francisco xavier - Jesuítas em Portugal

Transcrição

francisco xavier - Jesuítas em Portugal
S. Francisco Xavier
450 anos da sua morte (1552-2002)
Colecção MANRESA
Autoconhecimento e Discernimento Cristão
Domingos Terra, S.J.
2. Espiritualidade Inaciana – 1ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
3. Deus e o Homem segundo Santo Inácio – 2ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA. VV.
4. Jesus Cristo na Espiritualidade Inaciana – 3ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
5. A Trindade na Espiritualidade Inaciana – 4ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
6. Exercícios Espirituais de Libertação Pessoal
José Alves Martins, S.J.
7. Ordenar a Vida – Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola
Dário Pedroso, S.J.
8. Manual do Peregrino – Caminhando com os Exercícios Espirituais de Inácio
de Loyola
António Vaz Pinto, S.J.
9. São Francisco Xavier – 450 anos da sua morte (1552-2002) – 5ª Semana
de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
10. Mistério Pascal e Mundo Contemporâneo – 6ª Semana de Estudos de Espiritualidade Inaciana
AA.VV.
1.
V Semana de Estudos
de Espiritualidade Inaciana
S. Francisco Xavier
450 anos da sua morte (1552-2002)
Editorial A. O. – Braga
Na capa:
Capa (arranjo gráfico):
Paginação:
Impressão
e Acabamentos:
Pode imprimir-se:
Imprima-se:
Depósito Legal nº
ISBN
São Francisco Xavier (pormenor)
Salaverria (1922) – Palácio de Navarra – Pamplona
Virgílio Cunha (Editorial A. O.)
Editorial A. O. – Braga
Fabigráfica – Pousa – Barcelos
Amadeu Pinto, S.J.
Provincial
† Jorge Ferreira da Costa Ortiga
Arcebispo Primaz
228152/05
972-39-0632-5
Junho de 2005
©
SECRETARIADO NACIONAL
DO APOSTOLADO DA ORAÇÃO
L. das Teresinhas, 5 – 4714-504 BRAGA
Tel.: 253 201 220
*
Fax: 253 201 221
[email protected]; www.jesuitas.pt/AO/AO.html
APRESENTAÇÃO
Apresentamos, finalmente, as conferências sobre «S. Francisco Xavier, nos 450 anos da sua morte», feitas na V Semana de Estudos de
Espiritualidade Inaciana, em Fátima, em 2002. Onde essa data já vai!
Mas, apesar do atraso, cremos que a publicação vem na melhor altura,
pois surge no momento em que vamos entrar nas celebrações, mais festivas ainda, do V Centenário do nascimento do Santo (1506-2006).
Temos pena de não ter podido recuperar algumas conferências que
só nos foram entregues em gravação oral, nem sempre em bom estado de
audição. O fundamentalíssimo estudo do Prof. João Paulo de Oliveira e
Costa faz muita falta ao conjunto. Esperamos que no decorrer do novo
Centenário Xavierano que vai começar, o Prof. Oliveira e Costa volte
ao assunto e publique dalguma forma esse magnífico estudo.
Para preencher algumas destas lacunas, incluímos dois elementos
novos, que serão certamente muito úteis: uma Cronologia das principais
etapas da vida de S. Francisco Xavier, ao princípio, e, no fim, uma lista
das Expedições missionárias de jesuítas que se seguiram a ele no Padroado do Oriente.
Resta-nos desejar que esta publicação sirva para despertar o interesse
pelas próximas Celebrações Centenárias do nascimento de S. Francisco
Xavier que vão iniciar-se e abra caminho a muitos outros estudos que
dêem a conhecer melhor o Santo aos portugueses.
Os Editores
ABERTURA
Alberto de Brito, sj
É um gosto abrir esta V SEEI sem ter que me dirigir formalmente
às Autoridades Eclesiásticas, Académicas, Civis ou Militares presentes, mas simplesmente tratar a todos como “amigos” e “irmãos”.
Se aqui nos encontramos, é porque a maneira de conhecer e amar
Jesus, própria de Inácio de Loiola, nos tocou e nos fez a nós próprios
também conhecer, amar e seguir o mesmo Senhor.
Em nome do nosso Provincial, P. Amadeu Pinto, e em nome da
Rentesp (o grupo encarregado da Renovação Teológica e Espiritual
da Província Portuguesa da Companhia de Jesus) cumprimento a
todos e a cada um/a.
Bem vindos!
Algumas pessoas aqui presentes já nos reunimos desde a I SEEI,
em 1991, no ano jubilar do V Centenário do nascimento de Santo
Inácio e dos 450 anos da Companhia de Jesus. Nesse ano, dada a
circunstância, o tema da Semana abordou, no seu conjunto, a espiritualidade inaciana, o itinerário espiritual de Inácio, as linhas de força
dos Exercícios, etc.
As 2ª, 3ª e 4ª Semanas inseriram-se no movimento geral de toda a
Igreja que preparava o grande Jubileu do ano 2000 e já circunscreveram os seus temas: “Visão de Deus e do Homem na Espiritualidade
Inaciana” (1995); “Jesus Cristo na Espiritualidade Inaciana” (1997);
“A Trindade na vida de Inácio, na espiritualidade e na acção apostólica inaciana” (2000).
8
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
Nesta V Semana, reunimo-nos já não em torno de um tema, mas
de uma pessoa – Francisco Xavier – uma vez que se cumprem no
próximo dia 3 de Dezembro 450 anos da sua morte.
Vamos acompanhar durante três dias, sem calcorrear ou navegar
os mais de 100.000 km percorridos por Xavier em apenas 12 anos,
mas tentando compreender como se vai fazendo o homem que vive
em estado de missão em pleno século XVI (1506 a 1552) e que hoje
nos desafia a abrir novos campos de fronteira.
Acompanhá-lo-emos nos anos da infância no Castelo desse lugar
isolado em Navarra, onde Xavier rezou diante do famoso Cristo do
Sorriso, bem como nos tempos de Paris onde frequenta a Sorbonne
e mora num dos 50 Colégios que compunham a Universidade: o
famoso “Colégio de Santa Bárbara”. O conhecimento de Inácio e
os Exercícios Espirituais contribuem para a mudança do brilhante e
socialmente conhecido Francisco.
A segunda parte da sua estadia em Paris, já pertencendo ao pequeno grupo que faz votos em Montmartre, e a passagem por Itália
(Veneza, onde se ordena, Vicenza, onde celebra a primeira Missa,
e Roma) desenvolvem em Xavier o sentido de corpo e de pertença
àquilo que posteriormente se vem a chamar “Companhia de Jesus”.
A passagem por Portugal serve de trampolim para se fazer ao mar
e empreender as grandes viagens missionárias. Passando por Moçambique, Índia, Malaca, Molucas, Japão, até às portas da China,
relacionando-se com povos e costumes tão distintos, Xavier aprende
o processo de inculturação, vivendo, nas palavras do P. Arrupe, “a
encarnação da vida e mensagem cristãs numa área cultural concreta,
de tal maneira que essa experiência não só chegue a expressar-se com
os elementos próprios da cultura em questão, mas se converta no
princípio inspirador, normativo e unificador que transforme e recrie
essa cultura, originando assim, uma nova criação”. (Carta a toda a
Companhia sobre a inculturação, de 7 de Junho de 1978).
Abertura
9
Do Colégio de Goa às Universidades do Japão, no ensino da
Catequese às crianças ou àqueles que nunca tinham ouvido falar
de Jesus, nos baptismos que não param (a ponto de terem que lhe
segurar a mão) Xavier vai modificando a sua forma de actuar, como
nos dirá o feliz título de uma das conferências que vamos ter o prazer
de escutar: “falar na Índia, escutar no Japão” e vai escrevendo repetidos apelos às Universidades europeias, estabelecendo pontes entre
o Oriente e o Ocidente.
Ao acompanhar este homem que, por ser de Deus é de todos e de
cada uma das pessoas e povos por onde passa – e não foram poucos...
– espero que também nós, 4 séculos depois, inventemos novos modos de ir ao encontro das necessidades de hoje e procurando evangelizar as pessoas na sua cultura, sendo testemunhas da criatividade do
Espírito que em todos trabalha.
A experiência de missionação de Xavier na Índia e no Japão talvez
nos ajude, por exemplo, a escutar atentamente, quando as pessoas
nos dizem hoje que o Evangelho não as interpela. Temos de procurar compreender a experiência cultural que se esconde por detrás do
que dizem...
Aproveito a oportunidade para agradecer o trabalho de investigação e redacção dos conferencistas que vamos ter o prazer de ouvir e
que todos eles aceitaram prontamente o desafio e proposta que lhes
foi feita pela Rentesp. Parabéns e Obrigado.
Agradeço também à maravilhosa equipa, ao staff, cinzento só
na camisa mas trabalhador e brilhante na dedicação, ao estilo de
Xavier... Os nomes não estão escritos no programa, como o dos
conferencistas: o Ir Avelino de sempre (na expedição dos programas
e cartazes), a Orlanda (no atendimento paciente do telefone e correio que chegava todos os dias...), o quarteto incansável (Mariana e
António, Inês e Francisco) o P. Venâncio Pina (repórter fotográfi-
10
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
co universalmente conhecido), o P. João Caniço (que preparou os
cartazes e imagens da exposição do átrio e se encarrega da animação
musical das três Eucaristias), os jesuítas estudantes de Filosofia que
animam as orações da manhã, os noviços que preparam e servem
ao altar (como compete a noviço), os magníficos 260 ouvintes, sem
contar os meteoritos que vão ultrapassar a barreira dos trezentos...
A todos o meu reconhecido e sincero obrigado!
Teremos ainda o gosto de ver nestes dias a apresentação de três
livros, dois sobre São Francisco Xavier e um sobre Santo Inácio:
A Editorial AO de Braga acaba de publicar uma biografia de São
Francisco Xavier, escrita pelo P. João Caniço. Não tem a pretensão
de substituir os volumes do famoso biógrafo Schurhammer. É um
livro que aconselho para rever a matéria dada, para recordar os passos fundamentais da vida de Xavier, para oferecer aos amigos.
Banda desenhada sobre FX.
A Editorial Tenacitas acaba igualmente de dar a lume um excelente livro de Pedro Miguel Lamet, um autor bem conhecido de todos
nós. Escreveu uma biografia do P. Arrupe, que aconselho vivamente,
por ser a melhor biografia desse grande...
Termino chamando a atenção de duas mudanças no programa,
como podem ver na folha colorida das pastas.
Vamos seguir o método habitual das outras Semanas: 30 a 40
minutos de exposição, seguidos de perguntas, comentários, questões
que a Assembleia deseja apresentar ao conferencista (o papel branco
das pastas há-de servir para as notas e questões...).
As noites estão propositadamente livres para maior descanso e
convívio...
Abertura
11
Desde já, podemos apontar na agenda e preparar-nos para a grande celebração dos 500 anos do nascimento de Xavier em 2006. Podemos mesmo exigir que se prepare a conveniente celebração, para a
qual pedimos desde já sugestões a esta Assembleia...
Primeira Parte
UM MISSIONÁRIO
QUE SE VAI FAZENDO
ETAPAS DA VIDA DE XAVIER
Cronologia
Para os leitores menos familiarizados com a vida de S. Francisco Xavier, apresentamos aqui a cronologia das principais etapas da sua evolução
espiritual e missionária. Baseamo-nos na biografia mais completa do Santo
publicada até agora – a de G. SCHURHAMMER: Francisco Javier, su
vida y su tiempo, Mensajero, Bilbao, 1991 (4 volumes). Citamos apenas
SCHURHAMMER, o volume e as páginas. Servimo-nos também da edição crítica das Cartas e escritos do Santo, na colecção Monumenta Histórica Societatis Iesu (MHSI). Citamos apenas com as iniciais EX (=Epistolae
Xaverii) e o número da carta ou documento.
I
UMA NOBREZA FERIDA
EM BUSCA DE GLÓRIA
1506 –
7 de Abril: nascimento de Francisco no castelo de JAVIER (reino de Navarra)
1515 – 11 de Junho: anexação do REINO DE NAVARRA pela
Coroa de Castela
16 de Outubro: morte do pai, despojado de cargos na corte1
1516 –
Março: Primeiro levantamento dos navarros contra
CASTELA
11-12 de Maio: destruição de todas as fortalezas de Navarra
incluindo o castelo de JAVIER e a torre
1
Era Presidente do Conselho Real de Navarra.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
16
1521 –
Maio:
1523 –
Dezembro:
1524 – 23 de Março:
1524-1525:
1525 –
Verão:
1525-1530:
1525-1526:
5 Fev.-29 Jul. 1529:
Setembro de 1529:
1530 –
Março:
1531 –
Outono:
Fevereiro:
forte do Palácio de Azpilcueta
Segundo levantamento dos navarros contra
CASTELA
os irmãos Xavier (Miguel e João) excluídos
da amnistia de Carlos V
rendição de FUENTERRABÍA e amnistia
aos dois irmãos de Xavier
reconstrução do Castelo de JAVIER
Francisco em busca da glória de doutor na
Universidade de PARIS.
estudos de Filosofia no Colégio S. Bárbara
(dir. Diogo de Gouveia).
receia a vida nocturna do Bairro Latino e
prefere o desporto
doença e morte de sua Mãe
junta-se-lhe, no mesmo Colégio, Inácio de
Loyola
Francisco de Xavier, Mestre em Artes (Filosofia).
regente de Filosofia no Colégio de Beauvais.
reivindicação jurídica do seu título de nobreza
II
CONVERSÃO A UMA VIDA NOVA
1532-1533:
começa a dar-se conta de más companhias
heréticas, graças a Inácio
1533 – 20 de Março: forte abalo pela morte da sua irmã clarissa
com fama de santidade2. Começo de nova
Madalena. Foi esta irmã que, em momentos de apuros económicos de Xavier
em Paris, escreveu à família que não deixasse de custear os estudos do Francisco, «porque esperava em Deus que havia-de ser uma coluna na sua Igreja» (Cf.
SCHURAMMER, I, 226, nota 209).
2
Etapas da vida de Xavier
1534 – 15 de Agosto:
Setembro:
1535-1536:
1535 –
25 Março:
1536 –
Novembro:
17
vida, de confissão e comunhão frequente,
com os companheiros de Inácio
Votos em Montmartre, com os primeiros
companheiros de Inácio3
fervoroso Mês de Exercícios Espirituais
orientados por Inácio de Loyola.
Estudante de Teologia, como preparação
para o sacerdócio
Carta a seu irmão João de Azpilcueta, por
mão de Inácio de Loyola4
Renúncia à oferta de canonicato no bispado
de PAMPLONA
III
EM DEMANDA DA PALESTINA
PARA SE JUNTAR À MISSÃO DE CRISTO
1536 – 15 de Novem.: Partida para VENEZA a caminho da Terra
Santa5
1537 – Março-Maio: a caminho de ROMA, para pedirem ao
Papa licença de peregrinação à Terra Santa
e de receberem a ordenação sacerdotal sem
ligação a qualquer diocese.
A intenção era, em linguagem paulina, «continuar o que falta à Vida pública
de Cristo pelo seu corpo que é a Igreja» como «companheiros de Jesus», pelos
mesmos caminhos «cidades e aldeias por onde Cristo Nosso Senhor pregava» (EE
91). Para isso faziam voto de castidade para receber o sacerdócio, voto de pobreza
para viver como o Mestre e voto de irem para a Palestina com o propósito de lá
ficarem para sempre. Caso não conseguissem lá chegar dentro dum ano, por causa
da guerra com os turcos, ir-se-iam pôr à disponibilidade do «Vigário de Cristo»
para servir o Reino de Deus onde ele quisesse (Cf. MHSI, Fabri Monum. 9-11).
4
MHSI, EX, I, Epist. 1. É a primeira das cartas que se conservam.
5
Em Veneza, dedica-se com os companheiros ao serviço dos doentes nos hospitais da cidade onde se hospedaram. Xavier no «Hospital dos incuráveis».
3
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
18
Maio: Regresso a Veneza, surpreendido por sonhos
missionários no caminho6
Junho (dia 24): Ordenação sacerdotal com os companheiros em VENEZA
Julho: Sinais de guerra com os turcos impedem a
travessia para a Terra Santa
Verão: 40 dias de Deserto em MONTSELICE,
numa ermida abandonada e em ruínas7
para preparar-se para a primeira Missa e
Vida Pública sacerdotal
Setembro: Primeiros ensaios de Vida Pública sacerdotal com pregações nas praças8
30 de Setembro: Concentração dos companheiros em VICENZA. Primeira Missa no mosteiro abandonado
de San Pietro in Vivarolo. Decisão de se
dispersarem pelas cidades universitárias para
conquistar novos «companheiros», enquanto
esperavam embarque para a Palestina
1537-1538 – Outubro a Abril: Continuação da Vida Pública sacerdotal em BOLONHA, onde conquista
Doménech para o grupo de «companheiros
de Jesus»
Tendo-se hospedado com Simão Rodrigues num hospital, despertou-o gritando em sonhos: «Mais, mais, mais !». Só mais tarde, ao embarcar para a Índia,
lhe revelou a que se referia: «Via eu então (se em sonhos ou desperto não o sei,
Deus o sabe) os grandíssimos trabalhos, fadigas e aflições que por fome, sede,
frios, viagens, naufrágios, traições, perseguições e perigos se me ofereciam por
amor do Senhor, e que o mesmo Senhor me concedia então a graça de que nada
disto me bastava, e eu pedia mais e mais com aquelas palavras que vós ouvistes»
(SCHURHAMMER, I, 951). Muitas vezes, ao levantar, dizia a outro companheiro: «Jesus, que moído estou! Sabeis que sonhava que levava um índio às costas e
que pesava tanto que não conseguia levá-lo ?» (Ibid. 440; tb. 504 e nota 92).
7
Cf. SCHURHAMMER, I, 451.
8
Nas praças da cidade de Montselice, próxima da ermida em que se tinham
retirado (Ibid. 462).
6
Etapas da vida de Xavier
19
IV
O SONHO DA PALESTINA
ABRE-SE A TODO O MUNDO
1538 –
Abril: Desfeito o sonho da Terra Santa, dirigemse para ROMA
Novembro: a grande decisão de entrega à disponibilidade do Papa9
1539 – Março-Junho: Deliberações sobre a organização do grupo
em Instituto
4 de Agosto: D. João III pede missionários para a Índia
3 de Setembro: Aprovação oral do Instituo da «Companhia
de Jesus»
1539-1540:
Xavier secretário de Inácio, o Fundador da
«Companhia de Jesus»
1540 – 14 de Março: Xavier é destinado para a Índia
15 de Março: partida de ROMA10
fins de Junho: Chegada a LISBOA
1540-1541 – Junho-Abril: intensa actividade sacerdotal enquanto
espera embarque
Novembro-Fevereiro: despedidas do Rei e da corte em ALMEIRIM11
Cf. MHSI, Fabri Monum. 42; SCHURHAMMER, I, 573.
Viagem por terra, na comitiva do Embaixador D. Pedro de Mascarenhas,
passando por Loreto, Bolonha, sul da França, norte de Espanha (por Loyola),
Extremadura, Lisboa. Sobre a viagem, escreve de Bolonha a Inácio (EX, I, Epist.
5) e outra vez já de Lisboa (EX, I, Epist. 6).
11
Recebe, entretanto, a notícia da aprovação oficial da Companhia de Jesus
em 27 de Setembro de 1540, pela Bula Regimini militantis Ecclesiae do Papa Paulo III. Na audiência de despedida, com grande surpresa sua, o Rei entrega-lhe
4 Breve, de S.S.Paulo III: o 1º (Cum sicut charissimus), que o nomeava Núncio
apostólico para todo o Oriente e lhe dava amplas faculdades para essa missão; o 2º
(Hodie pro parte), que acrescentava ainda outras faculdades; o 3º e o 4º (Cum nos
nuper e Cum nuper ad), com que o recomendava como Núncio a todos os reis que
visitasse (Cf. SCHURHAMMER, I, 931-934) .
9
10
20
1541 –
1542 –
1542 –
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
7 de Abril: partida para a INDIA com inesperada missão de Núncio apostólico12. No dia 8 Inácio
é eleito Superior Geral e, no dia 22, os
companheiros de Roma fazem a profissão
religiosa. Só o saberá na Índia.
Setembro: para restabelecimento dos doentes, param
na ilha de MOÇAMBIQUE
Fevereiro: partida de Moçambique, com escala em
MELINDE e SOCOTORÁ
6 de Maio: chegada a GOA13
V
O NÚNCIO MISSIONÁRIO DO ORIENTE
1542 –Maio-Setembro: Apresentação humilde das suas credenciais
ao Bispo de GOA14. Visita às autoridades
civis e eclesiásticas. Visita às instituições15.
Intenso apostolado sacerdotal e caritativo
em todas elas e na cidade.
12
Parte com 2 «companheiros» jesuítas: P. Paulo Camerino (italiano) e Francisco Mansilhas ainda não sacerdote.
13
Os dois companheiros ficaram mais tempo em Moçambique e só chegaram
mais tarde, noutras naus, a Goa.
14
Nunca puxará pelos seus pergaminhos de Núncio apostólico, a não ser no
fim da vida, quando o novo capitão de Malaca torpedeou a sua embaixada à China (Cf. MHSI, EX, II, doc 121). Todas as visitas que fazia a missões e obras do
Padroado, as fazia a título de cortesia e amizade.
15
Cadeia; hospital da Misericórdia, onde se hospeda; Colégio da Santa Fé (S.
Paulo), ainda em começos, para formação de clero, catequistas e intérpretes de
todas as línguas; capelas da cidade; Lazareto de leprosos…
Etapas da vida de Xavier
21
1. MISSÕES NO SUL DA ÍNDIA (1542-1545)
1542 –fins de Setembro: Embarque para o CABO DE COMORIM16
Outubro: Desembarque na COSTA DA PESCARIA
(lado oriental do Cabo Comorim). Vindos
noutra nau atrasada, chegam a Goa Paulo
Camerino e Mansilhas.
Outubro-Fevereiro: quatro meses em TUTICORIM
1543 –Março-Setembro: Missão entre os paravás da COSTA DA
PESCARIA
Outubro: Viagem a GOA17
Novembro: Xavier faz a sua profissão religiosa oficial18
Dezembro: Regresso à Missão com escala em COCHIM19. Esperançosas notícias dos marinheiros sobre o Extremo Oriente.
1544 –
Janeiro: escala na missão dos franciscanos em CEILÃO20
Fevereiro: Retoma a missão na COSTA DA PESCARIA. Depois de iniciar Mansilhas na
missão, fixa-o em Punicale e visita todas as
povoações por onde andou. Graças à corresCom 3 seminaristas paravás de Tuticorim, 2 diáconos e 1 minorista (Cf.
SCHURHAMMER, II, 358-359).
17
Para encontrar-se com os companheiros, entretanto chegados, levar seminaristas para o Colégio da Santa Fé, buscar novos colaboradores, despachar correio
para a Europa (Ibid. II, 477).
18
Depois de recebida a fórmula com que a fizeram os outros «companheiros»
em Roma (Ibid. II, 491).
19
Traz consigo Mansilhas, o sacerdote espanhol Juan de Lizano e o soldado
João de Artiaga como auxiliar.
Em Cochim, hospeda-se em casa do pároco, visita o convento dos franciscanos
e despacha correio nas naus que partem para a Europa.
20
Ia entregar uma carta de D. João III ao rei de Kôttê que os franciscanos
tentavam converter (Cf. SHURHAMMER, II, 536, nota 124; 539).
16
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
22
Novembro-Dezembro:
Dezembro:
1545 – Janeiro-Abril:
Abril-Agosto:
pondência intensa que mantém com Mansilhas, é possível seguir o seu percurso: PUNICALE, MANAPAR, LIVARE, NARE,
TUTICORIM, VIRANDAPATANÃO,
COMBUTURE, MANAPAR, CABO DE
COMORIM, MANAPAR, PUNICALE,
ALENDALE, TRICHENDUR, MANAPAR, TUTICORIM, MANAPAR (Cartas
21-44)
Missão em TRAVANCOR (lado ocidental
do Cabo Comorim)21
Matança de cristãos paravás em MANAR
(Jaffna, norte de Ceilão). Viagem a GOA
para pedir protecção militar dos cristãos ao
Governador.
Ronda pelas fortalezas portuguesas a pedir
protecção aos cristãos22
Decepção e busca de luz em SÃO TOMÉ
para a sua missão23
Quando deixou a Costa da Pescaria, já tinha conseguido para lá 4 sacerdotes
indígenas que ele tinha feito ordenar e mais 6 seminaristas a preparar-se para o
sacerdócio no Colégio da Santa Fé (Cf. SHURHAMMER, II, 477, nota 130).
Começou a missão em Travancor com 1 português e 3 índios, como intérpretes e
ajudantes (Ibid. 594).
22
Escalas em Cochim, Coulão (Índia); Colombo, Kôtté, Manar, Jaffna (Ceilão); Costa de Coromandel (a norte da Pescaria), Negapatão, Santuário de S. Tomé
de Meliapor. Pelo caminho visitou as missões franciscanas entre os «cristãos de S.
Tomé» em Cranganor (na Costa ocidental da Índia) e recebeu impressionantes informações do Extremo Oriente pelos marinheiros portugueses chegados a Cochim.
23
Cf. EX, I, Epist 51; SCHURHAMMER, II, 743-749; também EX, Epist
51). Entre os convertidos no seu apostolado destes meses, um foi o rico João
d’Eiró que vendeu barco e tudo e seguiu com Xavier para Malaca (Ibid. II, 752754; 762).
21
Etapas da vida de Xavier
23
2. MISSÕES NA INDONÉSIA (1545-1547)
1545 –
Agosto: partida para MALACA. Chegam a Goa novos jesuítas: PP. Criminali, Lancilotti, João
da Beira.
Setembro: chegada a MALACA
Setembro-Janeiro: Apostolado na cidade e mais notícias de
novas messes24
1546 –
Janeiro: partida para as MALUCAS
14 de Fevereiro: chega a AMBOINO. Explora os arredores,
chega uma frota espanhola que fora aprisionada. Partida da armada prisioneira para
Goa, com cartas de Xavier25.
Junho-Julho: expedição missionária a TERNATE
Setembro-Dezembro: expedição missionária à ILHA DE MORO.
Entretanto Diu é libertada por D. João de
Castro (10.Nov.1546).
1547 – Janeiro-Junho: de novo em TERNATE e AMBOINO
Julho-Dezembro: de novo em MALACA. Envia 3 recémchegados jesuítas a continuar o seu trabalho
nas MALUCAS26.
Dezembro: China que se fecha, Japão que se abre27.
Informações sobre a China cerrada aos
portugueses. Informações do Japão por três
Pelos marinheiros portugueses recebe abundantes informações de esperanças missionárias em Macassar (Celebes), e reinos de Supa, Pegu, Birmânia, Sião,
Cambodja, Champa (Indochina), Cochinchina, China (Cf. SCHURHAMMER,
III, 47-62).
25
Cartas para os jesuítas de Goa e da Europa e para D. João III (EX, Epist.
55-57).
26
Os PP. João da Beira e Nuno Ribeiro e o Ir. Nicolau Nunes (Cf.
SCHURHAMMER, III, 2-17).
27
Sobre as informações da China e do Japão (Cf. SCHURHAMMER, III,
63-90); sobre o relatório de Jorge Alvares (Cf. Ibid. 91 e sgs; 346 e sgs).
24
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
24
japoneses chegados a Malaca. Jorge Alvares,
descobridor do Japão, prepara-lhe por escrito um relatório.
3. RONDA PELAS MISSÕES
ANTES DA EXPEDIÇÃO AO JAPÃO
1547 –
Dezembro: Despedida de MALACA com promessa de
lhe mandar missionários Jesuítas. Leva relatórios sobre a China e Japão28.
1548 – Janeiro, 13: desembarque em COCHIM. Despede
Mansilhas por desobediência a nova missão. Despacha correio pelas naus que partem para a Europa29.
Fevereiro: visita aos missionários da COSTA DA
PESCARIA. Deixa-lhes, por escrito, uma
instrução missionária.
Março: continuação da viagem por Cochim a
GOA. Chega antes dele também o japonês
Anjirô. Encontra novos companheiros vindos da Europa. Vai entrevistar-se com D.
João de Castro ausente em BAÇAIM30.
Abril-Junho: Regresso, com o Governador gravemente
doente, a GOA. Destina Perez e Oliveira
a Malaca (Abril 1548). Baptismo dos 3 japoneses do colégio de S. Paulo (20 Maio).
Assiste à morte do Governador D. João de
Castro (6 de Junho). Participa na execução
das suas últimas vontades.
Cf. SCHURHAMMER, III, 346 e sgs.
Cartas para os jesuítas de Roma, Inácio de Loyola e D. João III (EX, Epist.
59-61).
30
Motivos da entrevista (Cf. SCHURHAMMER, III, 237; 254 e sgs; 256).
28
29
Etapas da vida de Xavier
25
Junho: Novo Governador da Índia: Garcia de Sá
(Junho 1548-Abril 1549). Avaliação da
missão em Goa: no colégio, no povo. Deixa aos missionários uma Instrução de vida
espiritual para os cristãos31. Dá ao novo
Governador 3 relatórios sobre o Japão e 1
sobre a China32. Entretanto chegam mais
companheiros, com cartas da Europa .
Setembro (meados): regressa à COSTA DA PESCARIA. Destina
Cipriano e Morais a Socotorá e Baltasar Nunes a Travancor. Anima a tradução do Catecismo a tamil pelo P. Henrique Henriques.
Outubro: de novo em COCHIM. Despacha correspondência pelas naus que partem para
Portugal.
Novembro: de novo em GOA. Encontro com mais jesuítas chegados noutra nau. Aceita a oferta
do Colégio da Santa Fé (S. Paulo) e do de
Baçaim. Dá luz verde para a fundação de
mais colégios nas fortalezas portuguesas.
Distribui mais missionários jesuítas pelas
diversas missões33.
Novembro (fins): volta 2 meses a COCHIM (Dez.1548-Fev.
1549). Negociações para a fundação de mais
um colégio. Relatórios sobre as Missões para
o Rei, para Inácio e Simão Rodrigues34.
1549 –
Fevereiro: vai entrevistar-se com o novo Governador
em BAÇAIM
Março-Abril: nova visita aos jesuítas de GOA. Depois de
EX, doc. 66.
Cf. SCHURHAMMER, III, 346-365; 465-469.
33
Cf. SCHURHAMMER, III, 479-480; 495.
34
Ibid. III, 477-514; EX, Epist. 70-79.
31
32
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
26
distribuir cargos e missões, deixa-lhes Instruções por escrito35
15 de Abril-Junho: Regresso a MALACA. Escala em COCHIM (20 de Abril). Começa os preparativos para a expedição missionária ao Japão.
Recebe a notícia do martírio do P. António
Criminali36. Antes da partida para o Japão
despacha correspondência37
4. MISSÃO NO JAPÃO (1549-1551)
1549 – 24 Junho-15 Agosto: Viagem no junco dum «Pirata» chinês
ao JAPÃO38
1549 – Agosto-Outu.: Os começos em KAGOSHIMA
Agosto: descoberta dum novo mundo cultural
Agosto-Setembro: Audiência do duque de Satsuma (Takahisa)
em IJÛIN, que lhes deu casa e licença para
pregar.
Setembro-Outubro: Primeiros contactos com o povo e com os
bonzos. Apostolado de Anjirô (Paulo da
Santa Fé), aprendizagem da língua.
Novembro: Regresso do junco do «Pirata» a Malaca
com Domingos Dias e cartas de Xavier39,
Torres, Fernandez e Anjirô.
EX, Epist. 80-81.
Cf. SCHURHAMMER, III, 199 e nota 553.
37
Para os seus missionários, para o Rei, para os jesuítas da Europa: EX, Epist.
82-89.
38
Como companheiros levava o P. Cosme de Torres e o Ir. Juan Fernández
de Oviedo, o mestiço Domingos Dias, dois criados (o chinês Manuel e o malabar
Amador), Anjirô e, provavelmente os seus dois outros companheiros japoneses
(Cf. SCHURHAMMER, III, 82-83 e nota 109).
39
4 Cartas para vários jesuítas de Goa e 1 para D. Pedro da Silva, capitão de
Malaca (EX, Epist. 90-94).
35
36
Etapas da vida de Xavier
27
1549-1550 – Inverno: O catecismo japonês
Dezembro-Junho: Apostolado em ICHIKU
Julho: Primeira viagem a HIRADO
Agosto: Regresso e despedida de KAGOSHIMA
1550-1551 – Agosto-Janeiro: A caminho da corte do Imperador em
MIYAKO
Setembro-Outubro: De novo em HIRADO
Novembro-Dezembro: Começos de apostolado em YAMAGUSHI.
Audiência do duque de Yamagushi (Yoshitaka), como simples religioso.
Dezembo-Janeiro: Tenta de novo viagem por Sakai a
MIYAKO.
1551 – Janeiro-Abril: Regresso a YAMAGUSHI com paragem
em Hirado para visitar Torres e seus cristãos.
Abril (fins): Nova audiência do Duque já na qualidade
de diplomata40
Maio-Julho: Pregação e disputas
Julho-Agosto: Nome de Deus em japonês: Dainichi ou
Deusu?
Julho-Setembro: Em luta com os bonzos
Setembro: Grande colheita
1551 – Agost.-Nov.: Na corte do duque de BUNGO
Agosto-Setembro: A chamada a BUNGO
Setembro: Audiência do duque de Bungo (Yoshishige). Discussões do P. Torres em Yamagushi. Guerra civil em Yamagushi e morte
do duque Yoshitaka (30.Set.).
1551 – 15 Novembro: Partida do Japão no junco de Duarte da
Gama
Na qualidade de diplomata do Governador da Índia e do Bispo de Goa.
Entrega-lhe os presentes destinados ao Imperador (Cf. SCHURHAMMER, IV,
277 e sgs).
40
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
28
fins de Novembro: Chegada a SANCHÃO
Informações incertas sobre o cerco de
Malaca (5 Junho-16 Setembro). Apelo
clandestino de prisioneiros portugueses na
China, lido em Sanchão41.
Dezembro: Partida para Malaca, na caravela de Diogo
Pereira. Carta de SINGAPURA para Malaca, a pedir lugar nas naus da Índia42.
5. TENTATIVA DE MISSÃO NA CHINA
1551 – 27 Dezembro: Acolhimento triunfal à chegada a MALACA.
Recebe oficialmente o cargo de Superior
Provincial dos jesuítas do Oriente. Primeiras notícias das Missões da Índia. Revela os
planos de embaixada à China com Diogo
Pereira43.
30 Dezembro: Embarque para a ÍNDIA com o embaixador
do Duque de Bungo e 4 japoneses que vieram com ele. Na viagem lê a correspondência
de 2 anos, que lhe entregaram em Malaca44.
1552 –24 Janeiro-princípios Fevereiro: Escala de duas semanas em
COCHIM. Hospeda-se no colégio dos
jesuítas. Encontro com o novo Governador
da Índia D. Afonso de Noronha. Apresentalhe o embaixador do duque de Bungo. Obtém apoio para a embaixada à China45. Recebe informações por Henrique Henriques
e Lanciloto das suas Missões. Informações
Cf. SCHURHAMMER, IV, 396-402.
EX, Epist. 95.
43
Cf. SCHURHAMMER, IV, 436-439.
44
Cf. Ibid. IV, 441-537.
45
Cf. SCHURHAMMER, IV, 544.
41
42
Etapas da vida de Xavier
29
pelos franciscanos das suas Missões. Despacho de cartas para a Europa pelas naus de
partida46. Devolução da igreja da Madre de
Deus à sua Confraria.
1552 –meados Fevereiro-meados Abril: Dois meses em GOA. Visitas à chegada: Bispo, franciscanos, dominicanos, Governador. Colégio: encontra 39
jesuítas chegados nas suas ausências. Destino de alguns às diversas missões. Organização do governo para a sua ausência à China.
Nomeação de Gaspar Barzeu como Reitor
do Colégio e Vice-Provincial. Últimas cartas para a Europa. Últimas exortações.
1552 –
17 Abril: Adeus a GOA. Parte com todas as credenciais
e presentes para a embaixada à China47.
1552 –17 Abril-31 Maio: De Goa a MALACA. De Malaca envia
missionários ao Japão. Objectivos da embaixada à China48.
15-25 Junho: Embargo da embaixada à China pelo novo
capitão de Malaca. Xavier apela para os seus
direitos de Núncio apostólico em vão49. Resolve, mesmo assim, ir à China.
1552 –
17 Julho: Partida para a CHINA. Sem embaixada,
com 2 companheiros e 1 criado50.
21-22 Julho: escala em SINGAPURA donde escreve algumas cartas51.
Cartas para Inácio de Loyola, companheiros da Europa, Simão Rodrigues e
Rei (EX, Epist. 96-99) .
47
Cf. SCHURHAMMER, IV, 721-722; 726 e nota 505.
48
Cf. Ibid. IV, 753; 775.
49
Cf. Ibid. IV, 751-760; EX, doc. 121.
50
O Ir. Álvaro Ferreira, António China, intérprete chinês, e o criado indiano
Cristóvão.
51
Cartas a jesuítas e a amigos (EX, Epist. 125-129).
46
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
30
23 Julho-fins Agosto: De Singapura a SANCHÃO
Setem.-3 Dezembro: Diante das portas cerradas da CHINA. É
hospedado por Jorge Alvares na sua cabana
improvisada. A seu pedido os portugueses
constroem uma palhota para Capela. Contrato com um comerciante chinês para o
introduzir clandestinamente na China. Mais
cartas por uma embarcação que regressava a
Malaca52. Desistência de dois companheiros.
12-13 Novembro: Últimas cartas pelos últimos navios a sair
para Malaca53.
VI
MORTE
1552 –
Novembro: 19 Sábado: O mercador chinês não aparece
para o encontro
21 Segunda: Perde os sentidos depois da
Missa
22 Terça: Acolhido na nau de Diogo Pereira, a única que ficou
23 Quarta: Regressa da nau «abrasado em
grande febre». Recebe uma sangria. Desmaia. Não consegue comer
24 Quinta: recebe nova sangria. Delira aos
poucos. Continua sem comer
25 a 27: Passa-os «em paz e sossego», delirando de vez em quando
28 a 30: Perde de todo a fala e o conhecimento. Não pode comer
Cartas para o Superior de Malaca, para o Vice-Provincial de Goa e para o
amigo Diogo Pereira (EE, Epist. 130-133).
53
Para os mesmos (EX, Epist. 134-137).
52
Etapas da vida de Xavier
1552 –
31
Dezembro: 1 Quinta: Recupera a fala e o conhecimento
2 Sexta: Profetiza o futuro trágico do seu
criado malabar Cristóvão. Volta a perder a
fala.
