filhos pelo meio, mandava-os chamar, acariciava-os, cha- Francisco Xavier, o amigo apóstolo 51 Nas suas cartas, não faltam alusões engraçadas a pessoas conhecidas6. Escrevia ele a S. Inácio: «do senhor doutor Iñigo Lopez, tenho por certo que perderia todo o gosto de ser médico se…já não pudesse socorrer o estômago do Padre Inácio e as maleitas de Bobadilha»7. Noutra carta a S. Inácio, pedia notícias do mesmo Dr. Iñigo Lopez e perguntava se já tinha deixado o cavalo e andava de mula, e quando é que ficaria completamente curado para deixar a mula e andar a pé: «grande enfermidade e fraqueza é a sua, pois com tantos médicos e medicinas não acaba de se curar e andar a pé», termina ele8. E ao P. Simão Rodrigues escrevia que não deixasse que algum amigo seu viesse para a Índia com ofícios e cargos de El-Rei, a não ser que fosse confirmado em graça, como os apóstolos, porque «estou espantado como os que daí vêm, acham tantos modos, tempos e particípios a este verbo desgraçado de eu roubo, tu roubas, ele rouba; e são mava também a mãe deles, ponderava (sendo possível) as suas qualidades e, então, já na primeira visita movia o seu amigo, por amor à boa reputação, a casar-se pela Igreja com essa escrava… Outro caso era se o amigo já tinha um harém de escravas com quem convivia: três, quatro ou mais. Via-as servir à mesa, na cozinha, pela casa. No decurso da conversa perguntava ao amigo quantas tinha. Pedia para as conhecer a todas. Vinham. Elogiava-lhes a culinária, o bom serviço; perguntava a cada uma pelo seu país, pela sua família, desde quando estava baptizada, procurando ganhar a todos pela sua amabilidade e singeleza. Parecia não se aperceber de nenhuma desordem. O amigo, que esperava um sermão de reprimenda, respirava com alívio. Convidava segunda, terceira e quarta vez a agradável visita a comer em sua casa. E, uma vez assegurada a amizade e com o campo de batalha desobstruído, entrava Xavier ao ataque: Para quê tantas criadas que só brigavam entre si, traziam perturbação à casa e supunham tantos gastos? E convencia o amigo a despedir uma, para que o Padre, entretanto, já tinha encontrado noivo. Dez ou vinte dias depois, induzia o amigo a despedir outra; depois uma terceira e quarta; até que por fim ficava só uma, que também despedia ou com quem casava, a conselho de Xavier, pois era difícil recusar um pedido daquele a quem já todos chamavam o ‘Santo’» (SCHURHAMMER II,290-292 e Notas). 6 Cartas 12,4; 12,6; 47,4; 49,7; 90,35-36; 92,2; 94,7. 7 Carra 12,6. 8 Carta 47,4. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 52 de tão boa presa…que nunca mais largam aquilo que tomam»9. Em carta para Goa, mandava recomendações para várias pessoas, entre elas, para um padre francês um tanto raro e com quem brincava às vezes: «dareis as minhas recomendações ao Padre francês; e dizei-lhe da minha parte que, uma vez que é vigário de Nossa Senhora da Luz, tome dela muita luz para si, porque, no tempo em que eu o conheci, pouca tinha»10. Também era engraçado a comentar os acontecimentos e maneiras de ser dos outros, desdramatizando desse modo aspectos desagradáveis. Como, por exemplo, o comentário que faz dum desastre que poderia ter sido trágico, na sua viagem para Lisboa. Vinha na comitiva um criado do Embaixador que em Roma tentara ser frade e desistira. Ao atravessarem a vau um rio com corrente muito forte, o criado aventurou-se de mais e foi arrastado com o cavalo, rio abaixo. Com a ajuda e oração de todos, salvou-se como por milagre. E comenta Xavier: «No tempo em que ia pela água abaixo, muito mais teria folgado em estar no mosteiro (que abandonou) do que no lugar onde se encontrava, pesando-lhe muito ter diferido tanto o que muito desejava ter cumprido. Disse-me, quando falei com ele, que em todo o tempo em que andou na água, quase a afogar-se, sem esperança de salvar-se, de nada tinha tanta pena como…não ter cumprido e posto por obra o que Deus N. Senhor lhe tinha começado (a inspirar) acerca do seu modo de vida». E termina Xavier: «Ficou tão espantado, que parecia que vinha do outro mundo»11. Outro segredo da sua irradiação humana era o seu feitio generoso e ousado. Quem o conhecesse mais de perto, naquilo em que se metia, nos seus gostos e projectos, notava logo esse modo generoso e ousado com que pegava nas coisas. Carta 49,7. Carta 92,2. 11 Carta 6,2. 9 10 Francisco Xavier, o amigo apóstolo 53 Generoso. Com o gosto que tinha pela vida mundana, não lhe faltavam ambições. Tinha na família um dos maiores juristas do seu tempo, o tio Dr. Navarro, catedrático de Salamanca e Coimbra, e aspirava a ser intelectual como ele. Abria-se-lhe uma boa posição no alto clero de Pamplona, e não punha de lado esses caminhos. Os dominadores de Castela tinham-lhe inutilizado o castelo familiar e marginalizado a nobreza da família, mas, logo que pôde, reclamou a oficialização dos seus títulos de nobreza para os fazer valer na devida altura. Não faltava campo à sua ambição e não a escondia. Diz o seu amigo e historiador Teixeira: «Embora gostasse muito do trato e amizade de Inácio, não se atrevia a mudar o seu estilo de vida por ser naturalmente inclinado à honra e ao fausto do mundo, segundo nos contaram depois alguns que nesse tempo andavam mais com ele»12. Mas, por detrás desta ambição, estava um coração generoso. Por esta propensão generosa para grandes coisas, fama, glória, lhe há de pegar o seu grande amigo Inácio para lhe virar esta irradiação humana para coisas mais altas. A sua irmã Madalena, santa abadessa das Clarissas de Gandia, anteviu também os enormes recursos destas ambições de Xavier. Por isso, quando começou a faltar dinheiro à família para os estudos do irmão e se pensou em fazê-lo voltar de Paris, ela interveio para que «não deixassem de prover com o necessário o Francisco para os seus estudos, porque esperava em Deus que havia de ser uma coluna da Igreja»13. E não se enganou. Antes de partir para a Índia, ao despedir-se de Simão Rodrigues, revelou-lhe este segredo: «Lembrais-vos ainda daquela noite no hospital de Roma, em que vos despertei a gritar ‘Mais, mais, mais’ ? Quantas vezes me pedistes que vos dissesse o que significava aquilo ! E eu dizia-vos sempre que não era nada ! Mas agora convém que o saibais. – Via eu então (se em sonhos ou desperto, não o sei, Deus o sabe) os grandíssimos trabalhos, fadigas e aflições que por fome, sede, frios, viagens, naufrágios, traições, perseguições e perigos se me ofereciam por amor do Senhor. E que o mesmo Senhor me concedia 12 13 SCHURHAMMER I,222,Nota 189. SCHURHAMMER I,226,Nota 209. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 54 então a graça de que nada disto me bastava, e eu pedia mais e mais com aquelas palavras que me ouvistes. Pois eu espero agora na divina Bondade, que nesta viagem se me vai conceder certamente o que ali se me ofereceu e também o desejo que então se me dava»14. Ousado. Esta mesma generosidade o fará ousado e destemido como poucos. Mostrou-o bem na coragem em arriscar-se aos perigos. Já na viagem para Portugal teve ocasião de o mostrar15. Numa das passagens mais perigosas dos Alpes, o cavalo do Secretário do Embaixador tropeçou num penhasco e caiu por uma ribanceira abaixo até cavalo e cavaleiro ficarem emaranhados num montão de neve, à beira dum abismo. Quando Xavier (que também vinha sozinho mais atrás) viu cá de cima o companheiro lutando por se libertar dos estribos e naquela situação perigosa, desceu do cavalo, deslizou cautelosamente pela ribanceira onde qualquer passo em falso lhe podia ser fatal. E, com sangue frio, com risco da própria vida, retirou cavalo e cavaleiro da beira do precipício. Desde então lhe ficou o Secretário sinceramente agradecido. Nunca esqueceu este gesto e ele mesmo o contou mais tarde16. Esta ousadia destemida há de ser uma das notas constantes da sua vida, quer frente às tempestades no mar17, quer frente aos perseguidores dos seus cristãos, quer frente a ameaças de contágio no trato com os doentes mais empestados. Outro segredo da sua irradiação humana era o seu carácter recto e comprometido. Recto. É o seu tio, Dr. Navarro, que salienta esta rectidão já desde os tempos da juventude. Ninguém o aliciava em jogo falso ou o demovia dos seus princípios. O próprio Dr. Navarro teve a experiência disso, mais tarde. Quando era catedrático em Coimbra, ao saber que o sobrinho Xavier estava em Lisboa à espera de embarcar para a ÍnSCHURHAMMER I,951 e Notas 84,85. Cf. os planos grandiosos de Missão: Cartas 48,4-5; 61,7; 70,8-9; 90,56-57; 110,12 15 SCHURHAMMER I,749 16 Ibid. I,749 e Nota 101 17 Cf. Cartas 59,20-21; 71,10; 76,2 14 Francisco Xavier, o amigo apóstolo 55 dia, pediu-lhe que o fosse visitar pois gostava de falar com ele sobre a nova Ordem em que se alistara, por correrem sobre ela opiniões variadas. Xavier, ocupadíssimo nos seus apostolados, respondeu-lhe delicadamente que, para já, não podia ir a Coimbra e, quanto aos boatos sobre a sua Ordem dizia: «Pelo que V. Mercê me diz na sua carta que, como é costume, se dizem muitas coisas sobre o nosso Instituto – pouco importa, ó ilustre Doutor, ser julgado pelos homens, sobretudo por aqueles que julgam antes de entenderem as coisas»18. O Dr. Navarro insistiu por carta a El-Rei. Quando Xavier soube que por detrás alimentava planos de o reter consigo na Universidade, com promessa de o acompanhar depois para a Índia, escreveu ao Doutor uma carta de despedida, fazendo-lhe ver que, pela sua idade e quebrantadas forças, já não estava para trabalho missionário na Índia, rogando-lhe que suportasse com paciência a separação e consolando-o com virem a encontrar-se no céu19. Sempre foi muito leal. Basta ler a correspondência tão respeitosa e ao mesmo tempo tão franca com D. João III. Com os amigos mais ricos ou poderosos sabia ser tão agradecido como incorruptível pelos dons que recebia. Comprometido. Uma vez que se abalançava a uma coisa, não desistia. É ver a persistência em ir às Molucas, apesar dos avisos dos seus amigos: «Muitos dos meus amigos e devotos instaram comigo para que não fosse a terra tão perigosa; e vendo que não podiam convencer-me a não ir, davam-me muitas coisas para me defender de envenenamentos. Eu, agradecendo-lhes muito a sua amizade e boa vontade, para não carregar-me de medo sem o ter e, sobretudo, por ter posto toda a minha esperança em Deus e não querer perder nada dela, recusei todos os defensivos que com tanto amor e lágrimas me davam, rogando-lhes que em suas orações tivessem contínua memória de mim, pois são os mais certos remédios que se podem achar contra peçonhas»20. Tudo o que se refere Carta 8,2; Cf. SCHURHAMMER I,882 SCHURHAMMER I,886 e Nota 178 20 Carta 55,4. Os primeiros evangelizadores das ilhas de Moro em 1533-1534, Simão Vaz e Francisco Alvares, tinham sido mortos, deixando atrás de si uma comunidade de uns 6.000 cristãos ao desamparo. E escreve Xavier: «…Por ser 18 19 56 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte às Molucas nesta Carta merecia ser citado21. A mesma determinação o movia a ir ao Japão: «Jamais poderia acabar de escrever quanta consolação interior sinto em fazer esta viagem, cheia como está de grandes perigos de morte, por causa dos ventos e tempestades, dos baixios e dos muitos piratas: quando de quatro naus se salvam duas, parece grande ventura. Mas não deixaria de ir ao Japão, pelo que tenho sentido no íntimo da minha alma, mesmo que tivesse a certeza de que me havia de ver nos maiores perigos em que jamais me vi, pois temos grande esperança em Deus que há de ser para grande acrescentamento da nossa santa fé»22. «Chegaram navios a Malaca com notícias muito certas de que os portos da China estão todos levantados contra os portugueses. Mas, nem por isso deixarei de ir ao Japão, como tenho dito, pois não há maior descanso nesta vida desassossegada que viver em grandes perigos de morte, tomados todos imediatamente só por amor e serviço de Deus N.S. e acrescentamento da nossa santa fé; e com estes trabalhos descansa um homem mais que vivendo fora deles»23. E acabou por ir ao Japão, não a terra de Moro muito perigosa, por a gente dela ser muito traiçoeira e misturar na comida e na bebida muita peçonha, deixaram de ir àquela terra pessoas que olhassem pelos cristãos. Eu, pela necessidade que estes cristãos têm de doutrina espiritual e de quem baptize para salvação das almas, e também pela necessidade que tenho de perder a minha vida temporal para socorrer a vida espiritual do próximo, determino ir a Moro…oferecido a todo o perigo de morte, posta toda a minha esperança e confiança em Deus N.S., desejando conformar-me, segundo as minhas pequenas e fracas forças, com o que disse Cristo N.S.: ‘Quem quiser salvar a vida, perdê-la-á; mas quem a perder por amor de Mim, encontra-la-á’ (Mt 16,25). Embora seja fácil entender em geral o latim desta sentença do Senhor, quando um homem se põe a concretizar isso, para dispor-se com determinação a perder a vida por Deus para a achar n’Ele, ao oferecerem-se casos perigosos em que provavelmente se presume perder mesmo a vida, torna-se tudo tão escuro que o latim, sendo tão claro, acaba por escurecer-se. Em tal caso, por mais douto que alguém seja, parece-me que só é capaz de o entender aquele a quem Deus N.S., por sua infinita misericórdia, o quiser em casos concretos declarar. Em semelhantes casos se conhece a condição da nossa carne, quão fraca e enferma é» (Carta 55,4). Segue-se a passagem citada no texto. 21 Cf. Carta 55,4-5. 22 Carta 71,10. 23 Carta 76,2. Francisco Xavier, o amigo apóstolo 57 numa nau portuguesa mas no «junco» dum pirata chinês, a quem o Capitão de Malaca obrigou a deixar uma caução nesta cidade, onde residia com a família. 2. A elevação cristã da sua amizade Mas, se na base das suas amizades estava a simpatia natural da sua alegria, generosidade e rectidão, essa irradiação humana foi-se enriquecendo cada vez mais pela elevação cristã das suas virtudes. A sua humildade que o fazia tão simples, próximo e acessível, tornava mais encantadora a sua figura alegre e sociável; a sua caridade a toda a prova, que o fazia estar ao lado dos amigos no momentos mais difíceis, tornava ainda mais radiante o seu feitio generoso e ousado; e o seu desprendimento incorruptível, tornava ainda mais apreciado a seu carácter recto e comprometido. Era de facto, duma humildade encantadora. Tão simples que cativava logo os corações das pessoas. Tão próxima e à vontade que se podia brincar com ele. Tão acessível e acolhedora que o tornava cada vez mais popular. Foi por ela que conquistou os melhores colaboradores e amigos. Por exemplo, ao demorar-se uns dias em Bolonha, a caminho de Portugal, S. Inácio pediu-lhe que intercedesse junto do cardeal de Bolonha a favor da aprovação pontifícia da Companhia de Jesus. Xavier marcou entrevista e assim conta a Inácio como decorreu o encontro: o velho e bondoso senhor «recebeu-me humaníssimamente, oferecendo-se muito para nos favorecer em tudo o que pudesse. O bom ancião, quando me ia a despedir dele, começou a abraçar-me e eu a beijar-lhe as mãos e, a meio dos arrazoados que lhe disse, pus-me de joelhos e em nome de toda a Companhia de Jesus beijei-lhe as mãos. Pelo que ele me respondeu, e eu creio, ele está muito bem com o nosso modo de proceder»24. E, de facto, ganhou um grande amigo para a Companhia de 24 Carta 5,2; Cf. SCHURHAMMER I,736. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 58 Jesus. Ao chegar à Índia, assim conquistou também uma profunda amizade e colaboração do Bispo de Goa. Indo com poderes de Núncio da Santa Sé para todo o Oriente, a sua primeira preocupação foi ir saudar o Bispo, entregar-lhe a Bula de nomeação e pôr-se inteiramente à sua disposição. Depois de lhe dizer que vinha em missão do Papa Paulo III e encargo de El-Rei para se dedicar aos portugueses, instruir os recém-convertidos e trabalhar na conversão dos infiéis, entregou-lhe as Cartas credenciais que o Papa e o Rei lhe tinham dado como a Núncio apostólico. «Mas acrescentou que as deixava nas mãos de Sua Senhoria e que não queria fazer delas outro uso senão o que o Bispo tivesse a bem. O bondoso e ancião prelado, comovido por tanta humildade, abraçou com enorme carinho o seu visitante, devolveu-lhe os documentos e suplicou-lhe que utilizasse à vontade as faculdades que o Santo Padre e o Rei lhe tinham dado. Desde então, uma íntima amizade uniu aqueles dois corações de idênticos sentimentos»25. A mesma humildade recomendava a todos como base de trato e simpatia26. Esta mesma humildade não só lhe conquistava amigos e colaboradores, mas aumentava cada vez mais a intimidade e confiança que tinham com ele. Sentiam-se tão à vontade em sua companhia que, inclusive, se podiam meter com ele em coisas da sua vida e pregar-lhe partidas. Por exemplo, quando chegaram a Goa notícias da primeira ressurreição obtida de Deus por Xavier na Costa da Pescaria, dois dos seus grandes amigos resolveram meter-se com ele. E, de facto, quando ele regressou a Goa, um deles perguntou-lhe, sem considerações pela sua humildade: «Padre Mestre Francisco, para honra e louvor de Deus, diga-me: que foi aquilo do rapaz que ressuscitou no Cabo Comorim?» Xavier, a rir e abraçando-o, respondeu cheio de confusão: «Jesus, senhor Padre Mestre Diogo! Ressuscitar eu um morto? Pecador de mim!... Trouxeram-me aquele rapaz, tal qual estava, e vinha vivo. Eu disse-lhe que se levantasse em nome de Deus e ele levanSCHURHAMMER II,202 e Carta 121,1-2; Cf. tb. A devolução da igreja de Cochim: Ibid. IV,601-603. 26 Cf. Cartas a Barzeu, Cipriano, Gomes. 25 Francisco Xavier, o amigo apóstolo 59 tou-se, e o povo encheu-se por isso de admiração»27. Outra vez, quando o viram com uma batina tão pobre e já gasta, esses amigos quiseram oferecer-lhe outra. Não aceitou. Então, de noite, trocaram-lha sem ele dar conta e, no dia seguinte, ele vestiu-a sem reparar na diferença. Na brincadeira, meteram-se com ele e disseram: «Então, não queria ! Mas, afinal foi arranjar outra melhor». Ele, ao reparar, desatou a rir, mas não os deixou enquanto não lhe restituíram a primeira28. Esta mesma humildade, não só o aproximava tanto dos amigos, mas tornava-o cada vez mais popular. Toda a gente o sentia muito próximo na sua simplicidade e alegria. Por isso, não admira que acorresse em festa à sua chegada dalguma longa missão e às despedidas quando partia para outra. Assim aconteceu já em Bolonha, onde tinha exercido durante alguns meses o seu apostolado antes de ser chamado para missionário do Oriente. Ao passar de novo por lá, na viagem para Lisboa, o povo acorreu a despedir-se com tal simpatia que muita gente o quis acompanhar até longe da cidade29. A mesma cena se repetiu várias vezes no Oriente. Ao regressar do Japão, depois de muitos meses sem notícias, toda a cidade de Malaca, com o próprio Capitão da fortaleza à frente, acorreu ao porto para o receber30. Se a sua humildade simples e simpática o aproximava tanto das pessoas, a sua caridade a toda a prova mostra até que ponto era capaz de ser amigo. Aqui, a caridade dava a verdadeira medida do seu feitio generoso e ousado. Generoso por feitio, era mais generoso ainda pela caridade que o animava. Nas viagens por mar, longas, duras e arriscadas, não pensava em si. Estava sempre pronto a ajudar algum companheiro que caísse doente. Fazia-lhe a comida, tratava-lhe da roupa e da higiene, velava-o de noite em casos extremos e não parava. E se era algum esSCHURHAMMER II,496. Ibid. II,261-264. 29 Ibid. I,738. 30 Ibid. IV,411-413; Cf. Carta 84,02. 27 28 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 60 cravo ou desgraçado sem eira nem beira, levava-o para o seu beliche e pedia esmola entre os passageiros para o tratar. Na viagem para a Índia, dá testemunho disso o próprio médico de bordo, Dr. Saraiva. Na ilha de Moçambique, onde tiveram de fazer escala para tratar tantos doentes, ele mesmo caiu doente e delirante de febre, de tanto se gastar pelos outros empestados, a ponto de o próprio doutor Saraiva, vendo que nem assim parava, o levar para a casa onde se tinha hospedado para o afastar do contágio e tratar dele31. Ousado já por natureza, era ver a ousadia da sua caridade quando surgiam as tempestades no mar. Esquecendo o próprio medo, animava a todos com a sua grande fé e confiança em Deus, não deixando perder a coragem. As suas cartas dão testemunho destes momentos de fortaleza na fé e da sua têmpera espiritual32. Por exemplo, na viagem para as Molucas: «Em muitos perigos me vi, nesta viagem do Cabo Comorim para Malaca e Molucas, quer em tempestades do mar quer entre inimigos (piratas)… Muitas lágrimas vi então na nau. Quis Deus N.S. nestes perigos provar-nos e dar-nos a conhecer para quanto somos, se nas nossas forças esperamos, ou em coisas criadas confiamos. E para quanto somos, ao contrário, esperando só no Criador de todas as coisas, em cujas mãos está fazer-nos fortes, quando os perigos são recebidos por seu amor. Tomando-os só por seu amor, crêem sem duvidar os que se acham neles, que tudo o criado está à obediência do Criador, conhecendo claramente que são maiores em tal tempo as consolações que os temores da morte, mesmo que um homem acabasse aí os seus dias»33. E, noutra Carta: «Nesta viagem de Malaca para a Índia, passamos muitos perigos de grandes tormentas, três dias com três noites, maiores do que nunca me vi no mar. Muitos foram os que choraram em vida as suas mortes, com promessas grandes de jamais voltar a navegar, Se Deus N.S desta os livrasse. Tudo o que pudemos deitar ao mar, deitamos, para salvar as nossas vidas. Estando na maior força da tormenta, encomenIbid. II,22-27; 84-86; 123-125. Cf. Cartas 55,4-5; 59,20-21; 85,10-14; 90,5-10; 131,3-6. 33 Carta 55,5. 31 32 Francisco Xavier, o amigo apóstolo 61 dei-me a Deus N.S. (e a todos os santos e anjos do céu)…Com todos estes favores e ajudas, achei-me tão consolado nesta tormenta, que nem talvez depois de me ver livre dela (me senti tanto). Achar assim um grandíssimo pecador lágrimas de prazer e consolação no meio de tanta tribulação, para mim, quando me lembro, é uma grande confusão. A tal ponto que, no meio da tormenta, rogava a Deus N.S. que, se desta me livrasse, fosse somente para me meter noutras tão grandes ou ainda maiores, em seu serviço»34. Mas, mais que nas tempestades físicas, sabia estar ao lado dos amigos nas horas difíceis da vida. Um dos exemplos mais belos é a correspondência com o seu grande amigo Diogo Pereira, na altura em que este caiu em desgraça nas relações com o Capitão de Malaca. Aí aparece a gratidão, a fidelidade, a solidariedade, a nobreza do grande amigo que sabia ser Xavier. Finalmente, outra grande virtude de Xavier contribuiu para elevar ao máximo a sua amizade – o seu desprendimento incorruptível. Naturalmente, tendo amigos tão colaboradores e influentes, a quem tanto devia, era de esperar que a gratidão a tantos favores e influências afectasse a independência do seu carácter recto e comprometido. Mas não. Sabia ser nobremente comprometido na sua gratidão para com eles, sem perder a liberdade da sua rectidão. Nobremente comprometido na sua gratidão. Que o diga o governador Martim Afonso de Sousa com quem viajou para a Índia35; que o diga D. João III36; que o diga o seu grande amigo e benfeitor Diogo Pereira37; que o digam D. Pedro da Silva38, Simão Botelho39, o Bispo de Goa40, os portugueses da Índia41. Carta 59,20-21; tb. Cartas 71,10; 76,2. Cartas 16,3; 19,4. 36 Cartas 6,5-6; 11,2; 61,15; 83,3-4; 84,11; 109,6. 37 Cartas 122,3; 129,1.8; 132,2; 136,1-3. 38 Cartas 83,3-4; 84,5; 94,5; 124,1. 39 Carta 54,5. 40 Carta 100,3. 41 Cartas 48,5; 84,11. 34 35 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 62 Mas, ao mesmo tempo, nobremente liberto na sua rectidão. Já o vimos na correspondência com o seu tio Dr. Navarro. Assim o será também com o próprio Rei D. João III, a quem tanta gratidão e amizade não o impedia de lhe lembrar as grandes responsabilidades de Rei em relação a império tão vasto42. 3. A integração apostólica da sua amizade Nele, o amigo, a cristão e o apóstolo andavam perfeitamente integrados. Quanto mais cristão e santo, mais amigo; e quanto mais amigo, mais apóstolo e sacerdote. Não sabia ser uma coisa sem outra. Era duma só peça. Por isso, as pessoas não sabiam distinguir nele o amigo, do santo e do apóstolo. Quanto mais cristão e santo, mais amigo. A sua humildade levavao a ser servo de todos com uma dedicação simples e pressurosa. Na viagem de Roma para Lisboa, que demorou vários meses, «tornouse, desde o primeiro momento, o criado de todos. Nas pousadas, era o primeiro a tomar a seu cuidado os cavalos e a dar-lhes de comer. A sua virtude e o seu carácter alegre e radiante conquistaram-lhe imediatamente os corações de todos». Assim o contou mais tarde o Secretário do Embaixador que vinha na comitiva43. E tanto na Índia como em todo o Oriente há de ser sempre assim. E quanto mais amigo, mais apóstolo, pois amava o homem todo. Queria-lhe tanto o bem temporal como o bem eterno. Era amigo para a eternidade44. Por isso, tanto se interessava em fazer pelos seus amigos todas as recomendações que lhe pediam junto do Rei e dos Governadores para que os favorecessem na vida pelos seus serviços, Cf. Cartas 46 e 61, em que lhe lembra isso mais claramente. SCHURHAMMER I,732 e Nota 9. 44 Cf. Cartas a D. João III, a Diogo Pereira, Cartas 65,3; 122,3; 129,3-4; 136,1-3. 42 43 Francisco Xavier, o amigo apóstolo 63 como se preocupava também por lhes assegurar as recompensas da vida eterna com constantes apelos a uma vida cristã exigente. Recomendações a favor de amigos e doutras pessoas que ele via que serviam bem o país naquelas paragens não faltam nas suas cartas ao Rei e aos seus conhecidos em Goa. Quase sempre junta às cartas para D. João III uma grande lista de pessoas, com informações sumárias sobre os seus serviços no Oriente, para que faça justiça aos seus méritos e fidelidade. Por exemplo, a Carta 99, em que ao fim pede desculpa de tantas recomendações: «Por serviço de Deus peço a V. Alreza que me perdoe por ser tão importuno em recomendações de tantas pessoas. Em tudo fará o que for mais serviço seu, porque eu não desejo senão servi-lo»45. Lá mesmo, na Índia, interessava-se pelo futuro de algumas famílias mais amigas e chegou até a fazer-se casamenteiro. Por exemplo, escreve ele aos Padres de Goa: «Aqui, em Malaca, encontrei um grande amigo meu, por nome Cristóvão de Carvalho, homem solteiro, chegado muito a virtude, rico, honrado e de muito boas partes; e eu, pelo zelo que tenho da salvação de todos, roguei-lhe, pela grande amizade que entre nós havia, que aceitasse, por amor de N. Senhor, tomar e escolher algum modo de viver em serviço de Deus e até para descansar; pois bem sabia em quantos perigos andavam os que não têm modo no seu viver. E ele me disse que muito desejava já descansar nalgum bom estado de vida e que fosse serviço de Deus N. Senhor e para merecer as mercês e esmolas que N. Senhor, por sua misericórdia, lhe tinha feitas. E andando assim, de conversa em conversa, lembrando-me eu das grandes caridades e esmolas que todos temos recebido da nossa Mãe (Violante Ferreira, viúva de Diogo Fróis), falei-lhe de ele se casar com uma filha dela, e dei-lhe informação dos seus costumes e virtudes; e ele ficou muito satisfeito… e ficou muito empenhado e me deu palavra de sim, a qual eu creio que ele cumprirá como verdadeiro amigo meu e por ser coisa de tanta honra, proveito e descanso seu; e sobre isto já escrevi à nossa Mãe». E prossegue dizendo como o hão de ajudar em Goa em tudo o que 45 Carta 99; Cf. Cartas 46; 57; 61; 62; 69; 77; 83; 87; 109. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 64 for preciso para que ele e a família da esposa fiquem em boa situação social46. Mas era sobretudo o bem eterno que desejava assegurar aos seus amigos. Por isso, não se poupava, quer no convívio quer nas cartas que lhes escrevia, em lembrar-lhes os valores eternos e o desejo de um dia se encontrarem todos no céu47. Já o retrata assim o Embaixador Pedro de Mascarenhas na sua viagem para Lisboa. Escrevendo a S. Inácio como estava a correr a viagem, já com duas semanas de caminho, diz-lhe: «N. Senhor lhe pague o conselho que me dá, quanto às minhas confissões. De mim lhe digo que, embora as minhas fraquezas costumassem fazer-me negligente até agora nisto como noutras coisas, basta ir comigo o Padre Mestre Francisco para dar-me no espiritual aquele calor que a minha frialdade estava a precisar. As notícias da minha viagem deixo-as para o Mestre Francisco, pois nas coisas do mundo está menos ocupado do que eu, e nas do espírito nunca está ocioso»48. E tanto na Índia como em todo o Oriente há de ser sempre assim. Conclusão Também nos conselhos que dava aos seus missionários, mostra que não separava estas três coisas. Por isso, insistia que para ser apóstolo era preciso ser amigo (fazer-se amar de todos); e para ser amigo a valer, espiritualmente influente, era preciso cuidar da qualidade da sua própria vida e ser santo. Para ser apóstolo era preciso ser amigo49: «Com todos os portugueses dessa Costa procurareis viver em paz e amor… e, com nenhum estareis mal, ainda que eles queiram. Os agravos que eles fizerem aos cristãos, com amor os repreendereis; quando neles não houver emenda, fá-lo-eis Carta 88; Cf. tb. Carta 123, a favor do casamento doutro amigo, Afonso Gentil, a quem desejava regularizar a situação matrimonial. 47 Cf. conclusões dalgumas Cartas. 48 SCHURHAMMER I,737. 49 Instruções 64,12-13; 80,6.10.16.17.24; 104,10. 46 Francisco Xavier, o amigo apóstolo 65 saber ao Capitão (da fortaleza)»50. «Quer com os que são muito amigos quer pouco amigos… de tal maneira vos havereis com eles em todas as vossas práticas, conversações e amizades, como se eles algum dia viessem a ser vossos inimigos; porque isto vos aproveitará (a vós) para os edificar muito em todas as vossas coisas, e a eles para envergonhar-se quando deixarem de ser vossos amigos»51. Faz lembrar S. Paulo: «a ninguém devais nada a não ser a caridade» (Rom 13,8). «Sejam as vossas repreensões quando com eles tiverdes amizade; e se for muita a amizade, repreendê-los-eis muito; e se pouca, pouco os repreendereis. De maneira que as repreensões serão com rosto alegre, e palavras mansas, e de amor, e não de rigor; de quando em quando abraçando-os, humilhando-vos diante deles, e isto para que recebam melhor a repreensão»52. «Ao Capitão de Ormuz… por nenhuma coisa rompereis com ele, ainda que vejais que faz coisas muito mal feitas. E quando virdes que é vosso amigo, com muito amor, doendo-vos da sua alma e honra, com muita humildade e rosto alegre, lhe direis o que por fora se diz dele. E isto quando virdes que pode aproveitar e quando virdes que está com disposição»53. «Sede afável e benigno, e as repreensões sejam em particular, com amor e graça, sem que sintam de vós que vos aborrecem os que falam ou tratam convosco»54. «Olhai que vos recomendo que sejais muito amigo do Vigário (de Baçaim) e de todos os Padres e do Capitão e oficiais de El-Rei e de todo o povo, porque em saber ganhar a vontade dos homens, fazendo-se amar deles, está o fruto das pregações»55 E para ser amigo a valer, é preciso não se descuidar de ser santo56: «Primeiramente, lembrai-vos de vós mesmo, tendo conta com Deus Instrução aos missionários da Costa da Pescaria 64,12-13. Instrução missionária a Barzeu 80,6. 52 Ibid. 80,10. 53 Ibid. 80,17. 54 Ibid. 80,24. 55 Carta 104,10. 56 Instrução missionária a Barzeu 80,1.5.7.8; Instrução II a Barzeu 115,1; Instrução III a Barzeu 116,3; Instrução IV a Barzeu 117,1; Instrução a Herédia 120,1.5; Carta 113. 50 51 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 66 principalmente e, depois, com a vossa consciência. Com estas duas coisas podereis aproveitar muito ao próximo»57. «Do descuido que temos de nós mesmos, nascem muitas ocasiões por onde os que forem nossos amigos deixem de o ser; e os que são nossos inimigos ou não nos conhecem , se escandalizem»58. «Sobretudo vivei tendo mais conta da vossa consciência que da dos outros; porque quem para si não é bom, como o será para os outros ?»59. «Lembrai-vos, sobretudo, que a autoridade (crédito) junto do povo é Deus que a há de dar. E dá-a àquelas pessoas que têm virtudes para Ele lhes confiar a sua autoridade e crédito… E quando os homens querem por si este crédito com o povo, atribuindo-se a si o que não está neles, Deus deixa de lho dar, para que os seus dons não caiam em desprezo e se distingam os perfeitos dos imperfeitos»60. O que recomendava aos outros, praticava-o ele. Até ao fim da vida procurou viver em pleno o que aprendeu de S. Paulo: «Fiz-me o servo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Com os judeus fiz-me judeu, para ganhar os judeus…Com os fracos fiz-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a todo o custo. E tudo isto faço por causa do Evangelho, para dele me tornar participante» (1Cor 9,19-23). Por isso, mesmo depois de morto, o seu corpo foi recebido em triunfo por todos os portos do Oriente por onde passou, até repousar em Goa como relíquia que ainda hoje atrai muita gente para Cristo. Instrução missionária a Barzeu 80,1. Ibid. 80,7. 59 Ibid. 80,8. 60 Instrução a Herédia 120,5. 57 58 Francisco Xavier, o amigo apóstolo 67 Bibliografia Só a de algum interesse para a espiritualidade de Xavier ZUBILLAGA, Félix (Ed.): Cartas y escritos de San Francisco Javier, BAC, Madrid, 1953. Publicação espanhola completa, segundo a edição crítica da MHSI (= Monumenta Histórica Societatis Iesu) – Epp.Xav. (1944-1945). Dos 137 documentos reconhecidos como autênticos, 34 são originais (8 autógrafos e 26 assinados) e 8 só se conservam em traduções posteriores. Do total de documentos, 91 estão redigidos em português, 33 em espanhol, 3 em latim e 2 em português misturado com espanhol. Dos 137 documentos, 108 são cartas propriamente ditas e 29 são instruções de vários géneros. MARTINS, Mário (Ed.): Cartas e escritos de S. Francisco Xavier, A.I., Porto, 1952. Edição parcial em português, que contém apenas 23 cartas e uma oração de S. Francisco Xavier. SCHURHAMMER, Georg: Francisco Javier, su vida y su tiempo, Mensajero, Bilbao, 1992 (4 vols). Obra fundamental, escrita pelo melhor especialista em história de S. Francisco Xavier. CROS, Joseph Marie: Saint François Xavier – Sa vie et ses lettres, Toulouse/Paris, 1900 (2 vols). BROU, Alexandre : Saint François Xavier, Beauchesne, Paris, 1912 (2 vols). BRODRICK, James : Saint François Xavier (1506-1542), Burns Oates, London 1952. Em espanhol : San Francisco Javier, Espasa-Calpe,Madrid, 1972. TESTORE, Celestino : S. Francesco Saverio, Alba 1932. LABORDE : L’Esprit de Saint François Xavier, Bordeaux 1920. TESTORE : Lo spírito di S. Francesco Saverio. Tradução do anterior, acrescentada com novas citações. LABORDE-TESTORE: El espíritu de San Francisco Javier, Bilbao/Madrid, 1943. UBILLOS, Guillermo: El espíritu de San Francisco Javier, Mensajero, Bilbao 1946. A completar com a biografia de Xavier escrita pelo mesmo autor e base de muitas citações nesta obra: San Francisco Javier, apóstol de las Índias y Japón (1506-1552), Ed. Itxaropena 1978. LÉON-DUFOUR, Xavier: San Francisco Javier – Itinerário místico del apóstol, Mensajero, Bilbao, 2000. TEIXEIRA, Manuel: Vida do Bem-aventurado Padre Francisco Xavier, 1580. (Ed. Em MHSI-Mon.Xav. II, 815-918) «Em 1580, Manuel TEIXEIRA, que tinha conhecido Xavier em Goa, enviou de lá à Europa uma vida curta do mesmo. Baseava-se na própria experiência, nos relatos dos contemporâneos, nas cartas do Santo e nos depoimentos das testemunhas convocadas em 1556 e 1557. É uma das fontes principais para a vida do santo» (SCHURHAMMER, I, 68 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte Prólogo). Os relatos de ANTÓNIO O CHINÊS sobre a morte de Xavier, a que assistiu, e os depoimentos para o processo de canonização encontram-se também em MHSI-Mon.Xav.II. LUCENA, João de: História da vida do P. Francisco de Xavier…, Lisboa, 1600. Vida do Padre Francisco Xavier – Nova edição actualizada na grafia e pontuação e anotada, União Gráfica, Lisboa, 1959/1960 (2 vols). O Autor é um clássico da literatura portuguesa do seu tempo. Apesar dos reparos que lhe faz SCHURHAMMER, por falta de crítica na utilização das fontes históricas, esta é ainda uma biografia de Xavier a consultar. FRANCISCO XAVIER O MISSIONÁRIO Nuno da Silva Gonçalves Em 1538, Diogo de Gouveia, numa carta escrita de Paris a D. João III, informou o monarca português sobre a constituição de um grupo de clérigos “de muito exemplo e letrados”, acrescentando que não se poderiam encontrar “homens mais aptos para converter toda a Índia”. Referia-se a Inácio de Loiola e seus companheiros que, uma vez terminados os estudos na Universidade de Paris, tinham partido para Veneza onde esperavam encontrar passagem para Jerusalém. Impedidos pela guerra com os turcos de se deslocarem à Terra Santa, puseram em prática a segunda cláusula do voto feito anteriormente em Paris: partiriam para Roma para se entregarem às missões que o Papa lhes quisesse confiar. De posse das informações de Diogo de Gouveia, D. João III instruiu o seu embaixador em Roma, D. Pedro de Mascarenhas, para que procurasse obter a colaboração desses sacerdotes que o poderiam ajudar a dar resposta às necessidades missionárias dos seus vastos territórios ultramarinos. Inácio de Loiola acedeu ao pedido e enviou dois dos seus primeiros companheiros: Francisco Xavier e Simão Rodrigues, ambos chegados a Portugal em 1540. Simão Rodrigues acabou por permanecer no Reino, onde seria o primeiro provincial da Companhia de Jesus, e Xavier partiu para o Oriente em 15411. 1 Cfr. “Jesuítas”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, direcção de Carlos Moreira Azevedo, vol. III, [Lisboa] Círculo de Leitores, 2001, pgs. 21-31. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 70 Antes de procurarmos saber que missionário foi Xavier, é importante que nos perguntemos em que Igreja se integrava. Esta pergunta levar-nos-á a uma outra, mais específica: qual a consciência missionária da Igreja de meados do século XVI? Comecemos pela primeira pergunta. A Igreja do tempo de Xavier e dos outros primeiros companheiros de Inácio de Loiola é uma Igreja de contrastes: por um lado, estão ainda muito presentes os sinais de decadência e de mundanismo em que germinara a Reforma protestante; por outro lado, reforçavam-se, no interior do próprio catolicismo, as tendências que aceleraram a renovação eclesial e que viriam a consubstanciar-se no programa reformador do Concílio de Trento, reunido em três sessões entre 1545 e 15632. Sinais de vontade de reforma, a nível do próprio papado, encontram-se já em Clemente VII (1523-1534) que ousou cortar com o estilo mundano da corte papal de Leão X, seu antecessor. Com efeito, este pontífice manifestou-se atento às exigências dos grupos religiosos mais autênticos, apoiou a reforma das ordens religiosas e aprovou as duas primeiras ordens de clérigos regulares: os teatinos e os barnabitas. Ocupou-se, igualmente, das condições necessárias para a admissão à ordenação sacerdotal e deu início à reforma do clero diocesano em Itália e outros países. Com Clemente VII, a partir da aprovação dos primeiros clérigos regulares e reconhecida a necessidade do estabelecimento de condições mais rigorosas na admissão à ordenação, começou a emergir uma das tendências fundamentais da Reforma católica: a necessidade de reforçar a identidade sacerdotal na sua dimensão eminentemente pastoral. Não faltou a Clemente VII a percepção da importância de promover a reforma de todo o clero, incluindo bispos e cardeais. No entanto, uma tal reforma, nas circunstâncias de então, só um concílio a poderia decretar e impor. Essa visão global, aliada ao projecto Sobre o catolicismo nesta época, veja-se Mario Fois, “A Igreja europeia na época da fundação da Companhia de Jesus”, in A Companhia de Jesus e a Missionação no Oriente, Lisboa, Brotéria-Fundação Oriente, 2000, pgs. 15-34. 2 Francisco Xavier, o missionário 71 de convocação de um concílio, ficou a dever-se a Paulo III (15341549), seu sucessor. Efectivamente, Paulo III reformou o colégio cardinalício, partindo daí para a convocação do Concílio de Trento. É verdade que tinham existido cardeais reformadores escolhidos por Leão X e Clemente VII, mas permaneciam excepções. Foi Paulo III quem transformou o colégio cardinalício, de modo a torná-lo um verdadeiro motor de renovação da Igreja, como se confirmaria pela eleição de pontífices como Marcelo II, em 1555, e Paulo IV, que lhe sucedeu no mesmo ano. A reforma decretada pelo Concílio de Trento viria a recuperar a figura do bispo-pastor como também a do sacerdote-pastor. Foi essa a orientação das primeiras propostas e dos debates teológicos que se concretizaram nos decretos tridentinos. Nessa mesma linha, inscreve-se a aprovação por Paulo III, em 1540, de duas novas ordens de clérigos regulares: os jesuítas e os somascos que concretizavam a figura do sacerdote reformado. Paulo III, o papa que assistiu ao nascimento da Companhia de Jesus e a aprovou, não conseguiu realizar, no que se referia à reforma da Igreja, tudo aquilo que desejava. No entanto, apesar do muito que deixou por fazer, indicou aos seus sucessores o caminho a percorrer. A Igreja do tempo de Xavier apresenta-se-nos, assim, numa evolução contraposta: os aspectos negativos vão lentamente diminuindo e o movimento reformador vai-se fortalecendo até se implantar nos vários sectores, por acção do Concílio de Trento. O clero será um dos principais beneficiários desta reforma e, nesse sentido, a figura de sacerdote que Inácio de Loiola e os seus primeiros companheiros concretizam corresponde à dos primeiros clérigos regulares ou padres reformados. Tratava-se duma autêntica reabilitação da figura do sacerdote, valorizado, antes de mais, pela sua missão pastoral no seio da comunidade cristã e pela consagração de toda a vida à causa do Evangelho; um sacerdote dedicado, acima de tudo, à pregação, à catequese, à celebração dos sacramentos, à direcção espiritual dos fiéis e à educação da 72 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte juventude, de modo a formar cristãos autênticos que correspondessem com a sua vida às necessidades da Reforma católica. Além desta visão claramente apostólica do sacerdócio, visão comum a outras ordens religiosas fundadas no século XVI, Inácio de Loiola imprimiu à Companhia de Jesus a espiritualidade nascida dos Exercícios Espirituais e dotou-a de uma estrutura orgânica particularmente inovadora. Enquanto outras ordens religiosas contemporâneas – barnabitas, teatinos, somascos ou oratorianos – mantinham ainda formas monacais, como o coro e o capítulo local, Santo Inácio afastou da Companhia de Jesus tudo o que pudesse impedir a mobilidade do jesuíta no campo apostólico. Deste modo, por indicação do papa, ou dos seus superiores, o jesuíta estava pronto para partir, não só para qualquer região de fiéis católicos mas também para as regiões de protestantes, ortodoxos ou infiéis, incluindo os países longínquos das Índias orientais e ocidentais. Esta referência à disponibilidade para a missão faz-nos passar à segunda pergunta, já formulada no início: que consciência e que empenho missionários existiam na Igreja no tempo de Xavier? Um organismo específico da Cúria Romana para a problemática das missões só surgiria em 1622, com a criação da Congregação de Propaganda Fide pelo papa Gregório XV. No tempo de Xavier, as obrigações missionárias da Igreja tinham sido delegadas, em grande parte, na Coroa portuguesa e na Coroa espanhola, em virtude da concessão do direito de padroado. É verdade que Xavier partiu para o Oriente de posse do título de núncio apostólico; no entanto, foi, antes de mais, como enviado da Coroa portuguesa e em dependência directa e pessoal de D. João III que assumiu o seu trabalho evangelizador no Oriente. Pelo direito de padroado, o rei de Portugal, na sua qualidade de governador e administrador da Ordem de Cristo, tinha-se tornado o primeiro responsável pela evangelização dos territórios ultramarinos e pela organização e manutenção das igrejas locais. Este direito de padroado, que se foi consolidando pouco a pouco desde o início da expansão portuguesa, baseava-se numa série de documentos pon- Francisco Xavier, o missionário 73 tifícios entre os quais há três que merecem ser assinalados. A 8 de Janeiro de 1455, o papa Nicolau V, com a bula Romanus Pontifex, concedeu ao rei de Portugal o direito de enviar missionários e de fundar igrejas, mosteiros e outros lugares pios, nos novos territórios ultramarinos. No ano seguinte, a 13 de Março, Calisto III, com a bula Inter coetera, confirmou as disposições do seu antecessor e concedeu a jurisdição espiritual à Ordem de Cristo, de que o Infante D. Henrique era grão-mestre; essa jurisdição era exercida através do prior-mor de Tomar. Após a morte do Infante D. Henrique, o Grão-Mestrado da Ordem de Cristo, embora apenas a título pessoal, ficou sempre de posse de membros da família real até que o papa Júlio III, a 30 de Dezembro de 1551, incorporou na Coroa portuguesa, com a bula Praeclara charissimi, os mestrados das três ordens militares existentes, suprimindo a jurisdição do prior de Tomar que transferiu para o rei. Ficou assim definido o quadro jurídico em que agiam os reis de Portugal, percebendo-se, deste modo, a constante invocação do título de governador e administrador da Ordem de Cristo na documentação real respeitante às missões. O Padroado conferia à Coroa portuguesa privilégios consideráveis, como a iniciativa de erigir dioceses e o direito de apresentação dos candidatos ao episcopado e aos outros benefícios eclesiásticos; mas não eram menores os encargos organizativos e financeiros assumidos3. D. João III foi dos monarcas mais zelosos no cumprimento das obrigações missionárias da Coroa e Xavier colocou-se inteira e lealmente ao seu serviço. Sentia-se, em primeiro lugar, instrumento nas mãos de Deus e, por isso, escrevia: “confio que Cristo Nosso Senhor me há-de escutar e conceder esta graça, a saber, que Ele empregue este instrumento inútil, que sou eu, para implantar a Sua fé Cfr. “Padroado”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, direcção de Carlos Moreira Azevedo, vol. III, [Lisboa] Círculo de Leitores, 2001, pgs. 364-368. 3 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 74 entre os pagãos”4. Ao mesmo tempo, porém, não esquecia que esse “instrumento inútil” tinha sido colocado, por missão recebida de Santo Inácio, ao serviço do rei de Portugal. Apesar da distância a que se encontrava do Oriente, a responsabilidade de D. João III era clara aos olhos de Xavier. Assim, ao escrever ao rei, a 20 de Janeiro de 1545, afirmava: “Com toda a razão recomenda insistentemente Vosssa Alteza aos que envia a estas regiões que trabalhem infatigavelmente na propagação da nossa santa fé e aumento da religião, pois sabe Vossa Alteza que Deus lhe há-de pedir contas da salvação de uma tão grande multidão de gentes”5. O “cuidado da consciência” do rei leva Xavier a afirmações desassombradas e exigentes: “Reflicta bem Vossa Alteza e calcule com exactidão todos os benefícios e bens temporais que, por graça de Deus, recebe destas Índias. Subtraia à soma total aquilo que nestas regiões emprega no serviço de Deus e bem da religião. E, assim, estabelecendo uma serena comparação entre os interesses da coroa real e os de Deus e da Sua glória, faça a repartição que a alma agradecida e religiosa de Vossa Alteza creia ser boa e justa, tendo cuidado que não pareça que o Criador de todas as coisas, que tão generoso se mostrou em conceder-lhe bens, receba de Vossa Alteza uma remuneração escassa e diminuta”6. Xavier não teme concluir, logo a seguir, num crescendo de exigência: “Dos abundantes benefícios que de aqui vão para enriquecer o erário régio, apenas uma pequena parte é destinada por Vossa Alteza a remediar as gravíssimas necessidades espirituais que há nestas regiões”7. Poucos anos depois, em 1549, Xavier continua no mesmo tom: “a experiência tem-me ensinado que Vossa Alteza não é poderoso Carta aos jesuítas de Roma, Goa, 20 de Setembro de 1542, in Cartas e Escritos Selectos de S. Francisco Xavier, introdução de Mário Martins, S.J., Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1952, pg. 19. 5 Carta a D. João III, Cochim, 20 de Janeiro de 1545, in Cartas y Escritos de San Francisco Javier, Madrid, BAC, 1953, pg.164. 6 Ibidem, pg. 166. 7 Ibidem. 4 Francisco Xavier, o missionário 75 na Índia para acrescentar a fé de Cristo mas é poderoso para levar e possuir todas as suas riquezas temporais”8. Com alguma desilusão, afirma, na mesma ocasião, não ter esperança de ver cumprida na Índia a legislação que D. João III pudesse vir a estabelecer em favor da cristianização. Estas dificuldades sentidas na Índia, em territórios onde não encontra o apoio que esperaria das autoridades portuguesas, acabam por ser ocasião e uma das motivações apresentadas para partir para o Japão, em busca de um fruto maior9. Xavier é exigente com D. João III no cumprimento das suas obrigações missionárias, alerta-o corajosamente para os desvios que existiam na administração portuguesa, sente-se por vezes insatisfeito mas, simultaneamente, sabe manifestar, com delicadeza, o seu reconhecimento. Escreve, em 1548: “nada mais desejo do que trabalhar e morrer nestas partes a fim de ajudar a descarregar a consciência de Vossa Alteza por causa do grande amor que tem à nossa Companhia”10. Xavier não se eximia a apresentar as críticas que se justificassem; no entanto, ao mesmo tempo, e havendo razões para isso, reconhecia com gratidão os apoios recebidos dos representantes portugueses no Oriente. Quando, em 1549, em Malaca, se preparava para partir para o Japão, Xavier dirige-se a D. João III e não poupa elogios a D. Pedro da Silva: “O capitão desta fortaleza nos recebeu aqui a todos, com muito amor e caridade, oferecendo-se a nos favorecer e ajudar nesta viagem que íamos fazer, por ser muito serviço de Deus e de Vossa Alteza. [...] Mandou-nos dar todo necessário para nossa viagem, muito cumpridamente, e para quando chegarmos a Japão, assim para nosso mantimento, para algum tempo, como para fazermos uma casa de oração, para dizermos missa”11. E acrescentava, ainda, para informação do rei: “Esta conta vos dou, tão particularCarta a D. João III, Cochim, 26 de Janeiro de 1549, Ibidem, pg. 304. Ibidem. 10 Carta a D. João III, Cochim, 20 de Janeiro de 1548, Ibidem, pg. 240s. 11 Carta a D. João III, Malaca, 20 de Junho de 1549, in Cartas e Escritos de S. Francisco Xavier, cit., pg.122s. 8 9 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 76 mente, a Vossa Alteza, para que saiba as muitas honras, e mercês, e caridades que nos fazem os seus fiéis e leais vassalos da Índia. É certo, Senhor, que posso dizer, com verdade, que nunca homem veio à Índia que tantas honras e mercês recebesse dos portugueses da Índia, como eu”12. Mesmo no Japão, tão longe dos territórios controlados por Portugal, Xavier conta com o apoio da Coroa. Escreve, numa longa carta aos jesuítas da Europa, em Janeiro de 1552: “Em todo este tempo que estivemos no Japão, que seria mais de dois anos e meio, sempre nos mantivemos com as esmolas que o cristianíssimo rei de Portugal nos manda dar nestas partes; porque, quando fomos ao Japão, mandou-nos dar mais de mil cruzados. Não se pode crer quão favorecidos somos por Sua Alteza e o muito que connosco gasta ao dar tantas esmolas para colégios, casas e todas as outras necessidades”13. Face a afirmações como estas, quando nos perguntamos que tipo de missionário foi Francisco Xavier, temos de responder que, apesar das dificuldades enfrentadas, Xavier foi clara e assumidamente um missionário ao serviço da Coroa portuguesa e do seu padroado. Foi também um missionário que sempre quis ir mais longe, em busca do maior fruto. Este seu desejo de maior serviço traduz-se em várias e repetidas expressões: “fazer muito fruto”; “fazer infinito fruto”; “acrescentar muito os limites da Santa Madre Igreja”; “fazer muito serviço a Deus Nosso Senhor”; “acrescentar a nossa santa fé”; “acrescentar a lei de Nosso Senhor Jesus Cristo”14. Vejamos, em particular, o contexto em que usa estas expressões, tão próprias de quem tinha sido formado na escola dos Exercícios Espirituais. Em 1541, pouco antes da partida de Lisboa para Goa, Xavier escreve a Santo Inácio: “partimos esta semana para as Índias; e, atendendo à muita disposição que há naquelas terras para converter almas, Ibidem, pg. 123. Carta aos jesuítas da Europa, Cochim, 29 de Janeiro de 1552, in Cartas y Escritos de S. Francisco Javier, cit., pg. 415. 14 Ibidem, pgs. 75, 101, 179, 235, 351, 418. 12 13 Francisco Xavier, o missionário 77 segundo nos dizem todos os que lá têm estado muitos anos, esperamos em Deus nosso Senhor que havemos de fazer muito fruto”15. Em 1545, escreve de Cochim ao P. Simão Rodrigues a pedir mais missionários e dá a seguinte justificação: “Mandai muita gente para a Índia porque acrescentarão muito os limites da Santa Madre Igreja”16. O desejo de acrescentar os limites da Igreja não fica confinado à Índia, a Malaca ou às Molucas. É em relação ao Japão e à China que o entusiasmo de Xavier se manifesta mais forte e frequentemente. Por isso, em 1548, escreve: “Todos os comerciantes portugueses que vêm do Japão me dizem que, se lá fosse, faria muito serviço a Deus nosso Senhor, mais do que com os gentios da Índia, por ser gente de muita razão. Parece-me, pelo que vou sentindo dentro da minha alma, que eu ou algum da Companhia iremos ao Japão antes de dois anos”17. Essa atenção ao que sentia na alma – um processo de verdadeiro discernimento espiritual – leva Xavier à decisão de partir para o Japão. Em 1549, confirma esse propósito a Santo Inácio: “determinei ir a esta terra com muita satisfação interior, parecendo-me que entre tal gente se pode perpetuar por eles mesmos o fruto que em vida os da Companhia fizermos”18. Estas palavras constituíam uma verdadeira profecia, se pensarmos que, do século XVII ao século XIX, o cristianismo no Japão haveria de subsistir sem qualquer contacto com o exterior. Poucos meses depois da chegada ao Japão, mantém-se confiante, já pensa em ir mais além, e afirma: “entre todas as terras que estão descobertas, em nenhuma se pode fazer tanto fruto nem perpetuarse a Companhia como na China e no Japão”19. Sempre disposto a alargar as fronteiras da sua acção missionária, Xavier programa para 1552 a viagem à China. Nesse ano, escreve aos Carta a Santo Inácio de Loiola, Lisboa, 18 de Março de 1541, Ibidem, pg. 75. Carta ao P. Simão Rodrigues, Cochim, 27 de Janeiro de 1545, Ibidem, pg. 15 16 179. Carta aos jesuítas de Roma, Cochim, 20 de Janeiro de 1548, Ibidem, pg. 235. Carta a Santo Inácio de Loiola, Cochim, 12 de Janeiro de 1549, Ibidem, pg. 17 18 281. Carta ao P. Paulo, Kagoshima, 5 de Novembro de 1549, Ibidem, pg. 389. 