A medida do olhar: objetividade e autoria na

Transcrição

A medida do olhar: objetividade e autoria na
ROGÉRIO CHRISTOFOLETTI
A medida do olhar:
objetividade e autoria
na reportagem
Tese
apresentada
à
Área
de
Concentração: Jornalismo e Editoração
da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do
Título de Doutor em Ciências da
Comunicação, sob orientação da Profª
Drª Cremilda Celeste de Araújo Medina.
São Paulo
2004
DEFESA DA TESE A MEDIDA DO OLHAR – OBJETIVIDADE E
AUTORIA NA REPORTAGEM, DE ROGÉRIO CHRISTOFOLETTI
BANCA JULGADORA
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____________________________________
PROFª DRª CREMILDA C.A. MEDINA
ORIENTADORA
SÃO PAULO (SP), ______ DE _____________ DE 2004.
2
Para
minha mãe Marlene,
minha mulher Ana e
meu filho Vinicius,
a quem tento impressionar. Sempre.
3
AGRADECIMENTOS
Quero registrar meu reconhecimento
À Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) pela
concessão de uma bolsa de estudos e pelo
afastamento
integral
de
minhas
funções,
fundamentais para a conclusão desta pesquisa no
tempo em que ela se realizou;
À professora Cremilda Medina, minha bússola nesta
caminhada, minha referência maior neste trajeto;
A Josenildo Guerra, Patrícia Patrício e Edélcio
Mostaço, gentis e atentos interlocutores durante a
escritura desta tese;
Ao meu irmão Rodrigo Christofoletti, leitor mais sagaz
e bem-humorado destas páginas;
Aos colegas do Núcleo de Epistemologia do
Jornalismo (NEJ/ECA) pelos conselhos e idéias
trocadas ao longo de nossas sempre proveitosas
reuniões;
Ao Paulo César Bontempi, o meu mais eficiente
apoio operacional na Escola de Comunicações e
Artes da USP;
A Manoel Gonçalves Corrêa, amigo e mestre, meu
anfitrião em muitas tardes paulistanas;
A Jefferson Bittencourt e Gláucia Grígolo, amigos
que não faltaram nos últimos minutos desta tese;
A Ricardo Laux, querido sogro a quem devo apoio
afetivo e logístico;
Aos meus companheiros do Sindicato dos Jornalistas
de Santa Catarina, especialmente Silvio e Luciana,
que cobriram minhas ausências em momentos
cruciais deste processo;
E a minha amada Ana, que respirou esta tese
comigo por pelo menos dois anos.
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RESUMO
O olhar está entre os sujeitos e os objetos, preenchendo a distância
entre esses extremos na relação do conhecimento, onde o próprio
Jornalismo se inscreve. A partir do estudo do olhar, reflito sobre um dos
pilares sobre os quais o Jornalismo se edificou: a objetividade. Num
paradigma de crise, o Jornalismo questiona esse conceito, e aprofundo
tal discussão, alargando seu foco para o exercício da subjetividade na
reportagem. Concentro esforços na conceituação do que vem a ser
uma autoria em jornalismo e enumero as principais condições para o
seu efetivo exercício na reportagem. Esse mapeamento é
acompanhado da apresentação de uma experiência que fiz como
repórter em busca de inscrição de uma autoria jornalística. Tanto a
reflexão teórica quanto a pesquisa-experiência atuam num processo
que
busca
a
desautomatização
das
práticas
jornalísticas,
desmistificando as gramáticas da área e apontando para novos
procedimentos na apuração das informações e na escritura dos textos.
PALAVRAS-CHAVE
OBJETIVIDADE – AUTORIA – TEXTO – JORNALISMO – OLHAR
ABSTRACT
The glance is in between subjects and objects, fullfilling the distance
between these terms at a knowledge relation, where Journalism itself
inscribes. From the glance’s analysis, I reflect about one of the basis in
which Journalism built itself: objectivity. At a crisis paradigm, Journalism
questions this concept, and I deepen this discussion, widening its focus
to the exercise of subjectivity in newspaper reporting. I concentrate
efforts at the definition of what comes to be autorship in journalism and
enumerate the main condition for its effective exercise in newspaper
reporting. This cartography is followed by the presentation of an
experience I have done as a reporter searching for a journalistic
autorship criterion. Theoric reflection acts as much as experienceresearch at a process that looks after a non automation of journalistic
practices, those of which will unmystify grammar rules of the area and
point out to new procedures relating the checking of information and
text writing.
KEYWORDS
Objectivity – Autorship – Text – Journalism – The glance
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Crise de Paradigmas na Ciência – Paradigma de crise no
Jornalismo: p. 08
1.O OLHAR
1.1 O olhar é uma leitura do mundo: p. 14
1.2 O olhar como processo e relação: p. 18
1.3 O olhar jornalístico: p. 27
1.3.1 O Jornalismo como campo de saber, fazer e ser: p. 29
1.3.2 O conhecimento jornalístico: p. 32
1.3.3 A constituição do olhar no Jornalismo: p. 34
1.3.4 Jornalismo e os sentidos humanos: p. 43
1.4 O olhar estabelece sujeitos e objetos: p. 49
2. OBJETIVIDADE
2.1 Uma idéia em cinco séculos: p. 53
2.1.1 O conceito na filosofia: p. 55
2.1.2 O conceito na ciência: p. 60
2.1.3 Como o Jornalismo emprega a idéia: p. 64
2.2 Pequena História da Objetividade no Jornalismo: p. 68
2.3 Resguardando a objetividade: p. 72
2.3.1 Imperativo ético da atividade: p. 72
2.3.2 Uma meta para o mito: p. 77
2.4 A objetividade questionada: p. 81
2.4.1 Uma categoria mitificada: p. 84
2.4.2 O ritual profissional e os interesses incidentes: p. 88
2.4.3 Objetividade como efeito de discurso: p. 93
3. ENTRE A DÚVIDA E A INCERTEZA
3.1 Descartes, a dúvida e o método: p. 100
3.1.1 Jornalismo e cartesianismo: p. 104
3.2 Heisenberg e a incerteza: p. 110
3.3.O Jornalismo entre a dúvida e a incerteza: p. 114
4. SUBJETIVIDADE
4.1 Apontamentos sobre o sujeito: p. 119
4.2 Consciência, atestado do sujeito: p. 124
4.3 Subjetividade na atividade jornalística: p. 128
4.4 Assinatura: marca do sujeito: p. 132
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5. AUTORIA
5.1 Uma genealogia do autor no Ocidente: p. 137
5.1.1 Digressão jurídica: a autoria como direito: p. 143
5.1.2 Retorno à genealogia: p. 145
5.2 Reconhecimento do sujeito e afirmação do singular: p. 149
5.3 A função autor: p. 152
5.4 Autoria como exercício de estilo: p. 159
5.5 Estilo e Autoria no Jornalismo: p. 165
5.6 A narrativa da contemporaneidade: p. 174
5. 7 Condições para uma autoria na reportagem: p. 178
6. EM BUSCA DE UMA AUTORIA NA REPORTAGEM
6.1 O pesquisador como cobaia: p. 199
6.2 O ambiente do laboratório e as condições do repórter: p. 205
6.2.1 As revistas: p. 206
6.2.2 A rotina do repórter: p. 211
6.2.3 O recorte: p. 214
6.3 As tentativas de inscrição de uma assinatura: p. 217
6.4 O que os editores têm a dizer: p. 258
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um jornalismo com impressões digitais: p. 264
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
p. 269
ANEXOS
As reportagens analisadas: p. 275
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INTRODUÇÃO
Crise de paradigmas na Ciência
Paradigma de crise no Jornalismo
“Na verdade, nós redefinimos a função da ciência
como a descoberta de leis que nos permitirão predizer
os eventos dentro dos limites impostos
pelo princípio da incerteza”
Stephen Hawking – físico inglês
“O Jornalismo, tal como está disposto nos
meios de comunicação atuais, pratica ao
mesmo tempo técnicas de informação
e desinformação”
Leão Serva – jornalista brasileiro
s planetas e o sol giravam em torno da Terra até que um polonês
O
perturbou a ordem do sistema. Era a primeira metade do século XVI, e
Nicolau Copérnico concluía o volume De revolutionibus orbium
caelestium, onde apresentava a teoria segundo a qual a Terra dava uma volta diária em
torno de si e uma volta anual ao redor do sol. O modelo colocava por terra a idéia de
que o planeta era o centro do universo, tese que vigorava há 1300 anos pelo menos.
Mais do que avançar nos estudos astronômicos de então, a intervenção de Copérnico
desencadeou uma revolução na ciência, na filosofia e na religião. O deslocamento da
Terra do centro do universo propiciava pensar num outro papel e importância do
homem na natureza e acabava por questionar alguns dogmas da Igreja.
Trezentos anos depois, viriam outros dois graves golpes nas certezas humanas
no Ocidente: o homem deixava de ser o centro da natureza e da História. No século
XIX, o cientista inglês Charles Darwin e o filósofo alemão Karl Marx vão soterrar essas
idéias ao afirmar que o homem é resultado de leis e processos evolutivos que incidem
sobre todas as espécies vivas e que existem outras variáveis que determinam os
caminhos e descaminhos da trajetória humana.
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Se, como escreveu Nietzsche, Deus está morto; se a terra é só mais um planeta
perdido no espaço a reboque de uma estrela finita; se o homem não domina o reino
animal, só resta mesmo não ser ele o centro de si mesmo. Pois não faltou muito para que
alguém apontasse isso. Em 1900, o psiquiatra e neurologista austríaco Sigmund Freud
publica A interpretação dos sonhos, obra que inaugura o campo da Psicanálise, onde o
sujeito não é monolítico e centrado, e o inconsciente tem papel decisivo nas ações
humanas.
Os golpes na estabilidade da racionalidade ocidental continuam. Contemporâneo
a Freud, o físico alemão Albert Einstein formula, na primeira década do século XX,
algumas bases da sua Teoria da Relatividade, tese que vai provocar nova reviravolta não
apenas no mundo científico, mas também na filosofia e cultura mundiais. Com a nova
teoria, acontece uma profunda renovação científica, que altera algumas idéias básicas da
física clássica, oferecendo explicação coerente e unificada para grande número de
fenômenos da natureza. Com a Teoria da Relatividade, espaço e tempo são variáveis
relativas, massa pode se converter em energia e um objeto com velocidade próxima à da
luz sofre aumento de sua massa, ao passo em que o espaço se contrai e o tempo se
dilata.
Pelos estudos em física quântica, passa-se a perceber que não existe nenhum
fenômeno totalmente objetivo, quer dizer, independente do estado do seu observador. A
incerteza cresce em 1926, quando o físico alemão Werner Heinsenberg enuncia o
Princípio da Indeterminação, de acordo com o qual é impossível medir,
simultaneamente e com absoluta precisão, a posição e a velocidade de uma partícula de
átomo. A tese produz rachaduras graves no sonho de uma ciência determinista: afinal,
se não é possível medir o estado atual do universo, que dirá prever eventos futuros sem
erros.
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Um brevíssimo percurso pela história da ciência mostra como as mentalidades se
modificaram nos últimos quinhentos anos, tempo que não significa quase nada no
período de permanência do homem sobre a Terra. Os últimos acontecimentos
fragilizaram o modelo monolítico de saber científico, deslocando a atenção para
aspectos como a complexidade, a incerteza e a descontinuidade. Se tempos atrás a
ciência consolidou-se enquanto saber hegemônico na explicação dos fenômenos da
natureza, orientando, inclusive, a trajetória de desenvolvimento social em muitos pontos
do planeta, atualmente, a ciência disputa espaço e preferência com outros saberes. É o
que se pode chamar de crise do paradigma científico: tem-se a consciência de que o
conhecimento científico não é o mais coerente de todos, nem oferece as únicas respostas
aos problemas da humanidade.
Não é o descarte da ciência, mas o questionamento da sua onipotência. O
cidadão comum continua acreditando no desenvolvimento científico e tecnológico, mas
ao mesmo tempo não deixa de consultar a astrologia diariamente, prossegue
alimentando sua mitologia particular e não se desvencilha dos seus vínculos religiosos.
De maneira direta, não é a ciência que está em crise, mas a ciência como se
construiu e se apresentou nos últimos séculos: metodologicamente determinista,
pretensamente absolutista, excludentemente ocidental, paradoxalmente dogmática. O
que vive uma crise de paradigma é a ciência filha da Razão surgida no século XVII
como um método de conhecimento fundado na lógica e no cálculo. Para René
Descartes, a razão é o poder de bem julgar e discernir o verdadeiro do falso. É em torno
dela que o conceito moderno de homem (e de sujeito) vai ser desenhado, sustentado
pela idéia de consciência. Com um novo homem sobre a Terra, é preciso desenvolver
um percurso que lhe permita dominar a natureza e alcançar uma condição mais digna no
reino animal.
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Da razão, decorrem os conceitos de racionalização e racionalidade, que vão ser
alicerces para os esforços da tecnologia e da ciência. A racionalidade é a adequação
entre uma coerência lógica e uma determinada realidade empírica. A racionalização, por
sua vez, é o conjunto de práticas que vai tornar viável uma racionalidade. Desta forma,
resulta uma conseqüência fácil: na ciência, a objetividade vai ser uma das condições de
sustentação do processo de racionalização. A objetividade estará ligada ao que se
entende por mundo objetivo, ou mundo dos estados de coisa dados no espaço-tempo. O
mundo dos fatos. A objetividade é a faculdade de tornar uma situação, um ser ou uma
coisa objetos. Tudo aquilo que o sujeito não reconhece como uma extensão de si é
entendido como objeto, uma exterioridade, uma alteridade.
A objetividade vai servir a ciência durante muitos anos, tempo em que a
natureza será observada a uma distância segura. Deus não estará por perto, e a
perspectiva e as condições íntimas do observador serão ignoradas. Quando o objeto é
uma bactéria ou uma molécula gasosa, todos sobrevivem relativamente ilesos neste
distanciamento. Mas e quando se observa a psique humana ou um ecossistema urbano,
objetos em que o homem – e até mesmo o observador – está envolvido? O que vai
determinar a distância e as fronteiras entre o sujeito e o objeto?
O surgimento das ciências humanas vai colocar este impasse epistemológico,
trazendo à tona a discussão sobre a metodologia na pesquisa e sobre a própria definição
de objetividade. Embora isso ocorra, em diversos campos do conhecimento, um certo
culto à objetividade permanecerá, já que ela estaria intimamente ligada à observação
direta dos fenômenos e, portanto, mais próxima deles. No exercício do Jornalismo,
mesmo apesar do intenso debate que suscita, a objetividade se mantém como uma
categoria de suporte da atividade jornalística. Pelo menos é o que defendem muitos
autores e profissionais, e é o que professam empresas e instituições.
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As gramáticas do ramo orientam para que o jornalista reporte os fatos de forma
objetiva e direta, desapaixonadamente. Há que se perceber que o Jornalismo se inspira
na ciência para construir seu modelo de representação do mundo. Isto é, o Jornalismo
vai se inscrever numa tradição narrativa que tenta ser o reflexo do mundo, e nesta
perspectiva, a reportagem dos fatos precisa atender a critérios rigorosos de observação e
de descrição. Assim, no Jornalismo, tal como na ciência, a objetividade vai ser uma
condição que liga os sujeitos a acontecimentos e a fenômenos. Como essas ligações são
distintas, diferentes também são as formas de constituição do efeito de objetividade.
Um produto do capitalismo, a atividade jornalística vai se desenvolver sob o
signo da modernização industrial e da racionalização produtiva. Dessa forma, surte
natural que venha se espelhar na ciência para determinar alguns dos seus
procedimentos. Apegar-se à objetividade pode ser entendido como condição necessária
para a construção de uma credibilidade, por exemplo.
Mas a exemplo do saber científico, o Jornalismo também sente os tremores de
contestação das suas bases. O desenvolvimento das ciências da linguagem facilitou o
entendimento e a disseminação de explicações que denunciavam o mito da neutralidade
das palavras. Então, a cada formulação de frase, o jornalista não poderia desviar-se da
escolha nada objetiva do vocabulário que usaria no relato do fato. Segundo algumas
correntes lingüísticas, incidiriam neste processo - mesmo que involuntariamente –
aspectos ideológicos e do inconsciente psíquico.
Uma outra impossibilidade ajuda a minar a objetividade jornalística: o
profissional precisa estar próximo do fato o suficiente para apreendê-lo, mas ao passo
que faz isso, deixa de estar alheio, isolado do acontecimento. A cena se contamina com
a presença do jornalista, permite distorções da realidade.
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A objetividade no Jornalismo sofre ainda com a possibilidade do engajamento
ideológico-sentimental do profissional em alguns assuntos, e com as relações
promíscuas entre as empresas jornalísticas (cada vez menos auto-suficientes) e os
poderes político e econômico-financeiro.
Se a ciência vive uma crise de paradigmas, o Jornalismo padece sob um
paradigma de crises. Objetividade, imparcialidade, veracidade e honestidade são todas
colocadas em xeque. Em não raros momentos, ao invés de informar, o Jornalismo
desinforma. Seja pela saturação ou redução de dados, seja pela distorção ou
apagamento. São postos em dúvida até mesmo a suficiência e a fidelidade do Jornalismo
enquanto forma de representação dos fatos contemporâneos.
As incertezas da ciência fomentam mudanças na visão de mundo hegemônica
nas sociedades. No Jornalismo, a crise de paradigmas ajuda a provocar um ambiente de
análise das bases do conhecimento jornalístico como modo de saber, de fazer e de ser.
Tanto no Jornalismo, como em qualquer campo de atuação humana, antes de se
lançar ao objeto, é preciso refletir sobre a forma de sua observação. O que define um
objeto é o olhar que se dispensa a ele. É o olhar – este processo que tateia a superfície
das coisas e das idéias – quem estabelece o sujeito e o objeto nos extremos da
observação. É o olhar – este raio invisível que dá visibilidade a tudo – quem inscreve
uma consciência num ponto e uma alteridade no outro. Entre os dois, o mundo e a vida,
contaminados de sentidos.
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CAPÍTULO 1
O olhar
1.1 O olhar é uma leitura do mundo
“O que permite ao homem reconciliar-se com a infância
e alcançar o permanente nascimento da verdade
é esta ingenuidade clara, distante e aberta do olhar.
(...) O discurso do mundo passa por olhos abertos,
e abertos a cada instante como que pela primeira vez.”
Michel Foucault – O nascimento da clínica
E
studos psicofisiológicos atestam que 80% das informações que nos chegam do
mundo nos vêm pelos olhos1. Nosso universo de conhecimento é
predominantemente visual, preenchido de cores, nitidez e contorno. Nossos
olhos são radares particulares, atentos ao movimento dos corpos, alertas a mudanças no
ambiente. Mas olhar é muito mais do que ver.
Olhar é fitar, mirar, contemplar. É sondar, cuidar e ponderar. Admirar, julgar,
estudar. Olhar é apreender o mundo, as coisas, as pessoas e suas circunstâncias e
considerá-las, guardá-las de alguma forma nos escaninhos da memória. Olhar é encarar,
pesquisar, examinar. Olhar é observar, atentar, considerar. E reparar, procurar, enxergar.
Mas também ver, procurar ver, conectar-se com o objeto da sua visão. Olhar é lançar-se
ao mundo e significá-lo, perceber seus sentidos plurais. Para além de um fenômeno
físico, olhar é captar, receber, ler o mundo. Lançar um olhar é deter-se sobre algo. Não
perder de olho é preocupar-se, cuidar.
Na sua dimensão total, o olhar está próximo do entender, do saber, do conhecer.
Desta forma, não é demais dizer que um olhar é uma forma de compreensão, um
ensaio de racionalidade e sensibilidade.
Os diversos olhares, as mais distintas maneiras de se projetar para as coisas,
sinalizam modalidades de apreensão dos planos do real. Por isso, os campos do saber
1
A estatística é de D. Morris, em Magie du corps, citado por Alain Brossard (1992).
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não interpretam os fenômenos igualmente; as explicações não coincidem, não se
cobrem. A maneira pela qual deitamos olhos sobre os objetos influencia
incontornavelmente nossa visão, nossa compreensão das coisas. A variedade destes
olhares leva à pluralidade dos saberes, das ciências, das relações que o humano
estabelece com seus pares e o meio que o cerca.
Cercar um olhar, determinar como ele se compõe, em que premissas se apóia é
apresentar uma racionalidade, um campo de saber, uma epistéme. Assim, o olhar clínico
do médico é um contato com o corpo do paciente, o olhar atento do mecânico é uma
prospecção dos defeitos no motor do automóvel. E como se pode ver, um olhar
especializado é um processo de produção de subjetividades em série. Sujeitos são
também engendrados conforme as regras do olhar, da leitura do mundo. Um modo de
olhar – vigiar, por exemplo – ajuda a “fazer” um sujeito – o segurança – diferente do
astrônomo ou do navegador, que dispõem de mecanismos distintos de ação
contemplativa. No caso deles, há mais prospecção que contemplação.
O olho é o espelho do mundo, mas também é a janela da alma – já disse
Leonardo Da Vinci. Ver o exterior é constituir-se como vidente no universo do visível,
engendrando uma relação complexa e complementar: sujeito-objeto.
Esta relação torna-se ainda mais problemática quando o sujeito tem que
descrever para outrem o que viu, interpretar o que enxergou. Dessa forma, jornalistas
convivem diariamente com este desafio, e emprestam seus olhares aos consumidores de
informação. É uma tele-visão do local onde os fatos acontecem. Os meios de
comunicação funcionam como extensões dos sentidos do homem comum. Jornalistas
repassam ao público suas visões do mundo. Momentaneamente, este público suspende
seu próprio olhar para absorver uma outra luz que pode lhe ajudar a compreender mais o
15
mundo. Depois da leitura dos jornais, a vida se reconfigura, e, de repente, passa a fazer
sentido.
Não é exagerado dizer que o olhar atrai especial atenção de pensadores e artistas
desde os tempos mais remotos. Entre os antigos, não são poucos os mitos em que o
olhar tem lugar privilegiado: são os olhos vítreos da Medusa que transformam a todos
em estátuas de pedra, é a visão profética de Cassandra, é a proibição às filhas de Ló para
que não se voltem para as ruínas de Sodoma e Gomorra. Mesmo Édipo, quando conhece
a verdade de seus crimes, cega os próprios olhos, disposto a não enxergar mais nada, a
não saber de mais nada. É neste sentido, entre tantos, que o estudo do olhar do jornalista
me interessa: na medida em que ver e saber, enxergar e conhecer têm proximidade,
parentesco.
É na medida em que um olhar delimita uma forma de compreensão, uma
tradução do mundo, que se pode empreender uma pesquisa acerca deste olhar. Fechando
o foco sobre os jornalistas – sua categorização profissional e sua natureza social -, este
olhar ganha importância-chave, já que a inserção destes sujeitos no mundo depende das
relações que estabelecem com as coisas e fatos que o cercam. Quando os jornalistas
lançam seus olhares, captam as atmosferas dos acontecimentos, eles percebem os
processos e ordenam (pelo menos momentânea e aparentemente) o caos local. Mais que
isso. Por meio dos olhares lançados, jornalistas concebem as figuras da alteridade
(público e fontes de informação), reconfiguram suas próprias identidades (sua posição
social, sua condição de representante de tal empresa, etc.) e mapeiam a história e a
geografia das relações do cotidiano.
Tratar desse olhar clínico é apontar os condicionamentos, os vínculos, as
dependências, os valores de fundo que compõem a maneira deste profissional se
constituir enquanto tal. Estudar este olhar é ensaiar uma epistemologia dos sentidos
16
destes trabalhadores nas suas práticas cotidianas. Operar na observação desta relação –
o olhar – é tracejar um campo de ação, de saber, de constituição específica. É operar na
delimitação de um quadrante na epistemologia do Jornalismo.
Assim, para o jornalista, o olhar é a encruzilhada entre os conhecimentos
técnicos da captação da informação e da conversão do fato em notícia, dos valores
éticos que dão base à sua conduta, e dos cuidados e preocupações estéticas próprios das
linguagens em que apresenta seus produtos informativos. Em outros termos, penso que
uma epistemologia do Jornalismo reúne pontes que interligam Técnica, Ética e Estética.
O olhar imprime tudo isso. É o olhar crítico, curioso, cético; é o olhar clínico,
preocupado, compromissado, crônico.
A construção de um olhar se apóia num pré-construído, num discurso sustentado
por indícios, regras de conduta técnica e ética: assim, espera-se que o jornalista tenha
um olhar crítico, busque “a verdade acima de tudo”, ouça “os diversos lados da
questão”, seja “objetivo e imparcial”.
Um olhar específico para o jornalista reserva-lhe uma identidade própria, na
medida em que contribui para a produção de subjetividades e para a consolidação de um
padrão de subjetivação. Um olhar de jornalista está apoiado num discurso singular,
crivado de valores, de normas, de recomendações, o que desencadeia certas práticas.
Audálio Dantas (1998) lembra a definição do jornalista Acácio Ramos sobre a
própria profissão: “repórteres são pessoas que perguntam”. Para além disso, é preciso
lembrar que jornalistas são pessoas que lêem o mundo. E tal operação, demandada por
um olhar aguçado e atento, chama a nossa atenção para uma problematização do
conceito de leitura, na dimensão epistemológica que proponho para esta pesquisa. Que
leitura é esta que o jornalista faz da vida e do mundo? Seu olhar – premeditadamente
crítico – orienta uma leitura diferenciada dos fatos?
17
1.2 O olhar como processo e relação
“Até quanto posso entender, nós conhecemos o mundo
porque as partículas dos objetos ferem os nossos olhos.”
John Locke, filósofo inglês
Apesar de forte e profundamente influenciadora, a intuição de um olhar
específico do jornalista não é suficiente para atestar sua real existência. É preciso buscar
este olhar, verificar onde se configura, de que forma e sob quais condições. Mas antes
disso ainda, seria necessário averiguar como o conceito de olhar é problematizado em
outros campos de saber, exteriores ao Jornalismo.
De forma geral, o olhar é estudado pela Psicologia por diversas correntes2, mas
três áreas são destacáveis: a Psicofisiologia, que se preocupa com o olho e a visão, a
Psicologia Cognitiva, que se concentra na percepção visual, e a Psicologia Social, atenta
ao olhar nas interações sociais. Em La psychologie du regard – de la perception visuelle
aux regards, Alain Brossard distingue os conceitos: visão é a estrutura neuro-fisiológica
desta modalidade sensorial; percepção visual reúne os processos psicológicos
individuais de recepção, tratamento e integração das estimulações visuais; e por fim,
olhar encerra as condutas visuais observáveis numa situação de interação social,
compreendendo dois ou mais indivíduos.
Visando contemplar as perspectivas individual e social, Brossard concebe o
olhar como uma função sócio-cognitiva, o que permite, por exemplo, que nas interações
sociais, a criança adquira novas ferramentas cognitivas. Assim, o olhar possibilita que o
indivíduo se oriente por ele e edifique seus pensamentos e atos. “Perceber é uma noção
epistêmica que reúne importantes afinidades com a de conhecer. Se se imputa a algum
conhecimento de um estado de coisas, ela implica que este estado de coisas exista
Não há unidade entre as vertentes psicológicas que estudam o olhar ou um fio condutor que as ligue,
mesmo diante do grande volume de estudos na área. As abordagens são modulares, e uma noção de
conjunto pode ser buscada na interface entre estas perspectivas.
2
18
realmente” (op.cit.: 59). Para alguns autores, a percepção é uma fonte de conhecimento
a posteriori, que pode reunir uma relação entre um objeto, o sujeito percebente, e uma
proposição por contraste a uma relação de dois objetos. Assim, para além de mero
fenômeno físico de incidência da luz na estrutura ótica, o olhar é uma forma de
apreensão do mundo, um tipo especial de conhecimento, que cruza objeto, sujeito e
contexto de observação.
Para Gaiarsa (2000), o fato de cada nervo ótico ser formado por um milhão de
fibras nervosas, enquanto os nervos acústicos não têm mais de 30 mil cada, se deve à
necessidade de maior sensibilidade de que a visão como modalidade sensorial precisa
ser dotada. “Os olhos são os maiores espiões do mundo. São dois mas funcionam como
se fossem um só” (op.cit.: 14). O olhar é a busca, “nosso radar mais fino e sempre
inquieto” (132), o que torna a linha do olhar “a direção mais importante do mundo”,
afinal, o “traço que vai do olho ao objeto não marca só a direção do desejo; marca
também o caminho” (138).
Mais uma vez, a relação pura e estática entre sujeito e objeto é dissolvida. É o
olhar, sua direção, intensidade, duração e atenção, que determinam quem é sujeito e
quem é objeto. Isso porque preenche a distância entre esses pólos dinâmicos, seja com
sentidos ou interrogações.
***
Em muitos momentos, o trabalho do jornalista se assemelha ao de um
antropólogo: ele é um profissional enviado a um contexto social que precisa ser
observado, entendido, e traduzido para outros contextos. O cientista chega à aldeia
isolada, faz contato, estuda hábitos e culturas, e depois retorna com uma sistematização
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das informações que colheu. O jornalista vai cobrir um fato, interage com os envolvidos
no acontecimento, coleta dados, e volta à redação para ordenar seu material. Em ambos
os casos, acontece o mergulho numa realidade para sua interpretação posterior. Nos dois
exemplos – seguindo metodologias próprias -, um olhar é lançado na tentativa de
apreensão e compreensão de fenômenos.
Para Sérgio Cardoso (1992), o etnólogo tem um olhar viajante. Há ligações entre
olhar e viajar, na medida em que, estando em outros lugares, encontra-se com o novo,
com o estrangeiro, com o estranho. O olhar estabelece a distância entre as instâncias do
eu e do outro. É por isso que olhar vai além de ver. Este último, em geral, significa o
vidente numa perspectiva discreta, passiva, que “espelha e registra, reflete e grava”.
Com o olhar é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade e às
virtudes do sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura da
sua interioridade. Ele perscruta e investiga, indaga a partir e para
além do visto, e parece originar-se sempre da necessidade de ‘ver
de novo’(ou ver o novo), como intento de ‘olhar bem’. Por isso é
sempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor.
(348)
Neste sentido, é entre o ver e o olhar que a própria configuração do mundo se
transforma, define Cardoso. A força do olhar é também não descansar imóvel sobre a
paisagem extensa do espaço, pois o olho se apega às descontinuidades, às diferenças, às
irregularidades, à alteridade. É por isso que o olhar não acumula, mas procura. Para o
autor, o olhar pensa e pode ser visto como a visão feita interrogação.
Ainda dentro da Antropologia, há outras problematizações acerca do olhar.
Disciplinarmente, há até uma Antropologia Visual, que se municia de instrumentos para
fazer uma leitura ótica de certas realidades. A máquina fotográfica, por exemplo, serve
de suporte e os signos apreensíveis pelo sentido do olhar despertam do contexto para
auxiliar o cientista a interpretá-lo. Mas perseguir tais caminhos pode se mostrar
dificultoso, conforme atesta Collier Jr. (1973:1):
20
Aprender a observar visualmente, ver uma cultura em todos os seus
complexos detalhes, pode ser uma tarefa de muito empenho para o
pesquisador. A natureza fragmentada da vida moderna torna difícil o
ajustamento à visão global. A capacidade de visão de conjunto do
observador depende da proporção de envolvimento dele em
relação ao seu meio ambiente. Nós, modernos, nos afastamos de um
relacionamento muito envolvente com o ambiente que nos
circunda, pois comumente lidamos apenas com partes desse
esquema de grande amplitude.
O autor explica que, em geral, o desenvolvimento cultural foi orientado para
dominar a natureza pela tecnologia, o que provocou a organização de funções
fragmentadas. Collier Jr. admite que em certas áreas específicas, o homem é um analista
visual bastante perspicaz, principalmente no que tange ao campo de trabalho: o
radiologista pode diagnosticar uma tuberculose através do raio X e o bacteriologista
pode reconhecer os bacilos pelo microscópio. Mas são olhares exclusivos,
compartimentados, recortados. “Somente podemos considerar-nos os mais acurados
observadores na história humana se considerarmos a soma total de nossas
especializações”.
O isolamento desses olhares – chamado pelo autor de cegueira pessoal - está
diretamente ligado à orientação positivista, mecanicista das sociedades urbanas
contemporâneas. “Aprendemos a ver apenas o que praticamente precisamos ver.
Atravessamos nossos dias com viseiras, observando somente uma fração do que nos
rodeia. E quando observamos criticamente, é quase sempre com o auxílio de alguma
tecnologia” (op.cit.: 3). Há uma domesticação do olhar3.
No caso específico do Jornalismo, a mecânica do olhar não é mediatizada por
instrumentos tecnológicos, já que recorre a uma série de comportamentos, de ações
humanas, que são comuns a todos, mas levadas a um grau de especialização que motiva
A domesticação do olhar vai ao encontro ao que aponta o artista plástico inglês David Hockneyn (1937).
Ícone da Pop Art, sua arte sinaliza para um olhar atravessado pela linguagem, pelo simbólico. Para além de
suas já célebres pinturas de piscinas, são os trabalhos fotográficos dos anos 80 que enfatizam essa hipótese:
com sua lente, Hockney capta um objeto num enquadramento que privilegie a parte e não o todo. Em
3
21
a excelência no seu funcionamento. Isto é, outros profissionais vêem o mundo, assistem
aos fatos, mas não treinaram seus olhos para enxergar certos aspectos que são
importantes para os jornalistas. O jornalista não precisa de um telescópio ou de um
microscópio especial para atuar profissionalmente, mas de um olhar educado,
domesticado, treinado. Entretanto, precisa de uma técnica de ver, de um conjunto de
procedimentos que o capacite a observar as cenas de uma forma precisa.
Neste sentido, o olhar do jornalista se aproxima de uma tecnologia. Os antigos
gregos chamavam de tecnologia o tratado sobre uma arte, conjunto de conhecimentos e
princípios científicos que se aplicavam a determinado ramo de atividade. Uma
tecnologia é um feixe de técnicas, um coletivo de saberes, uma filosofia de ação. Se o
olhar do jornalista encerra procedimentos próprios no trabalho e determina processos de
entendimento dos fatos que cobre, este olhar pode ser qualificado como uma tecnologia.
***
Mas para além de qualquer instrumentalidade que se possa impingir ao olhar, é
preciso alargar o entendimento de como ele vem sendo refletido pelo pensamento
ocidental. Talvez a forma mais saliente dos estudos filosóficos sobre o olhar seja a
fenomenológica4. Merleau-Ponty vai se debruçar sobre a questão na metade do século
20. Para o pensador, os olhos de carne são mais do que meros “receptores para as luzes,
para as cores e para as linhas”. Os olhos “são computadores do mundo, que têm o dom
do visível como se diz que o homem inspirado tem o dom das línguas” (1980: 90).
seguida, ele faz as composições com as polaroids tiradas, como quem monta um quebra-cabeças. A
percepção é selvagem.
4 O programa desta corrente filosófica ajuda a amparar algumas preocupações sobre o olhar. A
fenomenologia, por definição, é o estudo das essências, e não tenta compreender o homem e o mundo
senão a partir de sua factidade. Segundo Merleau-Ponty no prefácio de Fenomenologia da Percepção,
“trata-se, então, de descrever, não de explicar ou analisar”. Um fenômeno se apresenta ao mundo, e neste
momento, mostra-se. Cabe ao homem – e aí entra o olhar -, captar sua essência.
22
Assim, atraído pelas incertezas da visibilidade e da invisibilidade, MerleauPonty projeta em seus escritos as bases de uma busca do espírito e do ser, pela matriz do
olhar. Desse modo, o processo da visão não se resume a uma modalidade de
pensamento ou de presença, de constituição de lugar; mas sim “o meio que me é dado
de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser, só no termo da
qual eu me fecho sobre mim” (108). A visão funciona como o encontro de todos os
aspectos do Ser. Mas ver é entrar num universo de seres que se mostram. Com isso,
olhar um objeto é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas
segundo a face que elas voltam para ele. Mas, na medida em que
também as vejo, elas permanecem moradas abertas ao meu olhar
e, situado virtualmente nelas, percebo sob diferentes ângulos o
objeto central de minha visão atual. (1999:105)
Olhar e ver não são a mesma coisa. A simples visão supõe e expõe um campo de
significações; o olhar as procura, seguindo a trilha do sentido. O pensamento não é
conjunto de enunciados, mas afastamentos determinados no interior do Ser. Marilena
Chaui (1992) esclarece que, na leitura de uma filosofia da visão, os conceitos não
podem ser vistos como representações fechadas, mas pontos de convergência, de
generalidade; e as idéias funcionariam como eixo de equivalências, fios provisórios para
o estabelecimento dos entendimentos. O olhar aponta para um pensar generoso, “que,
entrando em si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e o prossegue. O
olhar, identidade do sair e do entrar em si, é a definição mesma do espírito” (63).
Para Alfredo Bosi (1992), uma teoria completa do olhar poderia coincidir com
outras duas teorias, uma do conhecimento e outra, da expressão. Os gregos têm na sua
língua uma forte vinculação entre ver e conhecer. Mas esta coincidência entre olhar e
conhecer não é direta, já que o homem dispõe de outros sentidos que atuam neste
processo do ver e do ter em mente. Vincular a percepção visual com os estímulos
captados pelos outros sentidos é um dos temas básicos para uma fenomenologia do
23
corpo. “O olhar não está isolado, o olhar está enraizado na corporeidade, enquanto
sensibilidade e enquanto motricidade” (66). Bosi adverte que gregos e romanos
helenizados percebiam duas dimensões no olhar: a receptiva e a ativa. Ao mesmo tempo
em que recebemos os estímulos visuais do exterior, direcionamos nossos fachos de luz
para as coisas, os fatos. Penso que o olhar é ativo, determinado, preciso, enquanto que a
visão concerne o aspecto passivo que os antigos percebiam. Assim, o olhar requer
vontade, desejo de saber, busca.