3 Sábado: morte junto do criado Cristóvão
e do intérprete António China às duas da
madrugada (824-827)
O corpo é sepultado em Sanchão
VII
GLORIFICAÇÃO
1553 – 17 Fevereiro: Trasladação do corpo incorrupto
22 de Março: Acolhimento triunfal em MALACA. É de
novo sepultado na igreja de Nª Sª do Monte ou da Anunciada (hoje de S. Paulo)
15 de Agosto: desenterrado incorrupto, é depositado num
caixão e transportado de barco para Goa
(Vários contratempos na viagem).
1554 – 16 de Março: É recebido triunfalmente em GOA. Ali se
conserva incorrupto na Basílica do Bom
Jesus
1619 – 25 Outubro: Xavier é beatificado pelo Papa Paulo V
1622 – 12 de Março: é canonizado pelo Papa Gregório XV
1748 – 24 Fevereiro: Bento XIV proclama Xavier Patrono principal das Índias, isto é, de todas as nações
desde o Cabo da Boa Esperança até aos
últimos arquipélagos do Pacífico.
FRANCISCO XAVIER
COMPANHEIRO JESUÍTA
Luís Rocha e Melo
Ouviremos, ao longo destes dias, os dados biográficos de Francisco Xavier e todo o empreendimento apostólico que desenvolveu
nas costas da Índia, nas Molucas e no Japão. A sua energia apostólica
deixa espantado qualquer biógrafo1, e deslumbrado qualquer leitor,
que entenda o que é isso de deixar tudo para seguir a Jesus Cristo, e
o que é isso de «salvar as almas».
Das suas façanhas apostólicas falarão outros, nesta Semana de Espiritualidade Inaciana. Com grande dificuldade e temeridade, tocame tentar responder, no tema de que fui incumbido, a perguntas
que se levantam, perante essas façanhas: que fogo interior o anima a
partir para o fim do mundo, sem qualquer segurança? Donde vem a
energia para doze anos de abnegação contínua, ao serviço da salvação das almas, em condições de pobreza que nos fazem estremecer,
esquecido de si até à morte? Qual é o segredo das suas consolações e
permanente alegria, no meio de privações sem conta, de perigos, de
problemas para resolver e de solidão? Que itinerário espiritual percorreu Francisco Xavier? Não sei se poderei responder às perguntas;
creio que não. Sei apenas que, ao contemplar a vida de Xavier, nos
Francisco Xavier «pertence ao património cultural da humanidade, pela
mesma razão, sem dúvida, que a de Alexandre ou a de Cristóvão Colombo». A
sua actividade pode-se comparar à de S. Paulo, LEON-DUFOUR, Xavier, Saint
François Xavier, Itinéraire Mystique de l’Apôtre, Ed. du Vieux Colombier, Paris,
1953, p. 8.
1
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
34
aproximamos do mistério de Deus, de um Deus morto e ressuscitado, em Jesus Cristo, que forma e transforma a vida de Francisco,
e o leva pelos caminhos de um total abandono. Falo de abandono,
como ponto limite da confiança em Deus, que se lhe revela, se lhe
comunica e o envia em missão, impossível aos homens. Falo de
abandono nas mãos de Deus, cujo limite é o de não ter limites e cuja
medida é a de não ter medidas.
A sua partida de Roma para Lisboa e para Goa manifesta, em
Francisco, uma intrépida determinação de querer o que Deus quer,
o que lhe fora manifestado, nesse momento, pelo desejo de sua
Santidade, o papa Paulo III, por intermédio de Inácio de Loyola. A
actividade apostólica desenvolvida na costa ocidental da Índia, até
ao cabo Comorín, só era possível na confiança inabalável em Deus,
a quem nada é impossível, e na mística do serviço, concretizado em
actividade que, aparentemente, pelo menos, transcende as forças
normais de um ser humano. A sua partida do cabo Comorín para
as Molucas e para o Japão só se explica se Deus infundiu nele, além
de tudo o mais, a energia do abandono. Tinha plena consciência de
que partia, sozinho, para a morte2. É o mistério de um Deus apaixonado pelos homens, que derrama, na alma de Francisco, a mesma
paixão que levou Jesus Cristo até à cruz, abandonado nas mãos do
Pai. A obra de Xavier é obra de Deus nele, plenamente acolhida, em
liberdade que se abre ao mistério. Em actividade que o ocupa todo o
dia, e em oração que o ocupa boa parte da noite, Francisco tem um
rumo de vida bem determinado: o de se deixar conduzir sempre por
Deus, a Santíssima Trindade que o visita e o inspira, nas pequenas e
nas grandes decisões que é convidado a tomar, e que o anima e lhe
dá forças para enfrentar o impossível. Não dá um passo que não seja
resposta, em docilidade, ao que Deus lhe pede. Nessa permanente
oração e na escuta da vontade de Deus, não hesita em desafiar, conDi-lo em algumas das suas cartas. Enganou-se, pois veio a falecer mais tarde,
por doença, em Sanshuan, perto da China.
2
Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta
35
tra tudo e contra todos, os critérios mais elementares da prudência
humana. A sua segurança está no Senhor que o chama e que o envia, e em mais nada. Juncos impróprios para navegar em mar alto,
piratas, tempestades mais que prováveis, algumas desencadeadas,
notícias de barbaridades cometidas pelos indígenas não são obstáculo à sua determinação de partir para as Molucas, porque a sua
segurança está só em Deus. Sabia perfeitamente que ia a caminho da
morte, mas o Senhor tinha-lhe revelado, no íntimo do coração, que
a sua vontade era a de que o Evangelho fosse anunciado também nas
ilhas Molucas. Depois, mete-se pelo Japão acima, atravessa montes
e vales, durante semanas, no meio da neve e do frio, para nada ou
para quase nada: o rei de Myaco já não tinha poder nenhum. Não
podia autorizá-lo sequer a pregar o Evangelho, abertamente. Não
faz mal; volta para trás, para mais umas semanas de neve e de frio,
sem desânimo nenhum pelo aparente fracasso, pelas energias gastas
e pelo tempo aparentemente perdido. A sua segurança também não
está no êxito apostólico das suas viagens e das suas pregações, ou na
quantidade dos convertidos à Boa nova do Evangelho, por ele anunciada. Deus é grande e é Ele a sua única segurança. Essa é a mística
do abandono.
1. Companheiro de Jesus
É um companheiro jesuíta, assim diz o título que me foi confiado.
Se Xavier, Inácio de Loyola e os outros companheiros ouvissem este
título, dariam saltos no túmulo: eram apenas companheiros de Jesus
e amigos no Senhor, «pobres padres de Cristo» – assim se chamaram
a si próprios na primeira fórmula do Instituto, em 1539 – ou «apóstolos» – assim ficaram conhecidos em Portugal e nas Índias3. Inácio
Ib., p. 80, nota (a) e (b). O nome de jesuítas aparece muito mais tarde. Sendo companheiros de Jesus, algumas pessoas começaram a chamar-lhes jesuítas, e
a designação divulgou-se cada vez mais, até aos dias de hoje. Si itis cum Jesu, cum
Jesu itis, diz o trocadilho.
3
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
36
foi o primeiro que soube não resistir ao chamamento de Deus, foi
pai e mestre dos outros, conduziu-os pelos caminhos do amor e da
entrega, à imagem do único Mestre e Senhor, mas depois eram um
corpo de companheiros e amigos, dispostos a dar a vida por Cristo e
pela salvação do mundo, ao serviço da Igreja. Companheiros uns dos
outros e amigos uns dos outros, porque amigos de Jesus que, na sua
ressurreição, tem o poder de reunir ou congregar e fazer amigos para
sempre, mesmo que a futura missão os separasse definitivamente uns
dos outros.
A disponibilidade de Mestre Francisco para o que Deus quer revelou-se desde o princípio. Depois dos votos de pobreza e castidade,
proferidos em dia da Assunção de Nossa Senhora, na cripta da capela de Montmartre, juntamente com os outros companheiros4, e dos
Exercícios que fez sob a orientação de Inácio de Loyola, em 1534,
Xavier entendeu o que significava ser companheiro de Jesus. Entregara-se aos Exercícios de alma e coração5. Daí por diante, desejava
apenas «alistar-se sob a bandeira da cruz, na nossa Companhia, que
desejamos se assinale com o nome de Jesus, para combater por Deus
Pedro Fabro, Simão Rodrigues, Laínez, Salmerón e Bobadilla fizeram Exercícios juntos, sob a orientação de Inácio. Francisco Xavier fê-los mais tarde, durante
as férias, por causa das aulas que dava no colégio Dorman-Beauvais, já depois
de proferidos os votos de Montmartre. «Retitou-se para uma casa solitária, para
tratar durante quarenta dias unicamente com o seu Deus. Só de tempos a tempos
o visitava Íñigo com o objectivo de lhe propor a matéria das meditações para uns
dias, e fazer-lhe algumas advertências sobre o aproveitamento espiritual e acerca
dos diversos métodos de oração, penitência e discreção de bons e maus espíritos,
segundo a diversa disposição da alma, e sobre a maneira de sentir com a Igreja e
outras coisas parecidas». SCHURHAMMER, Jorge, Vida de San Frabcisco Javier,
Ed. Cultura Misional, Bilbao, 1936, p. 32-35.
5
«O que Francisco viu e experimentou nestes santos Exercícios – conta
Schurhammer – era algo que jamais devia esquecer-se». No fim deles, «uma ânsia
ardente, um santo amor abrasava o seu coração»: o de Jesus Cristo Crucificado,
seu Rei e Senhor. Ibidem.
4
Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta
37
e servir somente ao Senhor e ao Romano Pontífice, seu Vigário na
terra»6.
Sabendo que andavam por Itália uns novos padres, que eram
gente letrada e vivia em pobreza, com grande fruto para as almas,
o rei D. João III confiou a Pedro Mascarenhas, embaixador de Portugal em Roma, o encargo de pedir ao Papa que mandasse alguns
desses, para a missionação da Índias. Paulo III deixou o assunto nas
mãos de Inácio.
Em princípios de 1540, Inácio de Loyola chamou Simão Rodrigues e Bobadilha para lhes confiar a nova missão. Rodrigues veio
prontamente de Sena, afectado por febres quartãs, mas pronto e alegre para partir. Vindo de Nápoles, Bobadilha chegou a Roma a 14
de Março, véspera da partida para Lisboa; «mas trazia tais febres às
costas, debilitado por longa e penosa enfermidade, que tanto o médico como os seus companheiros eram de opinião que, em tais circunstâncias, não podia pôr-se a caminho de Lisboa»7. Mascarenhas,
por outro lado, não queria adiar a partida que tinha marcado para
15 de Março. Também andava com febres romanas, tinha saudades
da mulher e da pátria, e contava os dias que faltavam para voltar à
sua terra. Mas não queria ir sem os padres. Inácio também estava de
cama com as mesmas febres romanas que, pelos vistos, não poupavam ninguém, nessa altura. Chamou Francisco e fez-lhe o seguinte
discurso: «Bem sabeis, irmão e mestre Francisco que dois de nós
hão-de passar para a Índia, por ordem de Sua Santidade, e que Bobadilha, que estava destinado para esta empresa, não pode partir por
causa da sua enfermidade, e tampouco o embaixador pode esperar
por ele, com a pressa que tem. Deus quer nisto servir-se de vós; esta
é a vossa empresa, a vós toca esta missão». Permitam-me que conte
6
Fórmula do Instituto, Constituições da Companhia de Jesus – Normas
Complementares, A.I. Braga, 1997.
7
SCHURHAMMER, J. o.c., p. 74.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
38
em espanhol, por ser mais engraçada, a resposta alegre de Francisco:
«Heme aquí, Padre; aparejado estoy»8. Não sei se teve vinte e quatro
horas para ir ao Papa pedir-lhe a bênção, reunir alguns trapinhos,
despedir-se dos amigos e escrever três notas num papel – uma em
que prometia obediência às Constituições da futura Companhia,
outra em que prometia pobreza, castidade e obediência nas mãos do
Geral que fosse escolhido, e outra em que deixava o seu voto a Inácio
na eleição do futuro Geral9. No dia seguinte, partia para Lisboa, na
companhia de Pedro Mascarenhas, «pronto e diligente para cumprir
sua santíssima vontade» (EE, 91).
Um ponto de partida que revela a mística de um companheiro de
Jesus, que poderia dizer como Paulo: «Para mim viver é Cristo, morrer é lucro» (Fl 1, 21). A disponibilidade de Xavier, ao prontificarse, de um dia para o outro, sem qualquer objecção de consciência,
a deixar tudo e a partir para sempre, para mundo desconhecido e
longínquo, exclusivamente confiado na Providência divina, é o começo de um projecto de Deus para Francisco Xavier, nos doze anos
seguintes. Companheiro de Jesus, interessava-lhe segui-lo e imitá-lo
em passar todas as injúrias e vitupérios e toda a pobreza, assim actual
como espiritual (EE 97-98): havia de contentar-se em comer como
Ele, e também com beber e vestir, etc., do mesmo modo havia de
trabalhar com Ele durante o dia e vigiar durante a noite, etc., para
depois ter parte com Ele na vitória, assim como a teve nos trabalhos
(EE 93, 98). «Se Francisco implantou a cruz de Cristo em terras
longínquas – diz Léon Dufour – é porque a tinha bem implantada
no seu coração de carne»10.
No desenrolar dessa vida que levou a fé cristã a boa parte do
Oriente, há que salientar um aspecto revelador da sua mística de
Ibidem.
Ib., p. 77
10
LEON – DUFOUR, o.c. p. 9
8
9
Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta
39
abandono, e perfeitamente de acordo com ela: as suas opções são
orientadas, preferencialmente, para os pobres, para os humildes,
para os doentes, para os perseguidos. As suas brilhantes disputas teológicas com os bonzos do Japão, as suas visitas aos palácios de reis,
de governadores ou de chefes militares eram essenciais, enquanto
meios, para anunciar a boa nova de Jesus Cristo em terra de infiéis.
Precisava de autorização para isso, e não podia aparecer diante dos
reis mal vestido, como pobre pedinte. Para visitar o rei de Yamaguchi, por exemplo, conseguiu arranjar roupas elegantes para se vestir,
apresentou-lhe cartas de recomendação do governador da Índia e do
bispo de Goa, e ofereceu ao monarca treze presentes. Entre eles, um
relógio de grande valor artístico que dava todas as horas, as doze do
dia e as doze da noite, outro de música que tocava automaticamente,
uns óculos com os quais os velhos voltavam a ver como se fossem
jovens, um espelho de vidro e, imagine-se, até... vinhos portugueses!11 Nunca tais coisas se tinham visto em Yamagushi. É claro que
conseguiu, imediatamente, autorização para pregar o Evangelho na
cidade.
Para além desses meios, que utilizava se eram precisos, as preferências de Xavier iam para as almas a salvar, para os pobres e para
os doentes, a partir de uma vida em radical pobreza e humildade,
sem as quais não haveria abandono. Ao chegarem a Lisboa, ele e
Simão Rodrigues recusam, delicadamente, a oferta de alojamento no
palácio, feita pelo Rei D. João III, e pedem-lhe que lhes permitisse
mendigar pelas portas de Lisboa e albergar-se no hospital de Todos
os Santos12. Meses depois, levando no bolso a patente de Delegado
Pontifício (Núncio Apostólico) para as Índias, Francisco recusa o
criado de quarto e o camarote próprio na messe dos oficiais, que lhe
era destinado na nau Santiago, de partida para Índia, como recusa,
também delicadamente, sentar-se à mesa do governador, durante
11
12
SCHURHAMMER, J., o.c., p.229-300
SCHURHAMMER, J., o.c., p. 88
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
40
a viagem. Prefere o convés onde era alojado o resto da tripulação.
Conversa com os marinheiros, ensina-lhes o catecismo, e durante
uma epidemia que assolou o navio, junto à costa da Guiné, Francisco assistia, dia e noite, os seus companheiros doentes: «lavava-os,
lavava-lhes a roupa juntamente com a sua, pedia esmola, para eles,
aos seus amigos oficiais, trazia-lhes de comer e de beber, consolavaos, ouvia as suas confissões, preparava os agonizantes para uma boa
morte e, bem cedo, não se ouvia ninguém tratá-lo senão pelo nome
de «padre santo»13. E sempre assim foi quando desceu a Costa da
Pescaria, para o sul da Índia, ou quando subiu para o norte em direcção às Molucas e Japão.
A teologia do tempo, que tão bem aprendera em Paris, assegurava
um lugar no inferno a quem morresse sem ser baptizado. Um zelo
devorador pela salvação dos pagãos impelia-o, por isso, sem descanso, a pregar e a baptizar, e pedia a Inácio, a Simão Rodrigues e às
universidades da Europa, que enviassem missionários bem provados,
pois aquele mundo era vastíssimo e ele não chegava para tudo. A
razão de ser dessa paixão pelas almas, necessitadas de salvação, devemos procurá-la no centro mais profundo do seu diálogo permanente
com Deus, que o chama e o envia, e a quem ele se abandona. Só a
caridade de Deus derramada e acolhida o leva a esquecer-se de si e
a pensar apenas na salvação dos outros. O segredo da sua vida está
em que essa caridade, derramada no seu coração pelo Espírito Santo,
preside a todos os seus movimentos. A procura permanente da vontade de Deus, que discerne, de dia e de noite, é um eixo vertical que
norteia todos os seus desejos, os seus sonhos, as suas iniciativas, as
suas viagens, o seu estilo de vida. Não é perfeito desde o dia da conversão, mas caminha desassombradamente para a identificação plena
com Jesus Cristo, pobre e humilhado, que se abandona inteiramente
nas mãos do Pai.
13
ib. p. 100
Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta
41
Pedira a Inácio e a Simão Rodrigues, então provincial de Portugal, que enviassem para a Índia missionários bem provados, pois o
terreno a evangelizar não se compadecia com debilidades de carácter
nem cedências ao egoísmo, nem com fugas para a frente a repugnâncias de toda a ordem. Jesus Cristo crucificado anuncia-se, sobretudo,
com o testemunho da própria vida. No frio, na chuva e na fome que
experimentaram muitas vezes, nas viagens pela Europa, nos hospícios em que se albergavam e nos doentes que tratavam, nos perigos
e nas perseguições que enfrentaram e em tantos outros contratempos, os primeiros companheiros foram bem provados. A confiança
na Providência – esse abandono de que estamos a falar – é dom de
Deus acolhido e exercido, que se transforma em energia de combate
contra todas as formas do mal e robustece, de forma progressiva, a
capacidade de cada um para enfrentar as dificuldades e as repugnâncias da missão. Os companheiros de Jesus fizeram voto de pobreza
e tomaram-no a sério. Viviam de esmolas, não as acumulavam,
não sabiam se teriam uma enxerga para passar a noite, nem o que
comeriam no dia seguinte. Em qualquer cidade onde chegassem,
procuravam os hospitais para se albergarem e tratarem os doentes.
Não deixavam a oração, nem de dia nem de noite, pois aprenderam
com Inácio a estar na fonte e no centro da fé e da vida, e sabiam que
as suas opções pelo seguimento de Cristo e pelo seu estilo de vida, só
podiam subsistir na energia da fonte.
Todos os biógrafos de Xavier o apresentam como homem terno, simpático, acolhedor, sempre sorridente, que a todos metia no
coração. A qualidade temperamental, transforma-se também, na
personalidade de Francisco, em energia apostólica. A afectividade
que transparece no seu rosto, devidamente canalizada na direcção
do amor e da entrega de vida, é energia de comunicação com os seus
semelhantes, fossem eles os irmãos na Companhia, os índios de Goa
e da Pescaria, ou os japoneses de Yamagushi. Uma impressionante
austeridade de vida não é, no seu caso, incompatível com a cordialidade ou a afabilidade. Por outro lado, a coerência da vida com as
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
42
palavras que saem da sua boca, quando anuncia o Cristo morto e
ressuscitado, interpela as consciências e abre os corações à Palavra
anunciada. Essa afectividade, devidamente canalizada, e essa coerência entre a vida e a Palavra vêm da sintonia com o seu Rei e Senhor,
que lhe é dada por Deus nas longas horas de oração que manteve até
ao fim. Variadas testemunhas oculares dizem terem-no “espiado”
durante a noite: levantava-se, saía da sua choça e ia para outra: aí ficava em oração pela noite dentro, de joelhos, diante de um crucifixo
colocado sobre a mesa14. Dormia poucas horas. Nas suas cartas fala
frequentemente das consolações que o Senhor lhe dava, ao ponto de
o fazerem soluçar; consolações contínuas, no meio de provações sem
conta, a ponto de exclamar: «Ó Senhor, não me deis tantas consolações; mas já que mas dais, pela vossa bondade infinita e misericórdia,
levai-me para a vossa santa glória, pois é tanta a pena de viver sem
vos ver, depois de tanto vos comunicardes às criaturas»15. A um indígena, ordenado presbítero mais tarde, ficou-lhe na memória um dia
de viagem com Francisco; acompanhava-o na visita a umas pessoas
e, ao fim de duas horas de caminhada, não conseguiu arrancar-lhe
mais do que estas palavras misteriosas: «Não há nada a fazer; este dia,
quere-lo Deus para si»16. Ia absorto, e não podia desviar a atenção
do seu Senhor que o visitava. Vivia constantemente em estado de
consolação17, e perguntava aos seus irmãos na Companhia pelas consolações deles. O mistério de Deus manifesta-se de muitas maneiras,
muitas vezes na obscuridade e na aridez. Em Francisco Xavier, podemos discerni-lo, nesta fase da sua vida, na alegria permanente em
14
LEON-DUFOUR, X., o.c., p. 89 ; cfr. SCHURHAMMER, J., o.c., p. 178-
-179
SCHURHAMMER, J., o.c., p. 142. O autor cita Monumenta Xaveriana, I,
293. Xavier não teve apenas consolações. Como todos os místicos, teve também
horas de obscuridade no seu percurso espiritual. Não lhe faltaram dúvidas sobre
a missão, e amarguras com alguns desencantos. Essas horas de obscuridade e de
sofrimento são purificadoras de tudo o que ainda não é amor verdadeiro.
16
LEON-DUFOUR, o.c., p. 89
17
Xavier não teve apenas consolações, como notámos atrás, cf. Nota 15.
15
Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta
43
que vive, e nas dilatações da alma, mais ocasionais, que conta nas
suas cartas, ou que aparecem em testemunhos de quem o conheceu.
Essa alegria permanente que só pode ser a de Cristo nele: «Manifestei-vos estas coisas para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa
alegria seja completa» (Jo 15, 11). Esse é o segredo mais profundo da
sua vida onde não podemos entrar, a não ser temerosamente, e guiados pelo Espírito Santo. Não o disse nunca, mas poderia dizer com
S. Paulo: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. E a
vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me
amou e a si mesmo se entregou por mim» (Gl, 2, 20). O segredo da
sua vida está na união permanente com Deus que o modelou ao seu
jeito, a partir do homem Franscisco, terno, bondoso e apaixonado,
que se deixou alcançar. Não lhe faltaram graças de natureza mística
embora, na sua modéstia, não fale senão das muitas consolações com
que o Senhor o favorecia18.
2. O companheiro jesuíta
Os primeiros companheiros de Xavier foram Pedro Fabro e Inácio de Loyola que habitaram o mesmo quarto no Colégio de Santa
Bárbara, juntamente com o professor Juan de Peña. Estávamos em
1529. Pouco depois, juntaram-se ao grupo Simão Rodrigues, Laínez,
Na humildade, própria dos homens de Deus, recusava-se a aceitar como
milagrosos alguns acontecimentos. Um deles, o menino de Combuture, junto ao
cabo de Comorín, caíra a um poço e foi de lá retirado, já rígido e pálido. A mãe,
desesperada, levou-o ao P. Francisco que se pôs de joelhos, rezou e fez sobre ele o
sinal da cruz. «O menino abriu os olhos, e a vida penetrou de novo naqueles rígidos membros», SCHURAMMER, J. o.c., p. 142. A Mestre Diogo que se referia
ao facto, e lhe perguntava como fora isso da ressurreição de um morto, Xavier respondeu: «Ressuscitar, eu, a alguém...? Um pecador como eu...? As pessoas trouxeram-me aquele menino, tal como estava – e parecia estar vivo – e eu disse-lhe que,
em nome de Deus, se levantasse, e ele levantou-se, e o povo ficou deslumbrado
com isto», ibidem, p. 147. A quem quer que lhe falasse no assunto, dizia sempre:
o menino ainda estava vivo!
18
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
44
Salmerón e Bobadilha, os quatro que, com Pedro Fabro, fizeram
os Exercícios, em 1534, sob a orientação de Inácio. Movidos por
ideal comum e por objectivos comuns, o grupo constituiu-se como
grupo de amigos no Senhor. Separados temporariamente, algumas
vezes, por razões de apostolado, viveram juntos até 1539. A partir
de Março de 1540, Xavier nunca mais viu os companheiros até à
morte, ocorrida na ilha de Sanshuan, às portas de Cantão, na China,
em 1552. Os outros cinco também não ficaram juntos, debaixo do
mesmo tecto.
Esses doze anos da vida dos companheiros bastariam para demonstrar que a essência de uma comunidade não é o espaço geográfico que a limita, mas a união dos corações que perdura no espaço
e para além do tempo, quando o seu fundamento é Jesus Cristo,
Senhor do coração de todos. O voto de obediência a um deles,
longamente deliberado em 1539, tinha por finalidade coordenar a
missão apostólica do corpo, e ser vínculo de unidade de todos os seus
membros. Sozinho durante muito tempo, entregue à Providência e
à criatividade pessoal, na procura da vontade de Deus a seu respeito,
Xavier nunca perdeu de vista o seu voto de obediência ao futuro
Geral da Companhia, deixado por escrito horas antes da partida para
Portugal, a caminho da Índia. A amizade natural, fundamentada em
Cristo, e movida por objectivos comuns, tinha sido reforçada pelo
nó da obediência que transformava o grupo em corpo ou em comunidade. Os amigos no Senhor são agora também dependentes no
Senhor, porque o seu único objectivo, ao qual tudo o mais se subordina, é a maior glória de Deus e a salvação das almas. Deixaram de
viver para si mesmos ou de morrer para si mesmos19. Criaram uma
dependência querida e desejada, depois de devidamente reflectida;
por isso a vivem na plena liberdade dos filhos de Deus, que mais
nada querem além da sua maior glória e louvor.
«Se vivemos, é para o Senhor que vivemos; e se morrermos é para o Senhor
que morremos», (Rm 14, 7-8).
19
Francisco Xavier, Companheiro Jesuíta
45
Sem outro meio de comunicação além do correio, que chegava
uma ou duas vezes por ano20, Francisco sentia-se dependente de Inácio e dos outros irmãos da Europa. Os laços eram afectivos e de missão comum ou, por outras palavras, de um amor que engloba todos
os aspectos. A dez mil quilómetros de distância, corriam as lágrimas
pela cara de Xavier, cada vez que recebia uma carta de Inácio, de Simão Rodrigues ou de outros da Europa, ou até dos seus irmãos que
já estavam em Goa quando ele pregava nas Molucas ou no Japão.
Com uma tesoura, recortava as assinaturas de Inácio e dos outros
companheiros que lhe escreviam21, e dependurava-as ao peito, como
se fossem relíquias: um companheiro terno, afectivo, apaixonado,
que chora de emoção ao receber uma carta, e continua em comunhão com os seus amigos, sempre presentes no pensamento e na
oração. Mas há um vínculo ainda maior: Xavier sabe-se membro de
um corpo em missão, ligado a ele por vínculo que faz de todos um
só corpo e dá a todos uma única missão. Essa é a mesma de Jesus, de
quem somos companheiros, e é a mesma da Igreja, que é o corpo de
Jesus.
Francisco pedia conselhos a Inácio, a Coduri, a Simão Rodrigues
e a outros22. A necessidade destes conselhos deve ser procurada, não
Houve um intervalo de quatro anos na correspondência entre Xavier e
Inácio.
21
SCHURHAMMER, J., o.c., p. 180.
22
Ainda de Lisboa, dias antes de partir para as Índias, Xavier escrevia a Inácio
e a João Coduri nestes termos: «Pelo amor e serviço de Deus Nosso Senhor, pedimo-vos que nos escrevais no próximo mês de Março, quando as naus de Portugal
partirem para as Índias, sobre tudo o que vos pareça bom, a propósito da conduta
que deveremos ter entre os infiéis; porque, mesmo admitindo que a experiência
nos ensinará, em parte, a conduta que devemos ter, nós esperamos em Deus
Nosso Senhor que será do agrado de sua divina Majestade fazer-nos conhecer por
vosso intermédio, todo o resto, sobre a maneira de como devemos servi-lo, pois
tememos o que se faz habitualmente e acontece a muitas pessoas, a saber: seja
por causa do seu descuido, seja por se recusarem a pedir e a receber conselhos de
outrem, Deus Nosso Senhor costuma recusar muitas coisas que lhes concederia
20
46
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
apenas no desejo de se enriquecer com a experiência de outros, mas
na consciência que Xavier tem de ser membro de uma comunidade,
e de que o Senhor não estaria presente sem a mediação da comunidade. «Receber conselhos é uma “passividade” em relação aos irmãos
e ao Senhor. Francisco tem medo de se achar sozinho, gosta de depender»23. A Providência reservava-lhe, no entanto, contrariamente
a esse gosto e desejo, um caminho de solidão e de abandono. Em
dez anos, recebeu cinco vezes correio de Roma, e duas de Portugal.
Podia antecipar-se a Teresa de Ávila e dizer: só Deus basta!
O seu sonho estava ainda na China, essa grande e misteriosa nação, onde havia milhões e milhões de almas para salvar. Mas aí, tinha
Deus outro plano. Já muito perto do sonho, na ilha de Sanshuan,
às portas de Cantão, acompanhado apenas pelo fiel amigo António,
umas febres malignas levaram-no à cama, numa palhota da ilha deserta. Era a hora do abandono final. Quinze dias depois, sozinho,
durante a noite, deixava o último grito do seu abandono: Pai, nas
tuas mãos entrego o meu espírito.
se, humilhando o nosso espírito, nós pedíssemos ajuda e conselho sobre o que
devemos fazer, principalmente às pessoas por meio das quais foi do agrado de sua
divina Majestade fazer-nos compreender em que é que deseja servir-se de nós; rogamus vos, Patres, et obsecramus iterum atque iterum in Domino, per illam nostram
in Christo Jesu conjunctissimam amicitiam (Pedimo-vos, Padres, e vos suplicamos,
uma e outra vez, pela nossa íntima amizade em Jesus Cristo...), que nos escrevais
os conselhos e os meios de melhor servir a Deus Nosso Senhor, segundo a maneira
que vos pareça que devemos agir, pois assim é nosso desejo que a vontade de Cristo Nosso Senhor nos seja manifestada por vosso intermédio». Lettres de S. François
Xavier, Bruxelles, Paris, 1922. Carta a Inácio e João Coduri de 18 de Março de
1541. Como se Inácio e Coduri, em Roma, pudessem adivinhar a melhor maneira
de proceder em Goa, entre os infiéis.
23
LEON-DUFOUR, X., o.c., p.74-75.
FRANCISCO XAVIER
O AMIGO APÓSTOLO
Francisco de Sales Baptista
Introdução
Antes de mais, convém delimitar o assunto a que se refere o título
desta conferência – o amigo apóstolo.
Xavier era uma personalidade extraordinariamente irradiante.
Sabia conquistar amigos por toda a parte. Mas uma coisa era a amizade que o fazia tão companheiro dos primeiros jesuítas com quem
fundou a Companhia de Jesus; outra, a que tinha com a roda de
amigos, sobretudo portugueses, que com ele se cruzaram nos caminhos da vida; outra, finalmente, a que dedicava aos cristãos por ele
convertidos do paganismo. Também Jesus tinha vários círculos de
amigos: um, era o grupo dos 12 apóstolos com quem partilhava a
sua vida e tudo o que tinha; outro, o dos discípulos e amigos que
tinha por toda a parte e que o serviam e hospedavam muitas vezes;
outro, finalmente, o das multidões que atraía a si com a sua dedicação apostólica.
Do companheirismo e profunda amizade que Xavier mantinha
com o grupo de amigos com quem se lançou na aventura da Companhia de Jesus, já nos falou a anterior conferência. Da dedicação
missionária com que cuidava dos cristãos convertidos do paganismo,
vai ocupar-se a conferência seguinte. Aqui, limitamo-nos a falar das
amizades que tinha com os que já eram cristãos e de alguma maneira
eram seus colaboradores e benfeitores. Eram sobretudo portugueses,
que o ajudavam com seus bens e influências, ou simples companhei-
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
48
ros de viagem com quem se aventurava a grandes tempestades pelos
mares do Oriente, ou até pessoas desencaminhadas que trouxera ao
bom caminho com a sua simpatia e enorme compreensão. É longa
a lista. As referências amigas com que aparecem nas suas Cartas, fazem lembrar as listas de recomendações de S. Paulo para os amigos
e colaboradores que também ele tinha por toda a parte. É ver, por
exemplo, o final da epístola aos Romanos (Rom 16,1-16)1.
Toda esta gente acabava por reconhecer em Xavier uma amizade
a toda a prova. Como diz um dos seus contemporâneos: «É tanta a
opinião que por toda a Índia se tem dele que, de todos, assim dos grandes
como dos pequenos, aquele que é mais seu amigo se tem pelo mais bem-aventurado«2.
Intitulamos «O amigo apóstolo», porque a amizade de Xavier era
perfeitamente integrada: o amigo era inseparável do apóstolo e do
santo. Era amigo com toda a solicitude de apóstolo e com toda a
elevação cristã da sua santidade. Vamos ver, portanto
1. A irradiação humana da sua amizade
2. A elevação cristã da sua amizade
3. A integração apostólica da sua amizade
1. A irradiação humana da sua amizade
Na base das suas amizades estava, sem dúvida, a irradiação humana da sua figura desportiva e alegre, do seu feitio generoso e ousado,
do seu carácter recto e comprometido.
Cf. ZUBILAGA, Félix: Cartas y escritos de San Francisco Javier, BAC, Madrid,
1953: Carta 5,4. Citamos a numeração dos escritos e respectivos parágrafos nesta
edição, que é também a da edição crítica da MHSI- Epp.Xav. menos acessível. Cf.
tb. SCHURHAMMER, Georg: Francisco Javier – Su vida y su tiempo, Mensajero,
Bilbao, 1992 (4 vols): I,736. Por estas recomendações podemos conhecer muitos
colaboradores e amigos que Xavier tinha por toda a parte. Cf. Cartas 7,1; 12,3.6;
16,2.3.7; 19,4; 30,3; 36,2; 47,4; 49,8; 50,9; 54,5; 57,3; 61,15; 62; 65,4; 79,6;
99,1-25; etc.
2
MHSI-Mon.Ind. (= Monumenta Histórica Societatis Iesu – Monumenta
Indica): MORAIS, Manuel: Mon.Ind. I,460-462
1
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
49
Já pela sua figura exterior, no ser ar desportivo e alegre, era uma
personalidade simpática. Assim o descreve o grande historiador
Schurhammer aos dezoito anos, baseado em dados dos seus familiares e amigos: era de estatura proporcionada e «corpo ágil, mais alto
que baixo, de rosto bem parecido e radiante, cabelo negro e, nos seus
olhos, entre negros e castanhos, resplandecia serena a limpidez do seu
coração»3. Entre os seus companheiros de Paris, era conhecida a sua
atracção pelo desporto. A tal ponto que, depois da sua conversão,
ao fazer o mês de Retiro, para mortificar esta sua paixão, atou-se de
pés e braços com tal rudeza e força que esteve a ponto de lhe gangrenarem as feridas que causou e só por milagre escapou de lhe ser
amputado um dos membros.
Mas, mais que a aparência física, era o seu feitio alegre e desportivo que tornava agradável a sua convivência. Todos os que o
conheceram notam essa alegria espontânea e desportivismo brincalhão, capaz de rir com os que riem e até de si mesmo, com um bom
humor que nunca perdeu. A alegria inundava-lhe constantemente o
rosto. Era a primeira impressão que sobressaía em qualquer encontro com ele4.
SCHURHAMMER, op.cit. I,84 e Notas; Cf. I,135,Nota245: «Gonçalves
da Câmara escreve: ‘Era na ilha de Paris um dos melhores saltadores’. Eustathius
von Knobelsdorf, que esteve em Paris de 1541 a 1543 e publicou ali em 1543 o
seu livro Lutetiae Parisiorum descriptio, é o primeiro a contar-nos os desportos
académicos. Fala de esgrima, lançamento de jabalina, tiro, levantamento de pesos,
salto, corridas. Era preferido o jogo da pelota (ténis de frontão) para o qual havia
na cidade muitos locais»; Cf. tb. 289-290 e Notas 245, 246.
4
Cf. UBILLOS, El espíritu de San Francisco Javier, Mensajero, Bilbao, 1946:
135-137; 139-142. Um jovem missionário, que chegou à Índia com desejos de o
conhecer, assim o descreve às primeiras impressões: «Que afabilidade tem, sempre
rindo! Com rosto alegre e sereno, sempre ri e nunca ri: sempre ri, porque tem sempre
uma alegria espiritual com que a caridade e o júbilo do espírito se (lhe) manifestam no
rosto… E, contudo, nunca ri, porque sempre recolhido em si, nunca se dissipa com as
criaturas» (M. NUNES BARRETO, 7.Dez.1552: MHSI-Mon.Ind.II,494-495).
Teixeira, estudante jesuíta, que se ocupava em servir Xavier quando voltou do
Japão, assim o descreve: «Andava quase sempre com os olhos postos no céu, com cuja
3
50
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
Essa alegria passava muitas vezes ao ar brincalhão com que se metia
com as pessoas ou comentava os acontecimentos. Por exemplo, antes
da conversão, embora já muito amigo de Inácio, não alinhava nada
nos seus fervores e ideais. Muito o picava por causa disso ! E quando
soube que Salmerón e Laínez tinham vindo de Alcalá para Paris, só
pelo que ouviam dizer de Inácio, fartava-se de rir com eles. Escreve
um contemporâneo: «Sendo jovem, brincalhão e ufano da sua nobreza
biscainha, e já mais adiantado na filosofia, fazia troça da maneira de
viver de Inácio que, naquela altura, vivia de esmolas… Raramente se
metia com ele sem o gozar nos seus desígnios e sem atirar uma piada a
Laínez e Salmerón por terem vindo de Alcalá a Paris à busca dele por
devoção, fundada no que ouviam contar das suas virtudes extraordinárias e perfeição»5.
vista dizem que achava particular consolação e alegria. E assim mantinha o seu rosto
tão alegre e inflamado, que causava muita alegria a todos os que o viam. E aconteceu
algumas vezes alguns Irmãos que andavam tristes irem vê-lo para se alegrar e só com
isso se sentirem inflamados com a sua presença. Era muito amável e recebia as pessoas
de fora com grande afabilidade. Era alegre e familiar com os de casa, especialmente
com aqueles que percebia serem humildes e simples e que tinham de si mesmos pouca
opinião e estima… Nesta sua chegada a Goa, foi visitado por muita gente, pela muita
devoção e amor que todos lhe tinham. A todos recebia com muita afabilidade e atenção, indo recebê-los logo que o chamavam, a ponto de algumas vezes ter deixado seis e
sete vezes de rezar uma das Horas do Breviário que tinha começado, para ir falar com
os que o procuravam e outras tantas vezes ter voltado a recomeçar, com tanta devoção
como se até então tivesse estado em oração» (SCHURHAMMER IV,640).
