Capítulo - Livraria Almedina
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Capítulo - Livraria Almedina
Actual Editora Conjuntura Actual Editora, S.A. Rua Luciano Cordeiro, n.º 123 - 1.º Esq. 1069-157 Lisboa Portugal Tel.: (+351) 21 3190240 Fax: (+351) 21 3190249 www.actualeditora.com Título original: Billions of Entrepreneurs, How China and India are Reshaping Their Futures and Yours Copyright: © Tarun Khanna, 2008 Publicado segundo contrato com Harvard Business School Press. Edição: Actual Editora – Janeiro 2011 Todos os direitos para a publicação desta obra em Portugal reservados por Conjuntura Actual Editora, S.A. Tradução: Carla Pedro Revisão: Marta Silva Pereira Design da capa: FBA Paginação: MJA Gráfica: Papelmunde Depósito legal: 321704/11 Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação Khanna, Tarun Milhões de empreendedores : como a China e a Índia estão a reformular o seu futuro e o nosso. - (Col. Harvard) ISBN: 978-989-8101-93-8 CDU 338 316 Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida, no todo ou em parte, por qualquer processo mecânico, fotográfico, electrónico ou de gravação, ou qualquer outra forma copiada, para uso público ou privado (além do uso legal como breve citação em artigos e críticas) sem autorização prévia, por escrito, da Actual Editora. Este livro não pode ser emprestado, revendido, alugado ou estar disponível em qualquer forma comercial que não seja o seu actual formato sem o consentimento da editora. Vendas especiais: O presente livro está disponível com descontos especiais para compras de maior volume por parte de grupos empresariais, associações, universidades, escolas de formação e outras entidades interessadas. Edições especiais, incluindo capa personalizada para grupos empresariais, podem ser-nos encomendadas. Para mais informações contactar a Actual Editora. Dedicado a Rishi, Simran e Ruhi. ÍNDICE 1. Repensar a China e a Índia 11 PARTE I FUNDAÇÕES 2. A governação A arte, a ciência e a ilusão de governar 2,4 mil milhões de pessoas 47 3. Parcialidade e ruído Acesso à informação na China e na Índia 73 4. Autoridade e justiça Por que motivo a China consegue construir cidades de um dia para o outro e a Índia não 93 5. Maná e miasma Os meandros dos firmamentos financeiros da China e da Índia 119 PARTE II EMPRESAS 6. Infosys e TCL Emancipação das empresas locais 155 7. Microsoft e Metro Pontos de vista dos escritórios mais poderosos do mundo 179 8. Dividendos da diáspora Elites e párias chineses e indianos no estrangeiro 209 9. Engenharia e reengenharia das aldeias Em busca de fortunas nas zonas rurais 235 10. “Médicos de pés descalços” e turismo de saúde Esforços inúteis para enfrentar o anjo da morte 265 10 MILHÕES DE EMPREENDEDORES PARTE III FUTURO 11. Estradas novas e antigas para Mandalay O poder autoritário na Birmânia e mais além 297 12. Estrelas de cinema e gurus O soft power em Bollywood e mais além 321 13. Buda e software Vínculos antigos e novos 345 14. Pontes empresariais Ligar a China, a Índia e o Ocidente 365 Notas 387 Agradecimentos 429 Índice remissivo 435 Capítulo 1 Repensar a China E a Índia Os sistemas de ensino frequentados pela maioria dos norte-americanos, incluindo os que estudam nas prestigiadas universidades da Ivy League (*), quase não reconhecem a China e a Índia. No seu discurso de abertura do ano lectivo de 2001, Richard C. Levin, reitor da Universidade de Yale, expressou a sua tristeza: “O presidente da Câmara de Xangai perguntou-me por que motivo (…) qualquer criança chinesa em idade escolar é capaz de indicar o autor e a data da nossa Declaração de Independência e tão poucas crianças norte-americanas conseguem indicar quando caiu a Dinastia Qing, quando teve lugar a Grande Marcha e quando é que os comunistas chegaram ao poder.” (1) Como era possível que a turma de finalistas de 2001 desta prestigiada instituição de ensino da Ivy League não soubesse mais sobre a China? Afinal de contas, a relação entre Yale e a China tem-se revelado duradoura ao longo de várias décadas. Yung Wing, aluno da turma de finalistas de 1854 de Yale e o primeiro chinês a obter um grau académico nos Estados Unidos, regressou à China e criou missões educacionais que enviaram cem rapazes chineses para escolas secundárias e faculdades em Nova Inglaterra (EUA). Estas missões foram criadas com recurso a uma fortuna feita na Índia. Elihu Yale, um dos primeiros beneméritos da Universidade de Yale, foi durante cerca de 20 anos membro da Companhia Britânica das Índias Orientais e foi governador do forte de St. George em Madrasta (actualmente Chennai, no Sul da Índia) em 1687. Em 1718, Cotton Mather, que representava uma pequena instituição de ensino, a Collegiate School of Connecticut, abordou Yale, pois precisava de dinheiro para um novo edifício em (*) N. T. Grupo composto pelas oito universidades de grande prestígio dos EUA: Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Princeton, Pensilvânia e Yale. 12 MILHÕES DE EMPREENDEDORES New Haven. Yale atendeu ao seu pedido, enviando-lhe mercadorias que a escola posteriormente vendeu por 560 libras esterlinas, uma quantia considerável naquele tempo, tendo o novo edifício recebido o nome do seu benfeitor. (2) Assim, o comércio entre os Estados Unidos e a Índia promoveu Yale e Yale promoveu as boas relações entre os Estados Unidos e a China. Por conseguinte, porque é que os estudantes de Yale prestam aparentemente tão pouca atenção à China e à Índia? Há alguns anos, em Bangalore, quando a cidade era mais conhecida como destino de Verão para os britânicos da Índia colonizada do que como a capital mundial do outsourcing, o meu pai e a minha mãe faziam regularmente referência a “Yale”, “Princeton” e “Harvard”. Os heróis dos livros de banda desenhada norte-americanos, como o Super-Homem e o Batman, protagonizavam o imaginário da minha infância. Em adolescente, aprendi que Wall Street abria portas com dinheiro, que Hollywood captava os sonhos em celulóide e que o “americanismo”, a “mobilidade ascendente”, nada tinham a ver com