É Sartre (1943) quem diz que o olhar não é só uma luz que conhece, mas uma
força que penetra no ser olhado, tocando-o, ferindo-o, tirando a sua liberdade, jogando-o
para o nada. Assim, olhar e ser olhado, atividade e passividade – as duas dimensões do
ato de olhar - constituem um campo de forças onde saber e poder se misturam. O que
nos leva a pensar também na perspectiva do objeto do olhar, no Outro que identificamos
com nosso facho de luz, com nosso foco. Para Sartre, este olhar do outro sobre a minha
pessoa não dá conta numa absorção da imagem total. Nem a minha visão consegue essa
definição. A perspectiva do olhar-outro escorre na minha; e “a minha perspectiva
desliza espontaneamente na do outro e, juntas, são recolhidas em um único mundo onde
todos participamos como sujeitos anônimos da percepção”.
Destacando alguns aspectos, temos que o olhar é uma relação, auxiliando na
interação e na cognição; o projetar de um olhar marca as figuras de sujeito e
objeto, na medida em que se coloca entre elas; depois, até pode dissolvê-las,
chamando a atenção para o percurso que as liga; o olhar vai além da visão, pois é a
visão que procura, que interroga; o olhar é um ponto de contato, conhecimento e
reconhecimento da alteridade; o olhar reúne percepção sensorial e interpretação
simbólica; é leitura e é apreensão; é assim um gesto que constrói, gesto de leitura..
24
Em O nascimento da clínica, Michel Foucault empreende um minucioso estudo
sobre um olhar específico, o do médico, na passagem do século XVIII para XIX na
França. Um olhar ativo, direcionado, único. O surgimento da medicina moderna se dá
com a instituição de um novo olhar que os profissionais lançam sobre os corpos dos
enfermos, enxergando de outra forma a doença, vendo novos sintomas, observando
comportamentos até então desconsiderados. A experiência clínica e a fundação de um
olhar determinarão novas práticas, novas compreensões dos fenômenos: “O olho tornase o depositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só
recebe à medida que lhe deu à luz” (1998: XI-XII).
Foucault afirma que existe um trabalho da medicina para alcançar sua condição,
mas por um caminho em que ela deve apagar cada um de seus
passos, desde que atinja seu fim, neutralizando não somente os casos
em que se apóia, mas sua própria intervenção. Daí a estranha
característica do olhar médico; ele é tomado em uma espiral
indefinida: dirige-se ao que há de visível na doença, mas a partir do
doente, que oculta este visível, mostrando-o; conseqüentemente,
para conhecer, ele deve reconhecer. E este olhar, progredindo,
recua, visto que só atinge a verdade da doença, deixando-a vencêlo, esquivando-se e permitindo ao próprio mal realizar, em seus
fenômenos, sua natureza. (8)
É um olhar clínico: atento, qualitativo, com sutil percepção, sensível,
direcionado, que não descarta o essencial. Parcialmente, Foucault formula uma
definição para este olhar clínico:
Um ato perceptivo subentendido por uma lógica das operações; é
analítico, porque reconstitui a gênese da composição; mas está
isento de toda intervenção, na medida em que esta gênese nada
mais é do que a sintaxe da linguagem que falam as próprias coisas
em um silêncio originário. O olhar da observação e as coisas que ele
percebe se comunicam por um mesmo Logos, que é, em um caso,
gênese dos conjuntos e, no outro, lógica das operações. (123)
Se antes os relatos médicos eram recheados de explicações míticas, fantasiosas,
em poucas décadas, as descrições patológicas revestem-se de minúcias que garantem
25
uma maior visibilidade das moléstias, tornando-as mais verossímeis. A experiência
clínica e a mudança na estrutura hospitalar possibilitam este novo olhar, dando espaço
para o aparecimento de uma outra medicina. O olhar do clínico vai se assemelhar à
reflexão do filósofo na medida em que ambos buscarão alcançar uma estrutura de
objetividade. As formas de visibilidade no ambiente médico vão mudar e aí, “o olhar se
realizará em sua verdade própria e terá acesso à verdade das coisas”, permitindo uma
“reorganização epistemológica da doença, em que os limites do visível e do invisível
seguem novo plano”.
É bem verdade que o olhar não é o único sentido manifesto nesta operação. O
tato e a audição ajudaram a compor uma triangulação sensorial indispensável para a
percepção anatômico-clínica. Entretanto, a tríade mantém-se sob o signo dominante do
visível5. Na leitura de Foucault, a instituição de um novo olhar é sintoma de uma nova
medicina, aquela que contém a experiência clínica, que se sustenta em outras bases
epistemológicas. Fazendo um paralelo com o Jornalismo, também se pode refletir sobre
o olhar que este campo lança sobre seus objetos. Tal como na medicina, existe um olhar
clínico para os fatos, para as cenas, para o mundo. Enquanto o médico se preocupa com
o diagnóstico da doença, à procura das causas para o mal do paciente, o jornalista
observa a vida em busca de fatos noticiáveis, que precisem ser recontados, transmitidos
ao público. Como o olhar clínico, o olhar jornalístico também procura, interroga, escava
a superfície pretensamente homogênea do tempo. Assim como é pretensamente direto e
transparente o seu facho. Entre o sujeito e os objetos, bem na medida do olhar,
repousam a opacidade, a resistência e a incerteza.
Giles Deleuze disse certa vez que Foucault tinha paixão pelo ato de ver. Entre os franceses, ele não é único.
Há ainda Derrida, Barthes, Merleau-Ponty, Sartre, Baudelaire, Valéry, Appolinaire, Robbe-Grillet, entre outros.
Fraize-Pereira (1995) esclarece que, no caso de Foucault, o interesse pelo olhar vem da fenomenologia de
Merleau-Ponty e da ontologia de Heidegger, além da psicanálise existencial de Binswanger.
5
26
1.3 O olhar jornalístico
“En effet les regards variant en fréquence, dureé et direction
pour un même individu placé dans des contexts situationnels différents,
mas aussi pour plusiers individus placés dans une même situation”
Alain Brossard – La psychologie du regard
Por uma lei da física newtoniana, dois corpos não podem ocupar um mesmo
lugar no espaço, fato que traz como conseqüência, por exemplo, a impossibilidade de
duas pessoas terem a mesma visão de um objeto. Mesmo se postadas lado a lado, suas
perspectivas serão ligeiramente distintas, e é bem possível que, se estes indivíduos se
alternarem no ponto de vista, suas visões não sejam as mesmas. Esta formulação
impede, então, a existência de um olhar comum?
Fisiologicamente, sim. Mas filosoficamente, há uma brecha. Isto é, cada
observador tem seu par de olhos que captam as imagens dos objetos iluminados,
identificando-os cada um em seu cérebro. Porém, pode-se considerar que um olhar seja
também uma maneira de ler o mundo, uma forma de entendê-lo, de se colocar como
observador. Assim, se os dois indivíduos do exemplo seguem as mesmas diretrizes
ideológicas ou religiosas, se foram educados nas mesmas matrizes de pensamento, se
acreditam em valores morais comuns, etc., eles podem enxergar a vida sob um mesmo
prisma, como se usassem óculos semelhantes. Assim, os indivíduos podem alcançar
condições semelhantes de visibilidade e observação, somando-se a isso fatores
individuais como acuidade visual, por exemplo.
Embora pareça um tanto determinista, os diversos modelos de representação –
científico, ideológico, simbólico, religioso... – grosseiramente funcionam como
corredores que levam as pessoas a várias janelas, de onde se olha para o mundo. Seguir
uma crença ou repetir os procedimentos de uma mesma formação profissional podem
redundar numa mesma perspectiva de leitura do mundo (e por conseguinte, de ação
nele) para diferentes indivíduos.
27
No caso profissional, a formação não se limita só ao adestramento técnico, mas
passa também pela construção de um saber específico e pelo processo de um
assujeitamento comum. Desta forma, ao longo da etapa formativa, uma profissão vai se
apresentar como o entrelaçamento de campos característicos de saber, fazer e ser. Esta
convergência fortalece um olhar específico.
28
1.3.1 O Jornalismo como campo de saber, fazer e ser
O Jornalismo é uma atividade profissional relativamente recente se se considerar
que seus primódios remetem ao século XVII6. A invenção da imprensa por Gutenberg
em 1456 possibilitou condições tecnológicas que redundaram no surgimento de um
sistema, que mais tarde seria chamado de mediático.
Historicamente, contam-se trezentos anos das primeiras manifestações próximas
ao Jornalismo como o conhecemos hoje7. Neste curto período, ele foi se constituindo
enquanto campo específico de fazer (consolidando uma técnica), de saber (estruturando
uma teoria) e de ser (constituindo uma ética).
De acordo com Didier Hussen e Olivier Robert (1991:162), toda profissão
encoraja um certo conformismo e com o Jornalismo não é diferente. “Fazer carreira
supõe um respeito às regras estabelecidas”. Assim, a fixação destes parâmetros vai
auxiliar na demarcação de um ofício próprio, preenchendo com um espírito comum o
conjunto das atividades profissionais.
No manual Jornalismo para principiantes, Natalício Norberto (1978:13) define
a profissão como o “ofício de escrever, publicar ou dirigir um jornal, departamento de
notícia de emissora de rádio ou de televisão, ou uma assessoria de comunicação social”.
Para o autor, a área demanda dos profissionais nela envolvidos certas qualidades e
qualificações que vão da vocação ao conhecimento técnico (“saber ler e escrever e
outros atributos indispensáveis como saber outras línguas”), passando por dotes físicos
(“boa saúde, bons músculos e bons nervos”) e mentais (“o jornalista precisa de algo
mais que a inteligência”, “o repórter deve ser responsável, persistente, sincero,
imparcial”). Outro atributo mencionado é o que chama de “senso de notícia”:
6 Apesar de a primeira folha periódica impressa sob processo tipográfico – a Relatio Historica – ter sido
lançada em 1583, com publicação semestral, só a partir do século XVII surgem os primeiros jornais diários:
The Tatler (1709-1711) e The Spectator (1711-1712), ambos na Grã-Bretanha.
29
Assim como o cozinheiro sabe escolher os ingredientes ou um bom
tempero, também o Repórter deve ser capaz de distinguir entre os
fatos realmente aproveitáveis e aqueles de pouco ou nenhum valor.
O ‘faro’ jornalístico é tão importante para o Repórter como a água
para o peixe. O senso da notícia ajuda o Repórter a:
a) Perceber onde está a notícia
b) Reconhecer a notícia, onde quer que se encontre
c) Selecionar o ponto de interesse da história, a fim de apresentá-lo
no início da redação. (27-28)
Esta percepção ou reconhecimento do noticiável está vinculado estreitamente a
um certo olhar específico do Jornalismo. Mas os atributos relegados ao jornalista
profissional podem ser complementados por outros autores.
Luiz Amaral (1982:29-30), por exemplo, define o jornalista como “o homem que
faz a notícia; quem a descobre, apura, escreve e divulga seca, comentada ou
interpretada. Seu trabalho consiste em formar, informar, reformar, ensinar, divertir”. O
estudioso ressalta que, embora as circunstâncias possam ser diferenciadas, “as
qualidades profundas que se lhe exigem são as mesmas”. Isto é, o jornalista precisa ter
vocação, viver em estado de curiosidade e ter iniciativa.
Além de curiosidade, para Spencer Crump (1974), o indivíduo que se dedica ao
Jornalismo precisa alimentar um senso de responsabilidade, ter flexibilidade para
trabalhar em equipe, gostar de jornais, ter vários campos de interesse e senso de
empatia, e contar com habilidade para expor idéias, conhecimentos de ortografia e
pontuação.
Julian Harris, Kelly Lester e Stanley Johnson (1965: 9-10) têm uma visão menos
determinista do profissional: ele não nasce jornalista, torna-se. A maioria dos atributos
para o sucesso de um repórter é adquirida: curiosidade insaciável, personalidade flexível
e social, disposição para passar por muitas experiências, temperamento para trabalhar
No Brasil, a imprensa só completará dois séculos de existência em 2008 por ocasião dos 200 anos de
surgimento do Correio Braziliense, que curiosamente era editado em Londres.
7
30
sob pressão de prazos e uma tolerância que permita observação de pessoas e eventos.
Ambição, senso, determinação e autodisciplina também auxiliam.
John Hohenberg (1982:5) lembra que no início do século XX cabia ao repórter o
papel de registrar objetivamente os fatos. Apesar disso, alguns jornalistas extrapolavam
o padrão estenográfico e se aprofundavam em acontecimentos, propiciando denúncias,
revelações e acontecimentos importantes do ponto de vista do interesse público8. Com
isso, “longe de se conformar com um vago padrão de objetividade, o jornalista verifica
que, muitas vezes, a avaliação das notícias obedece a critérios subjetivos. E, dada a
condição humana, não poderia ser de outra forma”, conclui o autor.
O Jornalismo norte-americano cunhou uma expressão para estes jornalistas investigativos: “muckrakers”,
isto é, fuçadores de lixo. De acordo com Hohenberg, “foram eles que expuseram a decadência das
cidades, as máquinas administrativas corruptas, a desapiedada busca de lucro pelos grandes monopólios
industriais, as tragédias humanas do trabalho escravo, a exploração de crianças (...) Esses exemplos
pioneiros de Jornalismo a serviço da comunidade e reportagens de investigação deixaram marca profunda
no tipo de Jornalismo hoje praticado”.
8
31
1.3.2 O conhecimento jornalístico
Se o Jornalismo é uma prática, o desenvolvimento de seus procedimentos
técnicos possibilitou, ao longo dos anos, a emergência de um campo teórico que o
balizasse. Com o tempo, foi surgindo uma teoria que sustentasse o Jornalismo.
De acordo com Juan Beneyto (1965:15-6), o Jornalismo reflete um fazer ligado a
uma profissão, mas não só isso: “El periodismo es, evidentemente, una técnica, como
todas las actividades profesionalizadas lo son en grado mayor o menor, pero constituye
también, com creciente relieve, una cultura”. O conhecimento jornalístico é um “saber
alertado”, já que o jornalista é alguém que está preparado para dar conta dos fatos. E
sem homem alerta, defende, não há jornalista:
Sin esta apititud, las cuartillas mejor escritas no deben lograr la luz da
la Prensa, y ciertamente se han de perder muchas imágenes y
muchos metros de reportaje fílmico porque los fotógrafos de las
revistas ilustradas o los cámaras del noticiario o de la televisión no
han sabido ‘ver periodísticamente’ lo que tenían delante de sus ojos.
(47)
De novo, o olhar...
Na esteira da consideração sobre um conhecimento específico no Jornalismo,
Eduardo Meditsch (1992:20) argumenta que se há uma produção de saber diferente da
produzida pela ciência, o Jornalismo tem importância social muito maior do que se vem
atribuindo a ele. O autor sugere, então, que por meio do conhecimento de mundo
produzido pelo Jornalismo, o sujeito possa encontrar vestígios para o entendimento da
crescente irracionalidade da civilização racional e científica, por exemplo.
Segundo Meditsch, todo conhecimento social (inclusive o Jornalismo) acarreta
em certa perspectiva do tempo histórico, do contexto social. Como estas esferas estão
em constante mobilidade, o Jornalismo puramente objetivo é rechaçado.
32
Isso não acontece por motivos de ordem psicológica, como dizem os
manuais. Não é porque o indivíduo está psicologicamente envolvido
com o fato, mas porque toda a forma de conhecimento pressupõe
também um posicionamento do sujeito diante do objeto. Essa é a
razão mais profunda, porque o próprio Jornalismo implica uma visão
ideológica, implica um posicionamento ético e político sobre a
realidade. (31-2)
O posicionamento de Meditsch se aproxima bem das formulações de Javier Del
Rey Morato (1988), para quem se pode pensar numa filosofia da atualidade e daí
considerar que a atualidade é uma ideologia. Conforme aponta, a atualidade é a nossa
circunstância, nossa cultura, nossa sensibilidade. E o critério para tal realidade é o
universo gerado pelos meios de comunicação. É por meio deles que o cidadão
contemporâneo se situa no tempo e no espaço, dimensiona alguns de seus valores,
assenta sua racionalidade. A partir disso se permite dizer que a mídia constrói nossa
consciência de atualidade, que oferece as condições de nossa experiência de mundo para
além de nossos sentidos.
Desta forma, a atualidade é uma ideologia, uma ideologia acontecimental:
Es la actualidad como hábito y como cultura, como sensibilidad y
modo de instalarse en el tiempo y en el espacio – modo de
habérselas com ellos – la que no sólo admite, sino promociona y
privilegia el que los acontecimientos idiosincráticos sean reducidos al
común denominador del ‘human interest’ y de la espectacularidad.
(67)
O sujeito receptor, sob a torrente de informação e parâmetros de real, é quem
confere uma ordem ao mundo, mas para isso, precisa estar sintonizado numa mesma
freqüência dos meios de comunicação. Comungar a mesma ideologia acontecimental.
Para Morato (idem:82), se a ciência persegue a objetividade e se a arte a subjetividade, o
Jornalismo apela para a criação de um lugar de mundo, observado por meio de uma
tecnologia – o tipo e a natureza do veículo de comunicação - e de uma ideologia – a
atualidade.
33
1.3.3 A constituição do olhar no Jornalismo
Entre jornalistas, embora se comente muito sobre um possível faro para a
notícia, é possível também ouvir coisas do tipo: “Jornalismo não é pra qualquer um. É
preciso ter olho pra coisa!”. Descontados os exageros e entendido que a exclusividade
se estende para outras tantas (senão todas as) profissões, não se pode ignorar a idéia que
está por trás desse enunciado: o Jornalismo tem uma especialidade que exige, de quem o
exerce, esforços com que outros profissionais não se preocupam. Um breve inventário
das falas de eminentes repórteres aponta justamente para uma confirmação desta idéia.
Relatando seus 35 anos de correspondente de guerra, Peter Arnett (1994) usa
diversas vezes expressões do tipo “aprendi a escrever apenas o que vi” ou que sua
função é “dizer apenas o que vê”. Estas declarações ganham maior contorno quando, na
página 307, cita uma carta à sua base em Nova Iorque: “Pretendo continuar a contar a
guerra como ela é ...”.
Na esteira dos casos profissionais, seguem-se mais alguns. Certa vez, ao ser
questionado sobre o que era necessário para ser jornalista, Samuel Wainer respondeu
que era preciso mergulhar realmente na vida para poder transmiti-la. Mas, além disso,
um jornalista precisa saber ver. “E saber ver é só vivendo. Muitas vezes no mesmo lugar
em que há três pessoas, acontece algo e só o jornalista vê”9. O cronista Lourenço
Diaféria reforça a idéia, descrevendo o jornalista como aquele que tem a capacidade “de
ver as coisas como os outros não vêem”10. Esta capacidade ou esta necessidade
profissional converge no senso comum que circula pela categoria de que é necessário
estar alerta, atento aos sinais do mundo.
Clóvis Rossi ajuda a desenhar este olhar diferenciado do jornalista ao relatar sua
experiência como correspondente internacional em meio aos conflitos na Faixa de Gaza:
9
Apud Medina (1982:190).
34
A primeira viagem (1987) foi a passeio (...) Saí com a sensação de ter
andado sobre um barril de pólvora, prestes a explodir, mas não me
atrevi a escrever nada a respeito, porque, como turista, podia ter-me
deixado iludir por aparências. Mas ficou um desejo enorme de voltar,
de ver mais de perto, de avaliar melhor tudo aquilo. (1999:177)
Isto é, o cidadão comum, o turista, olha para o mundo de forma passiva,
receptiva, enquanto que o repórter afia seus instrumentos para ler a vida de forma mais
aguda. Não isenta de miragens e distorções, mas com um olhar que procura, que caça.
Mesmo que sejam apenas fantasmas.
Rossi justifica constantemente sua opção pelo Jornalismo por este permitir-lhe
“ser testemunha ocular da história do meu tempo”. A expressão – cara ao Jornalismo
brasileiro por ter se decantado no bojo de um paradigma, O Repórter Esso – reúne forte
carga de verossimilhança. Afinal, ver a História é estar diante dela no seu
acontecimento, testemunhando-a com os próprios olhos11 na tentativa de absorver os
fatos na sua integridade. Desta crença resulta a ilusão de que o olhar é transparente,
perfeito, que a ele chegam os objetos sem distorções, sem embaçamentos. Esquece-se
que o que vêm aos olhos são imagens das coisas e não as próprias. A opacidade é
constitutiva do olhar, e o jornalista não pode se desviar disso.
O jornalista Audálio Dantas diz que uma das exigências do ofício do repórter é
ter “coragem para ver”, e depois dela, a coragem para contar o que se viu:
De um bom repórter, desses que vão além das prescrições dos
manuais da redação ou das receitas da pauta diária, exige-se muito
mais. Ao contrário daqueles macaquinhos chineses, eles têm de ver,
ouvir e contar – de preferência contar bem, em texto de qualidade.
(1998:10)
O inventário discursivo sobre o olhar do jornalista continua:
Segundo Ribeiro (1994:204).
O Jornalismo adquire dimensões de crônica histórica, como se pode ver no artigo de Clóvis Rossi na
Playboy de abril de 1984: Eu vi a Argentina mudar.
10
11
35
Ainda hoje, sempre que posso, volto à reportagem. O desafio de
perseguir a informação pelos labirintos onde ela tenta esconder-se, a
astúcia na formulação das perguntas, o olho vigilante em busca dos
detalhes desprezados, enfim, a guerra da inteligência contra a
mentira, tudo isso faz da reportagem a fascinante aventura que ela
deve ser.
Mauro Santayana, IN: Dantas (1998:168)
Lugar de repórter é na rua, costuma-se dizer na Redação. Mas para
sê-lo de fato é preciso mais, é preciso saber ver. Tendo o olhar, podese ser repórter sendo músico, escrevendo livro, fazendo filme, poema
ou pintura. Uma das reportagens mais contundentes sobre os horrores
da Guerra Civil Espanhola foi um quadro em preto-e-branco,
Guernica, de Picasso.
Zuenir Ventura, IN: Nogueira (s/d:108)
O bom repórter político, aliás, sabe sempre para onde o vento está
soprando, mesmo nos momentos de calmaria absoluta, como
quando, por exemplo, as flores do recesso brotam do cerrado árido
nas férias que os políticos se dão (quando não se pagam a si mesmos
para trabalhar) no inverno ou no verão. Quando o assunto é política,
convém saber ler nas entrelinhas escondidas entre a ponta da língua
(normalmente escondendo alguma bolsa de veneno) e o canino
mais próximo.
José Nêumanne Pinto, IN: Nogueira (idem: 51)
Embora se possa pensar que este acervo de idéias semelhantes seja um evento
recente no Jornalismo local, o fato é que, em muitos momentos, o papel da imprensa foi
se consolidando sobre a idéia de que jornalistas têm uma missão a cumprir frente a seu
público. Numa famosa conferência de 1920, Rui Barbosa manifesta o que considera este
dever:
A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha
o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem,
devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou
roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe
cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do
que a ameaça. Sem vista mal se vive. Vida sem vista é vida no
escuro, vida na soledade, vida no medo, morte em vida (...) Já lhe
não era pouco ser o órgão visual da nação. Mas a imprensa, entre os
povos livres, não é só o instrumento da vista, não é unicamente o
aparelho do ver, a serventia de um só sentido. Participa, nesses
organismos coletivos, de quase todas as funções vitais. Barbosa
(1990: 37)
36
O Jornalismo enquanto atividade que revela os acontecimentos para o grande
público, e o jornalista enquanto profissional que detém um olhar atento a estes fatos são
duas idéias que se combinam nos fragmentos discursivos elencados até aqui. No que
tange à esfera do jornalista, uma discussão ganha vulto, a de uma identidade comum
àqueles que exercem esta atividade.
Frente ao estudo da identidade profissional do jornalista, encontramos raros
trabalhos científicos produzidos no país, mas que servem de medida para a colocação do
problema. É o caso, por exemplo, de Travancas (1993), que parte da premissa de que
haja realmente uma identidade particular neste profissional. Conforme atesta, a
profissão é tão importante para quem a desempenha que delineia para estes uma
“identidade particular”. A partir do conceito de identidade social, conseqüência direta
de papel social e da sua construção, a autora acredita que o papel profissional para os
jornalistas ocupa um lugar privilegiado em suas histórias de vida, mesmo apesar dos
demais papéis a serem desempenhados. “O ser jornalista contamina os demais papéis,
ainda que de forma diferenciada” (101-102)12. Assim, a identidade do jornalista se
forma a partir da profissão, mas resulta algo além do que o seu mero exercício.
Expandindo os limites, a autora, neste ponto, faz referência ao fato de algumas
carreiras significarem bem mais do que uma atividade ou emprego na vida de seus
profissionais, provocando “um envolvimento que resultará num estilo de vida e numa
visão de mundo específicos”(108). Estas tais ocupações – e o jornalista é uma delas têm exigido de seus membros um sentimento de adesão, de compromisso que marcará
suas trajetórias na carreira, em meio à categoria, aos pares profissionais. Esta adesão –
este é o termo de Travancas – “surge como expressão de suas individualidades”,
Outro estudo da condição jornalística, o de Cremilda Medina (1982), já apontava esta tendência: “Tornase difícil dividir as características do profissional assumido entre aptidões de personalidade e simples técnicas
de treinamento no ofício. Tanto uma como outros são visíveis e podem ser catalogadas no estudo direto do
desempenho diário, mas, se para efeitos de análise, pode-se apontá-los isoladamente, na realidade formam
um feixe indissociável que nem os psicólogos sociais ainda desvendaram” (24).
12
37
marcando fortemente a conduta prática destes profissionais, sua compreensão de mundo
e as formas de reação aos estímulos da vida cotidiana. Condição que nos permite pensar,
por extensão, que esta visão de mundo, esta adesão sejam traços constituintes nos
processos de confecção de indivíduos-jornalistas, sendo também responsável pelas
práticas que colhemos na contemporaneidade das mídias.
Se existe um olhar de jornalista, uma forma de esses profissionais se dirigirem
aos seus objetos, este olhar é particularmente importante para a formação de sua
identidade de jornalista, porque ajuda a configurar a alteridade e a individualidade
pessoal.
Identidade que é um terreno complexo e pantanoso, onde convivem velhos mitos
cultivados nas redações e novos titãs, engendrados nos gabinetes, nas gerências e nos
departamentos de engenharia e recursos humanos. Ribeiro (1994) se debruça sobre a
modernização pela qual dois grandes jornais brasileiros passaram nos últimos anos – a
Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo – e as conseqüências destes processos para os
jornalistas, na ponta da escala industrial produtiva da mídia. O título de seu trabalho é
sugestivo - Sempre alerta - clara remissão a um dos valores do Jornalismo, estar atento
a tudo a toda hora.
Vigora nos veículos da grande imprensa uma peculiar onisciência, de
tipo seletivo, em que o jornal e seus repórteres pretendem saber
tudo. Não em sentido absoluto, mas trata-se de saber tudo o que é
importante. Esse conhecimento universal deriva de uma onipresença,
também seletiva, e que abarca cada jornalista, suas fontes, cada
empresa de notícias e o conjunto da imprensa.(125)
Assim, reforçando o dito, mitos românticos da profissão cedem espaço a uma
nova mitologia, agora gerencial, administrativa, de modernização, sob a lógica de
mercado. Os manuais criam não apenas regras de estilo e redação, mas também
condicionam como se deve ver o mundo. De que parte, de que forma, sob quais
aspectos. O que passa a ser importante, publicável, identificável como notícia.
38
Estar sempre alerta é lançar um olhar sagaz, penetrante e apurado. É enxergar
nas cenas mais prosaicas algum descompasso que mereça menção. É ver no lixo
matéria-prima para o noticiário. É antever os passos da fonte de informação suspeita. É
se deixar levar por miragens também, vultos e sombras. É prever o que fazer na edição
seguinte. É configurar o mundo e seus acontecimentos nos minutos que o telejornal
dispõe ou espremê-los na largura de algumas colunas de página. Ser jornalista, então, é
lançar um olhar para o mundo, compreendê-lo, organizá-lo em manchetes e traduzi-lo
rápida e claramente.
Ribeiro (op.cit.) estabelece uma relação próxima de análise do Jornalismo
enquanto profissão e a religião, nas suas estruturas, funcionamentos, hierarquias e
ordenamentos. Alguns valores do Jornalismo – tal qual na religião – tornam-se dogmas,
indiscutíveis. E estar sempre alerta é um deles. O que permite o autor, lá pelas tantas,
questionar-se se o Jornalismo é uma forma de sacerdócio. Ou, reformulando,
poderíamos indagar: ficar vendo o mundo 24 horas por dia de uma forma determinada é
agir como se estivesse numa religião? É ver a vida, as contingências e as pessoas por
um prisma redutor, compressor da realidade, normatizar? Vamos um pouco mais longe:
Enxergar assim é ver em profundidade? É observar com amplidão? Ter uma visão geral,
panorâmica, é ter o melhor ponto de vista?
A questão da identidade se equilibra também nos mitos que ajudam a construir
um ramo profissional. Nas crônicas do repórter Pedro Bial (1996), o correspondente
internacional acaba citando algumas dessas expressões que envolvem os jornalistas:
“repórteres vivem de carne humana”, são “viciados em perigo”, e “repórteres podem ser
advogados de causas perdidas, padres confessores, carrascos, redentores. Têm noites de
médicos e dias de coveiros. Alguns diriam abutres. Mas, como dizem os tiras, ‘alguém
tem de fazer o trabalho sujo’”
39
O olhar é uma forma de apreensão da realidade, provoca uma compreensão dos
fenômenos, reúne um conjunto de procedimentos práticos e expressa um traço da
identidade do jornalista. Mas não existe uma homogeneidade neste olhar, uma
perenidade em todas as suas manifestações. Apesar de exercerem o Jornalismo, o
correspondente internacional, o repórter investigativo, o jornalista que trabalha nas
editorias de Geral e de Comportamento tem suas especificidades no ofício de enxergar
notícias. Setoristas vêem com mais rigor que os jornalistas generalistas, porque o foco –
para usar um termo da óptica – é mais preciso, mais recortado.
Um exemplo das diferenças no olhar na imprensa nacional é Ricardo Kotscho,
que já se autodefiniu como o repórter do pipoqueiro: “Enquanto todos cobriam o palco,
eu ficava pela platéia, dando uma espiada nos bastidores” (IN: Dimenstein & Kotscho,
1990: 68). A atenção para fatos periféricos, geralmente considerados acessórios, a
preocupação com as histórias dos anônimos envolvidos, tudo isso faz do olhar deste
repórter uma janela no Jornalismo burocrático.
É Kotscho (1986) quem mesmo diz que o indivíduo que trabalha na área precisa
ter alma de repórter: “o repórter deve estar sempre livre de qualquer preconceito,
qualquer idéia pré-fixada pela pauta ou por ele mesmo. É a sua sensibilidade que vai
determinar o enfoque da matéria” (42).
Talvez alma de repórter, esta sensibilidade para o fato noticiável, seja um outro
nome para o que venho tentando desenhar aqui como olhar no Jornalismo. É preciso, no
entanto, polir melhor esta expressão. Existe um olhar clínico, especial, particular na
apreensão dos estímulos do mundo. Esta modalidade distinta de compreensão provoca
uma série de ações e reações daqueles que olham. Diante disso, é possível que não
exista um olhar de jornalista, mas sim um olhar do Jornalismo, um olhar jornalístico.
40
A expressão olhar de jornalista pode ser um problema, já que assinala algum
traço determinista na profissão: para ser jornalista, é necessário que se tenha tal olhar,
tal natureza. O equívoco se revela quando uma pergunta simples é feita: Quem não tem
estes olhos, então, não é jornalista?
A solução parece ser substituir a expressão original por “olhar jornalístico”, tal
como “olhar clínico”, “olhar cinematográfico”. Aí sim, parece ter-se chegado a um
ponto menos incômodo. Dessa forma, o “olhar jornalístico” compreenderia um
conjunto de procedimentos de apreensão da realidade e seus elementos, o que
ajuda a desenhar traços de uma identidade funcional no campo social do trabalho.
É um feixe de comportamentos operacionais, um amontoado de padrões de
resposta aos estímulos do mundo, preciso na sua vocação de busca, mas não livre
de erros, perdas de foco e embaçamentos. Imperfeito, o olhar jornalístico é menos
evidente e transparente quanto se almeja; é mais complexo do que se imagina.
Se se pode caracterizar alguém pela natureza das funções que desempenha,
jornalistas são pessoas que executam certas atividades comuns. Para estes trabalhadores,
a apreensão da realidade é fundamental, imprescindível para a manutenção de seu devir
profissional. Para estes trabalhadores, tudo o que cerca os procedimentos desta
apreensão deve, de alguma forma, incidir sobre os demais comportamentos, as demais
ações (ou reações ao mundo). A adoção da expressão “olhar jornalístico” se mostra
mais pacificadora, neste sentido, e mais precisa na definição. Isto na medida em que
aponta para um olhar que é próprio, vinculado ao campo jornalístico.
Abandonando uma lógica perigosamente determinista, é preciso ter claro que o
olhar jornalístico é um produto social criado dentro e fora da profissão. Isto é,
inicialmente, com o surgimento das gramáticas jornalísticas, alguns elementos foram
lançados, dando contorno e formato visível ao perfil do trabalhador. Luiz Beltrão (1992)
41
afirma que o Jornalismo tem seis caracteres fundamentais: atualidade, variedade,
interpretação, periodicidade, popularidade e promoção. O olhar jornalístico é motivado
por muitos destes aspectos e funciona sob eles. O repórter sai para a cobertura em busca
da novidade, tentando atualizar conhecimentos que ele e o público já têm sobre o fato...
Mas o olhar jornalístico leva em conta também expectativas que o público
consumidor de informação manifesta. Por isso, este produto social também se alimenta
de outras fontes exteriores ao seu campo específico de formação e atuação.
Este olhar tem lá os seus critérios, suas regras de funcionamento. Um olhar
rigoroso, seletivo, abrangente, aprofundado, obcecado. Um olhar recheado daquilo que
Luiz Beltrão (op.cit.) chamou de curiosidade comunicativa:
O primeiro atributo do autêntico jornalista é a curiosidade
comunicativa, que difere da curiosidade pura e simples porque se
reveste de um insopitável desejo de passar adiante a informação
obtida ou o fato testemunhado, ajuntando-lhe dados novos e
comentários. Diante de uma ocorrência, o homem comum pára,
informa-se e segue o seu caminho, indiferente, se tal fato não lhe diz
respeito imediato; o intelectual e o cientista igualmente param,
informam-se e prosseguem, quando muito retirando dela algumas
inferências particulares ligadas à sua ordem cultural; o jornalista age
diferentemente. A sua parada é mais longa ou mais intensa; a
informação que colhe é mais completa e tem aplicação imediata
porque ele lhe dá forma, julga-a, pesa-a, não em função dos seus
próprios interesses, mas da sociedade de que se sente receptor e
transmissor. Neste sentido é que o jornalista é aquele ‘órgão
constante e vivo de informação’. Para ele, o fato tem um sentido
que é preciso captar, definir, situar, comparar com outros, classificálo pela sua maior ou menor importância e, finalmente, exprimi-lo,
divulgá-lo, comunicá-lo. (148)
Mas o olhar jornalístico se preocupa em extrair do fato seus elementos
essenciais, os aspectos que mais contribuem para a narrativa do contemporâneo, caráter
que Beltrão batizou de “fecundidade jornalística”:
A fecundidade jornalística já foi conceituada por um escritor chileno,
Andres Siegfried, com as seguintes palavras: ‘(o jornalista) deve olhar,
escrever, evocar... tem-se a impressão de que examina o mundo...
com um olho novo; é um memorialista mas é também um sociólogo,
inclinado ante a sociedade em que vive, acumulando observações
curiosas que serão aproveitadas pelos filósofos para deduzir leis’.
42
1.3.4 Jornalismo e sentidos humanos
Em seu último livro, Roland Barthes se detém sobre a fotografia e como ela se
apresenta pessoalmente a ele. A câmara clara é um livro deliberadamente subjetivo e
tenta lançar luzes sobre o ato e a arte de apreender imagens. A exemplo de outras obras,
Barthes faz aqui certos deslocamentos preciosos para o entendimento do processo
fotográfico, não no seu viés técnico, mas no simbólico. Assim, para o autor, o órgão do
fotógrafo não é o olho, mas seu dedo, e a vidência deste sujeito não consiste no ver, mas
no estar lá (1984: 30 e 76). O olhar se revela como algo “virtualmente louco”, já que é
simultaneamente efeito de verdade e de loucura. O olhar fotográfico
tem algo de paradoxal, que às vezes encontramos na vida (...)
Diríamos que a Fotografia separa a atenção da percepção, e liberta
apenas a primeira, todavia impossível sem a segunda (...) uma
mirada sem alvo. No entanto, é esse movimento escandaloso que
produz a mais rara qualidade de um ar. Eis o paradoxo: como se
pode ter o ar inteligente sem pensar em nada de inteligente, quando
se olha esse pedaço de baquelita negra? É que o olhar, ao fazer a
economia da visão, parece retido por algo interior (164-167).
Difícil dizer o que vem a ser esta matéria interior. Mas, com Barthes,
percebemos que a análise do olhar não se apóia apenas nos mecanismos de
funcionamento dos órgãos da visão13. É previsível que uma análise do olhar se
circunscreva ao sentido da visão. É recorrente que se apóie o julgamento da vida e do
mundo nas imagens que captamos, até porque a civilização contemporânea construiu-se
muito à base de uma cognição vidente, de modelos de representação visíveis, de
pressupostos filosóficos que vinculam o real ao verificável pelos olhos.