19 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 78 jesuítas da Europa: “Creio que, neste ano de 52, irei lá, onde está o rei da China, porque é terra onde se pode muito acrescentar a lei de Nosso Senhor Jesus Cristo; e se aí a recebessem seria grande ajuda para que no Japão desconfiassem das seitas em que acreditam”20. Xavier não se limitou a abrir novos caminhos mas foi também um verdadeiro organizador. Os companheiros que se lhe iam juntando, vindos da Europa ou recrutados localmente, foram distribuídos pelas novas comunidades cristãs, muitas vezes com instruções bem precisas, para prosseguirem e consolidarem o trabalho iniciado. A este propósito, vale a pena lembrar as recomendações feitas pelo Apóstolo do Oriente sobre as qualidades exigidas aos missionários. O retrato do missionário ideal varia claramente, conforme as regiões a que Xavier se referia. Para as regiões da Índia – escreve a Santo Inácio em 1545 – eram necessárias “forças corporais, juntamente com as espirituais”, mas eram escusadas muitas letras porque o trabalho missionário centrava-se no ensino de orações, na visita às aldeias e no baptismo das crianças21. Em 1546, lembra aos jesuítas da Europa que a vontade de viver e morrer entre as populações locais era mais importante do que as letras e o talento22. Em 1549, Xavier é mais explícito no rol das características indispensáveis, ao escrever a Santo Inácio: “Os índios desta terra, quer mouros quer gentios, todos os que até agora conheci, são muito ignorantes; para os que andarem entre os infiéis, trabalhando na sua conversão, não são necessárias muitas letras mas sim muitas virtudes: obediência, humildade, perseverança, paciência, amor ao próximo e grande castidade, devido às muitas ocasiões que há para pecar”23. Carta aos jesuítas da Europa, Cochim, 29 de Janeiro de 1552, Ibidem, pg. 20 418. 21 Carta a Santo Inácio de Loiola, Cochim, 27 de Janeiro de 1545, Ibidem, pg. 169. Carta aos jesuítas da Europa, Amboína, 10 de Maio de 1546, Ibidem, pg. 22 202. Carta a Santo Inácio de Loiola, Cochim, 14 de Janeiro de 1549, Ibidem, pg. 23 288. Francisco Xavier, o missionário 79 Ainda no mesmo ano de 1549, Xavier convida o P. Simão Rodrigues a juntar-se-lhe no Oriente e pede-lhe que não traga companheiros demasiado jovens, acrescentando: “Aqui desejamos gente de trinta a quarenta anos, dotada de virtudes, especialmente de humildade, mansidão, paciência e castidade”24. Para as cidades de Goa e de Cochim, Xavier pedia quem tivesse talento para confessar e orientar os Exercícios Espirituais25 e, para as fortalezas portuguesas no Oriente, pregadores que catequizassem os diferentes grupos que aí residiam26. Para os missionários destinados ao Japão e à China, Xavier pede qualidades particulares. Ao contrário do que afirmava em relação a outras regiões do Oriente, nestes dois países os missionários tinham de ser letrados “para responderem às muitas perguntas que fazem os gentios discretos e avisados, como são os chineses e japoneses”27. Mais em particular, a respeito dos missionários a enviar ao Japão, defende que devem ser provados e exercitados nas perseguições do mundo e acrescenta, explicando em pormenor: “Também é necessário que tenham letras para responderem às muitas perguntas que fazem os japoneses. Seria bom que fossem bons artistas; e nada se perderia se fossem sofistas para que, nas disputas, fizessem cair os japoneses em contradição; que saibam também alguma coisa da esfera porque os japoneses apreciam muito o conhecimento dos movimentos do céu, dos eclipses do Sol ou das fases da Lua; como se forma a água da chuva, a neve e o granizo, os trovões, relâmpagos, cometas e outras coisas da natureza. Muito aproveita a declaração destas coisas para ganhar a vontade do povo”28. Carta ao P. Simão Rodrigues, Cochim, 2 de Fevereiro de 1549, Ibidem, pg. 24 317. Carta a Santo Inácio de Loiola, Cochim, 27 de Janeiro de 1545, Ibidem, pg. 25 170. Carta ao P. Simão Rodrigues, Cochim, 20 de Janeiro de 1548, Ibidem, pg. 26 252. Carta a D. João III, Goa, 8 de Abril de 1552, Ibidem, pg. 463. Carta a Santo Inácio de Loiola, 9 de Abril de 1552, Ibidem, pg. 466s. 27 28 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 80 Com estas recomendações de 1552, relativas às qualidades dos missionários, Francisco Xavier – como tinha feito ao longo de todos os anos no Oriente – continuava a abrir caminhos que muitas outras gerações de jesuítas haviam de percorrer. De facto, a sua acção foi prosseguida por levas sucessivas de missionários que diversificaram, ainda mais, as regiões alcançadas e que, muitas vezes, tinham o Apóstolo do Oriente como modelo inspirador. O caso de S. João de Brito é apenas um exemplo, entre muitos. Esta rápida expansão levou à consolidação da presença da Companhia de Jesus em Goa, no Malabar, no Japão e na China e mostra o fascínio que as missões, particularmente as do Oriente, exerceram sobre muitas gerações de jesuítas. Punha-se em prática, desse modo, o que já se estabelecia na Fórmula da Companhia de Jesus aprovada pelo papa Paulo III, em 1540: a disponibilidade para partir e trabalhar em qualquer parte do mundo, entre fiéis ou infiéis, “incluindo os que habitam nas regiões que chamam Índias”29. Essa disponibilidade encontra-se bem documentada nas cerca de 16.000 cartas, escritas entre 1583 e 1770, e conservadas no Arquivo Romano da Companhia de Jesus, em que os subscritores pedem ao Padre Geral para serem enviados para as missões. Uma última palavra sobre datas coincidentes. Os 450 anos da morte de S. Francisco Xavier coincidem com os 450 anos do nascimento de Matteo Ricci, o primeiro jesuíta a conseguir fixar residência em Pequim. São dois acontecimentos que um observador de 1552 não poderia associar. Na verdade, porém, foi Ricci quem finalizou, em 1601, quase cinquenta anos depois, a viagem missionária que a morte obrigou Xavier a interromper, quando se julgava próximo de materializar o seu último sonho: a entrada na China. Que grande sonho missionário, um sonho que precisou de cinquenta anos para ser concretizado! Oxalá não faltem na Igreja, também nos nossos dias, sonhos de uma grandeza assim. Fórmula da Companhia de Jesus, nº 3. 29 Segunda Parte UM DIÁLOGO QUE SE VAI ABRINDO XAVIER E a Europa? Apelo às Universidades europeias e instrução acerca do Oriente. O estabelecer de pontes entre Ocidente e Oriente. António Júlio Trigueiros, sj “De que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma” Na definição do filósofo francês Jacques Derrida, toda a cultura é desigual a si própria... Diremos que nenhuma cultura se pode fechar sobre si mesma pois é da própria etimologia da palavra o exercitar-se, o colocar-se em questão, em desafio, em aperfeiçoamento constante. Quando nos “cultivamos”, repetimos uma e outra vez um “exercício” conhecido para que, no futuro, saibamos estar preparados para o “exercício” do desconhecido. Gostaria que tal regresso à etimologia do termo “cultura” servisse de preâmbulo a esta breve reflexão sobre as passagens mais significativas daquelas cartas de Xavier, que constituem um fundo que podemos designar por “Apelo às Universidades”. Subjacente ao vigor do seu trabalho missionário, não podemos esquecer a insistência, em Xavier, da sua consciência humanista, renascentista, de homem de Letras, e de cultor do saber universitário. É essa que transparece também, a espaços, ao longo das suas cartas, como que a recordar que foi do interior da Universidade, bem do interior da sua condição de mestre promissor da academia de Paris, que Xavier foi chamado a colocar-se ao serviço da Igreja. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 84 Quando em 1525 este jovem navarro entrou na Universidade de Paris, e mais precisamente no Colégio de Santa Bárbara, deparou-se com a efervescência típica dos momentos de crise. Dois anos antes, as teses luteranas haviam sido publicamente condenadas pela Academia parisiense e pelo Parlamento francês, tendo as obras de Lutero e Melanchton sido queimadas na ilha de Notre Dame. As chamas desta fogueira, porém, ainda não se tinham extinguido. Por toda a Paris, o centro da mais dilecta filha da Igreja, as teses reformistas e anti-reformistas, bem como as obras de Erasmo, eram pretexto para acesas discussões, condenações mútuas entre académicos e intermináveis diatribes. Poderíamos escolher como metáfora “geográfica” desta tensão e da germinação de ideias e projectos que dela provinham, a posição, frente a frente na Rue des Chiens, do Colégio de Santa Bárbara – o mesmo que, sob a direcção do humanista português Diogo de Gouveia, foi elevado a centro da vanguarda renascentista em Paris – e do Colégio de Montaigu – reduto da escolástica mais ortodoxa e avessa a todos os indícios de mudança. Quando, anos mais tarde, Inigo de Loyola atravessou a rua, trocando Montaigu por SantaBárbara, foi como se trocasse, como sugerem certos comentadores, Esparta por Atenas, a Idade Média pelo Renascimento, ou o Colégio das Macerações pelo Colégio das Luzes1. Esta opção iria marcar indelevelmente todo o projecto da futura Companhia de Jesus, e a sua determinação em ser filha da sua época, atenta aos sinais dos tempos e um produto assumido do Renascimento. A biografia de Xavier dará disso prova. Aluno brilhante, atleta premiado, Xavier é investido a 3 de Fevereiro de 1530 como magister artium (Mestre em Artes) com “licença para ensinar, dirigir, disputar e definir e para exercitar actos académicos e magistrais da Faculdade de Lógica, Física e Metafísica em Paris e em toda a Terra”2. Começará a fazê-lo precisamente em Paris, Cf. J. Lacouture, Jésuites, Une Multibiographie: Les Conquérants, Paris, Éditions du Seuil, 1991, p. 77. 2 Ibid. 1 Xavier. E a Europa? 85 no Colégio de Beauvais como professor de filosofia, cargo a que a confirmação solene, em 1531, da sua condição de hidalgo, conferiria ainda mais prestígio. O jovem Xavier tinha “o espírito vivo, o humor agradável, a alma nobre, o coração elevado, mas era orgulhoso, vaidoso e ambicioso”3. Tal como o seu futuro companheiro Pedro Fabro, Xavier nutria forte interesse e curiosidade por aquilo que mais tarde iria apelidar de “seduções dos reformados”. Era o tempo das “más companhias” dos mestres erasmianos do Collége Royal des Trois Langues – o futuro Collége de France – com quem, aliás, sentia grandes afinidades. Homens como Ramus, Valable, Paradis, bem como uma galeria de amigos humanistas helenizantes e judaízantes. É Inácio de Loyola que o resgata a tais influências – ou melhor, que o ajuda a integrar tais influências num recentramento na fé católica – ao termo de dois anos de um contínuo aprofundamento dos laços de amizade mas também de um intenso confronto espiritual e de um combate sem tréguas entre duas formas de encarar o mundo. É finalmente em 1533 que Francisco, o atleta invencível, se declara vencido perante o bem mais frágil mas incansável campeão de Loyola. De que serve ganhar o mundo de uma “orgulhosa, vaidosa e ambiciosa” carreira universitária no centro nevrálgico do Ocidente, se o que se quer como essencial não está lá? Esta é a questão que o transportará à experiência fundante dos Exercícios Espirituais sob a direcção do próprio Inácio. Com a sua carreira promissora Xavier abandonaria, também, a um tempo, a sua altivez justificada e as suas simpatias reformistas. Não abandonará nunca, porém, a sua crença profunda nas virtualidades da Universidade europeia, sobretudo no seu modelo parisiense. É a ela que apelará, uma e outra vez, dos confins da Ásia, a fim de nela despertar uma apaixonada curiosidade pelo gentio e a generosidade da partilha dos saberes do Ocidente. Com Xavier, em certo sentido, estende-se e põe-se à prova o próprio Renascimento. À redescoberta das raízes antigas da civilização Hercule Rasiel da Silva, Histoire del’admirable Dom Inigo de Guipuzcoa, La Haye, chez la veuve Le Vier, 1736. 3 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 86 ocidental deveria somar-se, numa aventura de que a Companhia de Jesus será pioneira e catalisadora, a descoberta da alteridade cultural. À descoberta das raízes da civilização europeia sucede-se a descoberta de outras civilizações. À busca no tempo sucede-se a busca no espaço. Mas até que ponto estaria um académico europeu como Xavier preparado para esse encontro? Citamos o orientalista Jean Filliozat, em artigo publicado em 1953: “o humanismo da Renascença não predispunha à descoberta espiritual do Oriente. Ele não se abria à humanidade inteira. Era greco-romano mas não universal. Abrindo perspectivas infinitas sobre os antigos tesouros reencontrados, as humanidades eram estudos para julgar plenamente o homem mas não preparavam para o estudo de todos os homens...”4. A façanha de Xavier, nos seus limites como nas suas vitórias, personifica bem este desafio: de que vale a capacidade da Europa renascentista, a ductilidade da Universidade – emblema máximo das capacidades dessa mesma Europa – e, finalmente o vigor pastoral da Igreja, se não forem capazes de rasgar, a Oriente, o véu do desconhecido? Na repetição de apelos à responsabilidade acrescida da Universidade europeia perante o mundo, pela primeira vez perante o mundo, na estreia daquilo a que poderíamos chamar uma consciência planetária, Francisco Xavier retém a memória do académico empenhado. Fazendo jus aos termos da sua investidura como Mestre em Artes, na Costa da Pescaria, como em Malaca, como em Yamaguchi, Xavier continua a fazer o exercício pleno da licença para “ensinar, dirigir, disputar e definir”, precisamente onde sentia que tal licença seria mais frutífera e aplicando-a, agora, ao que considerava ser o mais fecundo dos conhecimentos, o da lei de Deus. Deve entender-se também o percurso de Xavier pela Ásia – e sobretudo a sua passagem pelo Japão – como testemunho de uma tensão permanente entre o seu empenho – tanto mais evidente quanto mais longa se ia tornando esta estadia – num diálogo efectivo entre 4 Citado por Lacouture, op. cit., p.167. Xavier. E a Europa? 87 culturas e o seu zelo apostólico e missionário “pela salvação do próximo”. Como acabámos de ouvir, se na Índia Xavier era sobretudo um orador fervoroso em língua ainda estranha, se da sua passagem pelas terras dos brâmanes pouco mais viu senão as estrelas, como sugere um dos seus biógrafos5, o Japão constituiria para ele oportunidade para a descoberta de uma sensibilidade realmente antropológica, aquela que viria a fazer a glória da Companhia de Jesus ao ser prosseguida por homens como Matteo Ricci, Roberto Nobili ou Pierre Charles. No Japão chegara a altura para ver, escutar e sentir. Seria das mãos deste atleta e viajante persistente, através das exortações contidas nas suas cartas, que o cristianismo aprenderia uma outra forma de evangelização. Com Xavier, supera-se o espírito de cruzada, de guerra santa e a recusa sistemática do outro como interlocutor. O cristianismo torna-se sinónimo de comunicação, também no sentido de procurar o comum, a ponte, o reconhecimento do outro e o reconhecimento de mim no reconhecimento de Cristo. Troca, reciprocidade, intercâmbio. Num artigo publicado na revista Grande Reportagem do passado mês de Outubro, descrevem-se os métodos ensinados na Universidade Internacional de Columbia, da Carolina do Sul, EUA. Trata-se de uma universidade cristã evangélica com o único objectivo de formar missionários para combater – e é mesmo esse o termo empregue – o Islão6. Considere-se a diferença entre este modo guerreiro de entender a propagação de uma certa interpretação do evangelho com o cuidado antropológico representado por Francisco Xavier. Para o apóstolo do Oriente, não se trata de invadir mas de discutir, já não de impor mas de propor, não são mãos fechadas que se abatem sobre uma cultura que se hostiliza mas mãos abertas que aguardam uma resposta. A resposta de um outro que queremos como outro. Como um outro de nós. 5 6 Cf. Lacouture, p.157. Cf. Grande Reportagem, Outubro, 2003. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 88 Mas qual a via para o conseguir? É aqui que melhor se revela a confiança renascentista de Xavier. Como insiste em mais do que uma vez, será a razão, as “boas razões”, que melhor apelarão àquilo que ele, ainda em terras da Índia, previa já ser o espírito nipónico. Os japoneses são curiosos, “extraordinariamente curiosos de aprender”, talvez mesmo a “gente mais curiosa de todas as terras até agora descobertas”. Esta verdadeira viragem é plenamente assinalada na carta que Xavier escreve aos companheiros de Roma a 20 de Janeiro de 1548. Ao primeiro Japonês que conhece, ainda em Malaca, de seu nome Anjirô, pergunta se os habitantes do Japão se fariam cristãos “se eu fosse contigo à tua terra?”. Ao que o Japonês responde: “os do meu país [Kagoshima] não se fariam imediatamente cristãos. Primeiro far-teiam muitas perguntas e veriam aquilo que tu lhes responderias, aquilo que tu compreendes, e sobretudo se tu vives de acordo com aquilo que dizes. E se tu fizesses as duas coisas, falar bem e satisfazer as suas perguntas e viver sem que eles encontrem motivo de repreender-te, cerca de meio ano mais tarde depois de te terem conhecido, o rei e a gente nobre, bem como toda a outra gente de discernimento, se fariam cristãos. São pessoas que se comportam apenas segundo a razão.” 7 “Apenas segundo a razão”: no Japão o que fazia falta não eram militares ou espiões da fé, mas homens preparados para ensinar e aprender, e sobretudo capazes da coerência entre o que se diz e o que se faz, aquela que, segundo Anjirô, tanto tocava a razão dos Japoneses. Eram esses mesmos que abundavam pelas Universidades da Europa. Se fossem, também eles, tocados pelo discernimento e por um verdadeiro desejo de servir, deveriam seguir as rotas dos Portugueses e vir aos lugares onde, mais do que em qualquer outro ponto da Terra, melhor cumpririam a sua dedicação à razão e à fé. Atente-se ao modo como, de Cochim e em carta datada de 15 de Janeiro de 1544, isto é, apenas dois anos após a sua chegada ao Oriente, Xavier tinha já bem presente a necessidade de juntar à ge7 G. Schurhammer, Francis Xavier, His Life, His Time, 4 vols., Roma, 1973. Xavier. E a Europa? 89 nerosidade do missionário a fundamentação própria do universitário. E mais do que isso, a consciência da vacuidade, da inutilidade mesmo, de um trabalho académico que se limita a ser instrumento da vaidade própria, ou da cupidez de uma Europa que desse modo se fechava sobre si mesma. E passo a citar essa famosa carta que tanto impacto viria a causar8: “Muitos cristãos se deixam de fazer nestes lugares, por não haver pessoas que se ocupem de coisas tão pias e santas. Muitas vezes me movem pensamentos de ir aos estudos das nossas terras, dando gritos, como um homem que perdeu o juízo e principalmente à Universidade de Paris, dizendo na Sorbonne aos que têm mais letras do que vontade para se disporem a frutificar com elas: ‘quantas almas deixam de ir para a glória e vão para o inferno pela vossa negligência’9. E assim como vão estudando em letras, se estudassem na conta que Deus Nosso Senhor lhes pedirá delas e do talento que lhes tem dado, muitos se moveriam recorrendo àqueles meios e àqueles exercícios espirituais que ajudam a conhecer e a sentir dentro das suas almas a vontade divina, conformando-se mais com ela do que com as suas próprias afeições10, dizendo: ‘Eis-me aqui Senhor, que quereis que faça? Manda-me para onde quiseres e, se for necessário, mesmo entre os indianos’. Quanto mais consolados viveriam e com grande esperança da misericórdia divina se, à hora da morte, se apresentassem ao juízo particular, do qual ninguém pode escapar, alegando em seu favor: ‘Ó Senhor, deste-me cinco talentos, e eis que ganhei outros cinco’ (Mt. 25, 20). Eu temo que muitos daqueles que estudam nas Universidades se apliquem mais por obter mediante o estudo, dignidades, benefícios ou dioceses, que não pelo desejo de conformar-se àquelas necessidades que as dignidades e o estado eclesiástico requerem. Os que estudam costumam dizer: ‘Desejo ter letras para alcançar algum G. Schurhammer, op.cit. Vemos aqui uma clara referência à 1ª anotação dos Exercícios Espirituais sobre o modo de dispor a alma a tirar todos os afectos desordenados e a encontrar a vontade divina. 10 Cf. 1ª e 2ª anotação dos EE 8 9 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 90 benefício ou dignidade eclesiástica com elas e depois, com tal dignidade, servir a Deus’ ”11 . E continua a carta de Xavier: “De modo que, segundo os seus afectos desordenados, fazem as suas eleições temendo que Deus não queira aquilo que esses querem, de modo que os seus afectos desordenados não deixam esta eleição nas mãos de Deus Nosso Senhor” 12. E termina revelando a sua intenção de se dirigir aos seus velhos professores da Universidade de Paris: “Estive quase para escrever à Universidade de Paris, ou pelo menos ao Mestre De Cornibus13 e ao Doutor Picardo14, quantos milhares de pagãos se converteriam se por aí houvesse operários, para que fossem solícitos a procurar e favorecer as pessoas que ‘não procuram o seu próprio benefício, mas o de Jesus Cristo’ (Fil. 2, 21)”. Esta carta notável, dirigida aos companheiros de Roma após um ano de intenso trabalho junto dos pescadores de pérolas da Costa da Pescaria, iria transformar-se, nomeadamente no uso que dela iria fazer Pedro Fabro, num eficiente libelo a favor da acção missionária da Companhia de Jesus. A excelência desta acção e, sobretudo, a gratificação que ela traz consigo estão bem presentes no modo como Xavier encerra a epístola. Cito: E achamos aqui de novo uma claríssima alusão aos Exercícios Espirituais, ao Segundo Binário de homem da Segunda semana (EE, 154). 12 De novo o texto dos Exercícios, no “Preâmbulo para fazer a eleição”, nº. 169. Eis as palavras de Inácio: “Assim também há outros homens que primeiro querem ter benefícios e depois servir neles a Deus, de maneira que estes não vão directos a Deus mas querem que Deus venha direito aos seus afectos desordenados e por conseguinte fazem do fim meio e do meio fim, de modo que o que deveriam tomar primeiro, tomam depois.” 13 Pierre de Cornibus, OFM, nascido na Borgonha cerca de 1480, doutor da Universidade de Paris em 1524, para além de ter sido professor de Xavier, de Fabro e de Bobadilla, foi um grande amigo da Companhia. Morreu em Paris em 1555. 14 François Le Picart (Picardus), nascido em 1504 em Paris, Mestre de Teologia desde o ano de 1534, célebre orador e feroz adversário dos protestantes, foi também ele professor de Xavier, Fabro e Bobadilla e muito amigo da Companhia. Morreu em Paris em 1556, em odor de santidade. 11 Xavier. E a Europa? 91 “Destas partes não sei mais que escrever-vos senão que são tantas as consolações que Deus Nosso Senhor comunica aos que andam entre estes gentios, convertendo-os à fé de Cristo, que se alegria há nesta vida, pode dizer-se que é esta. Muitas vezes me acontece ouvir dizer a uma pessoa que anda entre estes cristãos: ‘Ó Senhor, não me dês tantas consolações; e já que as dais por vossa infinita bondade e misericórdia, levai-me à vossa santa glória, pois é uma grande pena viver sem ver-vos, depois que tanto vos comunicais intimamente às vossas criaturas. Ó! Se os que estudam letras tantos trabalhos dedicassem a gostar delas quantos os dias e as noites trabalhosas que gastam em sabê-las. Ó se aquelas alegrias que o estudante procura ao entender o que estuda as procurasse no dar a sentir ao próximo o que é necessário para conhecer e servir a Deus, tanto mais consolados e preparados se achariam para dar conta quando Cristo lhes perguntasse: ‘Dá-me conta da tua administração.’ (Lc 16, 2)”15. A recepção desta carta provocou uma forte impressão e suscitou um grande interesse. Primeiro em Coimbra, onde foi imediatamente traduzida para o Latim, e depois por toda a Europa. A tradução francesa seria publicada em 1545. O apelo não seria em vão. É em 1545, juntamente com muitos outros letrados, que Jerome Nadal, por exemplo, decide entrar na Companhia de Jesus. Causa directa da sua decisão: a comoção sentida pela leitura da carta de Francisco Xavier. Nadal, judeu converso espanhol, estudara latim, grego, hebraico e filosofia em Alcalá, matemática e teologia em Paris, tendo sido contemporâneo de Inácio e de Xavier. Fugido de Paris devido a um édito de expulsão dos espanhóis, refugiou-se em Avignon onde as suas qualidades de orador e de especialista em hebraico atrairiam as atenções da colónia hebraica, que chegou a propor-lhe fazê-lo Grande Rabino. Nadal recusou. A carta de Xavier iria surpreendê-lo, anos mais tarde, já sacerdote e professor de sagrada escritura na Escola Catedralícia de Palma de Maiorca. Como escreve na sua Crónica, a carta de Xavier fê-lo reconhecer inteiramente a graça de Deus, decidindo-se então a partir para Roma. 15 G. Schurhammer, op.cit. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 92 A insistência de Xavier não ficaria por aí. A 20 de Janeiro de 1549, após três anos em Malaca e já em vésperas da sua partida para o Japão, voltaria a exortar: “Depois de ter experiência do que [no Japão] existe, escreverei bastante minuciosamente, seja à Índia seja ao Colégio de Coimbra e de Roma, e a todas as Universidades, principalmente a de Paris, para lhes recordar que não vivam em tanto descuido, fazendo tanto fundamento nas letras, descuidando-se das ignorâncias dos gentios.”16 A estas duas cartas deverá somar-se uma terceira (Xavier morreria dez meses após a sua expedição), escrita de Cochim a 29 de Janeiro de 1552. É nela que se faz o relato, minucioso e escrupuloso, de três anos de contacto com a realidade japonesa. No Japão, Xavier encontraria aquilo que lhe faltava na Índia: um povo culto, cortês, ávido de conhecimentos, movendo-se por “boas razões” e desconfiado da superstição. Com eles iria travar longas discussões sobre a natureza da divindade, a lei moral, a criação, o porquê da redenção e da historicidade da revelação. Xavier ganharia o seu respeito e a sua atenção porque, como o próprio refere, ele trazia mais respostas do que aquelas que os seus bonzos17 eram capazes de dar. Os japoneses estavam prontos à conversão porque lhes parecia que “a lei de Deus é mais chegada à razão do que as suas leis; e também porque viam que nós respondíamos às perguntas que nos faziam e eles não sabiam responder às que nós lhes fazíamos contra as suas leis”18. Por Xavier ficaram a saber que o mundo era esférico, reconheceram a validade das suas teses sobre o curso do sol, a razão de ser dos cometas, dos relâmpagos, da chuva e da neve, “e ficavam muito contentes e satisfeitos, tendo-nos por homens doutos, o que ajudou não pouco para darem crédito às nossas palavras.”19. As dúvidas que os seus interlocutores lhe colocavam, por outro lado, eram indícios daquilo que já não os satisfazia tão G. Schurhammer, op.cit. Monges zen. 18 Ibid. 19 Ibid. 16 17 Xavier. E a Europa? 93 claramente. Muitas delas emparceiravam com as mais clássicas questões da teologia ocidental. As mais insistentes provinham da especial sensibilidade oriental ao culto dos mortos e dos antepassados. Por que é que um Deus sumamente misericordioso não se lhes tinha também revelado? Que justiça havia condenado os seus antepassados ao inferno por desconhecimento da revelação? Por que é que a misericórdia divina não tinha contemplado também os seus pais? A sagacidade dos japoneses revelava bem a dimensão da tarefa que se estendia à sua frente. Revelava também o modo e os instrumentos de que essa missão se deveria munir: a razão e a sua capacidade de dar respostas, mas também a competência, que a deve sempre acompanhar, de levantar questões, de pôr em dúvida, de confrontar. Essa era a tarefa mais digna de um letrado e numa carta posterior, datada de 9 de Abril de 1552 e destinada a Inácio de Loyola, Xavier chega a traçar o perfil deste missionário-dialecta, tendo em conta a sua própria experiência e o levantamento antropológico e etnológico que as suas cartas guardavam. Diz ele: “É também necessário que tenham estudos para responderem às muitas perguntas que lhes farão os Japoneses. Seria bom que fossem bons filósofos e seria bom que fossem bons dialectas para apanharem os Japoneses em contradição durante as disputas. Para além do mais, deveriam saber alguma coisa da esfera celeste pois os Japoneses gostam muito de saber os movimentos do céu, os eclipses do sol, o minguar e o crescer da lua, como tem origem a água da chuva, a neve e o granizo bem como os trovões, os relâmpagos, os cometas e outros fenómenos naturais. A explicação destas coisas ajuda muito para ganhar a benevolência deste povo.”20 A dialéctica ao serviço do apostolado seria recompensada, segundo Xavier, pela mais alta das consolações, e a constante renovação do apelo às Universidades seria sempre acompanhada pela descrição do arrebatamento único de que participa aquele que cumpre: “E prouvesse a Deus que, assim como estas particularidades dos gostos e dos contentamentos assim se escrevem, assim se pudessem mandar de cá 20 Ibid. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 94 os prazeres e as consolações às universidades da Europa, as quais Deus só por sua misericórdia nos comunicava: bem creio que muitas e doutas pessoas fariam outro fundamento do que fazem para empregarem os seus grandes talentos na conversão das gentes. Sendo sentido o gosto e a consolação espiritual que de semelhantes trabalhos se seguem, e conhecendo a grande disposição que há no Japão para se acrescentar a nossa santa fé, parece-me que muitos letrados dariam fim aos seus estudos, cónegos e outros prelados deixariam suas dignidades e rendas por outra vida mais consolada do que a que têm, vindo-a buscar ao Japão.”21 Ciente de que o epicentro espiritual da Ásia era a China, Xavier voltaria para lá as suas últimas atenções. A expedição acabaria por nunca se completar, e Xavier morreria na praia de San-Cian, ironicamente diante do seu objectivo inalcançado. Um outro projecto, o da tantas vezes anunciada Instrução às Universidades sobre o Oriente, ficaria igualmente por terminar. Parece-nos que seria ajustado terminar este texto com o simbolismo deste duplo inacabamento, com uma meta a alcançar e um apelo por fazer, uma morte entre dois mundos, um a descobrir, outro a sensibilizar. A missionação, qualquer que ela seja, permanecerá sempre inconclusa. O encontro com a alteridade, a mais distante como a mais próxima, não tem prazo. Estamos sempre a desembarcar numa qualquer praia e a discussão em torno daquilo que mais nos afecta não suporta uma última palavra. Talvez porque não nos seja dado sermos nós a dizê-la. 21 Ibid. DE JAVIER A SANCHOÃO Francisco Xavier e o seu campo de evangelização mais difícil António Lopes S.J. Só Deus sabe o que se passa no coração de cada um de nós no que respeita à nossa conversão ao Evangelho. Em todo o caso, as nossas acções exteriores e nosso comportamento exterior são sempre, de algum modo, “sinais” do que se vai passando no nosso coração, embora só Deus possa avaliar o valor da nossa caminhada interior, na direcção do Evangelho. Além disso, é uma constante sobretudo no Novo Testamento, que o meio mais eficaz de levarmos os outros a viver a sua mensagem é o nosso testemunho de entrega autêntica a Deus e aos irmãos. “Pelos frutos os conhecereis” diz-nos Jesus. Temos, além disso, nos Actos dos Apóstolos, sobretudo quando nos é relatado o modo de viver das primeiras comunidades cristãs, afirmações claras desta doutrina: Era tão contagioso o testemunho destas comunidades que os não-cristãos, ao verem a sua maneira de viver, sentiam por estas comunidades uma enorme simpatia “ e o Senhor aumentava cada dia os que entravam pelo caminho da salvação”. Podemos, por exemplo, comparar a caminhada inicial de S. Inácio com a de Francisco Xavier, servindo-nos deste critério do nosso comportamento exterior, extremamente falível e relativo aos olhos de Deus, que é o único a penetrar até ao fundo dos corações. Segundo os nossos critérios humanos, situaríamos a 1ª conversão de Inácio em Loyola, em Agosto-Setembro de 1521 e a sua 2ª conversão em Manresa, também em Agosto-Setembro, em 1522: apenas um ano depois. Ao passo que, seguindo este mesmo critério 96 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte de discernimento puramente humano, o primeiro grande marco na vida de Francisco teria sido em 15331 e o segundo, ao entrar no Japão, em 1549, ou seja: 16 anos depois. 1 – O coração de Francisco: o seu campo mais difícil de evangelização Dos companheiros de Inácio de Loiola não foi certamente a conquista mais fácil. Em Paris, dá nas vistas de todos. Esbelto, eloquente nas disputas e ardoroso nos debates académicos, é sagrado campeão de salto em altura nos campos desportivos da ilha de Notre-Dame. Ouçamos o retrato que dele faz Hercule Rasiel: “Tinha o espírito vivo, a disposição agradável e o coração altivo. Era orgulhoso, vaidoso e ambicioso. Ao princípio era o que mais troçava de Inácio, das suas máximas, da sua conduta, dos seus discursos e, longe de o escutar, punha a ridículo a vida pobre que ele levava e à qual queria atrair os outros”2. A esse espanhol aleijado chamava ele “o palerma da rua dos cães”. Quanto à relação entre ambos, 20 anos mais tarde, confiava o próprio fundador ao Jesuíta Edmond Auger:”. “... o jovem Xavier fora o material mais duro que jamais manejara... Era um biscaínho nobre e folgazão. Como era bom aluno em filosofia e professor apreciado, ligava pouca importância a Inácio, que então vegetava à custa dos outros... Quando o encontrava, quase sempre troçava dos seus propósitos....” 3 O biógrafo de Xavier, Manuel Teixeira, outro autor Jesuíta, diz por seu lado: 1 Segundo Scurhammer, a primeira conversão de Francisco deve situar-se entre Dezembro de 1532 e Junho de 1533. 2 Histoire de l’admirable D. Inigo de Guipuzcoa – La Haye, chez la veuve Le Vier, 1736, 98. 3 TOURNIER, Ferdinand – S. François Xavier d’ après un manuscrit inédit du P. Auger, in “Études”,109 (1906), 657-669. De Javier a Sanchoão 97 “... Mestre Francisco era duro e dificultoso..., pois não queria mudar de vida por ser naturalmente inclinado à honra e ao fausto do mundo...”4 É possível que esta maneira de se relacionar com Inácio de Loyola tenha alguma coisa a ver com a infância e a adolescência de Francisco. Navarra foi conquistada em 1512 por Fernando, o Católico; portanto quando Francisco ia nos seus seis anos. Em 1516, o castelo de Xavier é demolido por Carlos V. Mas, como o movimento de resistência de Navarra não desarmou, os próprios navarros, com a ajuda do grosso do exército francês, a 20 de Maio de 1520, penetram em Pamplona, a capital. Entre os rebeldes da resistência, estavam os dois irmãos de Francisco, Miguel e João e vários dos seus primos. Na cidadela de Pamplona, apenas um pequeno grupo de espanhóis resistiu aos navarros, durante umas horas, instigados pelo basco, Iñigo de Loyola, que só se rendeu, quando um obus lhe esfacelou uma das pernas. E 15 dias depois, ficavam libertadas todas as terras de Navarra do jugo espanhol. Mas rapidamente o representante de Carlos V repõe a ordem, confiscando os bens a todos os que tinham entrado na rebelião e condenando-os à morte, entre os quais estavam os irmãos de Francisco e os primos. Foi enorme a consternação em Javier, onde se encontrava o pequeno Francisco e sua mãe. Esta teve de sofrer várias tentativas de ocupação de todas as terras do Castelo. Felizmente, a 12 de Outubro de 1523, Carlos V vem a Pamplona para conceder perdão geral aos rebeldes; mas na lista dos intimados, ficam de fora, entre outros, os irmãos de Francisco e os primos. Depois de muitas vicissitudes e angústias da pobre Senhora de Javier, Carlos V concede amnistia sem excepção e promete a devolução dos bens. Quando, por fim, os irmãos voltam a casa, Francisco tem 18 anos. Se colaborou, sem ressentimentos, na normalização da situação da família, dificilmente terá esquecido o que sofreu dos espanhóis. Por isso, para os seus estudos não irá, nem para Salamanca nem para Alcalá, mas para Paris; e mais tarde se há-de considerar mais “português” do que “espanhol”. TEIXEIRA, Manuel – Vida del Bienaventurado Padre Francisco Xavier. Em: Monumenta Xaveriana, II, 818. 4 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 98 Professor de filosofia no Colégio de Beauvais, não longe de S. Bárbara, Francisco tem orgulho no seu título de professor e na sua fidalguia de além-Pirenéus. Loiola vai “modelar” esta vaidade: não descansa enquanto não reúne um auditório entusiasta para as lições de Xavier, suscitando à sua volta fervor e louvores. A acção envolvente de Inácio consistiu sobretudo em socorrer a Francisco economicamente, dadas as enormes dificuldades por que passava a sua mãe (que faleceu em Julho de 1529) e os seus irmãos, em Javier. Representou também para Inácio um esforço ciclópico tentar afastar aquele coração altivo das más companhias, sobretudo do ponto de vista doutrinal, dada a fermentação intelectual e religiosa que então se vivia em Paris, particularmente na cidade universitária. A “faena” dura dois anos. É só no princípio de 1533 que se decide à estocada que há-de render o professor “atleta”. Consegue finalmente (ou em 1532 ou 1533) que vá confessar-se e comungar e que daí em diante acompanhe o grupo dos estudantes à igreja dos Cartuxos. Mas, quanto aos Exercícios dados por Inácio, Francisco será o último dos 7 companheiros a fazê-los. Virão antes os votos de Montmartre em 1534. Com efeito, a 15 de Agosto de 1534, já faz parte do grupo que se compromete com os 3 votos: pobreza, castidade e o voto condicional de ir à Palestina. Diz uma certa tradição que teria sido com a repetição de um versículo do Evangelho: “Que vale ao Homem ganhar o Universo...” que Francisco vergou o seu orgulho. Schurhammer põe em questão a autenticidade desta tradição5. É possível que Inácio tenha repetido sucessivamente a Francisco este versículo evangélico, mas – apesar de Francisco citar este mesmo versículo por duas vezes nas suas cartas6 – não há qualquer prova documental de que este versículo tivesse sido decisivo na conversão de Francisco. O mais importante na conversão de Francisco terá Schurhammer – I, p. 230. Nota 219. Epistolae S. Francisci Xaverii – Edição crítica de G. Schurhammer, Romae, 1944-1945, I, 420-421; II, 193. 5 6 De Javier a Sanchoão 99 sido o testemunho de ajuda e de caridade de Inácio para com ele e sobretudo o seu testemunho de profunda humildade, em episódios que se passaram em S. Bárbara, como o seguinte: Inácio convidavao, a ele e a muitos outros, a virem no Domingo de manhã à igreja dos Cartuxos, para se confessarem e comungarem. Xavier, porém, nunca respondeu ao apelo. Foi provavelmente o testemunho dado por Inácio nesta ocasião que mais terá abalado o coração de Francisco. Iñigo, por desviar, sem licença do Principal do Colégio de S. Bárbara, alguns estudantes, das disputas académicas dos Domingos de manhã para os levar à igreja dos Cartuxos foi ameaçado com o castigo das varas. Quando todos, alunos e professores, estavam a postos para assistirem a tão grande humilhação por parte do mais velho dos estudantes, com surpresa de todos, vêem o Principal aparecer com Iñigo pela mão. E quando todos esperavam pelo começo do castigo aplicado a Iñigo, é o Principal que se põe de joelhos, aos pés do estudante, pedindo-lhe perdão, profundamente comovido. E o Principal, Diogo de Gouveia, chega a alterar o horário para que os estudantes possam seguir Iñigo, nos Domingos de manhã. A 15 de Agosto de 1534, Francisco já faz parte do grupo que se compromete em Montmartre com os 3 votos. Aparece no encontro de Veneza e está ajoelhado aos pés de Paulo III, para que os companheiros sejam enviados, aonde Sua Santidade muito bem entender, de tal modo que, na rampa de lançamento do “peregrino” de Loiola, o mais estrondoso impulso para a grande diáspora jesuítica, vai ser o envio de Francisco para as Índias Orientais. Mesmo antes da fundação canónica da Ordem e antes da eleição de Inácio para Geral, depois de uma complicada rede de influências portuguesas, em que entram D. Jerónimo Osório, Diogo de Gouveia, D. João III e o seu Embaixador em Roma, D. Pedro Mascarenhas, o fundador dirige-se a Xavier: – “Esta es vuestra empresa !”, responde o orgulhoso biscaínho. – “Pues, sus ! Heme aqui”7. 7 Fontes Narrativi (de S. Inácio), II, 381. 100 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte Logo no dia seguinte, depois de passajar as calças e a sotaina, Francisco, acompanhado do Embaixador, estava a caminho de Lisboa. Os dois maiores “andarilhos e peregrinos” da Companhia, o atleta e o coxo, nunca se haviam de tornar a ver. Apenas 6 anos depois da sua conversão, já está em Lisboa e, a 7 de Abril de 1541, precisamente no dia em que completava 35 anos, larga o Tejo. Recusa qualquer ajuda material dos amigos. Enfiado numa batina toda remendada, eleito Núncio apostólico pelo Papa à Ásia, vai percorrer, nos primeiros 7 anos, o Extremo Oriente, convertendo à força de braços, as multidões ignorantes das Índia e da Malásia, numa algaraviada feita de mau português e de farrapos dos inúmeros idiomas, falados nas Índias. Durante mais de 7 anos, a sua missão – tal como a podemos imaginar através das suas cartas – foi marcada por uma estranha insensibilidade a esses mundos e a essas civilizações prodigiosas. Parece fazer tábua rasa do seu passado humanista, de “ilustre Mestre em Artes” da Universidade de Paris; nem de longe suspeitando tudo o que a civilização indiana encerrava de grandeza, debaixo da miséria das aparências. Como se fosse um “conquistador”, só pensa em converter todos aqueles humanos que ele considera – porque não pertencentes à Igreja Católica – condenados ao inferno. Nem a sua espiritualidade nem a sua afectividade parecem, nem mesmo de longe, tocadas por essas antigas culturas, no entanto profundamente dominadas pela metafísica. Quer se trate dos pescadores da Costa da Pescaria, quer dos miseráveis artesãos e camponeses das Molucas, ninguém consegue comover-lhe a inteligência, mas apenas o coração que só vê nesses pobres de Cristo idolatria, pecado e exploração de uma Cristandade hipócrita. Quanto aos métodos missionários desses primeiros 7 anos, ainda não parece Jesuíta. As suas cartas ainda não revelam qualquer preocupação pela “maneira de ser” desses povos, mas quase exclusivamente a obsessão de perseguir o “mau espírito” em toda essa gente “perversa”. De Javier a Sanchoão 101 Escrevendo de Cochim para Roma, a 15 de Janeiro de 1544, “o grande Humanista da Sorbona” tem esta passagem surpreendente: “As crianças a quem dou catequese... têm grande horror às idolatrias destes gentios, de tal modo que muitas vezes se batem com os idólatras, repreendem os pais e as mães quando os vêem nessas práticas, os acusam e me vêm logo avisar. Quando isso acontece, junto todas as crianças do lugar e vou com elas onde estão os ídolos... As crianças atiram-se então aos ídolos, fazem-nos em pedaços, reduzem-nos a cinza; depois cospem neles e pisam-nos. E fazem ainda muitas coisas que não fica bem dizê-las com palavras próprias”8. Embora a Inquisição só venha a ser fundada em Goa em 1560 (8 anos depois da morte de Xavier) é certo que, no seguimento do Bispo de Goa e do seu Vigário Geral, em carta a D. João III de 16 de Maio de 1546, recomenda-lhe a necessidade da Inquisição para Goa: “A segunda nesecydade que a Yndia tem para serem bons cristãos os que nela vivem, hé que mande V.A. a santa Ynquisição porque ha muitos que vivem a ley mozaica e seita mourisca, sem nenhum temor de Deus nem verguonda do mundo”9. A 7 de Abril de 1545 já tinha expresso este mesmo desejo, escrevendo ao P. Mansilhas, para que o comunicasse ao Infante D. Henrique: “que por via da Inquisição castigue aos que perceguem os que se convertem a nossa santa ley e fé”10. Apesar de pedir a Inquisição, não como meio de converter judeus, mouros e pagãos, por via de coacção, mas para manter a fé nos baptizados e para que não persigam os cristãos, no entanto, não deixa de ser estranho, pela experiência que ele devia ter da Inquisição em Espanha, onde o fundador fora preso e julgado várias vezes por esta instituição e onde os Jesuítas eram rigorosamente vigiados e impedidos de partir para as Américas e sobretudo por ter sido em Paris EX, I, 395-396. Ibid. – I, 346. 10 Ibid. – I, 287. 8 9 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 102 o grande arauto do Novo Humanismo, na linha de Erasmo. Naquela precisa ocasião, não sabia das lutas e das arrelias por que passava o pobre Inácio em Roma para não se negar ao pedido de D. João III, que quase exigia dele um Inquisidor Jesuíta. Sabemos quanto rezou Inácio e recomendou instantemente à Comissão a quem encarregou de estudar o assunto que “tal função se opunha ao espírito da Companhia”. Ao contrário de outro grande missionário, o P. António Vieira, Francisco não tinha ainda assimilado devidamente aquilo que nos Exercícios de S. Inácio chamamos a Meditação do Reino, a partir da qual o P. Vieira há-de chamar o Seu Palácio por excelência, à “Clavis Prophetarum”, em contraposição com os seus sermões, que não passariam, para ele, de miseráveis palhotas. O mesmo poderíamos dizer com relação aos primeiros Jesuítas que chegaram ao Brasil, com o P. Manuel da Nóbrega, precisamente no ano em que Francisco chega ao Japão, e que imediatamente aplicaram instintivamente o princípio da inculturação missionária. Para atingir a estatura de grande estratega missionário, Francisco terá primeiro de se purificar de muitas maneiras de ser e de pensar à maneira dos países da Europa, passando por grandes provações interiores. Em várias das suas cartas há sinais destes estados de alma, por que teve de passar. Escrevendo a Francisco Mansilhas, a 10 de Novembro de 1544, tem estas palavras impressionantes: “Eu estou tão enfadado de viver, que julgo ser melhor morrer por favorecer a nossa lei e fé, vendo tantas ofensas quantas vejo fazer sem se acudir a elas. Não me pesa senão que não fui mais à mão aos que sabeis...”11 Nesta altura, entrevemos nas cartas de Xavier momentos de desânimo e de grandes depressões. Em várias, explode a sua indignação quando descobre que serve de caução, embora muito respeitada, ao formidável empreendimento que é a colonização portuguesa desses tempos que são já de decadência. Apesar de ter gosto em dizer-se “português” e não “castelhano”, vai lentamente tomando consciência da incompatibilidade do projecto evangélico com o suporte mili11 Ibid. – I, 242. De Javier a Sanchoão 103 tar em que se apoia o trabalho missionário no Padroado português. As cartas de Inácio a D. João III só respiram gratidão, respeito e jubilosa submissão. As de Xavier são de um contraste impressionante. Àquele que lhe pôs à disposição todos os meios para se desempenhar da sua missão, só lhe escreve – que saibamos – 4 anos depois de sair de Lisboa, e em latim, de modo extremamente formal, deixando nas últimas linhas transparecer o seu descontentamento: “Espero morrer na Índia..., e que nos vejamos na outra vida com maior paz do que aquela em que estamos...”. E termina com as mesmas expressões apocalípticas, com que há-de concluir todas as suas cartas ao Rei.: “...que seja dada a Vossa Alteza a graça de sentir e de fazer já nesta vida aquilo que, na hora da morte, gostaria de ter feito. 12” E 3 anos depois da anterior: “Muitas vezes cuidei comigo mesmo se seria bem escrever a Vossa Alteza o que sinto dentro da minha alma... De maneira, Senhor, que em cuidar que avia de escrever a Vossa Alteza me achava em muita confusão; por derradeiro determinei de desencarregar minha consciência, escrevendo o que sinto dentro della...”. E segue-se uma crítica violenta à maneira como o Rei permite que seja governada a Índia. E antes de fazer ressoar de novo a sua trombeta apocalíptica, vêm novas palavras em que se adivinha o seu desânimo: “Eu, Senhor, não estou de todo determinado a ir a Japão, mas vaime parecendo que sim, porque desconfio muito que não hei-de ter verdadeiro favor na Índia para acrescentar a nossa fé...”13 Um ano depois, já muito mais claramente: “Eu, Senhor, eu sei o que se passa aqui. Não tenho pois a mínima esperança de que as prescrições de V.A.... sejam obedecidas na Índia. É, por isso, que ando pensando em partir para o Japão, quase fugindo, para não perder mais tempo do que já perdi...”14. Ibid., I, de 20 de Janeiro de 1545, 254. Ibid.,.Carta de 20 de Janeiro de 1548, I, 404-410. 14 Ibid., Carta de 26 de Janeiro de 1549, II, 60. 12 13 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 104 E termina, ameaçando o Rei com a justiça de Deus pela responsabilidade na forma de administrar as Índias: “...a experiência ensinou-me que V.A. não exerce o seu poder na Índia para aqui acrescentar a fé em Cristo; exerce-o sim para levar e para possuir as riquezas temporais da Índia...”15. “...Que Nosso Senhor faça sentir a V.A., no íntimo da sua alma, a sua mui santa vontade e que lhe dê a sua graça para a cumprir, de maneira que V.A. rejubilará à hora da morte, por o ter feito, quando V.A. estiver prestes a dar conta a Deus de toda a sua vida passada e essa hora chegará mais cedo do que pensa V.A. Os reinos e os bens têm fim... E será uma coisa nunca vista nem nunca acontecida a V.A. ver-se desapossado deles...”16. Quanto à conversão dos infiéis , parece fora de dúvida que Xavier vivia com o maior rigor o aforismo teológico do tempo: “Fora da Igreja (entenda-se sem o baptismo ministrado pelo missionário) não há salvação” . Mesmo Schurhammer, na sua obra extraordinariamente perspicaz, em 4 enormes volumes, não consegue desvendar os segredos da alma de Xavier “peregrino em demanda constante da sua missão de estratega missionário”. Que mistério o leva a confessar que “está pensando em fugir para o Japão”? Donde lhe vem essa ponta de desânimo que o obriga a falar em “tempo perdido” na Índia? Há mistérios que vão acontecendo no coração de cada um de nós, ainda no dos maiores santos, para nos irem identificando com Jesus, o “Homem do despojamento total” na sua Paixão e Morte. Os cordões umbilicais que nos prendem só Deus os conhece, bem como os acontecimentos da vida mais apropriados para nos libertarem. Não há nenhum profeta do A.T. e nenhum santo do Novo que não tenha passado por estas noites escuras e desolações interiores, e por onde possivelmente cada um de nós há-de passar. 15 16 Ibid., II, 61. Ibid., II, 63. De Javier a Sanchoão 105 2 – O segundo grande marco na vida de Xavier O que se vai passar durante os seus dois anos no Japão faz-nos pensar, por um lado, que no seu coração de gigante missionário ia amadurecendo a convicção de pôr fim ao espírito de Cruzada que até ali alimentara muita da sua própria missionação; por outro, que a experiência do Deus amor e misericordioso, que continuamente o inundava, o levaria, mais tarde ou mais cedo, a ir pondo em questão o princípio de exclusão salvífica dos infiéis. Numa palavra: a sua intuição mística de estratega missionário ia abrindo caminho àquilo que Nóbrega, já nesse momento, começava a pôr em prática no Brasil, que Valignano há-de adoptar no Japão, Ricci na China e Nobili e João de Brito na Índia. Mas foram precisos longos anos de amargas dores de parto. Ecos desta evolução do grande “andarilho” missionário do Oriente aparecem na carta escrita, a 20 de Janeiro de 1548, aos seus companheiros de Roma, onde temos a impressão que é já um “homem novo” que fala, agora mais ávido de encontros e contactos culturais que de conquistas: “...Nesta cidade de Malaca, alguns comerciantes portugueses deram-me amplas informações sobre grandes ilhas, recentemente descobertas, que se chamam Ilhas de Jappam. Segundo eles, nelas se colheriam muitos frutos e mais se acrescentaria a nossa fé do que em qualquer parte da Índia, porque as pessoas são extremamente desejosas de aprender, ao contrário das gentes da Índia”17. A conversa com o japonês Anjiro, foragido da justiça, em Malaca, parece ter sido a gota de água da sua “segunda conversão”: “Se todos os Japões tiverem tanta curiosidade de saber como este Anjiro são, parece-me, as pessoas mais curiosas de espírito de todos os países que vi...”18. 17 18 Ibid., I, 390. Ibid., I, 391. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 106 A descoberta que fez com Anjiro parece ter-lhe restituído a alegria de sonhar e de continuar a “peregrinar”. E em carta ao Geral, antes de entrar no Japão, escreve: “Parto com a intenção de ir primeiro à residência do Rei e depois às Universidades... Uma vez no Japão, escreverei a V. Caridade... sobre o que se ensina nessa grande Universidade...Quando tiver visto as Escrituras do Japão e ouvido os universitários...não deixarei de escrever para a Universidade de Paris para que, através dela, todas as demais sejam informadas...”19. Tudo mudou. Ressuscitou o Humanista sequioso de informações, de trocas culturais e de respeito pelas “Escrituras do Japão” e deslumbrado pelo costume “que têm os Japões de escreverem de cima para baixo”. Tem 43 anos, quando deixa a Índia, depois de 7 anos de pregação, de ensino, de cuidado com os doentes, de negócios com as autoridades, de viagens contínuas entre Goa e Malaca; da Costa da Pescaria até à Ilha do Mouro. Em toda a parte, a sua personalidade fascinante e carismática e a sua dedicação tão espontânea e desinteressada deixam uma auréola tão forte que os seus companheiros não terão dificuldade em persuadir os Japoneses da sua santidade. Para o “grande encontro com o Japão”, dispõe apenas do seu prestígio, da sua “nova chama interior” e de algumas ideias muito vagas, quando não totalmente erradas. Vai de mãos vazias, mas não de todo. É que no junco do Pirata (o chinês Avan) fizera embarcar 30 barris de pimenta que lhe oferecera o Governador de Malaca; pimenta que poderá muito bem servir de passaporte, pois os Japoneses são doidos por pimenta e nenhum presente poderia encantá-los tanto. E também não vai sozinho. Além de Anjiro, agora Paulo da S. Fé, vão outros dois catecúmenos japoneses e mais dois Jesuítas: o P. Cosme de Torres e o Ir. João Fernandes que dentro de pouco tempo vai adquirir um bom conhecimento da língua e da cultura do Japão. 19 Ibid., II, 22-27. De Javier a Sanchoão 107 Chegam a Kagoshima a 15 de Agosto de 1549. As primeiras impressões de Xavier revelam claramente uma nova atitude interior de respeitosa observação, dignas de um etnólogo experimentado: “... as pessoas com quem conversámos até agora são as melhores que descobrimos até à data...; é um povo de convívio muito agradável que põe a honra à frente de tudo o mais. Nenhum dos países cristãos faz o que eles fazem: tratam com igual deferência um fidalgo pobre e um rico... Valorizam mais a honra do que as riquezas. São pessoas muito corteses... Não toleram qualquer afronta nem qualquer palavra dita com desprezo... Sóbrios no comer, são dados à bebida... Nunca jogam... Nunca vi pessoas tão irrepreensíveis em matéria de roubos... Uma parte considerável do povo sabe ler e escrever...Não adoram ídolos... figuras de animais, mas muitos adoram o Sol e a Lua. A maioria acredita em homens de outros tempos os quais, segundo pude compreender, eram pessoas que viviam como filósofos...Gostam de ouvir coisas conformes com a razão... Se soubéssemos falar a língua deles, não hesito em crer que muitos se tornariam cristãos...As pessoas de cá não matam nem comem seja o que for que criem; por vezes comem peixe com o seu arroz e o seu trigo, em pequenas quantidades. Existem muitas ervas de que se alimentam e alguns frutos.. Gozam de uma saúde espantosamente boa e há muitos velhos”20. Mas, em Hirado, por um triz que não recaiu nos mesmos erros que cometeu na Índia: os portugueses receberam-no com toda a pompa, armas, trombetas e bandeiras e deram a entender ao rei da região que este “bonzo” gozava de imenso poder junto do “chefe” dos portugueses. Entende que “tudo aquilo” era entrave para o tipo de missão que ia inventando. Parte para Yamagushi e depois para a sua célebre viagem a Myako para visitar o Imperador..., onde só encontra teias de aranha... De volta a Yamagushi, medita naquilo que se passou em Hirado, pouco antes. Se até aqui descobriu que converter é respeitar o “outro”, agora descobre que também se tem de “converter”, adaptar e sujeitar às formas culturais dos outros: 20 Ibid., II, 179-212. 108 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte tem, por isso, o cuidado de passar novamente por Hirado e com as esmolas dos portugueses decide mandar fazer uma batina de seda, leva os presentes enviados pelo Vice-Rei e “um pequeno relógio que bate as horas, um instrumento musical muito harmonioso e outras obras de arte” que lhe dera o Governador de Malaca. Tudo para oferecer ao dáimio de Yamagushi: Yoshikata. Faz pensar na fase de Inácio, saindo da sua cova de anacoreta, em Manresa, para se transformar em cidadão do mundo da sua época: homem para os homens. Este episódio revela-nos quanto tempo Francisco levou a descobrir a diferença entre a “mortificação corporal”, a que ele dera tanta importância, e a “abnegação” que é o essencial dos Exercícios de Inácio: “Exercícios... para ordenar a sua vida, sem se determinar por alguma afeição desordenada”. Francisco, ao descobrir que, naquelas circunstâncias, havia maior pobreza em vestir-se de seda, do que “andar como peregrino andrajoso”, recorda-nos os poucos meses que Inácio passou na cova de Manresa, como um Santo Onofre. Esses poucos meses de Inácio corresponderam em Francisco a vários anos. Lembremos as terríveis penitências corporais a que Xavier se submeteu depois da sua conversão. Por causa da vaidade de ser “campião de salto em altura” no Quartier Latim, ata às pernas fortes cordas que se enterraram na carne e que só com uma cirurgia se puderam tirar; o facto de ter passado a poucos kms da família, ao passar por Loyola, e nem um minuto ter dado aos seus familiares; em Veneza, no trato com os doentes, de ter chupado com a boca o tumor de um deles, etc... Cheio de tão boas disposições, logo à partida, o missionário navarro rapidamente vai entremear as suas reflexões sempre benevolentes sobre a religião japonesa, com observações algum tanto azedas contra os bonzos, mas nunca de desprezo, como fazia com a “corja” dos brâmanes da Índia. Chegou a tornar-se, logo de início, amigo muito íntimo de um deles: “Este Ninxit tornou-se tão meu amigo que é de espantar. Todos, tanto leigos como bonzos, sentem grande prazer com a nossa companhia. De Javier a Sanchoão 109 Admiram-se por termos vindo de países tão distantes... e de só falarmos de Deus..”21. Como estamos agora longe daquelas sessões de aspersão das multidões indianas, convertidas à força de braços que baptizam..., para afugentar o “mau espírito”! Depois, em Yamagushi, pede licença para pregar e para dialogar com os habitantes. E será precisamente aqui, em Yamagushi, que dará início ao seu grande diálogo de culturas. Neste ponto, o estratega antropólogo é inesgotável: “Estávamos constantemente ocupados, respondendo a preguntas. Eram tantas as pessoas que vinham: padres japoneses, freiras, fidalgos etc.. Fizeram-nos tantas e tantas preguntas...”22. Muito depressa, o antigo professor do Colégio de Beauvais vai descobrir o imenso valor missionário dos caminhos muito humanos, como os da ciência... e se vai revelar o precursor de Clavius (o Jesuíta que elaborou o Calendário Gregoriano) e de Ricci, Adam Schall e dos matemáticos de Pequim. A sua segunda conversão é de alguma maneira também a segunda Conversão da Missionação Portuguesa... e o caminho para a Nova Evangelização de Hoje. Tanto se foi convencendo do valor da ciência que, por várias vezes, recomendará para Roma, para os futuros missionários:. “..que seria bom que fossem bons filósofos, bem treinados no diálogo...; que estudassem coisas da esfera, porque os Japões adoram que se lhes fale dos movimentos dos céus, dos eclipses, das fases da lua, de como se formam a água da chuva, a neve, os trovões, os relâmpagos, os cometas e as demais coisas naturais...”23. Depois de recebido em Funai (no Bungo) com grande pompa e circunstância por Duarte da Gama, recebe a notícia que tem de Ibid., II, 190. Ibid., II, 265. 23 Ibid., II, 373. 21 22 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 110 regressar a Goa e depois a Roma. A 19 de Novembro de 1551, 27 meses depois de ter desembarcado em Kagoshima, deixa o Japão levando consigo 4 convertidos Japoneses: Bernardo, Mateo, Joane e António. Nas suas cartas não se cansa de elogiar “os seus queridos japões”: “... porque os japões são homens de muito singulares engenhos e muito obedientes à razão; e, se se deixavam de fazer cristãos, era por temor do Senhor da terra, e não porque não conheciam que a lei de Deus era verdadeira e as suas leis falsas”24. “... são os japões mais sujeitos à razão do que nunca jamais vi gente infiel. São tão curiosos e importunos em preguntar e de falar aos outros as cousas que lhes respondemos às suas preguntas...”25. E ao voltar, pela última vez, do Japão à Índia, exultando de alegria, pára em Cochim para escrever, nada menos que 5 longas cartas: uma (a mais longa que dele possuímos) a todos os companheiros da Europa; outra a Inácio; outra a Simão Rodrigues; outra a D. João III e a última, para Goa, a Micer Paulo: “Espero em Deus Nosso Senhor que se há-de fazer muito fruto naquelas partes do Japão, porque é gente tão discreta e de bons engenhos, desejosa de saber, obediente à razão, e de outras partes boas, não pode ser senão que entre eles se faça muito fruto...”26 Na primeira, depois de descrever longamente as imensas perspectivas que se abrem à evangelização de todo o Extremo Oriente, graças aos japoneses, interpela – como fará também o P. António Vieira – aos que frequentam as Universidades da Europa: “Estou certo de que muitas pessoas doutas fariam outro fundamento do que fazem para empregarem seus grandes talentos na conversão das gentes. Se sentissem o gosto e consolação espiritual que de semelhantes trabalhos se seguem, e conhecendo a grande disposição que há no Japão para se acrescentar a nossa fé, parece-me que muitos letrados dariam fim Ibid., II, 259. Ibid., II, 265. 26 Ibid., II, 276. 24 25 De Javier a Sanchoão 111 aos seus estudos; que cónegos e outros prelados deixariam suas dignidades e rendas por outra vida mais consolada da que têm, vindo-a buscar ao Japão...”27 A Simão Rodrigues pede-lhe, para que, pela intimidade que tem com o Rei e a Rainha, faça com que eles convençam os Reis de Espanha que, depois da conquista das Filipinas, não mandem mais armadas para essa região28. Ou porque já rondariam os Holandeses por essas bandas, fazendo correr o boato de que a Espanha se dispunha a conquistar o Japão ou pela sua simples intuição de estratega, Francisco estava a ser profeta acerca daquilo que havia de ser a desgraça da missionação do Japão. Com efeito, as perseguições aos cristãos do Japão vão precisamente nascer do medo com que vão ficar os Imperadores, quando os Holandeses lhes derem a entender que os missionários portugueses não são senão uma “quinta coluna” de Espanha (uma vez que Portugal e Espanha pertencem à mesma monarquia) e quando os missionários de outras congregações, a partir das Filipinas, começarem a entrar pelo Japão adentro, sem qualquer preocupação de inculturação missionária. E Francisco insiste: “... as pessoas com quem até agora temos conversado no Japão, são as melhores que temos encontrado”29. “De todas as terras decobertas nestas partes, só a gente do Japão está em condições de poder perpetuar a cristandade...”30. E começa a tomar decisões muito concretas. A intenção primeira que o leva a escrever a Simão é para lhe dizer que em breve chegarão a Lisboa dois japões, Bernardo e Mateus, para verem Portugal e Roma, e poderem depois voltar para dar aqui testemunho da sua fé31. Ibid., II, 278-279. Ibid., - II, 356. 29 Ibid., - II, 186. 30 Ibid., - II, 291. 31 Ibid., - II, 355. 27 28 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 112 A carta que escreve a todos os companheiros da Europa será a sua Carta Magna da nova estratégia missionária, fruto da sua constante e dolorosa “peregrinação interior e exterior” e simultaneamente um tratado de etnologia japonesa. Como aconteceu com Alexandre, ao ter a humildade de adoptar, como conquistador, os costumes dos persas, talvez possamos dizer que o Japão, de alguma maneira, mais “converteu” a Xavier do que Xavier ao Japão, como o Pai que em Jesus “se vem pôr à escuta do que é ser totalmente Homem”. Não se cansa de falar de tantas coisas que já aprendeu dos japões. Entre estas está uma que vai marcar definitivamente toda a sua actividade e grande parte do futuro da sua Ordem: a China. Ficaramlhe gravadas a fogo estas palavras que ouviu dos japões: “... se todas as cousas do mundo tiveram princípio, se a gente da China soubera isto, de onde lhes veio as leis que têm? Têm os japões para si que os chins são muito sabedores assim nas coisas do outro mundo, como nas deste...”32 E põe-se a descrever aos irmãos da Europa o muito que os japões lhe ensinaram sobre a China33. E insiste na necessidade de já na Europa começarem a conhecer os costumes, maneira de ser e de pensar dos chins e sobretudo a língua34. Na longa carta ao Geral, Inácio, esboça já uma série de disposições e de qualidades para aqueles que forem enviados para o Japão35. Serão estes princípios, que – sistematizados e aprofundados dentro de poucos anos – por outro grande estratega missionário, Alexandre Valignano, constituirão o fundamento de todo o enorme esforço de inculturação dos Jesuítas em todo o Extremo Oriente. Este vai escrever dois livros para os jovens Jesuítas se familiarizarem com as cerimónias e maneira de ser dos japoneses: um, o Sumario sobre as coisas Ibid., - II, 264. Ibid., - II, 274-277. 34 Ibid., - II, 218, 363-364. 35 Ibid., - II, 288-293. 32 33 De Javier a Sanchoão 113 do Japão, editado em 1583 e outro: Adições ao Sumario, editado em 1592. Outro escritor será Luís Fróis, com a sua Historia do Japão desde 1549 a 1593, com a mesma finalidade. Além desta Historia, Fróis escreveu ainda um livro curiosíssimo e impensável para aquela época: uma contraposição entre “Os costumes japoneses e os costumes europeus”, para os missionários evitarem as “gafes” na maneira de conviver, no dia a dia com os japoneses. O primeiro médico que introduziu no Japão a maneira própria da medicina ocidental foi um Jesuíta português, formado, na Praça da Figueira de Lisboa, onde se situava o Hospital Real de Todos os Santos. Trata-se do Jesuíta: Luís de Almeida. Provavelmente, depois da língua árabe, latina e grega, o maior número de palavras que passaram para a língua portuguesa, foi da língua japonesa e vice-versa. Tanto interesse manifestaram pela língua japonesa que foram os primeiros a compor gramáticas, vocabulários e dicionários em Japonês. Introduziram logo nos Colégios do Japão tipografias europeias e foram os primeiros a imprimir livros em caracteres japoneses. Desde 1549 a 1587 (ou seja: em menos de 40 anos de permanência legal no Japão) têm neste momento 28 santos canonizados, enquanto nós portugueses, em 800 anos, temos apenas 8 santos canonizados. Tudo devido à perseguição que se seguiu em 1587, pela falta de espírito de inculturação de alguns missionários europeus vindos das Filipinas, e por causa dos Holandeses que fizeram crer ao Imperador que os missionários portugueses eram da mesma nação que os espanhóis, que vinham para conquistar o Japão e a China. Na actual crise de culturas, existe uma aspiração generalizada para que cada um tente dar sentido à sua história, à sua vida, ao seu universo. Mas, simultaneamente, neste princípio do século XXI, ocorre uma ameaçadora desintegração do tecido cultural. Por um lado, aspira-se a uma dimensão planetária e, por outro, parece caminhar-se para uma pulverização destas mesmas culturas. Sob o aspecto religioso, parece nunca ter havido tão grande proliferação de “ídolos” e, por outro lado, assistimos à emergência 114 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte de um colossal Baal: uma tecnologia tentacular com a ambição de preencher essa aspiração planetária. Neste contexto, surge, como “miragem” e “utopia” a tão badalada “Nova Evangelização” envolta em tais e tantas ambiguidades, que parece vir agravar ainda mais a pulverização das culturas e dos saberes, porque cada qual lhe dá o sentido que quer. Seguindo a evolução da Missionação, na acidentada história do Encontro de Culturas, podemos vislumbrar porventura aqui uma aproximação do verdadeiro sentido a dar a esta “Nova Evangelização”. Não será a oração que fazia Jesus ao Pai, momentos antes de morrer: “Pai, que eles sejam Um, como Nós somos Um”, que vai ecoando através da história das culturas e que não é senão o “Projecto inicial e definitivo do Senhor da História”? Com efeito, duas aspirações convergentes trabalham no coração das diversas culturas: uma, de verem respeitadas as suas próprias diferenças; outra, de se irmanarem num Humanismo sempre Novo e numa Cultura sempre Nova, que excluam toda a tentativa de uniformização. Talvez ande por aqui o autêntico sentido dessa “nova evangelização”. Lentamente, no decorrer da história da missionação, foi-se descobrindo que a Boa Nova do Evangelho só era aceite pelas diversas culturas na medida em que os missionários chegavam a esses povos, purificados e pobres de suas próprias culturas e “armados” unicamente com a “proposta de um amor humilde e de uma entrega radical”, na disposição de respeitar e de promover esses povos e culturas, “com” eles, “como” eles e “para” eles. A paciência do tempo foi revelando que só deste modo passava o Amor do Pai, que quer congregar todos os povos e todas as culturas numa Aliança Fraterna, pela riqueza das respectivas diferenças. Hoje começa-se a pressentir, aqui e além, a necessidade urgente de ultrapassar a “tradicional adaptação e inculturação missionárias”: purificando a Boa Nova de Jesus de toda a ganga, que lhe serviu de contexto cultural em que nasceu e em que se foi expandindo. Impõe- De Javier a Sanchoão 115 se a necessidade de a “limpar” de tudo o que possa pertencer ainda, não só à cultura greco-romana, mas mesmo de tudo o que possa ser ainda herança puramente cultural e sociológica dos universos de um mundo semítico, judaico e helénico. Uma depuração e um esvaziamento que faz pensar no do próprio Jesus, para que pudesse receber na sua humanidade a plenitude do Espírito Santo. Só quando a Boa Nova de Jesus “chegar ao Homem, exclusivamente como proposta de solidariedade de um Deus que só é Todo Poderoso na humildade de um Amor que se entrega até à morte” é que ela poderá atingir as aspirações mais profundas das diversas culturas, promovendo-as nas suas diferenças e, simultaneamente, fazendo-as convergir no que elas têm de mais fundamental, porque é algo que as “transcende” como culturas. COM XAVIER NOS CAMPOS DE FRONTEIRA Vasco Pinto de Magalhães O que nos separa é o que nos une. Esta afirmação é a caracterização de uma fronteira! É também a expressão da condição humana. Somos seres de fronteira. No horizonte da Comunhão. A fronteira que faz a Unidade nas diferenças Falando de missão e de evangelização, que são campos de fronteira? Um colégio, ou um catecismo, por exemplo, são mais ou menos trabalhos (e campos) de fronteira que uns Exercícios Espirituais dados a cientistas ou a evangelização num bairro de periferia? Esta intervenção inspira-se em Francisco Xavier como um bom guia e companheiro para o que quer que seja um campo de fronteira. A sua história de missão foi uma longa, e ao mesmo tempo breve, corrida de milhares de quilómetros em 10 anos, de fronteira em fronteira até à fronteira da vida, “chocando” nas portas, nas fronteiras da China! “De fronteira em fronteira” podia ser o seu lema. E a primeira de todas foi a do seu próprio eu: “ir para além, sair do próprio amor, querer e interesse”1. Deixar-se – a si mesmo – e deixar... projectos, terras, pessoas, sucessos e fracassos… Ele passou a salto 1 vida. S. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, 189 – a propósito da Reforma de 118 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte – dentro e fora de si – tocado por uma palavra de vida, um horizonte de comunhão, a frase do Evangelho com que S. Inácio o conquistou: “Que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma” (Mt 19). Mas… a nossa fronteira interior é tarefa para toda a vida. A fronteira é o “lugar” onde se perde e se ganha. É linha de risco e fio da navalha. Levantamos fronteiras, muros, dogmas, defesas, ou, com o mesmo Evangelho, baixamos a ponte, damos a cara ao diferente, abrimos a porta a outra língua, a outra cultura! Situação de fronteira é, pois um estado de espírito: estar na “terra de ninguém”… que é a que pode ser de todos. Chegamos à fronteira quando a vida (e a Missão) que estabelece ligações nos lança o desafio e a questão: justapor as diferenças, ou assimilar as diferenças? Eliminar (abafando) as fronteiras, ou comungar pelas diferenças? Destronar um “santo” para que se veja a santidade. O Xavier das fronteiras Um Santo nunca é para imitar. É para inspirar, logo há que destronar a auréola que o envolve para agarrar a santidade. Quando me foi proposto aprofundar a temática das fronteiras senti o entusiasmo de poder sonhar critérios de evangelização em campos como a interculturalidade, a globalizaçao, os desafios éticos nas fronteiras da vida, as estratégias de paz interpessoal e internacional, etc... Procuraria inspiração no “modo de proceder” de um tal Xavier, humanista, dialogante, capaz de aprender uma língua como o japonês em poucas dezenas de dias (!?), tão pronto e livre para tratar com reis como com empestados ou caçadores de cabeças, sabendo estar vestido a rigor na corte em Yamaguchi, como no convés de uma nau sem ter de comer e onde se sentar… Sem ter que baixar o crucifixo com que abordava tudo e todos, podemos vê-lo, também, noite adentro, a escrever de joelhos aos seus amigos da Europa, misturando força e ternura… Mas! Aqui fui assaltado por outras imagens, de “outro” Xavier, talvez… o dos arrebatamentos, com o coração a arder, precisando de ar ou panos frios no peito; capaz das Com Xavier nos campos de fronteira 119 maiores proezas humanas e milagres: fazer chover, ressuscitar mortos, ver e prever à distância os mais variados acontecimentos, como conta a sua legenda. Este Francisco Xavier perturba-me e pôs-me na fronteira, sem saber ligar este “campeão do Oriente” com o “guia espiritual” que serenamente escreve esse tratado de discernimento e modo de proceder que são, por exemplo, as “instruções para a missão de Ormuz” entregue ao P. Gaspar Barzeu (Goa 1549). Francisco Xavier foi-nos muitas vezes oferecido na bandeja dos apelos missionários como o super-herói-romântico, o campeão do Evangelho: apaixonado, radical, taumaturgo ou santo de milagres nunca vistos. Nessa fronteira achei que era preciso desmitificar o Santo para se revelar a santidade. Não despir um santo para vestir outro(!), como às vezes se diz. Aliás, talvez ele nunca tenha tido tanto os pés na terra como quando o viram suspenso no ar a dar a comunhão… Não quero negar esses testemunhos, mas a verdade é que a imagem do iluminado, senhor das energias, quase guru da New Age, não deve mascarar, nem caricaturizar a radicalidade, o amor de serviço que valoriza a outra imagem do instrumento abandonado nas mãos de Deus que – mais que tudo – identificam o Homem de Fronteira. Para viver na fronteira. Radical, apaixonado, homem de Deus Radicalismo e radicalidade. Xavier era radical Não é fácil descrever o essencial que identifica o “apóstolo na fronteira” que está em todo lado e integra diferenças. Quando o quis fazer, assaltou-me a memória um poema de Fernando Pessoa. Interiormente comecei a recitá-lo aplicando-o a Francisco Xavier, mas dava-me conta que não devia estar a dizê-lo correctamente. Fui verificar e, de facto, há pequenos nadas que mudam tudo. Vejamos. S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 120 Diz Pessoa: Viajar! Perder Países Ser outro constantemente Por a alma não ter raízes De viver de ver somente!2 E dizia eu: Viajar! Perder Países! Ser outro constante Por só na alma ter raízes De viver dever somente. Na ambiguidade deste final, que agora não vou discutir, e para além do nihilismo e desencanto de Pessoa, o certo é que daqui se pode partir para uma distinção essencial: ser radical não é radicalismo, mas radicalidade. E radicalidade não é não ter raízes nem cortar com a realidade, mas, muito ao contrário, ir às raízes, ao fundo… pois só enraizado no profundo (radicalmente) se encontra a liberdade e a fortaleza. Então, manifesta-se a frontalidade que não corta, mas liga; assinala a fronteira e a denuncia. Veja-se a conhecida carta de Francisco Xavier para o Rei de Portugal, de Cochim, a 20 de Janeiro de 1545. “Porque razão – pergunta ele – Vossa Alteza, a vossa severidade não pôde ferir aqueles vossos ministros que conspiram contra mim e são indiferentes às vossas ordens senão quando eram negligentes na arrecadação dos impostos e na administração das vossas finanças?” E mais adiante…“Todas as vezes que os cristãos daqui vêem partir essas torrentes de tesouros que vão encher os vossos cofres, e se deixa aqui apenas alguns gotas para as suas necessidades espirituais, 2 Fernando Pessoa, Obras completas, Ática, Lisboa 1958, pág. 184. Com Xavier nos campos de fronteira 121 parece-me ver este infeliz povo dirigir ao céu amargas queixas contra semelhante avareza, exercida em nome de vossa autoridade real…”3 Francisco Xavier com amizade, respeito e razões, não poupa o Rei: ele que pense que há-de dar contas a Deus. Assim o avisa, fortemente. Só o compromisso não deixa morrer o fascínio. Xavier era apaixonado Que se entende aqui por “paixão”? Xavier era um apaixonado capaz de amar. Esta distinção é também essencial para viver nas fronteiras. A paixão pode e deve dar lugar ao amor sob pena de se perder num falso encantamento. Um psiquiatra actual, Scott Peck, no seu livro “O caminho menos percorrido”, esclarece, com antecedentes e consequentes, as diferenças entre estes dois estados de espírito e de acção: a Paixão e o Amor4. Em síntese pode dizer-se que o que caracteriza o Apaixonado é o colapso – temporário! – das fronteiras. Ao passo que para aquele que verdadeiramente ama não desaparecem as fronteiras: antes, elas se dilatam. No fundo, o apaixonado não estabelece a união mas cai na confusão… absorvendo, ou eliminando as fronteiras por um tempo (enquanto dura a paixão), e experimentando um encantamento enganador. Porque o amor não é a posse, mas comunhão com o outro na liberdade, enquanto na paixão as fronteiras forçadas ressurgirão reforçadas na mútua defesa. Amar é respeitar fronteiras e diferenças, valorizadas até. E envolve no mistério que a cada passo a vida nos revela – ao contrário do pensamento mais comum – que só o compromisso (com os limites que Daurignac, S. Francisco Xavier, AI, Braga, págs. 195-197. Scott Peck, O caminho menos percorrido, Sinais de Fogo, Cascais 2000, págs. 90-105. 