sistemas de roldanas. Candidatei-me às universidades americanas da Ivy League como plano alternativo aos extremamente competitivos Institutos Indianos de Tecnologia (IIT). Deste modo, apesar de ter passado nos difíceis exames de acesso aos IIT e de ter sido admitido no de Madrasta, optei pela Universidade de Princeton, pois esta ia ao encontro do meu desejo de viajar. Quando cheguei a Princeton, em Setembro de 1984, eu era objecto de curiosidade para os demais; naquela altura, havia muito poucos estudantes universitários provenientes da Índia e nenhum dos meus companheiros de quarto do primeiro ano – indivíduos talentosos e ambiciosos que alcançaram um sucesso considerável – conseguia localizar o meu país num planisfério. Um deles pensou que era “ao pé da Arábia”, comentário este que me fez retirar para o meu beliche lavado em lágrimas. Tendo vivido mais de metade da minha vida nos Estados Unidos e estando a educar dois filhos como indo-americanos num subúrbio ocidental de Boston, continuo perplexo com o pouco conhecimento dos norte-americanos a nível de geografia. Os meus colegas e amigos, que são um grupo de pessoas bastante viajado e bastante bem informado, continuam a saber muito pouco sobre a Índia. Como é que esta faixa demográfica em particular consegue manter uma visão global que exclui 2,4 mil milhões da população do planeta? As projecções económicas actuais dizem que, em menos de uma geração, a China e a Índia tornar-se-ão, respectivamente, a primeira e a terceira maiores economias mundiais, em termos de paridade do poder de compra. Em conjunto, os dois países serão responsáveis por cerca de 40 por cento do comércio mundial, uma posição que ocuparam há um século e que é REPENSAR A CHINA E A ÍNDIA 13 bem mais significativa do que os actuais 15 por cento que representam actualmente. As projecções demográficas baseadas nas populações actuais – 1,3 mil milhões na China e 1,1 mil milhões na Índia – sugerem que, no mesmo período, o peso da economia mundial irá transferir-se dos actuais países desenvolvidos para estes dois países emergentes. Milhares de milhões de empreendedores irão, em última análise, impulsionar esta transição. Não serão apenas os empreendedores chineses e indianos que levam empresas a entrar em bolsa, mas também os políticos com uma nova liderança e os idealistas que nos obrigam a imaginar futuros melhores. O futuro do mundo está inegavelmente ligado ao futuro da China e da Índia. Ainda assim, os Estados Unidos estão lamentavelmente mal informados sobre o passado e o presente de ambos os países. Por estas razões, fiquei pessoalmente aliviado por ouvir o reitor Levin censurar a turma de 2001 pelo seu egocentrismo. As suas observações pareceram-me emblemáticas de um despertar do ensino norte-americano para a importância do Oriente, o que, por sua vez, reflecte um despertar da própria sociedade norte-americana. Nas comemorações do 1º de Maio em 2005, a Shady Hill School em Cambridge contou com a apresentação de uma elaborada dança chinesa do leão (wushi em chinês) pelos alunos do quinto ano e com um concerto que envolveu cerca de 50 membros do corpo docente e colaboradores e que brindou a assistência com uma vibrante dança do Norte da Índia, acompanhada de música ao estilo de rock bhangra interpretada pelo cantor sique Daler Mehndi. Este cantor é actualmente apreciado a nível mundial e a sua discografia está disponível em lojas de música nas imediações de Harvard Square. Acresce que todo o programa curricular do quinto ano desta escola progressista – então com 90 anos de existência – está agora centrado na China. Nos próximos anos, o método de ensino desta escola irá permitir que as mentes impressionáveis de crianças de dez anos absorvam informação sobre as Guerras do Ópio, a Rota da Seda e a arte da caligrafia, ao mesmo tempo que aprendem matemática, literatura, ciências e geografia. Esta consciência cultural estende-se ao sistema público de ensino. Os alunos da escola primária Martin Luther King Jr., que fica próxima da Shady Hill School, têm aulas diárias de mandarim, com a duração de 30 minutos, desde o jardim-de-infância até ao 8.º ano, e começam a ter correspondentes na China a partir do 4.º ano. Esta é uma das centenas de escolas nos Estados Unidos que foram baptizadas com o nome do herói dos direitos civis dos anos 60, Martin Luther King Jr., um visionário afro-americano que se auto-instruiu sobre as teorias de não-violência de Mahatma Gandhi criadas na Índia. Os professores também estão a aprender mais sobre a China. A título de exemplo, Deborah Linder, uma professora de História 14 MILHÕES DE EMPREENDEDORES do 10.º ano na Newton South High School em Newton, no estado norte-americano de Massachusetts, passou as suas férias em Fevereiro de 2004 numa viagem de duas semanas ao Sul da China, organizada especificamente para professores por uma organização sem fins lucrativos chamada Primary Source, com a colaboração do Asia Center da Universidade de Harvard. A transição de um aluno meu, Andy Klump, do total desconhecimento sobre a Ásia para um estudo aprofundado da China – por entre o cepticismo dos seus pares, um apoio limitado da Harvard Business School às suas aspirações em relação à China e absolutamente nada na sua educação no seio da classe trabalhadora que o predispusesse para a sua odisseia – é outro bom prenúncio deste despertar para as riquezas do Oriente. De facto, a sua experiência é semelhante à das primeiras embarcações norte-americanas que rumaram a Cantão, na China, na década de 1770. O destino era encarado como incerto, uma viagem reservada aos aventureiros, particularmente numa altura em que os comerciantes norte-americanos tinham de competir com os britânicos, que já estavam mais enraizados. O fascínio de Klump pela China resultou de uma viagem de Verão pela Ásia. Foi o suficiente para que ele recusasse ofertas de trabalho lucrativas no domínio das altas tecnologias e, em vez disso, procurasse um emprego na área das vendas na China. Depois de lições diárias de mandarim e meses de