Étienne Samain (2000) afirma que não seria demais pensar em Barthes como um antropólogo, com seu
agudo olhar sobre o mundo, as pessoas e os seus fatos. Um antropólogo visual: “Barthes levanta um
problema cognitivo e epistemológico sério. Existem atrás e dentro das matrizes imagéticas – fotográfica,
cinematográfica, videográfica, informática -, lógicas, operações cognitivas, posturas filosóficas, visões e
apreensões singulares do mundo, que temos ainda que descobrir e pôr à luz” (48)
13
43
No Jornalismo, isso, constantemente, é levado às últimas conseqüências. César
Tralli (2001:22) conta que, numa reportagem sobre uma menina que supostamente
chorava lágrimas de cristal, só acreditou no fato ao assistir a uma demonstração da
adolescente. Tomada de ceticismo, a equipe de televisão queria desmascarar a farsa:
“Afinal, obrigação de repórter é desconfiar sempre de tudo e de todos. Questionar-se a
todo instante sobre o que vê, ouve e apura... Porém, mesmo sendo fiel à cartilha do bom
repórter, só mais tarde eu iria descobrir que fora traído pelos meus próprios olhos”.
Neste caso, o olhar não bastou.
Fernandes (1998:37) revela que o dramaturgo Jorge Andrade comparava o
jornalista à figura mitológica judaica do demônio Asmodeu, aquele que espia dentro dos
outros e de tudo o que está oculto.
Tal qual um Asmodeu moderno, o repórter ao escrever seus textos,
reporta os acontecimentos como processo de revelação de suas
raízes. Um movimento de abrir portas, ver as pessoas por dentro e
mostrar o resultado ao mundo”. De acordo com a autora, a postura
do repórter Asmodeu “implica na possibilidade de assimilar o outro
modo de ‘ver’, espreitar a realidade, a partir do próprio olho” (179).
Como que se reforçasse o dito, o próprio Jorge Andrade, no romance-biografia
Labirinto, vai afirmar: “Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver,
rever. O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida” (1978:60).
É comum que se reflita sobre o entendimento com base na visão que temos de
tudo, mas é preciso entender que o olhar pode se guiar também pelas demais
sensibilidades humanas. Pode-se dizer – embora pareça contraditório – que o olhar não
se limita à visão. Ele vai mais longe, pois articula conjuntamente os demais sentidos.
Esquadrinhar um modo de ver é importante, fundamental. Mas ele é insuficiente
para realizar um Jornalismo orgânico, apoiado pelas demais extensões do homem, seus
outros sentidos. Todos eles devem estar aguçados, sob controle e com perfeito manejo.
Todos os sentidos no seu maior grau de acuidade, dispostos a responder, ágeis na
44
condução dos impulsos, precisos na identificação das causas de seus alertas. A visão
tem que ser abrangente e penetrante, podendo rasgar o espaço, chegar aos objetos,
retornando com a sua indelével imagem, a mais nítida possível. A audição deve ser
aguda, delicada, na possibilidade de pinçar as palavras e os sons na sua inteireza. Fino
deve ser o faro, limpo de incertezas, captando a atmosfera das cenas e das pessoas,
desviando-se das artificialidades. O toque deve ser ameno e perscrutador, tateante da
natureza das coisas, do seu volume, espessura, temperatura e rugosidade. As papilas
gustativas, por sua vez, estarão preenchidas com intensa memória e precisão, com
clareza e certeza no paladar.
O olhar jornalístico não pode se estreitar a ser apenas o olhar, a visão. É
necessário recorrer a uma epistemologia dos sentidos, uma compreensão de que estas
células de apreensão de signos funcionem combinadas, articuladas. É importante frisar
que não estou atrás de uma percepção integral, totalizante, com a qual me perderia na
armadilha determinista. Mas sim enfatizo a necessidade de conjugar os sentidos
humanos para ampliar a captação dos estímulos externos e facilitar a conexão sujeitoobjeto, tão necessária nos processos cognitivos. Com isso, o olhar jornalístico não se
estrutura apenas na visão, mas ganha também com as informações que os demais
sentidos recolhem do mundo.
Dessa forma, uma epistemologia dos sentidos prevê como se configuram os
saberes próprios do campo jornalístico, condicionados pela construção de uma visão
específica, mediados por todos os sentidos. Tal visão ímpar não pode estar associada
apenas ao sentido dos olhos, mas amparado pelos demais, na consolidação de uma
sensibilidade treinada para a apreensão do que pode ser noticiável. Todos os sentidos
estão presentes na lida cotidiana: ouvir bem e captar as palavras impronunciáveis são
fundamentais para o trabalho jornalístico; farejar os fatos, seguir os odores dos
45
acontecimentos, também é necessário para o profissional; bem como apalpar a
consistência das informações e saborear (provar) as versões. Já se disse que um bom
jornalista deve contar as histórias com o corpo inteiro14...
Assim,
é
possível
operar
com
conhecimentos
de
diversas
origens,
complementares de início, redundantes em algumas vezes, mas nunca descartáveis. Luis
Carlos Restrepo chama isso de “cognição afetiva”, diálogo entre os diversos sentidos
humanos, alargando a razão, abrindo espaço para o coração e a sensibilidade. O
intelecto não se mantém sozinho, é preciso um resgate da emoção, do sentimento.
O interdito que separa a intelecção da afetividade parece ter sua
origem em que, frente a uma percepção mediada pelo tato, gosto
ou olfato, o Ocidente preferiu o conhecimento dos exteroreceptores,
ou receptores à distância, como são a vista e o ouvido. Nossa cultura
é uma cultura audiovisual. (2000: 32)
Entre os povos mais antigos, as referências a experiências sensoriais mediadas
pelo olfato e pelo tato são mais numerosas, e tidas como sinônimos de sabedoria,
perícia, aguda percepção. Hoje em dia, a percepção das pessoas é largamente visual, ou
audiovisual. É evidente que há neste hábito uma marca profunda deixada pelos meios de
comunicação, majoritariamente auditivos e visuais.
Mas a simples conexão dos sentidos não basta para o surgimento e consolidação
de um Jornalismo orgânico. É preciso que as extensões do homem estejam preparadas,
afinadas, sensíveis aos mais sutis estímulos. Denis Diderot (1979) mostra-nos tal
importância, ao dissertar sobre a condição de um cego de nascença na iminência de uma
cirurgia para a retirada de cataratas. Embora o filósofo, em alguns momentos, pareça
estar elogiando aqueles que não vêem em detrimento dos que enxergam, na verdade,
critica o olhar que não vê.
Para José Hamilton Ribeiro, uma das condições objetivas do repórter é “ter os sentidos aguçados”: “Melhor
é confiar mesmo nos olhos, sem desprezar o que vem pela audição, talvez elaborando assim: o que se diz
convém registrar como versão; o fato mesmo depende de mais observação. E olho aberto. Olho aberto
para o mundo” (Dantas: 1998, 114).
14
46
O nosso cego se dirige pelo ruído e pela voz tão seguramente que
não duvido que um tal exercício tornasse os cegos muito destros e
muito perigosos. (6)
Se alguma vez um filósofo cego e surdo de nascença fizer um
homem à imitação do de Descartes, ouso assegurar-vos, senhora,
que colocará a alma na ponta dos dedos; pois é dali que lhe vêm as
principais sensações, e todos os conhecimentos. (10)
Diderot chama a atenção para uma educação dos sentidos. Assim, é preciso
educar o olhar, educar os ouvidos, sensibilizar as pontas dos dedos para tatear melhor...
Um sentido pode ajudar o outro a se aperfeiçoar, aumentando sua acuidade, sua
habilidade, mas não há dependência essencial de suas funções, embora sirvam-se
complementarmente.
Num trecho de A Caverna15, José Saramago descreve o trabalho de um velho
escultor sobre a argila. Seus dedos experientes tocam a matéria bruta com intensa
sensibilidade, como se vissem o barro de perto, como se nas suas pontas estivesse seu
cérebro. A passagem é ilustrativa disso que vejo como uma conjugação dos sentidos
para uma compreensão de algo maior.
Quando me remeto a um olhar clínico do Jornalismo, quero me referir a uma
maneira particular de receber o mundo, compreendê-lo e demandar ações de resposta.
Um olhar é um entendimento, e não apenas a captação de uma imagem pelos faróis
dos olhos. Este olhar não se resume a uma visão, mas também tem o suporte dos
demais sentidos humanos, já que esta profissão depende deles no seu dia-a-dia16. O
olhar jornalístico é um complexo sensorial que articula os cinco sentidos humanos
na busca de sentidos (significados) apreensíveis. Incompleto por natureza e
imperfeito por definição, este olhar enfrenta resistências e sombras para tocar a
superfície das cenas e das coisas, e interpretar nelas sentidos. O jornalista vive entre
15
São Paulo: Cia das Letras, 2000.
47
seus semelhantes, deve relatar o seu tempo, os acontecimentos que tomam lugar nele,
por isso fica impossível eximir-se da apreensão da realidade pelos sentidos. A vida lhe
chega também pelos ouvidos, pelas narinas, no contato com a pele, sobre a língua.
Em alguns ramos do campo do trabalho, certos sentidos são mais prementes.
Para o fonoaudiólogo, o músico e o psicanalista, a escuta é fundamental, ponto de
partida de muitas ações17. Para o escultor, para o massagista e para o telegrafista, reside
no tato esta importância primeira. O astrônomo e o vigilante centram sua atenção na
visão, enquanto que o cozinheiro a combina com o paladar, o olfato e o tato. Mecânicos
e médicos equilibram-se nos sentidos dos olhos, dos ouvidos e das mãos. Jornalistas se
assemelham a esses profissionais, já que necessitam lançar mão de mais recursos de
leitura da realidade.
Ao dissertar sobre o processo comunicativo e os sentidos humanos, não posso
deixar de citar Marshall McLuhan (1969), para quem os meios de comunicação
funcionam como extensões do corpo humano. Assim, os veículos (TV, Rádio, etc.)
configuram um sistema nervoso prolongado, por meio do qual o homem capta, sente,
tem consciência de seu lugar e fato presentes.
Se a metáfora se mostra verdadeira, isto é, se o cidadão tem a sua noção de
atualidade por meio dos muitos meios (ou sentidos prolongados), nada mais natural que
isso se verifique também numa escala micro. Quer dizer, a apreensão do real (ou do que
chamamos disso) deve ser mediada não apenas pela visão, mas por todos os sentidos
humanos disponíveis. Daí a importância de uma epistemologia dos sentidos. Na prática
jornalística, ela precisa ser proposta e colocada em prática neste sentido. Ou melhor,
nestes sentidos.
Note este trecho de Wainer (1987:106): “Mas [Chateaubriand] tinha faro de repórter, sabia onde estavam
os assuntos efetivamente importantes. (...) Graças a esse faro, eu pude olhar com meus próprios olhos o
nascimento do Estado de Israel”.
17 Imagine, por exemplo, como seria hoje a história dos estudos da psique humana se Freud não tivesse se
preocupado em ouvir suas pacientes histéricas...
16
48
1.4 O olhar estabelece sujeitos e objetos
“A reportagem é sempre uma ação transitiva; e o repórter, o seu sujeito,
o que vai atrás do objeto, transitando de um lugar para o outro.
É o contato imediato em primeiro grau com todos os sentidos:
é o olhar, o paladar, o olfato, o tato e a audição de quem não pode ver,
gostar, cheirar, tocar e ouvir o acontecimento. O resto é vicário e virtual”
Zuenir Ventura, jornalista brasileiro
Um olhar é o que preenche a distância entre um corpo e outro. Numa ponta, a da
origem, resta um sujeito. No outro extremo, fica o objeto deste olhar, coisa perscrutada,
cena recortada das demais seqüências do mundo. Na outra ponta, pode estar também
outro sujeito, mas se ele é o foco de um olhar, está objetivado, mirado.
O olhar é aquele processo que estabelece sujeitos e objetos, que dimensiona
relações. O olhar é o tato da distância, da longitude: ele toca tudo, até mesmo aquilo que
os dedos ainda não alcançam. Ele enquadra a realidade, numa tentativa de organizá-la,
de conservá-la num campo de visão próximo do entendimento. Ele cerca as cenas, as
situações, os corpos que ali habitam ou que, simplesmente, por lá passam. O lançamento
de um olhar é uma ação do sujeito, pois tem na sua medida de existência a
pressuposição de alguém que vê algo, que se coloca na posição de vidente, observador.
O olhar só pára quando encontra um objeto. Pára, mas não estaciona. Detém-se num
instante para reconhecimento superficial, escaneando o objeto, colhendo informações
para o processamento subjetivo. O olhar bate e volta. Recheado. Transformado.
Um corpo (vivo ou morto), uma cena (estática ou em movimento), uma
seqüência de movimentos (lenta ou ligeira), um acontecimento (relevante ou
desimportante) são objetos, coisas apreensíveis pelo olhar. A operação do olhar pode se
dar entre sujeitos que se entreolham, que se encontram. Mas o olhar é um vetor, com
ponto de partida e lugar de chegada. Não está livre de desvios ou de errâncias, pois faz
parte de um universo repleto de incertezas. O olhar é uma mira, uma flechada, um raio.
O olhar laça o mundo para o observador, e transforma, muitas vezes, sujeitos em objetos
49
desta visão. A fotografia imita o olhar humano nesta mesma conversão, mas o faz com
maior ênfase: pois congela o momento, corporifica a cena, coisifica os sujeitos, tirando
a sua dimensão viva e consciente.
Michel Foucault (1980) já disse que o olhar clínico tem uma propriedade
paradoxal de ouvir uma linguagem no instante em que percebe um espetáculo. A
fotografia é um olhar com córneas mecânicas, preocupado com o alargamento do
presente, com a sua distensão.
Dois processos – um físico e outro químico – permitem o registro do instante, a
permanência histórica de um segundo. Primeiro, a luz ilumina os corpos e permite que
sejam refletidos numa superfície receptora. Depois, uma solução de nitrato de prata –
quimicamente sensível à incidência de luz – reage num suporte plástico (o filme)
gravando os corpos captados pela lente. É o desenvolvimento tecnológico que
possibilita a manutenção de um instante. E a história da fotografia, de alguma forma,
acaba perturbando a forma humana de ver18: ela “é capaz de ver tudo - a verdadeira
retina do cientista, segundo o astrônomo Jules Jansen –, ela é dotada de uma missão
documentária” (idem: 28, volume 2), ferramenta ideal para um inventário do planeta.
Assim, ao se deparar com retratos de Henri Cartier-Bresson, por exemplo, podese dizer que é perceptível ali uma certa mania de ver, de “restabelecer um sentido que
escapa pela metade, de encontrar oportunamente na ocultação do olhar, numa figura
anônima e imprecisa, um retorno a sua própria inquietude” (idem: 16, volume 3). Ou
ainda que o fotojornalismo de Robert Capa é “uma maneira de viver e uma forma de
escritura, mais incisiva que um relato, uma instintiva ‘prolongação do espírito e do
coração’” (idem: 24, volume 3). A fotografia é a manutenção do ver, leitura do mundo.
18
Conforme Robert Delpne e Michel Frizot no volume 1, página 5, da coleção Histoire de Voir (1989)
50
O homem é um ser que produz e se alimenta de sentidos. Ao longo de sua
existência, consome-se significando os fatos e ressignificando a si mesmo. Explicar os
acontecimentos, compreender o mundo, nomear as coisas, ler a vida, todas estas ações
são iniciativas de produção e preenchimento de sentidos. Um olhar é uma etapa do
processo de preenchimento e fixação de sentidos.
Por meio do movimento da leitura – considerada aqui uma ação ampla e
profunda disseminada nos afazeres humanos -, o olhar manifesta-se como uma iniciativa
de criação e multiplicação de sentidos. A leitura é a decodificação de signos e sua
atribuição de sentidos e significados nos contextos. Então, ler – tal como escrever,
pintar ou compor - é produzir sentidos.
O Jornalismo é uma atividade que, destacadamente, opera sobre o campo da
significação, pois lê o mundo, interpreta o que nele vê na tentativa de traduzir este
estado de coisas para outras pessoas. Para Maurice Mouillaud (1997:38), produzir
informação é destacar, trazer à tona, permitir uma visibilidade, colocar a ponto de se
perceber. Assim,
o pôr em visibilidade não constitui apenas um ser ou um fazer; não é
simplesmente infinitivo, contém modalidades do poder e do dever.
Indica um possível, um duplo sentido da capacidade e da
autorização. A informação é o que é possível e o que é legítimo
mostrar, mas também o que devemos saber, o que está marcado
para ser percebido.
O jornalista coloca em evidência, dá visibilidade ao fato, mas antes disso, ele
precisa enxergá-lo, reconhecê-lo no oceano de informações descartáveis e relevantes. O
olhar jornalístico deve operar sobre esta extensão em busca do que pode mesmo vir à
tona, e permanecer na superfície19.
19 Uma passagem das memórias de Samuel Wainer (1987) sinaliza o peso dado ao olhar jornalístico no
exercício profissional: “Para um jovem profissional, nada poderia haver de mais emocionante que ver a
História acontecendo diante dos próprios olhos. (...) Circulei com olhos de jovem repórter por aquela Europa
devastada pela guerra”. Alexandre GARCIA (1990) estende o raciocínio para outros sentidos humanos: “Só
me vali do que vi, ouvi, senti, toquei e cheirei.”
51
Este ler-o-mundo carrega consigo o peso da responsabilidade, o que acarreta
comprometimentos éticos20. A presença do olhar pressupõe uma subjetividade ativa, que
dispara o olhar para o exterior. No campo jornalístico, mais cara que a subjetividade é a
objetividade, esta faculdade de tornar tudo o que o olhar toca em coisa, objeto.
20 De forma alegórica, José Saramago (1995) mostra isso no seu Ensaio sobre a cegueira, quando coloca
alguém que enxerga perfeitamente no meio de uma multidão de cegos. A mulher do oftalmologista – ironia!
– convive com os acometidos pela “treva branca”. Só ela vê, mas ninguém sabe disso. Mesmo assim, ela
guia sua vida por uma “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”.
52
CAPÍTULO 2
A objetividade
2.1 Uma idéia em cinco séculos
“...isso que a você parece uma bacia de barbeiro,
para mim é o elmo de Manbrino, e a outro parecerá outra coisa...”
Miguel de Cervantes - O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha
A
gudos, os olhos seguem o vulto pela relva. Dom Quixote avista um cavaleiro
portando o almejado elmo de Manbrino, reluzindo a ouro. O fidalgo ordena
que se defenda e, num átimo, investe sobre o oponente que sequer esboça
reação. Quando o cavaleiro se levanta do chão não se mostra tão vultoso quanto antes: é
apenas o que sobrou de um simples barbeiro. Dom Quixote toma-lhe o elmo e segue seu
caminho, ignorando as objeções de Sancho Pança. Mais tarde, numa taverna – que o
fidalgo julga ser um castelo – Dom Quixote discute com o escudeiro e outros
acompanhantes. Eles teimam em dizer que o elmo não passa de uma bacia de barbeiro,
mas – sagaz – o fidalgo adverte que ali naquele castelo, tudo se dá de forma
encantatória e todos se deixam confundir por ilusões.
Se um pedaço retorcido de metal pode ser ao mesmo tempo um admirável
capacete e um recipiente ordinário, um conceito como o de objetividade pode se
sustentar nesta ambigüidade? Onde mora a objetividade quando as visões se
multiplicam, e com elas os objetos vistos?
O trecho da obra de Cervantes ilustra com clareza o problema que se tem diante
dos olhos: A objetividade é possível? Como ela se dá? Em que nível? Sob quais
condições? Quem a exerce? E no que ela se apóia para vigorar?
É evidente que o problema da objetividade não é recente, mas o que se percebe é
que nos últimos cinco séculos a sua discussão não só se alargou como também ganhou
profundidade no meio daqueles que se aventuram a enfrentá-la. Muito arbitrariamente,
53
pode-se eleger como um marco desta temática a edição de O discurso do método, de
René Descartes, em 1637.
Este é um marco que se pode denominar como pré-histórico às discussões
recentes sobre a objetividade, já que a obra cartesiana, na verdade, lança bases para o
que se pode chamar de uma filosofia da consciência21. Numa alegoria, pode-se pensar
que uma seta disparada pelo filósofo francês vem atravessando os séculos, trazendo
amarrada a si uma longa linha de incertezas e indefinições. O fio, flexível por natureza,
resiste ao tempo, às mudanças do clima e à tentação dos homens em querer arrebentá-lo,
deixando a tradição nas brumas do esquecimento. Do marco estabelecido até o ponto de
onde se fala contemporaneamente, a flecha viaja cortando os séculos XVII, XVIII, XIX,
XX e XXI. E o desafio que proponho agora é que tomemos como guia a linha amarrada
à seta, numa imitação de Teseu. Com este alegórico fio de Ariadne nas mãos,
retrocedamos em busca de pistas de como foram assentados os conceitos ligados à
objetividade. O labirinto, os moinhos de vento e todo tipo de miragem fazem parte do
caminho.
Na medida em que fica clara a distinção entre a consciência pensante e a extensão, podemos falar de
sujeito e objeto, e de suas relações resultantes.
21
54
2.1.1 O conceito na filosofia
“Objetividade é a ilusão de que as observações
podem ser feitas sem um observador”
Heinz von Foerster, cientista austríaco
Em meio à busca de um conceito, resulta quase impossível ignorar as menções e
as significações que este adquire em dicionários e glossários já reconhecidos22.
Portanto, marcando passo no caminho já percorrido por Abbagnano (2000:723), o termo
“objeto” surge na filosofia lá pelo século XIII, nas mãos dos pensadores escolásticos. E
seu conceito se refere ao elemento de qualquer operação que leve em conta atividade ou
passividade. Nestas equações, o sujeito é sempre o agente, o elemento ativo, restando ao
objeto uma natureza passiva, terceira. Assim, na acepção generalizada, um objeto é uma
coisa, algo: “é o fim a que se tende, a coisa que se deseja, a qualidade ou a realidade
percebida, a imagem da fantasia, o significado expresso ou o conceito pensado. A
pessoa é o objeto de amor ou de ódio, de estima, de consideração ou de estudo”
(op.cit.). Dessa forma, até mesmo o eu, o sujeito, pode ser um objeto!
Nos processos cognitivos, o objeto do conhecimento pode ser uma idéia
(conforme quis Berkeley), pode ser um fenômeno (como para Kant) ou mesmo uma
representação (segundo frisou Schopenhauer). A tentativa e a intenção de conhecer, as
etapas do conhecimento colocam sujeitos e objetos frente a frente, ficando visíveis suas
condições de atividade ou passividade. Segundo se entende, a ação parece constituir o
limite de distinção de papéis entre sujeitos e objetos...
Ainda segundo Abbagnano, objetividade é o
caráter da consideração que procura ver o objeto como ele é, não
levando em conta as preferências ou os interesses de quem o
considera,
mas
apenas
procedimentos
intersubjetivos
de
averiguação e aferição. Neste significado, a Objetividade é um ideal
de que a pesquisa científica se aproxima à medida que dispõe de
técnicas convenientes (721).
22 Muito rapidamente, percorro aqui corredores trilhados por autores que consideram a distinção clara entre
objetividade e subjetividade. É uma escolha metodológica. Há pensadores como Bachelard, Canguilhen e
Lecour, para quem essa oposição é clivada e problematizada, alcançando novos contornos, mas eles não
se enquadram na opção que fiz para esta tese.
55
Lalande (1999:747) complementa dizendo que a objetividade é a característica
do que é objetivo, especialmente “atitude, disposição de espírito daquele que ‘vê as
coisas como elas são’, que não as deforma nem por estreiteza de espírito nem por
parcialidade”. Mas o que é objetivo?
O termo “objetivo” é usado em diversas acepções: refere-se àquilo que é
independente do sujeito, que é externo em relação à consciência ou pensamento e àquilo
que é válido para todos. É a partir de Kant que estes sentidos se configuram, já que é o
filósofo alemão quem determina que o objeto do conhecimento é real ou empiricamente
dado. Assim, algo objetivo é algo empiricamente real, isto é, existe enquanto
consciência comum e vale para todos os sujeitos pensantes, não só para um deles.
Então, em síntese, objetivo se opõe a subjetivo, está fora de uma consciência particular
e tem validade universal. O que significa dizer que não depende de preferências e
avaliações pessoais, juízos e gostos particulares. Objetivo para Kant é o próprio
fundamento do acordo dos espíritos, é aquilo que é em si no nosso espírito e em
qualquer outro.
Diante dos diversos sentidos para o termo “objetivo”, Lalande (op.cit: 753)
propõe que se utilize apenas o significado que aponta a oposição entre subjetivo e
objetivo nos termos de particularidade e universalidade. Isto é, objetivos são as idéias e
conceitos válidos para todos os sujeitos e não apenas para um. “Esta oposição é precisa,
central, conforme ao uso dos historiadores e cientistas; ela permite distinguir o subjetivo
do objetivo, na maior parte dos casos, por um critério experiencial incontestado”. Para o
autor, esta acepção do termo contém ainda – mesmo que em potência, virtualmente “tudo o que há de sólido nas outras distinções às quais estas palavras foram aplicadas”.
Essa validação universal é que pode garantir que uma coisa, um conceito ou uma
afirmação sejam objetivos e não subjetivos. Isto é, a objetividade nasce de um consenso
56
de subjetividades. A objetividade vem do atestado comum de diversos pontos de vista, o
que permite pensar que o objetivo é uma homogeneização do coletivo de visões
particulares. Por trás disso está o entendimento de que a coisa, o conceito e/ou a
afirmação precisam ser verificados, comprovados por outros sujeitos, havendo um
embate de opiniões e de olhares, conforme afirmam Aranha & Martins (1986). São estas
autoras, aliás, que lembram que é fácil confundir os termos “particular” e “subjetivo”,
tomando-os como sinônimos. A despeito disso, elas esclarecem:
Quando dizemos particular ou geral, referimo-nos ao objeto que
conhecemos e se o consideramos em parte ou na totalidade.
Quando dizemos subjetivo ou objetivo, referimo-nos ao ponto de
vista do sujeito que conhece e que, num caso, se acha centrado em
si próprio e, em outro caso, está descentrado (97).
Com isso, temos também que a objetividade aspira à generalidade, a um senso
plural, coletivo, válido para todos. Seguindo esse parâmetro, como é mesmo possível
simultaneamente algo ser para uns um elmo dourado e para outros uma bacia de
barbeiro? Objetividade rima com ambigüidade, mas a primeira não suporta a segunda,
não sobrevive no mesmo ambiente.
Na atualidade, rompendo com a dicotomia objetividade-subjetividade, Richard
Rorty sinaliza com outra oposição: objetividade X solidariedade23. Segundo ele, há duas
formas de os indivíduos reflexivos darem sentidos às suas vidas: contribuindo para a sua
comunidade ou descrevendo-se a si mesmos como estando em relação imediata com a
realidade não-humana. Num lado, tem-se a solidariedade, noutro, a objetividade.
A tradição da cultura ocidental, centrada na noção de busca pela
verdade, a tradição que corre desde os filósofos gregos e atravessa
o Iluminismo, é o exemplo mais claro da tentativa de encontrar um
sentido para a existência a partir do abandono da solidariedade em
direção à objetividade. A idéia de verdade como algo que
persuade por sua própria causa, não por ser boa para nós, ou para
uma comunidade real ou imaginária, é o tema central dessa
tradição. (1997:37-8)
57
Segundo Rorty, desde Platão a concepção de investigação racional consiste
tornar visíveis as coisas a que não se tem acesso. Isso porque, para o grego, há um
descolamento entre aparência e realidade, conhecimento e opinião. Este postulado,
prossegue Rorty, evoluiu no Iluminismo sedimentando a adoção do cientista físico
newtoniano como modelo de intelectual. “Nós somos os herdeiros dessa tradição
objetivista, centrada na assunção de que nós precisamos nos manter fora de nossa
sociedade, o tempo que for necessário, para examina-la sob a luz de algo que a
transcenda” (38).
Para reforçar sua dicotomia, Rorty denomina de “realistas” os que querem
fundar a solidariedade na objetividade, pois “têm de construir a verdade como
correspondência à realidade”; e de “pragmáticos” os que desejam reduzir a objetividade
à solidariedade24, pois se apóiam numa atitude mais prática e utilitarista. Se a verdade
ou a racionalidade dispõem de uma natureza intrínseca, esta é uma questão ligada
intimamente com a descrição que o próprio homem faz dele, esclarece o autor. Se esta
descrição se faz a partir da relação com a natureza humana ou com um coletivo
particular de indivíduos. Na síntese do autor: se o que se deseja é objetividade ou
solidariedade.
Para os pragmatistas, a verdade não é uma correspondência com a realidade, mas
um sinal de aprovação para crenças bem justificadas. Os realistas não entendem este
divórcio (verdade-realidade), o que fez com que seus opositores intelectuais fossem
tachados de “relativistas”. Rorty vem ao seu próprio socorro e defende a tese de que o
pragmático só pode ser criticado por seu etnocentrismo e não por seu relativismo. O
principal argumento que move os pragmáticos contra os partidários do realismo
“A distinção entre o objetivo e o subjetivo foi designada paralelamente à distinção entre fato e valor, de
modo que o valor objetivo soa tão vagamente mitológico quanto um cavalo alado” (cd. Rorty: 1997,56)
24 Rorty se insere nesta ala. É preciso que se tenha a clareza de que o autor renomeia de “pragmáticos” os
“relativistas”. Para um exame mais detalhado da questão, ler o artigo Objetividade ou Solidariedade? Do
23
58
objetivista é que “o modo tradicional ocidental metafísico-epistemológico de cristalizar
nossos hábitos simplesmente não está mais se efetivando, não está cumprindo sua
tarefa”.
Voltando-se para a construção do conhecimento humano, o filósofo norteamericano denuncia o que considera alguns mal entendidos. O primeiro deles é a
identificação comum de que buscar uma verdade objetiva é usar a razão, e por isso, as
ciências naturais sejam consideradas modelos de racionalidade. Segundo: ter este
parâmetro de racionalidade requer que se pense em metodismo, em apego aos rigores
metodológicos. Com isso, tomam-se como sinônimos os termos “racional”, “objetivo”e
“científico”. Rorty reage a isso, explicando que os pragmáticos substituem questões
como “a objetividade dos valores” por questões práticas sobre a conveniência (ou não)
da conservação desses valores, por exemplo.
Ainda para os pragmáticos, a investigação – científica, inclusive - consiste na
“obtenção de uma mistura apropriada de concordância não-forçada com discordância
tolerante (onde o que conta como apropriado está determinado no interior dessa esfera
por tentativa e erro)” (63). Ligeiramente otimista, Richard Rorty acredita que, se
houvesse uma adesão aos pressupostos pragmatistas, muito possivelmente dissolveriamse as fronteiras entre as ciências, fazendo com que o cientista modificasse também o seu
papel e com que o meio científico fosse mais leal às comunidades. Neste sentido, a
objetividade seria deixada de lado e seria fundada uma ciência solidária.
Uma visão como essa estimula uma breve discussão do lugar da objetividade na
ciência...
primeiro tomo dos escritos filosóficos do autor publicado no Brasil: Objetivismo, relativismo e verdade (Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1997). Kuhn, Foucault, Feyerabend podem também ser considerados “relativistas”.
59
2.1.2 O conceito na ciência
“Duas idéias foram freqüentemente utilizadas para tornar
intelectualmente respeitável a expansão ocidental:
a idéia de Razão e a idéia de Objetividade.
Dizer de um método ou de um ponto de vista que é objetivo
(objetivamente verdadeiro), significa pretender que seja válido
independentemente das expectativas, das idéias,
das atitudes e das esperanças humanas.”
Paul Feyerabend – Adeus à razão
Historicamente, são contemporâneas as raízes que instituíram a razão, o sujeito e
o método científico. Elas datam do século XVII, principalmente a partir de Descartes,
Bacon, Galileu e Newton, e desde a Antigüidade a metodologia da busca pelo
conhecimento não sofria tantas e tão profundas modificações. Com estes autores, a
razão recebe contornos bem definidos, o fazer científico adota regras para a sua
execução, o homem – sujeito no universo – coloca-se no centro da criação, a
matemática passa a ser a linguagem cujos caracteres preenchem o livro da natureza e a
física assume, definitivamente, o matriarcado das ciências.
A objetividade, a imparcialidade, o rigor na análise dos elementos, a necessidade
da comprovação das hipóteses, a compreensão global e profunda dos fenômenos
tornam-se ferramentas preciosas e indescartáveis nas mãos e mentes habilidosas de
quem faz ciência.
De forma positiva25 (e por que não dizer impositiva), o conhecimento se alastra,
chegando a todas as manifestações humanas e a (quase) todos os confins geográficos.
De maneira geral, a humanidade experimenta expressivos e incontestáveis avanços
tecnológicos, o que redunda numa melhora da qualidade de vida, nas redefinições das
percepções sobre o tempo e sobre o espaço, num alargamento da vida média humana e
em mais conforto pessoal. Os avanços tecnológicos propiciam também maior alcance
nos resultados bélicos, mais vulnerabilidade humana frente à máquina e não
25
Na acepção do positivismo.
60
necessariamente numa divisão equânime das conquistas científicas entre as diferentes
populações no planeta.
Durante séculos, certezas foram construídas sobre os alicerces do conhecimento
acumulado. Estruturas poderosas se edificaram sobre os saberes engendrados por
homens e mulheres nas mais diferentes latitudes. Mas de uns tempos para cá, vêm sendo
percebidos alguns sintomas de que algo não corria totalmente bem: embora a ciência se
desenvolvesse, muitos dos seus frutos não eram revertidos para toda a humanidade,
destino daqueles esforços. Mais ainda: alguns dos resultados colhidos não traziam
apenas benefícios à vida humana. O projeto iluminista parecia falido...
Aranha & Martins afirmam que as ciências naturais “aspiram à objetividade, que
consiste na descentração do eu no processo de conhecer: na capacidade de lançar
hipóteses verificáveis por todos, fornecendo instrumentos de controle; e na descentração
das emoções e da própria subjetividade do cientista” (1986: 187). Mas as próprias
autoras se flagram, questionando: O que acontece quando o sujeito do conhecimento é
da mesma natureza do objeto conhecido? (Como estudar a felicidade, o medo, as
emoções humanas se são humanos os pesquisadores? De que forma pode-se colocar os
cientistas mergulhados nos ambientes que configuram seus objetos de estudo?) Neste
caso, o propalado descentramento do eu pode não vir a acontecer, o que compromete
algum pilar importante da equação racionalista.
Entretanto, as fraturas na concepção da ciência e do conhecimento se dão de
outras formas também. Como, por exemplo, quando os modelos científicos dados como
totalizantes e universais não dão conta de certos fenômenos26 ou quando as regras
constituintes do modelo vigente são contraditas27. Num primeiro momento, estes
26 A insuficiência da mecânica de Newton abriu brecha para o surgimento da teoria da relatividade e da
física quântica...
27 É o caso do princípio da incerteza de Heisenberg que se contrapõe à exatidão e mesmo do princípio da
complementaridade de Bohr, que torna mais ambígua ainda a teoria quântica.
61
questionamentos se mostram mais como trincas, mas depois adquirem aspecto de
fissuras que podem comprometer a estrutura geral do edifício. Acaba-se configurando
um ambiente de crise de paradigmas, para se usar uma expressão kuhniana.
Nestas condições, Hilton Japiassú (1996) faz duros ataques ao momento atual da
ciência, onde enxerga uma crise da razão e do saber objetivo. Em termos concretos,
propõe que se renuncie à herança iluminista de absolutização da razão para que se possa
vislumbrar a possibilidade de uma ciência universal. Tal renúncia implica na negação
do cientificismo e do reducionismo, num comportamento crítico e autocrítico da
racionalidade científica e no estabelecimento de um diálogo com outras formas de saber
e outros valores culturais. A tomada destas atitudes faz repensar conceitos como o de
objetividade e força uma mudança de postura do próprio cientista frente ao seu ofício.
Desde Descartes e Kant, passando por numerosos outros filósofos,
sempre acreditamos que o ‘mundo interior’ do observador era
inteiramente independente da realidade física. Assim sendo, para
melhor se abordar o segundo, era preciso submeter o primeiro a um
controle, a uma neutralização radical. Tal ‘realismo científico’,
excluindo qualquer possibilidade de interferências psíquicas, místicas
ou irracionais, dominou o pensamento físico até bem pouco tempo.
Nas últimas décadas, muitos cientistas vêm afirmando que um
elemento fundamental novo deve ser levado em conta nas relações
do sujeito com o objeto: a consciência do observador. O dualismo
cartesiano é recusado. (12)
O rechaço, segundo Japiassú, estender-se-ia para toda a ciência e a técnica por
aqueles que nelas perderam a fé. Um certo desencantamento da razão desperta o
irracionalismo que se revela na forma de movimento anticiência e de relativismo
epistemológico, completa o pensador brasileiro. A saída: uma razão aberta.
Mais flexível diante da crise de paradigmas científicos, o ganhador do prêmio
Nobel de Química em 1977, Ilya Prigogine, mostra-se menos cético: “O futuro não é
dado. Vivemos o fim das certezas. Será isto uma derrota do espírito humano? Estou
convencido do contrário” (1996:193). Para ele, as explicações científicas estão muito
62
localizadas em suas épocas, por isso, encara com naturalidade o determinismo científico
de certas eras. Atualmente, isso já não é mais aceitável, porém a ciência mantém uma
posição estratégica na construção de uma nova coerência humana.
Segundo Prigogine, a ciência é um empreendimento coletivo, e a solução de um
problema científico deve satisfazer exigências e critérios rigorosos para ser aceito pela
comunidade pesquisadora e mesmo pelas sociedades. O rigor e a seriedade não
eliminam a criatividade, frisa o químico russo, apenas desafiam o seu exercício na busca
humana pelo conhecimento. A ciência se preocupa com regras explicativas do
funcionamento do universo, apesar delas não governarem o mundo, afirma. Tampouco
ele é regido pelo acaso.
O acaso puro é tanto uma negação da realidade e de nossa
exigência de compreender o mundo quanto o determinismo o é. O
que procuramos construir é um caminho estreito entre essas duas
concepções que levam igualmente à alienação, a de um mundo
regido por leis que não deixam nenhum lugar para a novidade, e a
de um mundo absurdo, acausal, onde nada pode ser previsto nem
descrito em termos gerais. (197-8)
A posição do químico não resolve a questão, mas pontua uma natureza e um
destino bem distintos para a ciência.