5
SCHURHAMMER I,222,Nota189. Mais tarde há-de usar o mesmo ar
bricalhão para trazer ao bom caminho os seus amigos (Cf. ibid II,290-292; 798800; 1017-1018). «Quando tinha notícia de algum que levava vida especialmente
escandalosa, esforçava-se antes de tudo por assegurar-se da sua amizade e confiança. Metia-se com ele e, com ar alegre de sacerdote pobre, fazia-se convidado para
comer em sua casa. Em conversa agradável, sabia apreciar tudo o que lhe serviam.
No fim gostava de conhecer também a cozinheira. Chamavam a escrava. O Padre
elogiava a sua arte culinária; agradecia-lhe o bom trato que lhe dera; dizia-lhe que
tinha de ser uma santa e despedia-se do seu amigo. Nem palavra de alusão à sua
vida de pecado, nem muito menos um sermão de penitência. Às vezes, bastava
apenas isto para fazer reflectir o pecador e movê-lo a deixar as suas relações ilícitas.
Outras vezes, se já havia filhos pelo meio, mandava-os chamar, acariciava-os, cha-
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
51
Nas suas cartas, não faltam alusões engraçadas a pessoas conhecidas6. Escrevia ele a S. Inácio: «do senhor doutor Iñigo Lopez, tenho por
certo que perderia todo o gosto de ser médico se…já não pudesse socorrer
o estômago do Padre Inácio e as maleitas de Bobadilha»7. Noutra carta
a S. Inácio, pedia notícias do mesmo Dr. Iñigo Lopez e perguntava
se já tinha deixado o cavalo e andava de mula, e quando é que ficaria
completamente curado para deixar a mula e andar a pé: «grande enfermidade e fraqueza é a sua, pois com tantos médicos e medicinas não
acaba de se curar e andar a pé», termina ele8.
E ao P. Simão Rodrigues escrevia que não deixasse que algum
amigo seu viesse para a Índia com ofícios e cargos de El-Rei, a não
ser que fosse confirmado em graça, como os apóstolos, porque «estou
espantado como os que daí vêm, acham tantos modos, tempos e particípios a este verbo desgraçado de eu roubo, tu roubas, ele rouba; e são
mava também a mãe deles, ponderava (sendo possível) as suas qualidades e, então,
já na primeira visita movia o seu amigo, por amor à boa reputação, a casar-se pela
Igreja com essa escrava… Outro caso era se o amigo já tinha um harém de escravas
com quem convivia: três, quatro ou mais. Via-as servir à mesa, na cozinha, pela
casa. No decurso da conversa perguntava ao amigo quantas tinha. Pedia para as
conhecer a todas. Vinham. Elogiava-lhes a culinária, o bom serviço; perguntava a
cada uma pelo seu país, pela sua família, desde quando estava baptizada, procurando ganhar a todos pela sua amabilidade e singeleza. Parecia não se aperceber de
nenhuma desordem. O amigo, que esperava um sermão de reprimenda, respirava
com alívio. Convidava segunda, terceira e quarta vez a agradável visita a comer em
sua casa. E, uma vez assegurada a amizade e com o campo de batalha desobstruído,
entrava Xavier ao ataque: Para quê tantas criadas que só brigavam entre si, traziam
perturbação à casa e supunham tantos gastos? E convencia o amigo a despedir
uma, para que o Padre, entretanto, já tinha encontrado noivo. Dez ou vinte dias
depois, induzia o amigo a despedir outra; depois uma terceira e quarta; até que
por fim ficava só uma, que também despedia ou com quem casava, a conselho de
Xavier, pois era difícil recusar um pedido daquele a quem já todos chamavam o
‘Santo’» (SCHURHAMMER II,290-292 e Notas).
6
Cartas 12,4; 12,6; 47,4; 49,7; 90,35-36; 92,2; 94,7.
7
Carra 12,6.
8
Carta 47,4.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
52
de tão boa presa…que nunca mais largam aquilo que tomam»9. Em
carta para Goa, mandava recomendações para várias pessoas, entre
elas, para um padre francês um tanto raro e com quem brincava às
vezes: «dareis as minhas recomendações ao Padre francês; e dizei-lhe da
minha parte que, uma vez que é vigário de Nossa Senhora da Luz, tome
dela muita luz para si, porque, no tempo em que eu o conheci, pouca
tinha»10.
Também era engraçado a comentar os acontecimentos e maneiras de ser dos outros, desdramatizando desse modo aspectos desagradáveis. Como, por exemplo, o comentário que faz dum desastre
que poderia ter sido trágico, na sua viagem para Lisboa. Vinha na
comitiva um criado do Embaixador que em Roma tentara ser frade e
desistira. Ao atravessarem a vau um rio com corrente muito forte, o
criado aventurou-se de mais e foi arrastado com o cavalo, rio abaixo.
Com a ajuda e oração de todos, salvou-se como por milagre. E comenta Xavier: «No tempo em que ia pela água abaixo, muito mais teria
folgado em estar no mosteiro (que abandonou) do que no lugar onde se
encontrava, pesando-lhe muito ter diferido tanto o que muito desejava
ter cumprido. Disse-me, quando falei com ele, que em todo o tempo em
que andou na água, quase a afogar-se, sem esperança de salvar-se, de
nada tinha tanta pena como…não ter cumprido e posto por obra o que
Deus N. Senhor lhe tinha começado (a inspirar) acerca do seu modo de
vida». E termina Xavier: «Ficou tão espantado, que parecia que vinha
do outro mundo»11.
Outro segredo da sua irradiação humana era o seu feitio generoso e
ousado. Quem o conhecesse mais de perto, naquilo em que se metia,
nos seus gostos e projectos, notava logo esse modo generoso e ousado com que pegava nas coisas.
Carta 49,7.
Carta 92,2.
11
Carta 6,2.
9
10
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
53
Generoso. Com o gosto que tinha pela vida mundana, não lhe
faltavam ambições. Tinha na família um dos maiores juristas do seu
tempo, o tio Dr. Navarro, catedrático de Salamanca e Coimbra, e
aspirava a ser intelectual como ele. Abria-se-lhe uma boa posição no
alto clero de Pamplona, e não punha de lado esses caminhos. Os
dominadores de Castela tinham-lhe inutilizado o castelo familiar e
marginalizado a nobreza da família, mas, logo que pôde, reclamou a
oficialização dos seus títulos de nobreza para os fazer valer na devida
altura. Não faltava campo à sua ambição e não a escondia. Diz o
seu amigo e historiador Teixeira: «Embora gostasse muito do trato e
amizade de Inácio, não se atrevia a mudar o seu estilo de vida por ser
naturalmente inclinado à honra e ao fausto do mundo, segundo nos
contaram depois alguns que nesse tempo andavam mais com ele»12. Mas,
por detrás desta ambição, estava um coração generoso. Por esta propensão generosa para grandes coisas, fama, glória, lhe há de pegar o
seu grande amigo Inácio para lhe virar esta irradiação humana para
coisas mais altas. A sua irmã Madalena, santa abadessa das Clarissas
de Gandia, anteviu também os enormes recursos destas ambições de
Xavier. Por isso, quando começou a faltar dinheiro à família para os
estudos do irmão e se pensou em fazê-lo voltar de Paris, ela interveio
para que «não deixassem de prover com o necessário o Francisco para os
seus estudos, porque esperava em Deus que havia de ser uma coluna da
Igreja»13. E não se enganou. Antes de partir para a Índia, ao despedir-se de Simão Rodrigues, revelou-lhe este segredo: «Lembrais-vos
ainda daquela noite no hospital de Roma, em que vos despertei a gritar
‘Mais, mais, mais’ ? Quantas vezes me pedistes que vos dissesse o que
significava aquilo ! E eu dizia-vos sempre que não era nada ! Mas agora
convém que o saibais. – Via eu então (se em sonhos ou desperto, não o
sei, Deus o sabe) os grandíssimos trabalhos, fadigas e aflições que por
fome, sede, frios, viagens, naufrágios, traições, perseguições e perigos se
me ofereciam por amor do Senhor. E que o mesmo Senhor me concedia
12
13
SCHURHAMMER I,222,Nota 189.
SCHURHAMMER I,226,Nota 209.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
54
então a graça de que nada disto me bastava, e eu pedia mais e mais
com aquelas palavras que me ouvistes. Pois eu espero agora na divina
Bondade, que nesta viagem se me vai conceder certamente o que ali se
me ofereceu e também o desejo que então se me dava»14.
Ousado. Esta mesma generosidade o fará ousado e destemido
como poucos. Mostrou-o bem na coragem em arriscar-se aos perigos. Já na viagem para Portugal teve ocasião de o mostrar15. Numa
das passagens mais perigosas dos Alpes, o cavalo do Secretário do
Embaixador tropeçou num penhasco e caiu por uma ribanceira
abaixo até cavalo e cavaleiro ficarem emaranhados num montão de
neve, à beira dum abismo. Quando Xavier (que também vinha sozinho mais atrás) viu cá de cima o companheiro lutando por se libertar
dos estribos e naquela situação perigosa, desceu do cavalo, deslizou
cautelosamente pela ribanceira onde qualquer passo em falso lhe
podia ser fatal. E, com sangue frio, com risco da própria vida, retirou cavalo e cavaleiro da beira do precipício. Desde então lhe ficou
o Secretário sinceramente agradecido. Nunca esqueceu este gesto e
ele mesmo o contou mais tarde16. Esta ousadia destemida há de ser
uma das notas constantes da sua vida, quer frente às tempestades no
mar17, quer frente aos perseguidores dos seus cristãos, quer frente a
ameaças de contágio no trato com os doentes mais empestados.
Outro segredo da sua irradiação humana era o seu carácter recto e
comprometido.
Recto. É o seu tio, Dr. Navarro, que salienta esta rectidão já desde
os tempos da juventude. Ninguém o aliciava em jogo falso ou o demovia dos seus princípios. O próprio Dr. Navarro teve a experiência
disso, mais tarde. Quando era catedrático em Coimbra, ao saber que
o sobrinho Xavier estava em Lisboa à espera de embarcar para a ÍnSCHURHAMMER I,951 e Notas 84,85. Cf. os planos grandiosos de Missão: Cartas 48,4-5; 61,7; 70,8-9; 90,56-57; 110,12
15
SCHURHAMMER I,749
16
Ibid. I,749 e Nota 101
17
Cf. Cartas 59,20-21; 71,10; 76,2
14
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
55
dia, pediu-lhe que o fosse visitar pois gostava de falar com ele sobre
a nova Ordem em que se alistara, por correrem sobre ela opiniões
variadas. Xavier, ocupadíssimo nos seus apostolados, respondeu-lhe
delicadamente que, para já, não podia ir a Coimbra e, quanto aos
boatos sobre a sua Ordem dizia: «Pelo que V. Mercê me diz na sua
carta que, como é costume, se dizem muitas coisas sobre o nosso Instituto
– pouco importa, ó ilustre Doutor, ser julgado pelos homens, sobretudo
por aqueles que julgam antes de entenderem as coisas»18. O Dr. Navarro insistiu por carta a El-Rei. Quando Xavier soube que por detrás
alimentava planos de o reter consigo na Universidade, com promessa
de o acompanhar depois para a Índia, escreveu ao Doutor uma carta
de despedida, fazendo-lhe ver que, pela sua idade e quebrantadas
forças, já não estava para trabalho missionário na Índia, rogando-lhe
que suportasse com paciência a separação e consolando-o com virem
a encontrar-se no céu19. Sempre foi muito leal. Basta ler a correspondência tão respeitosa e ao mesmo tempo tão franca com D. João
III. Com os amigos mais ricos ou poderosos sabia ser tão agradecido
como incorruptível pelos dons que recebia.
Comprometido. Uma vez que se abalançava a uma coisa, não desistia. É ver a persistência em ir às Molucas, apesar dos avisos dos
seus amigos: «Muitos dos meus amigos e devotos instaram comigo para
que não fosse a terra tão perigosa; e vendo que não podiam convencer-me
a não ir, davam-me muitas coisas para me defender de envenenamentos.
Eu, agradecendo-lhes muito a sua amizade e boa vontade, para não
carregar-me de medo sem o ter e, sobretudo, por ter posto toda a minha
esperança em Deus e não querer perder nada dela, recusei todos os defensivos que com tanto amor e lágrimas me davam, rogando-lhes que em
suas orações tivessem contínua memória de mim, pois são os mais certos
remédios que se podem achar contra peçonhas»20. Tudo o que se refere
Carta 8,2; Cf. SCHURHAMMER I,882
SCHURHAMMER I,886 e Nota 178
20
Carta 55,4. Os primeiros evangelizadores das ilhas de Moro em 1533-1534,
Simão Vaz e Francisco Alvares, tinham sido mortos, deixando atrás de si uma
comunidade de uns 6.000 cristãos ao desamparo. E escreve Xavier: «…Por ser
18
19
56
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
às Molucas nesta Carta merecia ser citado21. A mesma determinação
o movia a ir ao Japão: «Jamais poderia acabar de escrever quanta consolação interior sinto em fazer esta viagem, cheia como está de grandes
perigos de morte, por causa dos ventos e tempestades, dos baixios e dos
muitos piratas: quando de quatro naus se salvam duas, parece grande
ventura. Mas não deixaria de ir ao Japão, pelo que tenho sentido no
íntimo da minha alma, mesmo que tivesse a certeza de que me havia de
ver nos maiores perigos em que jamais me vi, pois temos grande esperança em Deus que há de ser para grande acrescentamento da nossa santa
fé»22. «Chegaram navios a Malaca com notícias muito certas de que os
portos da China estão todos levantados contra os portugueses. Mas, nem
por isso deixarei de ir ao Japão, como tenho dito, pois não há maior
descanso nesta vida desassossegada que viver em grandes perigos de morte, tomados todos imediatamente só por amor e serviço de Deus N.S. e
acrescentamento da nossa santa fé; e com estes trabalhos descansa um
homem mais que vivendo fora deles»23. E acabou por ir ao Japão, não
a terra de Moro muito perigosa, por a gente dela ser muito traiçoeira e misturar na
comida e na bebida muita peçonha, deixaram de ir àquela terra pessoas que olhassem
pelos cristãos. Eu, pela necessidade que estes cristãos têm de doutrina espiritual e de
quem baptize para salvação das almas, e também pela necessidade que tenho de perder
a minha vida temporal para socorrer a vida espiritual do próximo, determino ir a
Moro…oferecido a todo o perigo de morte, posta toda a minha esperança e confiança
em Deus N.S., desejando conformar-me, segundo as minhas pequenas e fracas forças,
com o que disse Cristo N.S.: ‘Quem quiser salvar a vida, perdê-la-á; mas quem a
perder por amor de Mim, encontra-la-á’ (Mt 16,25). Embora seja fácil entender em
geral o latim desta sentença do Senhor, quando um homem se põe a concretizar isso,
para dispor-se com determinação a perder a vida por Deus para a achar n’Ele, ao
oferecerem-se casos perigosos em que provavelmente se presume perder mesmo a vida,
torna-se tudo tão escuro que o latim, sendo tão claro, acaba por escurecer-se. Em tal
caso, por mais douto que alguém seja, parece-me que só é capaz de o entender aquele
a quem Deus N.S., por sua infinita misericórdia, o quiser em casos concretos declarar.
Em semelhantes casos se conhece a condição da nossa carne, quão fraca e enferma é»
(Carta 55,4). Segue-se a passagem citada no texto.
21
Cf. Carta 55,4-5.
22
Carta 71,10.
23
Carta 76,2.
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
57
numa nau portuguesa mas no «junco» dum pirata chinês, a quem o
Capitão de Malaca obrigou a deixar uma caução nesta cidade, onde
residia com a família.
2. A elevação cristã da sua amizade
Mas, se na base das suas amizades estava a simpatia natural da
sua alegria, generosidade e rectidão, essa irradiação humana foi-se
enriquecendo cada vez mais pela elevação cristã das suas virtudes. A
sua humildade que o fazia tão simples, próximo e acessível, tornava
mais encantadora a sua figura alegre e sociável; a sua caridade a toda
a prova, que o fazia estar ao lado dos amigos no momentos mais
difíceis, tornava ainda mais radiante o seu feitio generoso e ousado;
e o seu desprendimento incorruptível, tornava ainda mais apreciado a
seu carácter recto e comprometido.
Era de facto, duma humildade encantadora. Tão simples que cativava logo os corações das pessoas. Tão próxima e à vontade que se
podia brincar com ele. Tão acessível e acolhedora que o tornava cada
vez mais popular.
Foi por ela que conquistou os melhores colaboradores e amigos.
Por exemplo, ao demorar-se uns dias em Bolonha, a caminho de
Portugal, S. Inácio pediu-lhe que intercedesse junto do cardeal de
Bolonha a favor da aprovação pontifícia da Companhia de Jesus.
Xavier marcou entrevista e assim conta a Inácio como decorreu o
encontro: o velho e bondoso senhor «recebeu-me humaníssimamente,
oferecendo-se muito para nos favorecer em tudo o que pudesse. O bom
ancião, quando me ia a despedir dele, começou a abraçar-me e eu a beijar-lhe as mãos e, a meio dos arrazoados que lhe disse, pus-me de joelhos
e em nome de toda a Companhia de Jesus beijei-lhe as mãos. Pelo que ele
me respondeu, e eu creio, ele está muito bem com o nosso modo de proceder»24. E, de facto, ganhou um grande amigo para a Companhia de
24
Carta 5,2; Cf. SCHURHAMMER I,736.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
58
Jesus. Ao chegar à Índia, assim conquistou também uma profunda
amizade e colaboração do Bispo de Goa. Indo com poderes de Núncio da Santa Sé para todo o Oriente, a sua primeira preocupação foi
ir saudar o Bispo, entregar-lhe a Bula de nomeação e pôr-se inteiramente à sua disposição. Depois de lhe dizer que vinha em missão do
Papa Paulo III e encargo de El-Rei para se dedicar aos portugueses,
instruir os recém-convertidos e trabalhar na conversão dos infiéis,
entregou-lhe as Cartas credenciais que o Papa e o Rei lhe tinham
dado como a Núncio apostólico. «Mas acrescentou que as deixava nas
mãos de Sua Senhoria e que não queria fazer delas outro uso senão o que
o Bispo tivesse a bem. O bondoso e ancião prelado, comovido por tanta
humildade, abraçou com enorme carinho o seu visitante, devolveu-lhe
os documentos e suplicou-lhe que utilizasse à vontade as faculdades que
o Santo Padre e o Rei lhe tinham dado. Desde então, uma íntima amizade uniu aqueles dois corações de idênticos sentimentos»25. A mesma
humildade recomendava a todos como base de trato e simpatia26.
Esta mesma humildade não só lhe conquistava amigos e colaboradores, mas aumentava cada vez mais a intimidade e confiança que
tinham com ele. Sentiam-se tão à vontade em sua companhia que,
inclusive, se podiam meter com ele em coisas da sua vida e pregar-lhe
partidas. Por exemplo, quando chegaram a Goa notícias da primeira
ressurreição obtida de Deus por Xavier na Costa da Pescaria, dois
dos seus grandes amigos resolveram meter-se com ele. E, de facto,
quando ele regressou a Goa, um deles perguntou-lhe, sem considerações pela sua humildade: «Padre Mestre Francisco, para honra
e louvor de Deus, diga-me: que foi aquilo do rapaz que ressuscitou no
Cabo Comorim?» Xavier, a rir e abraçando-o, respondeu cheio de
confusão: «Jesus, senhor Padre Mestre Diogo! Ressuscitar eu um morto? Pecador de mim!... Trouxeram-me aquele rapaz, tal qual estava, e
vinha vivo. Eu disse-lhe que se levantasse em nome de Deus e ele levanSCHURHAMMER II,202 e Carta 121,1-2; Cf. tb. A devolução da igreja
de Cochim: Ibid. IV,601-603.
26
Cf. Cartas a Barzeu, Cipriano, Gomes.
25
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
59
tou-se, e o povo encheu-se por isso de admiração»27. Outra vez, quando
o viram com uma batina tão pobre e já gasta, esses amigos quiseram
oferecer-lhe outra. Não aceitou. Então, de noite, trocaram-lha sem
ele dar conta e, no dia seguinte, ele vestiu-a sem reparar na diferença.
Na brincadeira, meteram-se com ele e disseram: «Então, não queria !
Mas, afinal foi arranjar outra melhor». Ele, ao reparar, desatou a rir,
mas não os deixou enquanto não lhe restituíram a primeira28.
Esta mesma humildade, não só o aproximava tanto dos amigos,
mas tornava-o cada vez mais popular. Toda a gente o sentia muito
próximo na sua simplicidade e alegria. Por isso, não admira que acorresse em festa à sua chegada dalguma longa missão e às despedidas
quando partia para outra. Assim aconteceu já em Bolonha, onde
tinha exercido durante alguns meses o seu apostolado antes de ser
chamado para missionário do Oriente. Ao passar de novo por lá, na
viagem para Lisboa, o povo acorreu a despedir-se com tal simpatia
que muita gente o quis acompanhar até longe da cidade29. A mesma
cena se repetiu várias vezes no Oriente. Ao regressar do Japão, depois
de muitos meses sem notícias, toda a cidade de Malaca, com o próprio Capitão da fortaleza à frente, acorreu ao porto para o receber30.
Se a sua humildade simples e simpática o aproximava tanto das
pessoas, a sua caridade a toda a prova mostra até que ponto era capaz
de ser amigo. Aqui, a caridade dava a verdadeira medida do seu feitio
generoso e ousado.
Generoso por feitio, era mais generoso ainda pela caridade que o
animava. Nas viagens por mar, longas, duras e arriscadas, não pensava em si. Estava sempre pronto a ajudar algum companheiro que
caísse doente. Fazia-lhe a comida, tratava-lhe da roupa e da higiene,
velava-o de noite em casos extremos e não parava. E se era algum esSCHURHAMMER II,496.
Ibid. II,261-264.
29
Ibid. I,738.
30
Ibid. IV,411-413; Cf. Carta 84,02.
27
28
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
60
cravo ou desgraçado sem eira nem beira, levava-o para o seu beliche
e pedia esmola entre os passageiros para o tratar. Na viagem para a
Índia, dá testemunho disso o próprio médico de bordo, Dr. Saraiva.
Na ilha de Moçambique, onde tiveram de fazer escala para tratar
tantos doentes, ele mesmo caiu doente e delirante de febre, de tanto
se gastar pelos outros empestados, a ponto de o próprio doutor Saraiva, vendo que nem assim parava, o levar para a casa onde se tinha
hospedado para o afastar do contágio e tratar dele31.
Ousado já por natureza, era ver a ousadia da sua caridade quando
surgiam as tempestades no mar. Esquecendo o próprio medo, animava a todos com a sua grande fé e confiança em Deus, não deixando perder a coragem. As suas cartas dão testemunho destes momentos de fortaleza na fé e da sua têmpera espiritual32. Por exemplo, na
viagem para as Molucas: «Em muitos perigos me vi, nesta viagem do
Cabo Comorim para Malaca e Molucas, quer em tempestades do mar
quer entre inimigos (piratas)… Muitas lágrimas vi então na nau. Quis
Deus N.S. nestes perigos provar-nos e dar-nos a conhecer para quanto
somos, se nas nossas forças esperamos, ou em coisas criadas confiamos. E
para quanto somos, ao contrário, esperando só no Criador de todas as
coisas, em cujas mãos está fazer-nos fortes, quando os perigos são recebidos por seu amor. Tomando-os só por seu amor, crêem sem duvidar os
que se acham neles, que tudo o criado está à obediência do Criador, conhecendo claramente que são maiores em tal tempo as consolações que os
temores da morte, mesmo que um homem acabasse aí os seus dias»33. E,
noutra Carta: «Nesta viagem de Malaca para a Índia, passamos muitos
perigos de grandes tormentas, três dias com três noites, maiores do que
nunca me vi no mar. Muitos foram os que choraram em vida as suas
mortes, com promessas grandes de jamais voltar a navegar, Se Deus N.S
desta os livrasse. Tudo o que pudemos deitar ao mar, deitamos, para
salvar as nossas vidas. Estando na maior força da tormenta, encomenIbid. II,22-27; 84-86; 123-125.
Cf. Cartas 55,4-5; 59,20-21; 85,10-14; 90,5-10; 131,3-6.
33
Carta 55,5.
31
32
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
61
dei-me a Deus N.S. (e a todos os santos e anjos do céu)…Com todos estes
favores e ajudas, achei-me tão consolado nesta tormenta, que nem talvez
depois de me ver livre dela (me senti tanto). Achar assim um grandíssimo pecador lágrimas de prazer e consolação no meio de tanta tribulação,
para mim, quando me lembro, é uma grande confusão. A tal ponto que,
no meio da tormenta, rogava a Deus N.S. que, se desta me livrasse, fosse
somente para me meter noutras tão grandes ou ainda maiores, em seu
serviço»34. Mas, mais que nas tempestades físicas, sabia estar ao lado
dos amigos nas horas difíceis da vida. Um dos exemplos mais belos é
a correspondência com o seu grande amigo Diogo Pereira, na altura
em que este caiu em desgraça nas relações com o Capitão de Malaca. Aí aparece a gratidão, a fidelidade, a solidariedade, a nobreza do
grande amigo que sabia ser Xavier.
Finalmente, outra grande virtude de Xavier contribuiu para elevar ao máximo a sua amizade – o seu desprendimento incorruptível.
Naturalmente, tendo amigos tão colaboradores e influentes, a quem
tanto devia, era de esperar que a gratidão a tantos favores e influências afectasse a independência do seu carácter recto e comprometido.
Mas não. Sabia ser nobremente comprometido na sua gratidão para
com eles, sem perder a liberdade da sua rectidão.
Nobremente comprometido na sua gratidão. Que o diga o governador Martim Afonso de Sousa com quem viajou para a Índia35;
que o diga D. João III36; que o diga o seu grande amigo e benfeitor
Diogo Pereira37; que o digam D. Pedro da Silva38, Simão Botelho39,
o Bispo de Goa40, os portugueses da Índia41.
Carta 59,20-21; tb. Cartas 71,10; 76,2.
Cartas 16,3; 19,4.
36
Cartas 6,5-6; 11,2; 61,15; 83,3-4; 84,11; 109,6.
37
Cartas 122,3; 129,1.8; 132,2; 136,1-3.
38
Cartas 83,3-4; 84,5; 94,5; 124,1.
39
Carta 54,5.
40
Carta 100,3.
41
Cartas 48,5; 84,11.
34
35
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
62
Mas, ao mesmo tempo, nobremente liberto na sua rectidão. Já o
vimos na correspondência com o seu tio Dr. Navarro. Assim o será
também com o próprio Rei D. João III, a quem tanta gratidão e
amizade não o impedia de lhe lembrar as grandes responsabilidades
de Rei em relação a império tão vasto42.
3. A integração apostólica da sua amizade
Nele, o amigo, a cristão e o apóstolo andavam perfeitamente integrados. Quanto mais cristão e santo, mais amigo; e quanto mais
amigo, mais apóstolo e sacerdote. Não sabia ser uma coisa sem outra. Era duma só peça. Por isso, as pessoas não sabiam distinguir nele
o amigo, do santo e do apóstolo.
Quanto mais cristão e santo, mais amigo. A sua humildade levavao a ser servo de todos com uma dedicação simples e pressurosa. Na
viagem de Roma para Lisboa, que demorou vários meses, «tornouse, desde o primeiro momento, o criado de todos. Nas pousadas, era o
primeiro a tomar a seu cuidado os cavalos e a dar-lhes de comer. A sua
virtude e o seu carácter alegre e radiante conquistaram-lhe imediatamente os corações de todos». Assim o contou mais tarde o Secretário
do Embaixador que vinha na comitiva43. E tanto na Índia como em
todo o Oriente há de ser sempre assim.
E quanto mais amigo, mais apóstolo, pois amava o homem todo.
Queria-lhe tanto o bem temporal como o bem eterno. Era amigo
para a eternidade44. Por isso, tanto se interessava em fazer pelos seus
amigos todas as recomendações que lhe pediam junto do Rei e dos
Governadores para que os favorecessem na vida pelos seus serviços,
Cf. Cartas 46 e 61, em que lhe lembra isso mais claramente.
SCHURHAMMER I,732 e Nota 9.
44
Cf. Cartas a D. João III, a Diogo Pereira, Cartas 65,3; 122,3; 129,3-4;
136,1-3.
42
43
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
63
como se preocupava também por lhes assegurar as recompensas da
vida eterna com constantes apelos a uma vida cristã exigente.
Recomendações a favor de amigos e doutras pessoas que ele via que
serviam bem o país naquelas paragens não faltam nas suas cartas ao
Rei e aos seus conhecidos em Goa. Quase sempre junta às cartas para
D. João III uma grande lista de pessoas, com informações sumárias
sobre os seus serviços no Oriente, para que faça justiça aos seus méritos e fidelidade. Por exemplo, a Carta 99, em que ao fim pede desculpa de tantas recomendações: «Por serviço de Deus peço a V. Alreza
que me perdoe por ser tão importuno em recomendações de tantas pessoas. Em tudo fará o que for mais serviço seu, porque eu não desejo senão
servi-lo»45. Lá mesmo, na Índia, interessava-se pelo futuro de algumas famílias mais amigas e chegou até a fazer-se casamenteiro. Por
exemplo, escreve ele aos Padres de Goa: «Aqui, em Malaca, encontrei
um grande amigo meu, por nome Cristóvão de Carvalho, homem solteiro, chegado muito a virtude, rico, honrado e de muito boas partes; e eu,
pelo zelo que tenho da salvação de todos, roguei-lhe, pela grande amizade que entre nós havia, que aceitasse, por amor de N. Senhor, tomar e
escolher algum modo de viver em serviço de Deus e até para descansar;
pois bem sabia em quantos perigos andavam os que não têm modo no
seu viver. E ele me disse que muito desejava já descansar nalgum bom
estado de vida e que fosse serviço de Deus N. Senhor e para merecer as
mercês e esmolas que N. Senhor, por sua misericórdia, lhe tinha feitas. E
andando assim, de conversa em conversa, lembrando-me eu das grandes
caridades e esmolas que todos temos recebido da nossa Mãe (Violante
Ferreira, viúva de Diogo Fróis), falei-lhe de ele se casar com uma filha
dela, e dei-lhe informação dos seus costumes e virtudes; e ele ficou muito
satisfeito… e ficou muito empenhado e me deu palavra de sim, a qual
eu creio que ele cumprirá como verdadeiro amigo meu e por ser coisa de
tanta honra, proveito e descanso seu; e sobre isto já escrevi à nossa Mãe».
E prossegue dizendo como o hão de ajudar em Goa em tudo o que
45
Carta 99; Cf. Cartas 46; 57; 61; 62; 69; 77; 83; 87; 109.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
64
for preciso para que ele e a família da esposa fiquem em boa situação
social46.
Mas era sobretudo o bem eterno que desejava assegurar aos seus
amigos. Por isso, não se poupava, quer no convívio quer nas cartas
que lhes escrevia, em lembrar-lhes os valores eternos e o desejo de
um dia se encontrarem todos no céu47. Já o retrata assim o Embaixador Pedro de Mascarenhas na sua viagem para Lisboa. Escrevendo
a S. Inácio como estava a correr a viagem, já com duas semanas de
caminho, diz-lhe: «N. Senhor lhe pague o conselho que me dá, quanto
às minhas confissões. De mim lhe digo que, embora as minhas fraquezas
costumassem fazer-me negligente até agora nisto como noutras coisas,
basta ir comigo o Padre Mestre Francisco para dar-me no espiritual
aquele calor que a minha frialdade estava a precisar. As notícias da minha viagem deixo-as para o Mestre Francisco, pois nas coisas do mundo
está menos ocupado do que eu, e nas do espírito nunca está ocioso»48. E
tanto na Índia como em todo o Oriente há de ser sempre assim.
Conclusão
Também nos conselhos que dava aos seus missionários, mostra
que não separava estas três coisas. Por isso, insistia que para ser apóstolo era preciso ser amigo (fazer-se amar de todos); e para ser amigo
a valer, espiritualmente influente, era preciso cuidar da qualidade da
sua própria vida e ser santo.
Para ser apóstolo era preciso ser amigo49: «Com todos os portugueses
dessa Costa procurareis viver em paz e amor… e, com nenhum estareis
mal, ainda que eles queiram. Os agravos que eles fizerem aos cristãos,
com amor os repreendereis; quando neles não houver emenda, fá-lo-eis
Carta 88; Cf. tb. Carta 123, a favor do casamento doutro amigo, Afonso
Gentil, a quem desejava regularizar a situação matrimonial.
47
Cf. conclusões dalgumas Cartas.
48
SCHURHAMMER I,737.
49
Instruções 64,12-13; 80,6.10.16.17.24; 104,10.
46
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
65
saber ao Capitão (da fortaleza)»50. «Quer com os que são muito amigos
quer pouco amigos… de tal maneira vos havereis com eles em todas as
vossas práticas, conversações e amizades, como se eles algum dia viessem
a ser vossos inimigos; porque isto vos aproveitará (a vós) para os edificar
muito em todas as vossas coisas, e a eles para envergonhar-se quando deixarem de ser vossos amigos»51. Faz lembrar S. Paulo: «a ninguém devais
nada a não ser a caridade» (Rom 13,8). «Sejam as vossas repreensões
quando com eles tiverdes amizade; e se for muita a amizade, repreendê-los-eis muito; e se pouca, pouco os repreendereis. De maneira que as
repreensões serão com rosto alegre, e palavras mansas, e de amor, e não
de rigor; de quando em quando abraçando-os, humilhando-vos diante
deles, e isto para que recebam melhor a repreensão»52. «Ao Capitão de
Ormuz… por nenhuma coisa rompereis com ele, ainda que vejais que
faz coisas muito mal feitas. E quando virdes que é vosso amigo, com
muito amor, doendo-vos da sua alma e honra, com muita humildade e
rosto alegre, lhe direis o que por fora se diz dele. E isto quando virdes que
pode aproveitar e quando virdes que está com disposição»53. «Sede afável
e benigno, e as repreensões sejam em particular, com amor e graça, sem
que sintam de vós que vos aborrecem os que falam ou tratam convosco»54. «Olhai que vos recomendo que sejais muito amigo do Vigário (de
Baçaim) e de todos os Padres e do Capitão e oficiais de El-Rei e de todo
o povo, porque em saber ganhar a vontade dos homens, fazendo-se amar
deles, está o fruto das pregações»55
E para ser amigo a valer, é preciso não se descuidar de ser santo56:
«Primeiramente, lembrai-vos de vós mesmo, tendo conta com Deus
Instrução aos missionários da Costa da Pescaria 64,12-13.
Instrução missionária a Barzeu 80,6.
52
Ibid. 80,10.
53
Ibid. 80,17.
54
Ibid. 80,24.
55
Carta 104,10.
56
Instrução missionária a Barzeu 80,1.5.7.8; Instrução II a Barzeu 115,1;
Instrução III a Barzeu 116,3; Instrução IV a Barzeu 117,1; Instrução a Herédia
120,1.5; Carta 113.
50
51
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
66
principalmente e, depois, com a vossa consciência. Com estas duas coisas
podereis aproveitar muito ao próximo»57. «Do descuido que temos de
nós mesmos, nascem muitas ocasiões por onde os que forem nossos amigos
deixem de o ser; e os que são nossos inimigos ou não nos conhecem , se
escandalizem»58. «Sobretudo vivei tendo mais conta da vossa consciência
que da dos outros; porque quem para si não é bom, como o será para os
outros ?»59. «Lembrai-vos, sobretudo, que a autoridade (crédito) junto
do povo é Deus que a há de dar. E dá-a àquelas pessoas que têm virtudes
para Ele lhes confiar a sua autoridade e crédito… E quando os homens
querem por si este crédito com o povo, atribuindo-se a si o que não está
neles, Deus deixa de lho dar, para que os seus dons não caiam em desprezo e se distingam os perfeitos dos imperfeitos»60.
O que recomendava aos outros, praticava-o ele. Até ao fim da
vida procurou viver em pleno o que aprendeu de S. Paulo: «Fiz-me o
servo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Com os judeus
fiz-me judeu, para ganhar os judeus…Com os fracos fiz-me fraco, a fim
de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, a fim de salvar alguns a
todo o custo. E tudo isto faço por causa do Evangelho, para dele me tornar participante» (1Cor 9,19-23). Por isso, mesmo depois de morto,
o seu corpo foi recebido em triunfo por todos os portos do Oriente
por onde passou, até repousar em Goa como relíquia que ainda hoje
atrai muita gente para Cristo.
Instrução missionária a Barzeu 80,1.
Ibid. 80,7.
59
Ibid. 80,8.
60
Instrução a Herédia 120,5.
57
58
Francisco Xavier, o amigo apóstolo
67
Bibliografia
Só a de algum interesse para a espiritualidade de Xavier
ZUBILLAGA, Félix (Ed.): Cartas y escritos de San Francisco Javier, BAC, Madrid,
1953. Publicação espanhola completa, segundo a edição crítica da MHSI (=
Monumenta Histórica Societatis Iesu) – Epp.Xav. (1944-1945). Dos 137
documentos reconhecidos como autênticos, 34 são originais (8 autógrafos e
26 assinados) e 8 só se conservam em traduções posteriores. Do total de documentos, 91 estão redigidos em português, 33 em espanhol, 3 em latim e 2
em português misturado com espanhol. Dos 137 documentos, 108 são cartas
propriamente ditas e 29 são instruções de vários géneros.
MARTINS, Mário (Ed.): Cartas e escritos de S. Francisco Xavier, A.I., Porto, 1952.
Edição parcial em português, que contém apenas 23 cartas e uma oração de S.
Francisco Xavier.
SCHURHAMMER, Georg: Francisco Javier, su vida y su tiempo, Mensajero,
Bilbao, 1992 (4 vols). Obra fundamental, escrita pelo melhor especialista em
história de S. Francisco Xavier.
CROS, Joseph Marie: Saint François Xavier – Sa vie et ses lettres, Toulouse/Paris,
1900 (2 vols).
BROU, Alexandre : Saint François Xavier, Beauchesne, Paris, 1912 (2 vols).
BRODRICK, James : Saint François Xavier (1506-1542), Burns Oates, London
1952. Em espanhol : San Francisco Javier, Espasa-Calpe,Madrid, 1972.
TESTORE, Celestino : S. Francesco Saverio, Alba 1932.