telefonemas a altas horas da noite para a China, Klump teve a sorte de conseguir um estágio de Verão no laboratório de software da Intel em Xangai. Nesse Verão, enquanto procurava apoiar a disseminação da tecnologia Intel na região, a rotina diária de Klump consistia numa viagem de uma hora de autocarro (que custava 30 cêntimos de dólar) durante a qual falava com quem conseguisse iniciar uma conversa para complementar as suas lições bissemanais de mandarim. Um dia, um passageiro disse-lhe: “O senhor é famoso porque é o único laowai [calão para estrangeiro] que alguma vez aqui veio e disse ni hao [olá] a toda a gente.” O trabalho no laboratório era rigoroso, exigindo interacção permanente com o governo. O governo de Xangai não consistia na burocracia lenta que ele associava aos empregos federais. Na China, o governo exigia desempenho e tinha calendários agressivos. O seu chefe disse-lhe: “Os altos membros do Partido Comunista local determinaram o prazo e estão a inspeccionar o produto final. Não se sentiria muito bem a dizer ‘não’ a um membro do Partido Comunista.” Quando regressou a Boston, Klump autopromoveu-se de forma criativa junto da Dell para conseguir um emprego na China, numa altura em que a quota de mercado da Dell no mercado dos computadores pessoais estava eclipsada pelo gigante local, a Legend, posteriormente redenominada REPENSAR A CHINA E A ÍNDIA 15 Lenovo. Klump foi contratado como o primeiro estrangeiro a trabalhar directamente na área de vendas em toda a Grande China, com as mesmas metas de vendas que os seus colegas chineses. As reacções dos seus colegas de curso? “Deves estar a brincar! Vais formar-te pela Harvard Business School e vais aceitar um emprego que paga menos do que aquilo que a minha irmã de 24 anos ganha. Ninguém no seu perfeito juízo tomaria tal decisão.” Foi ainda mais perturbador para os seus colegas de curso o facto de Klump, que falava chinês com a fluência de uma criança de oito anos, ter conversado com o seu gestor directo na China durante 20 minutos, ser o único laowai no escritório de cem pessoas em Pequim e no departamento de vendas do país (que contava com 300 colaboradores) e ter assinado contrato em pleno surto de SRA (Síndrome Respiratória Aguda) quando ainda não era evidente se a epidemia se iria propagar ou não por todo o país.(3) Na China, Klump depressa aprendeu que a ideia de liderança do seu gestor consistia em salientar a importância de atingir as suas metas trimestrais de meio milhão de dólares em vendas – a serem cumpridas em apenas dez semanas, pois as férias tinham tornado esse trimestre mais curto – e em convencê-lo de que “não há estratégias. Tem de apagar essa palavra do seu cérebro. A estratégia apenas existe para os indivíduos que mandam nesta empresa. Você está aqui para executar. Agora, pegue no telefone e execute.” A primeira tarefa de Klump foi executada num mandarim rudimentar e teve como resultado desligarem-lhe o telefone na cara e a garantia do seu mentor de que, se não conseguisse atingir os 50 mil dólares de vendas até ao fim-de-semana, isso diminuiria as suas perspectivas de carreira. Depois de atingir apenas 21 por cento da sua meta de vendas no primeiro trimestre, Klump excedeu-a confortavelmente nos trimestres seguintes. Quem poderia prever isto? Klump progrediu no departamento de vendas constituído apenas por chineses. Ele tinha uma meta de quatro milhões de dólares para toda a China com seis vendedores a seu cargo e aprendeu a arte de os convencer a cumprir as suas ordens. Alguns dos seus clientes ofereceram-lhe empregos lucrativos. Ao fim de três anos, Klump tinha aprendido a comunicar com os clientes, a trabalhar com – e a motivar – os colaboradores predominantemente chineses, mesmo sendo ele um laowai, e a valorizar o papel do governo como cliente, regulador e até como empreendedor. Klump, Deborah, a Shady Hill School e a Martin Luther King Jr. School estão na vanguarda daqueles que estão a preparar-se para uma nova realidade global. Contudo, no geral, a compreensão do Ocidente acerca do Oriente continua bastante desanimadora. 16 MILHÕES DE EMPREENDEDORES Um sinal importante de que os norte-americanos continuam fortemente agarrados a uma visão do mundo que exclui uma grande parte da população do planeta é o facto de os meios de comunicação social fazerem uma cobertura mínima da China e da Índia. No decurso da maior parte dos últimos 150 anos, menos de dois por cento das peças principais do jornal The New York Times, em qualquer um desses anos, versaram sobre a China ou a Índia. (4) O interesse actual aumentou para os quatro por cento, quase tanto como no século anterior. A cobertura que hoje se faz incide acima de tudo na culinária (lo mein, caril de frango), na literatura (Jhumpa Lahiri, Yu Hua), no cinema (Bruce Lee, Jackie Chan, Bollywood) ou no turismo (a Grande Muralha, o Taj Mahal). O alarmismo é também popular; a título de exemplo, alguns comentadores de televisão culpam o outsourcing para a China e para a Índia pelo desemprego nos Estados Unidos, apesar de haver dados objectivos que indicam que o efeito do outsourcing sobre os trabalhadores ocidentais é insignificante. (5) Esta estereotipização e alarmismo são reveladores do escasso conhecimento do Oriente por parte do Ocidente. Veja-se o livro de Harold Isaacs, publicado em 1956, Scratches on Our Minds: American Views on China and India. (6) Jornalista na revista Newsweek, Isaacs fez a cobertura da Revolução Chinesa e dos acontecimentos no cenário de guerra China-Birmânia-Índia relacionados com a Segunda Guerra Mundial. Para lançar uma luz sobre a “Imprecisão acerca da Ásia”, que ele considerou ser a “situação normal, mesmo entre os norte-americanos mais instruídos”, Isaacs perguntou a 181 norte-americanos – importantes académicos, empresários, diplomatas, jornalistas e missionários – quais eram as suas impressões sobre a China e a Índia. Dois terços dos inquiridos tinham impressões positivas dos chineses, descrevendo-os como inteligentes, cativantes e decentes. Estas impressões baseavam-se, em