63
2.1.3 Como o Jornalismo emprega a idéia
“Até onde o repórter tem de ser objetivo
perante a fonte de informação? Repeti,
não sei quantas centenas de vezes,
que a objetividade jornalística é uma balela
mas aproximar-se dela é dever do profissional”
Caio Túlio Costa - O Relógio de Pascal
Atividade profissional que se infiltra nas demais esferas humanas, o Jornalismo
tem como um dos seus pilares de sustentação o dogma da objetividade. Estabelecido
como um padrão técnico de conduta ou como imperativo ético, a objetividade se revela
como um dos nós constituintes da profissão, sendo, inclusive, questionada. (A exemplo
do que acontece com outros aspectos).
De maneira geral, no Jornalismo, o conceito de objetividade não destoa dos
sentidos usados em outras áreas. São apenas as condições de articulação entre
jornalistas e fatos, cenas e personagens que vão determinar uma constituição exclusiva
de objetividade, a jornalística. Para os profissionais da informação, ser objetivo é
informar sem emoções, é mostrar-se desapaixonado no relato dos fatos, é empregar
citações diretas; jornalisticamente, ser objetivo é citar fontes contraditórias, buscar a
pluralidade e tentar selecionar palavras neutras para descrever o contexto. Portanto,
requer distanciamento das pessoas, das circunstâncias que compõem o fato, das versões
a ele ligadas. Requer não envolvimento com as partes, proximidade e engajamento.
Pressupõe equilíbrio, dispensa a parcialidade no relato, espera o mínimo contato
possível com os objetos do relato. Desta forma, devem ficar muito bem nítidas e
estabelecidas as fronteiras que separam comentários e opiniões dos relatos informativos,
pretendidos com isenção de qualquer traço de subjetividade.
O discurso que dá base e legitimidade a este padrão de conduta muito se
aproxima do campo científico na área da saúde: o jornalista não pode se contaminar
com as versões que dão conta do fato. Deve descrevê-lo, assepticamente, de forma a não
64
se contagiar com os humores latentes no acontecimento. O contágio, a contaminação
podem influenciar no estado geral do ambiente, perturbando sua ordem, alterando a
ordem comum dos acontecimentos. A lógica, grosso modo, é essa.
Seguindo esta orientação, Michael Kunczik (1997:230) completa que esta
objetividade faz com que os textos jornalísticos objetivos possam “ser identificados por
suas qualidades de precisão, interesse, verificação, veracidade e neutralidade”. É de se
perceber que os critérios se assemelham muito aos usados no mundo científico,
principalmente quanto à condição de verificabilidade, de precisão e de veracidade. Isso
deixa evidente um parentesco, mesmo que distante, mas absolutamente consciente entre
as duas áreas. O Jornalismo quer traduzir o mundo e seus fatos às pessoas, e para ser
crível é necessário que corresponda às expectativas de fidelidade narrativa que o público
nutre por ele. Como a mulher de César, ao Jornalismo não basta ser honesto apenas (ou
fiel, verdadeiro), mas é preciso ainda que pareça, mostre-se da mesma forma...
Embora nos aprofundemos nestas raízes posteriormente, uma hipótese desta
obrigatoriedade (ser objetivo) encontra gênese no que Walter Lippman escreveu em seu
clássico Public Opinion, em 1922: a atividade jornalística atingiu um patamar em que é
absolutamente fundamental o testemunho objetivo. Por trás deste imperativo, está a
idéia de que, se apresentada de maneira isenta e desapaixonada, a informação motiva o
público a formar suas próprias opiniões. Mas isso é mesmo possível? Redatores,
repórteres e editores conseguem dar relatos objetivos dos fatos? Existem palavras
neutras que podem ser empregadas em certos contextos a fim de homogeneizar versões?
Consegue-se oferecer coberturas totalmente isentas para o público? Os questionamentos
são muitos, cada vez mais freqüentes e ruidosos28.
28 Kunczik (op.cit.) cita uma pesquisa feita na então Alemanha Ocidental que demonstra que os jornalistas
que trabalham nas redações ou nas ruas afirmam ser impossíveis reportagens objetivas. Como contraponto,
chefes de redação enfatizam a necessidade da objetividade. “Pode-se supor que quanto maior for a
distância entre uma pessoa e seu trabalho jornalístico diário, maior será sua tendência a se iludir quanto à
possibilidade de uma reportagem objetiva”, conclui o autor. O teórico alemão menciona outra pesquisa
65
Nas redações brasileiras, o conceito não só é discutido, como também
normatizado. Nos quatro principais manuais de estilo, as gramáticas jornalísticas, a
objetividade é mencionada, definida e tem seus tentáculos medidos. Patrícia Patrício
(2002) fez um levantamento das ocorrências do conceito nestes manuais e observou as
contradições irreconciliáveis neles contidas. Sem contar a divergência entre os
entendimentos dos diversos grupos de comunicação para o conceito. Em O Globo, por
exemplo, o relato deve ser “absolutamente isento” mesmo o jornal reconhecendo que a
isenção não pode ser absoluta; no manual de O Estado de S.Paulo, entende-se que a
interpretação passa pela subjetividade, mas apesar disso, o jornalista deve ter um
“respeito religioso à verdade”; nos veículos da Editora Abril, é pedido o relato de uma
verdade estetizada e o estilo deve ter como marca o “bom senso”, o “bom gosto” (mais
objetivo impossível!); a Folha de S.Paulo prega o apartidarismo, a neutralidade, a
objetividade e o pluralismo, naquilo que convencionou chamar de “ouvir o outro lado”.
Observadas as distâncias de lado a lado, fica a impressão de intensa nebulosidade
quanto ao conceito, a sua aplicabilidade e a sua eficácia. Lidos em conjunto, os manuais
mais confundem que esclarecem.
No Jornalismo, a objetividade se apresenta não só como padrão técnico de
conduta e como imperativo ético, mas também enquanto mistificação. Neste caso, pelas
mãos e línguas dos que desacreditam na viabilidade de uma objetividade plena no
exercício da profissão. Elcias Lustosa (1996) é um dos exemplos dessa vertente. Sua
crítica é voltada à imparcialidade, que julga impossível de ser obtida na medida em que
o Jornalismo é uma atividade humana, que seleciona fatos, relata acontecimentos de
uma dada perspectiva. Assim, embora se pregue a isenção, ela não se verifica na prática,
o que provoca um descolamento entre discurso profissional e ação cotidiana.
onde apenas um terço dos trainees e redatores de jornais consideravam que conseguiam ter em “seu
trabalho diário informações objetivas e isentas de valores” (228)
66
Apesar do propósito e do compromisso de alguns jornalistas, a
imparcialidade e a impessoalidade jamais ocorreram efetivamente
no Jornalismo. (...) A notícia é pois uma versão de um fenômeno
social, não a tradução objetiva, imparcial e descomprometida de
um fato. (21)
Com isso, a imparcialidade – viga de sustentação da objetividade – não passaria
de retórica, castelo de areia erodido diariamente nas redações de todo o mundo. Tal
discurso serviria para preservar os interesses e a sobrevivência dos próprios veículos de
comunicação, segundo Lustosa.
O debate sobre a viabilidade ou não da objetividade jornalística é fundamental
para o percurso deste trabalho. No entanto, antes disso, é preciso entender sob quais
circunstâncias histórico-sociais a objetividade foi introjetada como elemento de base na
constituição do Jornalismo e do discurso que lhe dá sustentação.
67
2.2 Pequena história da objetividade no Jornalismo
“A questão da objetividade nasce, portanto, com o próprio Jornalismo”
José Marques de Melo – Apontamentos sobre temas de comunicação
A objetividade jornalística é uma instituição originariamente norte-americana. É
nos Estados Unidos, no interior das redações dos principais veículos, que surge o
conceito no final do século XIX. Segundo alguns relatos, a prerrogativa nasce como
contraposição a uma vertente que vinha crescendo demasiadamente rápido e ameaçando
o projeto jornalístico. Assim, a objetividade ganha corpo no Jornalismo para afastar o
noticiário sensacionalista e um imperdoável amadorismo. Os cronistas da época
desenham a objetividade como uma medida extrema, um estabelecimento de um padrão
técnico que pudesse salvar o Jornalismo como indústria, instituição e negócio.
Influente e expansivo, o Jornalismo norte-americano conseguiu exportar o
conceito, que chegou ao Brasil e às redações mais remotas do globo. Entretanto, esta
construção simbólica não se fez de uma hora para outra. Conforme lembra Amaral
(1996), as primeiras discussões sobre imparcialidade e equilíbrio como elementos de
uma ética profissional no Jornalismo começam em meados do século XIX, embora o
termo só venha a ser empregado depois da 1ª Guerra Mundial. Para o autor, quatro
acontecimentos contribuíram inevitavelmente para a adoção definitiva do princípio da
objetividade no meio jornalístico: o advento das agências de notícias – o que exigiu
padronização de estilos narrativos -, o desenvolvimento industrial – que auxiliou
tecnologicamente o desenvolvimento do Jornalismo como métier – as duas guerras
mundiais – que mudaram o panorama do mundo e a configuração do seu entendimento
– e o surgimento da publicidade e das relações públicas – o que provocou a necessidade
de definir muito claramente o que era jornalístico e o que deixava de sê-lo.
Devido à multiplicidade de seus clientes, as agências noticiosas precisaram
buscar maior grau de imparcialidade no serviço prestado, até mesmo para não ferir
68
suscetibilidades. Esta preocupação é tão enfatizada na Associated Press que há quem
atribua à agência a criação do conceito de objetividade na área. Depois da ascensão dos
nazistas na Alemanha, os Estados Unidos chegam a receber muitos artistas, esportistas,
cientistas e intelectuais. Entre outros lugares, as universidades fervilham de discussão,
ao passo que muitas áreas se desenvolvem impulsionadas pelos estudos e pesquisas. É o
caso das ciências da comunicação, onde o termo objetividade passa a ser usado.
No final da década de 40, a importação da fórmula textual do lead e da função
do copy-desk faz com que a atividade jornalística se altere completamente nas redações.
Além disso, as reformulações ajudam a implantar o conceito no país.
Acontece, porém, que essa grande mudança no Jornalismo
brasileiro não foi muito além da valorização da notícia e de sua
construção. Ficou sobretudo na forma. O conteúdo continuou o
mesmo, sem a mostra de um esforço maior de isenção,
imparcialidade, eqüidade, como se fazia notar, bem ou mal, a
imprensa americana. (Amaral: 1996, 75)
A questão da objetividade só viria a ser realmente discutida, muito mais tarde,
inclusive por um dos responsáveis pelas grandes modificações na imprensa em meados
do século passado, o jornalista carioca Alberto Dines, na seção “Jornal dos Jornais”, que
fazia crítica de mídia na Folha de S.Paulo.
Se surgiu como um importante contraponto ao sensacionalismo e a um
desconfortável subjetivismo dos empresários da mídia de então, a objetividade tem sua
origem estreitamente ligada à própria definição da atividade de informar29. Os primeiros
esforços dos jornalistas em definir suas ocupações, buscando assim uma identidade
comum, datam das últimas duas décadas do século XIX. Foi por esta época que se
começou a dizer que jornalistas tinham uma vocação independente, o que ajudaria a
plantar a semente da futura objetividade.
69
Schudson (1978) encaixa entre 1920 e 1930 o surgimento da noção até hoje
vigente de objetividade jornalística. Naquela época, segundo o autor, repórteres e
editores perceberam como havia elementos subjetivos no trabalho de outros
profissionais da comunicação, mais especificamente de relações públicas e de
propaganda. Era necessário demarcar território. Esta determinação histórica é
questionável, mas sabe-se que o processo de cristalização da objetividade como padrão
técnico e como imperativo ético da profissão durou três ou quatro décadas. O mundo
passou por um segundo conflito bélico de proporções mundiais, assistiu a um
realinhamento de forças militares e tecnológicas e suspirou intranqüilo em meio a uma
polaridade ideológica, econômica e militar. A Guerra Fria fez cerrar os dentes de lado a
lado do planeta, e a objetividade foi se infiltrando nas redações, estabelecendo-se cada
vez mais no comportamento e na formação dos jornalistas.
Ainda de acordo com Schudson (op.cit.), o governo norte-americano foi
aumentando cada vez mais a sua intervenção no processo de produção das notícias,
passando a se preocupar efetivamente com o gerenciamento das informações ao longo
do século. Isso fez com que começasse a surgir uma reação silenciosa nas redações:
redatores, editores e repórteres ficaram incomodados e ressentidos com a política de
contra-informação e sigilo do governo. A objetividade passou a ser desafiada, explica
Chad Raphael30, já que era identificada com a aquiescência aos ditames dos relações
públicas militares, com excessiva submissão aos segredos do governo e com os abusos
do governo no final dos anos 60 e começo dos 7031.
Bethânia Mariani (1998) detém-se neste aspecto para, inclusive, questionar conceitos como os de
“verdade” e “informação”, tão sedimentados no Jornalismo.
30 Professor de comunicação da Santa Clara University, na Califórnia. A citação se refere ao material usado
nos cursos de Raphael, acessados em 3 de março de 2003, e disponíveis no endereço
http://codesign.scu.edu/chad/147/objectivity1.html
31 Os protestos contra a Guerra do Vietnã, o questionamento popular da política internacional norteamericana e a derrapada de Richard Nixon atuam como catalisadores nesta reação.
29
70
Este questionamento da objetividade jornalística, pelo menos sob a visão do
mercado norte-americano (o que nos motiva a pensar que possa ser extensivo em níveis
globais, dada a sua influência), é justificado por dois fatores, de acordo com Raphael:
Primeiro, os jornalistas estariam respondendo à intervenção governamental e ao seu
desejo de gerenciamento das informações; Segundo, surgem outros formatos
jornalísticos – como o Jornalismo investigativo, o new journalism e um crescimento da
interpretação nas reportagens - , que abrem novas sendas na selva social. O autor revela
uma visão bem política do processo: não basta que se analise a rejeição parcial da
objetividade pelos jornalistas desde 1960 sob o viés da comunidade profissional. É
preciso ainda se compreender este fenômeno na sua interface com os desafios de uma
maior política de entendimento global.
71
2.3 Resguardando a objetividade
"Ser objetivo é expulsar as coisas da própria cabeça
e devolvê-las ao mundo de onde vieram. Foi esse
o exemplo de Copérnico e tantos outros (...) Não existe
objetividade dada. O erro está em procurá-la na
sinceridade ou no esforço quando ela só pode estar
em um método. (...) As coisas ou já são objetivas ou ainda vão ser”
Otávio Frias Filho - Antimanual de Jornalismo
Folha de S.Paulo, 18 de novembro de 1984
O astuto Polonius coçou o queixo, intrigado. Em seguida, diante da majestade na
sala do trono, solenizou: “É loucura, mas revela método!” Furtiva, a cena de Hamlet
aponta para o lugar da racionalização já naquela época: até mesmo a insanidade tem lá
suas regras de funcionamento, seus processos internos. O Jornalismo – que em muitos
de seus momentos mais se aparenta à desrazão (basta acompanhar o fechamento de um
jornal) – também se apóia em métodos, dispõe de suas cartilhas. A objetividade é um
capítulo importante, convocado de forma recorrente na afirmação da atividade
jornalística. Sua escritura seguiu diversas caligrafias. A seguir, algumas delas.
2.3.1 Imperativo ético da atividade
“Uma realidade completamente independente do espírito
que a concebe, a vê ou a sente é uma impossibilidade.
Um mundo tão exterior, se chegasse a existir,
seria para nós sempre inacessível. Mas aquilo a que
chamamos a realidade objetiva é, em última análise,
o que é comum a vários seres pensantes, e poderia ser comum a todos”
Henri Poincaré - O valor da ciência
Para além de um padrão na conduta profissional, a objetividade se mostra no
Jornalismo como um imperativo ético, um chamamento deontológico. Visto dessa
maneira, o conceito funciona como princípio, valor que orienta a postura dos jornalistas
diante dos desafios cotidianos de seu ofício. Para atuar corretamente na área, é preciso
então se fazer conduzir com correção e objetividade, buscando relatar os fatos de
maneira desapaixonada, medindo a proximidade com as fontes e com o contexto
retratado; é necessário calibrar o tom dos discursos, equilibrar a presença e ênfase das
72
diversas versões, abstendo-se de tomar partido. Assim, sob esta orientação, ser objetivo
é adequado e próprio do jornalista; ajuda a definir a categoria profissional, garante a
qualidade do serviço prestado, assegura o profissionalismo no exercício da
comunicação.
Para Josenildo Guerra (1998), a objetividade se coloca como o imperativo ético
fundante do Jornalismo. Isto porque o que se espera do Jornalismo é que relate os
acontecimentos da maneira mais fiel ao que se deram. A objetividade seria a condição
para que o Jornalismo viesse a cumprir o que se destina, já que se entende objetividade
como correspondência entre fato e relato. Segundo o autor, a objetividade funciona
como propriedade que permite ao discurso (nas suas mais diversas formas) refletir a
realidade. O que provoca uma conclusão, entre outras: a objetividade é um dos critérios
de qualidade mais importantes na prática jornalística. A sua ausência permite que se
critique a conduta e a competência dos profissionais do ramo. O autor passa por três
perspectivas diferentes de encarar o Jornalismo e a notícia, tendo em vista a questão da
objetividade: realismo – onde a notícia reflete a realidade dada e a objetividade é
possível -, construcionismo – onde a notícia não pode refletir a realidade, já que esta é
uma produção social e não existe independente de um sujeito histórico – e subjetivismo
– onde a realidade é pensada a partir da interpretação que os indivíduos têm dela e só
existe a partir desta interpretação.
Diante do que se apresenta, Guerra (op.cit.) opta pela visão realista. Para ele,
“por maiores limitações que apresente do ponto de vista de sua sustentação teórica, [o
realismo] teve o mérito de reconhecer essa nova experiência que a sociedade foi capaz
de produzir e desenvolver. Essa experiência tem de ser assumida” (135). Ainda
seguindo os passos do autor, a objetividade “pode ser reavaliada, revista, relativizada,
reconsiderada, mas não pode ser simplesmente descartada” (136). A fundamentação
73
realista até pode ser negada, mas isso não implica que aconteça o mesmo com o
conceito de objetividade, defende o autor. Rechaçar esta condição é dinamitar uma das
bases que sustentam o Jornalismo com o conhecemos, e isso não é admitido por Guerra.
É preciso que se entenda o ponto de vista do autor. Não é a objetividade que
legitima o discurso da imprensa, da mídia, mas o vínculo que se cria entre o Jornalismo
e o público a partir do imperativo ético fundante. Desta forma, a objetividade é apenas
uma tentativa de justificar o vínculo entre quem faz Jornalismo e quem consome.
(...) quando se toma a objetividade como um pressuposto possível, a
objetividade intencionada pelo jornalista se converte na sua
contrapartida para a realização do imperativo ético fundante de sua
prática profissional: tese aqui defendida. (173)
É relevante, no entanto, perceber que a objetividade é uma condição alcançável
graças a um ato subjetivo, pois, conforme aponta, a objetividade se dá mediante o
cumprimento de três prescrições metodológicas: a intenção do repórter, o rigor na
realização dos procedimentos usados na apreensão dos fatos e a redação da notícia.
Note-se, então, que a objetividade depende de uma decisão de sujeito, de um ato
subjetivo, nasce na subjetividade. “Primeiramente, para se conseguir a objetividade há,
antes de tudo, a intenção de se querer atingi-la” (op.cit.:33).
A objetividade se configura como “imperativo ético fundante” do Jornalismo, e
é nesta esfera que se marca a distinção entre o Jornalismo e outros gêneros discursivos,
como a ficção (cf. p.168). Para o autor, ser objetivo é o que reveste de jornalístico textos
e falas, produtos e representações. O Jornalismo se define por uma ética e não por uma
técnica.
Neste sentido, neutralidade e imparcialidade não são sinônimos de objetividade,
embora sejam conceitos estreitamente ligados. Ao contrário da última, as duas primeiras
não são características da notícia propriamente dita. A neutralidade seria uma condição
74
experimentável pelo profissional ou pela empresa jornalística. E depois de saciada esta
condição, aí sim, ambos podem mostrar-se imparciais no relato do fato, segundo Guerra.
Negar simplesmente esses conceitos, como fazem subjetivistas e
construcionistas, significa abrir mão de um referencial ético a partir
do que a imprensa deve se pautar, para que contemple o pluralismo
das sociedades democráticas, por exemplo. Na medida que esses
conceitos passam a ser considerados, num âmbito específico de
relações e situações nas quais eles efetivamente fazem sentido,
tornam-se importantes critérios de avaliação do trabalho jornalístico
e de orientação para os próprios profissionais.” (op.cit.:169)
A distinção é importante para esta pesquisa e para o percurso que se está
fazendo, mesmo que seja questionado o apego a um conceito que não encontra
sustentação total na vida prática. Como um repórter pode ser totalmente objetivo no
relato de uma guerra, por exemplo, quando é acometido por medos? Como sustentar
esta postura quando a proximidade do fato não nos impede de nos contaminarmos por
ele?
Na academia ou nas redações, a objetividade enquanto imperativo ético do
Jornalismo, volta e meia, é reafirmado.
Em 2001, mal fazia um mês dos atentados ao World Trade Center nos Estados
Unidos, uma influente voz do Jornalismo norte-americano se levantava para pedir o
retorno da objetividade nos jornais e emissoras de televisão do país. Walther Cronkite,
um dos mais famosos e duradouros âncoras da TV norte-americana, afirmou em
entrevista à Folha de S.Paulo que era preciso que a mídia recuperasse a objetividade32:
"Os que se dizem patriotas devem entender que esse sentimento não implica
necessariamente elogiar todas as decisões oficiais. Também pode ser expresso com
32
A entrevista foi concedida a Marcio Aith e publicada na edição dominical de 7 de outubro de 2001.
75
divergência", queixava-se o veterano jornalista de 86 anos33. De acordo com Cronkite,
logo após o ocorrido, a mídia local patrocinou um “show aberto de patriotismo,
compreensível no início”: “Eu mesmo não contive minha emoção ao relatar a morte do
presidente Kennedy, em 1963”, lembrou. Entretanto, após a comoção geral, era
fundamental que a “frieza e a independência” voltassem a freqüentar as redações, frisou.
A postura de Cronkite revela o que o conceito de objetividade traz no seu bojo:
distanciamento, frieza, independência, ausência de emoções ou equilíbrio na expressão
dessas paixões. É possível dominar o emocional totalmente? Um jornalista consegue se
manter frio e distante frente às cenas mais brutais, aos personagens mais apaixonantes?
Talvez esta postura se coloque mais como uma meta, um desejo, um ideal de postura. E
a objetividade, neste cenário, converta-se mais em mito do que em realidade.
Curioso é que Cronkite soube do ataque às torres gêmeas quando voltava ao hotel, vindo de uma
palestra sobre objetividade jornalística que fizera em Florença, na Itália.
33
76
2.3.2 Uma meta para o mito
“Objectivity is a method of understanding”
Thomas Nagel – A view from nowhere
Se aparenta um mito ou pilastra de sustentação do Jornalismo, a objetividade
parece estar ligada intimamente à própria definição da atividade jornalística. A reflexão
sobre a possibilidade de produzir relatos fiéis aos acontecimentos diz diretamente ao
cerne do que se espera do Jornalismo no contexto social. A separação formal entre o ato
de reportar e o de opinar trata efetivamente de quão este compromisso de fidelidade
pode ser cumprido, diariamente, independente de geografia e de condições externas.
Logo após a Revolução Francesa, sedimenta-se na sociedade francesa um
conjunto de práticas jornalísticas que vão disseminar muito mais opiniões e comentários
do que propriamente crônicas dos acontecimentos. É uma imprensa mais política,
entusiasta, engajada, diferente da que se propaga na Inglaterra, mais apegada aos
relatos. Lá, os profissionais da área começam a focar seus interesses na difusão de
notícias, precárias, é verdade, e muito diferentes das que concebemos hoje. Mas estes
esforços vão redundar, décadas mais tarde, na consolidação de um conceito de
objetividade. Noção que sofre hoje constantes questionamentos na sua base de
fundamentação e mesmo na sua efetividade prática.
Marques de Melo (1985) chega a dizer que nos dias atuais a objetividade se
coloca muito mais numa dimensão mítica, muito embora seja uma questão que
acompanhe o Jornalismo desde a sua gênese. A raiz deste debate contemporâneo estaria
numa “doutrina de responsabilidade” pregada pelo Jornalismo norte-americano.
Impôs-se o sensacionalismo como diretriz norteadora do
funcionamento dos grandes jornais, que competiam entre si na
conquista dos leitores. Os princípios éticos mais elementares,
prescrevendo a conduta dos cidadãos numa sociedade puritana
como a norte-americana, foram deixados de lado. Ocorreu então
que, do ponto de vista jornalístico, a fidedignidade dos fatos deixou
de ser o referencial para a difusão das notícias.(11)
77
A doutrina surge como reação das empresas na defesa de uma especificidade de
serviço prestado e mesmo de um mercado a ser explorado. Mais do que isso, o culto da
objetividade, conforme o autor, vai favorecer o processo de racionalização da atividade
jornalística que está mergulhada numa fase industrial. É preciso instituir uma rotina
diária que coadune as diversas etapas do Jornalismo: apuração dos fatos, checagem,
redação dos textos, edição do material, impressão e reprodução massiva e distribuição.
As jornadas de trabalho precisam ser mais bem divididas e gerenciadas, o fechamento
das edições dá uma nova dimensão no cotidiano das incipientes e ainda desorganizadas
redações. Ferramentas, equipamentos e máquinas evoluem e ditam novo ritmo a
redatores e repórteres. Tanto que é preciso que se normatize os diversos estilos de
redação buscando mais clareza, um texto menos prolixo, de maior alcance de leitura.
Com o tempo, o que era compromisso ético reconfigura-se enquanto doutrina,
fórmula de trabalho, receituário operacional, norma. A objetividade encontra outro
sinônimo: síntese. Ser objetivo no Jornalismo torna-se captar o máximo de informações
possível, dar-lhes um tratamento em que possam ser repassadas da forma mais direta.
A “doutrina da objetividade” é transcrita nos manuais de redação e de estilo, nas
instruções normativas e executivas das nascentes corporações de mídia. Entretanto,
Marques de Melo (op.cit:14) pontua que “além de tolher a criatividade do jornalista, o
culto da objetividade (...) significou a diminuição da sua capacidade de aferir a
realidade”. Isso porque o responsável por este referencial – o pauteiro – inevitavelmente
refletiria a orientação da empresa, fazendo com que a objetividade se dissolvesse na
afirmação de uma subjetividade patronal. Para o autor, esta condição facilitaria para que
a recusa ao conceito de objetividade se espalhasse dentro da própria categoria
jornalística. Repórteres e redatores reagiriam à homogeneização, à estandardização dos
processos e práticas correntes. A objetividade é relegada à categoria de mito, segundo
78
Marques de Melo. E é preciso dar uma meta ao mito: retomar a questão significa
resgatar o sentido ético da profissão, já que deixar as coisas como estão apenas ajuda a
perenizar as distorções atuais.
A discussão da questão da objetividade, hoje, passa
necessariamente pela compreensão do direito à informação. Mais
ainda: pela sua defesa como prerrogativa democrática. E a
informação entrelaça as duas vertentes do relato jornalístico: a
descrição dos fatos (informação objetiva: veraz, comprovável,
confiável) e a sua interpretação (informação opinativa: analítica,
valorativa, orientadora). A objetividade jornalística converte-se
novamente à sua dimensão ética. Na medida em que o jornalista
assume o papel de agente social, responsável pela observação da
realidade, ele se torna mediador entre os fatos de interesse público e
a cidadania. (17)
Para o autor, o debate não está ultrapassado, extemporâneo. A objetividade
pressupõe pluralidade de observação e de relato. Isto é, espera-se mais fontes de
informações, mais versões, mais canais de difusão, mais pontos de recepção das
informações. Para se exercer esta objetividade jornalística nas sociedades democráticas
é preciso ouvir estas vozes divergentes, cobrir os pontos cegos, dar vazão ao plural e ao
diverso. O jornalista terá que sustentar seu trabalho na veracidade, na clareza e na
credibilidade. Ao público, cabe a arbitragem deste processo, escolhendo entre um jornal
e outro, acolhendo uma versão em detrimento de outra que julga menos correta e útil.
Colocada desta forma, a objetividade jornalística “deixa de ser dogma e se torna utopia.
E como tal pode servir como dínamo das sociedades democráticas, tornando-se
transparentes, visíveis nas suas contradições, abertas à intervenção da cidadania”
(op.cit.:19).
Entretanto, o que Marques de Melo chama de mito não coincide com o conceito
na formulação de autoridades no assunto, como o teórico romeno Mircea Eliade.
Conforme ele, mito é uma narrativa explicativa, relato de surgimento de algo, atestado
de ancestralidade.
79
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento
ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. (...) é
sempre, portanto, a narrativa de uma criação: ele relata de que
modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do
que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. (1986:11)
Seguindo os passos de Eliade, o mito da objetividade não passa de mistificação
no campo profissional, de doutrina que revela uma mística, uma idealização de
condutas. Voltaremos a isso mais a seguir.
Mais inflexível que Marques de Melo, Arcelina Helena Publio Dias (1985)
sequer reconhece a presença de uma objetividade no Jornalismo. Para a pesquisadora,
de forma prática, ela não se mostra na produção atual, fato que provoca uma indagação:
é a objetividade um “mito” ou uma meta? Uma resposta é arriscada na direção do
último, mais desejável para a autora. Isso porque o lugar da utopia, do alcançável,
reserva a possibilidade de um exercício – mesmo que distante – da objetividade. Assim,
a objetividade deve ser perseguida como um princípio ético.
É uma função inquestionável dos meios de comunicação de massa,
numa sociedade como a nossa, informar e formar a opinião pública.
Este princípio ético ligado à função inquestionável de formar e
informar a opinião pública deve nortear nossa atividade, como
professores, pesquisadores e na prática cotidiana do Jornalismo. O
princípio ético da objetividade da informação jornalística está
intimamente ligado aos fins dessa atividade. (25)
Marcadamente idealista, a posição frisa que a idéia de uma objetividade total e
plena não existe, e que é necessário desmistificar isso. Embora pareça paradoxal, é
fundamental, no entanto, que se busque a verdade dos fatos, que se corra atrás das
informações que possam dar base a um relato. A preocupação ética move os
profissionais, dá orientação ativa ao seu exercício jornalístico, confere objetivos claros
para a função no contexto social.
80
2.4 A objetividade questionada
“A mecânica de Newton partia da hipótese segundo
a qual podemos descrever o mundo sem falar de
Deus ou de nós mesmos. As ciências experimentais não
se contentam em descrever e em explicar a Natureza;
elas constituem uma parte da interação entre a Natureza e nós.
Trata-se de uma possibilidade que torna impossível
a separação entre o universo e o Eu.”
Werner Heisenberg – Física e Filosofia
Basicamente, há duas vertentes que servem de viga de sustentação da
objetividade dentro do Jornalismo. A primeira tem na objetividade o imperativo ético
que funda a atividade jornalística, a segunda reconhece que é preciso buscar a
objetividade para manter um compromisso ético. Nota-se que ambas têm uma linha de
parentesco comum na deontologia e que acabam por se complementar na medida em
que se entende que o dever de informar (e bem informar implicaria em ser objetivo) e o
direito à informação (ter o relato fiel ao fato) são condições necessárias para o bom
andamento do fenômeno comunicacional. O Jornalismo estaria se cumprindo assim.
Mas, por contraste, quais são os argumentos que balizam os questionamentos à
existência da objetividade? Que raciocínios põem em xeque sua viabilidade e sua
integridade?
De maneira geral, aqueles que questionam a objetividade têm em mente que é
impossível fazer um relato exatamente fiel ao fato, já que a interferência do narrador é
inerente ao próprio processo de comunicação. Por menos que se queira intervir, não se
pode deixar de escolher uma palavra em detrimento da outra, não se pode deixar de
selecionar uma matéria para abrir um telejornal, não se pode deixar de descartar uma
notícia para que outra entre.
Fernando Resende (2002) localiza a questão na superfície do texto:
81
A pretensa objetividade jornalística, entretanto, só encontra recursos
no mesmo lugar em que o discurso literário pretende a literariedade:
na unilateralidade do discurso, na intransitividade da palavra. O
discurso jornalístico, se analisado meramente sob esse ângulo,
facilmente traveste-se de objetivo, diferenciando-se daqueles
chamados subjetivos. Porém, não há como pensar a linguagem
jornalística tão-somente sob uma rígida perspectiva do contexto
factual no qual ela se processa. Ainda que esse contexto não fosse
ele próprio fluido, que nele não coubessem tipos variados de
manifestações verbais, visuais e outras, o discurso jornalístico não se
constitui da palavra objetiva, sem dobras, mas, como qualquer outro,
de universos sígnicos que, ad infinitum, representam e significam. O
texto jornalístico, inserido nesse campo maior, mais que componente
de um ato lingüístico, torna-se parte de um ato semiótico. (75)
Assim, por maior distância que o repórter queira estabelecer entre a sua posição
e a do fato, não se consegue resguardar total isenção, ausência de contato. O próprio
relato já seria uma intervenção na medida em que o repórter recorta um fato dentro da
realidade e o remonta num outro momento, configurando novos contextos que
influenciam, inclusive, outros acontecimentos reais. Diante da impossibilidade, o ideal é
que o jornalista se aproxime o máximo possível do fato e de sua verdade34.
Embora atentem contra a objetividade, diversos pensadores reconhecem a
importância do conceito, mesmo que sob o rótulo de “mito” ou de paradigma.
Especificamente sobre este último, tratam do declínio de um paradigma.
Robert Hackett (1999), por exemplo, afirma ser preferível a objetividade
ortodoxa ao propagandismo deliberado dos jornalistas do século XIX. Mas só isso não
basta. “Já não nos podemos limitar a pressupor a possibilidade de comunicação
imparcial, de notícias objectivas e independentes acerca de um alegado mundo político
e social exterior” (op.cit.: 127). Se é comum opor objetividade a parcialidade, o autor
recomenda que se substitua parcialidade pelo conceito de “orientação estruturada”.
Conforme Peter Krieg (1995:125): Segundo isto o jornalista é alguém incessantemente em busca da
realidade e assim da verdade”
34
82
Ao abandonar a noção de comunicação imparcial, podemos evitar
ser afastados dos nossos propósitos pela busca de padrões de
equilíbrio e imparcialidade. (...) É evidente que a mudança da
‘parcialidade’ para a ‘ideologia’ nos estudos dos media não é
qualquer garantia contra a ingenuidade ou a trivialidade. Contudo,
parece ser importante se quisermos compreender suficientemente os
papéis políticos do Jornalismo. (128-9)
Note-se que o problema da objetividade não é resolvido, mas serve de trampolim
para discussões muito relevantes no trabalho cotidiano jornalístico. Debates como o que
vincula o exercício da objetividade como um pré-requisito da competência profissional.
Sylvia Moretzsohn (2001, 2002) enfoca esta dicotomia assinalando pontos interessantes.
Por exemplo, para a autora, o paradigma da objetividade sobrevive porque os meios de
comunicação “mascaram o processo de construção social que permitiria perceber a
intermediação discursiva entre sujeito e realidade através da linguagem”. A defesa da
objetividade se sustentaria por esta funcionar como mecanismo de controle contra a
manipulação, arrisca.
Insistindo em buscar a verdade (mesmo que seu relato, inevitavelmente, não
reflita exatamente o fato) ou alimentando parentescos que garantam a sua sobrevivência,
de uma forma ou de outra, a objetividade assume dimensão de mito, de padrão mais
simbólico que concreto. Como isso se configura?
83
2.4.1 Uma categoria mitificada
“O mito é uma fala”
Roland Barthes – Mitologias
Já se disse aqui que a objetividade é entendida por muitos olhares como um
mito, mesmo embora a designação mais apropriada seja mesmo mistificação. O retorno
a este ponto se faz necessário para salientar como isso se configura entre os jornalistas e
por quem não compõe a comunidade profissional, mas a acompanha de perto.
No final do inverno de 2001, em Campo Grande (MS), durante o XXIV
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Intercom35, o professor Antonio
Hohlfeldt (PUC-RS) apresentou dados parciais de uma pesquisa que coordenou sobre a
percepção da objetividade jornalística. O estudo levava em conta livros sobre o assunto,
entrevistas com renomados profissionais e os mais importantes manuais de Jornalismo
do país. Num primeiro momento, foram anotadas as mais lembradas categorias do
Jornalismo entre 21 autores nacionais e estrangeiros e entre 13 jornalistas. A mais
mencionada foi a objetividade. Em seguida, Hohlfeldt cruzou os resultados com as
menções nos oito principais manuais de redação e estilo no mercado, o que reforçou a
presença da categoria e revelou sua ambigüidade entre as fontes consultadas.
O pesquisador reconhece que a adoção de tal metodologia não permite que se
trace conclusão tão definitiva sobre a importância da objetividade no imaginário
jornalístico, entretanto, salienta que a incidência maciça nas obras e nos depoimentos
colhidos chama a atenção. E mais: cada vez mais, os manuais – pedagógicos ou de
redação – questionam a sua viabilidade. A situação registrada na pesquisa36 esboça um
cenário curioso de ambigüidade: de um lado, os jornalistas ainda preservam a imagem e
o conceito que têm da objetividade, “mitificando-a”, e de outro, a academia e outras
camadas sociais desvalorizam-na, relativizando seu alcance e poder. A objetividade
35
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.
84
emerge do estudo como uma “categoria mitificada”, distante ainda de sua total
compreensão enquanto parte constituinte do Jornalismo e como fenômeno aparente.