LABORDE : L’Esprit de Saint François Xavier, Bordeaux 1920.
TESTORE : Lo spírito di S. Francesco Saverio. Tradução do anterior, acrescentada
com novas citações.
LABORDE-TESTORE: El espíritu de San Francisco Javier, Bilbao/Madrid,
1943.
UBILLOS, Guillermo: El espíritu de San Francisco Javier, Mensajero, Bilbao
1946. A completar com a biografia de Xavier escrita pelo mesmo autor e base
de muitas citações nesta obra: San Francisco Javier, apóstol de las Índias y Japón
(1506-1552), Ed. Itxaropena 1978.
LÉON-DUFOUR, Xavier: San Francisco Javier – Itinerário místico del apóstol,
Mensajero, Bilbao, 2000.
TEIXEIRA, Manuel: Vida do Bem-aventurado Padre Francisco Xavier, 1580. (Ed.
Em MHSI-Mon.Xav. II, 815-918) «Em 1580, Manuel TEIXEIRA, que tinha
conhecido Xavier em Goa, enviou de lá à Europa uma vida curta do mesmo.
Baseava-se na própria experiência, nos relatos dos contemporâneos, nas cartas
do Santo e nos depoimentos das testemunhas convocadas em 1556 e 1557.
É uma das fontes principais para a vida do santo» (SCHURHAMMER, I,
68
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
Prólogo). Os relatos de ANTÓNIO O CHINÊS sobre a morte de Xavier, a
que assistiu, e os depoimentos para o processo de canonização encontram-se
também em MHSI-Mon.Xav.II.
LUCENA, João de: História da vida do P. Francisco de Xavier…, Lisboa, 1600.
Vida do Padre Francisco Xavier – Nova edição actualizada na grafia e pontuação
e anotada, União Gráfica, Lisboa, 1959/1960 (2 vols). O Autor é um clássico da literatura portuguesa do seu tempo. Apesar dos reparos que lhe faz
SCHURHAMMER, por falta de crítica na utilização das fontes históricas,
esta é ainda uma biografia de Xavier a consultar.
FRANCISCO XAVIER
O MISSIONÁRIO
Nuno da Silva Gonçalves
Em 1538, Diogo de Gouveia, numa carta escrita de Paris a D.
João III, informou o monarca português sobre a constituição de um
grupo de clérigos “de muito exemplo e letrados”, acrescentando que
não se poderiam encontrar “homens mais aptos para converter toda
a Índia”. Referia-se a Inácio de Loiola e seus companheiros que, uma
vez terminados os estudos na Universidade de Paris, tinham partido
para Veneza onde esperavam encontrar passagem para Jerusalém.
Impedidos pela guerra com os turcos de se deslocarem à Terra Santa,
puseram em prática a segunda cláusula do voto feito anteriormente
em Paris: partiriam para Roma para se entregarem às missões que o
Papa lhes quisesse confiar.
De posse das informações de Diogo de Gouveia, D. João III
instruiu o seu embaixador em Roma, D. Pedro de Mascarenhas,
para que procurasse obter a colaboração desses sacerdotes que o
poderiam ajudar a dar resposta às necessidades missionárias dos
seus vastos territórios ultramarinos. Inácio de Loiola acedeu ao
pedido e enviou dois dos seus primeiros companheiros: Francisco
Xavier e Simão Rodrigues, ambos chegados a Portugal em 1540.
Simão Rodrigues acabou por permanecer no Reino, onde seria o
primeiro provincial da Companhia de Jesus, e Xavier partiu para o
Oriente em 15411.
1
Cfr. “Jesuítas”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, direcção de
Carlos Moreira Azevedo, vol. III, [Lisboa] Círculo de Leitores, 2001, pgs. 21-31.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
70
Antes de procurarmos saber que missionário foi Xavier, é importante que nos perguntemos em que Igreja se integrava. Esta pergunta
levar-nos-á a uma outra, mais específica: qual a consciência missionária da Igreja de meados do século XVI?
Comecemos pela primeira pergunta. A Igreja do tempo de Xavier
e dos outros primeiros companheiros de Inácio de Loiola é uma
Igreja de contrastes: por um lado, estão ainda muito presentes os
sinais de decadência e de mundanismo em que germinara a Reforma
protestante; por outro lado, reforçavam-se, no interior do próprio
catolicismo, as tendências que aceleraram a renovação eclesial e que
viriam a consubstanciar-se no programa reformador do Concílio de
Trento, reunido em três sessões entre 1545 e 15632.
Sinais de vontade de reforma, a nível do próprio papado, encontram-se já em Clemente VII (1523-1534) que ousou cortar com
o estilo mundano da corte papal de Leão X, seu antecessor. Com
efeito, este pontífice manifestou-se atento às exigências dos grupos
religiosos mais autênticos, apoiou a reforma das ordens religiosas e
aprovou as duas primeiras ordens de clérigos regulares: os teatinos
e os barnabitas. Ocupou-se, igualmente, das condições necessárias
para a admissão à ordenação sacerdotal e deu início à reforma do
clero diocesano em Itália e outros países.
Com Clemente VII, a partir da aprovação dos primeiros clérigos
regulares e reconhecida a necessidade do estabelecimento de condições
mais rigorosas na admissão à ordenação, começou a emergir uma das
tendências fundamentais da Reforma católica: a necessidade de reforçar a identidade sacerdotal na sua dimensão eminentemente pastoral.
Não faltou a Clemente VII a percepção da importância de promover a reforma de todo o clero, incluindo bispos e cardeais. No
entanto, uma tal reforma, nas circunstâncias de então, só um concílio a poderia decretar e impor. Essa visão global, aliada ao projecto
Sobre o catolicismo nesta época, veja-se Mario Fois, “A Igreja europeia na
época da fundação da Companhia de Jesus”, in A Companhia de Jesus e a Missionação no Oriente, Lisboa, Brotéria-Fundação Oriente, 2000, pgs. 15-34.
2
Francisco Xavier, o missionário
71
de convocação de um concílio, ficou a dever-se a Paulo III (15341549), seu sucessor.
Efectivamente, Paulo III reformou o colégio cardinalício, partindo daí para a convocação do Concílio de Trento. É verdade que
tinham existido cardeais reformadores escolhidos por Leão X e Clemente VII, mas permaneciam excepções. Foi Paulo III quem transformou o colégio cardinalício, de modo a torná-lo um verdadeiro
motor de renovação da Igreja, como se confirmaria pela eleição de
pontífices como Marcelo II, em 1555, e Paulo IV, que lhe sucedeu
no mesmo ano.
A reforma decretada pelo Concílio de Trento viria a recuperar a
figura do bispo-pastor como também a do sacerdote-pastor. Foi essa
a orientação das primeiras propostas e dos debates teológicos que
se concretizaram nos decretos tridentinos. Nessa mesma linha, inscreve-se a aprovação por Paulo III, em 1540, de duas novas ordens
de clérigos regulares: os jesuítas e os somascos que concretizavam a
figura do sacerdote reformado.
Paulo III, o papa que assistiu ao nascimento da Companhia de
Jesus e a aprovou, não conseguiu realizar, no que se referia à reforma
da Igreja, tudo aquilo que desejava. No entanto, apesar do muito
que deixou por fazer, indicou aos seus sucessores o caminho a percorrer.
A Igreja do tempo de Xavier apresenta-se-nos, assim, numa evolução contraposta: os aspectos negativos vão lentamente diminuindo e o
movimento reformador vai-se fortalecendo até se implantar nos vários
sectores, por acção do Concílio de Trento. O clero será um dos principais beneficiários desta reforma e, nesse sentido, a figura de sacerdote
que Inácio de Loiola e os seus primeiros companheiros concretizam
corresponde à dos primeiros clérigos regulares ou padres reformados.
Tratava-se duma autêntica reabilitação da figura do sacerdote, valorizado, antes de mais, pela sua missão pastoral no seio da comunidade
cristã e pela consagração de toda a vida à causa do Evangelho; um
sacerdote dedicado, acima de tudo, à pregação, à catequese, à celebração dos sacramentos, à direcção espiritual dos fiéis e à educação da
72
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
juventude, de modo a formar cristãos autênticos que correspondessem
com a sua vida às necessidades da Reforma católica.
Além desta visão claramente apostólica do sacerdócio, visão comum a outras ordens religiosas fundadas no século XVI, Inácio de
Loiola imprimiu à Companhia de Jesus a espiritualidade nascida dos
Exercícios Espirituais e dotou-a de uma estrutura orgânica particularmente inovadora. Enquanto outras ordens religiosas contemporâneas – barnabitas, teatinos, somascos ou oratorianos – mantinham
ainda formas monacais, como o coro e o capítulo local, Santo Inácio
afastou da Companhia de Jesus tudo o que pudesse impedir a mobilidade do jesuíta no campo apostólico. Deste modo, por indicação
do papa, ou dos seus superiores, o jesuíta estava pronto para partir,
não só para qualquer região de fiéis católicos mas também para as
regiões de protestantes, ortodoxos ou infiéis, incluindo os países longínquos das Índias orientais e ocidentais.
Esta referência à disponibilidade para a missão faz-nos passar à
segunda pergunta, já formulada no início: que consciência e que
empenho missionários existiam na Igreja no tempo de Xavier?
Um organismo específico da Cúria Romana para a problemática
das missões só surgiria em 1622, com a criação da Congregação de
Propaganda Fide pelo papa Gregório XV. No tempo de Xavier, as
obrigações missionárias da Igreja tinham sido delegadas, em grande
parte, na Coroa portuguesa e na Coroa espanhola, em virtude da
concessão do direito de padroado. É verdade que Xavier partiu para
o Oriente de posse do título de núncio apostólico; no entanto, foi,
antes de mais, como enviado da Coroa portuguesa e em dependência directa e pessoal de D. João III que assumiu o seu trabalho evangelizador no Oriente.
Pelo direito de padroado, o rei de Portugal, na sua qualidade de
governador e administrador da Ordem de Cristo, tinha-se tornado o
primeiro responsável pela evangelização dos territórios ultramarinos
e pela organização e manutenção das igrejas locais. Este direito de
padroado, que se foi consolidando pouco a pouco desde o início da
expansão portuguesa, baseava-se numa série de documentos pon-
Francisco Xavier, o missionário
73
tifícios entre os quais há três que merecem ser assinalados. A 8 de
Janeiro de 1455, o papa Nicolau V, com a bula Romanus Pontifex,
concedeu ao rei de Portugal o direito de enviar missionários e de
fundar igrejas, mosteiros e outros lugares pios, nos novos territórios
ultramarinos. No ano seguinte, a 13 de Março, Calisto III, com a
bula Inter coetera, confirmou as disposições do seu antecessor e concedeu a jurisdição espiritual à Ordem de Cristo, de que o Infante
D. Henrique era grão-mestre; essa jurisdição era exercida através do
prior-mor de Tomar.
Após a morte do Infante D. Henrique, o Grão-Mestrado da
Ordem de Cristo, embora apenas a título pessoal, ficou sempre de
posse de membros da família real até que o papa Júlio III, a 30 de
Dezembro de 1551, incorporou na Coroa portuguesa, com a bula
Praeclara charissimi, os mestrados das três ordens militares existentes, suprimindo a jurisdição do prior de Tomar que transferiu para
o rei. Ficou assim definido o quadro jurídico em que agiam os reis
de Portugal, percebendo-se, deste modo, a constante invocação do
título de governador e administrador da Ordem de Cristo na documentação real respeitante às missões.
O Padroado conferia à Coroa portuguesa privilégios consideráveis, como a iniciativa de erigir dioceses e o direito de apresentação
dos candidatos ao episcopado e aos outros benefícios eclesiásticos;
mas não eram menores os encargos organizativos e financeiros assumidos3. D. João III foi dos monarcas mais zelosos no cumprimento
das obrigações missionárias da Coroa e Xavier colocou-se inteira e
lealmente ao seu serviço. Sentia-se, em primeiro lugar, instrumento
nas mãos de Deus e, por isso, escrevia: “confio que Cristo Nosso
Senhor me há-de escutar e conceder esta graça, a saber, que Ele empregue este instrumento inútil, que sou eu, para implantar a Sua fé
Cfr. “Padroado”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, direcção
de Carlos Moreira Azevedo, vol. III, [Lisboa] Círculo de Leitores, 2001, pgs.
364-368.
3
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
74
entre os pagãos”4. Ao mesmo tempo, porém, não esquecia que esse
“instrumento inútil” tinha sido colocado, por missão recebida de
Santo Inácio, ao serviço do rei de Portugal.
Apesar da distância a que se encontrava do Oriente, a responsabilidade de D. João III era clara aos olhos de Xavier. Assim, ao
escrever ao rei, a 20 de Janeiro de 1545, afirmava: “Com toda a razão
recomenda insistentemente Vosssa Alteza aos que envia a estas regiões que trabalhem infatigavelmente na propagação da nossa santa
fé e aumento da religião, pois sabe Vossa Alteza que Deus lhe há-de
pedir contas da salvação de uma tão grande multidão de gentes”5.
O “cuidado da consciência” do rei leva Xavier a afirmações desassombradas e exigentes: “Reflicta bem Vossa Alteza e calcule com
exactidão todos os benefícios e bens temporais que, por graça de
Deus, recebe destas Índias. Subtraia à soma total aquilo que nestas
regiões emprega no serviço de Deus e bem da religião. E, assim, estabelecendo uma serena comparação entre os interesses da coroa real e
os de Deus e da Sua glória, faça a repartição que a alma agradecida e
religiosa de Vossa Alteza creia ser boa e justa, tendo cuidado que não
pareça que o Criador de todas as coisas, que tão generoso se mostrou
em conceder-lhe bens, receba de Vossa Alteza uma remuneração
escassa e diminuta”6. Xavier não teme concluir, logo a seguir, num
crescendo de exigência: “Dos abundantes benefícios que de aqui vão
para enriquecer o erário régio, apenas uma pequena parte é destinada por Vossa Alteza a remediar as gravíssimas necessidades espirituais que há nestas regiões”7.
Poucos anos depois, em 1549, Xavier continua no mesmo tom:
“a experiência tem-me ensinado que Vossa Alteza não é poderoso
Carta aos jesuítas de Roma, Goa, 20 de Setembro de 1542, in Cartas e Escritos
Selectos de S. Francisco Xavier, introdução de Mário Martins, S.J., Porto, Livraria
Apostolado da Imprensa, 1952, pg. 19.
5
Carta a D. João III, Cochim, 20 de Janeiro de 1545, in Cartas y Escritos de
San Francisco Javier, Madrid, BAC, 1953, pg.164.
6
Ibidem, pg. 166.
7
Ibidem.
4
Francisco Xavier, o missionário
75
na Índia para acrescentar a fé de Cristo mas é poderoso para levar e
possuir todas as suas riquezas temporais”8. Com alguma desilusão,
afirma, na mesma ocasião, não ter esperança de ver cumprida na
Índia a legislação que D. João III pudesse vir a estabelecer em favor
da cristianização. Estas dificuldades sentidas na Índia, em territórios
onde não encontra o apoio que esperaria das autoridades portuguesas, acabam por ser ocasião e uma das motivações apresentadas para
partir para o Japão, em busca de um fruto maior9.
Xavier é exigente com D. João III no cumprimento das suas
obrigações missionárias, alerta-o corajosamente para os desvios
que existiam na administração portuguesa, sente-se por vezes insatisfeito mas, simultaneamente, sabe manifestar, com delicadeza,
o seu reconhecimento. Escreve, em 1548: “nada mais desejo do
que trabalhar e morrer nestas partes a fim de ajudar a descarregar
a consciência de Vossa Alteza por causa do grande amor que tem à
nossa Companhia”10.
Xavier não se eximia a apresentar as críticas que se justificassem;
no entanto, ao mesmo tempo, e havendo razões para isso, reconhecia com gratidão os apoios recebidos dos representantes portugueses
no Oriente. Quando, em 1549, em Malaca, se preparava para partir
para o Japão, Xavier dirige-se a D. João III e não poupa elogios a
D. Pedro da Silva: “O capitão desta fortaleza nos recebeu aqui a
todos, com muito amor e caridade, oferecendo-se a nos favorecer e
ajudar nesta viagem que íamos fazer, por ser muito serviço de Deus
e de Vossa Alteza. [...] Mandou-nos dar todo necessário para nossa
viagem, muito cumpridamente, e para quando chegarmos a Japão,
assim para nosso mantimento, para algum tempo, como para fazermos uma casa de oração, para dizermos missa”11. E acrescentava,
ainda, para informação do rei: “Esta conta vos dou, tão particularCarta a D. João III, Cochim, 26 de Janeiro de 1549, Ibidem, pg. 304.
Ibidem.
10
Carta a D. João III, Cochim, 20 de Janeiro de 1548, Ibidem, pg. 240s.
11
Carta a D. João III, Malaca, 20 de Junho de 1549, in Cartas e Escritos de S.
Francisco Xavier, cit., pg.122s.
8
9
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
76
mente, a Vossa Alteza, para que saiba as muitas honras, e mercês,
e caridades que nos fazem os seus fiéis e leais vassalos da Índia. É
certo, Senhor, que posso dizer, com verdade, que nunca homem
veio à Índia que tantas honras e mercês recebesse dos portugueses
da Índia, como eu”12.
Mesmo no Japão, tão longe dos territórios controlados por Portugal, Xavier conta com o apoio da Coroa. Escreve, numa longa carta aos jesuítas da Europa, em Janeiro de 1552: “Em todo este tempo
que estivemos no Japão, que seria mais de dois anos e meio, sempre
nos mantivemos com as esmolas que o cristianíssimo rei de Portugal
nos manda dar nestas partes; porque, quando fomos ao Japão, mandou-nos dar mais de mil cruzados. Não se pode crer quão favorecidos somos por Sua Alteza e o muito que connosco gasta ao dar tantas
esmolas para colégios, casas e todas as outras necessidades”13.
Face a afirmações como estas, quando nos perguntamos que tipo
de missionário foi Francisco Xavier, temos de responder que, apesar
das dificuldades enfrentadas, Xavier foi clara e assumidamente um
missionário ao serviço da Coroa portuguesa e do seu padroado.
Foi também um missionário que sempre quis ir mais longe, em
busca do maior fruto. Este seu desejo de maior serviço traduz-se
em várias e repetidas expressões: “fazer muito fruto”; “fazer infinito
fruto”; “acrescentar muito os limites da Santa Madre Igreja”; “fazer
muito serviço a Deus Nosso Senhor”; “acrescentar a nossa santa fé”;
“acrescentar a lei de Nosso Senhor Jesus Cristo”14.
Vejamos, em particular, o contexto em que usa estas expressões,
tão próprias de quem tinha sido formado na escola dos Exercícios Espirituais. Em 1541, pouco antes da partida de Lisboa para Goa, Xavier
escreve a Santo Inácio: “partimos esta semana para as Índias; e, atendendo à muita disposição que há naquelas terras para converter almas,
Ibidem, pg. 123.
Carta aos jesuítas da Europa, Cochim, 29 de Janeiro de 1552, in Cartas y
Escritos de S. Francisco Javier, cit., pg. 415.
14
Ibidem, pgs. 75, 101, 179, 235, 351, 418.
12
13
Francisco Xavier, o missionário
77
segundo nos dizem todos os que lá têm estado muitos anos, esperamos
em Deus nosso Senhor que havemos de fazer muito fruto”15.
Em 1545, escreve de Cochim ao P. Simão Rodrigues a pedir mais
missionários e dá a seguinte justificação: “Mandai muita gente para a
Índia porque acrescentarão muito os limites da Santa Madre Igreja”16.
O desejo de acrescentar os limites da Igreja não fica confinado à Índia, a Malaca ou às Molucas. É em relação ao Japão e à China que o
entusiasmo de Xavier se manifesta mais forte e frequentemente. Por
isso, em 1548, escreve: “Todos os comerciantes portugueses que vêm
do Japão me dizem que, se lá fosse, faria muito serviço a Deus nosso
Senhor, mais do que com os gentios da Índia, por ser gente de muita
razão. Parece-me, pelo que vou sentindo dentro da minha alma, que
eu ou algum da Companhia iremos ao Japão antes de dois anos”17.
Essa atenção ao que sentia na alma – um processo de verdadeiro
discernimento espiritual – leva Xavier à decisão de partir para o Japão.
Em 1549, confirma esse propósito a Santo Inácio: “determinei ir a esta
terra com muita satisfação interior, parecendo-me que entre tal gente
se pode perpetuar por eles mesmos o fruto que em vida os da Companhia fizermos”18. Estas palavras constituíam uma verdadeira profecia,
se pensarmos que, do século XVII ao século XIX, o cristianismo no
Japão haveria de subsistir sem qualquer contacto com o exterior.
Poucos meses depois da chegada ao Japão, mantém-se confiante,
já pensa em ir mais além, e afirma: “entre todas as terras que estão
descobertas, em nenhuma se pode fazer tanto fruto nem perpetuarse a Companhia como na China e no Japão”19.
Sempre disposto a alargar as fronteiras da sua acção missionária,
Xavier programa para 1552 a viagem à China. Nesse ano, escreve aos
Carta a Santo Inácio de Loiola, Lisboa, 18 de Março de 1541, Ibidem, pg. 75.
Carta ao P. Simão Rodrigues, Cochim, 27 de Janeiro de 1545, Ibidem, pg.
15
16
179.
Carta aos jesuítas de Roma, Cochim, 20 de Janeiro de 1548, Ibidem, pg. 235.
Carta a Santo Inácio de Loiola, Cochim, 12 de Janeiro de 1549, Ibidem, pg.
17
18
281.
Carta ao P. Paulo, Kagoshima, 5 de Novembro de 1549, Ibidem, pg. 389.
19
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
78
jesuítas da Europa: “Creio que, neste ano de 52, irei lá, onde está o
rei da China, porque é terra onde se pode muito acrescentar a lei de
Nosso Senhor Jesus Cristo; e se aí a recebessem seria grande ajuda
para que no Japão desconfiassem das seitas em que acreditam”20.
Xavier não se limitou a abrir novos caminhos mas foi também
um verdadeiro organizador. Os companheiros que se lhe iam juntando, vindos da Europa ou recrutados localmente, foram distribuídos pelas novas comunidades cristãs, muitas vezes com instruções
bem precisas, para prosseguirem e consolidarem o trabalho iniciado.
A este propósito, vale a pena lembrar as recomendações feitas pelo
Apóstolo do Oriente sobre as qualidades exigidas aos missionários.
O retrato do missionário ideal varia claramente, conforme as
regiões a que Xavier se referia. Para as regiões da Índia – escreve a
Santo Inácio em 1545 – eram necessárias “forças corporais, juntamente com as espirituais”, mas eram escusadas muitas letras porque
o trabalho missionário centrava-se no ensino de orações, na visita às
aldeias e no baptismo das crianças21.
Em 1546, lembra aos jesuítas da Europa que a vontade de viver e
morrer entre as populações locais era mais importante do que as letras
e o talento22. Em 1549, Xavier é mais explícito no rol das características indispensáveis, ao escrever a Santo Inácio: “Os índios desta terra,
quer mouros quer gentios, todos os que até agora conheci, são muito
ignorantes; para os que andarem entre os infiéis, trabalhando na sua
conversão, não são necessárias muitas letras mas sim muitas virtudes:
obediência, humildade, perseverança, paciência, amor ao próximo e
grande castidade, devido às muitas ocasiões que há para pecar”23.
Carta aos jesuítas da Europa, Cochim, 29 de Janeiro de 1552, Ibidem, pg.
20
418.
21
Carta a Santo Inácio de Loiola, Cochim, 27 de Janeiro de 1545, Ibidem, pg.
169.
Carta aos jesuítas da Europa, Amboína, 10 de Maio de 1546, Ibidem, pg.
22
202.
Carta a Santo Inácio de Loiola, Cochim, 14 de Janeiro de 1549, Ibidem, pg.
23
288.
Francisco Xavier, o missionário
79
Ainda no mesmo ano de 1549, Xavier convida o P. Simão Rodrigues a juntar-se-lhe no Oriente e pede-lhe que não traga companheiros demasiado jovens, acrescentando: “Aqui desejamos gente de
trinta a quarenta anos, dotada de virtudes, especialmente de humildade, mansidão, paciência e castidade”24.
Para as cidades de Goa e de Cochim, Xavier pedia quem tivesse
talento para confessar e orientar os Exercícios Espirituais25 e, para as
fortalezas portuguesas no Oriente, pregadores que catequizassem os
diferentes grupos que aí residiam26.
Para os missionários destinados ao Japão e à China, Xavier pede
qualidades particulares. Ao contrário do que afirmava em relação a
outras regiões do Oriente, nestes dois países os missionários tinham
de ser letrados “para responderem às muitas perguntas que fazem
os gentios discretos e avisados, como são os chineses e japoneses”27.
Mais em particular, a respeito dos missionários a enviar ao Japão,
defende que devem ser provados e exercitados nas perseguições do
mundo e acrescenta, explicando em pormenor: “Também é necessário que tenham letras para responderem às muitas perguntas que
fazem os japoneses. Seria bom que fossem bons artistas; e nada se
perderia se fossem sofistas para que, nas disputas, fizessem cair os japoneses em contradição; que saibam também alguma coisa da esfera
porque os japoneses apreciam muito o conhecimento dos movimentos do céu, dos eclipses do Sol ou das fases da Lua; como se forma a
água da chuva, a neve e o granizo, os trovões, relâmpagos, cometas e
outras coisas da natureza. Muito aproveita a declaração destas coisas
para ganhar a vontade do povo”28.
Carta ao P. Simão Rodrigues, Cochim, 2 de Fevereiro de 1549, Ibidem, pg.
24
317.
Carta a Santo Inácio de Loiola, Cochim, 27 de Janeiro de 1545, Ibidem, pg.
25
170.
Carta ao P. Simão Rodrigues, Cochim, 20 de Janeiro de 1548, Ibidem, pg.
26
252.
Carta a D. João III, Goa, 8 de Abril de 1552, Ibidem, pg. 463.
Carta a Santo Inácio de Loiola, 9 de Abril de 1552, Ibidem, pg. 466s.
27
28
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
80
Com estas recomendações de 1552, relativas às qualidades dos
missionários, Francisco Xavier – como tinha feito ao longo de todos
os anos no Oriente – continuava a abrir caminhos que muitas outras
gerações de jesuítas haviam de percorrer. De facto, a sua acção foi
prosseguida por levas sucessivas de missionários que diversificaram,
ainda mais, as regiões alcançadas e que, muitas vezes, tinham o
Apóstolo do Oriente como modelo inspirador. O caso de S. João
de Brito é apenas um exemplo, entre muitos. Esta rápida expansão
levou à consolidação da presença da Companhia de Jesus em Goa,
no Malabar, no Japão e na China e mostra o fascínio que as missões,
particularmente as do Oriente, exerceram sobre muitas gerações de
jesuítas. Punha-se em prática, desse modo, o que já se estabelecia na
Fórmula da Companhia de Jesus aprovada pelo papa Paulo III, em
1540: a disponibilidade para partir e trabalhar em qualquer parte do
mundo, entre fiéis ou infiéis, “incluindo os que habitam nas regiões
que chamam Índias”29. Essa disponibilidade encontra-se bem documentada nas cerca de 16.000 cartas, escritas entre 1583 e 1770, e
conservadas no Arquivo Romano da Companhia de Jesus, em que
os subscritores pedem ao Padre Geral para serem enviados para as
missões.
Uma última palavra sobre datas coincidentes. Os 450 anos
da morte de S. Francisco Xavier coincidem com os 450 anos do
nascimento de Matteo Ricci, o primeiro jesuíta a conseguir fixar
residência em Pequim. São dois acontecimentos que um observador
de 1552 não poderia associar. Na verdade, porém, foi Ricci quem
finalizou, em 1601, quase cinquenta anos depois, a viagem missionária que a morte obrigou Xavier a interromper, quando se julgava
próximo de materializar o seu último sonho: a entrada na China.
Que grande sonho missionário, um sonho que precisou de cinquenta anos para ser concretizado! Oxalá não faltem na Igreja, também nos nossos dias, sonhos de uma grandeza assim.
Fórmula da Companhia de Jesus, nº 3.
29
Segunda Parte
UM DIÁLOGO
QUE SE VAI ABRINDO
XAVIER
E a Europa?
Apelo às Universidades europeias e instrução acerca do Oriente.
O estabelecer de pontes entre Ocidente e Oriente.
António Júlio Trigueiros, sj
“De que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro
se vier a perder a sua alma”
Na definição do filósofo francês Jacques Derrida, toda a cultura é
desigual a si própria... Diremos que nenhuma cultura se pode fechar
sobre si mesma pois é da própria etimologia da palavra o exercitar-se,
o colocar-se em questão, em desafio, em aperfeiçoamento constante.
Quando nos “cultivamos”, repetimos uma e outra vez um “exercício” conhecido para que, no futuro, saibamos estar preparados para
o “exercício” do desconhecido.
Gostaria que tal regresso à etimologia do termo “cultura” servisse
de preâmbulo a esta breve reflexão sobre as passagens mais significativas daquelas cartas de Xavier, que constituem um fundo que podemos designar por “Apelo às Universidades”. Subjacente ao vigor
do seu trabalho missionário, não podemos esquecer a insistência,
em Xavier, da sua consciência humanista, renascentista, de homem
de Letras, e de cultor do saber universitário. É essa que transparece
também, a espaços, ao longo das suas cartas, como que a recordar
que foi do interior da Universidade, bem do interior da sua condição
de mestre promissor da academia de Paris, que Xavier foi chamado
a colocar-se ao serviço da Igreja.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
84
Quando em 1525 este jovem navarro entrou na Universidade de
Paris, e mais precisamente no Colégio de Santa Bárbara, deparou-se
com a efervescência típica dos momentos de crise. Dois anos antes,
as teses luteranas haviam sido publicamente condenadas pela Academia parisiense e pelo Parlamento francês, tendo as obras de Lutero e
Melanchton sido queimadas na ilha de Notre Dame. As chamas desta fogueira, porém, ainda não se tinham extinguido. Por toda a Paris,
o centro da mais dilecta filha da Igreja, as teses reformistas e anti-reformistas, bem como as obras de Erasmo, eram pretexto para acesas
discussões, condenações mútuas entre académicos e intermináveis
diatribes. Poderíamos escolher como metáfora “geográfica” desta
tensão e da germinação de ideias e projectos que dela provinham, a
posição, frente a frente na Rue des Chiens, do Colégio de Santa Bárbara – o mesmo que, sob a direcção do humanista português Diogo
de Gouveia, foi elevado a centro da vanguarda renascentista em Paris
– e do Colégio de Montaigu – reduto da escolástica mais ortodoxa
e avessa a todos os indícios de mudança. Quando, anos mais tarde,
Inigo de Loyola atravessou a rua, trocando Montaigu por SantaBárbara, foi como se trocasse, como sugerem certos comentadores,
Esparta por Atenas, a Idade Média pelo Renascimento, ou o Colégio
das Macerações pelo Colégio das Luzes1. Esta opção iria marcar indelevelmente todo o projecto da futura Companhia de Jesus, e a sua
determinação em ser filha da sua época, atenta aos sinais dos tempos
e um produto assumido do Renascimento. A biografia de Xavier
dará disso prova.
Aluno brilhante, atleta premiado, Xavier é investido a 3 de
Fevereiro de 1530 como magister artium (Mestre em Artes) com
“licença para ensinar, dirigir, disputar e definir e para exercitar actos
académicos e magistrais da Faculdade de Lógica, Física e Metafísica em
Paris e em toda a Terra”2. Começará a fazê-lo precisamente em Paris,
Cf. J. Lacouture, Jésuites, Une Multibiographie: Les Conquérants, Paris, Éditions du Seuil, 1991, p. 77.
2
Ibid.
1
Xavier. E a Europa?
85
no Colégio de Beauvais como professor de filosofia, cargo a que a
confirmação solene, em 1531, da sua condição de hidalgo, conferiria
ainda mais prestígio. O jovem Xavier tinha “o espírito vivo, o humor
agradável, a alma nobre, o coração elevado, mas era orgulhoso, vaidoso
e ambicioso”3. Tal como o seu futuro companheiro Pedro Fabro,
Xavier nutria forte interesse e curiosidade por aquilo que mais tarde
iria apelidar de “seduções dos reformados”. Era o tempo das “más
companhias” dos mestres erasmianos do Collége Royal des Trois Langues – o futuro Collége de France – com quem, aliás, sentia grandes
afinidades. Homens como Ramus, Valable, Paradis, bem como uma
galeria de amigos humanistas helenizantes e judaízantes.
É Inácio de Loyola que o resgata a tais influências – ou melhor,
que o ajuda a integrar tais influências num recentramento na fé católica – ao termo de dois anos de um contínuo aprofundamento dos
laços de amizade mas também de um intenso confronto espiritual e
de um combate sem tréguas entre duas formas de encarar o mundo.
É finalmente em 1533 que Francisco, o atleta invencível, se declara vencido perante o bem mais frágil mas incansável campeão de
Loyola. De que serve ganhar o mundo de uma “orgulhosa, vaidosa e
ambiciosa” carreira universitária no centro nevrálgico do Ocidente,
se o que se quer como essencial não está lá? Esta é a questão que o
transportará à experiência fundante dos Exercícios Espirituais sob a
direcção do próprio Inácio. Com a sua carreira promissora Xavier
abandonaria, também, a um tempo, a sua altivez justificada e as suas
simpatias reformistas. Não abandonará nunca, porém, a sua crença
profunda nas virtualidades da Universidade europeia, sobretudo no
seu modelo parisiense. É a ela que apelará, uma e outra vez, dos
confins da Ásia, a fim de nela despertar uma apaixonada curiosidade
pelo gentio e a generosidade da partilha dos saberes do Ocidente.
Com Xavier, em certo sentido, estende-se e põe-se à prova o próprio Renascimento. À redescoberta das raízes antigas da civilização
Hercule Rasiel da Silva, Histoire del’admirable Dom Inigo de Guipuzcoa, La
Haye, chez la veuve Le Vier, 1736.
3
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
86
ocidental deveria somar-se, numa aventura de que a Companhia
de Jesus será pioneira e catalisadora, a descoberta da alteridade
cultural. À descoberta das raízes da civilização europeia sucede-se
a descoberta de outras civilizações. À busca no tempo sucede-se a
busca no espaço. Mas até que ponto estaria um académico europeu
como Xavier preparado para esse encontro? Citamos o orientalista
Jean Filliozat, em artigo publicado em 1953: “o humanismo da Renascença não predispunha à descoberta espiritual do Oriente. Ele não
se abria à humanidade inteira. Era greco-romano mas não universal.
Abrindo perspectivas infinitas sobre os antigos tesouros reencontrados, as
humanidades eram estudos para julgar plenamente o homem mas não
preparavam para o estudo de todos os homens...”4.
A façanha de Xavier, nos seus limites como nas suas vitórias,
personifica bem este desafio: de que vale a capacidade da Europa
renascentista, a ductilidade da Universidade – emblema máximo das
capacidades dessa mesma Europa – e, finalmente o vigor pastoral da
Igreja, se não forem capazes de rasgar, a Oriente, o véu do desconhecido?
Na repetição de apelos à responsabilidade acrescida da Universidade europeia perante o mundo, pela primeira vez perante o mundo,
na estreia daquilo a que poderíamos chamar uma consciência planetária, Francisco Xavier retém a memória do académico empenhado.
Fazendo jus aos termos da sua investidura como Mestre em Artes, na
Costa da Pescaria, como em Malaca, como em Yamaguchi, Xavier
continua a fazer o exercício pleno da licença para “ensinar, dirigir,
disputar e definir”, precisamente onde sentia que tal licença seria
mais frutífera e aplicando-a, agora, ao que considerava ser o mais
fecundo dos conhecimentos, o da lei de Deus.
Deve entender-se também o percurso de Xavier pela Ásia – e sobretudo a sua passagem pelo Japão – como testemunho de uma tensão permanente entre o seu empenho – tanto mais evidente quanto
mais longa se ia tornando esta estadia – num diálogo efectivo entre
4
Citado por Lacouture, op. cit., p.167.
Xavier. E a Europa?
87
culturas e o seu zelo apostólico e missionário “pela salvação do próximo”. Como acabámos de ouvir, se na Índia Xavier era sobretudo um
orador fervoroso em língua ainda estranha, se da sua passagem pelas
terras dos brâmanes pouco mais viu senão as estrelas, como sugere
um dos seus biógrafos5, o Japão constituiria para ele oportunidade
para a descoberta de uma sensibilidade realmente antropológica,
aquela que viria a fazer a glória da Companhia de Jesus ao ser prosseguida por homens como Matteo Ricci, Roberto Nobili ou Pierre
Charles. No Japão chegara a altura para ver, escutar e sentir. Seria
das mãos deste atleta e viajante persistente, através das exortações
contidas nas suas cartas, que o cristianismo aprenderia uma outra
forma de evangelização. Com Xavier, supera-se o espírito de cruzada, de guerra santa e a recusa sistemática do outro como interlocutor. O cristianismo torna-se sinónimo de comunicação, também no
sentido de procurar o comum, a ponte, o reconhecimento do outro
e o reconhecimento de mim no reconhecimento de Cristo. Troca,
reciprocidade, intercâmbio.
Num artigo publicado na revista Grande Reportagem do passado
mês de Outubro, descrevem-se os métodos ensinados na Universidade Internacional de Columbia, da Carolina do Sul, EUA. Trata-se
de uma universidade cristã evangélica com o único objectivo de formar missionários para combater – e é mesmo esse o termo empregue
– o Islão6. Considere-se a diferença entre este modo guerreiro de
entender a propagação de uma certa interpretação do evangelho com
o cuidado antropológico representado por Francisco Xavier. Para o
apóstolo do Oriente, não se trata de invadir mas de discutir, já não
de impor mas de propor, não são mãos fechadas que se abatem sobre
uma cultura que se hostiliza mas mãos abertas que aguardam uma
resposta. A resposta de um outro que queremos como outro. Como
um outro de nós.
5
6
Cf. Lacouture, p.157.
Cf. Grande Reportagem, Outubro, 2003.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
88
Mas qual a via para o conseguir? É aqui que melhor se revela
a confiança renascentista de Xavier. Como insiste em mais do que
uma vez, será a razão, as “boas razões”, que melhor apelarão àquilo
que ele, ainda em terras da Índia, previa já ser o espírito nipónico.
Os japoneses são curiosos, “extraordinariamente curiosos de aprender”, talvez mesmo a “gente mais curiosa de todas as terras até agora
descobertas”.
Esta verdadeira viragem é plenamente assinalada na carta que
Xavier escreve aos companheiros de Roma a 20 de Janeiro de 1548.