grande medida, em conhecidos romances como A Boa Terra de Pearl S. Buck, escritora que retratava as personagens chinesas de forma positiva. A visão que os norte-americanos tinham da Índia foi influenciada pelo poema Gunga Din de Rudyard Kipling, cuja personagem principal – um carregador de água que Kipling retrata como sendo admirável, mas também como um nativo e, portanto, com uma forma de vida inferior – era o indiano que os norte-americanos melhor conheciam depois de Mohandas Gandhi. A alimentar esta imagem menos positiva estava o bestseller de Katherine Mayo, Mother India, que fazia uma crítica ao hinduísmo e que garantiu que a antipatia face aos indianos fosse mais profunda do que a antipatia fomentada por diferenças políticas. Em 1982, o proeminente académico John King Fairbank caracterizou os indianos como “criaturas medrosas, demasiado delicadas para combater como os chineses (…) e que nunca sorriem a ninguém”, ao REPENSAR A CHINA E A ÍNDIA 17 passo que os chineses “são vigorosos e sorridentes, em grande contraste com a indolência e repressão dos indianos”. (7) A ideia que os norte-americanos tinham da Índia era ainda mais impressionante pelo facto de os Estados Unidos terem ligações comerciais e culturais duradouras com aquele país. De acordo com algumas estimativas, entre 1795 e 1805 os Estados Unidos comercializaram mais com a Índia do que com todos os países da Europa juntos. Apesar destas ligações, os norte-americanos interpretavam a arte e as curiosidades trazidas da Índia como trabalho de bárbaros, pelo que consideravam a Índia uma civilização outrora grandiosa, em declínio terminal. Optei por escrever um livro comparativo porque creio que poderemos compreender melhor as escolhas da China quando justapostas com as da Índia e vice-versa. Existem semelhanças históricas – ambas as nações passaram pela sua primeira grande unificação em torno do ano 200 a.C., sob influência dos Máurias, na Índia, e da Dinastia Han, na China. Os britânicos humilharam a Índia durante dois séculos e a China também suportou o seu século de humilhação. Ambos os países ficaram profundamente marcados. Ambos passaram por mudanças políticas radicais quase ao mesmo tempo: a China tornou-se um Estado moderno em 1949, quando Mao Tsé-Tung tomou o poder. E isso aconteceu apenas dois anos depois de Jawaharlal Nehru ter assumido a liderança da Índia independente em 1947. Mao e Nehru foram os arquitectos de planos visionários para os seus respectivos novos países; dois líderes tremendamente influentes cujas opções bem diferentes tiveram consequências muito distintas, apesar das semelhanças em termos de dimensão, proximidade e antiguidade. Estas semelhanças superficiais, não obstante os rumos completamente diferentes, fazem com que as últimas cinco décadas representem uma espécie de caixa de Petri ( *) para os cientistas sociais, onde podemos aprender algo profundo sobre como se desenvolvem as sociedades. Com isto, tentarei lançar alguma luz sobre a ignorância acerca do que se está a passar na China e na Índia. O meu argumento é que, apesar das mudanças económicas constantes e amplamente positivas em ambos os países nas últimas décadas, as “molduras de ferro” que envolvem estas mudanças são radicalmente distintas. A China apresenta um modelo de desenvolvimento com orientação descendente, com um Partido Comunista omnisciente que articula uma administração central e que determina os limites de tudo menos da dissidência marginal. Os responsáveis do Partido a nível local possuem cada vez mais autonomia económica, da qual têm feito uso com admirável eficácia, mas apenas num contexto de centralização (*) N. T. Recipiente para testes e experiências em laboratório. 18 MILHÕES DE EMPREENDEDORES política ainda mais restrita. A linha política do Partido tem pura e simplesmente de ser respeitada. A Índia dá uma imagem mais heterogénea e pluralista, quase parecendo um caos para os estrangeiros, mas permite também uma agitação positiva no terreno. Tem um mercado ineficiente – mas, ainda assim, é um mercado – que resulta da concorrência a vários níveis na prestação de serviços, da concorrência em termos de talento e de negociações políticas, enquanto os media lutam indisciplinadamente por atenção. Apesar de a China cortejar o capital estrangeiro e só muito recente e relutantemente ter reconhecido o sector privado, a sua falta de transparência interna e a ausência de direitos de propriedade privada enfraquecem os seus mercados internos em comparação com as regiões da Índia onde existe uma enorme concorrência. Por outro lado, o poder absoluto da China permite-lhe neutralizar alianças susceptíveis de bloquear o progresso material, algo que a Índia não consegue fazer da mesma forma. Os prós e os contras das abordagens seguidas por cada um destes países são diferentes. No presente livro, dou a conhecer a China e a Índia – Hangzhou e Hiderabade, Qingdao e Bangalore, Dalian e Chennai – para mostrar as diferenças radicais subjacentes a ambos os países. Os ocidentais poderão reformular a suas opiniões sobre estes dois países modernos e cheios de vida e interpretar os seus acontecimentos recentes no contexto das suas respectivas histórias, que são muito ricas, antigas e variadas. Espero dar resposta, entre outras coisas, a muitas questões que surgem normalmente a um observador curioso e moderno acerca destes países, tais como: Porque é que a China consegue construir cidades de um dia para o outro enquanto os indianos têm dificuldade em construir estradas? Porque é que a China proíbe as eleições livres ao passo que os indianos, em eleições livres e imparciais, votam em governantes com cadastro criminal? Porque é que os chineses gostam que os seus familiares se estabeleçam no estrangeiro, ao passo que os indianos, aparentemente, não gostam? Porque é que tantos chineses não são saudáveis, mas ainda assim são mais saudáveis do que os indianos? Porque é que há tão poucas empresas privadas de classe global com origem na China Continental, apesar da criação de uma poderosa