3 4 122 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte impõe) impede que o fascínio morra. Nos campos de fronteiras não se pretende eliminar a diferença. São as paixões pulsionais e as falsas ortodoxias que confundem unidade com uniformidade. Xavier terá entendido na dor das perdas e dos fracassos, que também os teve, que só a paixão que der lugar ao compromisso de promoção do outro e da sua diferença tem futuro. Essa paixão toma, então, outro sentido: o de “passar” ou sofrer o que for preciso para que o outro cresça. Assim a “radicalidade” se completa pela “entrega” de amor. E Francisco Xavier deixou que a graça reeducasse o seu temperamento apaixonado, ensinando também aos outros a fazê-lo, pela “caridade discreta”, a prática do “exame particular”: o discernimento e a “vigilância penitente”... Saber que sempre se recupera o crucifixo perdido. Xavier, homem de Deus Francisco Xavier não foi uma espécie de “senhor dos Milagres”, ainda que os tenha feito e extraordinários. O que o “canoniza” e caracteriza é a fortaleza que lhe vem do abandono. Aí age o Espírito Santo. E ele aprendeu com Sto. Inácio a “fazer tudo quanto depende si, esperando tudo de Deus”, porque dEle tudo depende. Este verdadeiro milagre aprendeu-o nos sucessos e nas derrotas que integrava, sobretudo, através de longas horas de oração. E tem um símbolo forte: o famoso Caranguejo. O inesperado, o gratuito, o saber que na hora de Deus sempre nos é retribuído o crucifixo. O Caranguejo que lhe veio trazer à praia o crucifixo perdido no mar em plena tempestade é o símbolo deste passar fronteiras, dos campos de fronteira. Ou seja: é de onde não esperamos que nos será retribuído (a nós Igreja) o crucifixo perdido. Quem nos restitui, hoje, o crucifixo? De onde vier o apelo a dar a vida, aí está a nossa China, o nosso campo de fronteira. Não se trata só de abrir novos campos de acção, mas também de entregar-se aos de sempre, vividos com nova criatividade, abertos a novos entendimentos. Com Xavier nos campos de fronteira 123 Concluir é saber aplicar. O sangrar e o sorrir Curiosamente, “Caranguejo” diz-se câncer, é cancro e simboliza-o. Na dor e na doença e na morte há um campo de fronteira. O Caranguejo “anda de lado”, dizemos. Então podemos ver nele também toda a marginalidade donde vem o apelo da justiça e da verdadeira globalidade. O Caranguejo vem do mar – como uma natureza caótica que grita e deseja integração. O Caranguejo também nos fala de reconciliação com a cruz presa nas suas pinças – apelo de novas linguagens, de bondade e de interculturalidade. É perigoso extrapolar e abusar dos símbolos! Mas uma coisa é certa e as histórias maravilhosas de Francisco Xavier obrigam-nos a considerar: são precisos homens e mulheres que oiçam e descodifiquem este chamamento! Gente capaz de perder o crucifixo! Ou seja, de ir até onde se perde o próprio crucifixo e se ganha a vida crucificada. Francisco Xavier venceu a sua última fronteira não entrando na (sua) China, mas na de Deus. Nas sextas-feiras anteriores à sua morte – rezam as crónicas – o Cristo-grande da capela do Castelo de Xavier sangrava. Sangrava e sorria. E a partir do dia 3 de Dezembro, dia da sua morte, ficou apenas o sorriso. No Cristo do Sorriso que hoje podemos visitar, vemos também esse homem cristificado que ali aprendeu a rezar e a transpor fronteiras. Nos campos de fronteira, em qualquer fronteira, há sempre, e não se podem separar, o sangrar e o sorrir. Terceira Parte O DESAFIO DE XAVIER E SE XAVIER VIESSE HOJE? Nuno Tovar de Lemos, SJ A minha história é um pouco bizarra e parece-me natural que não acreditem nela. Começou há meses, quando um dia me pediram que descobrisse o paradeiro de S. Francisco Xavier. Respondi, com uma certa ironia, que – tanto quanto se sabia – ele tinha morrido há 4 séculos e meio e que agora o seu braço direito estava em Roma, uma sandália sua em Coimbra, grande parte do corpo em Goa e que os pedaços que faltavam estavam dispersos em relicários, um pouco por todo o mundo. Insistiram muito sérios que não, que estava vivo e que se eu fizesse uma investigação cuidadosa haveria de o encontrar e de chegar à fala com ele. Não me foram dadas mais indicações ou ajudas a não ser uma mala na qual, segundo me disseram, encontraria as pistas necessárias para chegar até ele. Era uma mala pesada que logo me encheu de curiosidade. Tive a tentação de a abrir mal cheguei ao carro mas pareceu-me que melhor seria fazê-lo num local sossegado. Dei comigo a estacionar o carro frente aos Jerónimos, onde se cantou uma missa solene antes de partir para o Oriente a frota de 5 caravelas que levaria S. Francisco Xavier até Goa1. Sentei-me diante do Tejo, junto à Torre de Belém, imaginando como seria quando a torre estava separada da terra, no meio do rio, entre caravelas que vinham e iam, e pequenas barcaças Georg Schurhammer sj, Francisco Javier, su vida y su tiempo. Edição conjunta do Governo de Navarra, da Compañía de Jesús e do Arcebispado de Pamplona, 1992, Tomo I, p. 948. 1 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 128 de comerciantes e pescadores. Estava magnífico o Tejo nessa manhã! Abri a mala. O que lá encontrei, de certo modo, desapontou-me: um grosso livro sobre a vida de S. Francisco Xavier, um outro com as suas cartas e um pequeno envelope com uma relíquia do santo (um pedaço de uma almofada sobre a qual repousara a sua cabeça, séculos depois da sua morte). E nada mais. Nem um mapa, nem uma carta com instruções mais precisas nem qualquer outra pista que me pudesse ajudar. Olhei o Tejo, a imaginar se algum daqueles grandes navios modernos iria para a Índia de modo que eu ainda o pudesse apanhar. Ou seria melhor ir de avião? Claro, de avião a gente põe-se lá mais depressa. Lá, onde? Lastimei-me de saber tão pouco dessa parte do mundo onde S. Francisco Xavier trabalhou e que eu em breve visitaria. Por onde começar? Tanto quanto me lembrava, ele tinha estado em pontos tão diferentes como Goa, as Molucas, ou o Japão. Ou será que estava agora na China, essa meta de sonho que nunca chegou a pisar? Pus-me a folhear os livros que me tinham sido dados, recordando factos e datas e surpreendendo-me com muita coisa de que não lembrava ou que não conhecia de todo... Por momentos consegui até esquecer o embaraço da missão que tinha pela frente. Fiquei com o olhar preso a uma carta dirigida por S. Francisco Xavier ao rei de Portugal, dando contas da sua missão e pedindo o apoio do rei: “Não vacile por mais tempo nem se atrase vossa alteza, pois por muito que se apresse toda a diligência é pouca. O amor verdadeiro e ardente que tenho a vossa alteza leva-me a escrever isto: imagino que da Índia se elevem vozes de queixa por se mostrar vossa alteza avaro para com elas; pois dos abundantes benefícios que de aqui vão para enriquecer o erário real, vossa alteza só dedica uma pequenina parte ao remédio das gravíssimas necessidades espirituais que há nestas regiões!”2 2 José Maria Recondo sj, San Francisco Javier, BAC, Madrid, 1988, p. 430. E se Xavier viesse hoje? 129 O homem do presidente Que liberdade interior! Recordei a importância de D. João III na história de S. Francisco Xavier e como tinha sido por um pedido do rei que S. Francisco Xavier tinha desenvolvido todo o seu trabalho de missionação no Oriente. Foi ele, no fundo, que enviou o santo. Pensei que, se hoje houvesse um rei, provavelmente S. Francisco Xavier lhe obedeceria de igual modo e que – se assim fosse – o próprio rei me poderia dar uma pista de onde o santo se pudesse encontrar hoje. Foi então que me surgiu uma ideia, uma ideia totalmente disparatada e à qual eu não teria dado a mínima atenção se esta história em que eu me via envolvido não fosse toda ela uma loucura: tentar falar com o Presidente da República. Pedir-lhe uma pista. Explicarlhe a minha situação. Pus uma gravata que tenho sempre no portaluvas do carro e dirigi-me ao Palácio de Belém. Entrar foi mais fácil do que eu teria pensado mas o Presidente, obviamente, não me recebeu. Consegui no entanto – por ser jesuíta e por ter aprendido com outros jesuítas a conseguir coisas impossíveis – chegar a ter cinco minutos com um assessor seu. Ouviu-me muito sério, como se a minha história fizesse todo o sentido do mundo, e no fim explicou-me, muito correctamente, que já desde há muito tempo que não havia império, que até Macau tinha recentemente deixado de estar sob a administração portuguesa e que vigorava neste momento uma clara separação entre Igreja e Estado, se bem que – de acordo com a Constituição – a Presidência da República, de si laica, tinha um profundo respeito por todas as crenças e demais ideologias religiosas. Agradeci-lhe muito o tempo que me tinha dispensado e saí recordando o 3º Grau de Humildade3 e como Cristo nosso Senhor por mim e pela minha salvação tinha passado muito mais do 3 Uma das meditações dos «Exercícios Espirituais» de Santo Inácio de Loyola. 130 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte que eu alguma vez chegaria a passar por Ele. Ia eu já quase a passar os portões do Palácio quando senti passos a correr atrás de mim. Era o assessor. Pensei que me viesse prender para me internar nalgum hospital psiquiátrico. Mas a razão era bem outra. “O Senhor Presidente deseja falar consigo”. Percebi que ele próprio estava estupefacto. O Presidente recebeu-me a sós, de forma calorosa, e quis saber muitas coisas acerca de mim e da razão que me tinha levado a pedir para falar com ele. Disse-me que o seu assessor, logo depois de ter falado comigo, tinha ocasionalmente comentado a minha conversa com ele. Imaginei-os aos dois a rirem-se de mim nas minhas costas e tentei explicar ao senhor Presidente, o melhor que podia, que eu próprio me sentia embaraçado com a missão que me tinha sido confiada mas que – por consideração para com aqueles que me tinham entregue esta missão – não queria desistir antes de ter tentado. Fezme muitas perguntas acerca da pessoa que eu procurava – tantas que eu próprio fiquei intrigado – às quais eu não sabia dar qualquer tipo de resposta. A certo ponto da conversa, porém, confessou-me ter recebido, já havia meses, uma carta que lhe tinha causado alguma perturbação e que, desde aí, lhe dificultava o seu trabalho e até mesmo por vezes o sono. Não me leu a carta nem quaisquer trechos dela mas disse-me que se referia ao desempenho do seu trabalho no cargo que actualmente ocupava. Percebi que o que quer que estava escrito nessa carta tinha conseguido atingir o coração do Presidente. Solidarizei-me com este homem e perguntei-lhe, como quem não quer a coisa, quem poderia ser o autor de tal carta. Confessou-me então que vinha assinada por um tal P. Francisco de Xavier. Tremi ao ouvir este nome. Perguntei-lhe, discretamente, se o envelope não teria um remetente, uma morada através da qual pudéssemos chegar à fala com esse padre. “Nada – disse ele – quer ver?” E, dizendo isto, tirou da gaveta da secretária e passou-me para as mãos um envelope branco escrito a esferográfica endereçado a ele e sem qualquer morada no remetente. Não tive coragem de pedir licença para ver a carta, nem sequer teria tido tempo para tal pois o Presidente no momento em que me deixou tocá-la estendeu-me o braço para que lha devol- E se Xavier viesse hoje? 131 vesse. Mas tive tempo para ver o carimbo do selo: CTT – Miranda da Beira. Despedimo-nos e o assessor conduziu-me à saída fazendo alguma conversa de circunstância acerca da história dos jardins do Palácio. Miranda da Beira Estaria então o S. Francisco Xavier do nosso século em Portugal e não no Oriente? Poderia este P. Francisco de Xavier ser a pessoa que eu procurava? E onde ficava a terra cujo nome se lia no carimbo dos correios? A verdade é que eu nunca tinha ouvido falar dela. Será que existia? Já tudo me parecia possível... Sim, tal localidade existia e eu consegui encontrá-la no mapa, lá para o interior do país. Pensei que melhor seria, antes de embarcar para a Ásia, gastar um dia em Miranda da Beira. Era a minha única pista e o mais que me podia acontecer era fazer um passeio em vão. Miranda era uma aldeola como tantas outras do interior do país, com dois ou três cafés, uma escola primária e um riacho. Entrei num café que era ao mesmo tempo mercearia e fui atendido por um rapaz que estava a fazer contas no livro da escola. “Por acaso não conheces um padre chamado Francisco de Xavier?”, perguntei-lhe. Abriramse-lhe os olhos mal ouviu o nome, deu um pulo para dentro de casa e gritou: “Mãe, está aqui um amigo do P. Francisco”. A Mãe, uma senhora aí dos seus quarenta anos, apareceu imediatamente acabando de vestir um casaco de malha pois estava a preparar-se para sair. Abriu-me os braços antes que eu pudesse dizer alguma coisa ou fazer-lhe alguma pergunta: “Amigo do P. Francisco meu amigo é”. E desatou numa ladainha de louvores ao P. Francisco. Como o tinha conhecido, um dia que ele tinha chegado à sua aldeia e ali mesmo no café se tinha posto a pregar; como tinha levado dois irmãos seus a fazerem as pazes; como havia ali perto da aldeia uma velhota que ele tinha curado de um mal de estômago e como, desde a sua pas- 132 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte sagem por aquela terra, as portas da Igreja se voltaram a abrir todos os dias para a oração do fim da tarde e se voltou a fazer a novena e a procissão em honra de Santa Marta. Ficou desapontada por eu não saber quando o P. Francisco voltaria a passar por lá. Não sabia onde o P. Francisco se encontrava agora mas havia um senhor que talvez soubesse e que ia estar na oração, que em breve começaria. Aceitei ir com ela. Pelo caminho explicou-me que o P. Francisco só tinha passado por Miranda duas vezes e a última já tinha sido há mais de meio ano, mas que em cada uma dessas vezes tinha deixado mais conversões que muitos padres em vários anos. Perguntei se não tinham padre ali na aldeia. Respondeu que não, que o último padre que ali tinha vivido tinha morrido há mais de vinte anos. Que depois, durante vários anos, um outro padre de uma aldeia vizinha ia lá aos Domingos uma vez por mês, mas que mesmo esse não aguentou pois para além daquela paróquia tinha mais outras catorze. Chegámos à capela que, para grande espanto meu, estava cheia. Cantavam já animadamente o cântico inicial, orientado por um grupo de três mulheres. Chamou-me a atenção um grupo de deficientes sentados nas primeiras filas e acompanhados por alguns jovens. Viria mais tarde a saber que – desde a primeira passagem do P. Francisco por Miranda – o grupo de jovens da capela ia diariamente dar apoio a um centro de deficientes que existia naquela localidade. O cântico terminou e um homem de meia idade subiu ao altar e orientou um mistério do terço e umas orações diante do Santíssimo exposto nas quais várias pessoas falaram. Uma delas foi a senhora do café que fez uma oração de acção de graças pela visita “de um amigo do P. Francisco que está aqui ao meu lado”. Nesse momento a capela inteira voltou-se para mim com sorrisos rasgados. No fim da celebração muitos vieram para me dar as boas-vindas. Eu lá ia corrigindo e explicando que ainda não tinha chegado a conhecer o P. Francisco, mas parecia que o simples facto de andar à procura dele já fazia de mim um membro natural daquela comunidade. Finalmente apareceu o tal homem de meia idade que se inteirou da minha situação E se Xavier viesse hoje? 133 e me disse que não sabia onde estava o P. Francisco mas que tinha ouvido dizer que ele e dois companheiros seus iam visitar uma localidade a 70 Km dali. Seria este P. Francisco o homem que eu procurava? Poderia o S. Francisco Xavier do nosso século andar por aí de aldeia em aldeia de Portugal sem viajar para o estrangeiro? Eu tinha metido na minha cabeça, sem sequer me questionar, que me deveria deslocar até à Ásia para o encontrar. Mas, de repente, fez-se-me luz. Se o que tinha atraído S. Francisco Xavier à Ásia eram as “gravíssimas necessidades espirituais” daquelas regiões tão abandonadas pastoralmente, não era verdade que em Miranda ou outras terras do interior de Portugal se sentia agora um idêntico abandono? E se no Oriente ele se tinha enchido de compaixão por comunidades que se diziam cristãs por terem recebido no passado alguma forma de evangelização mas que de cristãs apenas mantinham o nome, não se encheria ele agora de compaixão por tantas aldeias de cristãos nominais no interior do país? Onde estariam hoje esses cristãos de nome e sem assistência pastoral? Não me pareceu desprovido de sentido continuar a minha “caça ao homem” por terras de Portugal. www. amdg.com Estamos tão habituados a ver endereços de sites de internet que quase me pareceu natural encontrar um destes endereços na folha de cânticos que me tinha sido distribuída à entrada da capela em Miranda. De facto, foi só ao chegar à pensão em que fiquei essa noite e aos esvaziar os bolsos das calças que me chamou a atenção o dito endereço: “www.amdg.com”. Não resisti enquanto não liguei o meu portátil e entrei no site. A apresentação gráfica era relativamente modesta. A página de entrada era uma fotografia da terra vista do céu que alternava com outra do céu vista da terra. Daí passava-se para o menu. O utilizador 134 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte podia escolher entre uma variedade de tópicos. Entrei num que se chamava “Fecha a porta do teu quarto”. Começava assim: “Se queres rezar, fecha a porta do teu quarto e fala ao teu Pai em segredo”. Ali estava tudo o que alguém precisaria para começar a rezar. Dicas para a escolha do local, indicações quanto a possíveis maneiras diferentes de rezar, uma selecção de orações simples e sugestões de textos da Bíblia com pistas para reflexão pessoal. Quem quisesse podia ainda enviar questões para um endereço de e-mail que se chamava “correio espiritual” que alguém competente, do outro lado da linha, responderia às suas questões acerca da vida espiritual. Uma senhora pedia conselho acerca de uma promessa que tinha feito mas que agora não podia cumprir. Um rapaz perguntava que fazer pois cada vez que se tentava concentrar para rezar só conseguia pensar na namorada. Vi que havia ainda uma secção de catequese com resumos da fé cristã. A pessoa escolhia a pergunta e aparecia no ecrã a resposta. Muito curioso, escolhi uma pergunta que dizia: “Que acontece a uma pessoa depois da morte?” Pensei que encontraria referências ao juízo final e ao perigo da condenação eterna. Mas não. Vinha escrito assim: “Confia que Aquele que por amor te criou por amor te quererá ter eternamente junto a Si”. A linguagem era toda deste estilo, um estilo a que eu não estava habituado: directo, simples e afectivo. Dirigido à cabeça e ao coração. Poderia este tipo de linguagem ter alguma coisa a ver com S. Francisco Xavier? A princípio achei que não, mas depois recordei os catecismos que ele fez no Oriente, alguns em rima e para serem cantados, e pensei que quem é capaz de pôr a doutrina em música para povoações malaias também seria capaz de a pôr em linguagem simples do nosso século na internet. Mais espantado fiquei quando entrei na secção sobre Jesus Cristo. Parecia incrível, a imagem que se abria lentamente no monitor, diante dos meus olhos: o Cristo do Sorriso. Sereno, desafiador, seguro de si: exactamente a mesma imagem que desde há tantos séculos se venera no Castelo de Xavier E se Xavier viesse hoje? 135 e que ainda hoje lá está a oferecer paz a quantos por lá passam. O Cristo do Sorriso! Seria coincidência? Mas como, se existem tantas imagens de Cristo? Porquê esta, que ficou tão ligada a S. Francisco Xavier, à sua vida e até mesmo à sua morte? Pareceu-me ver no sorriso deste Cristo a mesma simplicidade e imediatez da linguagem em que vinha apresentada a doutrina. Dois ícones chamaram-me a atenção antes de sair do site. O primeiro era dos “Supermercados Poupança”. Percebi que eram eles os patrocinadores da página e surpreendeu-me que através deste site religioso se pudessem também fazer compras de detergentes ou de queijos. O segundo ícone representava duas mãos dadas. “Clicando” nele acedia-se a referências e esclarecimentos sobre as outras grandes religiões, obtinham-se contactos úteis dessas religiões e anunciavamse encontros ecuménicos e inter-religiosos. Se S. Francisco Xavier tinha alguma coisa a ver com tudo isto, isso significava que ele tinha reflectido muito, nestes cinco séculos, acerca dos seus pressupostos inter-religiosos. A Paróquia do Espírito Santo Na manhã seguinte dirigi-me para a localidade que o senhor de Miranda me tinha indicado. O seu cartão dizia apenas “casal Mansilhas, Casa Azul, R. do Largo, nº 54” e o nome da localidade. Mal cheguei, percebi logo que não se tratava de uma pequena aldeola mas de uma cidade de tamanho médio: tinha uma zona industrial, um belo jardim público, um museu, muitas lojas e supermercados, um liceu, um quartel da polícia, transportes públicos e uma extensão considerável de bairros sub-urbanos. Indicaram-me a rua do Largo. A Casa Azul era uma pequena vivenda, relativamente modesta mas bem cuidada. Recebeu-me à porta um homem dos seus sessenta anos que logo percebi ser o Sr. Mansilhas. “Tiago”, insistiu ele. Não ficou surpreendido que eu procurasse o P. Francisco, mas lastimou o meu azar. O P. Francisco e dois companheiros tinham passado por ali há 136 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte um semana. Era para ficarem mais tempo mas entretanto o P. Francisco tinha ouvido falar de uma vasta zona no interior onde nunca se tinha ouvido falar de Jesus Cristo e tinha decidido dirigir-se para lá. “Creio que também percebeu que aqui estava tudo a correr bem e que não precisaria de se demorar mais”, acrescentou, com um sorriso orgulhoso nos lábios. – “Tudo”, o quê? – perguntei sem medo de ser indiscreto. – Tudo sobre a nossa comunidade, a Paróquia do Espírito Santo. – Ah! – disse eu – o P. Francisco é o vosso Pároco? – Não – respondeu o Sr. Mansilhas – o pároco sou eu! Eu é que já não estava a perceber nada. “Mas então o senhor é padre?” – Não, aqui não temos padre. Eu não sou padre, sou diácono permanente. Eu e a minha mulher. – Então o senhor é casado? – Há trinta e cinco anos, pela graça de Deus. A Madalena e eu temos três filhos que Deus nos deu, mas só um vive ainda connosco. Os outros já estão casados. Felizmente estão todos bem encaminhados. Sempre fomos muito de Igreja e há dois anos fomos nomeados os responsáveis da Paróquia. – O Sr. Bispo sabe disto? – perguntei a medo. – Então não?! Foi ele que nos nomeou! Mas o P. Francisco é que o convenceu, claro. No nosso caso nem foi preciso muito; os primeiros, há dez anos, é que foram mais difíceis. O Bispo dizia que o povo não estava preparado para ver leigos no papel de padres e que padre sempre é padre. E tinha razão. Mas o povo habitua-se mais depressa do que os padres e os bispos pensam. O mais importante é dar bom testemunho. Nisto o P. Francisco insiste sempre muito. De qualquer maneira, o P. Paulo, que pertence ao grupo do P. Francisco, ficou como padre responsável por este arciprestado de paróquias sem padre. Vem cá de vez em quando, nas grandes festas e noutras alturas, avalia connosco o andamento da comunidade, ajuda a resolver problemas, confessa e celebra a Eucaristia. E se Xavier viesse hoje? 137 – Mas então aqui há outras paróquias a funcionar assim? – perguntei. – Aqui na cidade há mais duas e nesta zona são mais de vinte, entre paróquias e capelanias. Há também outras terras onde está a ser difícil encontrar um casal responsável. As pessoas têm medo da responsabilidade. Mas o P. Francisco não desiste. Ele vai à frente a desbravar terreno e não deixa uma comunidade até que ela caminhe por si mesma. – Como é que funciona uma paróquia sem padre? Desculpe a ignorância, mas eu nem sabia que existiam tais paróquias. Quem faz os casamentos e os funerais? Quem orienta as celebrações na Igreja? Há celebrações na Igreja, não? – Claro que sim. Todos os dias há oração, que várias pessoas orientam. E ao fim-de-semana há duas celebrações da Palavra com distribuição da comunhão, orientadas pela Madalena ou por mim. Os baptismos, quem os faz é o P. Paulo, quando passa por cá. – E os funerais? Nesse momento tocou o telefone e o Sr. Mansilhas pediu licença para atender. – Olá Matias... Agora às cinco? Está bem. (…) Sim, a Irª Joana parece-me bem. Se precisarem de alguma coisa digam. – Sabe – disse, pousando o telefone – morreu ontem um jovem aqui da paróquia e o grupo paroquial que acompanha os doentes queria acertar comigo a hora do funeral. Por que é que não vai lá espreitar? E depois janta aqui connosco para podermos conversar à-vontade e vermos juntos o programa de televisão. Sabe que o P. Francisco vai aparecer hoje na televisão, não sabe? – O P. Francisco na televisão?! – exclamei, apanhado de surpresa e contentamento – Que bom, tenho tanta vontade de o conhecer! Eu não sabia que o P. Francisco era homem de ir à televisão. – De vez em quando – respondeu o Sr. Mansilhas – diz que sempre que lhe pedem vai. Eu acho que eles por um lado sentem muita curiosidade por ele mas por outro lado têm medo porque sabem que vai partir a loiça toda! Praticamente já nem o convidam para falar de 138 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte assuntos religiosos porque ele não se cala. Mas, seja qual for o tema, ele sabe levar sempre a água ao seu moinho. Dirigi-me ao cemitério, que ainda era longe. Na capela mortuária lá estava, junto ao altar, a Irª Joana, uma senhora relativamente jovem vestida com uma túnica simples. Estava a acabar de ler o Evangelho. Todos se sentaram. – O momento não é para grandes homilias – disse ela de pé – mas não posso deixar de pedir ao Senhor que vos dê força neste momento e vos encha de confiança de que o vosso filho está bem. Não sei a dor por que estão a passar, pois eu própria nunca passei por ela. Mas sei o que é ter um filho e sei que por um filho não há nada que um pai ou uma mãe não façam. Por isso vos peço: confiem em Deus, que é Pai e Mãe. E aceitem o apoio que a nossa comunidade vos puder dar nos próximos tempos. – Dito isto convidou todos a levantarem-se, abriu os braços, disse “Oremos” e fez uma oração muito bonita pelo jovem que tinha falecido. Depois aspergiu o corpo com água benta e saiu com o cortejo para a sepultura. Impressionou-me a segurança desta mulher a quem chamavam de Irª Joana e que afinal não era freira, como eu tinha pensado, mas uma mãe de família. Via-se que não era a primeira nem a segunda vez que fazia funerais. Esperei por ela à saída e fiquei a saber que a Paróquia do Espírito Santo, como as outras da zona, estava organizada por áreas de serviço às quais chamavam de “ministérios”. Ela pertencia ao ministério dos doentes, um grupo de uma dúzia de cristãos que, para além de funerais, fazem visitas a doentes e ajudam as pessoas a preparar-se para morrer. Disse que o mais difícil era quando os doentes se queriam confessar, que já tinha escutado muita gente e que, mesmo sem poder dar a absolvição, acabava por fazer com eles uma oração de confiança no perdão de Deus. E se Xavier viesse hoje? 139 Para além do ministério dos doentes havia também o da catequese, o dos jovens, o da solidariedade e o da família, que preparava noivos para o casamento, fazia casamentos e ajudava casais em crise, entre outras coisas. Explicou que uma parte considerável dos cristãos da Paróquia estava envolvida nalgum destes ministérios. O grupo do P. Francisco assegurava cursos de formação dos leigos para os vários ministérios e