Ao primeiro Japonês que conhece, ainda em Malaca, de seu nome
Anjirô, pergunta se os habitantes do Japão se fariam cristãos “se eu
fosse contigo à tua terra?”. Ao que o Japonês responde: “os do meu país
[Kagoshima] não se fariam imediatamente cristãos. Primeiro far-teiam muitas perguntas e veriam aquilo que tu lhes responderias, aquilo
que tu compreendes, e sobretudo se tu vives de acordo com aquilo que
dizes. E se tu fizesses as duas coisas, falar bem e satisfazer as suas perguntas e viver sem que eles encontrem motivo de repreender-te, cerca de meio
ano mais tarde depois de te terem conhecido, o rei e a gente nobre, bem
como toda a outra gente de discernimento, se fariam cristãos. São pessoas
que se comportam apenas segundo a razão.” 7
“Apenas segundo a razão”: no Japão o que fazia falta não eram
militares ou espiões da fé, mas homens preparados para ensinar e
aprender, e sobretudo capazes da coerência entre o que se diz e o
que se faz, aquela que, segundo Anjirô, tanto tocava a razão dos Japoneses. Eram esses mesmos que abundavam pelas Universidades da
Europa. Se fossem, também eles, tocados pelo discernimento e por
um verdadeiro desejo de servir, deveriam seguir as rotas dos Portugueses e vir aos lugares onde, mais do que em qualquer outro ponto
da Terra, melhor cumpririam a sua dedicação à razão e à fé.
Atente-se ao modo como, de Cochim e em carta datada de 15
de Janeiro de 1544, isto é, apenas dois anos após a sua chegada ao
Oriente, Xavier tinha já bem presente a necessidade de juntar à ge7
G. Schurhammer, Francis Xavier, His Life, His Time, 4 vols., Roma, 1973.
Xavier. E a Europa?
89
nerosidade do missionário a fundamentação própria do universitário. E mais do que isso, a consciência da vacuidade, da inutilidade
mesmo, de um trabalho académico que se limita a ser instrumento
da vaidade própria, ou da cupidez de uma Europa que desse modo
se fechava sobre si mesma.
E passo a citar essa famosa carta que tanto impacto viria a causar8:
“Muitos cristãos se deixam de fazer nestes lugares, por não haver pessoas que se ocupem de coisas tão pias e santas. Muitas vezes me movem
pensamentos de ir aos estudos das nossas terras, dando gritos, como um
homem que perdeu o juízo e principalmente à Universidade de Paris,
dizendo na Sorbonne aos que têm mais letras do que vontade para se disporem a frutificar com elas: ‘quantas almas deixam de ir para a glória e
vão para o inferno pela vossa negligência’9. E assim como vão estudando
em letras, se estudassem na conta que Deus Nosso Senhor lhes pedirá
delas e do talento que lhes tem dado, muitos se moveriam recorrendo
àqueles meios e àqueles exercícios espirituais que ajudam a conhecer e
a sentir dentro das suas almas a vontade divina, conformando-se mais
com ela do que com as suas próprias afeições10, dizendo: ‘Eis-me aqui
Senhor, que quereis que faça? Manda-me para onde quiseres e, se for
necessário, mesmo entre os indianos’. Quanto mais consolados viveriam
e com grande esperança da misericórdia divina se, à hora da morte, se
apresentassem ao juízo particular, do qual ninguém pode escapar, alegando em seu favor: ‘Ó Senhor, deste-me cinco talentos, e eis que ganhei
outros cinco’ (Mt. 25, 20). Eu temo que muitos daqueles que estudam
nas Universidades se apliquem mais por obter mediante o estudo, dignidades, benefícios ou dioceses, que não pelo desejo de conformar-se
àquelas necessidades que as dignidades e o estado eclesiástico requerem.
Os que estudam costumam dizer: ‘Desejo ter letras para alcançar algum
G. Schurhammer, op.cit.
Vemos aqui uma clara referência à 1ª anotação dos Exercícios Espirituais sobre o modo de dispor a alma a tirar todos os afectos desordenados e a encontrar a
vontade divina.
10
Cf. 1ª e 2ª anotação dos EE
8
9
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
90
benefício ou dignidade eclesiástica com elas e depois, com tal dignidade,
servir a Deus’ ”11 .
E continua a carta de Xavier: “De modo que, segundo os seus afectos desordenados, fazem as suas eleições temendo que Deus não queira
aquilo que esses querem, de modo que os seus afectos desordenados não
deixam esta eleição nas mãos de Deus Nosso Senhor” 12.
E termina revelando a sua intenção de se dirigir aos seus velhos
professores da Universidade de Paris: “Estive quase para escrever à
Universidade de Paris, ou pelo menos ao Mestre De Cornibus13 e ao
Doutor Picardo14, quantos milhares de pagãos se converteriam se por
aí houvesse operários, para que fossem solícitos a procurar e favorecer as
pessoas que ‘não procuram o seu próprio benefício, mas o de Jesus Cristo’
(Fil. 2, 21)”.
Esta carta notável, dirigida aos companheiros de Roma após um
ano de intenso trabalho junto dos pescadores de pérolas da Costa
da Pescaria, iria transformar-se, nomeadamente no uso que dela iria
fazer Pedro Fabro, num eficiente libelo a favor da acção missionária
da Companhia de Jesus. A excelência desta acção e, sobretudo, a
gratificação que ela traz consigo estão bem presentes no modo como
Xavier encerra a epístola. Cito:
E achamos aqui de novo uma claríssima alusão aos Exercícios Espirituais, ao
Segundo Binário de homem da Segunda semana (EE, 154).
12
De novo o texto dos Exercícios, no “Preâmbulo para fazer a eleição”, nº.
169. Eis as palavras de Inácio: “Assim também há outros homens que primeiro
querem ter benefícios e depois servir neles a Deus, de maneira que estes não vão
directos a Deus mas querem que Deus venha direito aos seus afectos desordenados
e por conseguinte fazem do fim meio e do meio fim, de modo que o que deveriam
tomar primeiro, tomam depois.”
13
Pierre de Cornibus, OFM, nascido na Borgonha cerca de 1480, doutor da
Universidade de Paris em 1524, para além de ter sido professor de Xavier, de Fabro
e de Bobadilla, foi um grande amigo da Companhia. Morreu em Paris em 1555.
14
François Le Picart (Picardus), nascido em 1504 em Paris, Mestre de Teologia desde o ano de 1534, célebre orador e feroz adversário dos protestantes, foi
também ele professor de Xavier, Fabro e Bobadilla e muito amigo da Companhia.
Morreu em Paris em 1556, em odor de santidade.
11
Xavier. E a Europa?
91
“Destas partes não sei mais que escrever-vos senão que são tantas as
consolações que Deus Nosso Senhor comunica aos que andam entre estes
gentios, convertendo-os à fé de Cristo, que se alegria há nesta vida, pode
dizer-se que é esta. Muitas vezes me acontece ouvir dizer a uma pessoa
que anda entre estes cristãos: ‘Ó Senhor, não me dês tantas consolações;
e já que as dais por vossa infinita bondade e misericórdia, levai-me à
vossa santa glória, pois é uma grande pena viver sem ver-vos, depois que
tanto vos comunicais intimamente às vossas criaturas. Ó! Se os que estudam letras tantos trabalhos dedicassem a gostar delas quantos os dias e
as noites trabalhosas que gastam em sabê-las. Ó se aquelas alegrias que o
estudante procura ao entender o que estuda as procurasse no dar a sentir
ao próximo o que é necessário para conhecer e servir a Deus, tanto mais
consolados e preparados se achariam para dar conta quando Cristo lhes
perguntasse: ‘Dá-me conta da tua administração.’ (Lc 16, 2)”15.
A recepção desta carta provocou uma forte impressão e suscitou
um grande interesse. Primeiro em Coimbra, onde foi imediatamente traduzida para o Latim, e depois por toda a Europa. A tradução
francesa seria publicada em 1545. O apelo não seria em vão.
É em 1545, juntamente com muitos outros letrados, que Jerome
Nadal, por exemplo, decide entrar na Companhia de Jesus. Causa
directa da sua decisão: a comoção sentida pela leitura da carta de
Francisco Xavier. Nadal, judeu converso espanhol, estudara latim,
grego, hebraico e filosofia em Alcalá, matemática e teologia em Paris,
tendo sido contemporâneo de Inácio e de Xavier. Fugido de Paris
devido a um édito de expulsão dos espanhóis, refugiou-se em Avignon onde as suas qualidades de orador e de especialista em hebraico
atrairiam as atenções da colónia hebraica, que chegou a propor-lhe
fazê-lo Grande Rabino. Nadal recusou. A carta de Xavier iria surpreendê-lo, anos mais tarde, já sacerdote e professor de sagrada escritura
na Escola Catedralícia de Palma de Maiorca. Como escreve na sua
Crónica, a carta de Xavier fê-lo reconhecer inteiramente a graça de
Deus, decidindo-se então a partir para Roma.
15
G. Schurhammer, op.cit.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
92
A insistência de Xavier não ficaria por aí. A 20 de Janeiro de
1549, após três anos em Malaca e já em vésperas da sua partida
para o Japão, voltaria a exortar: “Depois de ter experiência do que [no
Japão] existe, escreverei bastante minuciosamente, seja à Índia seja ao
Colégio de Coimbra e de Roma, e a todas as Universidades, principalmente a de Paris, para lhes recordar que não vivam em tanto descuido,
fazendo tanto fundamento nas letras, descuidando-se das ignorâncias
dos gentios.”16
A estas duas cartas deverá somar-se uma terceira (Xavier morreria
dez meses após a sua expedição), escrita de Cochim a 29 de Janeiro
de 1552. É nela que se faz o relato, minucioso e escrupuloso, de
três anos de contacto com a realidade japonesa. No Japão, Xavier
encontraria aquilo que lhe faltava na Índia: um povo culto, cortês,
ávido de conhecimentos, movendo-se por “boas razões” e desconfiado da superstição. Com eles iria travar longas discussões sobre a
natureza da divindade, a lei moral, a criação, o porquê da redenção e
da historicidade da revelação. Xavier ganharia o seu respeito e a sua
atenção porque, como o próprio refere, ele trazia mais respostas do
que aquelas que os seus bonzos17 eram capazes de dar. Os japoneses
estavam prontos à conversão porque lhes parecia que “a lei de Deus é
mais chegada à razão do que as suas leis; e também porque viam que nós
respondíamos às perguntas que nos faziam e eles não sabiam responder
às que nós lhes fazíamos contra as suas leis”18. Por Xavier ficaram a saber que o mundo era esférico, reconheceram a validade das suas teses
sobre o curso do sol, a razão de ser dos cometas, dos relâmpagos, da
chuva e da neve, “e ficavam muito contentes e satisfeitos, tendo-nos por
homens doutos, o que ajudou não pouco para darem crédito às nossas
palavras.”19. As dúvidas que os seus interlocutores lhe colocavam,
por outro lado, eram indícios daquilo que já não os satisfazia tão
G. Schurhammer, op.cit.
Monges zen.
18
Ibid.
19
Ibid.
16
17
Xavier. E a Europa?
93
claramente. Muitas delas emparceiravam com as mais clássicas questões da teologia ocidental. As mais insistentes provinham da especial
sensibilidade oriental ao culto dos mortos e dos antepassados. Por
que é que um Deus sumamente misericordioso não se lhes tinha
também revelado? Que justiça havia condenado os seus antepassados ao inferno por desconhecimento da revelação? Por que é que a
misericórdia divina não tinha contemplado também os seus pais?
A sagacidade dos japoneses revelava bem a dimensão da tarefa
que se estendia à sua frente. Revelava também o modo e os instrumentos de que essa missão se deveria munir: a razão e a sua capacidade de dar respostas, mas também a competência, que a deve sempre
acompanhar, de levantar questões, de pôr em dúvida, de confrontar.
Essa era a tarefa mais digna de um letrado e numa carta posterior,
datada de 9 de Abril de 1552 e destinada a Inácio de Loyola, Xavier
chega a traçar o perfil deste missionário-dialecta, tendo em conta a
sua própria experiência e o levantamento antropológico e etnológico
que as suas cartas guardavam. Diz ele:
“É também necessário que tenham estudos para responderem às muitas perguntas que lhes farão os Japoneses. Seria bom que fossem bons filósofos e seria bom que fossem bons dialectas para apanharem os Japoneses
em contradição durante as disputas. Para além do mais, deveriam saber
alguma coisa da esfera celeste pois os Japoneses gostam muito de saber os
movimentos do céu, os eclipses do sol, o minguar e o crescer da lua, como
tem origem a água da chuva, a neve e o granizo bem como os trovões, os
relâmpagos, os cometas e outros fenómenos naturais. A explicação destas
coisas ajuda muito para ganhar a benevolência deste povo.”20
A dialéctica ao serviço do apostolado seria recompensada, segundo Xavier, pela mais alta das consolações, e a constante renovação do
apelo às Universidades seria sempre acompanhada pela descrição do
arrebatamento único de que participa aquele que cumpre:
“E prouvesse a Deus que, assim como estas particularidades dos gostos
e dos contentamentos assim se escrevem, assim se pudessem mandar de cá
20
Ibid.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
94
os prazeres e as consolações às universidades da Europa, as quais Deus
só por sua misericórdia nos comunicava: bem creio que muitas e doutas
pessoas fariam outro fundamento do que fazem para empregarem os seus
grandes talentos na conversão das gentes. Sendo sentido o gosto e a consolação espiritual que de semelhantes trabalhos se seguem, e conhecendo
a grande disposição que há no Japão para se acrescentar a nossa santa
fé, parece-me que muitos letrados dariam fim aos seus estudos, cónegos e
outros prelados deixariam suas dignidades e rendas por outra vida mais
consolada do que a que têm, vindo-a buscar ao Japão.”21
Ciente de que o epicentro espiritual da Ásia era a China, Xavier
voltaria para lá as suas últimas atenções. A expedição acabaria por
nunca se completar, e Xavier morreria na praia de San-Cian, ironicamente diante do seu objectivo inalcançado. Um outro projecto, o
da tantas vezes anunciada Instrução às Universidades sobre o Oriente,
ficaria igualmente por terminar.
Parece-nos que seria ajustado terminar este texto com o simbolismo deste duplo inacabamento, com uma meta a alcançar e um apelo
por fazer, uma morte entre dois mundos, um a descobrir, outro a
sensibilizar. A missionação, qualquer que ela seja, permanecerá sempre inconclusa. O encontro com a alteridade, a mais distante como a
mais próxima, não tem prazo. Estamos sempre a desembarcar numa
qualquer praia e a discussão em torno daquilo que mais nos afecta
não suporta uma última palavra. Talvez porque não nos seja dado
sermos nós a dizê-la.
21
Ibid.
DE JAVIER A SANCHOÃO
Francisco Xavier
e o seu campo de evangelização mais difícil
António Lopes S.J.
Só Deus sabe o que se passa no coração de cada um de nós no
que respeita à nossa conversão ao Evangelho. Em todo o caso, as
nossas acções exteriores e nosso comportamento exterior são sempre,
de algum modo, “sinais” do que se vai passando no nosso coração,
embora só Deus possa avaliar o valor da nossa caminhada interior,
na direcção do Evangelho. Além disso, é uma constante sobretudo
no Novo Testamento, que o meio mais eficaz de levarmos os outros
a viver a sua mensagem é o nosso testemunho de entrega autêntica a
Deus e aos irmãos. “Pelos frutos os conhecereis” diz-nos Jesus. Temos, além disso, nos Actos dos Apóstolos, sobretudo quando nos é
relatado o modo de viver das primeiras comunidades cristãs, afirmações claras desta doutrina: Era tão contagioso o testemunho destas
comunidades que os não-cristãos, ao verem a sua maneira de viver,
sentiam por estas comunidades uma enorme simpatia “ e o Senhor
aumentava cada dia os que entravam pelo caminho da salvação”.
Podemos, por exemplo, comparar a caminhada inicial de S. Inácio com a de Francisco Xavier, servindo-nos deste critério do nosso
comportamento exterior, extremamente falível e relativo aos olhos
de Deus, que é o único a penetrar até ao fundo dos corações.
Segundo os nossos critérios humanos, situaríamos a 1ª conversão de Inácio em Loyola, em Agosto-Setembro de 1521 e a sua 2ª
conversão em Manresa, também em Agosto-Setembro, em 1522:
apenas um ano depois. Ao passo que, seguindo este mesmo critério
96
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
de discernimento puramente humano, o primeiro grande marco na
vida de Francisco teria sido em 15331 e o segundo, ao entrar no Japão, em 1549, ou seja: 16 anos depois.
1 – O coração de Francisco:
o seu campo mais difícil de evangelização
Dos companheiros de Inácio de Loiola não foi certamente a conquista mais fácil.
Em Paris, dá nas vistas de todos. Esbelto, eloquente nas disputas
e ardoroso nos debates académicos, é sagrado campeão de salto em
altura nos campos desportivos da ilha de Notre-Dame. Ouçamos o
retrato que dele faz Hercule Rasiel:
“Tinha o espírito vivo, a disposição agradável e o coração altivo. Era
orgulhoso, vaidoso e ambicioso. Ao princípio era o que mais troçava de
Inácio, das suas máximas, da sua conduta, dos seus discursos e, longe de
o escutar, punha a ridículo a vida pobre que ele levava e à qual queria
atrair os outros”2.
A esse espanhol aleijado chamava ele “o palerma da rua dos cães”.
Quanto à relação entre ambos, 20 anos mais tarde, confiava o próprio fundador ao Jesuíta Edmond Auger:”.
“... o jovem Xavier fora o material mais duro que jamais manejara...
Era um biscaínho nobre e folgazão. Como era bom aluno em filosofia e
professor apreciado, ligava pouca importância a Inácio, que então vegetava à custa dos outros... Quando o encontrava, quase sempre troçava
dos seus propósitos....” 3
O biógrafo de Xavier, Manuel Teixeira, outro autor Jesuíta, diz
por seu lado:
1
Segundo Scurhammer, a primeira conversão de Francisco deve situar-se entre
Dezembro de 1532 e Junho de 1533.
2
Histoire de l’admirable D. Inigo de Guipuzcoa – La Haye, chez la veuve Le
Vier, 1736, 98.
3
TOURNIER, Ferdinand – S. François Xavier d’ après un manuscrit inédit du
P. Auger, in “Études”,109 (1906), 657-669.
De Javier a Sanchoão
97
“... Mestre Francisco era duro e dificultoso..., pois não queria mudar de
vida por ser naturalmente inclinado à honra e ao fausto do mundo...”4
É possível que esta maneira de se relacionar com Inácio de Loyola
tenha alguma coisa a ver com a infância e a adolescência de Francisco. Navarra foi conquistada em 1512 por Fernando, o Católico;
portanto quando Francisco ia nos seus seis anos. Em 1516, o castelo
de Xavier é demolido por Carlos V. Mas, como o movimento de
resistência de Navarra não desarmou, os próprios navarros, com a
ajuda do grosso do exército francês, a 20 de Maio de 1520, penetram
em Pamplona, a capital. Entre os rebeldes da resistência, estavam os
dois irmãos de Francisco, Miguel e João e vários dos seus primos. Na
cidadela de Pamplona, apenas um pequeno grupo de espanhóis resistiu aos navarros, durante umas horas, instigados pelo basco, Iñigo
de Loyola, que só se rendeu, quando um obus lhe esfacelou uma das
pernas. E 15 dias depois, ficavam libertadas todas as terras de Navarra do jugo espanhol. Mas rapidamente o representante de Carlos V
repõe a ordem, confiscando os bens a todos os que tinham entrado na
rebelião e condenando-os à morte, entre os quais estavam os irmãos de
Francisco e os primos. Foi enorme a consternação em Javier, onde se
encontrava o pequeno Francisco e sua mãe. Esta teve de sofrer várias
tentativas de ocupação de todas as terras do Castelo. Felizmente, a 12
de Outubro de 1523, Carlos V vem a Pamplona para conceder perdão
geral aos rebeldes; mas na lista dos intimados, ficam de fora, entre outros, os irmãos de Francisco e os primos. Depois de muitas vicissitudes
e angústias da pobre Senhora de Javier, Carlos V concede amnistia
sem excepção e promete a devolução dos bens. Quando, por fim, os
irmãos voltam a casa, Francisco tem 18 anos. Se colaborou, sem ressentimentos, na normalização da situação da família, dificilmente terá
esquecido o que sofreu dos espanhóis. Por isso, para os seus estudos
não irá, nem para Salamanca nem para Alcalá, mas para Paris; e mais
tarde se há-de considerar mais “português” do que “espanhol”.
TEIXEIRA, Manuel – Vida del Bienaventurado Padre Francisco Xavier. Em:
Monumenta Xaveriana, II, 818.
4
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
98
Professor de filosofia no Colégio de Beauvais, não longe de S.
Bárbara, Francisco tem orgulho no seu título de professor e na sua
fidalguia de além-Pirenéus. Loiola vai “modelar” esta vaidade: não
descansa enquanto não reúne um auditório entusiasta para as lições
de Xavier, suscitando à sua volta fervor e louvores.
A acção envolvente de Inácio consistiu sobretudo em socorrer a
Francisco economicamente, dadas as enormes dificuldades por que
passava a sua mãe (que faleceu em Julho de 1529) e os seus irmãos,
em Javier. Representou também para Inácio um esforço ciclópico
tentar afastar aquele coração altivo das más companhias, sobretudo
do ponto de vista doutrinal, dada a fermentação intelectual e religiosa que então se vivia em Paris, particularmente na cidade universitária.
A “faena” dura dois anos. É só no princípio de 1533 que se
decide à estocada que há-de render o professor “atleta”. Consegue
finalmente (ou em 1532 ou 1533) que vá confessar-se e comungar
e que daí em diante acompanhe o grupo dos estudantes à igreja dos
Cartuxos. Mas, quanto aos Exercícios dados por Inácio, Francisco
será o último dos 7 companheiros a fazê-los. Virão antes os votos de
Montmartre em 1534. Com efeito, a 15 de Agosto de 1534, já faz
parte do grupo que se compromete com os 3 votos: pobreza, castidade e o voto condicional de ir à Palestina. Diz uma certa tradição que
teria sido com a repetição de um versículo do Evangelho: “Que vale
ao Homem ganhar o Universo...” que Francisco vergou o seu orgulho. Schurhammer põe em questão a autenticidade desta tradição5.
É possível que Inácio tenha repetido sucessivamente a Francisco este
versículo evangélico, mas – apesar de Francisco citar este mesmo
versículo por duas vezes nas suas cartas6 – não há qualquer prova
documental de que este versículo tivesse sido decisivo na conversão
de Francisco. O mais importante na conversão de Francisco terá
Schurhammer – I, p. 230. Nota 219.
Epistolae S. Francisci Xaverii – Edição crítica de G. Schurhammer, Romae,
1944-1945, I, 420-421; II, 193.
5
6
De Javier a Sanchoão
99
sido o testemunho de ajuda e de caridade de Inácio para com ele e
sobretudo o seu testemunho de profunda humildade, em episódios
que se passaram em S. Bárbara, como o seguinte: Inácio convidavao, a ele e a muitos outros, a virem no Domingo de manhã à igreja
dos Cartuxos, para se confessarem e comungarem. Xavier, porém,
nunca respondeu ao apelo.
Foi provavelmente o testemunho dado por Inácio nesta ocasião
que mais terá abalado o coração de Francisco. Iñigo, por desviar, sem
licença do Principal do Colégio de S. Bárbara, alguns estudantes, das
disputas académicas dos Domingos de manhã para os levar à igreja
dos Cartuxos foi ameaçado com o castigo das varas. Quando todos,
alunos e professores, estavam a postos para assistirem a tão grande
humilhação por parte do mais velho dos estudantes, com surpresa
de todos, vêem o Principal aparecer com Iñigo pela mão. E quando
todos esperavam pelo começo do castigo aplicado a Iñigo, é o Principal que se põe de joelhos, aos pés do estudante, pedindo-lhe perdão,
profundamente comovido. E o Principal, Diogo de Gouveia, chega
a alterar o horário para que os estudantes possam seguir Iñigo, nos
Domingos de manhã.
A 15 de Agosto de 1534, Francisco já faz parte do grupo que se
compromete em Montmartre com os 3 votos.
Aparece no encontro de Veneza e está ajoelhado aos pés de Paulo
III, para que os companheiros sejam enviados, aonde Sua Santidade
muito bem entender, de tal modo que, na rampa de lançamento do
“peregrino” de Loiola, o mais estrondoso impulso para a grande diáspora jesuítica, vai ser o envio de Francisco para as Índias Orientais.
Mesmo antes da fundação canónica da Ordem e antes da eleição de
Inácio para Geral, depois de uma complicada rede de influências
portuguesas, em que entram D. Jerónimo Osório, Diogo de Gouveia, D. João III e o seu Embaixador em Roma, D. Pedro Mascarenhas, o fundador dirige-se a Xavier: – “Esta es vuestra empresa !”,
responde o orgulhoso biscaínho. – “Pues, sus ! Heme aqui”7.
7
Fontes Narrativi (de S. Inácio), II, 381.
100
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
Logo no dia seguinte, depois de passajar as calças e a sotaina,
Francisco, acompanhado do Embaixador, estava a caminho de Lisboa. Os dois maiores “andarilhos e peregrinos” da Companhia, o
atleta e o coxo, nunca se haviam de tornar a ver.
Apenas 6 anos depois da sua conversão, já está em Lisboa e, a 7
de Abril de 1541, precisamente no dia em que completava 35 anos,
larga o Tejo. Recusa qualquer ajuda material dos amigos. Enfiado
numa batina toda remendada, eleito Núncio apostólico pelo Papa à
Ásia, vai percorrer, nos primeiros 7 anos, o Extremo Oriente, convertendo à força de braços, as multidões ignorantes das Índia e da
Malásia, numa algaraviada feita de mau português e de farrapos dos
inúmeros idiomas, falados nas Índias.
Durante mais de 7 anos, a sua missão – tal como a podemos
imaginar através das suas cartas – foi marcada por uma estranha
insensibilidade a esses mundos e a essas civilizações prodigiosas.
Parece fazer tábua rasa do seu passado humanista, de “ilustre Mestre em Artes” da Universidade de Paris; nem de longe suspeitando
tudo o que a civilização indiana encerrava de grandeza, debaixo da
miséria das aparências. Como se fosse um “conquistador”, só pensa
em converter todos aqueles humanos que ele considera – porque
não pertencentes à Igreja Católica – condenados ao inferno. Nem a
sua espiritualidade nem a sua afectividade parecem, nem mesmo de
longe, tocadas por essas antigas culturas, no entanto profundamente
dominadas pela metafísica. Quer se trate dos pescadores da Costa
da Pescaria, quer dos miseráveis artesãos e camponeses das Molucas,
ninguém consegue comover-lhe a inteligência, mas apenas o coração
que só vê nesses pobres de Cristo idolatria, pecado e exploração de
uma Cristandade hipócrita.
Quanto aos métodos missionários desses primeiros 7 anos, ainda
não parece Jesuíta.
As suas cartas ainda não revelam qualquer preocupação pela “maneira de ser” desses povos, mas quase exclusivamente a obsessão de
perseguir o “mau espírito” em toda essa gente “perversa”.
De Javier a Sanchoão
101
Escrevendo de Cochim para Roma, a 15 de Janeiro de 1544, “o
grande Humanista da Sorbona” tem esta passagem surpreendente:
“As crianças a quem dou catequese... têm grande horror às idolatrias
destes gentios, de tal modo que muitas vezes se batem com os idólatras,
repreendem os pais e as mães quando os vêem nessas práticas, os acusam
e me vêm logo avisar. Quando isso acontece, junto todas as crianças do
lugar e vou com elas onde estão os ídolos... As crianças atiram-se então
aos ídolos, fazem-nos em pedaços, reduzem-nos a cinza; depois cospem
neles e pisam-nos. E fazem ainda muitas coisas que não fica bem dizê-las
com palavras próprias”8.
Embora a Inquisição só venha a ser fundada em Goa em 1560
(8 anos depois da morte de Xavier) é certo que, no seguimento do
Bispo de Goa e do seu Vigário Geral, em carta a D. João III de 16
de Maio de 1546, recomenda-lhe a necessidade da Inquisição para
Goa:
“A segunda nesecydade que a Yndia tem para serem bons cristãos
os que nela vivem, hé que mande V.A. a santa Ynquisição porque ha
muitos que vivem a ley mozaica e seita mourisca, sem nenhum temor de
Deus nem verguonda do mundo”9.
A 7 de Abril de 1545 já tinha expresso este mesmo desejo,
escrevendo ao P. Mansilhas, para que o comunicasse ao Infante
D. Henrique: “que por via da Inquisição castigue aos que perceguem os
que se convertem a nossa santa ley e fé”10.
Apesar de pedir a Inquisição, não como meio de converter judeus, mouros e pagãos, por via de coacção, mas para manter a fé
nos baptizados e para que não persigam os cristãos, no entanto, não
deixa de ser estranho, pela experiência que ele devia ter da Inquisição
em Espanha, onde o fundador fora preso e julgado várias vezes por
esta instituição e onde os Jesuítas eram rigorosamente vigiados e impedidos de partir para as Américas e sobretudo por ter sido em Paris
EX, I, 395-396.
Ibid. – I, 346.
10
Ibid. – I, 287.
8
9
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
102
o grande arauto do Novo Humanismo, na linha de Erasmo. Naquela precisa ocasião, não sabia das lutas e das arrelias por que passava o
pobre Inácio em Roma para não se negar ao pedido de D. João III,
que quase exigia dele um Inquisidor Jesuíta. Sabemos quanto rezou
Inácio e recomendou instantemente à Comissão a quem encarregou
de estudar o assunto que “tal função se opunha ao espírito da Companhia”. Ao contrário de outro grande missionário, o P. António
Vieira, Francisco não tinha ainda assimilado devidamente aquilo
que nos Exercícios de S. Inácio chamamos a Meditação do Reino, a
partir da qual o P. Vieira há-de chamar o Seu Palácio por excelência,
à “Clavis Prophetarum”, em contraposição com os seus sermões, que
não passariam, para ele, de miseráveis palhotas. O mesmo poderíamos dizer com relação aos primeiros Jesuítas que chegaram ao Brasil,
com o P. Manuel da Nóbrega, precisamente no ano em que Francisco chega ao Japão, e que imediatamente aplicaram instintivamente
o princípio da inculturação missionária.
Para atingir a estatura de grande estratega missionário, Francisco
terá primeiro de se purificar de muitas maneiras de ser e de pensar
à maneira dos países da Europa, passando por grandes provações
interiores. Em várias das suas cartas há sinais destes estados de alma,
por que teve de passar. Escrevendo a Francisco Mansilhas, a 10 de
Novembro de 1544, tem estas palavras impressionantes: “Eu estou
tão enfadado de viver, que julgo ser melhor morrer por favorecer a nossa
lei e fé, vendo tantas ofensas quantas vejo fazer sem se acudir a elas. Não
me pesa senão que não fui mais à mão aos que sabeis...”11
Nesta altura, entrevemos nas cartas de Xavier momentos de desânimo e de grandes depressões. Em várias, explode a sua indignação
quando descobre que serve de caução, embora muito respeitada, ao
formidável empreendimento que é a colonização portuguesa desses
tempos que são já de decadência. Apesar de ter gosto em dizer-se
“português” e não “castelhano”, vai lentamente tomando consciência da incompatibilidade do projecto evangélico com o suporte mili11
Ibid. – I, 242.
De Javier a Sanchoão
103
tar em que se apoia o trabalho missionário no Padroado português.
As cartas de Inácio a D. João III só respiram gratidão, respeito e
jubilosa submissão. As de Xavier são de um contraste impressionante. Àquele que lhe pôs à disposição todos os meios para se desempenhar da sua missão, só lhe escreve – que saibamos – 4 anos depois de
sair de Lisboa, e em latim, de modo extremamente formal, deixando
nas últimas linhas transparecer o seu descontentamento:
“Espero morrer na Índia..., e que nos vejamos na outra vida com
maior paz do que aquela em que estamos...”.
E termina com as mesmas expressões apocalípticas, com que há-de
concluir todas as suas cartas ao Rei.: “...que seja dada a Vossa Alteza
a graça de sentir e de fazer já nesta vida aquilo que, na hora da morte,
gostaria de ter feito. 12”
E 3 anos depois da anterior:
“Muitas vezes cuidei comigo mesmo se seria bem escrever a Vossa
Alteza o que sinto dentro da minha alma... De maneira, Senhor, que
em cuidar que avia de escrever a Vossa Alteza me achava em muita confusão; por derradeiro determinei de desencarregar minha consciência,
escrevendo o que sinto dentro della...”.
E segue-se uma crítica violenta à maneira como o Rei permite que
seja governada a Índia. E antes de fazer ressoar de novo a sua trombeta
apocalíptica, vêm novas palavras em que se adivinha o seu desânimo:
“Eu, Senhor, não estou de todo determinado a ir a Japão, mas vaime parecendo que sim, porque desconfio muito que não hei-de ter verdadeiro favor na Índia para acrescentar a nossa fé...”13
Um ano depois, já muito mais claramente:
“Eu, Senhor, eu sei o que se passa aqui. Não tenho pois a mínima
esperança de que as prescrições de V.A.... sejam obedecidas na Índia. É,
por isso, que ando pensando em partir para o Japão, quase fugindo, para
não perder mais tempo do que já perdi...”14.
Ibid., I, de 20 de Janeiro de 1545, 254.
Ibid.,.Carta de 20 de Janeiro de 1548, I, 404-410.
14
Ibid., Carta de 26 de Janeiro de 1549, II, 60.
12
13
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
104
E termina, ameaçando o Rei com a justiça de Deus pela responsabilidade na forma de administrar as Índias:
“...a experiência ensinou-me que V.A. não exerce o seu poder na Índia para aqui acrescentar a fé em Cristo; exerce-o sim para levar e para
possuir as riquezas temporais da Índia...”15. “...Que Nosso Senhor faça
sentir a V.A., no íntimo da sua alma, a sua mui santa vontade e que lhe
dê a sua graça para a cumprir, de maneira que V.A. rejubilará à hora
da morte, por o ter feito, quando V.A. estiver prestes a dar conta a Deus
de toda a sua vida passada e essa hora chegará mais cedo do que pensa
V.A. Os reinos e os bens têm fim... E será uma coisa nunca vista nem
nunca acontecida a V.A. ver-se desapossado deles...”16.
Quanto à conversão dos infiéis , parece fora de dúvida que Xavier
vivia com o maior rigor o aforismo teológico do tempo: “Fora da
Igreja (entenda-se sem o baptismo ministrado pelo missionário) não
há salvação” . Mesmo Schurhammer, na sua obra extraordinariamente perspicaz, em 4 enormes volumes, não consegue desvendar
os segredos da alma de Xavier “peregrino em demanda constante
da sua missão de estratega missionário”. Que mistério o leva a confessar que “está pensando em fugir para o Japão”? Donde lhe vem
essa ponta de desânimo que o obriga a falar em “tempo perdido” na
Índia? Há mistérios que vão acontecendo no coração de cada um de
nós, ainda no dos maiores santos, para nos irem identificando com
Jesus, o “Homem do despojamento total” na sua Paixão e Morte. Os
cordões umbilicais que nos prendem só Deus os conhece, bem como
os acontecimentos da vida mais apropriados para nos libertarem.
Não há nenhum profeta do A.T. e nenhum santo do Novo que não
tenha passado por estas noites escuras e desolações interiores, e por
onde possivelmente cada um de nós há-de passar.
15
16
Ibid., II, 61.
Ibid., II, 63.
De Javier a Sanchoão
105
2 – O segundo grande marco na vida de Xavier
O que se vai passar durante os seus dois anos no Japão faz-nos
pensar, por um lado, que no seu coração de gigante missionário ia
amadurecendo a convicção de pôr fim ao espírito de Cruzada que
até ali alimentara muita da sua própria missionação; por outro, que
a experiência do Deus amor e misericordioso, que continuamente o
inundava, o levaria, mais tarde ou mais cedo, a ir pondo em questão
o princípio de exclusão salvífica dos infiéis. Numa palavra: a sua
intuição mística de estratega missionário ia abrindo caminho àquilo
que Nóbrega, já nesse momento, começava a pôr em prática no Brasil, que Valignano há-de adoptar no Japão, Ricci na China e Nobili
e João de Brito na Índia. Mas foram precisos longos anos de amargas
dores de parto.
Ecos desta evolução do grande “andarilho” missionário do
Oriente aparecem na carta escrita, a 20 de Janeiro de 1548, aos
seus companheiros de Roma, onde temos a impressão que é já um
“homem novo” que fala, agora mais ávido de encontros e contactos
culturais que de conquistas:
“...Nesta cidade de Malaca, alguns comerciantes portugueses deram-me amplas informações sobre grandes ilhas, recentemente descobertas,
que se chamam Ilhas de Jappam. Segundo eles, nelas se colheriam muitos frutos e mais se acrescentaria a nossa fé do que em qualquer parte
da Índia, porque as pessoas são extremamente desejosas de aprender, ao
contrário das gentes da Índia”17.
A conversa com o japonês Anjiro, foragido da justiça, em Malaca,
parece ter sido a gota de água da sua “segunda conversão”:
“Se todos os Japões tiverem tanta curiosidade de saber como este Anjiro são, parece-me, as pessoas mais curiosas de espírito de todos os países
que vi...”18.
17
18
Ibid., I, 390.
Ibid., I, 391.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
106
A descoberta que fez com Anjiro parece ter-lhe restituído a alegria de sonhar e de continuar a “peregrinar”. E em carta ao Geral,
antes de entrar no Japão, escreve:
“Parto com a intenção de ir primeiro à residência do Rei e depois às
Universidades... Uma vez no Japão, escreverei a V. Caridade... sobre o
que se ensina nessa grande Universidade...Quando tiver visto as Escrituras do Japão e ouvido os universitários...não deixarei de escrever para
a Universidade de Paris para que, através dela, todas as demais sejam
informadas...”19.
Tudo mudou. Ressuscitou o Humanista sequioso de informações, de trocas culturais e de respeito pelas “Escrituras do Japão”
e deslumbrado pelo costume “que têm os Japões de escreverem de
cima para baixo”.
Tem 43 anos, quando deixa a Índia, depois de 7 anos de pregação, de ensino, de cuidado com os doentes, de negócios com as
autoridades, de viagens contínuas entre Goa e Malaca; da Costa da
Pescaria até à Ilha do Mouro. Em toda a parte, a sua personalidade
fascinante e carismática e a sua dedicação tão espontânea e desinteressada deixam uma auréola tão forte que os seus companheiros não
terão dificuldade em persuadir os Japoneses da sua santidade.
Para o “grande encontro com o Japão”, dispõe apenas do seu
prestígio, da sua “nova chama interior” e de algumas ideias muito
vagas, quando não totalmente erradas. Vai de mãos vazias, mas não
de todo. É que no junco do Pirata (o chinês Avan) fizera embarcar
30 barris de pimenta que lhe oferecera o Governador de Malaca;
pimenta que poderá muito bem servir de passaporte, pois os Japoneses são doidos por pimenta e nenhum presente poderia encantá-los
tanto. E também não vai sozinho. Além de Anjiro, agora Paulo da
S. Fé, vão outros dois catecúmenos japoneses e mais dois Jesuítas:
o P. Cosme de Torres e o Ir. João Fernandes que dentro de pouco
tempo vai adquirir um bom conhecimento da língua e da cultura do
Japão.