potência económica? Porque é que a China ultrapassou a Índia no seu território comum? Porque é que a China foi “indianizada” no passado, ao passo que a Índia ignorou a China? Porque é que os chineses recebem bem os indianos na China, mas os indianos não retribuem esse tratamento? REPENSAR A CHINA E A ÍNDIA 19 Os diferentes rumos seguidos por ambos os países têm outra implicação profunda, que só agora começa a manifestar-se: a China e a Índia juntas podem ter um maior impacto uma sobre a outra e sobre o mundo do que isoladamente. A China é boa em coisas nas quais a Índia não é e vice-versa. Ambos os países são a imagem invertida um do outro no espelho. Esta complementaridade cria as bases necessárias para uma cooperação económica que já começou, à medida que empreendedores nativos entram nos terrenos uns dos outros, numa repetição da sua cooperação histórica secular, em vez das recentes quatro décadas de hostilidade. Este mutualismo está aí para benefício do mundo inteiro e não apenas dos chineses e dos indianos. Dada a ascensão oficial da Índia no domínio do nuclear e a mobilização maciça de recursos pela China para criar uma marinha, os analistas de segurança e os cientistas políticos salientam a desconfiança com que os dois gigantes himalaicos olham um para o outro. Contudo, estes analistas e académicos ignoram, erradamente, o potencial dos laços económicos mutuamente benéficos, particularmente quando cada um destes países está sem dúvida mais concentrado em alimentar os seus pobres do que em criar poder militar. É óbvio que o tópico favorito dos comentadores – quem está a “ganhar”, a China ou a Índia? – falha completamente o alvo. E digo isto apesar de há alguns anos ter sido co-autor de “Can India Overtake China?” (*), um artigo que desencadeou a presente odisseia intelectual. (8) Acabei por me aperceber de que a verdadeira questão está no facto de as diferenças entre ambos terem criado uma cooperação no âmbito das novas riquezas a serem desfrutadas pelos países e por todos aqueles que, em qualquer parte do mundo, queiram lucrar com o seu despontar. Há mais de um século, Rudyard Kipling escreveu estas palavras famosas: Tomai o fardo do Homem Branco Enviai os melhores da vossa raça Ide, condenai vossos filhos ao exílio Para servirem as necessidades dos vossos cativos (9) Existe ainda alguma controvérsia sobre se Kipling pretendeu que este poema fosse racista ou altruísta; ainda assim, “o fardo do homem branco” explicou o direito e a necessidade de a Grã-Bretanha governar os “bárbaros” da Índia. Talvez devido ao facto de a Índia ser a jóia do império britânico, esta não estava sob a influência dos Estados Unidos. (*) N. T. “Poderá a Índia ultrapassar a China?” 20 MILHÕES DE EMPREENDEDORES Contudo, esta imagem do oriental desafortunado, bem como a imagem mais moderada da irrelevância reafirmada por Isaacs, estão desactualizadas e são contraproducentes. O mesmo acontece com o outro extremo, a histeria, que não é justificada ou lógica. No seu programa na CNN, o jornalista Lou Dobbs denuncia o outsourcing para a China e para Índia, dizendo que é uma prática que rouba empregos aos norte-americanos, apesar de os dados objectivos revelarem que o efeito do outsourcing no emprego ocidental é ainda insignificante. Sabemos que a histeria anda no ar quando os cartunistas editoriais também se envolvem – a nível local, os alunos da Harvard Business School sugeriram por brincadeira, num número do Dia das Mentiras da publicação diária dos estudantes, The Harbus, que se devia recorrer ao outsourcing para a Índia para procurar um novo reitor para a escola. (10) Esta questão irá afectar, como nenhuma outra, o sector das profissões qualificadas, historicamente muito mais imunes ao outsourcing, e também o sector da saúde, naquela que é uma questão bastante pessoal e, por isso, bastante política. Em Abril de 2005, o premiado programa de informação 60 Minutes transmitiu uma peça sobre o turismo de saúde que apresentava os hospitais Apollo, na Índia, como um destino muito concorrido pelos doentes ocidentais em busca de cuidados de saúde de alta qualidade a um décimo dos custos que teriam de pagar nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Pouco depois de o programa ter ido para o ar, a clientela ocidental no hospital do Apollo Group em Deli duplicou. A imprensa britânica imitou esta publicidade feita pelos Estados Unidos quando fez a cobertura exaustiva de Elliot Knott, o rapaz de Dorset com 14 anos que decidiu viajar até à Índia em Agosto de 2005 para uma operação à coluna – evitando assim uma lista de espera de nove meses no seu país – providenciada por uma empresa do sector do turismo de saúde detida por britânicos e indianos. (11) Não creio que esta seja a última vez que ouviremos falar de inovações na China e na Índia na área da saúde. A diabetes, por exemplo, é um flagelo moderno, com cerca de 200 milhões de doentes em todo o mundo. Em 2030, quanto este número estiver mais próximo dos 300 milhões, pelo menos um terço destas pessoas viverão na China ou na Índia. Enquanto as curas puramente baseadas na ciência serão muito provavelmente descobertas em laboratórios norte-americanos, muitas inovações em matéria de serviços – como regimes de tratamento ou mecanismos de distribuição de insulina – muito provavelmente surgirão da necessidade de tratar as dezenas de milhões de doentes pobres na China e na Índia. Estas inovações, por sua vez, irão beneficiar os pobres e aqueles que têm cuidados de saúde limitados nos Estados Unidos, talvez tanto como os tratamentos proibitivamente dispendiosos e puramente baseados na ciência. REPENSAR A CHINA E A ÍNDIA 21 Os elogios efusivos aos médicos indianos por parte dos turistas de saúde norte-americanos e britânicos aos quais foi recusado tratamento no seu país de origem, e a possibilidade de a cura para doenças crónicas ser cada vez mais procurada na China e na Índia, não parecem ser um fardo duradouro para o Homem Branco. Talvez esta situação aponte para um reverso deste fardo. Outra passagem de Kipling