Um ano depois da apresentação de Hohlfeldt, agora em Salvador (BA) na 25ª
edição do Congresso da Intercom, a professora Regina Glória Nunes Andrade (UERJ)
mostrou como se configura uma visão que também pode ser lida como mitificada37.
Desta vez, trabalha-se com a neutralidade, freqüentemente remetida à objetividade, e o
viés de análise é psicanalítico, articulando-se com a mídia e a formação da opinião
pública. De início, a pesquisadora recorre a Lacan, lembrando que se o inconsciente é
estruturado como uma linguagem e se, para significar, é necessário passar pelos três
registros – real, simbólico, imaginário -, a neutralidade está distante da psique
humana38. Estas condições fazem com que fique cada vez mais evidente o caráter
subjetivo nos processos psicológicos, reduzindo na mesma proporção a neutralidade.
Enfocando a opinião pública, a pesquisadora afirma que as questões relativas à
neutralidade não encontram maior sustentação nas teorias da comunicação quando se
analisa o lado do receptor da informação. A neutralidade pode ser atribuída ao emissor
da notícia, mas não é uma exigência teórica prática da comunicação seja em qualquer
dos níveis do processo.
A bem da verdade, a diferença dos registros da realidade, para o
mito está no abismo das referências dos fatos ocorridos para os fatos
imaginários. Se considerarmos a importância dos meios de
divulgação, das novas normas da informática, da comunicação
eletrônica face à neutralidade, estaremos diante de fatos novos. O
mais evidente de todos, constitui-se a partir de um olhar diferenciado
frente aos fatos ocorridos, que chegam através da imagem o que
favorecerá o aparecimento de novos pressupostos da comunicação.
(2002:119)
Mais detalhes podem ser conferidos no texto integral, disponível nos anais do XXIV Congresso da Intercom.
Além de constar dos anais do evento, o texto foi publicado em Hohlfeldt & Barbosa (2002).
38 Note-se que, mesmo dentro do próprio trabalho do psicanalista, a neutralidade se coloca como uma
recomendação técnica, como separação dos métodos de sugestão frente ao paciente, conforme
escreveu Freud. Neutralidade é entendida como medida de intervenção no atendimento clínico.
36
37
85
A neutralidade – e por extensão a objetividade – traduz-se enquanto mito,
enquanto fala que funciona num contexto imaginário específico. O tom inconclusivo de
Andrade deixa aberta a ferida de desconfiança sobre a neutralidade no processo de
comunicação: do lado do receptor, ela não encontra pouso tranqüilo; do do emissor, não
requer necessariamente propulsão para vôo. De acordo com a autora, é melhor se ater
aos estudos de Freud sobre o comportamento de grupo (instinto gregário e opinião
pública parecem ter muito em comum, intui-se) e àqueles que buscam a articulação dos
conteúdos latentes (inconscientes) e manifestos nas mensagens informativas.
Se não há uma resposta para a neutralidade junto ao receptor, há a sensação
incômoda de que esta neutralidade não é um manto que cobre todo o processo de
comunicação. A ferida continua aberta. E o que é considerado mitificação pode ser lido
como mistificação, engano, burla.
O colombiano Javier Darío Restrepo (2001) aponta a encruzilhada em que situa
a objetividade: é uma pretensão tão desmedida como a de aprisionar o reflexo das águas
de um rio, mas ao mesmo tempo é a garantia que o leitor busca para poder acreditar nos
relatos jornalísticos.
O autor, experiente profissional que hoje se dedica ao trabalho de ombudsman
na imprensa colombiana, lembra que o princípio da objetividade está presente na
totalidade dos códigos deontológicos em diversas partes do mundo e que está prescrito
nas gramáticas jornalísticas. Entretanto, esta presença indisfarçável não garante a
existência efetiva da objetividade no trabalho de repórteres e redatores. A objetividade
não se dá por decreto. E isso permite que se conclua que, na doutrina da objetividade, há
mais teoria que prática. A fala se sobrepõe à ação: há um discurso sobre a objetividade
que ajuda a constituir o Jornalismo. E isso permite que, durante muito tempo, a
discussão sobre a objetividade jornalística tenha funcionado como um “sofisma de
86
distração” que impediu enxergar o papel da informação no contexto de construção da
democracia. O cidadão livre é um produto do poder democrático, e para ser realmente
livre, precisa se alimentar de informação livre, enfatiza Restrepo.
Mas o que assegura esta condição de liberdade? Um relato objetivo é totalmente
livre de intervenções subjetivas? E o autor pergunta: Para preservar a objetividade deve
desaparecer o jornalista?
87
2.4.2 O ritual profissional e os interesses incidentes
“Os jornais da manhã e da tarde mentiram com lealdade”
Jorge Luis Borges – A velha dama
Em muitos autores, o modelo que se sustenta no paradigma da objetividade mais
lembra um Jornalismo sem jornalistas; um Jornalismo onde os fatos falam por si
mesmos, onde as circunstâncias contam, sozinhas, os acontecimentos, apresentando
seus personagens e os cenários onde contracenam. A objetividade – como se vem
discutindo desde então na profissão – pressupõe ausência de emoções, nulidade de
julgamentos, equilíbrio na costura das versões. A objetividade como instituição
jornalística emerge da submersão dos indivíduos que praticam o Jornalismo. A
objetividade se dá quando um manto espesso de homogeneidade se espalha pelo
coletivo. A objetividade acontece quando o sujeito não se manifesta, quando
desaparece, poderíamos continuar.
Repete-se a questão de Javier Restrepo: para preservar a objetividade deve
desaparecer o jornalista? Talvez sim. Mas invertendo a lógica, é possível ainda admitir
que a objetividade funcione como um conjunto de práticas que trabalham tecnicamente
para a ocultação dos interesses incidentes no processo comunicacional. É o que defende
Alice Mitika Koshyiama (1985):
Fazer os leitores acreditarem que se procura ser imparcial e objetivo,
deixando a eles a escolha da afirmação mais verossímil, é um modo
da empresa jornalística manter como seu público consumidor
aqueles leitores que divergem da orientação editorial da
publicação. Alinhar como realidades possíveis a objetividade e a
imparcialidade é uma defesa prévia contra os que venham a acusar
uma publicação de ser partidária e tendenciosa. Aí, vemos a
colocação da objetividade enquanto problema técnico; é a fuga
da discussão da atividade jornalística como questão política. (45)
Querer evitar ou se desviar de uma visão mais política é uma forma de ocultar os
interesses que incidem na produção e na circulação das notícias. Isso porque o processo
jornalístico não é apenas técnico, mas também político. Optar por um enfoque numa
88
cobertura em detrimento de outro não é tão somente um procedimento técnico. Elaborar
uma manchete é uma operação que traz em si elementos muito subjetivos como valores
políticos e estratégias de incentivo à leitura da reportagem.
A pesquisadora lembra ainda que as experiências históricas do passado e do
presente do Jornalismo oferecem “frágil respaldo” para que se cultive a objetividade,
para que se acredite que se pode fazer Jornalismo imparcial. Até mesmo os critérios de
noticiabilidade não seriam lá muito irrefutáveis diante de um questionamento. Isto
provoca uma perigosa fissura dentro da atividade. Como dizer que se pode praticar um
Jornalismo objetivo se “a definição do que é uma notícia publicável depende de várias
avaliações de interesses e fins visados pelas publicações”? E como ir adiante na crença
da isenção se nesse processo “se envolvem profissionais sujeitos a todos os tipos de
condicionamentos”?
Uma saída é enxergar a objetividade não como algo a se exercer, mas como uma
estratégia a se colocar em curso. Assim, de acordo com a autora, a objetividade se opera
em nome da ocultação técnica dos interesses que recaem sobre a produção e difusão das
notícias. Evocar a objetividade e puxar o cobertor até esconder a cabeça, para que não
se enxergue o corpo ali estirado.
Se até então havíamos entendido a objetividade como mistificação, como
imperativo ético, como compromisso para resguardar a profissão, como meta, agora ela
se apresenta como estratégia, como atitude deliberada, disfarce.
Mais fundo nisso, Gaye Tuchman (1999) faz um sobrevôo antropológico sobre a
selva da objetividade. É evidente que esta prerrogativa não é apenas assumida por
jornalistas – cientistas sociais, médicos e advogados também o fazem -, mas para os
profissionais da comunicação a objetividade atua como anteparo entre a categoria e seus
críticos. Assim, quando questionados sobre seus procedimentos, “os jornalistas invocam
89
a sua objectividade quase do mesmo modo que um camponês mediterrânico põe um
colar de alhos à volta do pescoço para afastar os espíritos malignos”, compara a autora
(op.cit.: 75).
A objetividade se traveste de ritual estratégico, orientado para defender o
profissional de críticas e questionamentos. Com isso, diante de uma interpelação, um
repórter recorre a uma noção operacional ou mesmo a algo que aponte para critérios e
procedimentos técnicos que o livrem de sua intervenção pessoal, erro acidental ou
parcialidades inconvenientes.
A hipótese de Gaye Tuchman bebe na fonte de Everett Hughes, que em seu Men
and their work, de 1964, dizia que as profissões desenvolvem procedimentos
ritualizados para se protegerem de críticas. Para resistir às pressões externas, às
cobranças pelo cumprimento de prazos e dar nova dimensão aos seus afazeres, os
jornalistas defenderiam a normatização de atividades para dar conta dos fatos. O
raciocínio é simples: fazer um relato objetivo orienta a conduta do jornalista, volta os
esforços para os resultados esperados, cristaliza uma prática profissional, define um
perfil de Jornalismo e ainda evita processos judiciais por calúnia, injúria ou difamação.
Segundo a autora, além da verificação/apuração dos fatos, há mais quatro
procedimentos que auxiliam o jornalista a efetivar o que chama de objetividade:
•
a apresentação de possibilidades conflituais;
•
a apresentação de provas auxiliares;
•
uso judicioso de aspas;
•
e a estruturação da informação numa seqüência apropriada.
Além destes procedimentos, um outro - a separação entre conteúdos noticiosos e
conteúdos opinativos – ajudaria tanto o jornalista quanto o público a definir o que é um
90
relato jornalisticamente objetivo. Na prática cotidiana, quando há dúvida sobre os
critérios de noticiabilidade, repórteres e editores invocam seu “news judgement”,
definido “experiência e senso comum que lhe permitam atribuir aos ‘factos’ o valor de
‘importantes’ e ‘interessantes’” (op.cit.:85). Os profissionais atribuem a esse “news
judgement” a qualidade de conhecimento sagrado, como se constituísse numa
capacidade secreta diferenciadora das demais pessoas. (Seria possível ver aqui o olhar
jornalístico de que tratamos no capítulo anterior?). Gaye Tuchman critica essa
percepção, já que observa ali uma contradição interna que inviabiliza o conceito:
A experiência organizacional do jornalista o predispõe contra
hipóteses que contrariam as suas expectativas preexistentes. Do
ponto de vista dos jornalistas, as suas experiências com outras
organizações durante um período de tempo validam o seu news
judgement e podem ser reduzidos ao ‘senso comum’. Por ‘senso
comum’ os jornalistas entendem o que a maioria deles considera
como verdadeiro, ou dado como adquirido. (87)
Desta forma, a autora tenta desconstruir a noção, na medida em que expõe que
os julgamentos sobre a noticiabilidade de um acontecimento não seriam lá muito
diferentes dos critérios utilizados por profissionais não-jornalistas.
A reivindicação do news judgement se enquadraria no rol dos atributos formais
que dão envergadura ao Jornalismo – e também consolidam a idéia de objetividade -,
mas que na verdade não passariam de estratégias de defesa de críticas profissionais. De
um lado, os jornalistas oferecem “provas” de que fazem distinção entre o que relatam e
o que pensam, de que apresentam versões diferentes de uma mesma realidade, de que
separam cuidadosamente os fatos das opiniões. Mas embora tais procedimentos possam
fornecer demonstrações de uma tentativa de atingir a objetividade, “não se pode dizer
que a consigam alcançar”, frisa Tuchman.
91
Para ela, ao contrário, esses procedimentos constituem um convite à percepção
seletiva; eles insistem “erradamente” na idéia de que os fatos falam por si; constituem
um instrumento de descrédito e um meio do jornalista fazer passar a sua opinião; e
iludem o público ao sugerir que a matéria analítica é convincente, equilibrada ou
definitiva. Em suma, a objetividade no Jornalismo se coloca como um ritual estratégico
que preserva o profissional de críticas à qualidade de seu trabalho, de questionamentos a
sua legitimidade, de acusações de parcialidade em uma cobertura.
92
2.4.3 Objetividade como efeito de discurso
"As pessoas não param de confundir com notícias o que lêem nos jornais"
A. J. Liebing, jornalista norte-americano (1904-1963)
“Nada é mentira, nem tudo é verdade: de omissões
em edições se constrói uma realidade de ficções”
Patrícia Patrício – Tirando o manual do automático
Já se disse aqui que, em termos de objetividade jornalística, a fala sobrepõe-se à
ação. Isto é, o discurso estabelece condições para que práticas se consolidem, e se
disseminem no mundo social do trabalho. Isso porque o discurso não apenas reflete o
mundo e seus elementos, mas também porque o discurso refrate a realidade, criando
cenários e conceitos, cristalizando entendimentos e visões. Desta forma, pode-se pensar
em universos paralelos que se tocam, que se entrecruzam criando zonas em que a
realidade do discurso vale tanto a realidade das coisas do mundo (que até poderíamos
chamar de real-real). O Jornalismo é uma atividade social envolvendo um complexo
tecnológico que torna mais evidente a porosidade dos limites entre essas realidades: o
que se lê nos jornais ou se vê na TV é tomado como o acontecimento em si; os discursos
veiculados nos meios de comunicação alcançam estatuto de verdades do mundo.
A objetividade é uma condição que dá sustentação ao Jornalismo como prática.
Reescrevo o enunciado: A objetividade falada – o que se diz dela – ajuda a suportar o
Jornalismo no mundo social. Desde os tempos de consolidação da atividade jornalística,
a objetividade recheia o discurso de constituição, definição e inserção social do
Jornalismo. Isso não pode ser ignorado.
A exemplo dos demais, o discurso jornalístico tem suas regras de
funcionamento. Essas normas não só ajudam a fundar o Jornalismo como prática
discursiva como também contribuem para a conseqüente cristalização de suas práticas
sociais. Bethânia Mariani (1998) diagnostica que esse discurso jornalístico é um tipo de
93
“discurso sobre”, uma espécie de discurso que se ocupa de objetos, de alteridades. Neste
sentido,
um efeito imediato do falar sobre é tornar objeto aquilo sobre o que
se fala. Por esse viés, o sujeito enunciador produz um efeito de
distanciamento – o jornalista projeta a imagem de um observador
imparcial – e marca uma diferença com relação ao que é falado,
podendo, desta forma, formular juízos de valor, emitir opiniões etc.,
justamente porque não se ‘envolveu’ com a questão (p.60).
Então, é na superfície do texto que se tornam possíveis as condições para alguma
objetividade jornalística. É na costura do texto, na amarração das falas e descrições que
se cria um efeito de objetividade, uma sensação de que os fatos falam por si mesmos.
No funcionamento jornalístico, o profissional opera de uma forma que se apóia num
apagamento de sujeito narrador. Isto é, o jornalista reúne as informações que julga
necessárias para que as reapresente em forma de notícia, gênero que tenta se legitimar
por trazer a leitura fiel dos acontecimentos. O distanciamento que o discurso da
objetividade propõe propicia uma dupla ilusão: o jornalista se ilude pensando que está
distante do objeto e que pode ser imparcial, deixando o fato falar por si mesmo; e o
público se ilude tomando como um fiel reflexo do fato o relato oferecido39.
A ilusão se dá com base na consideração que o Jornalismo leva ao público um
relato literal do acontecido. Como se fosse possível o jornalista apreender a essência do
real e repassá-la ao leitor sem perigo de contaminação. Ocorre que ao tomar contato
com o fato – seja por meio de depoimentos de quem o presenciou ou viveu, seja por
meio de sua observação direta -, o jornalista reconfigura os elementos que dele fazem
parte, interferindo na sua integridade. O jornalista não apenas apreende o
acontecimento; ele o lê, o compreende. E a leitura é um processo complexo de
39 O jornalista se ilude ainda pensando que domina o fato relatado só porque acumulou consigo algumas
versões a ele referentes. O Jornalismo pode mesmo esgotar a exploração de um acontecimento?
94
interpretação, é um gesto não só de entendimento puro, mas também de construção de
sentidos que podem ser inscritos numa ordem simbólica admissível.
Um conhecido diagrama mostra que o real não chega ao imaginário sem passar
pelo simbólico. Isto é, não se pode apanhar fragmentos da realidade e lançá-las ao
público sem que essas fagulhas passem pela linguagem. E é aí que os efeitos são
criados. Ao escolher uma palavra em detrimento de outra, ao optar pela primazia de
uma fala, quem escreve entra em cena, atua, suja as próprias mãos. E isso não é mera
prerrogativa do jornalista. Não. Essa inevitabilidade está no próprio funcionamento da
língua, está inscrita na sua forma de operação. As palavras não são neutras, carregam
cargas semânticas; um relato é resultado do ato de reportar partindo de um determinado
ponto de vista; verossimilhança e veracidade não são as mesmas coisas; literalidade e
objetividade são efeitos de discurso, efeitos que vigoram em enunciados, textos e falas.
A objetividade jornalística é um efeito que serve para referendar o discurso de
sustentação do Jornalismo enquanto prática social. A objetividade, desde o momento em
que o Jornalismo fortalece suas bases no mundo do trabalho, funciona como uma
exigência para o seu exercício. A objetividade está inscrita na ordem do discurso
jornalístico.
A ordem do discurso jornalístico, com seu sistema de exclusões e
limites, marcada por um tipo de relação com a verdade a com a
informação (ou melhor, com a verdade-da-informação), está
relacionada por um lado com a ilusão referencial da linguagem e,
por outro, com seu próprio processo histórico de constituição. Isto
quer dizer que no discurso jornalístico, como tal, já se tem uma
memória da própria instituição da imprensa agindo na produção das
notícias. Memória que atua como um ‘filtro’ na significação das
notícias e, conseqüentemente, no modo como o mundo é
significado. (cf. Mariane, 1998. p. 67)
O texto – e aqui se consideram os textos verbais e os não-verbais – é o local
onde o efeito de objetividade pode vigorar, onde ele pode ter seu regime de vigência. O
que significa dizer que a objetividade jornalística só pode ser possível na órbita do
95
discurso, no raio de sua influência e vigor. Repito: pode ser possível. Como é um efeito,
a objetividade pode funcionar ou não, marcar-se ou não.
Pensando nas etapas do fazer jornalístico, a objetividade só pode se dar no
estágio de tessitura do texto, e não na apuração das informações, por exemplo. Na coleta
dos dados, o jornalista não pode se apagar, ele está ali, junto à fonte de informação,
tomando seu depoimento, estimulando sua fala, reunindo versões. Aqui, um ponto que
não pode ser alijado da discussão: o Jornalismo trabalha com versões e não verdades.
Cotidianamente, nas redações, nos estúdios e nas ruas, repórteres manipulam40 versões,
misturam falas e pontos-de-vistas. Lidam com versões que se pretendem verdades. O
Jornalismo se ocupa de referendar verdades, fixar conceitos, estabelecer ditos e fatos.
Mas não se pode tratar do conceito de verdade sem vinculá-lo ao de poder, afirma
Michel Foucault (1984, p.12).
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou
sem poder (...) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele
graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados
de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política
geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que
permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira
como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles
que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
Não se encontra a verdade, como se ela estivesse oculta, escondida. A verdade é
construída, costurada; é consensual entre aqueles que detêm a prerrogativa de a
definirem; é conveniente e é plural. Ela é uma direção de sentido, uma sinalização de
entendimento e compreensão. Trata-se da sua imposição como algo literal,
incontestável, inadiável, incontornável. A operação que ocorre é a imposição de uma
versão em detrimento de outras – atendendo a certos critérios que chamamos de
Uso o verbo “manipular” na sua acepção primeira, a de trabalhar com as mãos, de manejar, tratar
manualmente. O termo tem origem entre os romanos e se referia às atividades de alguns soldados que se
ocupavam de ostentar os manípulos, hastes e pavilhões com símbolos do Império.
40
96
veracidade e verossimilhança, fidelidade e realidade, por exemplo. Por isso, a verdade é
histórico-social e não essencial, natural ou literal. E no percurso de fixação de uma
verdade, o efeito de objetividade é crucial no exercício jornalístico porque oferece
alicerces para este estabelecimento. O Jornalismo possibilita e permite41 a circulação de
certos sentidos, ratifica verdades convenientes e possíveis, cristaliza relatos dos
acontecimentos e perfis de personagens, dando a eles contornos definidos e tangíveis.
Então, a verdade não existe? Não da forma como se a pronuncia, com uma
inicial maiúscula e no singular; não da maneira como se a define: como um achado, uma
meta ou tesouro; não da forma como se a quer: tangível, factual, inconteste. Bernard
Cequilini, em seu Éloge de la variante (1989), assinala que não há senão versões, e que
convivemos com essas versões. Para a maioria dos jornalistas, um enunciado como este
é um golpe mortal para a profissão, sua identidade e a história que se quer manter dela.
Se a coragem é um valor importante no exercício jornalístico, enfrentar uma resistência
como essa me parece fundamental. Mesmo que essa coragem mais pareça atrevimento
irresponsável, devaneio quixotesco.
***
Sob uma luz diáfana, o fidalgo Dom Quixote olhou bem para os companheiros
que lhe acompanhavam na venda e percebeu que eles não estavam de acordo quanto à
natureza de seu elmo e quanto ao ambiente que habitavam. Por um segundo entendeu
que só mesmo um tipo de encantamento poderia iludi-los fazendo pensar que se tratava
de uma bacia de barbeiro e de uma modesta venda. Mas eram o elmo de Manbrino e um
castelo, insistiu em silêncio para si mesmo, como se quisesse reforçar seu
41 Possibilita, pois dá condições materiais para que esses enunciados se difundam; permite porque está
numa das instâncias de seu aparente controle.
97
convencimento. Só mesmo artimanhas de feiticeiros poderiam provocar aquelas
miragens...
A objetividade não permite concomitância, ambigüidades. Impossível ser
objetivo sob o teto de uma venda onde imperam muitas visões, onde o real não se
manifesta da mesma forma para todos. Na taverna do Jornalismo, o Cavaleiro da Triste
Figura perceberia muitos encantamentos embaçando os olhares dos que se acotovelam
no balcão. A objetividade jornalística se mostra para uns como o elmo de Manbrino –
que veste seu possuidor de pompa e dignidade; para outros, ela mais parece um pedaço
de metal retorcido que de nada serve além de ocupar espaço na fronte dos que a
ostentam; e para terceiros como um adereço importante que está perdido em algum
ponto, mas que deve ser buscado para justificar a honra de seus detentores.
Mas vultos e visões mais confundem que explicam. Miragens corrompem nossos
olhares. Como atravessar as distâncias sem se deixar iludir, caindo no desvio e no
engano? Como evitar ser guiado pela errância? Entre a pergunta e a resposta, é preciso
prosseguir, enfrentando os caminhos e o que neles aparecer. Mesmo que sejam
fantasmas e ilusões de óptica. A objetividade está inscrita na ordem do discurso
jornalístico, e mais importante que descobrir se ela existe ou não é saber como ela
funciona. A questão da objetividade jornalística - já pudemos sentir - repousa entre a
dúvida e a incerteza.
98
CAPÍTULO 3
Entre a dúvida e a incerteza
“Se não vir nas suas mãos as feridas dos pregos,
e se não puser nelas meu dedo e não colocar minha mão
no seu lado, não acreditarei”
Evangelho de João, Cap. 20, Vers. 25
U
m dos episódios mais conhecidos quando o tema é dúvida, a incredulidade do
Tomé bíblico ganhou dimensão de substantivo. Assim, quando lhe dizem que
seu mestre ressuscitara, o apóstolo rechaça a hipótese, admitindo-a apenas se
constatada pela visão e pelo tato, sentidos auxiliares da sua razão. Só tocando e vendo o
corpo à sua frente, o homem simples que vivia como pescador confiaria no retorno de
Jesus à vida. O traço humano mais evidente da passagem de Tomé pelos quatro
evangelhos – a dúvida – cristaliza-se em um estigma, e o discípulo passa a ser
conhecido como o “incrédulo”, o santo do “ver para crer”.
Similar ao episódio é a suspeita dos guardas frente à aparição de um vulto nas
cercanias do castelo de Elsinor, em Hamlet, de William Shakespeare. Estupefatos, os
soldados não crêem no que se mostra a eles mais de uma vez. O príncipe da Dinamarca
também duvida, até que o fantasma de seu pai aparece e lhe conta a verdade sobre sua
morte.
Nas duas histórias, aquilo que é difícil de aceitar como verdadeiro, como crível,
ganha corpo sob uma forma sobrenatural: é um anjo ou uma visão, é um espírito ou um
fantasma. Entidades que burlam as regras da natureza e que se colocam no mundo dos
vivos e das aparências para trazer revelações, denúncias. Nos dois casos - e em muitos
outros -, a dúvida é a chancela da verdade; a condição de legitimação de uma suspeita; o
elemento que vai sustentar a assertiva, já que a coloca em prova: num primeiro
momento, a dúvida reforça a desconfiança, mas depois, serve de etapa probatória da
verdade. Se a afirmação sobrevive ao teste da dúvida, do questionamento, ela ganha
99
contornos de verossimilhança, passaporte para um perfil de veracidade42. A dúvida é
capital para quem busca certezas. A instabilidade do questionamento e a angústia da
incerteza parecem funcionar como estágios de um ritual, de um processo de encontro
das verdades. É preciso passar por eles até se alcançar o conforto, a calmaria da certeza.
Para cientistas, filósofos ou mesmo jornalistas, certas certezas são fundamentais.
Neste sentido, a dúvida tem papel importante em suas buscas cotidianas. Para observar
como isso se dá, é preciso, no entanto, percorrer alguns caminhos ancestrais, a começar
pelo trilhado por Descartes nos séculos XVI e XVII.
3.1 Descartes, a dúvida e o método
“Os achados mais valiosos são os métodos”
Friedrich W. Nietzsche, filósofo alemão
Os historiadores da filosofia demarcam que a escola do racionalismo nasce com
Descartes. Isto é, o estabelecimento de uma conduta humana e de sua estruturação em
pensamento apoiadas na razão surge a partir das idéias deste francês nascido no final do
Século dos Descobrimentos. Mas, para além do que possamos imaginar hoje, este é um
tempo não só de euforia econômica e de descobertas marítimas, mas de forte opressão
da Inquisição. E embora “a razão constitua cada homem”, a Igreja é quem sempre tem
razão...
Sociável e inteligente, Descartes freqüenta as cortes e as rodas intelectuais onde
se discutem as idéias de Galileu e Pascal, que estremecerão as cúpulas de igrejas e
governos. Com nítido talento matemático, Descartes se dedica a estudos da área, mas
aventura-se (com êxito) na Óptica e Biologia, contribuindo com seus insights e modelos
explicativos. Alguns que se mantêm até hoje, conforme se pode ver nas neurociências.
Funciona assim também nas discussões da filosofia da ciência. Principalmente no caso da crítica de Karl
Popper aos critérios de verificação científica dos empiristas lógicos do Círculo de Viena, no começo do
século XX. A eles, Popper opõe princípios que apontam para a refutabilidade de uma teoria científica.
42
100
O filósofo será o primeiro a defender o conceito dual de corpo e mente, propondo um
lugar para ela. As bases cartesianas vão nos permitir quatro séculos depois discutir
noções como consciência, emoções e ações voluntárias, por exemplo43...
Em 1619, Descartes passa um inverno aquartelado em Ulm, Neuburgo, onde
acaba se relacionando com o matemático Johannes Faulhaber, que já havia publicado
obras relacionadas à aritmética e à Ordem Rosa-Cruz. Para Stephen Gaukroger, que
escreveu o que chamou de biografia intelectual de Descartes, este encontro “marcou o
início de sua teoria geral do ‘método’” (1999:145).
É a partir daí que o filósofo francês passa a trabalhar nas Regulae ad
directionum ingenii (Regras para a direção do espírito), que só seriam mesmo
publicadas após a sua morte. Na verdade, elas não foram redigidas para que fossem
editadas, embora o tivessem sido apenas em 1684, em holandês. Entretanto, mesmo que
o público não tivesse tido acesso às regras, seu autor já estruturava seu pensamento num
corpo coerente de pensamentos: as regras primavam pela unidade do conhecimento,
alertavam para a necessidade de um método para dirigir as ações humanas, e
explicitavam as etapas desse método. Segundo elas, assuntos complexos deveriam ser
decompostos em outros mais simples, e depois separados em absolutos e relativos,
comparando-os44.
43 Muito influente atualmente, o neurologista português António Damásio vai se apegar ao dualismo
psicofísico cartesiano para apontar ali um deslize do filósofo francês: “É esse o erro de Descartes: a
separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume,
com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem
volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento
adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independentemente do corpo.
Especificamente: a separação das operações mais refinadas da mente, para um lado, e da estrutura e
funcionamento do organismo biológico, para o outro” (1998:280). Segundo Damásio, a compreensão da
mente humana depende da adoção de uma perspectiva do organismo: “Não só a mente tem de passar
de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como deve também ser relacionada com
todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente interativo com um
meio ambiente físico e social” (op.cit.:282)
44 Mesmo nesta brevíssima apresentação das Regras para a direção do espírito, é fácil observar como há
um paralelo entre a filosofia cartesiana e o modus operandi dos exames anatômicos. Este parentesco pode
ser explicado pelo fato de o próprio Descartes ter estudado e pesquisado fisiologia. Para o pensador
francês, analisar é esmiuçar, dissecar questões...
101
É interessante perceber como a questão do método envolve Descartes, a tal
ponto de colocar em segundo plano estudos e pesquisas que deveriam ser figuras de
proa em sua produção, principalmente na década de 30 do século XVII. Na primavera
de 1635, o autor passa a trabalhar no Discours de la Méthode, que deveria ser um
prefácio a outros dois ensaios: Dioptrique, um tratado prático para construção de
instrumentos ópticos, e Météors, obra composta por discursos acerca dos fenômenos
meteorológicos. O prefácio ganhou corpo e acabou absorvendo os trabalhos
precedentes, que se tornaram acessórios. Mais ainda: o Discurso do Método se
transformou na obra mais importante de Descartes e na pedra de fundação do que se
pode chamar hoje de filosofia da consciência.
A importância da incursão de um método precisa ser dimensionada no seu
contexto histórico. O século XVII ainda respira as névoas do obscurantismo europeu, a
Igreja domina a civilização ocidental, dando a ela sua conformação e base. Em termos
paradigmáticos, a grande influência metodológica ainda era Aristóteles, passados já dois
mil anos45. É neste cenário que se deve considerar o peso da pedra que Descartes atira
sobre o lago do pensamento humano.
Dentro do universo cartesiano, nenhuma crença resiste ao processo de dúvida. O
questionamento é o motor, o primeiro toque. Descartes vê no ato de duvidar uma outra
ação: pensar. Para ele, a consciência está no ato do pensamento. Para ele, não é possível
separar a prática de um ato de consciência de ter consciência propriamente. Aí, sim,
chega-se a algo indubitável. E como toda ação pressupõe um agente, temos aí o
nascimento do sujeito da consciência. Para Raul Landin Filho (1996), a descoberta da
indubitabilidade do enunciado “Eu penso” e, por extensão, “o reconhecimento da
Gaukroger (op.cit.) conta que a contribuição metodológica de Francis Bacon não é ignorada nem
mesmo por Descartes nesta discussão. Entretanto, Aristóteles é um autor com mais vulto e permanência do
que o contemporâneo racionalista...
45
102
prioridade dos atos mentais sobre os atos que envolvem o corpo ou os objetos externos à
mente é um dos mais importantes legados da filosofia cartesiana”.
É a partir da dúvida que os objetos e as realidades vão se configurar no prisma
cartesiano. Quando se pensa e se pensa que se está pensando algo, temos ali uma
consciência pensante, uma unidade chamada sujeito. Tudo o que está exterior a ela é
extensão do mundo, objeto. Para investigar cada um deles, absorvê-los ou descartá-los,
é preciso duvidar, pôr-se a questionar. O apego a um método como este dá a segurança
que os racionalistas precisam. Se o método não dá solução de tudo, ele pelo menos
ajuda a encontrá-la.
103
3.1.1 Jornalismo e cartesianismo
“Comentei com um veterano jornalista, que já cobria o Congresso
desde os tempos em que a capital era no Rio de Janeiro, que estava
sentado ao meu lado: ‘Como esses senadores têm cara de bobos’.
Sorrindo, complacente, ele aconselhou: ‘Já que você vai trabalhar em
Brasília, é melhor que saiba de uma coisa:o mais bobo deles conserta um
relógio no escuro. E com luvas de box’”.
Gilberto Dimenstein – As armadilhas do poder
O Jornalismo busca certezas. O relato dos acontecimentos mais importantes de
uma comunidade precisa ter uma correspondência clara com o que se pode considerar
como a real ocorrência dos fatos. Não se admite um descolamento entre o informe e a
situação relatada. O Jornalismo existe para dar conta do real, conter o que de mais
importante aconteceu, mostrar o que é relevante, denunciar o que está encoberto,
organizar – de certo modo – o caos sígnico onde homens e mulheres estão mergulhados.
Jornalismo se apóia em narrativas cotidianas, que se diferenciam das encontradas na
literatura pelo seu estatuto de veracidade. Isto é, as histórias que nos chegam pelos
jornalistas devem estar lastreadas a verdades. Ou por porções bem generosas delas.
O estilo do texto jornalístico pode ter certo parentesco com o do conto, da
crônica ou mesmo dos romances. A construção dos personagens pode flertar com as
técnicas usadas pelos escritores, mas a essência dos relatos jornalísticos não admite
ficção. Se isso ocorrer, houve contaminação, e o teor jornalístico do relato se dissolveu
nas tramas da narrativa.
Este apego à verdade tem evidente inspiração nos campos da ciência e dos
saberes totalizantes. A preocupação de cientistas de verificar a confiabilidade de certas
teorias, de tentar explicar fenômenos com modelos, de testar hipóteses até chegar a
formular regras físicas de funcionamento do universo é reeditada no Jornalismo. Numa
escala menor, é claro, e com outros estatutos de rigor metodológico. Jornalistas se
preocupam em verificar a autenticidade de certas versões dadas por suas fontes de
informação; tentam explicar acontecimentos, muitas vezes, apoiados em diagnósticos de
104
especialistas; retornam a alguns assuntos e instigam os envolvidos para se certificar que
tais relatos foram os mais fiéis à realidade.
Tal como historiadores, arqueólogos e geólogos, jornalistas preocupam-se com a
reconstituição de certos cenários e episódios acontecidos no passado. Voltam às fontes,
recorrem a documentos, perseguem vestígios, confrontam versões, observam
discrepâncias. Cercam-se de certezas para refazer a situação enquanto relato. Como
quem monta um quebra-cabeças, jornalistas se ocupam de encontrar peças que possam
se encaixar e que permitam uma visão mais abrangente do todo (ou da parte que mais
interessa). O problema é que nem sempre temos acesso a todas as peças – ou até mesmo
às mais importantes. Outro impasse é que não é sempre que o montador encontra
condições (profissionais, operacionais, de competência, de interesse) para se debruçar
sobre aquele jogo. Sobram peças embaralhadas e um desenho incompleto...
O vínculo umbilical com a busca da verdade é um traço do Jornalismo na sua
definição hegemônica atual. Mas subjaz nesta procura uma outra semente: a dúvida. O
questionamento permeia a atividade cotidiana dos profissionais, seja sob a forma das
perguntas em uma entrevista, seja sob a mais banal abordagem de um repórter.
Jornalistas são pessoas que perguntam, que tentam saber coisas, que buscam dados para
transmiti-los adiante. A dúvida está entranhada na rotina das redações, impressa nas
paredes dos estúdios, tatuada no bloco de anotação que repousa no bolso do repórter.
Esta assertiva mais parece uma banalidade para quem acompanha o fazer
jornalístico, mas é fundamental que se a compreenda como uma questão de método. No
Jornalismo, a dúvida orienta os demais procedimentos metodológicos. Neste sentido,
não é exagero admitir que o Jornalismo bebe em fontes cartesianas para se constituir
enquanto campo autônomo de fazer, ser e compreender a realidade.
105
Mas o método no Jornalismo é algo recente. O Jornalismo só surge como técnica
na virada do século XIX para o XX. A expansão capitalista permite que se desenvolva
nos Estados Unidos e em alguns países da Europa uma indústria dos jornais, coletivo
que vai precisar se estruturar para atender à crescente demanda por informações na
sociedade industrial contemporânea.
Tais modificações vão se dar tanto nos aspectos fabris – com o desenvolvimento
de novas máquinas e equipamentos e uma reengenharia nas plantas dos parques gráficos
– quanto nos relativos à participação humana no processo produtivo. Assim, implanta-se
nas redações um sistema fordista-taylorista46, padroniza-se uma série de procedimentos
na confecção das notícias e na logística de sua distribuição47, estabelece-se uma rotina
operacional (com horários de fechamento em conformidade com a capacidade de
produção da gráfica), definem-se linhas editoriais e estruturas básicas para o texto
jornalístico.
As linhas editoriais tornam-se guias internos das empresas e, mais tarde, vão
redundar em manuais de redação e estilo, que sinalizam como se pratica Jornalismo
naqueles veículos. O lead é desenvolvido e se impõe como padrão de organização das
informações num relato escrito. Alguns padrões de conduta vão se cristalizando entre os
jornalistas e isso ajuda na definição de um ethos profissional, no desenho de um perfil
mínimo deste trabalhador. Os valores morais e éticos vão emergindo: o apego à
verdade, a defesa da liberdade de expressão, a preocupação com a correção da
informação, uma atitude perene de desconfiança, um senso crítico frente ao mundo e às
pessoas, o compromisso com a fiscalização dos poderes, a independência editorial, um
contínuo questionamento sobre as versões e sobre os fatos...