19
Ibid., II, 22-27.
De Javier a Sanchoão
107
Chegam a Kagoshima a 15 de Agosto de 1549. As primeiras impressões de Xavier revelam claramente uma nova atitude interior de
respeitosa observação, dignas de um etnólogo experimentado:
“... as pessoas com quem conversámos até agora são as melhores que
descobrimos até à data...; é um povo de convívio muito agradável que
põe a honra à frente de tudo o mais. Nenhum dos países cristãos faz
o que eles fazem: tratam com igual deferência um fidalgo pobre e um
rico... Valorizam mais a honra do que as riquezas. São pessoas muito
corteses... Não toleram qualquer afronta nem qualquer palavra dita
com desprezo... Sóbrios no comer, são dados à bebida... Nunca jogam...
Nunca vi pessoas tão irrepreensíveis em matéria de roubos... Uma parte
considerável do povo sabe ler e escrever...Não adoram ídolos... figuras de
animais, mas muitos adoram o Sol e a Lua. A maioria acredita em homens de outros tempos os quais, segundo pude compreender, eram pessoas
que viviam como filósofos...Gostam de ouvir coisas conformes com a razão... Se soubéssemos falar a língua deles, não hesito em crer que muitos
se tornariam cristãos...As pessoas de cá não matam nem comem seja o
que for que criem; por vezes comem peixe com o seu arroz e o seu trigo,
em pequenas quantidades. Existem muitas ervas de que se alimentam
e alguns frutos.. Gozam de uma saúde espantosamente boa e há muitos
velhos”20.
Mas, em Hirado, por um triz que não recaiu nos mesmos erros
que cometeu na Índia: os portugueses receberam-no com toda a
pompa, armas, trombetas e bandeiras e deram a entender ao rei da
região que este “bonzo” gozava de imenso poder junto do “chefe”
dos portugueses. Entende que “tudo aquilo” era entrave para o tipo
de missão que ia inventando. Parte para Yamagushi e depois para
a sua célebre viagem a Myako para visitar o Imperador..., onde só
encontra teias de aranha... De volta a Yamagushi, medita naquilo
que se passou em Hirado, pouco antes. Se até aqui descobriu que
converter é respeitar o “outro”, agora descobre que também se tem
de “converter”, adaptar e sujeitar às formas culturais dos outros:
20
Ibid., II, 179-212.
108
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
tem, por isso, o cuidado de passar novamente por Hirado e com as
esmolas dos portugueses decide mandar fazer uma batina de seda,
leva os presentes enviados pelo Vice-Rei e “um pequeno relógio
que bate as horas, um instrumento musical muito harmonioso e
outras obras de arte” que lhe dera o Governador de Malaca. Tudo
para oferecer ao dáimio de Yamagushi: Yoshikata. Faz pensar na
fase de Inácio, saindo da sua cova de anacoreta, em Manresa, para
se transformar em cidadão do mundo da sua época: homem para
os homens.
Este episódio revela-nos quanto tempo Francisco levou a descobrir a diferença entre a “mortificação corporal”, a que ele dera
tanta importância, e a “abnegação” que é o essencial dos Exercícios
de Inácio: “Exercícios... para ordenar a sua vida, sem se determinar
por alguma afeição desordenada”. Francisco, ao descobrir que,
naquelas circunstâncias, havia maior pobreza em vestir-se de seda,
do que “andar como peregrino andrajoso”, recorda-nos os poucos
meses que Inácio passou na cova de Manresa, como um Santo Onofre. Esses poucos meses de Inácio corresponderam em Francisco
a vários anos. Lembremos as terríveis penitências corporais a que
Xavier se submeteu depois da sua conversão. Por causa da vaidade
de ser “campião de salto em altura” no Quartier Latim, ata às pernas
fortes cordas que se enterraram na carne e que só com uma cirurgia
se puderam tirar; o facto de ter passado a poucos kms da família, ao
passar por Loyola, e nem um minuto ter dado aos seus familiares;
em Veneza, no trato com os doentes, de ter chupado com a boca o
tumor de um deles, etc...
Cheio de tão boas disposições, logo à partida, o missionário
navarro rapidamente vai entremear as suas reflexões sempre benevolentes sobre a religião japonesa, com observações algum tanto azedas
contra os bonzos, mas nunca de desprezo, como fazia com a “corja”
dos brâmanes da Índia. Chegou a tornar-se, logo de início, amigo
muito íntimo de um deles:
“Este Ninxit tornou-se tão meu amigo que é de espantar. Todos,
tanto leigos como bonzos, sentem grande prazer com a nossa companhia.
De Javier a Sanchoão
109
Admiram-se por termos vindo de países tão distantes... e de só falarmos
de Deus..”21.
Como estamos agora longe daquelas sessões de aspersão das multidões indianas, convertidas à força de braços que baptizam..., para
afugentar o “mau espírito”!
Depois, em Yamagushi, pede licença para pregar e para dialogar
com os habitantes. E será precisamente aqui, em Yamagushi, que
dará início ao seu grande diálogo de culturas. Neste ponto, o estratega antropólogo é inesgotável:
“Estávamos constantemente ocupados, respondendo a preguntas.
Eram tantas as pessoas que vinham: padres japoneses, freiras, fidalgos
etc.. Fizeram-nos tantas e tantas preguntas...”22.
Muito depressa, o antigo professor do Colégio de Beauvais vai
descobrir o imenso valor missionário dos caminhos muito humanos,
como os da ciência... e se vai revelar o precursor de Clavius (o Jesuíta
que elaborou o Calendário Gregoriano) e de Ricci, Adam Schall e
dos matemáticos de Pequim. A sua segunda conversão é de alguma
maneira também a segunda Conversão da Missionação Portuguesa... e o caminho para a Nova Evangelização de Hoje.
Tanto se foi convencendo do valor da ciência que, por várias vezes, recomendará para Roma, para os futuros missionários:.
“..que seria bom que fossem bons filósofos, bem treinados no diálogo...; que estudassem coisas da esfera, porque os Japões adoram que se
lhes fale dos movimentos dos céus, dos eclipses, das fases da lua, de como
se formam a água da chuva, a neve, os trovões, os relâmpagos, os cometas
e as demais coisas naturais...”23.
Depois de recebido em Funai (no Bungo) com grande pompa
e circunstância por Duarte da Gama, recebe a notícia que tem de
Ibid., II, 190.
Ibid., II, 265.
23
Ibid., II, 373.
21
22
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
110
regressar a Goa e depois a Roma. A 19 de Novembro de 1551, 27
meses depois de ter desembarcado em Kagoshima, deixa o Japão
levando consigo 4 convertidos Japoneses: Bernardo, Mateo, Joane e
António.
Nas suas cartas não se cansa de elogiar “os seus queridos japões”:
“... porque os japões são homens de muito singulares engenhos e muito obedientes à razão; e, se se deixavam de fazer cristãos, era por temor
do Senhor da terra, e não porque não conheciam que a lei de Deus era
verdadeira e as suas leis falsas”24. “... são os japões mais sujeitos à razão
do que nunca jamais vi gente infiel. São tão curiosos e importunos em
preguntar e de falar aos outros as cousas que lhes respondemos às suas
preguntas...”25.
E ao voltar, pela última vez, do Japão à Índia, exultando de alegria, pára em Cochim para escrever, nada menos que 5 longas cartas:
uma (a mais longa que dele possuímos) a todos os companheiros da
Europa; outra a Inácio; outra a Simão Rodrigues; outra a D. João III
e a última, para Goa, a Micer Paulo:
“Espero em Deus Nosso Senhor que se há-de fazer muito fruto naquelas partes do Japão, porque é gente tão discreta e de bons engenhos,
desejosa de saber, obediente à razão, e de outras partes boas, não pode ser
senão que entre eles se faça muito fruto...”26
Na primeira, depois de descrever longamente as imensas perspectivas que se abrem à evangelização de todo o Extremo Oriente,
graças aos japoneses, interpela – como fará também o P. António
Vieira – aos que frequentam as Universidades da Europa:
“Estou certo de que muitas pessoas doutas fariam outro fundamento
do que fazem para empregarem seus grandes talentos na conversão das
gentes. Se sentissem o gosto e consolação espiritual que de semelhantes
trabalhos se seguem, e conhecendo a grande disposição que há no Japão
para se acrescentar a nossa fé, parece-me que muitos letrados dariam fim
Ibid., II, 259.
Ibid., II, 265.
26
Ibid., II, 276.
24
25
De Javier a Sanchoão
111
aos seus estudos; que cónegos e outros prelados deixariam suas dignidades
e rendas por outra vida mais consolada da que têm, vindo-a buscar ao
Japão...”27
A Simão Rodrigues pede-lhe, para que, pela intimidade que tem
com o Rei e a Rainha, faça com que eles convençam os Reis de
Espanha que, depois da conquista das Filipinas, não mandem mais
armadas para essa região28. Ou porque já rondariam os Holandeses
por essas bandas, fazendo correr o boato de que a Espanha se dispunha a conquistar o Japão ou pela sua simples intuição de estratega,
Francisco estava a ser profeta acerca daquilo que havia de ser a desgraça da missionação do Japão. Com efeito, as perseguições aos cristãos do Japão vão precisamente nascer do medo com que vão ficar
os Imperadores, quando os Holandeses lhes derem a entender que
os missionários portugueses não são senão uma “quinta coluna” de
Espanha (uma vez que Portugal e Espanha pertencem à mesma monarquia) e quando os missionários de outras congregações, a partir
das Filipinas, começarem a entrar pelo Japão adentro, sem qualquer
preocupação de inculturação missionária.
E Francisco insiste:
“... as pessoas com quem até agora temos conversado no Japão, são as
melhores que temos encontrado”29. “De todas as terras decobertas nestas
partes, só a gente do Japão está em condições de poder perpetuar a cristandade...”30.
E começa a tomar decisões muito concretas. A intenção primeira
que o leva a escrever a Simão é para lhe dizer que em breve chegarão a
Lisboa dois japões, Bernardo e Mateus, para verem Portugal e Roma,
e poderem depois voltar para dar aqui testemunho da sua fé31.
Ibid., II, 278-279.
Ibid., - II, 356.
29
Ibid., - II, 186.
30
Ibid., - II, 291.
31
Ibid., - II, 355.
27
28
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
112
A carta que escreve a todos os companheiros da Europa será a sua
Carta Magna da nova estratégia missionária, fruto da sua constante
e dolorosa “peregrinação interior e exterior” e simultaneamente um
tratado de etnologia japonesa.
Como aconteceu com Alexandre, ao ter a humildade de adoptar,
como conquistador, os costumes dos persas, talvez possamos dizer
que o Japão, de alguma maneira, mais “converteu” a Xavier do que
Xavier ao Japão, como o Pai que em Jesus “se vem pôr à escuta do
que é ser totalmente Homem”.
Não se cansa de falar de tantas coisas que já aprendeu dos japões.
Entre estas está uma que vai marcar definitivamente toda a sua actividade e grande parte do futuro da sua Ordem: a China. Ficaramlhe gravadas a fogo estas palavras que ouviu dos japões:
“... se todas as cousas do mundo tiveram princípio, se a gente da China soubera isto, de onde lhes veio as leis que têm? Têm os japões para si
que os chins são muito sabedores assim nas coisas do outro mundo, como
nas deste...”32
E põe-se a descrever aos irmãos da Europa o muito que os japões
lhe ensinaram sobre a China33. E insiste na necessidade de já na Europa começarem a conhecer os costumes, maneira de ser e de pensar
dos chins e sobretudo a língua34.
Na longa carta ao Geral, Inácio, esboça já uma série de disposições e de qualidades para aqueles que forem enviados para o Japão35.
Serão estes princípios, que – sistematizados e aprofundados dentro
de poucos anos – por outro grande estratega missionário, Alexandre
Valignano, constituirão o fundamento de todo o enorme esforço de
inculturação dos Jesuítas em todo o Extremo Oriente. Este vai escrever dois livros para os jovens Jesuítas se familiarizarem com as cerimónias e maneira de ser dos japoneses: um, o Sumario sobre as coisas
Ibid., - II, 264.
Ibid., - II, 274-277.
34
Ibid., - II, 218, 363-364.
35
Ibid., - II, 288-293.
32
33
De Javier a Sanchoão
113
do Japão, editado em 1583 e outro: Adições ao Sumario, editado em
1592. Outro escritor será Luís Fróis, com a sua Historia do Japão
desde 1549 a 1593, com a mesma finalidade. Além desta Historia,
Fróis escreveu ainda um livro curiosíssimo e impensável para aquela
época: uma contraposição entre “Os costumes japoneses e os costumes europeus”, para os missionários evitarem as “gafes” na maneira
de conviver, no dia a dia com os japoneses. O primeiro médico que
introduziu no Japão a maneira própria da medicina ocidental foi um
Jesuíta português, formado, na Praça da Figueira de Lisboa, onde se
situava o Hospital Real de Todos os Santos. Trata-se do Jesuíta: Luís
de Almeida.
Provavelmente, depois da língua árabe, latina e grega, o maior
número de palavras que passaram para a língua portuguesa, foi da
língua japonesa e vice-versa. Tanto interesse manifestaram pela língua japonesa que foram os primeiros a compor gramáticas, vocabulários e dicionários em Japonês. Introduziram logo nos Colégios do
Japão tipografias europeias e foram os primeiros a imprimir livros
em caracteres japoneses. Desde 1549 a 1587 (ou seja: em menos
de 40 anos de permanência legal no Japão) têm neste momento 28
santos canonizados, enquanto nós portugueses, em 800 anos, temos
apenas 8 santos canonizados. Tudo devido à perseguição que se seguiu em 1587, pela falta de espírito de inculturação de alguns missionários europeus vindos das Filipinas, e por causa dos Holandeses
que fizeram crer ao Imperador que os missionários portugueses eram
da mesma nação que os espanhóis, que vinham para conquistar o
Japão e a China.
Na actual crise de culturas, existe uma aspiração generalizada
para que cada um tente dar sentido à sua história, à sua vida, ao seu
universo. Mas, simultaneamente, neste princípio do século XXI,
ocorre uma ameaçadora desintegração do tecido cultural.
Por um lado, aspira-se a uma dimensão planetária e, por outro,
parece caminhar-se para uma pulverização destas mesmas culturas.
Sob o aspecto religioso, parece nunca ter havido tão grande
proliferação de “ídolos” e, por outro lado, assistimos à emergência
114
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
de um colossal Baal: uma tecnologia tentacular com a ambição de
preencher essa aspiração planetária.
Neste contexto, surge, como “miragem” e “utopia” a tão badalada “Nova Evangelização” envolta em tais e tantas ambiguidades,
que parece vir agravar ainda mais a pulverização das culturas e dos
saberes, porque cada qual lhe dá o sentido que quer.
Seguindo a evolução da Missionação, na acidentada história do
Encontro de Culturas, podemos vislumbrar porventura aqui uma
aproximação do verdadeiro sentido a dar a esta “Nova Evangelização”.
Não será a oração que fazia Jesus ao Pai, momentos antes de
morrer: “Pai, que eles sejam Um, como Nós somos Um”, que vai
ecoando através da história das culturas e que não é senão o “Projecto inicial e definitivo do Senhor da História”?
Com efeito, duas aspirações convergentes trabalham no coração
das diversas culturas:
uma, de verem respeitadas as suas próprias diferenças; outra, de se
irmanarem num Humanismo sempre Novo e numa Cultura sempre
Nova, que excluam toda a tentativa de uniformização.
Talvez ande por aqui o autêntico sentido dessa “nova evangelização”. Lentamente, no decorrer da história da missionação, foi-se
descobrindo que a Boa Nova do Evangelho só era aceite pelas diversas culturas na medida em que os missionários chegavam a esses
povos, purificados e pobres de suas próprias culturas e “armados”
unicamente com a “proposta de um amor humilde e de uma entrega
radical”, na disposição de respeitar e de promover esses povos e culturas, “com” eles, “como” eles e “para” eles.
A paciência do tempo foi revelando que só deste modo passava o
Amor do Pai, que quer congregar todos os povos e todas as culturas
numa Aliança Fraterna, pela riqueza das respectivas diferenças.
Hoje começa-se a pressentir, aqui e além, a necessidade urgente
de ultrapassar a “tradicional adaptação e inculturação missionárias”:
purificando a Boa Nova de Jesus de toda a ganga, que lhe serviu de
contexto cultural em que nasceu e em que se foi expandindo. Impõe-
De Javier a Sanchoão
115
se a necessidade de a “limpar” de tudo o que possa pertencer ainda,
não só à cultura greco-romana, mas mesmo de tudo o que possa ser
ainda herança puramente cultural e sociológica dos universos de um
mundo semítico, judaico e helénico. Uma depuração e um esvaziamento que faz pensar no do próprio Jesus, para que pudesse receber
na sua humanidade a plenitude do Espírito Santo.
Só quando a Boa Nova de Jesus “chegar ao Homem, exclusivamente como proposta de solidariedade de um Deus que só é Todo
Poderoso na humildade de um Amor que se entrega até à morte”
é que ela poderá atingir as aspirações mais profundas das diversas
culturas, promovendo-as nas suas diferenças e, simultaneamente,
fazendo-as convergir no que elas têm de mais fundamental, porque
é algo que as “transcende” como culturas.
COM XAVIER
NOS CAMPOS DE FRONTEIRA
Vasco Pinto de Magalhães
O que nos separa é o que nos une. Esta afirmação é a caracterização de uma fronteira! É também a expressão da condição humana.
Somos seres de fronteira.
No horizonte da Comunhão.
A fronteira que faz a Unidade nas diferenças
Falando de missão e de evangelização, que são campos de fronteira? Um colégio, ou um catecismo, por exemplo, são mais ou menos
trabalhos (e campos) de fronteira que uns Exercícios Espirituais dados a cientistas ou a evangelização num bairro de periferia?
Esta intervenção inspira-se em Francisco Xavier como um bom
guia e companheiro para o que quer que seja um campo de fronteira.
A sua história de missão foi uma longa, e ao mesmo tempo breve,
corrida de milhares de quilómetros em 10 anos, de fronteira em
fronteira até à fronteira da vida, “chocando” nas portas, nas fronteiras da China! “De fronteira em fronteira” podia ser o seu lema. E a
primeira de todas foi a do seu próprio eu: “ir para além, sair do próprio amor, querer e interesse”1. Deixar-se – a si mesmo – e deixar...
projectos, terras, pessoas, sucessos e fracassos… Ele passou a salto
1
vida.
S. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, 189 – a propósito da Reforma de
118
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
– dentro e fora de si – tocado por uma palavra de vida, um horizonte
de comunhão, a frase do Evangelho com que S. Inácio o conquistou:
“Que vale ao homem ganhar o mundo inteiro se perder a sua alma”
(Mt 19). Mas… a nossa fronteira interior é tarefa para toda a vida.
A fronteira é o “lugar” onde se perde e se ganha. É linha de risco
e fio da navalha. Levantamos fronteiras, muros, dogmas, defesas,
ou, com o mesmo Evangelho, baixamos a ponte, damos a cara ao
diferente, abrimos a porta a outra língua, a outra cultura!
Situação de fronteira é, pois um estado de espírito: estar na “terra
de ninguém”… que é a que pode ser de todos. Chegamos à fronteira
quando a vida (e a Missão) que estabelece ligações nos lança o desafio e a questão: justapor as diferenças, ou assimilar as diferenças?
Eliminar (abafando) as fronteiras, ou comungar pelas diferenças?
Destronar um “santo” para que se veja a santidade.
O Xavier das fronteiras
Um Santo nunca é para imitar. É para inspirar, logo há que destronar a auréola que o envolve para agarrar a santidade.
Quando me foi proposto aprofundar a temática das fronteiras
senti o entusiasmo de poder sonhar critérios de evangelização em
campos como a interculturalidade, a globalizaçao, os desafios éticos
nas fronteiras da vida, as estratégias de paz interpessoal e internacional, etc... Procuraria inspiração no “modo de proceder” de um tal
Xavier, humanista, dialogante, capaz de aprender uma língua como
o japonês em poucas dezenas de dias (!?), tão pronto e livre para
tratar com reis como com empestados ou caçadores de cabeças, sabendo estar vestido a rigor na corte em Yamaguchi, como no convés
de uma nau sem ter de comer e onde se sentar… Sem ter que baixar
o crucifixo com que abordava tudo e todos, podemos vê-lo, também, noite adentro, a escrever de joelhos aos seus amigos da Europa,
misturando força e ternura… Mas! Aqui fui assaltado por outras
imagens, de “outro” Xavier, talvez… o dos arrebatamentos, com o
coração a arder, precisando de ar ou panos frios no peito; capaz das
Com Xavier nos campos de fronteira
119
maiores proezas humanas e milagres: fazer chover, ressuscitar mortos, ver e prever à distância os mais variados acontecimentos, como
conta a sua legenda.
Este Francisco Xavier perturba-me e pôs-me na fronteira, sem
saber ligar este “campeão do Oriente” com o “guia espiritual” que
serenamente escreve esse tratado de discernimento e modo de proceder que são, por exemplo, as “instruções para a missão de Ormuz”
entregue ao P. Gaspar Barzeu (Goa 1549).
Francisco Xavier foi-nos muitas vezes oferecido na bandeja dos
apelos missionários como o super-herói-romântico, o campeão do
Evangelho: apaixonado, radical, taumaturgo ou santo de milagres
nunca vistos.
Nessa fronteira achei que era preciso desmitificar o Santo para se
revelar a santidade. Não despir um santo para vestir outro(!), como
às vezes se diz. Aliás, talvez ele nunca tenha tido tanto os pés na terra
como quando o viram suspenso no ar a dar a comunhão… Não
quero negar esses testemunhos, mas a verdade é que a imagem do
iluminado, senhor das energias, quase guru da New Age, não deve
mascarar, nem caricaturizar a radicalidade, o amor de serviço que
valoriza a outra imagem do instrumento abandonado nas mãos de
Deus que – mais que tudo – identificam o Homem de Fronteira.
Para viver na fronteira.
Radical, apaixonado, homem de Deus
Radicalismo e radicalidade.
Xavier era radical
Não é fácil descrever o essencial que identifica o “apóstolo na
fronteira” que está em todo lado e integra diferenças. Quando o quis
fazer, assaltou-me a memória um poema de Fernando Pessoa. Interiormente comecei a recitá-lo aplicando-o a Francisco Xavier, mas
dava-me conta que não devia estar a dizê-lo correctamente. Fui verificar e, de facto, há pequenos nadas que mudam tudo. Vejamos.
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
120
Diz Pessoa:
Viajar! Perder Países
Ser outro constantemente
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!2
E dizia eu:
Viajar! Perder Países!
Ser outro constante
Por só na alma ter raízes
De viver dever somente.
Na ambiguidade deste final, que agora não vou discutir, e para
além do nihilismo e desencanto de Pessoa, o certo é que daqui se
pode partir para uma distinção essencial: ser radical não é radicalismo, mas radicalidade. E radicalidade não é não ter raízes nem cortar
com a realidade, mas, muito ao contrário, ir às raízes, ao fundo…
pois só enraizado no profundo (radicalmente) se encontra a liberdade e a fortaleza.
Então, manifesta-se a frontalidade que não corta, mas liga; assinala
a fronteira e a denuncia. Veja-se a conhecida carta de Francisco Xavier
para o Rei de Portugal, de Cochim, a 20 de Janeiro de 1545.
“Porque razão – pergunta ele – Vossa Alteza, a vossa severidade
não pôde ferir aqueles vossos ministros que conspiram contra mim e
são indiferentes às vossas ordens senão quando eram negligentes na
arrecadação dos impostos e na administração das vossas finanças?”
E mais adiante…“Todas as vezes que os cristãos daqui vêem partir essas torrentes de tesouros que vão encher os vossos cofres, e se
deixa aqui apenas alguns gotas para as suas necessidades espirituais,
2
Fernando Pessoa, Obras completas, Ática, Lisboa 1958, pág. 184.
Com Xavier nos campos de fronteira
121
parece-me ver este infeliz povo dirigir ao céu amargas queixas contra
semelhante avareza, exercida em nome de vossa autoridade real…”3
Francisco Xavier com amizade, respeito e razões, não poupa o
Rei: ele que pense que há-de dar contas a Deus. Assim o avisa, fortemente.
Só o compromisso não deixa morrer o fascínio.
Xavier era apaixonado
Que se entende aqui por “paixão”? Xavier era um apaixonado
capaz de amar. Esta distinção é também essencial para viver nas
fronteiras. A paixão pode e deve dar lugar ao amor sob pena de se
perder num falso encantamento.
Um psiquiatra actual, Scott Peck, no seu livro “O caminho menos
percorrido”, esclarece, com antecedentes e consequentes, as diferenças entre estes dois estados de espírito e de acção: a Paixão e o Amor4.
Em síntese pode dizer-se que o que caracteriza o Apaixonado é o
colapso – temporário! – das fronteiras. Ao passo que para aquele que
verdadeiramente ama não desaparecem as fronteiras: antes, elas se
dilatam.
No fundo, o apaixonado não estabelece a união mas cai na confusão… absorvendo, ou eliminando as fronteiras por um tempo
(enquanto dura a paixão), e experimentando um encantamento enganador. Porque o amor não é a posse, mas comunhão com o outro
na liberdade, enquanto na paixão as fronteiras forçadas ressurgirão
reforçadas na mútua defesa.
Amar é respeitar fronteiras e diferenças, valorizadas até. E envolve
no mistério que a cada passo a vida nos revela – ao contrário do pensamento mais comum – que só o compromisso (com os limites que
Daurignac, S. Francisco Xavier, AI, Braga, págs. 195-197.
Scott Peck, O caminho menos percorrido, Sinais de Fogo, Cascais 2000, págs.
90-105.
3
4
122
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
impõe) impede que o fascínio morra. Nos campos de fronteiras não
se pretende eliminar a diferença. São as paixões pulsionais e as falsas
ortodoxias que confundem unidade com uniformidade.
Xavier terá entendido na dor das perdas e dos fracassos, que
também os teve, que só a paixão que der lugar ao compromisso de
promoção do outro e da sua diferença tem futuro. Essa paixão toma,
então, outro sentido: o de “passar” ou sofrer o que for preciso para
que o outro cresça.
Assim a “radicalidade” se completa pela “entrega” de amor. E
Francisco Xavier deixou que a graça reeducasse o seu temperamento
apaixonado, ensinando também aos outros a fazê-lo, pela “caridade
discreta”, a prática do “exame particular”: o discernimento e a “vigilância penitente”...
Saber que sempre se recupera o crucifixo perdido.
Xavier, homem de Deus
Francisco Xavier não foi uma espécie de “senhor dos Milagres”,
ainda que os tenha feito e extraordinários. O que o “canoniza” e
caracteriza é a fortaleza que lhe vem do abandono. Aí age o Espírito
Santo. E ele aprendeu com Sto. Inácio a “fazer tudo quanto depende
si, esperando tudo de Deus”, porque dEle tudo depende. Este verdadeiro milagre aprendeu-o nos sucessos e nas derrotas que integrava,
sobretudo, através de longas horas de oração. E tem um símbolo
forte: o famoso Caranguejo. O inesperado, o gratuito, o saber que na
hora de Deus sempre nos é retribuído o crucifixo. O Caranguejo que
lhe veio trazer à praia o crucifixo perdido no mar em plena tempestade é o símbolo deste passar fronteiras, dos campos de fronteira. Ou
seja: é de onde não esperamos que nos será retribuído (a nós Igreja) o
crucifixo perdido. Quem nos restitui, hoje, o crucifixo? De onde vier
o apelo a dar a vida, aí está a nossa China, o nosso campo de fronteira. Não se trata só de abrir novos campos de acção, mas também de
entregar-se aos de sempre, vividos com nova criatividade, abertos a
novos entendimentos.
Com Xavier nos campos de fronteira
123
Concluir é saber aplicar.
O sangrar e o sorrir
Curiosamente, “Caranguejo” diz-se câncer, é cancro e simboliza-o. Na dor e na doença e na morte há um campo de fronteira.
O Caranguejo “anda de lado”, dizemos. Então podemos ver nele
também toda a marginalidade donde vem o apelo da justiça e da
verdadeira globalidade.
O Caranguejo vem do mar – como uma natureza caótica que
grita e deseja integração.
O Caranguejo também nos fala de reconciliação com a cruz presa
nas suas pinças – apelo de novas linguagens, de bondade e de interculturalidade.
É perigoso extrapolar e abusar dos símbolos! Mas uma coisa é
certa e as histórias maravilhosas de Francisco Xavier obrigam-nos a
considerar: são precisos homens e mulheres que oiçam e descodifiquem este chamamento! Gente capaz de perder o crucifixo! Ou seja,
de ir até onde se perde o próprio crucifixo e se ganha a vida crucificada.
Francisco Xavier venceu a sua última fronteira não entrando na
(sua) China, mas na de Deus.
Nas sextas-feiras anteriores à sua morte – rezam as crónicas – o
Cristo-grande da capela do Castelo de Xavier sangrava. Sangrava e
sorria. E a partir do dia 3 de Dezembro, dia da sua morte, ficou
apenas o sorriso. No Cristo do Sorriso que hoje podemos visitar,
vemos também esse homem cristificado que ali aprendeu a rezar e a
transpor fronteiras.
Nos campos de fronteira, em qualquer fronteira, há sempre, e
não se podem separar, o sangrar e o sorrir.
Terceira Parte
O DESAFIO DE XAVIER
E SE XAVIER VIESSE HOJE?
Nuno Tovar de Lemos, SJ
A minha história é um pouco bizarra e parece-me natural que não
acreditem nela. Começou há meses, quando um dia me pediram que
descobrisse o paradeiro de S. Francisco Xavier. Respondi, com uma
certa ironia, que – tanto quanto se sabia – ele tinha morrido há 4
séculos e meio e que agora o seu braço direito estava em Roma, uma
sandália sua em Coimbra, grande parte do corpo em Goa e que os
pedaços que faltavam estavam dispersos em relicários, um pouco por
todo o mundo. Insistiram muito sérios que não, que estava vivo e
que se eu fizesse uma investigação cuidadosa haveria de o encontrar
e de chegar à fala com ele. Não me foram dadas mais indicações ou
ajudas a não ser uma mala na qual, segundo me disseram, encontraria as pistas necessárias para chegar até ele.
Era uma mala pesada que logo me encheu de curiosidade. Tive a
tentação de a abrir mal cheguei ao carro mas pareceu-me que melhor
seria fazê-lo num local sossegado. Dei comigo a estacionar o carro
frente aos Jerónimos, onde se cantou uma missa solene antes de
partir para o Oriente a frota de 5 caravelas que levaria S. Francisco
Xavier até Goa1. Sentei-me diante do Tejo, junto à Torre de Belém,
imaginando como seria quando a torre estava separada da terra, no
meio do rio, entre caravelas que vinham e iam, e pequenas barcaças
Georg Schurhammer sj, Francisco Javier, su vida y su tiempo. Edição conjunta
do Governo de Navarra, da Compañía de Jesús e do Arcebispado de Pamplona,
1992, Tomo I, p. 948.
1
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
128
de comerciantes e pescadores. Estava magnífico o Tejo nessa manhã!
Abri a mala.
O que lá encontrei, de certo modo, desapontou-me: um grosso
livro sobre a vida de S. Francisco Xavier, um outro com as suas cartas
e um pequeno envelope com uma relíquia do santo (um pedaço de
uma almofada sobre a qual repousara a sua cabeça, séculos depois
da sua morte). E nada mais. Nem um mapa, nem uma carta com
instruções mais precisas nem qualquer outra pista que me pudesse
ajudar. Olhei o Tejo, a imaginar se algum daqueles grandes navios
modernos iria para a Índia de modo que eu ainda o pudesse apanhar.
Ou seria melhor ir de avião? Claro, de avião a gente põe-se lá mais depressa. Lá, onde? Lastimei-me de saber tão pouco dessa parte do mundo onde S. Francisco Xavier trabalhou e que eu em breve visitaria.
Por onde começar? Tanto quanto me lembrava, ele tinha estado em
pontos tão diferentes como Goa, as Molucas, ou o Japão. Ou será que
estava agora na China, essa meta de sonho que nunca chegou a pisar?
Pus-me a folhear os livros que me tinham sido dados, recordando factos e datas e surpreendendo-me com muita coisa de que não lembrava
ou que não conhecia de todo... Por momentos consegui até esquecer
o embaraço da missão que tinha pela frente. Fiquei com o olhar preso
a uma carta dirigida por S. Francisco Xavier ao rei de Portugal, dando
contas da sua missão e pedindo o apoio do rei:
“Não vacile por mais tempo nem se atrase vossa alteza, pois por
muito que se apresse toda a diligência é pouca. O amor verdadeiro
e ardente que tenho a vossa alteza leva-me a escrever isto: imagino
que da Índia se elevem vozes de queixa por se mostrar vossa alteza
avaro para com elas; pois dos abundantes benefícios que de aqui
vão para enriquecer o erário real, vossa alteza só dedica uma pequenina parte ao remédio das gravíssimas necessidades espirituais
que há nestas regiões!”2
2
José Maria Recondo sj, San Francisco Javier, BAC, Madrid, 1988, p. 430.
E se Xavier viesse hoje?
129
O homem do presidente
Que liberdade interior! Recordei a importância de D. João III na
história de S. Francisco Xavier e como tinha sido por um pedido do
rei que S. Francisco Xavier tinha desenvolvido todo o seu trabalho
de missionação no Oriente. Foi ele, no fundo, que enviou o santo.
Pensei que, se hoje houvesse um rei, provavelmente S. Francisco Xavier lhe obedeceria de igual modo e que – se assim fosse – o próprio
rei me poderia dar uma pista de onde o santo se pudesse encontrar
hoje.
Foi então que me surgiu uma ideia, uma ideia totalmente disparatada e à qual eu não teria dado a mínima atenção se esta história
em que eu me via envolvido não fosse toda ela uma loucura: tentar
falar com o Presidente da República. Pedir-lhe uma pista. Explicarlhe a minha situação. Pus uma gravata que tenho sempre no portaluvas do carro e dirigi-me ao Palácio de Belém.
Entrar foi mais fácil do que eu teria pensado mas o Presidente,
obviamente, não me recebeu. Consegui no entanto – por ser jesuíta e
por ter aprendido com outros jesuítas a conseguir coisas impossíveis
– chegar a ter cinco minutos com um assessor seu. Ouviu-me muito
sério, como se a minha história fizesse todo o sentido do mundo, e
no fim explicou-me, muito correctamente, que já desde há muito
tempo que não havia império, que até Macau tinha recentemente
deixado de estar sob a administração portuguesa e que vigorava neste
momento uma clara separação entre Igreja e Estado, se bem que – de
acordo com a Constituição – a Presidência da República, de si laica,
tinha um profundo respeito por todas as crenças e demais ideologias
religiosas. Agradeci-lhe muito o tempo que me tinha dispensado e
saí recordando o 3º Grau de Humildade3 e como Cristo nosso Senhor por mim e pela minha salvação tinha passado muito mais do
3
Uma das meditações dos «Exercícios Espirituais» de Santo Inácio de Loyola.
130
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
que eu alguma vez chegaria a passar por Ele. Ia eu já quase a passar os
portões do Palácio quando senti passos a correr atrás de mim. Era o
assessor. Pensei que me viesse prender para me internar nalgum hospital psiquiátrico. Mas a razão era bem outra. “O Senhor Presidente
deseja falar consigo”. Percebi que ele próprio estava estupefacto.
O Presidente recebeu-me a sós, de forma calorosa, e quis saber
muitas coisas acerca de mim e da razão que me tinha levado a pedir
para falar com ele. Disse-me que o seu assessor, logo depois de ter
falado comigo, tinha ocasionalmente comentado a minha conversa
com ele. Imaginei-os aos dois a rirem-se de mim nas minhas costas
e tentei explicar ao senhor Presidente, o melhor que podia, que eu
próprio me sentia embaraçado com a missão que me tinha sido confiada mas que – por consideração para com aqueles que me tinham
entregue esta missão – não queria desistir antes de ter tentado. Fezme muitas perguntas acerca da pessoa que eu procurava – tantas
que eu próprio fiquei intrigado – às quais eu não sabia dar qualquer
tipo de resposta. A certo ponto da conversa, porém, confessou-me
ter recebido, já havia meses, uma carta que lhe tinha causado alguma perturbação e que, desde aí, lhe dificultava o seu trabalho e até
mesmo por vezes o sono. Não me leu a carta nem quaisquer trechos
dela mas disse-me que se referia ao desempenho do seu trabalho no
cargo que actualmente ocupava. Percebi que o que quer que estava
escrito nessa carta tinha conseguido atingir o coração do Presidente.
Solidarizei-me com este homem e perguntei-lhe, como quem não
quer a coisa, quem poderia ser o autor de tal carta. Confessou-me
então que vinha assinada por um tal P. Francisco de Xavier. Tremi
ao ouvir este nome. Perguntei-lhe, discretamente, se o envelope não
teria um remetente, uma morada através da qual pudéssemos chegar
à fala com esse padre. “Nada – disse ele – quer ver?” E, dizendo isto,
tirou da gaveta da secretária e passou-me para as mãos um envelope
branco escrito a esferográfica endereçado a ele e sem qualquer morada no remetente. Não tive coragem de pedir licença para ver a carta,
nem sequer teria tido tempo para tal pois o Presidente no momento
em que me deixou tocá-la estendeu-me o braço para que lha devol-
E se Xavier viesse hoje?
131
vesse. Mas tive tempo para ver o carimbo do selo: CTT – Miranda
da Beira. Despedimo-nos e o assessor conduziu-me à saída fazendo
alguma conversa de circunstância acerca da história dos jardins do
Palácio.
Miranda da Beira
Estaria então o S. Francisco Xavier do nosso século em Portugal e
não no Oriente? Poderia este P. Francisco de Xavier ser a pessoa que
eu procurava? E onde ficava a terra cujo nome se lia no carimbo dos
correios? A verdade é que eu nunca tinha ouvido falar dela. Será que
existia? Já tudo me parecia possível...
Sim, tal localidade existia e eu consegui encontrá-la no mapa, lá
para o interior do país. Pensei que melhor seria, antes de embarcar
para a Ásia, gastar um dia em Miranda da Beira. Era a minha única
pista e o mais que me podia acontecer era fazer um passeio em vão.