parece mais apropriada: E o fim da luta é uma lápide branca Com o nome do falecido E o epitáfio lúgubre: “Aqui repousa um tolo Que tentou espoliar o Oriente” É bem melhor ser-se sensato e estar informado sobre as mudanças em todo o mundo do que ser o “tolo que tentou espoliar o Oriente.” Contudo, a melhor metáfora não é a dos fardos – reais, imaginários ou revertidos – mas as viagens de esperança. Há uma esperança renovada na China e na Índia, à medida que experimentam o sucesso ao lidar com o mundo e põem de lado as suas hostilidades mútuas em prol de colaborações. Há esperança também nos empreendedores pioneiros ocidentais que preferem compartilhar os recentes ganhos da China e da Índia do que tentar sabotar, com proteccionismo imprudente, o florescimento destes dois gigantes no palco internacional. ESCUTAR NATHU LA: UM MUTUALISMO BEM SUCEDIDO A 6 de Julho de 2006, nos Himalaias, na fronteira da China com a Índia, ocorreu um acontecimento histórico que passou quase despercebido no Ocidente. A passagem fronteiriça de Nathu La – que significa “caminho do ouvido que escuta” e fez parte da Rota da Seda – foi aberta pela primeira vez em 40 anos. Após uma pequena cerimónia presidida pelos dirigentes indianos, chineses e tibetanos, uma vedação de arame farpado, antes guardada pelo exército, foi derrubada e cerca de 200 comerciantes indianos e tibetanos percorreram os poucos degraus da estreita passagem himalaica que atravessa a fronteira entre ambos os países. Os seus passos marcaram o primeiro ano da amizade sino-indiana, tornada possível pelos tratados comerciais bilaterais assinados pela China e pela Índia na década de 1990. Historicamente, o encerramento da fronteira é que é a anomalia. A passagem tinha sido fechada em 1962 pela Índia, como consequência do conflito fronteiriço sino-indiano, um combate a alta altitude que deu origem a disputas pelos territórios fronteiriços de cada um destes países. Em finais do 22 MILHÕES DE EMPREENDEDORES século XIX, esta passagem suportava o tráfego de mais de mil mulas. O Dalai Lama fazia caminhadas naquela área de cerca de quatro quilómetros. Antes de disputarem os seus respectivos marcos fronteiriços, a China e a Índia mantinham boas relações. Desde inícios do século XX que os líderes da indústria indiana, comerciantes marwari provenientes do actual estado indiano do Rajastão, possuíam negócios de relevo na China. Apesar de a reabertura de Nathu La ser principalmente simbólica – entre os 20 produtos que se podem exportar por camião incluem-se o melaço, sapatos, cobertores e café do lado indiano, e peles de cabra, seda selvagem, caudas de iaque e bórax do lado chinês – é um sinal do comércio permanente que acontece a uma escala mais elevada. É também simbólica a visita do primeiro-ministro indiano, Atal Behari Vajpayee, a Pequim em 2005 e a visita recíproca do seu homólogo chinês, Wen Jiabao, a Deli em 2006. Por muito necessária que seja esta reaproximação política, os ganhos económicos provenientes do comércio e do investimento oferecem uma base ainda mais importante para a amizade mútua. As tecnologias da informação do século XXI permitem que as empresas de ambos os lados realizem trocas comerciais de capital, produtos manufacturados, marketing, capital intelectual, talento, matérias-primas e trabalhadores. O NÚCLEO CENTRAL DOS EUA OUVE NASIK E NANCHANG Uma empresa que já ouve o burburinho vindo do Oriente é a John Deere, líder mundial no fabrico de tractores. A sua linhagem, que a coloca entre as empresas industriais mais antigas dos Estados Unidos, as suas origens – que remontam a 1837 no estado de Illinois – e a sua marca consagrada já não são suficientes para que mantenha a posição de liderança. Os pequenos tractores fabricados pela recém-criada empresa indiana Mahindra & Mahindra (M&M) têm invadido algumas regiões dos Estados Unidos. A ascensão da M&M marca a chegada à maioridade dos empreendedores originários da Índia. Na qualidade de empresa do ramo industrial, a M&M constitui um desvio significativo face às empresas indianas de software que atingiram o sucesso na última década. Além disso, a M&M detém 80 por cento de um empreendimento conjunto que estabeleceu com o governo da cidade chinesa de Nanchang. Denominada Mahindra (China) Tractor, o empreendimento conjunto sino-indiano detém, por sua vez, activos adquiridos à Jiangling Tractor, situada a meio caminho entre Xangai e Guangzhou. Através deste empreendimento conjunto, a M&M desenvolveu um tractor abaixo dos 40 cavalos de potência, fabricado à medida para o mercado norte-americano. A concepção e o projecto REPENSAR A CHINA E A ÍNDIA 23 foram desenvolvidos na Índia e o protótipo foi construído na China. Quando falei com Anand Mahindra, CEO da M&M, na sede da empresa em Bombaim, ele teceu os maiores elogios ao empreendimento conjunto no domínio dos tractores: “Estamos a quebrar o mito de que é difícil fazer dinheiro na China ou de que a assimilação cultural é complicada. A discoteca local em Nanchang toca agora música [indiana] (…) e o antigo presidente do conselho de administração da empresa, com 40 anos, cantou canções dos filmes do indiano Raj Kapoor no nosso primeiro banquete. A compatibilidade em matéria de gestão é um desafio, mas certificámo-nos de que a meia dúzia de indianos que está na China – há apenas 15 colaboradores indianos, contra 385 colaboradores chineses – responde perante chefes chineses; eles não tiveram qualquer problema com isso.” (12) Esta união é ainda mais extraordinária se tivermos em conta as diferenças entre as duas empresas. A M&M é uma entidade totalmente privada, liderada pela terceira geração de uma das mais proeminentes famílias indianas de empreendedores, ao passo que a sua parceira chinesa faz parte do governo. De facto, o governo é o empreendedor na China; na Índia, os empreendedores têm-se mantido o mais afastados possível do Estado. O facto de o empreendimento conjunto estar localizado na China e não na Índia também é revelador: a China está aberta ao investimento directo estrangeiro, ao