dava-lhes também manuais e outros materiais de apoio. O jantar em casa do Ir. Tiago foi um deliciosos banho de optimismo a acompanhar umas não menos deliciosas costeletas de porco. Falámos muito destas equipas de ministérios. A Irª Madalena estava muito entusiasmada com os fins-de-semana que estavam a fazer em aldeias vizinhas e que chamavam de “missões”. Fiquei também a saber que todos estes grupos trabalhavam gratuitamente. – E vocês, como é que vivem? – perguntei à descarada ao casal da Casa Azul. – Nós somos sustentados pela comunidade. Nas missas não se fazem peditórios, mas quem vem à Igreja dá um contributo anual conforme as suas possibilidades. Esse contributo vai todo para a Diocese que, por sua vez, paga aos responsáveis. Não é muito, mas temos ainda as nossas reformas e com isto tudo, se não fizermos grandes excessos, dá para viver equilibradamente. “Cem por cento cultura” A conversa decorreu animada, mas nenhum de nós tinha por um só momento esquecido o programa de televisão. “Bem vindos ao “Cem por Cento Cultura” – disse a apresentadora. Televisão e Universidades – qual tem maior impacto na nossa cultura contemporânea? É este o tema do “Cem por Cento” desta semana e temos connosco para o discutir um Professor universitário, um jornalista e um padre”. Neste momento a câmara afastou-se e lá estava ele, o P. 140 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte Francisco, o homem aparentemente inacessível atrás de quem eu andava. Nunca o imaginara assim! Aparentava 40 e tal anos de idade, tinha cabelo forte, testa larga, barba abundante, uma boa estatura, mais magro que gordo4 e sentava-se confortavelmente no seu sofá. Tinha o seu rosto rasgado por um sorriso natural e nos seus olhos grandes o brilho dos homens apaixonados. A pele tostada do rosto sobressaía mais pelo contraste com a camisa branca sem colarinhos que usava aberta e sobre a qual pendia uma cruz pequena de madeira, muito simples. Universidades ou Televisão? O primeiro a falar foi o jornalista. Recordou os inícios da televisão e a sua rápida expansão. Estava perfeitamente consciente do enorme impacto da caixa mágica na criação das mentalidades na cultura contemporânea, facto que ele, como jornalista, sentia como uma grande responsabilidade pessoal. Lamentava que, por vezes, os meios de comunicação caíssem na tentação do mais fácil e nem sempre dessem adequada divulgação àquilo que acontece nos grandes “templos do saber” (como ele chamava às universidades). Achava, por fim, que a questão não era “televisão ou universidades” mas que a cultura só ganharia com uma relação mais próxima entre ambas. O Professor, por sua vez, estava plenamente de acordo. Sublinhou o papel importante da televisão na divulgação de muitas descobertas do âmbito das ciências e de como, de facto, a televisão ajudava a uma maior proximidade entre a cultura superior e o público em geral. Por fim lastimou as dificuldades orçamentais com que se debatem as universidades, comparando as suas verbas com as verbas astronómicas que se gastam por dia na televisão. Faltava o P. Francisco. – P. Francisco, o senhor é um homem mediático que pertence a uma ordem religiosa tradicionalmente muito ligada à cultura. Por 4 Conferir a descrição que faz de S. Francisco Xavier um português de nome Fausto Rodrigues, que com ele viajou, em Schurhammer (op.cit.), Tomo II, p. 887. E se Xavier viesse hoje? 141 outro lado é alguém que tem passado os últimos anos a viajar pelo interior do país e que, segundo alguns, conhece esta realidade como ninguém. Que percepção tem do impacto das universidades na vida real das pessoas do interior? Que diria aos seus alunos, se tivesse uma cadeira na universidade? – Tem piada pôr-me essa questão – disse o P. Francisco, claramente entusiasmado com a ideia – Já várias vezes pensei nela. Se eu tivesse uma cadeira na universidade, acho que traria logo para a primeira aula muitas fotografias da vida de muita gente e diria aos meus alunos “se vocês soubessem quantas pessoas deixam de ser felizes por não haver quem se ocupe delas”! Dir-lhes-ia que temo que muitos dos que ensinam e estudam nas universidades estejam mais preocupados em acumular conhecimentos para fazer a sua própria carreira e ganhar dinheiro do que em usá-los para o bem dos outros e dar fruto com esses conhecimentos. É que se não procurassem só os seus próprios interesses mas os dos outros e se não abrissem só a cabeça mas também o coração muitos iriam diante de Deus e diriam “Senhor, que queres que eu faça? Envia-me onde quiseres”. Com quanta maior alegria viveriam eles se pudessem dizer a Deus “Entregaste-me cinco talentos; aqui estão outros cinco que consegui ganhar com eles!”. Mas claro – acabou ele, com um sorriso atrevido – depois disto ninguém me vai convidar para ter uma cadeira na universidade! Os olhos dos 3 seus companheiros de programa estavam perplexos de espanto. Mas a investida ainda não tinha acabado: – E sabe o que é que eu diria se tivesse um programa de televisão? O primeiro programa seria sobre navegação. Passava imagens de um barco a navegar por meio das ondas e os tripulantes a largar o leme para queimarem incenso diante de um altar cheio de ídolos que tinham posto na proa do barco e a atirar dados para ver em que direcção indicavam os ídolos que deveriam continuar, enquanto o barco ficava à deriva por ninguém lhe segurar o leme. Depois expli- 142 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte cava-lhes que a vida é como um barco, que o leme é a liberdade que Deus nos deu para as mãos e que o melhor é segurarmos bem esse leme porque a nossa sociedade está cheia de ídolos. – Ó senhor padre – comentou trocista o jornalista – isso de ídolos já não existe, são coisas da Idade Média. Entretanto já veio a Idade da Razão e cada um tomou o leme do barco nas suas mãos. Não entendo que ídolos são esses que tanto o preocupam e que poderiam comandar a vida das pessoas. O P. Francisco foi muito simpático com o jornalista e concordou absolutamente com ele que os ídolos de antigamente já não existem e que felizmente já não estávamos na Idade Média. Mas disse-lhe que lhe parecia que a publicidade enganosa, por exemplo, acabava por levar muitas famílias a endividarem-se até chegarem a uma situação de que já não conseguiam sair. E que havia seitas que se aproveitavam de quem estava doente ou se sentia perdido e, em vez de ajudarem as pessoas a lutar por um sentido positivo para as suas vidas, prometiam milagres às quintas-feiras a troco do dízimo. E que o próprio bombardeamento na televisão de imagens artificiais de pessoas belas, bem sucedidas e felizes fazia muitas pessoas sentiremse feias, fracassadas e infelizes e deixarem de ser elas próprias. E que era a isso que ele chamava de ídolos. A apresentadora – ela própria bela, bem sucedida e feliz – desviou a conversa e o programa terminou pouco tempo depois. Finalmente o encontro Agora, que o tinha visto na televisão, sabia estar perto a hora do nosso encontro. Não conseguia fugir à sensação de que praticamente toda a gente o conhecia pessoalmente menos eu. Vou poupar-vos os pormenores dos muitos quilómetros que tive ainda de fazer pelo interior do país e dos muitos outros testemunhos que pelo caminho fui ouvindo acerca do P. Xavier e da sua obra. O certo é que na Paróquia do Espírito Santo puseram-me em contacto com um companheiro E se Xavier viesse hoje? 143 extraordinariamente próximo do P. Francisco, o Ir. João. Nem este foi fácil de encontrar: parecia atacado do mesmo vírus de permanente mobilidade do P. Francisco. Mas lá o encontrei no momento em que ajudava uns doentes num posto de saúde de mais uma pequena aldeia do interior. O Ir. João disse-me que tinha estado com o P. Francisco dias antes, na comunidade de jesuítas que lhes servia de quartel general entre as suas muitas deslocações. Explicou-me que não tinham tido muito tempo para conversar pois o P. Francisco estava atarefado, juntamente com um rapaz de nome António que o acompanhava, a fazer os preparativo para mais uma viagem, desta vez até uma região onde antes nunca tinha estado. António conhecia esta região pois era de lá natural. “O P. Francisco estava tão entusiasmado com os preparativos para esta viagem que parecia que ia para o Céu”, comentou o Ir. João, enquanto limpava o suor do rosto a uma criança doente e lhe segurava na mão. “Mas parece que a viagem não ia ser fácil pois é uma região remota e os transportes para lá são escassos”. Perguntei ao Ir. João o que nesta região atraía tanto o seu companheiro. “O mesmo de sempre – respondeu ele – a alegria de poder levar Jesus Cristo a quem não O conhece e a esperança do bem que lá se pode fazer. Mas desta vez era diferente – continuou, pensativo – fazia a mochila como se a salvação do mundo inteiro dependesse do empenho que punha nesta viagem”. Infelizmente o Ir. João não sabia o nome da terra, mas sabia para onde ia o primeiro autocarro que o P. Francisco e o seu acompanhante iam apanhar. Imaginava que aí, se eu os descrevesse, me poderiam informar para onde tinham seguido. Olhei no mapa e vi que, com sorte, chegaria lá antes do anoitecer. Enganei-me. A estrada era muito pior do que eu imaginara e quando lá cheguei já era noite cerrada e não tinha onde ficar. Foi em vão que procurei pelas ruas alguém que me pudesse dar alguma informação. Vi ao longe um autocarro estacionado numa espécie de pequena estação de camionagem. “Talvez haja ali alguém acordado – pensei”. Estacionei o carro e nem queria acreditar na minha sorte: 144 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte um rapaz atravessava a rua e vinha precisamente ao meu encontro. Estava salvo. Alguém me poderia ajudar a encontrar uma cama para essa noite. Mas nem tive tempo de falar. – Venha depressa – disse o rapaz – preciso da sua ajuda. Estou sozinho com alguém que está muito mal. Chegámos há horas no autocarro e estávamos à espera de um outro autocarro que não chegou, mas ele está cheio de febre. Talvez o senhor nos possa levar de carro ao hospital? Tive um enorme pressentimento. “António?”. “Sim – disse o rapaz sem ligar importância – Vamos!”. Fui. Encostado às portas fechadas da garagem, o homem que eu tinha visto na televisão agarrava com força a cruz de madeira que tinha ao peito. Pe Francisco. Dizia a custo coisas repetidas, pequenas orações. Estava obviamente muito doente mas em paz. Finalmente calou-se por uns momentos, abriu os olhos e tentou dizer: “Para a maior… para a maior…” António ajudou-o: “Eu sei, P. Francisco, eu sei… vá em paz que nós continuamos: para a maior glória de Deus”. O P. Francisco, esboçou um grande sorriso, apertou ainda mais a sua cruz de madeira junto ao peito e morreu. E foi assim que eu percebi que, apesar de ele ter vivido há quatro séculos e meio e o seu braço direito estar em Roma e uma sandália sua em Coimbra e grande parte do seu corpo repousar em Goa, a sua voz continua a falar de Deus um pouco por todo o mundo e a inventar novas linguagens para o poder fazer. E os seus pés continuam a descobrir escondidas novas terras de missão. E o seu coração continua a sonhar formas novas de ser Igreja, muito para além do que pareceria possível, sem medo de arriscar o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho e chegar onde nunca se tinha chegado antes, ou mesmo – quem sabe? – até à China. E tudo isto… para a maior glória de Deus. O MILAGRE DA BOTA DE PEQUIM Juventude na pista de Xavier Carlos Carneiro, SJ “Por um extraordinário concurso de circunstâncias, Paris, Roma, Lisboa e Coimbra foram o palco de uma das mais espectaculares e polémicas aventuras espirituais que o mundo moderno conheceu: a do nascimento, ascensão, queda e ressurreição da Companhia de Jesus. É difícil encontrar na longa história das empresas humanas ilustração mais cabal, sob a mítica roupagem barroca, do exemplo evangélico do grão de semente onde nasce a árvore em que pousam as aves do céu. Em apenas meia dúzia de anos os jesuítas estenderão as suas asas de Roma à Baia e S. Vicente, de Lisboa a Goa e a Yamagushi. Poucos mais são do que os apóstolos e como apóstolos são tidos, admirados e em breve temidos. Quem são estes homens que 3 vezes foram expulsos de Portugal e 3 vezes ressurgiram do seu chão salgado? Quem são estes homens que... “ assim falava naquela manhã o Prof. Vaz de Almada, citando o seu velho amigo Prof. Eduardo Lourenço a propósito de Inácio de Loyola, Francisco de Xavier, Manuel da Nóbrega, António Vieira e tantos outros que se sentiram chamados a viver sob a bandeira da cruz incentivando os seus alunos a acordar para a vida e para a história. Eram apenas 8.30 da manhã do dia 3 de Dezembro de 2002. O dia estava tão frio quanto solarengo. A “cabra” da velha torre da Universidade de Coimbra dava as suas primeiras badaladas enquanto o João Maria, quartanista de História, embrulhado na sua capa negra e envaidecido nas suas fitas azuis, subia atleticamente a Coura- 146 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte ça de Lisboa esperando encontrar uma cadeira vazia na aula de história moderna. Apesar da aterragem ter sido quase forçada, João Maria não cabia em si de surpreendido com tudo o que acabava de ouvir. Na memória ficou-lhe o nome de um tal Francisco de Xavier, jovem impetuoso e afectivo, estudante brilhante na Sorbone que depois de convertido partiu para o Oriente onde realizou feitos tão grandes que passados 500 anos continua a ser respeitado por católicos e hindus, crentes e descrentes. Como terá sido possível? Quem terá sido afinal este homem Navarro que se considerava também português e que partiu de Lisboa como embaixador do Rei e delegado do Papa percorrendo os caminhos do Oriente? A palavra “Oriente” provocava no João Maria um vendaval de emoções. Desde há alguns anos que João Maria sentia um desejo de conhecer o Japão, de viajar até à China. Terminada a aula, João Maria dirige-se, como habitualmente, ao bar da Faculdade de Letras. No bar, enquanto os cafés acordam os mais ensonados e os pastéis de nata deleitam os mais gulosos alguém sugere a China como meta para a viagem de finalistas. A China? Mas será possível? Terá enlouquecido ou nem sequer estará ainda acordado? Como será possível? Não será melhor pensar numa hipótese mais viável? João não cabia em si de contente e entre a incredulidade e o desejo vai pensando: “a China”... E porque não? E movido por um impulso interior grita. Claro, a China! Vamos à China! “Bora, vamos à China”. Seria preciso arranjar patrocínios, vender rifas, organizar festas, mas se fosse preciso até a cama se vendia. Quatros meses depois, aproveitando as férias da Páscoa, um grupo de finalistas do curso de história da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra aterrava no aeroporto de Pequim. João Maria sente um nó na garganta, tem a sensação de estar a pisar terra sagrada e sem perder muito tempo nas “demarches” do aeroporto e do hotel, para o qual todo o grupo tinha sido encaminhado, escapa ao guia turístico e passeia-se sozinho pela cidade desconhecida. “Estou em Pequim, meu Deus. Eu, João Maria estou em Pequim. Uhau!”. O milagre da bota de Pequim 147 No mercado de “Xamsé” deleita-se com o artesanato, as loiças e os vestígios de um passado cultural completamente diferente do ocidental. Procurando alguns presentes para oferecer, João Maria percorre as bancas cheias de velharias e deixa-se prender por uma velha bota que, curiosamente conseguiu comprar sem saber ou entender uma única palavra de chinês. No quarto do hotel, já depois de ter jantado com os colegas na embaixada de Portugal, abre os papeis de jornal que envolvem a bota que comprou. “De quem terá sido esta bota”, pensou. “De um mandarim?”. “De um navegador português que no passado chegou a estas terras?”. “De onde terá vindo, quantos passos terá dado, quantas viagens terá feito, quantas histórias contaria se a deixassem falar?” Uma coisa ficou clara. A bota seria um presente para o prof. Vaz de Almada que tanto os ajudou a realizar o sonho desta viagem e cuja idade, infelizmente, lhe impediu de acompanhar tão grande viagem. Guardou-a como se tratasse de um grande tesoiro e só a voltou a ver quando, já regressado a Coimbra, a entregou ao seu querido professor. O professor agradeceu muito o presente e levou a bota para o seu escritório. Metendo a mão dentro da bota para a colocar na prateleira o professor descobre um pequeno rolo de papeis bem enlaçados, tão carcomidos que corriam o perigo de se esboroarem ao primeiro toque. Com uma perícia própria de quem já se habituou a pôr a mão nos tesouros mais inesperados, o professor abriu delicadamente estas páginas e ficou estupefacto. Não podia acreditar no que estava a ver. Seria mesmo verdade? Seriam originais? Seriam cópias? Mas como? O seu coração bate forte e a sua respiração fica ofegante. Telefona ao João Maria, revela-lhe o achado e a suspeita do que seja. A bota trazia consigo 3 pedaços de cartas escritas por S. Francisco Xavier na Ilha de Sanchoão antes de morrer. Cartas que provavelmente ainda ninguém conhecia. Cartas que provavelmente não teve tempo nem oportunidade de enviar para a Europa. 148 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte João Maria fica estarrecido. Não sabe o que há-de pensar ou dizer. Não entende logo o porquê de tanta emoção do professor mas percebe que se deve tratar de alguma coisa muito importante. O professor diz-lhe que não pode aceitar um tal presente. Se as cartas forem autênticas será preciso descobrir como chegaram a Pequim e de quem seria afinal aquela velha, gasta e misteriosa bota. Seria do próprio santo? Mas não seria demais ousar colar uma tal hipótese? João Maria abre o rolo e não consegue ler nada. O texto está muito gasto e as palavras são de um português antigo que não lhe é perceptível. O professor atreve-se a tentar. Coloca uns óculos mais fortes, puxa o candeeiro para si e com uma enorme lentidão e não menor solenidade, enquanto lhe brilham os olhos começa a ler o seguinte texto: “Goa, 17 de Abril de do ano da graça de 1552. Minha querida irmã Ana, escrevo-vos de Goa onde me encontro desde Fevereiro. Hoje partirei para uma nova viagem que me levará até à China, terra que, pela graça de Deus espero pisar ainda antes do Natal. Para os navegadores portugueses a China é vista como um grande mercado. Para mim é um imenso território que falta conquistar para Cristo. Deus tem sido a minha força e a minha esperança. Estou muito feliz por poder me encontrar neste lado do mundo. Embora me sinta quase morto de cansaço embarcarei hoje para Malaca a fim de poder encontrar alguém que me leve à China. O mais difícil foi obtido. Pereira, um comerciante português que muito me tem ajudado conseguiu o cargo de embaixador de Portugal e a autorização papal através do Rei para entrarmos nessas misteriosas e apetecíveis terras do oriente. Claro que também contámos com alguns obstáculos em particular de um tal Alvaro de Ataíde, almirante dos mares do oriente. Mas Deus não deixará de me ser propício tal como tem sido a todos os meus companheiros que se encontram espalhados pelo mundo ao serviço de Cristo, conforme me contava Mestre Inácio numa carta que pela graça de Deus me esperava em Malaca da última vez que por lá passei. Nestes dias tenho-me lembrado muito de ti, dos manos e dos nossos O milagre da bota de Pequim 149 queridos pais. Como o tempo passa. Já estou com 46 anos, sabias? O dia do meu nascimento, 7 de Abril de 1506 já me parece tão longínquo. Tens notícias da vida do castelo? Reina pelas terras de Navarra a paz ou porventura aumentaram os conflitos? Como gostaria que a mãe fosse viva para ver como todos os sacrifícios que fez por nós valeram a pena. Sabes, Ana, pude conhecer um pouco melhor a mãe na altura em que os manos fugiram para França depois de terem lutado contra os castelhanos que queriam dominar as nossas terras. Nessa altura, morávamos no palácio novo, lembras-te? Minha querida irmã Ana, nunca esqueci o cheiro da nossa terra e o ar fresco que inundava o castelo vindo da serra de Leire, recordo os rebanhos que se passeavam junto ao rio, as salinas, o moinho, o toque das Avé Marias na abadia e sobretudo as longas ausências do pai. Como era íntegro e fiel o nosso Pai. Como soube merecer a confiança dos nossos reis de Navarra e partir com eles depois da tomada de Pamplona pelo Duque de Alba. Não fosse a ambição dos castelhanos e ainda hoje a torre do nosso castelo não estaria em ruínas. Mas não te preocupes. O Miguel e o João ajudados pelo nosso tio Martinho serão capazes de recuperar a honra e a memória do nosso Pai. Tinha apenas 9 anos quando ele morreu, lembras-te? A vida tem coisas inimagináveis, minha querida irmã. E Deus não desperdiça nenhuma delas para nos conduzir. Alguma vez os nossos manos poderiam pensar que aquele bravo soldado contra o qual lutaram em Pamplona, Inácio de Loyola, seria meu companheiro de quarto em Paris e acabaria por ter tanta influência na minha vida ao ponto de se tornar no mais fiel amigo e me mostrar outro caminho para os meus sonhos de grandeza? Lembras-te da última festa que tivemos no palácio? Foi o teu casamento com Diego Ezpeleta, senhor do palácio de Beire. Foi tão bonito. Lembro-me que me diverti e dancei imenso. Depois a guerra tomou conta das nossa terras. Ainda bem que no tempo em que pude ajudar a 150 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte mãe a gerir os negócios da nossa família fui ganhando gosto pelos estudos acabando por preferir os livros à carreira das armas. Lembro-me da emoção que senti quando tive nas minhas próprias mãos o diploma de doutor do pai. Era um belíssimo pergaminho, escrito com tinta escura e iniciais a ouro, com um escudo de cores fantásticas onde se podia ler: “In nomine Christi. Amén. Gloriosa scientiarum Mater Bonina”. Também eu, como aliás, todos nós, desejaríamos ser dignos de tão grande senhor. Como vês, Ana, apesar de ter deixado o castelo com apenas 19 anos para estudar em Paris, de ter visto tantas coisas e ter percorrido tantas terras, o nome da nossa família continua intacto no meu coração. Uma coisa gostava de te confessar, Ana, talvez a mais sagrada de todas as coisas que te digo: Nunca, mas mesmo nunca esqueci o sorriso do Cristo que está na Capelinha do castelo. Está dentro de mim. Levanto-me com Ele a sorrir. Deito-me com Ele a sorrir. Gostava de sorrir assim. 0 sorriso que tenho e do qual Deus se tem servido para derrubar alguns obstáculos por estas terras, não é mais do que o esforço suave de mostrar por fora o Cristo que vive por dentro de mim. Ana, não te esqueças de rezar por mim e por todos os meus companheiros. Hoje mesmo parto para a China, a minha terra prometida. Não sei se serei recebido no palácio do imperador ou se me encontrarão num cárcere de Cantão. Que importa! Tudo posso e vivo pela força do Senhor. Quando puder, dar-te-ei novas notícias. Que Deus vos dê tanta consolação nesta vida e na outra quanta para mim desejo. Vosso mais pequeno irmão, Francisco”. O professor Vaz de Almada estava estarrecido. Como teria ficado feliz esta mulher se tivesse recebido esta carta! João Maria olhava boquiaberto para o professor, fixava os seus olhos humedecidos e não sabia o que dizer. Agarrou-lhe a mão como se fosse a mão do seu querido avô e disse-lhe: Continue, professor, continue, por favor. O professor retira delicadamente um outro papel da bota e começa a ler em voz alta: O milagre da bota de Pequim 151 “Ilha de Sanchoão, 1 de Dezembro do ano da graça de 1552 Meu querido pai e mestre Inácio, queira Deus guardar-vos na Sua magnífica bondade. Quanta alegria vivi em Malaca ao ler a vossa última carta. Jamais poderei agradecer-lhe tudo o que fez, em particular durante o tempo dos nossos estudos universitários na Sorbone em Paris. 0 padre sabe como eu não simpatizava consigo. Achava-o velho para universitário, excessivamente beato para o meu gosto e, além do mais, tinha lutado com os castelhanos contra Navarra. É verdade que também eu era possuído por um fortíssimo amor à verdade e procurava cumprir os meus deveres para com Deus e para com a nossa mãe, a santa Igreja. O Pedro Fabro, com quem partilhávamos o quarto, bem pode testemunhar a meu favor. Fui sempre um estudante dedicado e os excelentes resultados que tirava saiam-me da pele. Em tudo procurava ser o melhor. Talvez por isso, depois do meu doutoramento, me quisessem para professor da universidade. E mesmo todas as vitórias desportivas que alcancei e os prémios académicos que recebi vejo-os, passados todos estes anos, como um terreno que Deus foi preparando até à conquista total. Que ideia foi essa de me nomear provincial do Oriente? Vossa reverência esqueceu-se do barro de que sou feito? Não lhe bastou o susto que me pregou quando me convidou para coordenar todo o nosso grupo? Ainda bem que aceitou a minha proposta de ser apenas o seu mais fiel secretário. Ficar ao seu lado enquanto todos os nossos companheiros espalhavam o evangelho por diversas cidades da Europa sob as ordens do Romano Pontífice foi certamente doloroso para mim mas também um presente que Deus me deu para poder conhecer o quanto na sua sensatez não podia ser mais louco por Cristo e mais obediente ao romano pontífice. Que saudades tenho dos 6 meses que passámos em Veneza vivendo e trabalhando juntos no hospital dos incuráveis enquanto esperávamos a licença de viajarmos até à terra santa. E como fomos todos ordenados sacerdotes no dia de S. João Baptista. Sabe Vossa reverência que, depois de me ter mandado para Lisboa, procurei encontrar no caminho o Pedro Fabro que se encontrava em Parma juntamente com Laínez, mas Deus 152 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte quis que aprendesse desde logo a treinar o amor aos amigos vivido na sua ausência. Quantas memórias me têm assaltado a cabeça e o coração nestes dias em que me encontro na praia de Sanchoão, morando numa pequena cabana de palha que os navegadores portugueses me ajudaram a construir. E como me parece confortável este chão, comparado com todas as tempestades e outras adversidades que vou encontrando por aqui. Diante de mim, tenho o mar calmo e extenso. Daqui posso avistar a China, uma terra enorme, cheia de futuros cristãos que espero conquistar para Cristo e para adorar o verdadeiro Deus. Assim Ele me ajude. Vossa reverência sabe que todos os que conseguir enviar para estas paragens serão poucos. Tomei a liberdade de escrever para o colégio de Coimbra e pedir ao Simão Rodrigues para me enviar todos os jovens jesuítas que pudesse. Em Malaca, enquanto me preparava para partir para o Japão, tive a sorte de abraçar três novos companheiros. Graças a Deus, vejo que o nosso grupo está a crescer e que haverá quem dará continuidade à missão nestas terras. Nestes dias encontro-me mais cansado, mas muito feliz. Só a impaciência de não poder fazer ainda mais por Deus do que tudo o que tenho feito me desassossega o coração. Tenho tido uma ligeira febre, coisas que por estas terras são de somenos importância. Deus sabe o que quer de mim. Como Vós me dizíeis tantas vezes “Que queres de mim Senhor? Seguindo-vos não me poderei perder”. Continuo a guardar no bolso da batina, junto ao coração, as tiras com os nomes dos nossos companheiros e sinto-me tão unido a eles que apesar de desejar tanto revê-los e abraçá-los sinto quase uma consolação maior por poder estar nestas terras a pensar neles do que se estivesse fisicamente ao seu lado. Meu caro Mestre, continua a contemplar o céu e as estrelas? E as castanhas, já é tempo delas por aí? Que saudades tenho das noites que passámos juntos, contemplando o céu, a rezar e a sonhar acordados com Deus. E como eram grandes e puros os nossos sonhos comparados com a pequenez dos meus triunfos de Paris. Lembra-se daquele papelinho que O milagre da bota de Pequim 153 me deixou por debaixo da porta no dia do meu aniversário? Conservo-o, juntamente com o crucifixo que me confiou, como os tesoiros mais precioso que recebi em vida. Não posso deixar passar esta oportunidade sem lhe agradecer uma vez mais tudo quanto fez por mim, desde o dinheiro que conseguia arranjar para pagar os meus estudos em Paris quando os meus irmãos deixaram de me poder ajudar, até ao trabalho que lhe dei durante os exercícios espirituais onde vi tão claro como o homem pode perder tudo quando quer ganhar o mundo inteiro. Como é que o senhor conseguia ser tão próximo e tão discreto? Como foi capaz de prescindir do seu pouco dinheiro em meu favor? Como me conseguiu arranjar tantos alunos? Porque não desistiu logo de mim? E porque me fez sempre sentir que eu era um amigo especial para si sem nunca ter deixado de se dar inteiramente a cada um dos seus companheiros? Vossa paternidade sabe quanto sofri e quanto resisti para entregar toda a minha liberdade ao Eterno Senhor de todas coisas. Não que eu levasse uma vida dissoluta antes de me converter. Mas, como Vossa paternidade tão bem conhece, as minhas defesas eram mais subtis e o desejo de grandeza dominava-me as entranhas. A glória e o triunfo dançavam na minha própria mão e ganhar grande reputação entre os homens não era coisa contrária ao evangelho nem à honra dos meus antepassados. Daí que o desejo de ser pobre, de caminhar até Jerusalém, de viver para os outros, não estivessem nos meus planos. Ganhar o mundo inteiro. Eu sabia que não tinha nascido para menos. E não corresponder a este impulso da minha inteligência seria pior do que morrer sem glória. Vossa paternidade fez-me ver que existe um ideal maior do que ganhar o mundo todo para si próprio, que é ganhar o mundo todo para Deus e viver para a sua maior glória. Que Deus me dê a humildade para continuar a espalhar por estas terras o nome de Jesus. Sabe que continuo a usar a campainha para chamar os que querem para a lição do catecismo? 