Miranda era uma aldeola como tantas outras do interior do país,
com dois ou três cafés, uma escola primária e um riacho. Entrei num
café que era ao mesmo tempo mercearia e fui atendido por um rapaz
que estava a fazer contas no livro da escola. “Por acaso não conheces
um padre chamado Francisco de Xavier?”, perguntei-lhe. Abriramse-lhe os olhos mal ouviu o nome, deu um pulo para dentro de casa
e gritou: “Mãe, está aqui um amigo do P. Francisco”. A Mãe, uma
senhora aí dos seus quarenta anos, apareceu imediatamente acabando de vestir um casaco de malha pois estava a preparar-se para sair.
Abriu-me os braços antes que eu pudesse dizer alguma coisa ou fazer-lhe alguma pergunta: “Amigo do P. Francisco meu amigo é”. E
desatou numa ladainha de louvores ao P. Francisco. Como o tinha
conhecido, um dia que ele tinha chegado à sua aldeia e ali mesmo
no café se tinha posto a pregar; como tinha levado dois irmãos seus
a fazerem as pazes; como havia ali perto da aldeia uma velhota que
ele tinha curado de um mal de estômago e como, desde a sua pas-
132
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
sagem por aquela terra, as portas da Igreja se voltaram a abrir todos
os dias para a oração do fim da tarde e se voltou a fazer a novena e
a procissão em honra de Santa Marta. Ficou desapontada por eu
não saber quando o P. Francisco voltaria a passar por lá. Não sabia
onde o P. Francisco se encontrava agora mas havia um senhor que
talvez soubesse e que ia estar na oração, que em breve começaria.
Aceitei ir com ela. Pelo caminho explicou-me que o P. Francisco
só tinha passado por Miranda duas vezes e a última já tinha sido há
mais de meio ano, mas que em cada uma dessas vezes tinha deixado
mais conversões que muitos padres em vários anos. Perguntei se não
tinham padre ali na aldeia. Respondeu que não, que o último padre
que ali tinha vivido tinha morrido há mais de vinte anos. Que depois, durante vários anos, um outro padre de uma aldeia vizinha ia lá
aos Domingos uma vez por mês, mas que mesmo esse não aguentou
pois para além daquela paróquia tinha mais outras catorze.
Chegámos à capela que, para grande espanto meu, estava cheia.
Cantavam já animadamente o cântico inicial, orientado por um grupo de três mulheres. Chamou-me a atenção um grupo de deficientes
sentados nas primeiras filas e acompanhados por alguns jovens. Viria
mais tarde a saber que – desde a primeira passagem do P. Francisco
por Miranda – o grupo de jovens da capela ia diariamente dar apoio
a um centro de deficientes que existia naquela localidade. O cântico
terminou e um homem de meia idade subiu ao altar e orientou um
mistério do terço e umas orações diante do Santíssimo exposto nas
quais várias pessoas falaram. Uma delas foi a senhora do café que fez
uma oração de acção de graças pela visita “de um amigo do P. Francisco que está aqui ao meu lado”. Nesse momento a capela inteira
voltou-se para mim com sorrisos rasgados. No fim da celebração
muitos vieram para me dar as boas-vindas. Eu lá ia corrigindo e
explicando que ainda não tinha chegado a conhecer o P. Francisco,
mas parecia que o simples facto de andar à procura dele já fazia de
mim um membro natural daquela comunidade. Finalmente apareceu o tal homem de meia idade que se inteirou da minha situação
E se Xavier viesse hoje?
133
e me disse que não sabia onde estava o P. Francisco mas que tinha
ouvido dizer que ele e dois companheiros seus iam visitar uma localidade a 70 Km dali.
Seria este P. Francisco o homem que eu procurava? Poderia o
S. Francisco Xavier do nosso século andar por aí de aldeia em aldeia
de Portugal sem viajar para o estrangeiro? Eu tinha metido na minha
cabeça, sem sequer me questionar, que me deveria deslocar até à
Ásia para o encontrar. Mas, de repente, fez-se-me luz. Se o que tinha
atraído S. Francisco Xavier à Ásia eram as “gravíssimas necessidades
espirituais” daquelas regiões tão abandonadas pastoralmente, não
era verdade que em Miranda ou outras terras do interior de Portugal
se sentia agora um idêntico abandono? E se no Oriente ele se tinha
enchido de compaixão por comunidades que se diziam cristãs por
terem recebido no passado alguma forma de evangelização mas que
de cristãs apenas mantinham o nome, não se encheria ele agora de
compaixão por tantas aldeias de cristãos nominais no interior do
país? Onde estariam hoje esses cristãos de nome e sem assistência
pastoral? Não me pareceu desprovido de sentido continuar a minha
“caça ao homem” por terras de Portugal.
www. amdg.com
Estamos tão habituados a ver endereços de sites de internet que
quase me pareceu natural encontrar um destes endereços na folha de
cânticos que me tinha sido distribuída à entrada da capela em Miranda. De facto, foi só ao chegar à pensão em que fiquei essa noite
e aos esvaziar os bolsos das calças que me chamou a atenção o dito
endereço: “www.amdg.com”. Não resisti enquanto não liguei o meu
portátil e entrei no site.
A apresentação gráfica era relativamente modesta. A página de
entrada era uma fotografia da terra vista do céu que alternava com
outra do céu vista da terra. Daí passava-se para o menu. O utilizador
134
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
podia escolher entre uma variedade de tópicos. Entrei num que se
chamava “Fecha a porta do teu quarto”. Começava assim: “Se queres
rezar, fecha a porta do teu quarto e fala ao teu Pai em segredo”. Ali
estava tudo o que alguém precisaria para começar a rezar. Dicas para
a escolha do local, indicações quanto a possíveis maneiras diferentes
de rezar, uma selecção de orações simples e sugestões de textos da
Bíblia com pistas para reflexão pessoal. Quem quisesse podia ainda
enviar questões para um endereço de e-mail que se chamava “correio
espiritual” que alguém competente, do outro lado da linha, responderia às suas questões acerca da vida espiritual. Uma senhora pedia
conselho acerca de uma promessa que tinha feito mas que agora não
podia cumprir. Um rapaz perguntava que fazer pois cada vez que se
tentava concentrar para rezar só conseguia pensar na namorada.
Vi que havia ainda uma secção de catequese com resumos da fé
cristã. A pessoa escolhia a pergunta e aparecia no ecrã a resposta.
Muito curioso, escolhi uma pergunta que dizia: “Que acontece a
uma pessoa depois da morte?” Pensei que encontraria referências ao
juízo final e ao perigo da condenação eterna. Mas não. Vinha escrito
assim: “Confia que Aquele que por amor te criou por amor te quererá ter eternamente junto a Si”. A linguagem era toda deste estilo,
um estilo a que eu não estava habituado: directo, simples e afectivo.
Dirigido à cabeça e ao coração.
Poderia este tipo de linguagem ter alguma coisa a ver com S.
Francisco Xavier? A princípio achei que não, mas depois recordei
os catecismos que ele fez no Oriente, alguns em rima e para serem
cantados, e pensei que quem é capaz de pôr a doutrina em música
para povoações malaias também seria capaz de a pôr em linguagem
simples do nosso século na internet. Mais espantado fiquei quando
entrei na secção sobre Jesus Cristo. Parecia incrível, a imagem que
se abria lentamente no monitor, diante dos meus olhos: o Cristo
do Sorriso. Sereno, desafiador, seguro de si: exactamente a mesma
imagem que desde há tantos séculos se venera no Castelo de Xavier
E se Xavier viesse hoje?
135
e que ainda hoje lá está a oferecer paz a quantos por lá passam. O
Cristo do Sorriso! Seria coincidência? Mas como, se existem tantas
imagens de Cristo? Porquê esta, que ficou tão ligada a S. Francisco
Xavier, à sua vida e até mesmo à sua morte? Pareceu-me ver no sorriso deste Cristo a mesma simplicidade e imediatez da linguagem em
que vinha apresentada a doutrina.
Dois ícones chamaram-me a atenção antes de sair do site. O primeiro era dos “Supermercados Poupança”. Percebi que eram eles
os patrocinadores da página e surpreendeu-me que através deste site
religioso se pudessem também fazer compras de detergentes ou de
queijos. O segundo ícone representava duas mãos dadas. “Clicando”
nele acedia-se a referências e esclarecimentos sobre as outras grandes
religiões, obtinham-se contactos úteis dessas religiões e anunciavamse encontros ecuménicos e inter-religiosos. Se S. Francisco Xavier
tinha alguma coisa a ver com tudo isto, isso significava que ele tinha
reflectido muito, nestes cinco séculos, acerca dos seus pressupostos
inter-religiosos.
A Paróquia do Espírito Santo
Na manhã seguinte dirigi-me para a localidade que o senhor de
Miranda me tinha indicado. O seu cartão dizia apenas “casal Mansilhas, Casa Azul, R. do Largo, nº 54” e o nome da localidade. Mal
cheguei, percebi logo que não se tratava de uma pequena aldeola
mas de uma cidade de tamanho médio: tinha uma zona industrial,
um belo jardim público, um museu, muitas lojas e supermercados,
um liceu, um quartel da polícia, transportes públicos e uma extensão
considerável de bairros sub-urbanos. Indicaram-me a rua do Largo.
A Casa Azul era uma pequena vivenda, relativamente modesta mas
bem cuidada. Recebeu-me à porta um homem dos seus sessenta anos
que logo percebi ser o Sr. Mansilhas. “Tiago”, insistiu ele. Não ficou
surpreendido que eu procurasse o P. Francisco, mas lastimou o meu
azar. O P. Francisco e dois companheiros tinham passado por ali há
136
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
um semana. Era para ficarem mais tempo mas entretanto o P. Francisco tinha ouvido falar de uma vasta zona no interior onde nunca
se tinha ouvido falar de Jesus Cristo e tinha decidido dirigir-se para
lá. “Creio que também percebeu que aqui estava tudo a correr bem e
que não precisaria de se demorar mais”, acrescentou, com um sorriso
orgulhoso nos lábios.
– “Tudo”, o quê? – perguntei sem medo de ser indiscreto.
– Tudo sobre a nossa comunidade, a Paróquia do Espírito Santo.
– Ah! – disse eu – o P. Francisco é o vosso Pároco?
– Não – respondeu o Sr. Mansilhas – o pároco sou eu!
Eu é que já não estava a perceber nada. “Mas então o senhor é
padre?”
– Não, aqui não temos padre. Eu não sou padre, sou diácono
permanente. Eu e a minha mulher.
– Então o senhor é casado?
– Há trinta e cinco anos, pela graça de Deus. A Madalena e eu
temos três filhos que Deus nos deu, mas só um vive ainda connosco.
Os outros já estão casados. Felizmente estão todos bem encaminhados. Sempre fomos muito de Igreja e há dois anos fomos nomeados
os responsáveis da Paróquia.
– O Sr. Bispo sabe disto? – perguntei a medo.
– Então não?! Foi ele que nos nomeou! Mas o P. Francisco é que
o convenceu, claro. No nosso caso nem foi preciso muito; os primeiros, há dez anos, é que foram mais difíceis. O Bispo dizia que o
povo não estava preparado para ver leigos no papel de padres e que
padre sempre é padre. E tinha razão. Mas o povo habitua-se mais
depressa do que os padres e os bispos pensam. O mais importante é
dar bom testemunho. Nisto o P. Francisco insiste sempre muito. De
qualquer maneira, o P. Paulo, que pertence ao grupo do P. Francisco, ficou como padre responsável por este arciprestado de paróquias
sem padre. Vem cá de vez em quando, nas grandes festas e noutras
alturas, avalia connosco o andamento da comunidade, ajuda a resolver problemas, confessa e celebra a Eucaristia.
E se Xavier viesse hoje?
137
– Mas então aqui há outras paróquias a funcionar assim? – perguntei.
– Aqui na cidade há mais duas e nesta zona são mais de vinte,
entre paróquias e capelanias. Há também outras terras onde está a
ser difícil encontrar um casal responsável. As pessoas têm medo da
responsabilidade. Mas o P. Francisco não desiste. Ele vai à frente a
desbravar terreno e não deixa uma comunidade até que ela caminhe
por si mesma.
– Como é que funciona uma paróquia sem padre? Desculpe a
ignorância, mas eu nem sabia que existiam tais paróquias. Quem faz
os casamentos e os funerais? Quem orienta as celebrações na Igreja?
Há celebrações na Igreja, não?
– Claro que sim. Todos os dias há oração, que várias pessoas
orientam. E ao fim-de-semana há duas celebrações da Palavra com
distribuição da comunhão, orientadas pela Madalena ou por mim.
Os baptismos, quem os faz é o P. Paulo, quando passa por cá.
– E os funerais?
Nesse momento tocou o telefone e o Sr. Mansilhas pediu licença
para atender.
– Olá Matias... Agora às cinco? Está bem. (…) Sim, a Irª Joana
parece-me bem. Se precisarem de alguma coisa digam.
– Sabe – disse, pousando o telefone – morreu ontem um jovem
aqui da paróquia e o grupo paroquial que acompanha os doentes
queria acertar comigo a hora do funeral. Por que é que não vai lá
espreitar? E depois janta aqui connosco para podermos conversar
à-vontade e vermos juntos o programa de televisão. Sabe que o P.
Francisco vai aparecer hoje na televisão, não sabe?
– O P. Francisco na televisão?! – exclamei, apanhado de surpresa
e contentamento – Que bom, tenho tanta vontade de o conhecer!
Eu não sabia que o P. Francisco era homem de ir à televisão.
– De vez em quando – respondeu o Sr. Mansilhas – diz que sempre que lhe pedem vai. Eu acho que eles por um lado sentem muita
curiosidade por ele mas por outro lado têm medo porque sabem que
vai partir a loiça toda! Praticamente já nem o convidam para falar de
138
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
assuntos religiosos porque ele não se cala. Mas, seja qual for o tema,
ele sabe levar sempre a água ao seu moinho.
Dirigi-me ao cemitério, que ainda era longe. Na capela mortuária lá estava, junto ao altar, a Irª Joana, uma senhora relativamente
jovem vestida com uma túnica simples. Estava a acabar de ler o
Evangelho. Todos se sentaram.
– O momento não é para grandes homilias – disse ela de pé – mas
não posso deixar de pedir ao Senhor que vos dê força neste momento
e vos encha de confiança de que o vosso filho está bem. Não sei a dor
por que estão a passar, pois eu própria nunca passei por ela. Mas sei
o que é ter um filho e sei que por um filho não há nada que um pai
ou uma mãe não façam. Por isso vos peço: confiem em Deus, que é
Pai e Mãe. E aceitem o apoio que a nossa comunidade vos puder dar
nos próximos tempos.
– Dito isto convidou todos a levantarem-se, abriu os braços, disse
“Oremos” e fez uma oração muito bonita pelo jovem que tinha falecido. Depois aspergiu o corpo com água benta e saiu com o cortejo
para a sepultura.
Impressionou-me a segurança desta mulher a quem chamavam
de Irª Joana e que afinal não era freira, como eu tinha pensado, mas
uma mãe de família. Via-se que não era a primeira nem a segunda
vez que fazia funerais. Esperei por ela à saída e fiquei a saber que a
Paróquia do Espírito Santo, como as outras da zona, estava organizada por áreas de serviço às quais chamavam de “ministérios”. Ela
pertencia ao ministério dos doentes, um grupo de uma dúzia de
cristãos que, para além de funerais, fazem visitas a doentes e ajudam
as pessoas a preparar-se para morrer. Disse que o mais difícil era
quando os doentes se queriam confessar, que já tinha escutado muita gente e que, mesmo sem poder dar a absolvição, acabava por fazer
com eles uma oração de confiança no perdão de Deus.
E se Xavier viesse hoje?
139
Para além do ministério dos doentes havia também o da catequese, o dos jovens, o da solidariedade e o da família, que preparava
noivos para o casamento, fazia casamentos e ajudava casais em crise,
entre outras coisas. Explicou que uma parte considerável dos cristãos
da Paróquia estava envolvida nalgum destes ministérios. O grupo
do P. Francisco assegurava cursos de formação dos leigos para os
vários ministérios e dava-lhes também manuais e outros materiais de
apoio.
O jantar em casa do Ir. Tiago foi um deliciosos banho de optimismo a acompanhar umas não menos deliciosas costeletas de porco. Falámos muito destas equipas de ministérios. A Irª Madalena estava muito entusiasmada com os fins-de-semana que estavam a fazer
em aldeias vizinhas e que chamavam de “missões”. Fiquei também a
saber que todos estes grupos trabalhavam gratuitamente.
– E vocês, como é que vivem? – perguntei à descarada ao casal da
Casa Azul.
– Nós somos sustentados pela comunidade. Nas missas não se
fazem peditórios, mas quem vem à Igreja dá um contributo anual
conforme as suas possibilidades. Esse contributo vai todo para a
Diocese que, por sua vez, paga aos responsáveis. Não é muito, mas
temos ainda as nossas reformas e com isto tudo, se não fizermos
grandes excessos, dá para viver equilibradamente.
“Cem por cento cultura”
A conversa decorreu animada, mas nenhum de nós tinha por
um só momento esquecido o programa de televisão. “Bem vindos
ao “Cem por Cento Cultura” – disse a apresentadora. Televisão e
Universidades – qual tem maior impacto na nossa cultura contemporânea? É este o tema do “Cem por Cento” desta semana e temos
connosco para o discutir um Professor universitário, um jornalista e
um padre”. Neste momento a câmara afastou-se e lá estava ele, o P.
140
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
Francisco, o homem aparentemente inacessível atrás de quem eu andava. Nunca o imaginara assim! Aparentava 40 e tal anos de idade,
tinha cabelo forte, testa larga, barba abundante, uma boa estatura,
mais magro que gordo4 e sentava-se confortavelmente no seu sofá.
Tinha o seu rosto rasgado por um sorriso natural e nos seus olhos
grandes o brilho dos homens apaixonados. A pele tostada do rosto
sobressaía mais pelo contraste com a camisa branca sem colarinhos
que usava aberta e sobre a qual pendia uma cruz pequena de madeira, muito simples.
Universidades ou Televisão? O primeiro a falar foi o jornalista.
Recordou os inícios da televisão e a sua rápida expansão. Estava
perfeitamente consciente do enorme impacto da caixa mágica na
criação das mentalidades na cultura contemporânea, facto que ele,
como jornalista, sentia como uma grande responsabilidade pessoal.
Lamentava que, por vezes, os meios de comunicação caíssem na tentação do mais fácil e nem sempre dessem adequada divulgação àquilo
que acontece nos grandes “templos do saber” (como ele chamava às
universidades). Achava, por fim, que a questão não era “televisão ou
universidades” mas que a cultura só ganharia com uma relação mais
próxima entre ambas. O Professor, por sua vez, estava plenamente
de acordo. Sublinhou o papel importante da televisão na divulgação
de muitas descobertas do âmbito das ciências e de como, de facto, a
televisão ajudava a uma maior proximidade entre a cultura superior
e o público em geral. Por fim lastimou as dificuldades orçamentais
com que se debatem as universidades, comparando as suas verbas
com as verbas astronómicas que se gastam por dia na televisão.
Faltava o P. Francisco.
– P. Francisco, o senhor é um homem mediático que pertence a
uma ordem religiosa tradicionalmente muito ligada à cultura. Por
4
Conferir a descrição que faz de S. Francisco Xavier um português de nome
Fausto Rodrigues, que com ele viajou, em Schurhammer (op.cit.), Tomo II, p.
887.
E se Xavier viesse hoje?
141
outro lado é alguém que tem passado os últimos anos a viajar pelo
interior do país e que, segundo alguns, conhece esta realidade como
ninguém. Que percepção tem do impacto das universidades na vida
real das pessoas do interior? Que diria aos seus alunos, se tivesse uma
cadeira na universidade?
– Tem piada pôr-me essa questão – disse o P. Francisco, claramente entusiasmado com a ideia – Já várias vezes pensei nela. Se
eu tivesse uma cadeira na universidade, acho que traria logo para a
primeira aula muitas fotografias da vida de muita gente e diria aos
meus alunos “se vocês soubessem quantas pessoas deixam de ser felizes por não haver quem se ocupe delas”! Dir-lhes-ia que temo que
muitos dos que ensinam e estudam nas universidades estejam mais
preocupados em acumular conhecimentos para fazer a sua própria
carreira e ganhar dinheiro do que em usá-los para o bem dos outros
e dar fruto com esses conhecimentos. É que se não procurassem
só os seus próprios interesses mas os dos outros e se não abrissem
só a cabeça mas também o coração muitos iriam diante de Deus e
diriam “Senhor, que queres que eu faça? Envia-me onde quiseres”.
Com quanta maior alegria viveriam eles se pudessem dizer a Deus
“Entregaste-me cinco talentos; aqui estão outros cinco que consegui ganhar com eles!”. Mas claro – acabou ele, com um sorriso
atrevido – depois disto ninguém me vai convidar para ter uma
cadeira na universidade!
Os olhos dos 3 seus companheiros de programa estavam perplexos de espanto. Mas a investida ainda não tinha acabado:
– E sabe o que é que eu diria se tivesse um programa de televisão? O primeiro programa seria sobre navegação. Passava imagens
de um barco a navegar por meio das ondas e os tripulantes a largar
o leme para queimarem incenso diante de um altar cheio de ídolos
que tinham posto na proa do barco e a atirar dados para ver em que
direcção indicavam os ídolos que deveriam continuar, enquanto o
barco ficava à deriva por ninguém lhe segurar o leme. Depois expli-
142
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
cava-lhes que a vida é como um barco, que o leme é a liberdade que
Deus nos deu para as mãos e que o melhor é segurarmos bem esse
leme porque a nossa sociedade está cheia de ídolos.
– Ó senhor padre – comentou trocista o jornalista – isso de ídolos já não existe, são coisas da Idade Média. Entretanto já veio a Idade da Razão e cada um tomou o leme do barco nas suas mãos. Não
entendo que ídolos são esses que tanto o preocupam e que poderiam
comandar a vida das pessoas.
O P. Francisco foi muito simpático com o jornalista e concordou
absolutamente com ele que os ídolos de antigamente já não existem
e que felizmente já não estávamos na Idade Média. Mas disse-lhe
que lhe parecia que a publicidade enganosa, por exemplo, acabava por levar muitas famílias a endividarem-se até chegarem a uma
situação de que já não conseguiam sair. E que havia seitas que se
aproveitavam de quem estava doente ou se sentia perdido e, em vez
de ajudarem as pessoas a lutar por um sentido positivo para as suas
vidas, prometiam milagres às quintas-feiras a troco do dízimo. E que
o próprio bombardeamento na televisão de imagens artificiais de
pessoas belas, bem sucedidas e felizes fazia muitas pessoas sentiremse feias, fracassadas e infelizes e deixarem de ser elas próprias. E que
era a isso que ele chamava de ídolos.
A apresentadora – ela própria bela, bem sucedida e feliz – desviou
a conversa e o programa terminou pouco tempo depois.
Finalmente o encontro
Agora, que o tinha visto na televisão, sabia estar perto a hora do
nosso encontro. Não conseguia fugir à sensação de que praticamente
toda a gente o conhecia pessoalmente menos eu. Vou poupar-vos os
pormenores dos muitos quilómetros que tive ainda de fazer pelo interior do país e dos muitos outros testemunhos que pelo caminho fui
ouvindo acerca do P. Xavier e da sua obra. O certo é que na Paróquia
do Espírito Santo puseram-me em contacto com um companheiro
E se Xavier viesse hoje?
143
extraordinariamente próximo do P. Francisco, o Ir. João. Nem este
foi fácil de encontrar: parecia atacado do mesmo vírus de permanente mobilidade do P. Francisco. Mas lá o encontrei no momento em
que ajudava uns doentes num posto de saúde de mais uma pequena
aldeia do interior. O Ir. João disse-me que tinha estado com o P.
Francisco dias antes, na comunidade de jesuítas que lhes servia de
quartel general entre as suas muitas deslocações. Explicou-me que
não tinham tido muito tempo para conversar pois o P. Francisco
estava atarefado, juntamente com um rapaz de nome António que
o acompanhava, a fazer os preparativo para mais uma viagem, desta
vez até uma região onde antes nunca tinha estado. António conhecia
esta região pois era de lá natural. “O P. Francisco estava tão entusiasmado com os preparativos para esta viagem que parecia que ia para
o Céu”, comentou o Ir. João, enquanto limpava o suor do rosto a
uma criança doente e lhe segurava na mão. “Mas parece que a viagem não ia ser fácil pois é uma região remota e os transportes para lá
são escassos”. Perguntei ao Ir. João o que nesta região atraía tanto o
seu companheiro. “O mesmo de sempre – respondeu ele – a alegria
de poder levar Jesus Cristo a quem não O conhece e a esperança do
bem que lá se pode fazer. Mas desta vez era diferente – continuou,
pensativo – fazia a mochila como se a salvação do mundo inteiro
dependesse do empenho que punha nesta viagem”. Infelizmente o
Ir. João não sabia o nome da terra, mas sabia para onde ia o primeiro
autocarro que o P. Francisco e o seu acompanhante iam apanhar.
Imaginava que aí, se eu os descrevesse, me poderiam informar para
onde tinham seguido. Olhei no mapa e vi que, com sorte, chegaria
lá antes do anoitecer.
Enganei-me. A estrada era muito pior do que eu imaginara e
quando lá cheguei já era noite cerrada e não tinha onde ficar. Foi
em vão que procurei pelas ruas alguém que me pudesse dar alguma
informação. Vi ao longe um autocarro estacionado numa espécie de
pequena estação de camionagem. “Talvez haja ali alguém acordado
– pensei”. Estacionei o carro e nem queria acreditar na minha sorte:
144
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
um rapaz atravessava a rua e vinha precisamente ao meu encontro.
Estava salvo. Alguém me poderia ajudar a encontrar uma cama para
essa noite. Mas nem tive tempo de falar.
– Venha depressa – disse o rapaz – preciso da sua ajuda. Estou
sozinho com alguém que está muito mal. Chegámos há horas no autocarro e estávamos à espera de um outro autocarro que não chegou,
mas ele está cheio de febre. Talvez o senhor nos possa levar de carro
ao hospital?
Tive um enorme pressentimento. “António?”. “Sim – disse o
rapaz sem ligar importância – Vamos!”. Fui. Encostado às portas
fechadas da garagem, o homem que eu tinha visto na televisão agarrava com força a cruz de madeira que tinha ao peito. Pe Francisco.
Dizia a custo coisas repetidas, pequenas orações. Estava obviamente
muito doente mas em paz. Finalmente calou-se por uns momentos,
abriu os olhos e tentou dizer: “Para a maior… para a maior…” António ajudou-o: “Eu sei, P. Francisco, eu sei… vá em paz que nós
continuamos: para a maior glória de Deus”. O P. Francisco, esboçou
um grande sorriso, apertou ainda mais a sua cruz de madeira junto
ao peito e morreu.
E foi assim que eu percebi que, apesar de ele ter vivido há quatro
séculos e meio e o seu braço direito estar em Roma e uma sandália
sua em Coimbra e grande parte do seu corpo repousar em Goa, a sua
voz continua a falar de Deus um pouco por todo o mundo e a inventar novas linguagens para o poder fazer. E os seus pés continuam
a descobrir escondidas novas terras de missão. E o seu coração continua a sonhar formas novas de ser Igreja, muito para além do que
pareceria possível, sem medo de arriscar o certo pelo incerto para ir
atrás de um sonho e chegar onde nunca se tinha chegado antes, ou
mesmo – quem sabe? – até à China.
E tudo isto… para a maior glória de Deus.
O MILAGRE DA BOTA DE PEQUIM
Juventude na pista de Xavier
Carlos Carneiro, SJ
“Por um extraordinário concurso de circunstâncias, Paris, Roma,
Lisboa e Coimbra foram o palco de uma das mais espectaculares e
polémicas aventuras espirituais que o mundo moderno conheceu:
a do nascimento, ascensão, queda e ressurreição da Companhia de
Jesus. É difícil encontrar na longa história das empresas humanas
ilustração mais cabal, sob a mítica roupagem barroca, do exemplo
evangélico do grão de semente onde nasce a árvore em que pousam
as aves do céu. Em apenas meia dúzia de anos os jesuítas estenderão
as suas asas de Roma à Baia e S. Vicente, de Lisboa a Goa e a Yamagushi. Poucos mais são do que os apóstolos e como apóstolos são
tidos, admirados e em breve temidos. Quem são estes homens que 3
vezes foram expulsos de Portugal e 3 vezes ressurgiram do seu chão
salgado? Quem são estes homens que... “ assim falava naquela manhã o Prof. Vaz de Almada, citando o seu velho amigo Prof. Eduardo Lourenço a propósito de Inácio de Loyola, Francisco de Xavier,
Manuel da Nóbrega, António Vieira e tantos outros que se sentiram
chamados a viver sob a bandeira da cruz incentivando os seus alunos
a acordar para a vida e para a história.
Eram apenas 8.30 da manhã do dia 3 de Dezembro de 2002.
O dia estava tão frio quanto solarengo. A “cabra” da velha torre da
Universidade de Coimbra dava as suas primeiras badaladas enquanto o João Maria, quartanista de História, embrulhado na sua capa
negra e envaidecido nas suas fitas azuis, subia atleticamente a Coura-
146
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
ça de Lisboa esperando encontrar uma cadeira vazia na aula de história moderna. Apesar da aterragem ter sido quase forçada, João Maria
não cabia em si de surpreendido com tudo o que acabava de ouvir.
Na memória ficou-lhe o nome de um tal Francisco de Xavier, jovem
impetuoso e afectivo, estudante brilhante na Sorbone que depois de
convertido partiu para o Oriente onde realizou feitos tão grandes que
passados 500 anos continua a ser respeitado por católicos e hindus,
crentes e descrentes. Como terá sido possível? Quem terá sido afinal
este homem Navarro que se considerava também português e que
partiu de Lisboa como embaixador do Rei e delegado do Papa percorrendo os caminhos do Oriente? A palavra “Oriente” provocava no
João Maria um vendaval de emoções. Desde há alguns anos que João
Maria sentia um desejo de conhecer o Japão, de viajar até à China.
Terminada a aula, João Maria dirige-se, como habitualmente, ao
bar da Faculdade de Letras. No bar, enquanto os cafés acordam os
mais ensonados e os pastéis de nata deleitam os mais gulosos alguém
sugere a China como meta para a viagem de finalistas. A China? Mas
será possível? Terá enlouquecido ou nem sequer estará ainda acordado? Como será possível? Não será melhor pensar numa hipótese
mais viável? João não cabia em si de contente e entre a incredulidade
e o desejo vai pensando: “a China”... E porque não? E movido por
um impulso interior grita. Claro, a China! Vamos à China! “Bora,
vamos à China”. Seria preciso arranjar patrocínios, vender rifas, organizar festas, mas se fosse preciso até a cama se vendia.
Quatros meses depois, aproveitando as férias da Páscoa, um grupo de finalistas do curso de história da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra aterrava no aeroporto de Pequim. João Maria
sente um nó na garganta, tem a sensação de estar a pisar terra sagrada
e sem perder muito tempo nas “demarches” do aeroporto e do hotel,
para o qual todo o grupo tinha sido encaminhado, escapa ao guia
turístico e passeia-se sozinho pela cidade desconhecida. “Estou em
Pequim, meu Deus. Eu, João Maria estou em Pequim. Uhau!”.
O milagre da bota de Pequim
147
No mercado de “Xamsé” deleita-se com o artesanato, as loiças e
os vestígios de um passado cultural completamente diferente do ocidental. Procurando alguns presentes para oferecer, João Maria percorre as bancas cheias de velharias e deixa-se prender por uma velha
bota que, curiosamente conseguiu comprar sem saber ou entender
uma única palavra de chinês.
No quarto do hotel, já depois de ter jantado com os colegas na
embaixada de Portugal, abre os papeis de jornal que envolvem a
bota que comprou. “De quem terá sido esta bota”, pensou. “De um
mandarim?”. “De um navegador português que no passado chegou
a estas terras?”. “De onde terá vindo, quantos passos terá dado,
quantas viagens terá feito, quantas histórias contaria se a deixassem
falar?” Uma coisa ficou clara. A bota seria um presente para o prof.
Vaz de Almada que tanto os ajudou a realizar o sonho desta viagem
e cuja idade, infelizmente, lhe impediu de acompanhar tão grande
viagem. Guardou-a como se tratasse de um grande tesoiro e só a
voltou a ver quando, já regressado a Coimbra, a entregou ao seu
querido professor.
O professor agradeceu muito o presente e levou a bota para o seu
escritório. Metendo a mão dentro da bota para a colocar na prateleira o professor descobre um pequeno rolo de papeis bem enlaçados,
tão carcomidos que corriam o perigo de se esboroarem ao primeiro
toque. Com uma perícia própria de quem já se habituou a pôr a mão
nos tesouros mais inesperados, o professor abriu delicadamente estas
páginas e ficou estupefacto. Não podia acreditar no que estava a ver.
Seria mesmo verdade? Seriam originais? Seriam cópias? Mas como?
O seu coração bate forte e a sua respiração fica ofegante. Telefona
ao João Maria, revela-lhe o achado e a suspeita do que seja. A bota
trazia consigo 3 pedaços de cartas escritas por S. Francisco Xavier na
Ilha de Sanchoão antes de morrer. Cartas que provavelmente ainda
ninguém conhecia. Cartas que provavelmente não teve tempo nem
oportunidade de enviar para a Europa.
148
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
João Maria fica estarrecido. Não sabe o que há-de pensar ou dizer. Não entende logo o porquê de tanta emoção do professor mas
percebe que se deve tratar de alguma coisa muito importante. O
professor diz-lhe que não pode aceitar um tal presente. Se as cartas
forem autênticas será preciso descobrir como chegaram a Pequim e de
quem seria afinal aquela velha, gasta e misteriosa bota. Seria do próprio santo? Mas não seria demais ousar colar uma tal hipótese? João
Maria abre o rolo e não consegue ler nada. O texto está muito gasto
e as palavras são de um português antigo que não lhe é perceptível.
O professor atreve-se a tentar. Coloca uns óculos mais fortes, puxa o
candeeiro para si e com uma enorme lentidão e não menor solenidade,
enquanto lhe brilham os olhos começa a ler o seguinte texto:
“Goa, 17 de Abril de do ano da graça de 1552.
Minha querida irmã Ana, escrevo-vos de Goa onde me encontro
desde Fevereiro. Hoje partirei para uma nova viagem que me levará
até à China, terra que, pela graça de Deus espero pisar ainda antes do
Natal. Para os navegadores portugueses a China é vista como um grande
mercado. Para mim é um imenso território que falta conquistar para
Cristo. Deus tem sido a minha força e a minha esperança. Estou muito
feliz por poder me encontrar neste lado do mundo. Embora me sinta
quase morto de cansaço embarcarei hoje para Malaca a fim de poder encontrar alguém que me leve à China. O mais difícil foi obtido. Pereira,
um comerciante português que muito me tem ajudado conseguiu o cargo
de embaixador de Portugal e a autorização papal através do Rei para
entrarmos nessas misteriosas e apetecíveis terras do oriente. Claro que
também contámos com alguns obstáculos em particular de um tal Alvaro de Ataíde, almirante dos mares do oriente. Mas Deus não deixará
de me ser propício tal como tem sido a todos os meus companheiros que
se encontram espalhados pelo mundo ao serviço de Cristo, conforme me
contava Mestre Inácio numa carta que pela graça de Deus me esperava
em Malaca da última vez que por lá passei.
Nestes dias tenho-me lembrado muito de ti, dos manos e dos nossos
O milagre da bota de Pequim
149
queridos pais. Como o tempo passa. Já estou com 46 anos, sabias? O dia
do meu nascimento, 7 de Abril de 1506 já me parece tão longínquo.
Tens notícias da vida do castelo? Reina pelas terras de Navarra a paz
ou porventura aumentaram os conflitos? Como gostaria que a mãe fosse
viva para ver como todos os sacrifícios que fez por nós valeram a pena.
Sabes, Ana, pude conhecer um pouco melhor a mãe na altura em que os
manos fugiram para França depois de terem lutado contra os castelhanos que queriam dominar as nossas terras. Nessa altura, morávamos no
palácio novo, lembras-te?
Minha querida irmã Ana, nunca esqueci o cheiro da nossa terra e
o ar fresco que inundava o castelo vindo da serra de Leire, recordo os
rebanhos que se passeavam junto ao rio, as salinas, o moinho, o toque
das Avé Marias na abadia e sobretudo as longas ausências do pai. Como
era íntegro e fiel o nosso Pai. Como soube merecer a confiança dos nossos
reis de Navarra e partir com eles depois da tomada de Pamplona pelo
Duque de Alba. Não fosse a ambição dos castelhanos e ainda hoje a torre
do nosso castelo não estaria em ruínas. Mas não te preocupes. O Miguel
e o João ajudados pelo nosso tio Martinho serão capazes de recuperar a
honra e a memória do nosso Pai. Tinha apenas 9 anos quando ele morreu, lembras-te?
A vida tem coisas inimagináveis, minha querida irmã. E Deus não
desperdiça nenhuma delas para nos conduzir. Alguma vez os nossos manos poderiam pensar que aquele bravo soldado contra o qual lutaram
em Pamplona, Inácio de Loyola, seria meu companheiro de quarto em
Paris e acabaria por ter tanta influência na minha vida ao ponto de
se tornar no mais fiel amigo e me mostrar outro caminho para os meus
sonhos de grandeza?
Lembras-te da última festa que tivemos no palácio? Foi o teu casamento com Diego Ezpeleta, senhor do palácio de Beire. Foi tão bonito.
Lembro-me que me diverti e dancei imenso. Depois a guerra tomou
conta das nossa terras. Ainda bem que no tempo em que pude ajudar a
150
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
mãe a gerir os negócios da nossa família fui ganhando gosto pelos estudos
acabando por preferir os livros à carreira das armas. Lembro-me da
emoção que senti quando tive nas minhas próprias mãos o diploma de
doutor do pai. Era um belíssimo pergaminho, escrito com tinta escura e
iniciais a ouro, com um escudo de cores fantásticas onde se podia ler: “In
nomine Christi. Amén. Gloriosa scientiarum Mater Bonina”. Também
eu, como aliás, todos nós, desejaríamos ser dignos de tão grande senhor.
Como vês, Ana, apesar de ter deixado o castelo com apenas 19 anos
para estudar em Paris, de ter visto tantas coisas e ter percorrido tantas
terras, o nome da nossa família continua intacto no meu coração. Uma
coisa gostava de te confessar, Ana, talvez a mais sagrada de todas as
coisas que te digo: Nunca, mas mesmo nunca esqueci o sorriso do Cristo
que está na Capelinha do castelo. Está dentro de mim. Levanto-me com
Ele a sorrir. Deito-me com Ele a sorrir. Gostava de sorrir assim. 0 sorriso
que tenho e do qual Deus se tem servido para derrubar alguns obstáculos
por estas terras, não é mais do que o esforço suave de mostrar por fora o
Cristo que vive por dentro de mim.
Ana, não te esqueças de rezar por mim e por todos os meus companheiros. Hoje mesmo parto para a China, a minha terra prometida.