passo que a Índia se mantém fechada aos estrangeiros, favorecendo a descendência nativa. Privado versus público, desconfiança face aos estrangeiros versus tolerância – os modelos económicos seguidos pelos dois países não poderiam ser mais distintos. A John Deere está claramente preocupada com a M&M. Num anúncio invulgarmente certeiro, não estou bem ciente se pago pela empresa ou por alguma das suas concessionárias, a empresa norte-americana prometeu um desconto de 1500 dólares a qualquer agricultor norte-americano que trocasse um tractor M&M por um da John Deere. O departamento operacional da M&M nos Estados Unidos procurou os clientes visados pela publicidade e localizou apenas uns quantos que tinham respondido ao anúncio. Além disso, 97 por cento dos proprietários de tractores M&M que foram contactados pela empresa indiana não estavam interessados no desconto da John Deere e expressaram a sua satisfação com os seus tractores M&M. Na Índia, a popularidade da M&M é impulsionada pelo fabrico de tractores de baixa potência (menos de 70 cavalos), adequados para as propriedades rurais fragmentadas do país. A empresa detém 30 por cento de quota do mercado indiano (enquanto uma empresa sua concorrente detém 23 por cento). A M&M constatou que existe um mercado subaproveitado nos Estados Unidos para o qual o seu tractor de baixa potência é 24 MILHÕES DE EMPREENDEDORES apropriado: a agricultura de lazer. Cada vez mais, em regiões do Sul e do Sudoeste dos Estados Unidos, os baby boomers (*) estão a abandonar as suas agitadas vidas citadinas na Califórnia e a mudar-se para locais como Flagstaff, no Arizona, onde pelo preço de um apartamento num condomínio de luxo em São Francisco eles podem comprar seis hectares de terra, ideais para serem lavrados por um pequeno tractor. Dado que muitos dos clientes da M&M nos Estados Unidos são mulheres, a empresa respondeu com ironia ao anúncio do tractor da John Deere com o seu próprio anúncio que apresentava uma mulher norte-americana loura, de rabo-de-cavalo, a conduzir um tractor. A legenda dizia: “Deere John, I have found someone new”. (**) Os baby boomers recordar-se-ão decerto da popular série de comédia chamada Dear John (***), que começava com uma carta dirigida ao protagonista da série, deixada pela sua ex-namorada descrevendo as razões que a tinham levado a deixá-lo. Esta cena, por sua vez, tinha tido origem no fenómeno em que as mulheres enviavam cartas de despedida aos seus namorados há muito ausentes por terem ido para a guerra. A quota de mercado da M&M nos Estados Unidos para os tractores abaixo dos 70 cavalos de potência cresceu seis por cento e nos principais mercados dos estados do Sul a sua quota atingiu os 20 por cento. Estas percentagens são extraordinárias, dado que os maiores fabricantes mundiais de tractores – incluindo a New Holland, a Agco e a japonesa Kubota – competem agressivamente neste segmento. Em 2005, a divisão de tractores da M&M nos Estados Unidos registou vendas de cem milhões de dólares, o que representa um crescimento agressivo numa época de estagnação industrial. Em 2007, por um feliz acaso, vi anúncios da Mahindra USA a passarem no horário nobre em estações televisivas que chegam até à Pensilvânia rural. A gama de tractores da M&M também é apropriada para a China. Com o fim das comunas chinesas na década de 1980, o número de pessoas que passaram a lavrar em proveito próprio cresceu rapidamente. Setecentas mil charruas mecânicas tinham em tempos lavrado a terra, mas de forma ineficaz. Surgiram empresas de tractores para servir estes agricultores, atingindo as 400, apesar de actualmente este número ter descido para 25, (*) N. T. Referência aos nascidos durante o período de explosão demográfica ocorrido após a Segunda Guerra Mundial. (**) N. T. Deere John lê-se da mesma forma que “dear John”, pelo que em português seria: “Querido John, arranjei outro”. (***) N. T. Em Portugal esta série foi exibida precisamente com o título de Querido John. REPENSAR A CHINA E A ÍNDIA 25 ainda muito fragmentadas. A preocupação com a utilização de energia levou o governo chinês a subsidiar generosamente a passagem das charruas mecânicas para os tractores e a M&M entrou em campo ao aperceber-se de que as pequenas propriedades rurais na China eram exactamente iguais às da Índia. Em menos de um ano, processos empresariais inteligentes permitiram que as colheitas em Nanchang triplicassem, apesar de uma quebra para metade do número de trabalhadores. SHENZHEN OUVE BANGALORE Sun Yafang, a presidente do conselho de administração da Huawei Technologies, tem boas razões para estar confiante. Criada em 1988, a Huawei passou de uma pequena fabricante de centrais telefónicas para líder de fabrico de equipamento que as operadoras de telemóveis de todo o mundo utilizam nas suas redes. Com operações globais que incluem laboratórios em Silicon Valley, Dallas, Estocolmo, Bangalore, Moscovo e, claro, na China, a Huawei é actualmente a empresa líder do sector da alta tecnologia e uma pedra no sapato da gigante das telecomunicações Cisco Systems. Conforme refere a revista The Economist, “o despontar de empresas nacionais como a Huawei é um desastre para as multinacionais”. (13) Em reuniões com a viajada Sun Yafang em Boston, Shenzhen e Londres, ouvi-a prever que a Huawei veria as suas vendas aumentarem de quatro mil milhões de dólares em 2005 para dez mil milhões de dólares em 2010. Além disso, ela crê que o crescimento da empresa será impulsionado pelo seu cada vez maior domínio em 70 países, incluindo aqueles que as empresas norte-americanas ignoraram. Numa visita às instalações da Huawei em Shenzhen, deparei-me com colaboradores disciplinados e talentosos, confiantes nos seus conhecimentos técnicos, que lideram fábricas imaculadamente limpas, com um uso intensivo de automação e tecnologia de ponta. Os colaboradores com quem falei mostraram uma grande vontade de aprender com as principais empresas ocidentais as competências interpessoais necessárias para que a empresa tenha sucesso num contexto de