Caracterizado pela segmentação de funções, onde cada indivíduo se ocupa de uma tarefa específica, e
o conjunto dos profissionais forma uma linha de montagem industrial. A idéia que se tem na base disso é a
de que alguém pode executar melhor uma determinada função se ficar concentrado nela. Se todas as
peças da engrenagem funcionarem, a máquina toda opera bem.
47 As agências internacionais de notícia são os resultados mais bem acabados disso.
46
106
Esses valores morais vão desdobrar certos procedimentos, como a checagem –
muitas vezes exaustiva - das informações, a confrontação de versões e a investigação
jornalística. Em todos eles, está difusa a dúvida, a indagação sobre a veracidade e a
sustentação real de falas e acontecimentos.
(Entretanto, alguém pode perguntar: só porque o Jornalismo se apóia na dúvida,
ele deve ser considerado tributário do cartesianismo? O Jornalismo é cartesiano apenas
por que duvida?)
São muitas as correspondências entre as leis cartesianas para bem conduzir um
espírito (ou uma mente) e as regras para se exercer bem o Jornalismo (ou de uma forma
próxima da ideal). No Discurso do Método, Descartes aponta que assim como um
Estado se governa bem com poucas leis, ele se impunha a observância de quatro
preceitos em seu percurso filosófico (cf.: 1977:35):
•
Não receber como verdadeira qualquer coisa que ele não conhecesse
evidentemente como tal;
•
Dividir cada dificuldade que examinasse em tantas parcelas mais fáceis a
fim de resolvê-las;
•
Conduzir o pensamento por uma ordem crescente de dificuldade,
partindo dos elementos mais simples até os mais complexos;
•
Fazer revisões gerais e retornar a certos pontos diversas vezes para se
certificar de que nada ficou para trás.
As gramáticas jornalísticas têm forte acento cartesiano na medida em que
orientam os profissionais a:
•
Não aceitarem versões sem as checar devidamente, sempre duvidando do
óbvio e cercando-se de provas ou indícios que as sustentem;
107
•
Sistematizar as informações coletadas, agrupando campos de dados
relativos a certos assuntos, formando assim retrancas de textos ou blocos
de interesse;
•
Hierarquizar as informações, trazendo de imediato os dados mais
essenciais, mais importantes e desdobrando os detalhes acessórios e mais
aprofundados depois, na autêntica estrutura de pirâmide invertida;
•
Cuidar para que nada de relevante no assunto deixe de ser tratado na
matéria.
O que se percebe, além da clara correspondência entre as diretrizes de um lado e
outro, é a condução do processo de busca da verdade em nome da clareza, da nitidez e
da distinção de cada parte do todo a ser apreensível.
Tanto no método cartesiano quanto no dos jornalistas, decomposição e de síntese
estão a serviço da melhor compreensão de uma idéia ou uma história. Em ambos, o
encadeamento das informações (simples e complexas) se organiza para melhor
transmitir um conteúdo, e repassá-lo sem uma veracidade suspeita. A dúvida é o
princípio do trabalho, mas não pode ser um dos dividendos da busca.
Tanto no Jornalismo como nas Regulae ad directionum ingenii (Regras para a
direção do espírito) de Descartes, a intuição tem o seu papel, mas sempre a sua atuação
se dá a serviço do trabalho racional de encontro da verdade, da informação fidedigna, da
melhor maneira de se contar como algo aconteceu. Jornalistas e filósofos têm feeling,
têm faro, intuem sobre determinados casos ou questões. Mas intuir é cismar, é operar
sobre o imaginável, é indagar e, portanto, agir numa sucessão de pensamentos e
organizações racionais desses objetos. Na Regra 10 das Regulae, o pensador francês
critica a tentativa de se descobrir verdades por meio de silogismos, o que seria exercer
108
mais a dedução do que testar hipóteses e chegar à essência do que se busca. No
Jornalismo, deduzir, muitas vezes, significa pré-julgar, definir razões sem ao menos
verificá-las, o que também é uma prática condenável, sendo rechaçada pela categoria.
Diante disso, não é demais considerar o Jornalismo como um signatário do
cartesianismo. O Jornalismo nasceu e se desenvolveu no rastro do capitalismo, cresceu
alimentado pela forma de vida das sociedades industriais, fortaleceu-se com a
organização positivista dos saberes e amadureceu com a implementação de uma
racionalidade moderna. A raiz cartesiana, portanto, não lhe é um fardo, é um traço
constitutivo da sua natureza.
109
3.2 Heisenberg e a incerteza
“E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?”
Carlos Drummond de Andrade – José
Se a dúvida era uma noção cara a Descartes no século XVII, trezentos anos mais
tarde, ela vai permanecer no centro do debate intelectual. Mas com uma nova roupagem,
sob um sinônimo mais elegante e num campo mais definido: a Física. Em 1926, Werner
Heisenberg arrepia os cabelos das mentes mais brilhantes da ciência mundial com o seu
Princípio da Incerteza. Na tentativa de cobrir lacunas na Teoria Quântica, a explicação
pretendia dar conta da velocidade e da localização de um elétron num átomo.
Segundo o princípio, quando se observa um átomo, não é possível determinar
onde está e a quanto viaja um elétron em sua órbita. Sabe-se que ele está lá, que se
move ao redor de um núcleo formado por outras partículas, mas, em escala subatômica,
é incerto assinalar tais valores. “O fato de existirem limitações dessa ordem, impostas
pela própria teoria à medida de, por exemplo, posições e momentos de partículas
perturbou profundamente Einstein”, afirma Jeremy Bernstein (1991:158). Curioso é que
o próprio Heisenberg relatou ter tido inspiração para formular o Princípio da Incerteza a
partir de uma conversa que teve com Albert Einstein na metade dos anos 20.
Heisenberg ainda achava que ‘Einstein sustentava as concepções
positivistas preconizadas por Mach – a idéia de que todas as
quantidades que integram uma teoria física devem ter ‘definições
operacionais’, em termos de instrumentos de medida – que
caracterizaram a análise conducente à teoria especial’. Não se dera
conta de que Einstein havia abandonado essa posição muitos anos
antes, quando procurava formulação final para a teoria da
gravitação. Assim, grande foi o espanto de Heisenberg, quando
Einstein indagou: ‘Mas você acredita seriamente que só magnitudes
observáveis devem integrar uma teoria física?’ (Bernstein, idem)
110
Heisenberg respondeu que o próprio Einstein havia raciocinado daquela forma a
respeito da relatividade anos antes. Mais especificamente sobre a natureza do tempo e a
impossibilidade de existir um tempo absoluto, já que ele seria inobservável. Em sua
autobiografia, Heisenberg reproduz a resposta que teria provocado um clarão em seu
cérebro, abrindo caminho para a solução do Princípio da Incerteza:
É possível que eu tenha usado esse tipo de raciocínio – admitiu
Einstein -, mas ele é absurdo, de qualquer maneira. Talvez eu possa
expressá-lo de maneira mais diplomática, dizendo que é
heuristicamente útil ter em mente o que de fato se observou. Mas,
em princípio, é um grande erro tentar fundamentar uma teoria
apenas nas grandezas observáveis. Na realidade, dá-se exatamente
o inverso. É a teoria que decide o que podemos observar. (1996:78)
Numa certa madrugada de 1926, Heisenberg tornou a se lembrar da frase que
invertia os pólos de seu pensamento até então. Para ele, um cientista que investigava os
movimentos da natureza, as medidas é que davam as certezas. As medidas é que
ajudavam a explicar os fenômenos com convicção. Em outras palavras, o método
produzia a certeza, a verdade, solucionava problemas. Tal como Descartes, trezentos
anos antes! Mas se para o filósofo francês a dúvida deu sustentação ao método, para o
físico alemão, o método mostrava-se insuficiente para dar a certeza.
Cientista com disposição atlética, Heisenberg quis caminhar naquela madrugada
pelo Parque Faelled, em Copenhague. Precisava pensar sobre tudo aquilo. Mentalmente,
passou a revisar cada um dos passos dos testes que fazia no laboratório, onde tentava
observar a trajetória de elétrons numa câmara de nuvem. Num dado momento, fez-se a
pergunta: A mecânica quântica pode representar o fato de um elétron estar
aproximadamente num lugar e a uma certa velocidade? (É importante perceber que
Heisenberg disse “aproximadamente”. Isto é, com certa imprecisão, sem valores
absolutos, com algum grau de certeza, mas não toda. Eis a incerteza!) Horas depois, de
111
volta ao laboratório, Heisenberg debruçou-se sobre cálculos que logo atestaram que era
possível se chegar a uma proposição que lhe servisse48.
A fórmula era a ponte necessária entre as observações da câmara de nuvem e a
linguagem matemática da física quântica. É claro que ainda faltava provar que qualquer
experimento estaria de acordo com o Princípio da Incerteza, mas isso era uma segunda
etapa. Afinal, Einstein não disse que a teoria é quem decide o que se deve observar?
Para a física quântica, as partículas subatômicas não obedecem às leis da física
clássica. Elétrons, por exemplo, podem existir como duas coisas diferentes: tendo
aspecto de matéria e de energia. Nesta nova Física49, a luz é partícula e é onda, já que
tem freqüência e se propaga em ondas e é formada por ondas-partículas, isto é, quanta.
Essa ambigüidade da Teoria Quântica perturba a lógica linear e monolítica da Física
clássica, o que ainda provoca atritos entre os pesquisadores.
No caso específico de Heisenberg, sua proposição deixa evidente que nem
mesmo as medidas podiam assegurar certeza total em níveis subatômicos. Por exemplo,
elétrons são partículas tão minúsculas que
independentemente de como se tentava aferir seu comportamento,
a forma de efetuar a medição afetava esse comportamento. Caso
se lançasse luz sobre um elétron, de modo a se poder ‘vê-lo’, isso
inevitavelmente o colocava fora de curso, afetando sua velocidade
ou sua posição. (cf. Strathern, 1999, p.74)
A instabilidade provocada pelos avanços da Teoria Quântica incomodou até
mesmo Einstein, o mais notório dos cientistas numa época de revoluções na área. “Deus
não joga dados!”, repetia a quem teimasse atestar a validade do Princípio da Incerteza.
Não poderia ser diferente. Ele passara a vida investigando o mundo objetivo com
coordenadas de tempo e espaço, segundo leis exatas que ignoravam a existência e
48
A expressão seria: o produto das incertezas dos valores da posição e do momento não pode ser inferior à
112
interferência humana. Desde que Galileu disse que o livro da natureza fora escrito em
caracteres matemáticos, tinha-se como certo que esta linguagem representava o mundo
objetivo e isso permitir aos físicos fazer afirmações sobre o futuro comportamento desse
mundo. Agora, dentro do átomo, “esse mundo objetivo do tempo e do espaço nem
sequer existia, e os símbolos matemáticos da física teórica referiam-se a possibilidades,
e não a fatos” (Heisenberg, 1996: 98).
Esta discussão – que parece intrínseca aos embates epistemológicos da Física –
envolve, na verdade, muito mais terreno. Tem relação com objetividade, certezas e
verdades de um lado; e com instabilidade, dúvida e subjetividade, de outro.
O advento do Princípio da Incerteza é apenas a ponta visível de um iceberg de
crises paradigmáticas. Abaixo dela está uma montanha de questionamentos a certezas
antes inabaláveis, que logo virão à tona. O anúncio de Heisenberg provoca uma fissura
perigosa no colosso das certezas universais porque revela a fragilidade destas
convicções. Por essa trinca, pode-se entrever insegurança, instabilidade, desconforto.
Permanece uma sensação desagradável parecida com uma vertigem, que traz consigo
falta de discernimento, inexatidão, imprecisão.
constante de Planck, ou um quantum de ação.
49 Nova em relação à mecânica newtoniana, hegemônica desde o século XVII.
113
3.3 O Jornalismo entre a dúvida e a incerteza
"Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data"
Luís Fernando Veríssimo, escritor brasileiro
Um dos cânones do Jornalismo é a exatidão das informações, a correção dos
relatos, a fidelidade do informe com o acontecido. O mundo do Jornalismo (sua função
social, sua justificativa ética e boa parte de seus procedimentos técnicos) se sustenta na
crença e nos esforços dos profissionais para reportar com precisão. Esta atividade
moderna se expandiu no mundo e consolidou-se enquanto campo autônomo na esfera
pública à base do compromisso do jornalista com a verdade e com seus detalhes.
Imaginar o Jornalismo como uma máquina distribuidora de incertezas e ambigüidades é
mesmo muito difícil para o imaginário popular. Que dirá para quem está diretamente
ligado à reflexão e à manutenção desse valor?
Tal como os paradigmas científicos, as bases do Jornalismo também sofreram
abalos no último século. Sua habilidade em relatar objetivamente os fatos é questionada;
pairam dúvidas sobre sua capacidade de manter isenção editorial frente a pressões
políticas e de mercado; e mesmo o próprio conceito de verdade – com o qual o
Jornalismo trabalha – é, hoje, desacreditado. Com pilares desgastados, o Jornalismo se
vê diante de quatro cenários distintos, mas que têm correlação mútua:
•
O perigo de um fracasso enquanto ideal de função. Com a crise dos
valores que o formam, o Jornalismo corre o risco de não satisfazer a seus
imperativos éticos e de não funcionar como esperado. Se repórteres não
relatam os fatos com a veracidade anunciada e se a imprecisão toma
conta de suas narrativas, qual a sua função numa sociedade ansiosa por
informação?
114
•
A proximidade de uma grave crise de confiança. Há décadas, crescem
e se disseminam as críticas aos veículos de comunicação e aos
profissionais envolvidos no processo informativo. Este é um sintoma
claro de que algo não vai bem. Com o aprofundamento nas indagações
sobre os valores que servem de base para o Jornalismo, a tendência desta
crise se tornar crônica é mais real. Como conviver com as pressões e
expectativas de um público cada vez mais ciente de seus direitos à
informação e mais conhecedor do funcionamento do circo da mídia?
•
A emergência de mudanças estruturais e de revisão de paradigmas.
A decorrência natural de uma situação constante de cobrança é a tomada
de atitudes mais concretas. Neste sentido, repórteres, redatores e editores
devem se sentir instados a mudar, buscando novos procedimentos,
estabelecendo outras rotinas de trabalho e mesmo rediscutindo padrões
deontológicos.
•
O temor de uma convivência com elementos estranhos à sua gênese,
mas que já contaminam seus alicerces. Se a velocidade e o processo de
acumulação dos acontecimentos atropelar o poder de aglutinação da
categoria e inviabilizar muitas das mudanças pretendidas, o cenário é
desalentador. Além de precisar se adaptar a novas condições, os
profissionais da área terão ainda que se habituar a práticas que já
corroem as fronteiras de delimitação do Jornalismo: a cada vez mais
freqüente confusão entre informação e entretenimento, a ditadura dos
dispositivos de medição da audiência, a prevalência das leis de mercado
115
como reguladoras de litígios, o embaçamento do limite entre Jornalismo
e Publicidade...
Qualquer que seja o cenário a ser enfrentado pelo Jornalismo, uma condição é
subjacente: valores como objetividade e verdade precisam ser reavaliados. Não há como
contornar o impasse. O Jornalismo precisa enfrentar a discussão sobre sua relação como
mediador social, repensando o que é um relato preciso, o que significa reportar fatos
com objetividade. Se o Jornalismo se ocupa de certezas, e se as indagações acerca da
participação da subjetividade emergem com força crescente, não mergulhar nesta busca
pode comprometer ainda mais a função desse campo profissional. Se até mesmo os
cientistas vêm mergulhando nestas escuras águas, por que jornalistas – que sempre se
espelharam nos primeiros para definir método e conduta – iriam se esgueirar?
Heisenberg, de novo ele, reflete sobre a dose de subjetivismo presente em suas
contribuições à Física. Segundo ele, a teoria não contém características subjetivas
genuínas. Mas ela começa
pela divisão do mundo em ‘objeto’ e o resto do mundo e, também,
do fato de que, pelo menos para o ‘resto do mundo’, utilizamos
conceitos clássicos em nossa descrição. Essa divisão é arbitrária e,
historicamente, uma conseqüência direta do método científico; a
utilização de conceitos clássicos é, afinal, uma conseqüência da
maneira geral de o ser humano pensar. Mas isso já constitui uma
referência a nós mesmos e isso na medida em que nossa descrição
não é completamente objetiva. (1999: 82)
A divisão entre subjetivo e objetivo, portanto, parece ser mais complexa do que
se supõe, acredita o físico alemão. As fronteiras que separam os dois latifúndios
parecem mais porosas, crivadas de entradas e saídas, através das quais acontece uma
mútua contaminação. De acordo com o mesmo Heisenberg (op.cit.: 112-113), a divisão
cartesiana sobre o pensamento humano “dificilmente poderá ser exagerada”, e é
116
justamente o que se deve criticar. Ele prossegue, lembrando que, segundo a
interpretação dos cientistas que como ele trabalhavam em Copenhague, é possível falar
de Teoria Quântica sem se mencionar como indivíduo, embora não se possa ignorar que
a ciência é feita por pessoas, que trazem consigo traços de subjetividade.
A ciência natural não se restringe simplesmente a descrever e
explicar a Natureza; ela resulta da interação entre nós mesmos e a
Natureza, e propicia uma descrição que é revelada pelo nosso
método de questionar. Essa foi uma possibilidade que não poderia
ter ocorrido a Descartes, mas que torna impossível uma separação
bem nítida entre o mundo e o ‘Eu’. (op.cit.:115)
Já se disse aqui que o Jornalismo tem raízes cartesianas, e que esta condição
ajuda a dar os traços distintivos de sua natureza. Já se disse também que há uma crise de
paradigmas na ciência e no próprio Jornalismo, o que provoca inquietações de lado a
lado. Afirmou-se ainda que as contribuições de Descartes funcionam como fundações
para a construção moderna do pensamento ocidental. Ao mesmo tempo, apontou-se para
a necessidade de viver a crise de valores e de perceber que, mesmo na ciência, saídas
estão sendo buscadas. O Princípio da Incerteza é um exemplo da engenhosidade do
raciocínio humano e uma forma de como pontes entre razão e empirismo podem ser
construídas.
No percurso reflexivo desta tese, quando me debruço sobre a objetividade no
Jornalismo e a autoria na reportagem, proponho não descartar Descartes, mas enraizar
Heinserbeg. Como o Tomé bíblico, alimento minhas suspeitas com perguntas. Até
chegar às respostas – se não definitivas, pelo menos mais acalentadoras -, será preciso
duvidar mais e mais, pois este é o motor da busca do conhecimento. Entretanto, com
uma tolerância maior no convívio com a incerteza.
117
CAPÍTULO 4
Subjetividade
“O indivíduo, a meu ver, está na encruzilhada de múltiplos componentes
de subjetividade. Entre esses componentes, alguns são inconscientes”
Félix Guattari – Cartografias do Desejo
N
ão é nada confortável viver numa realidade fragmentada, onde incidem
muitas forças de diversos lados, onde a visibilidade é prejudicada pela
inflação de signos, e a estabilidade é mais retórica do que vivenciável. É
num mundo como esse que sobrevivem os sujeitos contemporâneos. É neste cenário que
jornalistas e historiadores tentam dar conta do tempo e de seus componentes, buscam
ordenar os fatos e dar sentido ao que lhes cerca.
Tanto em uma atividade como em outra, são esperadas objetividade e isenção,
fidelidade no relato dos acontecimentos e apego à veracidade narrativa. No caso
específico dos jornalistas, alardeia-se que ser objetivo é prerrogativa técnica e
compromisso ético. Entretanto, essa objetividade funciona como negação do sujeito
narrador, como tentativa de apagamento do indivíduo, como catalisador para que o fato
fale por si mesmo, que se apresente sem intermediários.
Apesar de todo esforço nesse sentido, o Jornalismo é feito por sujeitos, por
jornalistas que se emocionam, que se envolvem com os acontecimentos e seus
personagens e que erram. Pensar a objetividade jornalística requer certas reflexões sobre
o que se convencionou chamar de sujeito. O que é que define as fronteiras entre o que
alguém é e o que deixa de ser? Esses limites são flexíveis ou há um núcleo rígido que
possa ser o centro do sujeito? Todas as atividades de uma pessoa são subjetivas? É
possível contar de maneira objetiva uma história do sujeito? Sujeito é algo ou é uma
função a ser exercida? É um processo de estabelecimento de identidade em meio ao
mosaico de coisas que existem?
118
4.1 Apontamentos sobre o sujeito
“Meu nome não aparecia, lógico, eu desde
sempre estive destinado à sombra...”
Chico Buarque – Budapeste
Partimos aqui de um conceito genérico de subjetividade. Isto é, tudo aquilo que
se refere ao sujeito, ao caráter pessoal, e que, por isso, é arbitrário, relativo, parcial e de
ordem afetiva. O subjetivo se opõe ao que é objetivo. Seguindo Kant, subjetivo é o que
provém de estruturas do entendimento humano, a priori; subjetivo se contrapõe às
“coisas em si”; subjetivo é o que, no sujeito, depende de sua sensibilidade, ao contrário
das exigências universais da razão. O conceito de subjetividade está mais próximo dos
de individualidade, de pessoalidade, de personalidade, de particularidade.
Dito isso, pode-se ver com mais nitidez o esgarçamento que uma crise provoca:
o sujeito já não é mais o mesmo. Desde que esse conceito surgiu na história do
pensamento ocidental – na Grécia antiga – até os dias atuais, houve sucessivos
deslocamentos de sentido, fazendo com que o entendimento humano sobre sua própria
natureza se alterasse também. De imediato, é necessário ter claro que o sujeito é uma
construção humana, fruto das condições históricas que o cercam, resultado de
motivações individuais e de injunções sociais. Portanto, o sujeito é um conceito, uma
idéia fixada que define certo objeto. Essa consideração já estremeceria muitos planos já
que embaralha numa mesma frase sujeito e objeto, diluindo as divisas entre um e outro
termo da equação do conhecimento.
Mas o sujeito é uma forma encontrada pelo homem para designar uma unidade,
uma singularidade em meio a coletivos. Na afirmação de um sujeito, temos a
sinalização de um alguém, o contorno de um indivíduo...
Atendendo a escolhas metodológicas – que não deixam de ser subjetivas,
embora sempre se escorem em justificativas objetivistas -, faremos uma breve remissão
119
histórica do conceito de sujeito desde os séculos XVII e XVIII, a partir de René
Descartes. A definição deste recorte já sinaliza considerar o que se convencionou
chamar sujeito moderno. É, portanto, esse sujeito e suas mutações que estão em
discussão aqui.
Desta forma, o sujeito moderno surge no pensamento ocidental nos contornos
cartesianos: ele é o sujeito do pensamento, da reflexão. É racional, analítico, mental.
Define-se por contraste. Isto é, o sujeito é a parte pensante e se diferencia do resto da
matéria por esse mesmo caráter. Este sujeito cartesiano irá marcar uma nova forma de
individualismo na sociedade. Não que naquela época já não existissem indivíduos. A
mudança significativa se dá nas formas de uma nova concepção do homem no cenário
da vida: como sujeito do pensamento, o indivíduo marca sua posição de maneira
relativamente autônoma, independente dos suportes que antes a tradição e as estruturas
vigentes cediam. O sujeito é agente, é ponto de partida, é força que atua nas tramas do
pensamento. Com este conceito, o papel do homem é mais ativo, e vai prepará-lo para
os desafios do Iluminismo nas próximas décadas.
O sujeito cartesiano é uno, indivisível, singular. É um passaporte imprescindível
para o Humanismo crescente no mundo europeu. O conceito auxilia o homem a ordenar
suas idéias e o coloca numa posição de entendimento sobre as demais coisas. Isso o
credencia a dominar a natureza e o universo físico. O sujeito cartesiano ajuda a fundar o
sujeito moderno numa condição em que Deus não está mais no centro do universo, em
que o ceticismo é uma cicatriz de nascimento. A certidão de paternidade do sujeito
cartesiano não deve trazer apenas o pensador francês como seu titular, mas também
lembrar as contribuições de John Locke, de David Hume e de Immanuel Kant. O sujeito
moderno nasce como o sujeito do conhecimento. Emancipação, iluminismo e autonomia
120
estão na ordem do dia. Libertação de tudo o que oprimia a humanização do sujeito antes
do século XVII.
À medida que a sociedade se torna mais e mais complexa, a vida das pessoas
assume uma perspectiva mais social. O indivíduo moderno, sujeito, não abdica de sua
condição singular, mas passa a perceber sua condição de parte de um coletivo maior.
Com isso, volta sua cabeça para uma concepção mais social do sujeito. O cidadão
comum passa a se enxergar mais nitidamente no meio das estruturas da sociedade
moderna. A organização dos saberes e sua classificação como ciências sociais, nos
séculos XVIII e XIX, é fator que dá grande visibilidade a esta faceta mais social do
sujeito.
Entram em cena a Sociologia, que ressalta as tramas e relações entre os grupos, a
Economia, que revela os mecanismos de evolução das sociedades, a Historiografia, que
ajuda a conferir sentidos aos fatos, a Filosofia, com seu acento menos metafísico e mais
materialista, e a Psicologia, que sublinha regras do funcionamento identitário. Desfilam
pelo pensamento ocidental figuras como Max Weber, Adam Smith, Karl Marx, Émile
Durkheim, Friedrich Hegel, cérebros mais enredados pelos nós do cotidiano, das
classes, das origens e das grandes estruturas.
Nas ciências naturais, a Teoria Evolucionista, de Charles Darwin, surge como
importante evento que contribui para este entendimento. O homem é biologizado,
colocado ao lado do macaco e da taturana no reino animal.
O sujeito moderno deixa de ser apenas a marca da individualidade, e absorve
também a interface do humano com seus pares. A identidade se dá não só pelo
reconhecimento de si mesmo, mas ainda pela relação com o outro.
No século XX, novos tremores chacoalham o conceito de sujeito moderno. O
sujeito social vai se dissolvendo, ruindo a cada martelada conceitual, e mostrando-se
121
cada vez fragmentado, estilhaçado. Stuart Hall (2001) explica que o avanço tecnológico,
o aumento da complexidade da vida social, a ramificação dos pontos de referência
humana, o esfacelamento das fronteiras, a mundialização dos mercados e das culturas, a
derrocada de algumas utopias, e o progresso científico e histórico contribuíram para o
descentramento do sujeito nestes tempos de modernidade tardia. Para o autor,
especialmente cinco fatores acentuaram esse deslocamento na direção de um
esfacelamento da identidade humana:
•
A descoberta do inconsciente por Freud;
•
A proposição de Saussure de que a língua é um código social, um
sistema coletivo e não individual;
•
A releitura dos escritos de Marx nos anos 60;
•
A interferência de Michel Foucault em seus estudos sobre o exercício dos
poderes em escalas microscópicas, disciplinares, que podem se dar tanto
no discurso quanto em práticas não discursivas;
•
E por último, o movimento feminista.
Com isso, o sujeito moderno perde seu centro, confunde-se com seus espectros.
Os escritos de Louis Althusser, Jacques Lacan, Jacques Derrida, Michel
Foucault, Gilles Deleuze e dos principais nomes do Estruturalismo, do Pósestruturalismo, e dos estudos culturais colocam mais lenha na fogueira que consome
uma identidade como porto seguro, impermeável, rígida e impenetrável50. O sujeito
freudiano já se desdobra, tem projeções; em algumas páginas, não se fala mais em
Foucault vai encarar o tema da constituição do sujeito como nenhum de seus pares. “A chave para a
compreensão da individualidade moderna (dócil e útil) no pensamento de Foucault está em se partir da
noção de sujeito enquanto produção das relações de poder e saber e na identificação de tais relações. O
sujeito não é dado definitivamente na história, mas constitui-se no interior dela. Não pode mais ser visto
50
122
sujeito, mas em assujeitamentos, em agenciamentos coletivos. O humano se perde em si
mesmo. Não mais um centro para o sujeito, nem uma universalidade. Fora de si, a
identidade cultural também sofre abalos com o hibridismo, a diluição de fronteiras
nacionais e os impactos tecnológicos. Para aqueles que procuram um terreno estável
para pisar, Stuart Hall (op.cit.: 97) não tem boas notícias:
A globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do
“global” nem a persistência, em sua velha forma nacionalista, do
“local”. Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostramse, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus
protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isto também sugere
que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a
globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual,
mas continuado descentramento do Ocidente.
Essa sucessão de descentramentos dá uma nítida visão da crise pela qual o
conceito de sujeito moderno passa atualmente. O sujeito contemporâneo não é mais
ponto de equilíbrio, nem a calmaria incólume aos temporais que cercam o ser humano.
Funciona mais como ponto de dispersão identitária do que como ponto de convergência.
É mais motivo de preocupação e nebulosidade; inspira mais questionamentos do que
respostas. Parece oferecer mais condições para o indivíduo atual se perder.
Se este sujeito está em crise, que dirá de seu pólo complementar (o objeto) no
processo de conhecimento? Se eles se definem por contraste, por oposição, por
alteridade, onde termina um e começa o outro? O sujeito contemporâneo, este sujeito
que habita uma modernidade tardia, uma pós-modernidade, significa a morte do sujeito,
conforme prognosticaram alguns apocalípticos? Se o sujeito, hoje, é um emaranhado de
desejos, ideologias, fantasmas e substratos sociais, onde reside a consciência? Cabe
ainda falar de consciência num ambiente tão pantanoso?
como o núcleo de todo conhecimento e a fonte de manifestação da liberdade e de eclosão da verdade.
Ao contrário, antes de origem e fonte, o sujeito é produto e efeito.” (Fonseca, 1995: p.75)
123
4.2 Consciência: atestado do sujeito
“A consciência do escritor é a matriz da sua arte,
e ele paga um preço especial quando a sacrifica”
Howard Fast, escritor norte-americano
“...tudo o que inventamos, seja o que for,
de normas éticas e jurídicas
a música e literatura, ciência e tecnologia,
é diretamente determinado ou inspirado
pelas revelações da existência que a
consciência nos proporciona”
António Damásio, neurologista português
Não é raro que celebridades sem traquejo para as letras procurem profissionais
experientes no ramo para escrever suas autobiografias. Estes jornalistas ou escritores
alugam seus dedos e sua inteligência para dar contornos visíveis aos fatos que mais
marcaram a vida ou a trajetória desses famosos. Chamados de ghost writers, esses
escritores praticamente fazem todo o trabalho de escritura dessas autobiografias, mas se
esgueiram discretos quando é o momento de assumir a autoria do trabalho. No alto da
capa, figura solene o nome da celebridade contratante que se exibe na condição de
reveladora de seus segredos mais íntimos. Conscientes dessa condição, os ghost writers
aceitam a renúncia da autoria e saem de cena, na maioria das vezes, com o propósito de
manter segredo sobre esse contrato.
O personagem central do romance Budapeste, de Chico Buarque, é um desses
profissionais. O versátil José Costa se gaba de suas habilidades estilísticas que o
permitem escrever de teses acadêmicas a discursos políticos, passando por artigos de
fundo e biografias. Esses exercícios de estilo são o ganha-pão do personagem que
mantém inclusive uma empresa prestadora desse serviço. Mas embora o personagem se
movimente com tanta desenvoltura entre as letras, fica evidente ao leitor que há um
constante desconforto nessa não-apropriação dos textos por parte de José Costa. Quando
um romance escrito por ele, mas assinado por um cliente, faz extremo sucesso no
mercado editorial, o ghost writer parece estar sentindo remorso de suas práticas, ciúme
124
da obra ou mesmo inveja do desconhecido. No emaranhado das palavras, o leitor se
perde com as versões e detalhes da trama, apenas se orientando pelo que diz José Costa.
É a consciência do personagem que guia o leitor pelo romance. Só ela certifica que o
ghost writer tenha mesmo escrito aquele ruidoso livro e que ele seja ele mesmo.
Apesar de o sujeito moderno estar em crise, não se pode renunciar ao conceito.
Para além de argumentos racionais que o sustentem, há ainda um sentimento pessoal e
intransferível que garante a todos a existência do sujeito. De alguma forma, todos têm
uma sensação de que são alguém, de que estão vivos. A isso comumente se chama de
consciência, consciência de si mesmo e do momento que se vive. Embora haja um
ambiente de fragmentação naquilo que chamamos de sujeito e a clivagem seja a
configuração básica, a consciência parece assumir um papel mais rígido e definido –
embora ainda nebuloso – no processo identitário.
A divisão proposta por Descartes – entre matéria pensante e extensão – inaugura
a filosofia da consciência, mas atualmente é a neurologia quem oferece contribuições
mais palpáveis para a compreensão do que é ser. Pesquisadores como o português
António Damásio apóiam-se em diagnósticos de enfermidades nervosas para arriscar
modelos de funcionamento não apenas do cérebro, mas também da mente e de suas
extensões. Os pensamentos, as idéias e as emoções teriam padrões identificáveis e
estariam associados a um sistema estruturado logicamente.
No esquema cognitivo, Damásio (2002) vê de um lado o organismo e de outro os
objetos. A consciência se manifesta dentro do primeiro e alcança os demais, bem como
apreende o próprio organismo. Isto é, a pessoa é consciente de si mesma e daquilo que a
cerca e a afeta. Neste sentido, a consciência é um fenômeno totalmente privado,
exclusivo, de primeira pessoa. A consciência está intimamente ligada à mente, e
125
imbricadas - mente e consciência - vinculam-se a comportamentos que podem ser
observados por terceiras pessoas. Assim, “a consciência consiste em construir um
conhecimento sobre dois fatos: um organismo está empenhado em relacionar-se com
algum objeto, e o objeto nessa relação causa uma mudança no organismo” (op.cit.:38).
Conforme o neurologista, o cérebro humano mapeia não só o organismo e os
objetos, mas também suas relações. A consciência é fundamental nesse sentido. Aliás,
ela é vital para a geração de imagens orientadoras que guiem as ações dos sujeitos. Isso
faz com que esses organismos prossigam com maior capacidade de sobrevivência no
reino da natureza.
Minha teoria é que nos tornamos conscientes quando os mecanismos
de representação do organismo exibem um tipo específico de
conhecimento sem palavras – o conhecimento de que o próprio
estado do organismo foi alterado por um objeto – e quando esse
conhecimento ocorre juntamente com a representação realçada de
um objeto. O sentido do self no ato de conhecer um objeto é uma
infusão de conhecimento novo, criado continuamente dentro do
cérebro contando que os ‘objetos’, realmente presentes ou
evocados, interajam com o organismo e o levem a mudar. (idem: 45)
Contrariando o senso comum de que a consciência seria um processo
eminentemente racional, António Damásio afirma que ela começa com um sentimento.
Um sentimento de conhecer. A consciência confere a sensação de ser uma espécie de
padrão construído a partir dos sinais não-verbais dos estados do corpo. São os sentidos
que estão em ação, como sensores de dentro e de fora do organismo. Damásio arrisca:
“Talvez seja por essa razão que a misteriosa fonte de nossa perspectiva mental de
primeira pessoa (...) se revela ao organismo de uma forma que é ao mesmo tempo
intensa e indefinível, inequívoca e vaga” (idem: 394).
A consciência se coloca como um processo complexo, um fenômeno mental que
envolve sentimentos e sensações não-verbais. É uma experiência única e indescritível;
comum a todos, mas pessoal e diferente de todas as outras. Funciona como um atestado
126
do sujeito, como uma certificação de que se é alguém, que se vocaliza um EU só seu. A
consciência parece ser um porto seguro, um fio de certeza no mar das incertezas. Ter
consciência é ter domínio; estar consciente é apoiar-se em saberes seguros e empíricos.
É um exercício de subjetividade.
Na contemporaneidade, o sujeito é clivado, fragmentado, mas a consciência se
mostra como um ponto mais definido. A consciência se coloca como um conhecimento
de si mesmo, domínio dos limites pessoais. A consciência se configura igualmente na
interface com o outro: ter consciência é exibir uma certa habilidade ética de perceber as
pessoas e as situações, e de relacionar-se com elas. A consciência confere nitidez à
subjetividade humana e, por contraste, ajuda a visualizar a alteridade.
Em tempos pós-modernos, quando o sujeito é colocado em xeque, a consciência
– pelo menos enquanto conceito cognitivo – parece se manter firme, inabalável. Talvez
porque a conheçamos menos do que gostaríamos. Talvez porque não desfrutemos de
tanta consciência nesse terreno...
127
4.3 Subjetividade na atividade jornalística
“Nada existe mais prejudicial para a individualidade
do que cumprir as promessas, a não ser que dizer a
verdade seja ainda mais desastroso para ela”
Oscar Wilde, escritor irlandês
No Jornalismo, a marca do profissional enquanto sujeito sofre restrições claras.
Não é sempre que se pode ser sujeito, que é permitido exercer e manifestar uma
subjetividade na atividade jornalística. Há regras rígidas que delimitam essa aparição,
que condicionam esse exercício, que fixam até onde o sujeito pode ir e a partir de onde
os objetos (os fatos) tomam a frente.
Durante todo o século XX, o Jornalismo se colocou como uma atividade social
de narração, tradução e compreensão do mundo. Desta forma, os profissionais da área
submeteram-se a um abrangente código de conduta que orientava seu trabalho para a
transmissão de estratos da realidade para a sociedade em geral. Segundo as gramáticas
jornalísticas, os profissionais deveriam deixar suas mesas na redação e cair no mundo
em busca de histórias. Mergulhados na realidade, os jornalistas teriam acesso aos fatos,
aos acontecimentos, aos protagonistas dessas ações e às condições sócio-históricas que
lhe serviam de cenário. Os jornalistas apanhariam esses fragmentos da realidade,
retornariam aos seus teclados e reconstituiriam esses recortes para posterior divulgação.
O trabalho jornalístico consistiria então da observação do real, da seleção do que era
mais relevante, e da retransmissão narrativa do que captaram para uma massa de
consumidores de informação.