Não sei se serei recebido no palácio do imperador ou se me encontrarão
num cárcere de Cantão. Que importa! Tudo posso e vivo pela força do
Senhor. Quando puder, dar-te-ei novas notícias. Que Deus vos dê tanta
consolação nesta vida e na outra quanta para mim desejo. Vosso mais
pequeno irmão, Francisco”.
O professor Vaz de Almada estava estarrecido. Como teria ficado
feliz esta mulher se tivesse recebido esta carta! João Maria olhava
boquiaberto para o professor, fixava os seus olhos humedecidos e
não sabia o que dizer. Agarrou-lhe a mão como se fosse a mão do seu
querido avô e disse-lhe: Continue, professor, continue, por favor. O
professor retira delicadamente um outro papel da bota e começa a ler
em voz alta:
O milagre da bota de Pequim
151
“Ilha de Sanchoão, 1 de Dezembro do ano da graça de 1552
Meu querido pai e mestre Inácio, queira Deus guardar-vos na Sua
magnífica bondade. Quanta alegria vivi em Malaca ao ler a vossa última carta. Jamais poderei agradecer-lhe tudo o que fez, em particular
durante o tempo dos nossos estudos universitários na Sorbone em Paris.
0 padre sabe como eu não simpatizava consigo. Achava-o velho para
universitário, excessivamente beato para o meu gosto e, além do mais,
tinha lutado com os castelhanos contra Navarra. É verdade que também
eu era possuído por um fortíssimo amor à verdade e procurava cumprir
os meus deveres para com Deus e para com a nossa mãe, a santa Igreja.
O Pedro Fabro, com quem partilhávamos o quarto, bem pode testemunhar a meu favor. Fui sempre um estudante dedicado e os excelentes
resultados que tirava saiam-me da pele. Em tudo procurava ser o melhor. Talvez por isso, depois do meu doutoramento, me quisessem para
professor da universidade. E mesmo todas as vitórias desportivas que
alcancei e os prémios académicos que recebi vejo-os, passados todos estes
anos, como um terreno que Deus foi preparando até à conquista total.
Que ideia foi essa de me nomear provincial do Oriente? Vossa reverência esqueceu-se do barro de que sou feito? Não lhe bastou o susto
que me pregou quando me convidou para coordenar todo o nosso grupo?
Ainda bem que aceitou a minha proposta de ser apenas o seu mais fiel
secretário. Ficar ao seu lado enquanto todos os nossos companheiros espalhavam o evangelho por diversas cidades da Europa sob as ordens do
Romano Pontífice foi certamente doloroso para mim mas também um
presente que Deus me deu para poder conhecer o quanto na sua sensatez
não podia ser mais louco por Cristo e mais obediente ao romano pontífice. Que saudades tenho dos 6 meses que passámos em Veneza vivendo
e trabalhando juntos no hospital dos incuráveis enquanto esperávamos
a licença de viajarmos até à terra santa. E como fomos todos ordenados
sacerdotes no dia de S. João Baptista. Sabe Vossa reverência que, depois
de me ter mandado para Lisboa, procurei encontrar no caminho o Pedro
Fabro que se encontrava em Parma juntamente com Laínez, mas Deus
152
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
quis que aprendesse desde logo a treinar o amor aos amigos vivido na sua
ausência.
Quantas memórias me têm assaltado a cabeça e o coração nestes dias
em que me encontro na praia de Sanchoão, morando numa pequena cabana de palha que os navegadores portugueses me ajudaram a construir. E
como me parece confortável este chão, comparado com todas as tempestades
e outras adversidades que vou encontrando por aqui. Diante de mim,
tenho o mar calmo e extenso. Daqui posso avistar a China, uma terra
enorme, cheia de futuros cristãos que espero conquistar para Cristo e para
adorar o verdadeiro Deus. Assim Ele me ajude. Vossa reverência sabe que
todos os que conseguir enviar para estas paragens serão poucos. Tomei a liberdade de escrever para o colégio de Coimbra e pedir ao Simão Rodrigues
para me enviar todos os jovens jesuítas que pudesse. Em Malaca, enquanto
me preparava para partir para o Japão, tive a sorte de abraçar três novos
companheiros. Graças a Deus, vejo que o nosso grupo está a crescer e que
haverá quem dará continuidade à missão nestas terras.
Nestes dias encontro-me mais cansado, mas muito feliz. Só a impaciência de não poder fazer ainda mais por Deus do que tudo o que tenho
feito me desassossega o coração. Tenho tido uma ligeira febre, coisas que
por estas terras são de somenos importância. Deus sabe o que quer de
mim. Como Vós me dizíeis tantas vezes “Que queres de mim Senhor?
Seguindo-vos não me poderei perder”. Continuo a guardar no bolso da
batina, junto ao coração, as tiras com os nomes dos nossos companheiros
e sinto-me tão unido a eles que apesar de desejar tanto revê-los e abraçá-los sinto quase uma consolação maior por poder estar nestas terras a
pensar neles do que se estivesse fisicamente ao seu lado.
Meu caro Mestre, continua a contemplar o céu e as estrelas? E as
castanhas, já é tempo delas por aí? Que saudades tenho das noites que
passámos juntos, contemplando o céu, a rezar e a sonhar acordados com
Deus. E como eram grandes e puros os nossos sonhos comparados com a
pequenez dos meus triunfos de Paris. Lembra-se daquele papelinho que
O milagre da bota de Pequim
153
me deixou por debaixo da porta no dia do meu aniversário? Conservo-o,
juntamente com o crucifixo que me confiou, como os tesoiros mais precioso que recebi em vida.
Não posso deixar passar esta oportunidade sem lhe agradecer uma vez
mais tudo quanto fez por mim, desde o dinheiro que conseguia arranjar
para pagar os meus estudos em Paris quando os meus irmãos deixaram
de me poder ajudar, até ao trabalho que lhe dei durante os exercícios espirituais onde vi tão claro como o homem pode perder tudo quando quer
ganhar o mundo inteiro. Como é que o senhor conseguia ser tão próximo
e tão discreto? Como foi capaz de prescindir do seu pouco dinheiro em
meu favor? Como me conseguiu arranjar tantos alunos? Porque não desistiu logo de mim? E porque me fez sempre sentir que eu era um amigo
especial para si sem nunca ter deixado de se dar inteiramente a cada um
dos seus companheiros?
Vossa paternidade sabe quanto sofri e quanto resisti para entregar
toda a minha liberdade ao Eterno Senhor de todas coisas. Não que eu
levasse uma vida dissoluta antes de me converter. Mas, como Vossa paternidade tão bem conhece, as minhas defesas eram mais subtis e o desejo
de grandeza dominava-me as entranhas. A glória e o triunfo dançavam
na minha própria mão e ganhar grande reputação entre os homens não
era coisa contrária ao evangelho nem à honra dos meus antepassados.
Daí que o desejo de ser pobre, de caminhar até Jerusalém, de viver para
os outros, não estivessem nos meus planos.
Ganhar o mundo inteiro. Eu sabia que não tinha nascido para menos. E não corresponder a este impulso da minha inteligência seria pior
do que morrer sem glória. Vossa paternidade fez-me ver que existe um
ideal maior do que ganhar o mundo todo para si próprio, que é ganhar
o mundo todo para Deus e viver para a sua maior glória. Que Deus me
dê a humildade para continuar a espalhar por estas terras o nome de Jesus. Sabe que continuo a usar a campainha para chamar os que querem
para a lição do catecismo?
154
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
Não sei se já lhe contei, mas uma das coisas mais difíceis que tive que
fazer por estas terras foi vestir-me de embaixador de Portugal e Legado
Pontifício para ser recebido na corte do imperador do Japão. Já lá tinha estado, pobre e descalço e com isso nada tinha conseguido a não ser
ofender o imperador e o seu povo. O imperador ficou tão impressionado
com a dedicação que lhe prestei que me concedeu a liberdade de pregar
nos seus territórios. O mesmo espero venha a acontecer na China. Para
os homens desce-se subindo. Para Deus sobe-se descendo. Por aqui, chamam-me impaciente, face ao desejo de querer chegar a tudo e a todos.
Tenho-o sempre como mestre e por isso creia-me seu devedor; mas, sobretudo tenho-o por amigo e companheiro no Senhor e por isso deixe que
lhe diga, como dizem por cá os portugueses, muito obrigado. Desde que
decidi abraçar Cristo pobre e humilde, nem um só dia a minha alegria
vacilou, embora as forças nem sempre coincidam com a vontade de O
servir pedindo-lhe mais pobreza que riqueza, mais humilhações do que
glória, ser considerado louco por Cristo mais do que prudente aos olhos
deste mundo. Despeço-me, confiando na infinita misericórdia de Deus,
Senhor de todos os tempos e lugares e com o favor da vossa oração e sacrifícios, vossos e de toda a companhia. Espero que, se não nos virmos nesta
vida, nos veremos na outra com maior prazer e descanso do que temos
neste mundo. Vosso filho e irmão em Cristo. Francisco de Xavier”.
Depois de um largo e sonoro respiro o silêncio inundou o gabinete
do professor Vaz de Almada. João Maria estava calado e inquieto. Não
entendia o que se estava a passar no interior do seu velho professor
mas intuía que algo de muito importante se passava, bebia cada uma
das palavras que ouvia e sentia dentro de si um desejo estranho de
querer saber mais coisas sobre este homem e a sua vida. Entretanto, o
professor repara que João Maria está surpreendido e não foi capaz de
lhe dizer mais do que: “Estás assim e só conheces os primeiros anos da
vida deste homem. Se tu conhecesses a sua vida como missionário ficarias estarrecido. É um grande. Deus fez dele um grande, João Maria.
Deus faz de todos os que deixam, um grande, João”.
O milagre da bota de Pequim
155
Movido por um impulso quase repentino, João Maria toma a
liberdade de abrir o último dos papéis e sem saber o que o esperava
começa a ler pausadamente. “Oiça, professor, oiça:
Oração ao Cristo do Sorriso
Não me move, Senhor para querer-Vos
A glória que me tendes prometido
Nem me move o inferno tão temido
P’ra deixar por isso de ofender-Vos
Moveis-me Vós, Senhor, move-me o ver-Vos
Sorrindo nessa cruz escarnecido
Move-me o Vosso corpo já estendido
E a alegria que vejo ao padecer-Vos
Minha alma em vos amar tanto se esmera
Que não havendo céu, eu vos sorria
E não havendo inferno eu Vos temia
Nada em vos sorrir de Vós espera
Pois, se o que esperara em Vós, não esperara
O mesmo que Vos quero, Vos quisera.
Que poema mais estranho, professor. Poderá Cristo sorrir na
Cruz? Sorrir de verdade? Sorrir porquê? Sorrir para quem? Que efeitos terá tido este sorriso em Francisco de Xavier? Terá influenciado
o seu comportamento tão alegre e jovial? Teria ajudado a construir a
sua vontade de vencer e o gozo de viver? Que imagem seria aquela?
Onde estaria? Que poder arrebatador teria aquele Cristo?” Todas
estas perguntas explodiam no coração do João Maria, tanto mais
que nos últimos anos do seu curso João Maria procurara encontrar
respostas para algumas dúvidas que brotavam no mais fundo da sua
alma.
156
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
Rompendo o silêncio, o João pergunta ao professor: O Sr. lembra-se daquele poema da Sofia de Melo Breyner “Vimos o mundo inteiro nos Seus olhos, E por o vermos nós ficamos penetrados de força e de
destino. Ele deu carne aquilo que sonhávamos e os nosso sonhos viram-se
iluminados pelas iluminadas imagens de oiro que Ele vira. Porque o
ergueste assim como um sinal...” E, interrompendo-o, o professor
continua: “pusemos tantos sonhos em seu nome”. É assim que termina
o poema, João Maria: “pusemos tantos sonhos em seu nome”.
“E agora, João? O que fazemos com a tua preciosa bota e estes
textos? Francamente, não sei. O professor fica com a bota? – perguntou o João Maria. Eu quero que o professor fique com a bota. Seja de
quem tiver sido esta bota e estes textos, a bota agora é sua professor.
Trouxe-a para si. É sua professor”. O professor aceitou enquanto
por dentro continuava a interrogar-se: E se a bota fosse mesmo de S.
Francisco Xavier? Como terá ido parar a Pequim? Algum mercador
a terá recolhido depois da sua morte? Quem? E os papéis? Seriam
autênticos? Como se conservaram todos estes anos? O professor não
via outra solução que pedir ajuda a um seu velho amigo da revista
Brotéria, membro da Academia Portuguesa de História, até porque
se recordava, ainda que vagamente, de terem tido um dia uma conversa a propósito de uma bota de S. Francisco Xavier que se encontrava no noviciado de Coimbra.
O professor Vaz de Almada despede-se do seu aluno, agradece-lhe encarecidamente a bota, pede-lhe que guarde segredo de tudo
quanto se tinha passado naquele gabinete e promete dar notícias logo
que consiga. João Maria retira-se completamente esgotado. Tentou
passar pela Sé Nova para encontrar um pedaço de paz, mas como
já passava das 6 da tarde esta encontrava-se fechada. Acabou por
ir jantar à cantina. Refeito o estômago, decidiu caminhar sozinho,
percorrendo vagarosamente as vielas e calçadas da alta de Coimbra,
antes de voltar a casa. Aquela bota, aquelas cartas, não o deixavam
sossegado. E enquanto se passeava pensava: E se eu tivesse encontra-
O milagre da bota de Pequim
157
do dentro da bota uma carta para os estudantes desta universidade?
O que é que estaria lá escrito? Que desafios nos faria este homem?
Como nos contaria a sua infância e juventude? O que nos diria do
seu tempo de estudante em Paris? Falar-nos-ia da sua conversão? Afinal, não existem nesta universidade estudantes tão honestos e com
desejos tão saudáveis como os seus? Quem é que nos desafia? Quem
é que nos ensina que há outra maneira de ganharmos o mundo e
realizarmos os nossos sonhos de grandeza? Não estaremos a precisar
de conhecer um Cristo que sorri?
E com o desejo de poder um dia conhecer o tal Cristo de Xavier,
que sorri, João Maria regressa ao seu quarto de estudante situado
na república dos Pra-kis-tão. Entretanto, fizera-se noite e, como
habitualmente, João Maria não se deita sem contemplar o céu.
Olhando as estrelas da janela do seu quarto, pensava: E se eu arriscasse e entregasse a minha vida? E se eu me pusesse em causa? Como
o mundo dos meus desejos me parece tão pequeno, comparado com
os do santo da bota de Pequim. E se eu arriscasse? Provavelmente
não serei rico nem famoso. Serei feliz? E cansado, João Maria adormeceu no cadeirão onde se sentava habitualmente, confiado que a
velha cabra o acordaria na manhã seguinte para viver um outro dia
ou, quem sabe, começar toda uma outra vida.
ANEXOS
Expedições missionárias da Companhia de Jesus no Padroado português
que se seguiram imediatamente à primeira de todas: a de S. Francisco
Xavier e Companheiros só para o Oriente, até à expulsão por
Pombal.
Total em 215 anos: só para o Oriente = 2 164.
Média de missionários jesuítas saídos cada ano, só para o Oriente =
10,06.
EXPEDIÇÕES MISSIONÁRIAS S.J.,
DO SÉCULO XVI,
DE LISBOA PARA O ORIENTE
(Na col. da ‘naturalidade’, as indicações ‘não entre parêntesis’,
indicam os países de hoje em dia, na sua configuração actual).
ANO
N.Pessoas
Naturalidade
N. Mártires
Missão
1541
4
1 Espanhol
(1 Navarra)
1 Italiano
2 Portugueses
1545
3
1546
9
2 Italianos
1 Espanhol
(1 Galego)
7 Portugueses
2 Espanhóis
(2 Castelhanos)
1º márt.sj.
(Ital. António
Criminal)
1 Português:
(Pedro Lopes)
1548
10
2 Portugueses
(Belchior
Gonçalves;
Paulo do Vale)
1548
3
8 Portugueses
1 Holandês
1 Espanhol
(1 Bética)
Portugueses
1551
Portugueses
Oriente
1553
11
(9 órfãos)
3
Portugueses
Goa
1554
2
Portugueses
Oriente
1555
12
6 Portugueses
5 Espanhóis
(5 Castelhanos)
1 Belga
(1 Flamengo)
Etiópia,
Índia
Extremo
Oriente
Índia
Extremo
Oriente
Extremo
Oriente
Extremo
Oriente
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
162
1556
14
10 Portugueses
4 Espanhóis
(3 Castelhanos, 1
Bética)
1558
2
1 Português
1 Espanhol (1 Bét.)
Oriente
1560
4
Oriente
1561
6
1562
8
1563
6
1564
6
2 Portugueses
2 Espanhóis
(2 Castelhanos)
2 Portugueses
2 Espanhóis
(1 Castel.; 1 Bét.)
2 Italianos
5 Portugueses
1 Italiano
2 Esp. (2 Valenc.)
2 Portugueses
1 Belga (1 Flam.)
3 Espanhóis
(2 Castel., 1 Vale.)
1 Português
4 Espanhóis
(1 Valenc., 1 Biscai., 1 Canta., 1
Castelhano)
1 Italiano (1 Sic.)
1565
6
1567
10
5 Espanhóis
(1 Valenc.,1 Cat.,
3 Cast.)
1 Italiano
4 Portugueses
2 Italianos
4 Espanhóis
(3 Cast., 1 Cata.).
1 Português
(Gonçalo da
Silveira)
Etiópia,
Índia
Oriente
1 Português
(Manuel
Lobo)
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Expedições missionárias – século XVI
163
1568
3
Portugueses
Oriente
1569
4
Portugueses
Oriente
1571
8
7 Portugueses
1 Espanhol
(1 Navarro)
Oriente
1574
42
10 Portugueses
8 Italianos (1 Sic.;
1 Lomb.; 6 de outras reg.)
24 Espanhóis (1
Cal.; 1 Valenc.; 1
Galego; 2 Bética; 1
Aragão; 1 Navarro;
17 Castelhanos)
1575
4
2 Portugueses
1 Inglês
1 Italiano
Oriente
1576
11
Oriente
1577
2
8 Portugueses
3 Italianos
Portugueses
1578
14
7 Portugueses
5 Italianos
1 Belga (Flamen.)
1 Suíço
1579
12
4 Portugueses
3 Belgas (2 Flam.)
2 Italianos
1 Inglês
1 Espanhol
(1 Bética)
1 Suíço
3
(2 Espanhóis:
Af. Pacheco;
Fr. Fernandes;
1 Português:
Franc.
António)
Ìndia
Japão
China
Oriente
3 (1 Italiano: Rodolfo
Aquaviva
1 Suíço: Pedro Berno;
1 Português:
J. Fernandes)
Oriente
Oriente
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
164
1581
14
10 Portugueses
2 Italianos
(1 Napolitano)
2 Espanhóis
( 1 Cast.; 1 Nava.).
3 Portugueses
4 Espanhóis
(4 Castelhanos)
7 Italianos
(1 Ven.; 2 Napol.)
1 Flamengo
Japoneses
1583
15
15821590
(inverso).
4 Jovens
Japoneses
que vêm à
Europa.
1584
10
1585
12
1586
(Volta
Emb.
Jap.)
31
1587
2
Portugueses
Congo,
Angola
1588
10
6 Portugueses
2 Italianos
2 Castelhanos
Oriente
4 Portugueses
3 Italianos
3 Espanhóis
(1 Catalão)
8 Portugueses
1 Espanhol
(1 Castelhano)
3 Italianos
16 Portugueses
6 Italianos
(1 Napolitano)
8 Espanhóis
(6 Castelhanos)
1 Japonês
Oriente
Oriente
JapãoEuropa
EuropaJapão
2 (1 Espanha:
Ant. Critana;
1 ?)
Oriente
Oriente
3 (1 Português: Diogo
Mesquita;
1 Espanhol:
Balt. Torres;
1 Japonês:
Julião
Nacaura)
Oriente
Expedições missionárias – século XVI
165
1588
5
Portugueses
Brasil
1589
5
Oriente
1591
4
4 Portugueses
1 Espanhol
(1 Castelhano)
Portugueses
1591
11
Oriente
1592
15
1593
6
1594
4
9 Portugueses
2 Italianos
12 Portugueses
2 Italianos
1 Maranh.
5 Portugueses
1 Italiano (1 Gen.)
Portugueses
1595
4
Portugueses
1596
18
1597
17
1599
20
7 Portugueses
5 Espanhóis
(5 Castelhanos)
6 Italianos
(2 Sicil.; 1 Napol.)
11 Portugueses
6 Italianos
11 Portugueses
8 Italianos
(1 Sardenha, 1
Gen.; 1 Sicil.)
1 Afric.
Brasil
2 (1 Maronita: Francisco
Jorge)
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
3
(2 Ital.: Carlo
Spínola;
Jerón. de Angelis)
Japão (3
anos
no mar,
errando)
Oriente
1
(1 Português:
Ir. Vicente
Álvares)
Oriente
EXPEDIÇÕES MISSIONÁRIAS S.J., NO SÉCULO XVII,
DE LISBOA PARA O ORIENTE
(Na col. da ‘naturalidade’, as indicações ‘não entre parêntesis’,
indicam os países de hoje em dia, na sua configuração actual).
ANO
N.Pessoas
Naturalidade
N. Mártires
Missão
1601
9
Portugueses
Oriente
1602
60
25 Portugueses
3 Franceses
32 Italianos
(1 Veneziano)
1603
15
1604
12
1605
13
1607
11
1608
8
8 Portugueses
7 Italianos
(1 Milão;
1 Florentino)
7 Portugueses
7 Italianos
9 Portugueses
4 Italianos
6 Portugueses
4 Italianos
1 Belga (1Flam.)
Portugueses
1 (Português:
João Bapt.
Carvalho)
6 (3 Ital.;
3 Port.: Miguel de Carvalho; Bento
Fernandes;
Sebast.Vieira)
2 (2 Ital: Camillo Constanzo; João
Metello)
1609
24
12 Portugueses
9 Italianos
(3 Napol.; 1 Genovês)
3 Belgas (3 Flam).
Oriente
Oriente
Oriente
2 (2 Ital. Jácome
Oriente
Oriente
1 (Port.: Manuel Borges)
Oriente
Oriente
Expedições missionárias – século XVII
1611
22
1612
4
1614
12
1615
12
1616
2
1617
12
1618
34
1619
6
1620
2
1622
4
1623
23
20 Portugueses
1 Espanhol
(1 Cast.)
1Milan.
3 Portugueses
1 Arménio
Portugueses
2 (Portugueses: L. Lardeira – Francisco
Machado)
167
Oriente
Oriente
Oriente
6 Portugueses
5 Italianos (Milan.)
1 Flamengo
Portugueses
Oriente
10 Portugueses
2 Italianos
(2 Sicilianos)
19 Portugueses
6 Italianos (2 Sicil.; 2 Bol.; 2 Mil.)
5 Flamengos
1 Austríaco
Alemães
3 Portugueses
– 2 Italianos (1
Mil.; 1 Nap.)
1 Francês
Portugueses
Oriente
2 Portugueses
1 Italiano
1 Castelhano
14 Portugueses
2 Franceses
1 Japonês
1 Húngaro
4 Italianos
1 Belga (1 Flam.)
Oriente
2
(1 Italiano:
G. Franc.;
1 Português:
Gil Abreu)
Japão
China
Oriente
Oriente
Oriente
1 (Japonês:
Petrus
Cassui)
Oriente
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
168
1624
15
1625
12
1627
6
1627
3
1629
42
1628
3
1630
29
1632
5
1633
7
1634
6
1635
33
13 Portugueses
2 Italianos (1 Sic.)
11 Portugueses
1 Polaco
4 Portugueses
1 Belga (1 Flam.)
1 Italiano
1 Português
2 Esp. (2 Catal.)
24 Portugueses
2 Franceses
1 Alemão
12 Italianos (4
Nap.; 1 Mil.;
1 Lomb.)
2 Japoneses
1 Flamengo
1 Português
1 Italiano
1 Japonês
28 Portugueses
1 Francês
2 Portugueses
3 Italianos
5 Portugueses
1 Polaco
1 Italiano
Portugueses
10 Portugueses
21 Italianos (1
Nap.)
1 Alemão
1 Suíço
Oriente
2 (2 Portugueses: Franc.
Rodrigues;
João Pereira)
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
1 (Polaco:
Alberto
Menchisque)
Oriente
Oriente
2 (Italianos:
Marcello
Mastrilli;
Ant. Capece)
Oriente
Expedições missionárias – século XVII
1637
14
1638
5
9 Portugueses
2 Espanhóis
(2 Castelhanos)
3 Italianos
(1 Malta)
Portugueses
1639
7
Portugueses
169
Oriente
Oriente
Oriente
(voltaram)
1640
25
1641
6
1643
15
1644
10
1645
11
1647
15
14 Portugueses
1 Polaco
8 Italianos (5 Nap.;
1 Sicil.; 1 Trident.)
1 Austríaco
1 Suíço
4 Portugueses
2 Italianos (1
Roma.; 1 Napol.)
7 Portugueses
6 Italalianos
1 Polaco
1 Francês
(1 Saboiano)
2 Portugueses
2 Italianos
3 Flamengos
1 Holandês
1 Polaco
1 Espanhol
(1 Castelhano)
4 Portugueses
4 Italianos
1 Francês
1 Alemão
1 Belga (1 Flam.)
14 Portugueses
1 Flamengo
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
170
1648
5
1649
3
1 Português
3 Italiano
1 Flamengo
Portugueses
Oriente
1649
3
3 Portugueses
Oriente
1650
7
7 Portugueses
Oriente
1652
14
Oriente
1653
3
10 Portugueses
4 Italianos
Portugueses
1654
4
Oriente
1655
25
1656
9
1657
36
1658
6
1660
3
1661
3
3 Portugueses
1 Italiano
11 Portugueses
11 Franceses
3 Italianos
4 Portugueses
2 Belgas
1 Holandês
1 Inglês – 1 Polaco
21 Portugueses
1 Polaco – 2 Belgas
(1 Flam.)
1 Austríaco
7 Italianos (Tride.)
2 Alemães
2 Franceses
3 Portugueses
1 Italiano
1 Francês – 1 Inglês
2 Portugueses
1 Italiano
Portugueses
1664
2
2 Portugueses
(voltaram)
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
(voltaram)
Expedições missionárias – século XVII
171
1665
21
Portugueses
Oriente
1666
18
Oriente
1667
7
1668
6
1670
11
1672
11
1673
27
8 Portugueses
8 Italianos (2 Gen.;
1 Roma.; 1 Parma)
1 Belga
1 Chinês
4 Portugueses
2 Italianos (1 Gen.)
1 Belga
3 Italianos
(1 Lombardia)
3 Portugueses
10 Portugueses
1 Italiano
10 Portugueses
1 Italiano
15 Portugueses
3 Italianos
(1 Sicil.; 1 Trident.)
1 Suíço
3 Franceses
(1 Córs.; 1 Saboia.)
1 Bávaro
1 Inglês
1 Irlandês
2 Belgas
1674
5
1 Português
1 Malta
3 Italianos
(2 Sicil.; 1 Milão)
Oriente
1675
4
3 Portugueses
1 Aragonês
Oriente
1677
18
15 Portugueses
3 Italianos
(1 Piemonte)
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
Oriente
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
172
1680
20
17 Portugueses
2 Belgas
1 Alemão
1 (Português:
Luís Mello)
1681
16
15 Portugueses
1 Irlandês
Oriente
1682
16
14 Portugueses
1 Alemão
(1 Hamburgo)
1 Italiano
Oriente
1683
4
3 Portugueses
1 Italiano (1 Gen.)
Oriente
1684
6
2 Portugueses
2 Espanhóis (Arag.)
2 Belgas
Oriente
1685
4
Portugueses
Oriente
1686
3
Portugueses
Oriente
1687
6
5 Portugueses
1 Francês ( Sab.)
Oriente
1688
12
Portugueses
Oriente
1689
12
11 Portugueses
1 Italiano
Oriente
1690
26
14 Portugueses
10 Italianos
(1 Milão; 1 Génova; 1 Roma: 1
Veneza;
Tirol-Sul)
2 Alemães
1691
11
6 Portugueses
3 Alemães
1 Chinês
1 Suíço
2 (2 Portugueses:
João de Brito;
P. Belmonte)
Oriente
Índia
Japão
Goa
Japã
China
Expedições missionárias – século XVII
173
1692
16
2 Portugueses
6 Italianos
3 Belgas
2 Franceses
1 Suíço
1 Sueco
1 Alemão
Oriente
1693
2
2 Portugueses
Oriente
1694
19
17 Portugueses
2 Italianos
(1 Sicil.; 1 Piemonte)
1695
18
17 Portugueses
1 Italiano
(1 Napolitano)
1696
11
9 Portugueses
1 Alemanha
1 Italiano
1697
10
7 Portugueses
2 Italianos
(1 Génova)
1 Francês
(1 Saboia)
Oriente
1698
17
12 Portugueses
3 Alemanha
1 Italiano
1 Luxemburgo
Oriente
1699
20
14 Portugueses
4 Italianos
(1 Tirol-Sul; 1
Trident.)
2 Bamberga
Goa
Malabar
Macau
China
1 (Italiano:
José Candoni)
Goa
Malabar
Japão
China
Oriente
1 (Português:
Manuel
da Cunha)
Oriente
EXPEDIÇÕES MISSIONÁRIAS S.J., NO SÉCULO XVIII,
DE LISBOA AO ORIENTE
(Na col. da ‘naturalidade’, as indicações ‘não entre parêntesis’,
indicam os países de hoje em dia, na sua configuração actual).
ANO
N. Pessoas
Naturalidade
N. Mártires
Missão
1700
19
15 Portugueses
1 Ital. – 3 Alem.
Oriente
1701
16
Portugueses
Goa,
Malabar
Japão
China
1702
9
Portugueses
Goa
Malabar
Japão
1703
17
15 Portugueses
1 Italiano (Ven.)
1 Fran. (1 Saboia)
Goa
Malabar
Japão
1704
7
6 Portugueses
1 Austríaco
Japão
1705
7
5 Portugueses
1 Italiano
1 Brasileiro
Goa,
Malabar
Macau
1706
10
1 Português
1 Belga
2 Alemães
1 Eslovaco
(1 Boémia)
3 Italianos
(1 Veneza)
1 Suíço
1 Polaco
Japão
China
Expedições missionárias, s.j. – século XVIII
175
1707
8
5 Portugueses
1 Francês
1 Brasileiro
1 Italiano (Gen.)
Oriente
1708
32
20 Portugueses
11 Italianos
1 Alemão
Goa
Malabar
Japão
China
1709
7
4 Portugueses
2 Alemães
1 Austríaco
Goa
Malabar
Japão
1710
1
1 Italiano
Oriente
1711
9
9 Portugueses
Goa
Malabar
Japão
1712
13
13 Portugueses
Oriente
1713
8
4 Portugueses
4 Italianos
(1 Sardenha)
Goa
Tibete
1714
17
1715
8
11 Portugueses
5 Italianos
(1 Milão)
1 Alemão
6 Portugueses
2 Alemães
1716
14
12 Portugueses
2 Alemães
1717
12
11 Portugueses
1 Alemão
1718
14
5 Portugueses
9 Ital. (4 Sicil.;
2 Flore.; 1 Parma)
1 (Italiano:
Franc. M.
Bucherelli)
Tonqim
China
Oriente
China
Depois preso
por Pombal:
Franc. Alberto
Depois preso
por Pombal:
A.X.Morabito
Goa
China
Oriente
176
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
1719
2
1 Chinês
1 Francês (1 Sab.)
China
1720
12
10 Portugueses
2 Italianos
(2 Florentinos)
1722
18
16 Portugueses
2 Italianos
(1 Sic.; 1 Napol.)
Oriente
1723
9
6 Portugueses
3 Italianos
(1 Napo.; 1 Sic.)
Malabar
China
1724
5
Portugueses
Oriente
1725
21
17 Portugueses
3 Italianos
1 (ignora-se a
nacionalidade)
Goa
Malabar
China
1726
5
Portugueses
Oriente
1727
19
17 Portugueses
2 Alemães
1728
16
14 Portugueses
2 Italianos
1730
25
24 Portugueses
1 Italiano
1731
22
9 Portugueses
8 Brasileiros
1 Inglês
1 Alemão
1 Austríaco
2 Italianos
Depois preso
por Pombal:
Franc.Folleri
Depois preso
por Pombal:
J. Alexandre
Oriente
Goa
Malabar
Japão
Goa
Malabar
Japão
Depois preso
por Pombal:
F. Pimentel
Goa
Malabar
China
Japão
Goa
Malabar
Japão
Expedições missionárias, s.j. – século XVIII
177
1732
23
18 Portugueses
2 Italianos
3 Brasileiros
Goa
Malabar
1734
8
4 Portugueses
3 Italianos
1 Baía
Oriente
1735
19
14 Portugueses
4 Italianos
1 Alemão
(Baviera)
Goa
Malabar
Japão
China
1736
10
8 Portugueses
1 Austríaco
1 Liubliano
Goa
China
1737
10
2 Portugueses
3 Alemães
2 Polacos (2 Silés.)
3 Eslovacos
(3 Boémios)
Oriente
1738
27
17 Portugueses
5 Alemães
3 Italianos
2 Eslovacos
(2 Boémios)
Goa
Malabar
1739
7
1 Português
1 Italiano
4 Alemães
1 Eslovaco
(1 Boémio)
Oriente
1740
3
2 Portugueses
1 Italiano
Oriente
1741
7
4 Portugueses
3 (não se sabe)
Oriente
1742
5
3 Portugueses
2 Italianos
Oriente
178
S. Francisco Xavier – 450 anos da sua morte
1743
3
1 Austríaco
1 Italiano
1 Eslovaco
(Boémia)
Oriente
1744
4
4 Portugueses
Oriente
1745
5
3 Portugueses
1 Alemão
1 Austr. (Tirol)
Oriente
1746
13
11 Portugueses
1 Alemão
1 Italiano
Oriente
1747
7
4 Portugueses
1 Espanhol
1 Italiano
1 (não se sabe)
Goa
Malabar
1748
13
12 Portugueses
1 Austríaco
Goa
Malabar
China
1749
37
19 Portugueses
14 Brasileiros
2 Eslovacos
(2 Boémia)
2 (não se sabe)
Goa
Malabar
China
1750
11
5 Portugueses
6 Brasileiros
Oriente
1751
15
6 Italianos
6 Portugueses
1 Brasileiro
2 (não se sabe)
Oriente
1752
20
6 Italianos
7 Portugueses
6 Alemães
1 (não se sabe)
Oriente
Expedições missionárias, s.j. – século XVIII
179
1753
19
7 Portugueses
6 Italianos
2 Alemães
2 Austríacos
(1 Tirol)
1 Belga
1 (não se sabe)
Goa
Malabar
Japão
China
1754
39
23 Italianos
(1 Trento)
12 Portugueses
1 Chinês
1 Espanhol
(Maiorca)
1 Alemão
1 (não se sabe)
Goa
Malabar
Japão
China
1755
26
24 Portugueses
1 Italiano
1 Brasileiro
Goa
Malabar
Japão
China
17571758
12
11 Portugueses
1 (não se sabe)
Goa
Malabar
Japão
China
Nacionalidades
Século XVI
Suíça – 2; Portugal – 242; Japão – 5; Itália – 77; Inglaterra – 2; Holanda – 1; Espanha – 89; Bélgica – 6; África – 1 (Total – 245)
África – 1; Bélgica – 9; Espanha – 112; Holanda – 1; Inglaterra – 3; Irlanda – 1; Itália – 86; Japão – 5; Outras nacionalidades – 32;
Portugal – 410; Suíça – 2.
Expedições Missionárias S.J.
Século XVI
Século XVII
Suiça – 5; Suécia – 1; Portugal – 699; Polónia – 7; Japão – 4; Malta – 2; Luxemburgo – 1; Itália – 210; Irlanda – 2; Inglaterra – 2;
Hungria – 1; Holanda – 2; França – 32; Flandres – 12; Espanha – 7; China – 2; Bélgica – 13; Baviera – 1; Áustria – 3; Arménia – 1;
Aragão – 3; Alemanha – 21 (Total – 1031).
Século XVII
Alemanha – 26; Arménia – 1; Áustria – 3; Bélgica – 37; China – 2; Eslováquia – 2; Espanha – 10; França – 35; Goa – 1;
Holanda – 3; Hungria – 1; Inglaterra – 4; Irlanda – 3; Itália – 272; Japão – 4; Luxemburgo – 4; Malta – 2; Polónia – 7; Portugal
– 1117; Suécia – 1; Suiça – 6.
Expedições Missionárias S.J.
Século XVII
Século XVIII
Suiça – 1; Portugal – 523; Polónia – 3; Itália – 110; Irlanda – ; Inglaterra – 1; Hungria – ; França – 3; Espanha – 1; Eslovénia – 1;
Eslováquia – 11; China – 2; Bélgica – 2; Baviera – 1; Áustria – 9; Alemanha – 40 (Total – 708).
Alemanha – 53; Áustria – 9; Bélgica – 3; China – 2; Eslováquia – 12; Eslovénia – 1; Espanha – 2; França – 3; Hungria – 1; Inglaterra
– 1; Irlanda – 1; Itália – 126; Polónia – 3; Portugueses – 882; Suiça – 1.
Expedições Missionárias S.J.
Século XVIII
Totais
425
Século XVI
1031
Século XVII
708
Século XVIII
PARA O BRASIL
EXPEDIÇÕES
Séc: XVI
27
Séc: XVII
67
Séc: XVIII
42
PARA O ORIENTE
EXPEDIÇÕES
Séc: XVI
40
Séc: XVII
87
Séc: XVIII
44
PARA OUTRAS REGIÕES
EXPEDIÇÕES
Séc: XVI
9
Séc: XVII
32
Séc: XVIII
15
ÍNDICE
Apresentação .....................................................................................
Abertura – Alberto de Brito ............................................................
5
7
Primeira Parte
Um missionário que se vai fazendo
Etapas da vida de Xavier – Cronologia ...........................................
Francisco Xavier, companheiro jesuíta – Luís Rocha e Melo ........
Francisco Xavier, o amigo apóstolo – Francisco de Sales Baptista .
Francisco Xavier, o missionário – Nuno da Silva Gonçalves .........
15
33
47
69
Segunda Parte
Um diálogo que se vai abrindo
Xavier. E a Europa? – António Júlio Trigueiros ............................. 83
De Javier a Sanchoão – António Lopes .......................................... 95
Com Xavier nos campos de fronteira – Vasco Pinto de Magalhães 117
Terceira Parte
O desafio de Xavier
E se Xavier viesse hoje? – Nuno Tovar de Lemos .......................... 127
O milagre da bota de Pequim: Juventude na pista de Xavier –
Carlos Carneiro................................................................................ 145
Anexos
Expedições missionárias para o Oriente na pista de Xavier – António Lopes ..................................................................................... 161