154 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte Não sei se já lhe contei, mas uma das coisas mais difíceis que tive que fazer por estas terras foi vestir-me de embaixador de Portugal e Legado Pontifício para ser recebido na corte do imperador do Japão. Já lá tinha estado, pobre e descalço e com isso nada tinha conseguido a não ser ofender o imperador e o seu povo. O imperador ficou tão impressionado com a dedicação que lhe prestei que me concedeu a liberdade de pregar nos seus territórios. O mesmo espero venha a acontecer na China. Para os homens desce-se subindo. Para Deus sobe-se descendo. Por aqui, chamam-me impaciente, face ao desejo de querer chegar a tudo e a todos. Tenho-o sempre como mestre e por isso creia-me seu devedor; mas, sobretudo tenho-o por amigo e companheiro no Senhor e por isso deixe que lhe diga, como dizem por cá os portugueses, muito obrigado. Desde que decidi abraçar Cristo pobre e humilde, nem um só dia a minha alegria vacilou, embora as forças nem sempre coincidam com a vontade de O servir pedindo-lhe mais pobreza que riqueza, mais humilhações do que glória, ser considerado louco por Cristo mais do que prudente aos olhos deste mundo. Despeço-me, confiando na infinita misericórdia de Deus, Senhor de todos os tempos e lugares e com o favor da vossa oração e sacrifícios, vossos e de toda a companhia. Espero que, se não nos virmos nesta vida, nos veremos na outra com maior prazer e descanso do que temos neste mundo. Vosso filho e irmão em Cristo. Francisco de Xavier”. Depois de um largo e sonoro respiro o silêncio inundou o gabinete do professor Vaz de Almada. João Maria estava calado e inquieto. Não entendia o que se estava a passar no interior do seu velho professor mas intuía que algo de muito importante se passava, bebia cada uma das palavras que ouvia e sentia dentro de si um desejo estranho de querer saber mais coisas sobre este homem e a sua vida. Entretanto, o professor repara que João Maria está surpreendido e não foi capaz de lhe dizer mais do que: “Estás assim e só conheces os primeiros anos da vida deste homem. Se tu conhecesses a sua vida como missionário ficarias estarrecido. É um grande. Deus fez dele um grande, João Maria. Deus faz de todos os que deixam, um grande, João”. O milagre da bota de Pequim 155 Movido por um impulso quase repentino, João Maria toma a liberdade de abrir o último dos papéis e sem saber o que o esperava começa a ler pausadamente. “Oiça, professor, oiça: Oração ao Cristo do Sorriso Não me move, Senhor para querer-Vos A glória que me tendes prometido Nem me move o inferno tão temido P’ra deixar por isso de ofender-Vos Moveis-me Vós, Senhor, move-me o ver-Vos Sorrindo nessa cruz escarnecido Move-me o Vosso corpo já estendido E a alegria que vejo ao padecer-Vos Minha alma em vos amar tanto se esmera Que não havendo céu, eu vos sorria E não havendo inferno eu Vos temia Nada em vos sorrir de Vós espera Pois, se o que esperara em Vós, não esperara O mesmo que Vos quero, Vos quisera. Que poema mais estranho, professor. Poderá Cristo sorrir na Cruz? Sorrir de verdade? Sorrir porquê? Sorrir para quem? Que efeitos terá tido este sorriso em Francisco de Xavier? Terá influenciado o seu comportamento tão alegre e jovial? Teria ajudado a construir a sua vontade de vencer e o gozo de viver? Que imagem seria aquela? Onde estaria? Que poder arrebatador teria aquele Cristo?” Todas estas perguntas explodiam no coração do João Maria, tanto mais que nos últimos anos do seu curso João Maria procurara encontrar respostas para algumas dúvidas que brotavam no mais fundo da sua alma. 156 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte Rompendo o silêncio, o João pergunta ao professor: O Sr. lembra-se daquele poema da Sofia de Melo Breyner “Vimos o mundo inteiro nos Seus olhos, E por o vermos nós ficamos penetrados de força e de destino. Ele deu carne aquilo que sonhávamos e os nosso sonhos viram-se iluminados pelas iluminadas imagens de oiro que Ele vira. Porque o ergueste assim como um sinal...” E, interrompendo-o, o professor continua: “pusemos tantos sonhos em seu nome”. É assim que termina o poema, João Maria: “pusemos tantos sonhos em seu nome”. “E agora, João? O que fazemos com a tua preciosa bota e estes textos? Francamente, não sei. O professor fica com a bota? – perguntou o João Maria. Eu quero que o professor fique com a bota. Seja de quem tiver sido esta bota e estes textos, a bota agora é sua professor. Trouxe-a para si. É sua professor”. O professor aceitou enquanto por dentro continuava a interrogar-se: E se a bota fosse mesmo de S. Francisco Xavier? Como terá ido parar a Pequim? Algum mercador a terá recolhido depois da sua morte? Quem? E os papéis? Seriam autênticos? Como se conservaram todos estes anos? O professor não via outra solução que pedir ajuda a um seu velho amigo da revista Brotéria, membro da Academia Portuguesa de História, até porque se recordava, ainda que vagamente, de terem tido um dia uma conversa a propósito de uma bota de S. Francisco Xavier que se encontrava no noviciado de Coimbra. O professor Vaz de Almada despede-se do seu aluno, agradece-lhe encarecidamente a bota, pede-lhe que guarde segredo de tudo quanto se tinha passado naquele gabinete e promete dar notícias logo que consiga. João Maria retira-se completamente esgotado. Tentou passar pela Sé Nova para encontrar um pedaço de paz, mas como já passava das 6 da tarde esta encontrava-se fechada. Acabou por ir jantar à cantina. Refeito o estômago, decidiu caminhar sozinho, percorrendo vagarosamente as vielas e calçadas da alta de Coimbra, antes de voltar a casa. Aquela bota, aquelas cartas, não o deixavam sossegado. E enquanto se passeava pensava: E se eu tivesse encontra- O milagre da bota de Pequim 157 do dentro da bota uma carta para os estudantes desta universidade? O que é que estaria lá escrito? Que desafios nos faria este homem? Como nos contaria a sua infância e juventude? O que nos diria do seu tempo de estudante em Paris? Falar-nos-ia da sua conversão? Afinal, não existem nesta universidade estudantes tão honestos e com desejos tão saudáveis como os seus? Quem é que nos desafia? Quem é que nos ensina que há outra maneira de ganharmos o mundo e realizarmos os nossos sonhos de grandeza? Não estaremos a precisar de conhecer um Cristo que sorri? E com o desejo de poder um dia conhecer o tal Cristo de Xavier, que sorri, João Maria regressa ao seu quarto de estudante situado na república dos Pra-kis-tão. Entretanto, fizera-se noite e, como habitualmente, João Maria não se deita sem contemplar o céu. Olhando as estrelas da janela do seu quarto, pensava: E se eu arriscasse e entregasse a minha vida? E se eu me pusesse em causa? Como o mundo dos meus desejos me parece tão pequeno, comparado com os do santo da bota de Pequim. E se eu arriscasse? Provavelmente não serei rico nem famoso. Serei feliz? E cansado, João Maria adormeceu no cadeirão onde se sentava habitualmente, confiado que a velha cabra o acordaria na manhã seguinte para viver um outro dia ou, quem sabe, começar toda uma outra vida. ANEXOS Expedições missionárias da Companhia de Jesus no Padroado português que se seguiram imediatamente à primeira de todas: a de S. Francisco Xavier e Companheiros só para o Oriente, até à expulsão por Pombal. Total em 215 anos: só para o Oriente = 2 164. Média de missionários jesuítas saídos cada ano, só para o Oriente = 10,06. EXPEDIÇÕES MISSIONÁRIAS S.J., DO SÉCULO XVI, DE LISBOA PARA O ORIENTE (Na col. da ‘naturalidade’, as indicações ‘não entre parêntesis’, indicam os países de hoje em dia, na sua configuração actual). ANO N.Pessoas Naturalidade N. Mártires Missão 1541 4 1 Espanhol (1 Navarra) 1 Italiano 2 Portugueses 1545 3 1546 9 2 Italianos 1 Espanhol (1 Galego) 7 Portugueses 2 Espanhóis (2 Castelhanos) 1º márt.sj. (Ital. António Criminal) 1 Português: (Pedro Lopes) 1548 10 2 Portugueses (Belchior Gonçalves; Paulo do Vale) 1548 3 8 Portugueses 1 Holandês 1 Espanhol (1 Bética) Portugueses 1551 Portugueses Oriente 1553 11 (9 órfãos) 3 Portugueses Goa 1554 2 Portugueses Oriente 1555 12 6 Portugueses 5 Espanhóis (5 Castelhanos) 1 Belga (1 Flamengo) Etiópia, Índia Extremo Oriente Índia Extremo Oriente Extremo Oriente Extremo Oriente S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 162 1556 14 10 Portugueses 4 Espanhóis (3 Castelhanos, 1 Bética) 1558 2 1 Português 1 Espanhol (1 Bét.) Oriente 1560 4 Oriente 1561 6 1562 8 1563 6 1564 6 2 Portugueses 2 Espanhóis (2 Castelhanos) 2 Portugueses 2 Espanhóis (1 Castel.; 1 Bét.) 2 Italianos 5 Portugueses 1 Italiano 2 Esp. (2 Valenc.) 2 Portugueses 1 Belga (1 Flam.) 3 Espanhóis (2 Castel., 1 Vale.) 1 Português 4 Espanhóis (1 Valenc., 1 Biscai., 1 Canta., 1 Castelhano) 1 Italiano (1 Sic.) 1565 6 1567 10 5 Espanhóis (1 Valenc.,1 Cat., 3 Cast.) 1 Italiano 4 Portugueses 2 Italianos 4 Espanhóis (3 Cast., 1 Cata.). 1 Português (Gonçalo da Silveira) Etiópia, Índia Oriente 1 Português (Manuel Lobo) Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente Expedições missionárias – século XVI 163 1568 3 Portugueses Oriente 1569 4 Portugueses Oriente 1571 8 7 Portugueses 1 Espanhol (1 Navarro) Oriente 1574 42 10 Portugueses 8 Italianos (1 Sic.; 1 Lomb.; 6 de outras reg.) 24 Espanhóis (1 Cal.; 1 Valenc.; 1 Galego; 2 Bética; 1 Aragão; 1 Navarro; 17 Castelhanos) 1575 4 2 Portugueses 1 Inglês 1 Italiano Oriente 1576 11 Oriente 1577 2 8 Portugueses 3 Italianos Portugueses 1578 14 7 Portugueses 5 Italianos 1 Belga (Flamen.) 1 Suíço 1579 12 4 Portugueses 3 Belgas (2 Flam.) 2 Italianos 1 Inglês 1 Espanhol (1 Bética) 1 Suíço 3 (2 Espanhóis: Af. Pacheco; Fr. Fernandes; 1 Português: Franc. António) Ìndia Japão China Oriente 3 (1 Italiano: Rodolfo Aquaviva 1 Suíço: Pedro Berno; 1 Português: J. Fernandes) Oriente Oriente S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 164 1581 14 10 Portugueses 2 Italianos (1 Napolitano) 2 Espanhóis ( 1 Cast.; 1 Nava.). 3 Portugueses 4 Espanhóis (4 Castelhanos) 7 Italianos (1 Ven.; 2 Napol.) 1 Flamengo Japoneses 1583 15 15821590 (inverso). 4 Jovens Japoneses que vêm à Europa. 1584 10 1585 12 1586 (Volta Emb. Jap.) 31 1587 2 Portugueses Congo, Angola 1588 10 6 Portugueses 2 Italianos 2 Castelhanos Oriente 4 Portugueses 3 Italianos 3 Espanhóis (1 Catalão) 8 Portugueses 1 Espanhol (1 Castelhano) 3 Italianos 16 Portugueses 6 Italianos (1 Napolitano) 8 Espanhóis (6 Castelhanos) 1 Japonês Oriente Oriente JapãoEuropa EuropaJapão 2 (1 Espanha: Ant. Critana; 1 ?) Oriente Oriente 3 (1 Português: Diogo Mesquita; 1 Espanhol: Balt. Torres; 1 Japonês: Julião Nacaura) Oriente Expedições missionárias – século XVI 165 1588 5 Portugueses Brasil 1589 5 Oriente 1591 4 4 Portugueses 1 Espanhol (1 Castelhano) Portugueses 1591 11 Oriente 1592 15 1593 6 1594 4 9 Portugueses 2 Italianos 12 Portugueses 2 Italianos 1 Maranh. 5 Portugueses 1 Italiano (1 Gen.) Portugueses 1595 4 Portugueses 1596 18 1597 17 1599 20 7 Portugueses 5 Espanhóis (5 Castelhanos) 6 Italianos (2 Sicil.; 1 Napol.) 11 Portugueses 6 Italianos 11 Portugueses 8 Italianos (1 Sardenha, 1 Gen.; 1 Sicil.) 1 Afric. Brasil 2 (1 Maronita: Francisco Jorge) Oriente Oriente Oriente Oriente 3 (2 Ital.: Carlo Spínola; Jerón. de Angelis) Japão (3 anos no mar, errando) Oriente 1 (1 Português: Ir. Vicente Álvares) Oriente EXPEDIÇÕES MISSIONÁRIAS S.J., NO SÉCULO XVII, DE LISBOA PARA O ORIENTE (Na col. da ‘naturalidade’, as indicações ‘não entre parêntesis’, indicam os países de hoje em dia, na sua configuração actual). ANO N.Pessoas Naturalidade N. Mártires Missão 1601 9 Portugueses Oriente 1602 60 25 Portugueses 3 Franceses 32 Italianos (1 Veneziano) 1603 15 1604 12 1605 13 1607 11 1608 8 8 Portugueses 7 Italianos (1 Milão; 1 Florentino) 7 Portugueses 7 Italianos 9 Portugueses 4 Italianos 6 Portugueses 4 Italianos 1 Belga (1Flam.) Portugueses 1 (Português: João Bapt. Carvalho) 6 (3 Ital.; 3 Port.: Miguel de Carvalho; Bento Fernandes; Sebast.Vieira) 2 (2 Ital: Camillo Constanzo; João Metello) 1609 24 12 Portugueses 9 Italianos (3 Napol.; 1 Genovês) 3 Belgas (3 Flam). Oriente Oriente Oriente 2 (2 Ital. Jácome Oriente Oriente 1 (Port.: Manuel Borges) Oriente Oriente Expedições missionárias – século XVII 1611 22 1612 4 1614 12 1615 12 1616 2 1617 12 1618 34 1619 6 1620 2 1622 4 1623 23 20 Portugueses 1 Espanhol (1 Cast.) 1Milan. 3 Portugueses 1 Arménio Portugueses 2 (Portugueses: L. Lardeira – Francisco Machado) 167 Oriente Oriente Oriente 6 Portugueses 5 Italianos (Milan.) 1 Flamengo Portugueses Oriente 10 Portugueses 2 Italianos (2 Sicilianos) 19 Portugueses 6 Italianos (2 Sicil.; 2 Bol.; 2 Mil.) 5 Flamengos 1 Austríaco Alemães 3 Portugueses – 2 Italianos (1 Mil.; 1 Nap.) 1 Francês Portugueses Oriente 2 Portugueses 1 Italiano 1 Castelhano 14 Portugueses 2 Franceses 1 Japonês 1 Húngaro 4 Italianos 1 Belga (1 Flam.) Oriente 2 (1 Italiano: G. Franc.; 1 Português: Gil Abreu) Japão China Oriente Oriente Oriente 1 (Japonês: Petrus Cassui) Oriente S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 168 1624 15 1625 12 1627 6 1627 3 1629 42 1628 3 1630 29 1632 5 1633 7 1634 6 1635 33 13 Portugueses 2 Italianos (1 Sic.) 11 Portugueses 1 Polaco 4 Portugueses 1 Belga (1 Flam.) 1 Italiano 1 Português 2 Esp. (2 Catal.) 24 Portugueses 2 Franceses 1 Alemão 12 Italianos (4 Nap.; 1 Mil.; 1 Lomb.) 2 Japoneses 1 Flamengo 1 Português 1 Italiano 1 Japonês 28 Portugueses 1 Francês 2 Portugueses 3 Italianos 5 Portugueses 1 Polaco 1 Italiano Portugueses 10 Portugueses 21 Italianos (1 Nap.) 1 Alemão 1 Suíço Oriente 2 (2 Portugueses: Franc. Rodrigues; João Pereira) Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente 1 (Polaco: Alberto Menchisque) Oriente Oriente 2 (Italianos: Marcello Mastrilli; Ant. Capece) Oriente Expedições missionárias – século XVII 1637 14 1638 5 9 Portugueses 2 Espanhóis (2 Castelhanos) 3 Italianos (1 Malta) Portugueses 1639 7 Portugueses 169 Oriente Oriente Oriente (voltaram) 1640 25 1641 6 1643 15 1644 10 1645 11 1647 15 14 Portugueses 1 Polaco 8 Italianos (5 Nap.; 1 Sicil.; 1 Trident.) 1 Austríaco 1 Suíço 4 Portugueses 2 Italianos (1 Roma.; 1 Napol.) 7 Portugueses 6 Italalianos 1 Polaco 1 Francês (1 Saboiano) 2 Portugueses 2 Italianos 3 Flamengos 1 Holandês 1 Polaco 1 Espanhol (1 Castelhano) 4 Portugueses 4 Italianos 1 Francês 1 Alemão 1 Belga (1 Flam.) 14 Portugueses 1 Flamengo Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 170 1648 5 1649 3 1 Português 3 Italiano 1 Flamengo Portugueses Oriente 1649 3 3 Portugueses Oriente 1650 7 7 Portugueses Oriente 1652 14 Oriente 1653 3 10 Portugueses 4 Italianos Portugueses 1654 4 Oriente 1655 25 1656 9 1657 36 1658 6 1660 3 1661 3 3 Portugueses 1 Italiano 11 Portugueses 11 Franceses 3 Italianos 4 Portugueses 2 Belgas 1 Holandês 1 Inglês – 1 Polaco 21 Portugueses 1 Polaco – 2 Belgas (1 Flam.) 1 Austríaco 7 Italianos (Tride.) 2 Alemães 2 Franceses 3 Portugueses 1 Italiano 1 Francês – 1 Inglês 2 Portugueses 1 Italiano Portugueses 1664 2 2 Portugueses (voltaram) Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente (voltaram) Expedições missionárias – século XVII 171 1665 21 Portugueses Oriente 1666 18 Oriente 1667 7 1668 6 1670 11 1672 11 1673 27 8 Portugueses 8 Italianos (2 Gen.; 1 Roma.; 1 Parma) 1 Belga 1 Chinês 4 Portugueses 2 Italianos (1 Gen.) 1 Belga 3 Italianos (1 Lombardia) 3 Portugueses 10 Portugueses 1 Italiano 10 Portugueses 1 Italiano 15 Portugueses 3 Italianos (1 Sicil.; 1 Trident.) 1 Suíço 3 Franceses (1 Córs.; 1 Saboia.) 1 Bávaro 1 Inglês 1 Irlandês 2 Belgas 1674 5 1 Português 1 Malta 3 Italianos (2 Sicil.; 1 Milão) Oriente 1675 4 3 Portugueses 1 Aragonês Oriente 1677 18 15 Portugueses 3 Italianos (1 Piemonte) Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente Oriente S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 172 1680 20 17 Portugueses 2 Belgas 1 Alemão 1 (Português: Luís Mello) 1681 16 15 Portugueses 1 Irlandês Oriente 1682 16 14 Portugueses 1 Alemão (1 Hamburgo) 1 Italiano Oriente 1683 4 3 Portugueses 1 Italiano (1 Gen.) Oriente 1684 6 2 Portugueses 2 Espanhóis (Arag.) 2 Belgas Oriente 1685 4 Portugueses Oriente 1686 3 Portugueses Oriente 1687 6 5 Portugueses 1 Francês ( Sab.) Oriente 1688 12 Portugueses Oriente 1689 12 11 Portugueses 1 Italiano Oriente 1690 26 14 Portugueses 10 Italianos (1 Milão; 1 Génova; 1 Roma: 1 Veneza; Tirol-Sul) 2 Alemães 1691 11 6 Portugueses 3 Alemães 1 Chinês 1 Suíço 2 (2 Portugueses: João de Brito; P. Belmonte) Oriente Índia Japão Goa Japã China Expedições missionárias – século XVII 173 1692 16 2 Portugueses 6 Italianos 3 Belgas 2 Franceses 1 Suíço 1 Sueco 1 Alemão Oriente 1693 2 2 Portugueses Oriente 1694 19 17 Portugueses 2 Italianos (1 Sicil.; 1 Piemonte) 1695 18 17 Portugueses 1 Italiano (1 Napolitano) 1696 11 9 Portugueses 1 Alemanha 1 Italiano 1697 10 7 Portugueses 2 Italianos (1 Génova) 1 Francês (1 Saboia) Oriente 1698 17 12 Portugueses 3 Alemanha 1 Italiano 1 Luxemburgo Oriente 1699 20 14 Portugueses 4 Italianos (1 Tirol-Sul; 1 Trident.) 2 Bamberga Goa Malabar Macau China 1 (Italiano: José Candoni) Goa Malabar Japão China Oriente 1 (Português: Manuel da Cunha) Oriente EXPEDIÇÕES MISSIONÁRIAS S.J., NO SÉCULO XVIII, DE LISBOA AO ORIENTE (Na col. da ‘naturalidade’, as indicações ‘não entre parêntesis’, indicam os países de hoje em dia, na sua configuração actual). ANO N. Pessoas Naturalidade N. Mártires Missão 1700 19 15 Portugueses 1 Ital. – 3 Alem. Oriente 1701 16 Portugueses Goa, Malabar Japão China 1702 9 Portugueses Goa Malabar Japão 1703 17 15 Portugueses 1 Italiano (Ven.) 1 Fran. (1 Saboia) Goa Malabar Japão 1704 7 6 Portugueses 1 Austríaco Japão 1705 7 5 Portugueses 1 Italiano 1 Brasileiro Goa, Malabar Macau 1706 10 1 Português 1 Belga 2 Alemães 1 Eslovaco (1 Boémia) 3 Italianos (1 Veneza) 1 Suíço 1 Polaco Japão China Expedições missionárias, s.j. – século XVIII 175 1707 8 5 Portugueses 1 Francês 1 Brasileiro 1 Italiano (Gen.) Oriente 1708 32 20 Portugueses 11 Italianos 1 Alemão Goa Malabar Japão China 1709 7 4 Portugueses 2 Alemães 1 Austríaco Goa Malabar Japão 1710 1 1 Italiano Oriente 1711 9 9 Portugueses Goa Malabar Japão 1712 13 13 Portugueses Oriente 1713 8 4 Portugueses 4 Italianos (1 Sardenha) Goa Tibete 1714 17 1715 8 11 Portugueses 5 Italianos (1 Milão) 1 Alemão 6 Portugueses 2 Alemães 1716 14 12 Portugueses 2 Alemães 1717 12 11 Portugueses 1 Alemão 1718 14 5 Portugueses 9 Ital. (4 Sicil.; 2 Flore.; 1 Parma) 1 (Italiano: Franc. M. Bucherelli) Tonqim China Oriente China Depois preso por Pombal: Franc. Alberto Depois preso por Pombal: A.X.Morabito Goa China Oriente 176 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 1719 2 1 Chinês 1 Francês (1 Sab.) China 1720 12 10 Portugueses 2 Italianos (2 Florentinos) 1722 18 16 Portugueses 2 Italianos (1 Sic.; 1 Napol.) Oriente 1723 9 6 Portugueses 3 Italianos (1 Napo.; 1 Sic.) Malabar China 1724 5 Portugueses Oriente 1725 21 17 Portugueses 3 Italianos 1 (ignora-se a nacionalidade) Goa Malabar China 1726 5 Portugueses Oriente 1727 19 17 Portugueses 2 Alemães 1728 16 14 Portugueses 2 Italianos 1730 25 24 Portugueses 1 Italiano 1731 22 9 Portugueses 8 Brasileiros 1 Inglês 1 Alemão 1 Austríaco 2 Italianos Depois preso por Pombal: Franc.Folleri Depois preso por Pombal: J. Alexandre Oriente Goa Malabar Japão Goa Malabar Japão Depois preso por Pombal: F. Pimentel Goa Malabar China Japão Goa Malabar Japão Expedições missionárias, s.j. – século XVIII 177 1732 23 18 Portugueses 2 Italianos 3 Brasileiros Goa Malabar 1734 8 4 Portugueses 3 Italianos 1 Baía Oriente 1735 19 14 Portugueses 4 Italianos 1 Alemão (Baviera) Goa Malabar Japão China 1736 10 8 Portugueses 1 Austríaco 1 Liubliano Goa China 1737 10 2 Portugueses 3 Alemães 2 Polacos (2 Silés.) 3 Eslovacos (3 Boémios) Oriente 1738 27 17 Portugueses 5 Alemães 3 Italianos 2 Eslovacos (2 Boémios) Goa Malabar 1739 7 1 Português 1 Italiano 4 Alemães 1 Eslovaco (1 Boémio) Oriente 1740 3 2 Portugueses 1 Italiano Oriente 1741 7 4 Portugueses 3 (não se sabe) Oriente 1742 5 3 Portugueses 2 Italianos Oriente 178 S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte 1743 3 1 Austríaco 1 Italiano 1 Eslovaco (Boémia) Oriente 1744 4 4 Portugueses Oriente 1745 5 3 Portugueses 1 Alemão 1 Austr. (Tirol) Oriente 1746 13 11 Portugueses 1 Alemão 1 Italiano Oriente 1747 7 4 Portugueses 1 Espanhol 1 Italiano 1 (não se sabe) Goa Malabar 1748 13 12 Portugueses 1 Austríaco Goa Malabar China 1749 37 19 Portugueses 14 Brasileiros 2 Eslovacos (2 Boémia) 2 (não se sabe) Goa Malabar China 1750 11 5 Portugueses 6 Brasileiros Oriente 1751 15 6 Italianos 6 Portugueses 1 Brasileiro 2 (não se sabe) Oriente 1752 20 6 Italianos 7 Portugueses 6 Alemães 1 (não se sabe) Oriente Expedições missionárias, s.j. – século XVIII 179 1753 19 7 Portugueses 6 Italianos 2 Alemães 2 Austríacos (1 Tirol) 1 Belga 1 (não se sabe) Goa Malabar Japão China 1754 39 23 Italianos (1 Trento) 12 Portugueses 1 Chinês 1 Espanhol (Maiorca) 1 Alemão 1 (não se sabe) Goa Malabar Japão China 1755 26 24 Portugueses 1 Italiano 1 Brasileiro Goa Malabar Japão China 17571758 12 11 Portugueses 1 (não se sabe) Goa Malabar Japão China Nacionalidades Século XVI Suíça – 2; Portugal – 242; Japão – 5; Itália – 77; Inglaterra – 2; Holanda – 1; Espanha – 89; Bélgica – 6; África – 1 (Total – 245) África – 1; Bélgica – 9; Espanha – 112; Holanda – 1; Inglaterra – 3; Irlanda – 1; Itália – 86; Japão – 5; Outras nacionalidades – 32; Portugal – 410; Suíça – 2. Expedições Missionárias S.J. Século XVI Século XVII Suiça – 5; Suécia – 1; Portugal – 699; Polónia – 7; Japão – 4; Malta – 2; Luxemburgo – 1; Itália – 210; Irlanda – 2; Inglaterra – 2; Hungria – 1; Holanda – 2; França – 32; Flandres – 12; Espanha – 7; China – 2; Bélgica – 13; Baviera – 1; Áustria – 3; Arménia – 1; Aragão – 3; Alemanha – 21 (Total – 1031). Século XVII Alemanha – 26; Arménia – 1; Áustria – 3; Bélgica – 37; China – 2; Eslováquia – 2; Espanha – 10; França – 35; Goa – 1; Holanda – 3; Hungria – 1; Inglaterra – 4; Irlanda – 3; Itália – 272; Japão – 4; Luxemburgo – 4; Malta – 2; Polónia – 7; Portugal – 1117; Suécia – 1; Suiça – 6. Expedições Missionárias S.J. Século XVII Século XVIII Suiça – 1; Portugal – 523; Polónia – 3; Itália – 110; Irlanda – ; Inglaterra – 1; Hungria – ; França – 3; Espanha – 1; Eslovénia – 1; Eslováquia – 11; China – 2; Bélgica – 2; Baviera – 1; Áustria – 9; Alemanha – 40 (Total – 708). Alemanha – 53; Áustria – 9; Bélgica – 3; China – 2; Eslováquia – 12; Eslovénia – 1; Espanha – 2; França – 3; Hungria – 1; Inglaterra – 1; Irlanda – 1; Itália – 126; Polónia – 3; Portugueses – 882; Suiça – 1. Expedições Missionárias S.J. Século XVIII Totais 425 Século XVI 1031 Século XVII 708 Século XVIII PARA O BRASIL EXPEDIÇÕES Séc: XVI 27 Séc: XVII 67 Séc: XVIII 42 PARA O ORIENTE EXPEDIÇÕES Séc: XVI 40 Séc: XVII 87 Séc: XVIII 44 PARA OUTRAS REGIÕES EXPEDIÇÕES Séc: XVI 9 Séc: XVII 32 Séc: XVIII 15 ÍNDICE Apresentação ..................................................................................... Abertura – Alberto de Brito ............................................................ 5 7 Primeira Parte Um missionário que se vai fazendo Etapas da vida de Xavier – Cronologia ........................................... Francisco Xavier, companheiro jesuíta – Luís Rocha e Melo ........ Francisco Xavier, o amigo apóstolo – Francisco de Sales Baptista . Francisco Xavier, o missionário – Nuno da Silva Gonçalves ......... 15 33 47 69 Segunda Parte Um diálogo que se vai abrindo Xavier. E a Europa? – António Júlio Trigueiros ............................. 83 De Javier a Sanchoão – António Lopes .......................................... 95 Com Xavier nos campos de fronteira – Vasco Pinto de Magalhães 117 Terceira Parte O desafio de Xavier E se Xavier viesse hoje? – Nuno Tovar de Lemos .......................... 127 O milagre da bota de Pequim: Juventude na pista de Xavier – Carlos Carneiro................................................................................ 145 Anexos Expedições missionárias para o Oriente na pista de Xavier – António Lopes ..................................................................................... 161