Entretanto, entre uma coisa e outra, terceiras acontecem. E isso porque a redação
– como local de trabalho – não está apartada do caldo da realidade; faz parte dela e os
seus freqüentadores não estão assepticamente isolados dos fatos da vida; depois porque
os profissionais interferem – mesmo que não queiram – na matéria-prima das notícias,
128
já que fazem recortes e reconfiguram os acontecimentos segundo outras regras, as da
empresa, do mercado e da sociedade de consumo.
O jornalista “suja as mãos” toda vez que faz seu trabalho. E aproveitando a
metáfora, o jornalista precisa afundar as mãos no lago para ter acesso a alguns fatos.
Quando faz isso, fica mais próximo deles, mas altera a superfície calma da água,
provocando pequenas marolas, turvando a sua limpidez. Mais que isso: também
encharca os braços e empapa as mangas da camisa. Mesmo diante dessa condição
inexorável, camadas influentes da categoria insistem na objetividade, na neutralidade,
na imparcialidade.
Este estado esquizofrênico que paira sobre as redações, além de desorientar os
seus habitantes, mantém um rol de regras, procedimentos e rotinas que cerceiam a
subjetividade nas práticas jornalísticas. Vigora um pacto entre os profissionais: a notícia
vem primeiro, e se for preciso, deve-se apagar quem a está dando, quem a produziu. Isto
é, o jornalista deve aparecer pouco, renunciar a qualquer exibicionismo, calar-se
enquanto sujeito-autor e produtor dos sentidos que redundam na notícia.
Assim, as gramáticas jornalísticas padronizam os textos, dando indicações de
como os relatos devem ser produzidos, seguindo a que critérios de relevâncias e que
ordem descritiva. Se por um lado a normatização dos estilos atende às exigências
industriais de fechamento das edições e confere um padrão para os produtos, por outro
ela homogeneíza as diferentes produções, pasteuriza, formata e reduz. O leitor, o
ouvinte, o telespectador e o internauta, todos eles ficam privados da diversidade de
estudos, própria de uma redação composta por múltiplos profissionais. O Jornalismo,
como prática profissional, vê nessas limitações outros impasses para um maior
experimentalismo, para inovações semióticas ou mesmo ousadias técnicas. O
129
Jornalismo se imobiliza, retarda seus movimentos, silencia os espasmos naturais de uma
atividade tão intensa e nervosa.
A padronização dos estilos, o estabelecimento de procedimentos, a
hierarquização das funções profissionais, a divisão de tarefas e sua articulação em série
foram processos fundadores de uma rotina moderna no Jornalismo, preparando esse
campo para as sociedades mais complexas e pulsantes a partir do século XX. Não é
possível negar a importância dessas propostas no contexto de desenvolvimento humano,
autêntico projeto iluminista. Entretanto, não há dificuldade em enxergar que a utopia do
esclarecimento não se confirmou como hegemônica, e que o programa não se cumpriu.
Essas derrotas, por outro lado, fortalecem os alicerces de uma crítica a este formato de
desenvolvimento, à sociedade como a compreendemos hoje e, por extensão, ao
Jornalismo, sua expressão mais ruidosa.
Quando veículos de comunicação alardeiam que produzem um Jornalismo
imparcial, que seus relatos são recheados de objetividade, que seus produtos são
independentes e fiéis à verdade, apenas exibem as vigas abaladas de um edifício que
inspira intranqüilidade. Afinal, ser imparcial é não ter partido e falar a partir de lugar
nenhum; trabalhar com objetividade é abafar qualquer traço dos sujeitos que respondem
por aqueles produtos; ser independente é gozar de plena autonomia, estando descolado
de qualquer relação com outros atores sociais; e ser verdadeiro comporta mais
questionamentos que afirmações.
Se no discurso a mídia é imparcial, objetiva, independente e verdadeira, nas suas
práticas cotidianas ela mantém relações carnais com parcelas da sociedade; ela se
sustenta em critérios que atendem à subjetividade de alguns de seus controladores; ela é
patrocinada ora por grupos econômicos ora por elites políticas; ela oculta, distorce,
omite e mente propositada ou inadvertidamente. O descolamento entre discurso e
130
prática provoca distorções que comprometem a qualidade dos seus produtos, corroem
sua credibilidade e questionam a sua legitimidade social, além de instaurar-lhe uma
crise existencial.
A questão do apagamento do sujeito no Jornalismo não é a principal ferida do
organismo, mas se mostra como um sintoma bem evidente desse mal estar. Enfrentar
essa questão é também trabalhar por um Jornalismo mais coerente e mais transparente.
131
4.4 Assinatura: a marca do sujeito
“Assinar um texto é como assinar um cheque:
a matéria também tem que ter fundo”
Sérgio Villas Boas - O estilo magazine
“Três assinaturas sempre inspiram confiança,
até se a pessoa for um agiota”
Oscar Wilde, escritor irlandês
A evidência mais clara da subjetividade no Jornalismo é a assinatura do
profissional sobre o fruto do seu trabalho. Reportagens, artigos, imagens, ilustrações,
locuções e fotografias são unidades concretas resultantes da atividade jornalística. E,
para além de dar os devidos créditos, a assinatura marca a presença e a atuação de
alguém naqueles terrenos. A assinatura revela ao grande público que aquelas peças
resultaram do trabalho das pessoas nominadas, a quem se lhes atribui a autoria. De
forma ilustrativa, se a complexa questão da autoria fosse comparada a um iceberg, a
assinatura poderia lhe servir de ponta, o aspecto mais agudo e visível do problema.
A assinatura de um produto51 é uma forma de reconhecimento, um signo de
titularidade, uma maneira de pertencimento. Por isso, a autoria não está dissociada das
discussões legais advindas de direitos morais e patrimoniais da obra. Ser autor de algo é
mais do que responder por ele ou tê-lo iniciado.
Depois de iniciada a era de Gutenberg, a assinatura ganha mais peso e
consistência. Isso porque, ao assinar um texto, seu autor fixa uma forma definitiva que
pode ser reproduzida à exaustão pelos processos técnicos. A assinatura garante a
paternidade, congela a versão bem acabada e chancela a permissão para a sua ampla
difusão. A assinatura se converte na mais evidente forma canônica de fixação de um
discurso, de um texto.
51
Chamo de produto todo resultado de uma produção, todo substrato do trabalho.
132
No Jornalismo, não há uma prescrição exata dos critérios que levem à assinatura
de uma obra52. Entretanto, certos procedimentos são reproduzidos simultaneamente por
diferentes empresas jornalísticas e se repetem em diversas latitudes, dando uma
sensação de uma orientação básica e generalista para o assunto. No entanto, deve-se
enfatizar que não há uma política clara e definida para a assinatura no Jornalismo, e os
profissionais e suas obras se regem por costumes da categoria, por normas editoriais e
tendências de mercado que se cristalizam.
Na vigência de um acordo tácito, o que se percebe em geral é que:
•
Colunistas e articulistas de meios impressos sempre assinam o material que
produzem. Eles são os titulares de seções fixas e de colunas de especialidades;
•
Fotógrafos, ilustradores e chargistas também recebem créditos visíveis por seus
trabalhos nas publicações que os editam. Algumas exceções se notam quando
agências noticiosas vendem fotografias para outros veículos e esses deixam de
creditar o material aos profissionais, nominando apenas quem o forneceu;
•
Repórteres de vídeo assinam suas matérias exibindo-se no início ou desfecho, ou
ainda através de locuções em off ou por legendas no vídeo;
•
Na área gráfica, são raros os exemplos em que se dá aos profissionais o
reconhecimento visível de seus trabalhos53;
•
Na internet, a assinatura de obra jornalística é prática pouco usual e sem
qualquer normatização, o que redunda num ambiente selvagem onde se
disseminam práticas como o plágio, o tráfico mundial de textos e imagens, o uso
Entenda-se aqui obra jornalística como qualquer peça resultante do trabalho na área e que contenha
uma unidade formal e estrutural coerente. Artigos, textos, fotos, charges, ilustrações, matérias para TV, rádio
ou internet, projetos gráficos, reportagens ou imagens geradas são obras jornalísticas. Títulos, chamadas e
legendas, por exemplo, não chegam a essa condição por serem unidades constituintes de peças maiores e
mais bem acabadas. Voltarei à discussão sobre o conceito de obra jornalística mais adiante.
53 Uma exceção digna de nota é a revista Superinteressante, da Editora Abril, que assina as reportagens mais
importantes da edição dando créditos ao repórter de texto e ao “designer” da matéria, enfatizando a
relevância dos dois discursos (verbal e não-verbal) e sua complementação harmônica na leitura. Mesmo no
expediente da publicação, a eqüidade na importância é marcada: logo após o Diretor de Redação vem o
Diretor de Arte.
52
133
indevido e não autorizado de material autoral, e mesmo a republicação de
conteúdo jornalístico por empresas do ramo sem as devidas compensações
financeiras aos seus autores;
•
Autores de textos para meios impressos podem ter seus nomes creditados no
cabeçalho de suas produções (ou no rodapé) ou ainda manterem-se anônimos.
Neste caso em particular, o que se percebe é que, em muitas redações, a
assinatura de um texto é considerada uma distinção ao jornalista, uma deferência ou
prêmio que ateste os méritos do profissional ou do seu trabalho. As cúpulas editoriais
dos veículos costumam ater-se a critérios não tão claros para decidir quando um texto
deve ou não ser assinado. Entre esses critérios, leva-se em conta a qualidade da peça
produzida, se a reportagem traz informações exclusivas ou um tratamento inédito dos
fatos, considera-se ainda a experiência do jornalista e sua trajetória pessoal – é a
assinatura funcionando como dispositivo retroalimentador da credibilidade profissional
-, e o destaque que a matéria tem dentro da edição a que pertence. Isto é, ter chamada na
capa ou ser uma das manchetes são fatores que pesam quando o que se discute é a
assinatura ou não do material.
Na assinatura do trabalho jornalístico, percebo cinco formas de sua ocorrência:
•
Primeiro como prática que credita a alguém o produto que seu trabalho realizou. A
assinatura se assemelha a uma impressão digital do jornalista sobre sua produção;
•
Segundo: a assinatura funciona como dispositivo de revelação ao público
consumidor que sujeito (ou sujeitos) está relacionado ao produto final;
•
A assinatura atua como instrumento de responsabilização do autor frente a
possíveis conseqüências da difusão de sua obra. Um texto assinado, por exemplo,
134
ajuda a identificar com mais facilidade quem pode ser responsabilizado
juridicamente por danos ou lesões;
•
A assinatura funciona como dispositivo retroalimentador da credibilidade
profissional. Isto é: jornalistas famosos têm seus textos assinados mais
freqüentemente do que os demais porque, além de seus próprios méritos, essa
prática confere prestígio à publicação onde veiculam suas produções;
•
A assinatura é meta, e não prática cotidiana. Assim, editores consideram-na um
prêmio, uma distinção. Essa postura é uma maneira de a empresa jornalística
oprimir o jornalista na medida em que acirra um ambiente de competição interna e
permite à chefia estabelecer níveis no reportariado que funcionam como sistemas de
controle social.
Estas cinco formas de ocorrência auxiliam na reflexão sobre a assinatura do
trabalho jornalístico. Uma ou duas delas podem acontecer simultaneamente na mesma
empresa, outras podem se dar em outros momentos. Não há um regime fixo de sua
incidência, e as condições de trabalho, impostas pelas empresas (e pelo mercado), e a
disposição dos profissionais em aceitá-las são determinantes para o seu sucesso.
Entretanto, como já se disse no início desta seção, a assinatura é só a ponta
visível do iceberg da autoria. Assinar um texto não garante que alguém seja autor dele.
Isto é, assumir a responsabilidade pela produção de algum produto jornalístico não é o
mesmo que exercer a autoria sobre ele. Um autor vai além da representação gráfica de
um nome associado a uma produção. Para ser autor, não basta assinar.
135
CAPÍTULO 5
Autoria
“PAI: Estamos aqui à procura de um autor.
DIRETOR: De um autor? Que autor?
PAI: Qualquer um”
Luigi Pirandello – Seis personagens à procura de um autor
A
cena é inusitada: atores e atrizes ensaiam com o diretor, e de repente seis
estranhos entram na sala, dizendo-se personagens sem autor. Angustiados,
eles querem viver, mas foram desperdiçados, e por isso, vagam em busca de
uma peça que os absorva. O enredo foi escrito por Pirandello em 1920 e logo se tornou
um clássico do teatro. Para além de um texto que reflita sobre o mundo e a magia dos
espetáculos, Seis personagens à procura de um autor convida a pensar a criação e o ato
criador. O convite continua oportuno, até porque há pelo menos 35 anos, ouve-se falar
da “morte do autor” e desde então muito se fez pela sua desaparição.
Imediatamente após os personagens interromperem o ensaio, o Diretor informa:
“Mas aqui não há nenhum autor. Não estamos ensaiando nenhuma peça nova”. Agitada,
a Enteada sobe a escadinha do palco e retruca: “Melhor assim, então! Nós poderemos
ser a sua nova peça”. Mesmo como um autêntico fragmento de ficção, o trecho da peça
é revelador de dois aspectos característicos da figura do autor na contemporaneidade: o
autor tem uma função característica (só deve estar ali quando um novo espetáculo
estiver começando) e o autor exerce uma autoridade (na ausência dele, personagens,
atores e Diretor podem fazer o que quiserem).
Tanto nas artes cênicas quanto nas demais expressões literárias, o autor tem o
seu lugar no processo de produção da obra. O mesmo se dá nas artes plásticas, no
cinema, na fotografia, nos quadrinhos, no crime e no Jornalismo. O autor é um ponto
nodal na reflexão sobre a criação, sobre o exercício de um estilo, sobre a manifestação
136
de uma subjetividade. No que tange a prática da reportagem, a autoria envolve ainda
extensas discussões acerca dos procedimentos técnicos no Jornalismo, debates sobre
questões estéticas e mesmo descartes e renovações em compromissos éticos.
É o que discutiremos no decorrer deste capítulo.
5.1 Uma genealogia do autor no Ocidente
“Como fazer para derrotar não os autores, mas a função do autor,
a idéia de que atrás de cada livro há alguém que garante que a
verdade daquele mundo de fantasmas e ficções pelo simples fato
de nele ter investido sua própria verdade, de ter se identificado
com essa construção de palavras?”
Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno
Embora sejam usados com freqüência, os conceitos de “autoria” e de “autor” são
construções sociais que se cristalizaram há pouco tempo, praticamente nos últimos dois
séculos. O autor, por exemplo, é um personagem moderno, fruto da emancipação do
sujeito, da evolução tecnológica e da fundação de idéias que sustentam as utopias
contemporâneas. Entretanto, para compreender os conceitos de “autor” e “autoria”, é
fundamental acompanhar o surgimento dessas noções e o desenvolvimento de suas
naturezas no mundo ocidental. É muito possível que o percurso tenha sido semelhante
no Oriente, já que os conceitos, hoje, parecem universalizados.
Na Grécia antiga, não havia autores. A autoria não tinha um lugar e qualquer
autoridade de criação emanava dos deuses. Mesmo na Idade Média, a legitimidade e a
autoridade do autor não existem ainda, e só vão surgir para valer a partir da
industrialização da literatura nos séculos seguintes.
Entre os gregos, nem mesmo os poetas respondiam autoralmente por seus
versos. Eles atribuíam as criações às musas, que entoavam as frases e as estrofes. Foi
assim com Homero, por exemplo, tanto na Odisséia quanto no início de sua Ilíada:
“Canta-me, ó deusa, do peleio Aquiles...”. Assim, as musas sopram as palavras nos
137
ouvidos dos poetas, elas cantam os feitos que os poetas apenas redigem para registro.
Nesta época, o entendimento é de que atua nos poetas uma onisciência divina, vigora
neles as vozes das musas e dos deuses. É a partir dessa compreensão que se forma a
idéia de inspiração: o poeta escreve sob a inspiração das musas e só sob esse estado.
Como se estivesse num transe, o poeta verseja, cria, escreve. Na Grécia antiga, o poeta
tem uma ligação especial com as esferas divinas, tem um canal de comunicação com os
deuses. Criar não é um ato mundano, é próprio dos deuses. Então, para criar, o poeta
precisa estar conectado com o mundo divino. Criar é um dom, um prêmio dos deuses,
uma faculdade especial concedida pelo supremo54.
Mesmo que Heródoto use “Eu” em trechos da História, não se manifesta ali uma
autoria para os antigos gregos. O entendimento é de que o artifício da primeira pessoa
do singular seja um recurso para que os fatos se contem, sejam apresentados, desfilem
diante dos olhos dos leitores. O “Eu” marca o testemunho, a voz pretensamente muda de
quem viu os acontecimentos, de quem ouviu os relatos de outras bocas.
Na Idade Média, vigora uma nova conjuntura: a estrutura do poder na Europa é
distinta das cidades-estado gregas, a Igreja impõe o monoteísmo e controla o
conhecimento, os valores morais e éticos são apoiados nos princípios cristãos. No
interior dos mosteiros, os textos da Antigüidade são guardados e catalogados. Versões
muito castigadas pelo tempo são copiadas pelos monges com a intenção de resguardar
as obras em suportes mais duráveis. De maneira geral, o autor ainda não existe. Os
textos são marcados pela glosa, pelo comentário, pela escrita coletiva e continuista. A
idéia é dar continuidade ao que foi escrito anteriormente. Com isso, os autores
permanecem anônimos ou, em alguns casos, são designados por prenomes e topônimos.
Umberto Eco, no seu romance O nome da rosa, mantém essa tradição batizando seus
Ainda hoje permanece forte em algumas camadas sociais a idéia de que só se escreve bem se “o autor
estiver inspirado”. A inspiração é como um sopro, bafo divino que provoca perda momentânea da razão,
54
138
personagens principais como Guilherme de Baskerville e Adso de Melk, cujos nomes
vêm seguidos da origem dos religiosos.
Na Idade Média, vigora a exegese e o comentário. Isso porque o termo “auctor”
designava não quem escrevia, mas quem tinha autoridade, quem era respeitado. A
palavra traria consigo a tradição do aumentar (do latim, augere) bem como do agir
(agere). Neste sentido, um texto de auctor detém auctoritas, e por isso, é uma sentença
digna de imitação. Para ser auctor é preciso ter autoridade, estar autorizado, o que
significa estar em conformidade com a verdade cristã. Para ter a autoridade digna de um
auctor, são necessárias autenticidade nos textos e sintonia com o poder central. Com
isso, não é qualquer um que pode ser um auctor. Geralmente, é quem reúne os valores
necessários para tal, quem traz consigo uma tradição e quem goza de respeito.
O conjunto de auctores acaba formando um cânon, uma orientação. Seguindo
essa diretriz, o ensino da gramática na Idade Média vai se apoiar na ciência do bem
falar, fundada na explicação dada pelos autores. Entre os séculos XI e XII, o gramático
Conrad de Hirsau dirá que o auctor é aquele que, com sua pena, amplia, aumenta os
ditos e escritos dos antigos. A afirmação está na letra dos dicionários latinos, onde
“auctore” é quem acrescenta, quem faz aumentar55.
Os textos, àquela época, traziam prólogos com comentários. Neles, havia uma
explicação do autor logo no início, seguido por notas ao conjunto do texto, antes das
explicações em detalhe. Foram esses comentários introdutórios que permitiram a
emergência silenciosa de uma noção de autor nos séculos XII e XIII na Europa. Foi a
conforme afirmou Sócrates no diálogo platônico Íon.
55 O lingüista Émile Benveniste (1995) contesta tal origem, dizendo ser insuficientes e pouco convincentes os
argumentos de Conrad de Hirsau. Para mais informações, ver O Vocabulário das Instituições Indo-Européias,
tradução de Denise Bottmann, 2 volume, Campinas: Editora da Unicamp.
139
partir desta prática que se obteve condições para um descolamento do individual sobre o
coletivo, permitindo o esboço do que se tornaria um exercício de autoria em textos56.
A tradição do pensamento grego antigo ainda influencia os cérebros medievais.
É Aristóteles quem trará a discussão para um terreno mais propício para o surgimento
do conceito de autoria. O interessante é que não será a Poética quem vai possibilitar
isso, mas sim a Física, obra não tanto sobre estética, mas acerca dos movimentos. No
século XIII, a teoria aristotélica da causalidade dá novos contornos às faculdades
humanas, ao estilo, e à própria estrutura dos escritos. Diante do que o filósofo definiu
como causas material, formal, eficiente e final, a Escolástica muda o seu olhar para com
as Sagradas Escrituras. Antes, o sentido estava oculto na profundidade do texto bíblico.
Agora, cada profeta, cada autor de um dos livros formadores da Bíblia expressará no
sentido literal a palavra de Deus. Mas cada um a sua maneira. Assim, o Evangelho de
João traz uma parte da verdade, o de Lucas, outra, e assim por diante57.
De uma certa maneira, Aristóteles convida os escolásticos a revisarem os papéis
do autor divino (Deus) e dos autores humanos (os profetas e apóstolos) nos textos
sagrados58. Assim, começam a ser enxergados numa obra os atributos e as qualidades
literárias do autor, independentes das imperfeições de quem assinava os escritos. Neste
descolamento, vai surgindo a figura o autor. Muito possivelmente, o primeiro a ser
tratado no sentido moderno de autor pelos comentadores é Dante Alighieri, no século
XIV. A Divina Comédia - obra monumental, autêntica, seminal e com grande poder de
influência – vai projetar o nome de quem estava diretamente associado à sua criação.
56 Curioso é notar que, no século XII, um dos tipos de prólogo trazia sete questões dando conta das
circunstâncias em que o texto apresentado teria sido escrito. Assim, o prólogo sinalizava QUEM havia escrito
o texto, O QUE era ele, PORQUE teria sido elaborado, DE QUE FORMA isso teria acontecido, QUANDO e
ONDE, e POR QUAIS MEIOS teria sido formulado. Não estaria ali uma proto-idéia do lead jormalístico?
57 O quinto evangelho, o de Tomé, ficou de fora da compilação de livros que resultou na Bíblia. Seguindo as
regras do regime de autoria medieval, muito possivelmente, o autor não alcançou autoridade suficiente
para ser reconhecido o seu valor como tal e impedindo o relato de integrar a obra.
58 Note-se que para ser autor de livros que componham a Bíblia será quase uma condição ter uma
comunicação direta com Deus – ser profeta – ou ainda ser testemunha fiel dos fatos – ser apóstolo de Jesus
Cristo. É o regime de autoria possível na época...
140
Os conceitos de “autoria” e “autor” passam a se moldar com mais precisão nos
séculos seguintes. Elogio da loucura (1509), de Erasmo de Roterdam, O Príncipe
(1513), de Nicolai Machiavelli, e a Utopia (1516), de Thomas Morus, ajudam a
pavimentar terrenos firmes para o autor caminhar. Nas artes, as presenças de Leonardo
Da Vinci (1452-1519) e Michelangelo (1475-1564) dão a visibilidade necessária ao
valor individual humano. Montaigne vem com seus Ensaios (1580), Camões cruza os
mares com Os lusíadas (1572) e Cervantes rasga as Campinas com Don Quixote de la
Mancha (1605). Nos palcos, Christopher Marlowe (1564-1593) e William Shakespeare
(1564-1616) dão contornos ao novo sujeito humano que emerge das trevas medievais.
O nascimento das noções de “literatura” e de “escritor” vai se dar aos poucos,
por um longo período de cem anos, entre 1750 e 1850. O Renascimento abre as portas
para o autor, para o artista, para o criador. Mas os avanços tecnológicos que vão
redundar na invenção da imprensa vão catapultar esses conceitos. A massa de letrados
aumenta, as traduções se desenvolvem, o mercado literário aparece, o ofício se
profissionaliza e se dissemina nas principais cidades do mundo.
No século XVII, autor era toda e qualquer pessoa que produzisse algo, seja um
texto ou um crime. O autor é aquele que faz uma obra criativa. Continua sendo – como
na velha Idade Média – uma autoridade, mas confere a certificação de seu valor são as
instituições literárias. Assim, só o redator cujos escritos são reconhecidos por essas
entidades é que pode ser dado como autor. O escritor como uma função social é um
advento muito mais recente, datado do século XIX.
A possibilidade de reproduzir um escrito praticamente ao infinito e facilidade
para uma circulação planetária trazem preocupações inéditas aos autores. Como
controlar os ganhos daquelas transações? Como acompanhar a recepção de uma obra
pelo público? Como garantir aos autores os dividendos de seu trabalho intelectual?
141
O Iluminismo consagrou o indivíduo, projetou a importância da individualização
das idéias e fez nascer noções filosóficas que sustentassem um direito de autor, uma
propriedade intelectual, um reconhecimento de autoria. Esses acréscimos tornavam mais
complexas as noções de “autor” e de “autoria”...
142
5.1.1 Digressão jurídica: a autoria como direito
“Independentemente dos direitos patrimoniais do autor,
e inclusive depois da cessão destes direitos, o autor
conservará o direito de reivindicar a paternidade da obra
e de se opor a qualquer deformação, mutilação ou outra
modificação da mesma ou a qualquer atentado à mesma
que cause prejuízo a sua honra ou a sua reputação”
Artigo 6º - Convenção de Berna para a proteção das
obras literárias e artísticas. 1886, revisada em 1971
Com o desenvolvimento da indústria gráfica, a preocupação com o controle dos
dividendos do autor cresceu na proporção inversa da dificuldade de reproduzir as obras.
Com os tipos móveis, os impressores ganharam mais agilidade na composição das
matrizes e as provas saíam das oficinas muito mais velozmente. A forma escrita se
estabeleceu e se espalhou, obrigando a massa iletrada a converter-se ao novo credo e
colocando a proteção jurídica do direito autoral como uma necessidade social.
Em 1709, os ingleses promulgam a primeira lei formal sobre o tema: o
Coypright Act. Na França, em 1777, as proteções ao direito do autor já constam das
Ordens do Conselho do Rei. E no Novo Mundo, os recém-fundados Estados Unidos
inscrevem preocupações análogas tanto na Constituição de 1783 quanto no Federal
Coypright Act, de 1790. No Brasil, a primeira menção jurídica sobre o tema data de
1831, quando da tipificação do delito de contrafação (falsificação).
Em todos esses casos, o objetivo era garantir os rendimentos financeiros
advindos da exploração da obra, assegurando o direito do autor beneficiar-se com a sua
reprodução. Daí o termo “copyright”, direito de cópia. O que estava em jogo era a
proteção dos direitos patrimoniais sobre a obra.
A garantia dos direitos imateriais surge na Alemanha já no século XIX como
parte do direito de personalidade. Com isso, na doutrina do Direito, ficam evidentes
duas vertentes sobre o terreno autoral: a que protege a obra contra reproduções não-
143
autorizadas (commom law, de família anglo-saxã) e a que protege a obra como criação
do espírito (droit d’auteur, de família romano-germânica).
Essas duas vertentes acabam se mostrando como aspectos complementares no
direito autoral:
•
O moral, que assegura ao criador o controle à menção do seu nome na
divulgação da obra e o respeito à sua integridade, além dos direitos de modificála ou de retirá-la de circulação;
•
O patrimonial, que regula a utilização econômica da obra, prevendo pagamento
ao autor pela circulação e exploração da criação.
Neste sentido, o direito autoral visa proteger as obras intelectuais por sua
originalidade (no que se refere à sua forma externa) ou por sua criatividade (no que se
refere à sua forma interna). Henrique Galdeman (1997: 36) explica que as idéias em si
não são protegidas, mas sim suas formas de expressão: “O que se protege não é a
novidade contida numa obra, mas tão-somente a originalidade de sua forma de
expressão”. Quando criadas em serviços profissionais ou seguindo deveres funcionais
(contratos de prestação ou mesmo encomendas), as obras pertencem geralmente aos
contratantes. Em ocasiões semelhantes – e o Jornalismo pode ser uma delas -, o contrato
deve trazer expresso a quem pertence a obra para evitar transtornos com os dividendos.
Bastante evoluído mundialmente, o direito autoral já conta com códigos
específicos na maioria dos países e com tratados e convenções internacionais que
arbitram sobre o tema em situações de litígio. Tal como em outras áreas do
conhecimento humano, a Estética também se beneficiou com o aperfeiçoamento do
Direito: hoje, os conceitos de “autor” e “autoria” são mais complexos também por conta
das evoluções no campo jurídico.
144
5.1.2 Retorno à genealogia
“O autor designa a necessidade de uma epistemologia
e de uma ética da leitura; o autor é o nome de uma
norma para a interpretação”
M. Antoine Compagnon, crítico francês
O desenvolvimento da indústria gráfica e o Iluminismo ajudaram a sedimentar
novos padrões na difusão das idéias por meio da palavra escrita. Aliás, a forma escrita
acabou por exigir um processo de identificação do texto e do seu titular. Regina
Zilberman (2001) intui que a assinatura dos primeiros textos não tenha se dado por
iniciativa dos seus autores, mas sim para atender às solicitações dos leitores.
Mesmo que questionável, a hipótese chama a atenção para a figura do leitor no
processo de constituição do autor. O trabalho de Zilberman se preocupa não apenas com
a constituição do autor, mas também com a sua reificação. Segundo sustenta, quando o
autor se aliena do texto contribui para o ocultamento de sua subjetividade, franco
processo de coisificação.
Por outro lado, a assunção de uma obra literária é a afirmação de um direito de
propriedade intelectual. E, neste sentido, a garantia desse reconhecimento é uma
conquista dos escritores que venceram outros personagens da indústria gráfica neste
litígio: inicialmente, os tipógrafos europeus consideravam-se os donos dos produtos que
vendiam; depois foi a vez de editores e livreiros reivindicarem tal propriedade.
Com a vitória dos autores, e o reconhecimento de sua autoridade criadora sobre
a obra, difunde-se uma certa figura do autor.
Refletindo sobre uma suposta extinção do objeto livro, Zilberman (2000)
pondera a supervalorização do autor no mundo da escrita:
145
Não surpreende que, por decorrência, se tenha hipertrofiado a
noção de autor, que passa a constituir o elemento mais valorizado
do sistema literário, obscurecendo, como se apontou em capítulos
anteriores, a importância do leitor. Quando Roland Barthes, num de
seus ensaios, decreta “a morte do autor”, talvez tenha em mente
minimizar a importância dessa figura, tanto mais que ele propõe
substituí-la pela do leitor, definido como “o espaço mesmo onde se
inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é
feita a escritura”. O autor, contudo, não se entrega tão facilmente:
não apenas a morte detectada por Barthes é simbólica e virtual,
como não se anulam os direitos de propriedade conquistados por
ele, mesmo depois de seu falecimento real.
A hipertrofia do autor é muito conveniente para o sistema na medida em que
ajuda a ocultar “a materialidade do produto que o difunde, encobrindo ao mesmo tempo
o sistema econômico que o sustenta” (112).
Em 196859, Barthes publica o artigo “A morte do autor”, quando o mundo da
escrita degusta (rumina e digere) algumas das mais ousadas experiências literárias no
tocante à figura do narrador, do autor. Mallarmé, Valéry e Proust já haviam passado
pelos olhos dos leitores, depositando na língua, na palavra, o peso da criação. Eram
autores despreocupados com a própria visibilidade. Importava o código escrito, que, de
tanto funcionar, implodia em imagens, signos, sentidos e sensações. Catalisando um
certo movimento orquestrado de apagamento do autor, o avanço nos estudos da
Lingüística – principalmente os estruturalistas e pós-estruturalistas – atraiu os holofotes
para a maquinaria da linguagem, como se ela estivesse dissociada dos sujeitos que a
usam (e são constituídos por ela).
Neste contexto, a morte do autor se apoiava numa oposição a uma crítica
tradicional (aquela que endeusava o autor) e a uma clara adesão à vanguarda literária
(que apagava, anulava, dissolvia o autor). Barthes se contrapôs a uma ala da Crítica e
abriu os braços para o Noveau Roman.
59
O texto será publicado no Brasil vinte anos depois no volume O rumor da língua, pela Editora Brasiliense.
146
Para Barthes (1988), o protagonismo do processo é exercido pela escritura que
efetua a “destruição de toda voz, de toda origem”. A partir do momento em que algo é
relatado, contado, ocorreria um desligamento, o autor sucumbiria e a escritura
começaria. Ela se constitui numa espécie de neutro, “esse oblíquo aonde foge o nosso
sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo
que escreve” (65).
Barthes recorre à ciência para reforçar seus argumentos. Segundo ele, a
Lingüística mostra que a enunciação é um processo vazio, que funciona independente
do preenchimento da figura do interlocutor:
Lingüisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que escreve,
assim como “eu” outra coisa não é senão aquele que diz “eu”: a
linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito,
vazio fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a
linguagem, isto é, para exauri-la. (67)
Diante disso, e frente às vanguardas literárias, Barthes afirma que o afastamento
do autor não é apenas um acontecimento ou uma ação na escritura. Isso modifica
radicalmente o texto na contemporaneidade. Assim, só existe um tempo, o momento da
enunciação. O escritor moderno nasce no mesmo instante em que aparece o texto.
Para Barthes, dar ao texto um autor é impor-lhe uma trava, fechar sua escritura,
algo muito conveniente para o crítico que quer decifrar o texto na medida em que
encontra o autor.
A alternativa proposta é a escritura múltipla, onde se oferecem sentidos
ininterruptamente. Só se desvenda a integralidade da escritura pela consciência de que
um texto é um tecido formado de escrituras múltiplas, de entradas e saídas, de tramas e
frouxidões. Mas existe um ponto onde esse rizoma se reúne
147
... e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor:
o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se
perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do
texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino
não pode mais ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem
biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém que mantém
reunidos em um único campo todos os traços de que é constituído o
escrito. (...) para devolver à escritura o seu futuro, é preciso inverter o
mito: o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor.
(70)
Portanto, a morte do autor não é apenas um crime ordinário provocado por
Roland Barthes no final dos anos 60 do século XX. Barthes não é o responsável pelo
assassinato do autor, mas quem aponta e revela o cadáver da vítima. Mas o teórico
francês não é também só uma testemunha do homicídio, mas cúmplice do delito na
medida em que o celebra em favor do leitor. Nesta alegoria criminal e literária, Barthes
poderia ser arrolado ao processo não como mais uma peça no desvendamento do crime,
mas como co-autor. As evidências indicam que o autor foi morto em defesa do leitor.
Como evidência não é prova e como o processo não foi concluído até então, a discussão
também está longe de terminar.
148
5.2 Reconhecimento do sujeito e afirmação do singular
“...é que eu não sou propriamente um autor defunto
mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço”
Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas
Se o assunto é a morte do autor, nada mais oportuno do que começar pelas
palavras de um defunto-autor ou mesmo pelas de um autor que já deixou de viver. Seja
o Brás Cubas, de Machado, seja Italo Calvino, que, entre tantos títulos, escreveu Se um
viajante numa noite de inverno. Editado em 1979, o romance é uma obra de engenharia
narrativa que desterritorializa a leitura, confere novos contornos aos papéis do autor e
do leitor e resignifica a arte do romance. Nele, os personagens estão todos ligados ao
campo da palavra escrita: são leitores ávidos por terminar a leitura de romances, um
velho editor preocupado com as erratas e as encadernações, um escritor difuso, um
artista plástico que esculpi livros, um tradutor-falsário... Mas, além disso, em termos
literários, há um exercício contumaz de apagamento do autor. O próprio Calvino explica
o seu trabalho:
tentar escrever romances ‘apócrifos’, isto é, aqueles que imagino
tenham sido escritos por um autor que não sou eu e que não existe,
foi tarefa levada ao extremo em Se um viajante numa noite de
inverno. Trata-se de um romance sobre o prazer de ler romances; o
protagonista é o Leitor, que por dez vezes recomeça a ler um livro
que, em razão de vicissitudes alheias a sua vontade, ele não
consegue terminar60.
Com isso, quem se dá ao trabalho de passar pelas páginas de Se um viajante...,
acaba por se tornar o centro da história, confundindo-se com o Leitor-personagem e
com ele peregrinando para concluir a leitura. Tal empreitada reforça o objetivo de
Calvino de construir ali um objeto literário onde não deixe suas impressões digitais, em
torno do qual não se vejam suas pegadas. Tal ofício é levado tão a sério que o romance
se desconstrói de trechos em trechos, reconstruindo-se em seguida, desprendendo novos
149
fios narrativos que precisam ser puxados. Em dado momento, o confuso livreiro
Cavedagna mostra ao leitor um parágrafo de um certo escrito:
Que importa o nome do autor na capa? Vamos nos transportar pela
imaginação para daqui a três mil anos. Sabe-se lá quais livros de
nossa época terão sobrevivido e quais autores ainda serão
lembrados. Haverá livros que continuarão célebres, mas que serão
considerados obras anônimas, como é para nós a epopéia de
Gilgamesh; haverá autores cujo nome permanecerá célebre, mas
dos quais não restará nenhuma obra, como é o caso de Sócrates; ou
talvez todos os livros remanescentes sejam atribuídos a um único e
misterioso autor, como Homero.61
Se um viajante... serve de aperitivo, mas Calvino também morreu e não pode
mais alimentar o debate. É necessário buscar outras lombadas na estante.
Em uma delas, onde se lê John Caughie, eu encontro um artigo de Edward
Buscombe que diz que a teoria do autor nasceu como uma política dos autores. “A
política, como indica a escolha do termo, foi polêmica no intento e significava definir
uma atitude para o cinema e para o curso da ação” (1981: 22). Ah! Mas ele se refere ao
cinema, à Política dos Autores, lançada por François Truffaut num texto publicado na
edição 31 dos Cahiers du Cinema nos agitados anos 6062. De qualquer forma, não se
pode ignorar que até mesmo os cineastas passaram a discutir estética e criação seguindo
a medida da autoria. A provocação de Truffaut causou discussão mundial tendo as
páginas dos Cahiers como arena principal. A idéia de uma política, de uma atitude
estética deliberada dividia os profissionais entre autores e filmadores, entre quem fazia
cinema e quem estava imerso na indústria do cinema...