comércio mundial, tais como comunicar com os clientes e com as entidades reguladoras do Ocidente, ou gerir os colaboradores que não estão familiarizados com o funcionamento interno de uma empresa chinesa. A Huawei é o exemplo que contraria o mito de que as empresas originárias da China só conseguem dominar as tecnologias simples. Sun salienta que o sucesso da empresa não tem nada a ver com a mão-de-obra chinesa barata, mas tem tudo a ver com os baixos custos dos seus engenheiros qualificados e do seu pessoal do departamento de investigação e desen- 26 MILHÕES DE EMPREENDEDORES volvimento. Como me disse a jovem enviada pela Huawei para me ir buscar ao aeroporto: “Sou uma estudante universitária da província de Hubei e vim para aqui por causa da reputação da Huawei. Candidatei-me a este emprego através da Internet.” Perguntei-lhe porque é que não tinha procurado um emprego mais perto de casa. Por que razão tinha querido ir para Shenzhen? “Porquê?” O olhar dela revelou-me que considerava a resposta perfeitamente óbvia. “Porque esta é uma das melhores empresas da China.” Mais tarde, a Huawei estendeu a sua procura de talentos até à Índia, estabelecendo laboratórios de software em Bangalore. Jack Lu, actual responsável pelo departamento de recursos humanos da Huawei, dirigiu o escritório de Bangalore durante três anos após a sua criação em 1999. Um dos desafios iniciais, contou-me, foi superar os estereótipos de ambos os países. Os meios de comunicação social indianos tinham, no passado, retratado os chineses como oportunistas determinados a roubar os segredos de segurança da Índia. Quando foi criado o escritório da Huawei, as empresas indianas temeram que a empresa fosse atrás dos segredos da sua bem sucedida infra-estrutura de telecomunicações. Por sua vez, os artigos que os jornais chineses publicavam sobre a Índia incidiam apenas sobre inundações, acidentes ferroviários e outras catástrofes. De acordo com Jack Lu, “isto tornou a nossa situação difícil. Certa vez, um jornal de grande tiragem publicou uma reportagem que dizia que os trabalhadores da Huawei seriam deportados da Índia devido aos riscos de segurança. Isso não era verdade e o acontecimento passou, mas exerceu uma enorme pressão social sobre os nossos engenheiros indianos por parte dos seus familiares e amigos que os incitavam a ir embora”, disse Jack Lu, abanando a cabeça. (14) A Huawei persistiu, reconhecendo o valor de aproveitar as competências em matéria de software dos colaboradores indianos. A empresa consegue uma melhor posição na Índia ao criar empregos de qualidade para os engenheiros indianos em vez de utilizar o país para subcontratar o desenvolvimento de software. Os laboratórios da Huawei na Índia obtiveram o mais alto nível de certificação possível para fabricantes de software, avaliado de acordo com um padrão global de capacidade de criação de software desenvolvido pela Universidade Carnegie Mellon. Com o tempo, os estereótipos e a falta de confiança por eles gerados foram substituídos por uma coexistência mais realista. Os empreendedores indianos atendem actualmente às necessidades culinárias dos colaboradores chineses da Huawei e é tão normal vermos blocos de apartamentos em Bangalore habitados em grande parte por chineses como é normal vermos rostos indianos nas instalações da Huawei em Shenzhen. REPENSAR A CHINA E A ÍNDIA 27 A Huawei vai além de se manter em sincronia com os seus concorrentes ocidentais. Numa viagem a Joanesburgo, em inícios de 2007, para participar num evento de telefonia móvel, encontrei telefones da Huawei espalhados por todos os locais da conferência. Eram telemóveis muito simples, mas com todas as funcionalidades que a maior parte dos utilizadores, incluindo eu, considera necessárias. A Huawei esperava que, graças à simplicidade da sua estrutura, o telemóvel de baixo custo chegasse aos segmentos dos consumidores africanos com baixos rendimentos. Contudo, mais interessante do que a concepção da estrutura do produto foi a presença da Huawei na conferência como o vendedor mais agressivo. Ao distribuir amostras grátis aos participantes, a Huawei desafiou os seus concorrentes ocidentais a fazerem o mesmo. Essa autoconfiança e agressividade competitiva tornaram-se o padrão da Huawei. Os meios de comunicação social ocidentais perderam completamente as histórias de mutualismo entre a China e a Índia e a sua importância para os consumidores ocidentais. Tratam-se de vozes significativas vindas do Oriente e que o Ocidente não tem escutado. Em vez disso, os media fixaram-se nas origens improváveis da Huawei, mencionando o facto de ter sido fundada por Ren Zhengfei, que se tinha reformado do Exército Popular de Libertação em 1984 com a patente de coronel. Um processo judicial intentado pela Cisco por fraude contra a propriedade intelectual, e subsequentemente resolvido por acordo extrajudicial, bem como um processo judicial laboral relativo a salários, só vieram acentuar as suspeitas. A falta de transparência da Huawei também não ajuda; os CEO norte-americanos estão tão admirados com o seu domínio tecnológico como com o facto de a empresa estar “envolta em mistério”. (15) No final de contas, o facto de a maior parte das empresas chinesas estar envolta em mistério não constitui qualquer mistério perante um sistema financeiro subdesenvolvido que não exerce pressão para que seja revelado qualquer tipo de informação, um tema que voltarei a abordar mais à frente. Reconhecer as origens das competitivas empresas chinesas é essencial para compreender as suas histórias, não para as rejeitar. É um erro as empresas ocidentais não analisarem os investimentos das empresas chinesas e indianas e não aprenderem a competir com elas. O facto de a Huawei não depender das vendas que realiza nos países desenvolvidos e de obter os seus lucros com as vendas nos países em desenvolvimento que não despertaram o interesse comercial do Ocidente – por exemplo a Nigéria, o Zimbabué, o Paquistão, o Cazaquistão e o Turquemenistão – é mais uma razão para se estar atento.