Deixo Truffaut e o cinema de lado e esbarro no estudo que Lisandro Nogueira
(2002) fez sobre a teledramaturgia brasileira, mais especificamente sobre Gilberto
A justificativa foi transcrita no apêndice ao romance, mas sua primeira aparição se dá no Nuovi Quaderni
Italiani, publicado como o artigo “Il libro, i libri”, em Buenos Aires,1984.
61 Calvino (2002: 105)
62 O artigo foi intitulado “Une certaine tendance du cinéma français” e atacava certas produções francesas
tachando-as de literárias e não cinematográficas. Para Truffaut, um verdadeiro filme de autor traz algo
genuinamente pessoal do seu realizador na obra, e o material apresentado ao público é uma expressão da
personalidade do cineasta.
60
150
Braga. O volume que tenho nas mãos descreve as condições que caracterizam a
produção de telenovelas, tornando-a o produto audiovisual mais comercializado e
rentável do país. Produzidas em escala industrial, as telenovelas alcançam orçamentos
vultosos, contam com elencos estelares e um exército de técnicos e produtores. São
exportadas para dezenas de países e tal sucesso não impede o exercício de uma autoria.
Aliás, no Brasil, ao contrário do que acontece no cinema, são muito mais conhecidos os
autores das telenovelas do que os seus diretores... A tensão permanece: de um lado, os
que sepultam o autor, cuspindo sobre sua lápide fria; de outro, quem celebra a autoria,
quem afirma a necessidade da assinatura. Como no romance de Ítalo Calvino, a cada
livro que apanho, não chego ao final da história. Cada título me aponta caminhos por
onde me perco e me confundo. Preciso de um guia, de uma bússola...
151
5.3 A função autor
“Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta
cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta
cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um
touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se
perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo
centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro
com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam
tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos.
Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que
Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em
cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria
Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos
perdidos no tempo, esse outro labirinto”.
Jorge Luis Borges – O Labirinto
Para não se perder pelos corredores do labirinto do Minotauro, Teseu usou o fio
de Ariadne. Foi com ele preso nos dedos de uma mão que o guerreiro pôde deixar a
estrutura, deixando para trás o monstro derrotado. Jorge Luis Borges gostava muito de
labirintos e sempre que podia os encaixava nas paredes de suas histórias. Na epígrafe
acima, o escritor desfia as frases para atravessar a perdição. Michel Foucault gostava de
Borges e o lembrou no início de um livro seu. Cito também o argentino no começo
desta seção. E uso Foucault para me orientar no labirinto conceitual em que me meti.
Depois que Barthes anunciou a morte do autor, esse ocaso tornou-se objeto de
debates nos principais círculos críticos e literários. Uma resposta à altura do texto de
1968 chegará já no ano seguinte, quando da publicação de uma conferência dada por
Michel Foucault intitulada “O que é um autor?”63.
A intenção do pensador francês – ele mesmo dirá (2001: 294) - era investigar o
que havia por baixo do apagamento do autor. Isto é, o que poderia ser visto com o
anúncio da morte do autor. A partir desse questionamento, Foucault vai pensar sobre
que papel o autor exercia na literatura, sob que condições ele o fazia e que regras
atuavam nesse terreno. A resposta passa pela consideração de que há uma função autor,
A primeira publicação da conferência acontece no Bulletin de la Societé Française de Philosophie nº 3, de
julho-setembro de 1969, pp. 73-104. Já na década de 70, Foucault reapresentará essa mesma fala na
Universidade de Búfalo (EUA), acrescida de comentários, o que será publicado em 1979. No Brasil, o texto só
63
152
e que esta é uma das especificações possíveis de uma entidade múltipla como o sujeito.
Dessa forma, para Foucault, não basta apenas alardear que o autor morreu, mas sim
identificar o espaço vago com essa desaparição e observar o que resta ali. Esse percurso
obriga a refletir sobre as noções de “obra” e mesmo de “unidade” que a obra deve
conter sob o mesmo nome de autor. O que caracteriza uma obra? O que faz com que
certos escritos possam ser encaixados numa mesma rubrica? Anotações em cantos de
página podem ser consideradas como romances ou ensaios? Não se nega o interesse que
esses escritos ordinários podem despertar – Foucault cita notas de lavanderia de
Nietzsche, por exemplo -, mas seu status de obra. Michel Foucault chama a atenção
para o fato de que há diferenças sensíveis entre os escritos e que a autoria nem sempre
se manifesta neles, fato que leva a pensar numa autoria como função do sujeito. Neste
sentido, chega a pensar que o próprio nome do autor não é exatamente um nome próprio
como os demais. Ele não apenas um elemento num discurso - como um complemento
ou um sujeito-, mas tem uma função classificatória: a partir dele se pode reagrupar
textos, traçar características comuns, delimita-se um campo próprio para o autor. O
nome do autor funciona para
caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, o
fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer ‘isso
foi escrito por tal pessoa’, ou ‘tal pessoa é o autor disso’, indica que
esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra
que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente
consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida
de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber
um certo status.
Chegar-se-ia finalmente à idéia de que o nome do autor não passa,
como o nome próprio, do interior de um discurso ao indivíduo real e
exterior que o produziu, mas que ele corre, de qualquer maneira, aos
limites dos textos, que ele os recorta, segue suas arestas, manifesta o
modo de ser ou, pelo menos, que ele o caracteriza. Ele manifesta a
ocorrência de um certo conjunto do discurso, e refere-se ao status
desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura. O
nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não
está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um
chegará às estantes em 2001 no terceiro volume dos Ditos & Escritos de Michel Foucault, com organização
de textos de Manoel Barros da Motta. As referências a este texto seguem a versão brasileira.
153
certo grupo de discursos e seu modo singular de ser.
Conseqüentemente, poder-se-ia dizer que há, em uma civilização
como a nossa, um certo número de discursos que são providos da
função ‘autor’, enquanto outros são dela desprovidos. Uma carta
particular pode ter um signatário, ela não tem autor; um contrato
pode ter um fiador, ele não tem um autor. Um texto anônimo que se
lê na rua em uma parede terá um redator, não terá um autor. A
função autor é, portanto, característica do modo de existência, de
circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de
uma sociedade. (op.cit.: 273-4)
(A longa citação se justifica não só para evocar o sotaque foucaultiano, mas
ainda para fazer valer a função autor, na medida em que permite a emersão do nome do
autor na superfície do texto. À medida que convoco o próprio autor para vocalizar o que
escreveu, dão-se condições para que o nome do pensador revista-se de novos contornos.
A exemplo do funcionamento que ele mesmo diagnosticou).
Não apenas na literatura, mas também em outros campos, o nome do autor pesa.
Como uma grife, uma chancela, o nome não traduz apenas quem responde por aqueles
escritos. No Jornalismo, um texto de Paulo Francis não é apenas um conjunto bem
articulado de mordacidade, virulência e polêmica. É um texto de Paulo Francis. No
Jornalismo, uma reportagem de Joel Silveira não é uma matéria ordinária. É um
trabalho que tem a rubrica do legendário repórter. Da mesma forma, um quadro pintado
por Pablo Picasso é um Picasso, uma foto tirada por Sebastião Salgado alcança
notoriedade não apenas pela sua qualidade técnica, mas também pela história recente
que traz em seu bojo. Assim, o nome do autor deixa de ser complemento e torna-se
substantivo: o livro é um Rubem Fonseca, o poema é um Drummond, o romance é um
Proust, a tela é um Matisse...
É curioso lembrar que o nome do autor passa a ter mais visibilidade para que o
criador seja punido. Quer dizer, a assinatura do autor vai possibilitar que as instituições
identifiquem o indivíduo para que possam responsabilizá-lo por virtuais danos ou
154
transgressões. A assinatura é como uma impressão digital, traço da identidade. A
metáfora da impressão digital não é gratuita já que se trata aqui de criminalização ou
responsabilização penal por produtos de criação autoral. Diante disso, Foucault teria
nisso mais uma confirmação de sua hipótese sobre o caráter disciplinar das sociedades.
Essa tendência se mantém até hoje64.
Para Foucault, é possível reconhecer no autor quatro componentes distintos que
fazem-no exercer a função de autoria:
•
Os produtos de criação – textos, obras de arte, etc - são objetos de sua
apropriação. Ao estampar seu nome neles, o autor faz operar formas de
pertencimento sobre tais objetos;
•
Não se exerce a função autor de maneira idêntica e constante em todos os
discursos. Não há uniformidade nesse exercício, e tudo depende das épocas e das
modalidades dos objetos de criação;
•
A função autor não se forma espontaneamente tal qual a atribuição de um texto a
uma pessoa. Ela é resultado de uma operação complexa que constrói um certo
ser de razão que chamamos de autor. Para Foucault, o que faz de um indivíduo
um autor (ou o que no indivíduo é designado como autor) é a “projeção, em
termos sempre mais ou menos psicologizantes, do tratamento que se dá aos
textos, das aproximações que se operam, dos traços que se estabelecem como
pertinentes, das continuidades que se admitem ou das exclusões que se
praticam” (op.cit.:276-7). O autor é um ponto de reunião e dispersão, um vórtice
onde se estabelecem coerências criativas;
Tal orientação é tão introjetada no sujeito contemporâneo que o mesmo Foucault chegaria a dizer que o
anonimato literário é insuportável para os leitores, sendo aceito apenas como jogo, enigma (op.cit.:276)
64
155
•
Não se deve buscar o autor na pessoa do escritor, do artista ou do jornalista. Eles
nem sempre coincidem, e a função autor se efetua “na própria cisão – nessa
divisão e nessa distância (op.cit.: 279). Todos os discursos e produtos onde
opera a função autor contêm essa pluralidade de egos. Seria enganoso buscar
razões na pessoa do dramaturgo para justificar as razões do texto da peça, por
exemplo. Essa correspondência pode se dar ou não. A autoria não remete tão
somente a um indivíduo real, mas pode estar vinculada ao mesmo tempo a várias
posições-sujeitos que diferentes indivíduos podem vir a preencher.
É necessário ressaltar que, com a determinação do que é e de como opera a
função autor, Michel Foucault oferece contribuições importantíssimas para o estudo do
sujeito contemporâneo. Isso porque reforça o seu caráter múltiplo, clivado, dinâmico.
Ser autor é uma dimensão possível nas tantas que ser sujeito comporta.
Assim, o autor é o que vai poder explicar numa obra modificações, desvios,
transformações ocorridas entre um produto e outro.
O autor é, igualmente, o princípio de uma certa unidade de escrita –
todas as diferenças devendo ser reduzidas ao menos pelos princípios
da evolução, da maturação ou da influência. O autor é ainda o que
permite superar as contradições que podem se desencadear em
uma série de textos: ali deve haver – em um certo nível do
pensamento ou do seu desejo, de sua consciência ou do seu
inconsciente – um ponto a partir do qual as contradições se
resolvem, os elementos incompatíveis se encadeando finalmente uns
aos outros ou se organizando em torno de uma contradição
fundamental ou originária. O autor, enfim, é um certo foco de
expressão que, sob formas mais ou menos acabadas, manifesta-se
da mesma maneira, e com o mesmo valor, em obras, rascunhos,
cartas, fragmentos etc. (op.cit.: 278)
Para Foucault, com a função autor em cena, compreende-se um pouco melhor a
natureza multifacetada do sujeito contemporâneo e suas relações com os diversos
discursos. Deixa-se de perguntar como a liberdade de alguém pode incidir nos objetos
156
(nos textos e obras) para questionar de que formas o sujeito aparece na ordem dos
discursos, que papéis ocupa nos textos. “Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do
seu substituto) seu papel de fundamento originário, e de analisá-lo como uma função
variável e complexa do discurso”, sintetiza o pensador (287).
Em dezembro de 1970, Foucault voltaria a falar das relações entre sujeitos e
discursos em sua aula inaugural no Collège de France, intitulada “A ordem do
discurso”. Segundo ele, em toda sociedade, a produção dos discursos é controlada,
organizada, selecionada e redistribuída atendendo a uma rigorosa e complexa lógica de
controle. Entre os procedimentos incidentes, estariam técnicas de exclusão e de
rarefação. O autor seria um desses princípios que atuariam na produção discursiva. Não
a pessoa que escreve, pinta ou cria, mas o autor “como princípio de agrupamento do
discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”
(2001:26); o autor como alguém que “dá à inquietante linguagem da ficção suas
unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (28).
Foucault torna a dizer que não se trata de negar o indivíduo que executa as
operações físicas e mecânicas de escrever, desenhar ou criar; seu foco está na função
autor que essa pessoa permite funcionar a cada momento.
Todo esse jogo de diferenças é prescrito pela função do autor, tal
como a recebe de sua época ou tal como ele, por sua vez, a
modifica. Pois embora possa modificar a imagem tradicional que se
faz de um autor, será a partir de uma nova posição do autor que
recortará, em tudo o que poderia ter dito, em tudo o que diz todos
os dias, a todo momento, o perfil ainda trêmulo de sua obra. (idem:
29)
Na literatura, nas artes, no Jornalismo, o autor não é um corpo, um rosto ou uma
voz; é, sim, uma posição ocupada em tantas que o sujeito pode firmar. Aliás, tem-se
claro aqui que o sujeito é um lugar, uma instância, uma posição discursiva. A noção de
autor opera como função da de sujeito, e responde pela organização dos sentidos e por
157
uma certa unidade de textos e discursos, o que provoca o efeito de continuidade do
sujeito. Conforme frisa Eni Orlandi, a função autor não se limita a um pequeno conjunto
de produtores originais de linguagem. “Para nós, a função autor se realiza toda vez que
o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade,
coerência, progressão, não-contradição e fim” (1996: 68).
Ainda segundo Orlandi, a posição de autor se constrói à medida que se funda um
lugar de interpretação definido pela relação com o outro e com os demais discursos que
podem ser correlacionados. No final das contas, a autoria constrói e é construída pela
interpretação simultaneamente. Na terminologia da tradição francesa da Análise do
Discurso65, o autor surge graças a um efeito-leitor. Isto é, o autor se produz através d
“possibilidade de um gesto de interpretação que lhe corresponde e que vem ‘de fora’. O
lugar do autor é determinado pelo lugar da interpretação. O efeito-leitor representa, para
o autor, sua exterioridade constitutiva (memória do dizer, repetição histórica)”
(op.cit.:74-5).
Com isso posto, o sistema de escrita e leitura – ou de criação e recepção – fica
mais dinâmico, com lugares bem definidos e com uma estrutura menos hierárquica. Isto
é, o autor não é o centro do sistema, como queriam influentes camadas da crítica e da
produção artística. Nem mesmo o leitor assume o centro, a despeito do que pregou
Roland Barthes. Leitor e autor são posições ocupáveis, igualmente relevantes no
processo comunicativo, mutuamente influenciáveis, interdependentes e complementares
nas suas constituições.
Matriz conceitual e operativa dos estudos lingüísticos a qual Eni Orlandi se filia. Surgida em 1969 a partir de
estudos de Michel Pêcheux, teve continuidade com pesquisadores como Françoise Gadet, Denise Maldidier,
Paul Henry, Silvain Auroux, Régine Robin e Jacqueline Authier-Revuz. No Brasil, além de Orlandi, destacam-se
Pedro de Souza, Freda Indursky, Mônica Zoppi-Fontana, Sírio Possenti e Solange Galo.
65
158
5.4 Autoria como exercício de estilo
“O estilo é o próprio homem”
George de Buffon, naturalista francês
“Agora, sim, você está pronto para devorar as primeiras
linhas da primeira página. Está preparado para reconhecer
o inconfundível estilo do autor. Não, você não o está reconhecendo.
Mas, pensando bem, quem afirmou que este autor tem estilo
inconfundível? Pelo contrário: sabe-se que é um autor que muda muito
de um livro para outro. E é justamente nessas mudanças que se pode reconhecê-lo”
Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno
Fazer valer a função autor não é apenas ceder o nome para que ele carimbe a
lombada de um livro e dê ao escrito uma paternidade. A autoria deve revelar um estilo.
O exercício do estilo, de um semblante para o texto pode se constituir num dos
procedimentos necessários para marcar uma autoria, seja na arte ou no Jornalismo.
Mas o estilo no cotidiano jornalístico é diferente do na literatura, por exemplo, já
que contém muito mais limitadores técnicos e estéticos. Para exercer um estilo na
reportagem, o profissional parece ter um espaço mais estreito, com menos margem de
manobras textuais, dadas as condições em que se inscreve o Jornalismo como prática
social. Entretanto, o que se toma aqui por estilo?
Erik Nils Enkvist (1974) aborda o estilo como escolha e desvio. O estilo opera
enquanto escolha em três níveis: na gramática, em termos estilísticos e em termos nãoestilísticos. Isto é, quando se escreve, a escolha de uma construção gramatical em
detrimento de outra ajuda a marcar um estilo de texto. Claro que há limitações neste
primeiro nível, principalmente quanto às regras da língua, a correção de seu uso e
aplicação, bem como a inteligibilidade dos enunciados que se quer lançar adiante.
Mas se é fácil identificar tais opções na superfície da língua, na sua pele
gramatical, nas outras camadas, resulta mais complicado, adverte o próprio Enkvist.
Mesmo assim, ele arrisca uma distinção: à primeira vista, uma escolha estilística se dé
entre “coisas que dificilmente significam o mesmo, ao passo que escolha não estilística
159
envolve seleção entre significados diferentes” (op.cit.: 34). Assim, para dizer o mesmo,
o escritor pode lançar mão de diversos recursos que dêem conta do que pretende. “Não
sabia que tu tinhas tantos motivos para não fazê-lo” pode ser dito como “Ignorava que
havia razões para tal”, por exemplo, ou qualquer outra glosa.
A primeira tentação que se pode sucumbir agora é considerar que ter um estilo é
falar um dialeto próprio. Entretanto, entender o estilo como expressão tão somente
individual reserva pelo menos o problema de que alguns traços apontados como
estilísticos nem sempre são totalmente individuais, e sim coletivos, compartilhados por
grupos. São jargões, gírias ou terminologias técnicas, incorporadas pelo indivíduo.
Desta forma, identificar um estilo torna-se uma tarefa mais trabalhosa do que se
supõe inicialmente. Enkvist estabelece que, para isso, deve-se organizar um conjunto de
obras que sirvam de referência para se encontrar a norma da qual um certo texto difere.
Por comparação, pode-se observar o que é expressão individual, estilo propriamente
dito e seguimento de padrão textual.
Toda análise estilística baseia-se fundamentalmente na comparação
de um texto a uma norma contextualmente relacionada. Tais normas
podem ser explicitamente circunscritas ou permanecerem
implicitamente encerradas na experiência pretérita do falante,
escritor ou crítico literário. Uma referência ao contexto torna possível
a definição de uma norma sem referência inicial ao estilo, que ainda
permanece desconhecida a essa altura do processo. O presente
enfoque, portanto, evita a circularidade inerente a algumas teorias
de estilo. Os itens lingüísticos dependentes do contexto funcionam
como marcadores de estilo. Marcadores de estilo que ocorram no
mesmo texto formam uma série estilística para esse contexto. Uma
série estilística partilhada por um grande número de textos
contextualmente correlacionados forma série estilística maior, que
ocorre dentro de uma escala contextual maior. Os marcadores de
estilo consistem em tendências estatísticas ou em itens mutuamente
exclusivos. (op.cit.:71)
Assim, o estilo é desvio, é aquilo que se destaca do homogêneo, é diferença.
Contraria o padrão, fazendo viger parte de suas regras constituintes. Isto é, um escritor
precisa submeter-se a certos elementos definidores do conto para, na escritura da
160
história, poder imprimir aquilo que lhe é peculiar, particular, próprio, diferenciando-se
dos demais contistas. Em “Some effects of motivation as sttyle of encoding”66, Charles
Osgood define estilo como “o desvio de um indivíduo de normas para situações em que
ele esteja codificado estando esses desvios nas propriedades estatísticas daqueles traços
estruturais para os quais exista algum grau de escolha no seu código”. Seguindo esse
entendimento, um jornalista só empreende um estilo na medida em que encontra
espaços preciosos dentro da estrutura da reportagem para reportar os fatos de uma
maneira característica, sensivelmente diferente da maneira usada por seus colegas. Seu
texto não deixa de ser jornalístico, não ignora seu compromisso de informar, não
contraria a preponderância da fidelidade aos acontecimentos. Mas reporta de uma forma
distinta, diferenciada.
José Lemos Monteiro (1991:12) vai insistir no fato de que todas as acepções do
termo estilo67 convergem para o plano da linguagem. É nela que o estilo se realiza. Em
última instância, ele seria “uma forma peculiar de encarar a linguagem com uma
finalidade expressiva”. Atender a essa finalidade é, nos dizeres de José G. Herculano de
Carvalho68 - lançar mão de um conjunto de características formais adequando o
instrumento lingüístico aos propósitos para os quais o texto foi produzido. Com isso,
fica mais claro que ter um estilo não é apenas dizer o que se quer, da forma que bem
entender. Mas, sim, inscrever-se numa ordem do discurso, submeter-se a algumas
regras, fazer determinadas escolhas de forma, de maneira a afastar-se da norma. É na
tensão entre atender a norma e se distanciar dela – não perdendo de vista a adequação
do texto à ocasião e ao propósito que lhe deu origem - que se consegue marcar um
estilo, deixar marcas. Vou mais longe: deixar impressões digitais. Quer dizer,
Artigo publicado em Style in Language e citado por Enkvist à p. 40 da obra que nos serve de referência.
Estilo pode ser entendido como elemento idiossincrático (um conjunto de traços próprios da
personalidade de quem escreve), como técnica expositiva (tudo aquilo que ajudaria a tornar o texto
reconhecível e pertencente a alguém) ou como realização literária (execução universal de uma expressão
particular).
66
67
161
empreender um estilo é uma manifestação do singular, do individual, do pessoal. É uma
evidência da subjetividade. No Jornalismo, o estilo do repórter segue na contramão da
objetividade, debate-se com o estilo perpetrado pelos manuais de redação, que
padronizam e normatizam. O estilo é a peculiaridade do contador dos fatos, a voz de
quem reporta o acontecimento, o sotaque da testemunha da História.
Othon M. Garcia (1985: 103) dirá que o estilo é “tudo aquilo que individualiza
obra criada pelo homem, como resultado de um esforço mental, de uma elaboração do
espírito, traduzido em idéias, imagens ou formas concretas”. No Jornalismo, “a procura
da ênfase através da posição das palavras no texto, nos títulos ou manchetes, constitui
preocupação constante de redatores e repórteres” (op.cit.:265). Mas o estilo jornalístico
não se restringe apenas à fixação de uma sintaxe ou na sobrevalorização da clareza
como elemento textual. Na próxima seção, trato disso com mais atenção, mas antes é
necessário alinhavar alguns pontos.
Se o estilo revela um caráter para o texto, é preciso ter em mente que ele pode
ser um desdobramento do caráter do escritor. Ele pode ser. Não necessariamente é. Não
há um compromisso inescapável de sê-lo, mas pode se contagiar pelo autor. O estilo é
uma expressão do pessoal, do particular, por essa razão é o oposto de qualquer arroubo
de objetividade ou neutralidade. Nas ciências e no Jornalismo, essa distinção alcança
bastante relevância porque constitui um franco golpe contra um dos pilares mais caros
de suas constituições. Golpeia, mas não derruba. Trinca, provoca fissuras.
Estilo não é o mesmo que autoria, mas um subconjunto dela. O estilo é uma
condição de existência da autoria, sua forma mais bem acabada de visibilidade e
evidência. Um estilo é um olhar manifesto no texto, na fotografia, nas artes. É um eco
do sujeito, resto de uma voz que ecoa e que por vezes se perde. A autoria é mais que o
estilo; é o exercício de um estilo. Isto é, para ser autor, é preciso fazer operar um estilo,
68
Teoria da linguagem: natureza do fenômeno lingüístico e análise das línguas. Coimbra: Atlântida, 1973
162
fazer funcionar um semblante, um aspecto só seu. Por isso, insisto na expressão exercer
um estilo. Porque é um empreendimento, uma iniciativa, uma ação deliberada, resultado
de uma vontade, de desejos.
Se o sujeito contemporâneo não é centrado, nem é mesmo a origem do que fala e
escreve; se ele é uma posição de discurso; se ele é dinâmico e multifacetado, habitado
por fantasmas; e se a autoria lhe é uma função, o estilo é um exercício, uma operação
constituinte dela. O estilo é um gesto consciente de que se pode ser único, de que se
pode ser distinto dos demais. Tem correspondência com o sujeito a quem é reconhecido
porque é resultado de muitas de suas ações.
Escrevi há pouco que o estilo não é o mesmo que a autoria, mas um subconjunto
dela. O que significa dizer também que o estilo é a forma como a autoria se apresenta,
como se mostra a sua estética e a sua interface gráfica, visual. O que aparenta ser um
elemento único a quem dirige um olhar ao produto, seja ele um texto, uma reportagem,
uma obra de arte. Que isso não nos confunda e faça crer que o estilo é uma aura. Pois
não o é. O estilo é um rastro visível, sondável da passagem de um sujeito por alguma
forma de expressão artística ou comunicacional. Por isso, é que é preciso entender o
estilo como um exercício, uma atitude, enfim, algo a se exercer. Para ser autor, é
necessário marcar um estilo, deixar traços do que podem vir a se tornar marcas para
novos padrões. Assim, no Jornalismo, para ser autor na reportagem, é preciso que haja
uma preocupação em contar os fatos de maneira não-automatizada, com margens que
permitam reportar os acontecimentos a despeito de qualquer clausura que um manual de
redação de empresa possa impor. Na reportagem, a autoria restitui os sujeitos no
processo de comunicação: primeiro porque compreende o leitor como uma instância de
alteridade-complementaridade na definição da identidade discursiva de quem escreve;
depois porque resgata o autor como jornalista, narrador da contemporaneidade.
163
Se o sujeito fosse um rosto, a função autor seria seu reflexo no espelho, uma
imagem projetada. Esta superfície de vidro e prata que reflete o rosto é imperfeita, sofre
ação de elementos exteriores e deforma, duplica, contorce a imagem do rosto. A função
é uma projeção do rosto, um desdobramento daquela fisionomia. O rosto também se
move, mobiliza músculos, quase nunca é o mesmo. Avançando na metáfora, perceber o
estilo é ver como a imagem refletida no espelho se penteia diante de si. Isto é, o estilo é
como se mostra o pentear, como a mão se comporta, como os cabelos caem para o lado.
Mas e o espelho, o que ele é na metáfora? O espelho é o texto, a obra onde se vê a
autoria e o estilo, onde eles se imprimem.
164
5.5 Estilo e Autoria no Jornalismo
“... este é o momento (na história da cultura ocidental)
em que aqueles que buscam a realização por meio do papel
não são apenas indivíduos isolados, mas também coletividades:
seminários de estudo, grupos operacionais, equipes de pesquisa,
como se o trabalho intelectual fosse demasiado desolador
para ser enfrentado solitariamente. A figura do autor se tornou plural
e se desloca sempre em grupo, porque ninguém pode
ser delegado a representar ninguém...”
Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno
“O autor tem autoridade e o leitor precisa dele não como uma
pessoa, como o outro, como um herói, mas como um princípio
ao qual cumpre adequar-se(...) O autor deve ser compreendido,
acima de tudo, a partir do acontecimento da obra, em sua
qualidade de participante, de guia autorizado pelo leitor”
Mikhail Bakhtin – Estética da criação verbal
Certamente, é mais fácil identificar na literatura ou nas artes um estilo, um rosto.
No Jornalismo, uma atividade técnico-profissional, há menos espaço para manifestações
da subjetividade, graças a alguns dos conceitos que se cristalizaram com o tempo e o
aumento da complexidade do mundo jornalístico. É evidente que em colunas de jornal e
revista, em programas personalizados de radiodifusão ou em espaços opinativos –
inclusive as charges -, fica mais nítido perceber as marcas de uma personalidade, de
uma certa subjetividade. Entretanto, na maioria dos produtos jornalísticos oferecidos ao
público, existe uma tentativa deliberada de calar os sujeitos que reportam em detrimento
de uma suposta possibilidade de os fatos falarem por si mesmos. Nas redações, nos
estúdios e nas ruas, o repórter deve desaparecer em nome da notícia. Para isso, criaramse procedimentos técnicos, justificativas éticas e mesmo desculpas estéticas para a busca
do que se convencionou chamar de objetividade jornalística. Assim, desenvolveu-se o
Jornalismo nas grandes praças mundiais – e por extensão, o brasileiro.
Os apóstolos dessa orientação têm razão quando afirmam que a notícia é mais
importante do que seu narrador. Entretanto, não se pode esconder o fato de que notícias
são relatos sobre coisas, situações e pessoas feitos por pessoas inseridas em contextos
históricos. Mais: não se pode ignorar que Jornalismo e comunicação são atividades e
165
processos sociais, envolvendo sujeitos históricos. Esse argumento isolado já traria boa
carga de munição num debate acerca da objetividade, mas prefiro não retornar às
discussões do Capítulo 2. Interessa agora mapear como o estilo é entendido no
Jornalismo, como se manifesta e sob quais circunstâncias permite a inscrição de uma
autoria na reportagem.
A primeira parada obrigatória é o ensaio de Alceu Amoroso Lima onde se
ilumina o Jornalismo como gênero literário distinto de seus parentes e contraparentes da
literatura. Um gênero literário “é um tipo de construção estética determinada por um
conjunto de disposições interiores em que se distribuem as obras segundo as suas
afinidades intrínsecas e extrínsecas” (1990:33). O Jornalismo reuniria um conjunto de
aspectos de uma constituição única o que o credenciaria a uma condição de gênero
específico. O primeiro traço de distinção do Jornalismo é o apego pela informação,
afirma o ensaísta. A formação da opinião pública, a atualidade e a objetividade seriam
outras características desse gênero.
A objetividade é outro traço natural do Jornalismo, como gênero
literário. O importante é manter o contato com o fato. Tudo mais
deriva daí: a informação do fato; a informação pelo fato; a
atualidade do fato; o estilo determinado pelo fato. O fato, o
acontecimento é a medida do jornalista (op.cit.: 65).
Entenda-se, então, objetividade como foco nos objetos, nas coisas, nas situações
exteriores ao narrador. A objetividade de Alceu Amoroso Lima é uma preocupação do
profissional que tem por devir repassar à sociedade o que acontece no mundo. Tal
objetividade junto às demais qualidades já mencionadas determinariam os elementos
formadores de um estilo jornalístico, dirá o autor. Este é condição preliminar para um
estilo do jornalista. Entretanto, o profissional deve atender ao primeiro para que possa
manifestar o segundo. Para Amoroso Lima, o estilo é conseqüência e não causa, e
melhora à medida que deixa o plano consciente para um “substrato da personalidade”.
166
Logo, o estilo é um modo de ser e não algo em si mesmo. A concepção tem acento
naturalista, quase biológica, pode-se perceber.
Numa oposição ao beletrismo ou mesmo às experimentações literárias, o estilo
jornalístico estaria fortemente marcado por um sotaque coloquial, cotidiano, comum.
O estilo comum precede o estilo próprio. É uma preparação para
aquele. E é uma das justificativas da existência de gêneros literários e
não de sua fusão num gênero único (...) É o estilo comum que exige
do jornalista precisão de termos (...) O verbo preciso será sempre a
exigência comum do estilo jornalístico. É preciso que a palavra
corresponda ao fato e seja o mais transparente possível,
precisamente para revelar e não esconder o fato (...) Mas um
jornalista, mesmo que o seu objeto seja impreciso, tem de ser preciso
em seu estilo (...) A concisão é uma conseqüência da precisão. O
modo melhor de ser preciso é ser conciso: empregar o menor
número de palavras, embora sempre as palavras mais adequadas.
Não é qualidade específica do jornalista. Mas o é do Jornalismo
(idem: 68).
Assim, o estilo jornalístico está a serviço do compromisso de informar. Para
Amoroso Lima, o bom profissional escreve rápido – porque deve se ater ao
acontecimento do dia -, escreve com precisão e de maneira concisa – para informar com
exatidão -, narra com clareza – porque precisa disseminar a informação ao máximo - e
forma a opinião pública com honestidade.
Resumindo: o estilo jornalístico se pauta por rapidez, concisão, clareza, exatidão
e cultura geral, atributos racionais que conformam a atividade sob o que o autor chama
de “têmpera intelectualista”. O jornalista dissipa a confusão na medida em que traz a
informação; coloca ordem no caos informativo; ele organiza os fatos em manchetes por
sua relevância e alcance, ineditismo e atualidade.
O Jornalismo é uma atividade racional, que permite o sentimento, mas determina
que a inteligência domine a emoção (69-70). Mas como disse o autor, o estilo comum é
condição que antecede o exercício de um estilo pessoal:
167
Se o estilo comum do Jornalismo exige certas condições intrínsecas e
rigorosas, já o estilo próprio admite, como sempre, a máxima
liberdade. Preenchidas as condições comuns – precisão, concisão,
clareza, cultura – então a liberdade, em vez de ser condicionada
pelo gênero, é uma exigência dele mesmo e da condição do
próprio jornalista, que é um artista como outro qualquer. Essa
característica do estilo próprio passa então a ser a própria afirmação
da personalidade, aquilo que faz com que um jornalista seja
diferente do outro e constitua o seu mundo à parte, o seu estilo
próprio. (...)
A afirmação da personalidade pelo estilo é, pois, a exigência
máxima do verdadeiro jornalista. E, neste terreno, cada qual é o seu
próprio guia. Se o jornalista, preocupado demais com o estilo comum
da profissão, deixar na sombra o seu estilo próprio, terá falhado,
como falhará aquele que sacrificar o comum ao próprio. Um não
entrará, sequer, no recinto. O outro, dele sairá... (71-72)
É na satisfação do estilo comum do Jornalismo que o repórter encontra espaço e
condições para manifestar sua maneira de reportar os acontecimentos. Insisto aqui:
referimo-nos até então à reportagem, ao material noticioso e não ao opinativo. Como as
modalidades textuais do Jornalismo opinativo são a expressão de pontos de vista
pessoais ou coletivos, como elas se concentram na tomada de partidos e na difusão de
idéias (em detrimento de relatos de fatos), o exercício do estilo no Jornalismo opinativo
segue outras regras que não me interessam neste estudo. Trata-se aqui apenas da autoria
e do exercício do estilo na reportagem jornalística.
Para Juarez Bahia, a reportagem “só se esgota no desdobramento, na
pormenorização, no amplo relato dos fatos. O salto da notícia para a reportagem se dá
no momento em que é preciso ir além da notificação” (1990:49). Assim, é na
reportagem que o ato de narrar irá encontrar no sujeito narrador a sua sustentação maior,
o suporte que vai dar ao relato a força, o envolvimento e o alcance das grandes histórias.
O detalhamento das situações, os questionamentos pertinentes e a interpretação dão ao
texto “uma nova dimensão narrativa e ética”.
Na reportagem e no Jornalismo, estilo se remete à forma de escrita, mas também
ao modo de ser do veículo de comunicação, lembra Bahia. Estariam em jogo, então, não
168
apenas a linguagem, a personalidade, o ritmo dos textos e as técnicas redacionais, mas
também a angulação das matérias, o lugar de onde se fala. Incidem também aspectos
idiossincráticos, corporativos, ideológicos e influências histórico-contextuais. O estilo
assume um papel diferente do desempenhado na literatura: no Jornalismo, não é uma
qualidade, mas uma necessidade, uma condição para tornar os textos mais legíveis, mais
compreensíveis e – por que não? – mais agradáveis. Por essa razão, o estilo jornalístico
estabelece pontes ligando-se a outros estilos, como o literário, por exemplo. Entretanto,
o estilo jornalístico é próprio
não por ser original, e sim por ser a linguagem prática da notícia. Ao
contrário do livro e da literatura – no seu sentido clássico -, o
Jornalismo não é campo de prova para teorias de estilo. O estilo
jornalístico tem uma dinâmica própria, que é a da linguagem
comum das pessoas adaptada ou traduzida segundo normas de
redação que não violam o seu significado. Assim, o lead – que se
insere nas mudanças que ocorrem na comunicação coletiva desde
a II Guerra Mundial – não exclui definitivamente o nariz-de-cera, a
introdução ou a apresentação da matéria. (...) Como padrão de
linguagem, o estilo jornalístico se aperfeiçoa beneficiado pela
energia e dinamismo dos meios, e mais rapidamente que o estilo
literário, por exemplo. (op.cit.: 83)
Na compreensão de Juarez Bahia, os veículos não devem aprisionar os
repórteres em camisas-de-força estilísticas, mas as restrições editoriais se justificariam
nos casos de abusos da linguagem, vícios e imprecisões que comprometam o produto
jornalístico. “A racionalização e a padronização no estilo do Jornalismo nada mais
representam que uma ordenação de critérios básicos, sem os quais práticas rotineiras da
informação ficariam confusas, redundantes ou ruidosas” (idem: 84-5). As normas
fixadas para a redação têm por objetivo alcançar uma unidade no produto polifônico,
garantir legibilidade aos textos e dar ao veículo uma identidade discursiva.
Poder-se-ia até concordar com as prescrições do autor caso as empresas
jornalísticas – pelo menos as maiores no mercado brasileiro – mantivessem essas
preocupações no foco de seus manuais. E caso os resultados da eficácia dessas novas
169
gramáticas jornalísticas não sacrificassem a diversidade textual e não tolhessem a
criatividade dos narradores. O que se percebe nas últimas duas décadas é que o texto
jornalístico nacional automatizou-se, encolhendo em conteúdo e empobrecendo na
diversidade de sua forma de apresentação.
Uma olhadela nos manuais de redação e estilo mostra que eles não apenas
orientam procedimentos internos e unificam a grafia de expressões, mas tentam
padronizar os textos, sugando-lhes a identidade, cobrindo-nos com um manto de
homogeneidade69. Uma edição de Veja, por exemplo, pode ser lida como se fosse escrita
por um único redator do início ao fim. Claros prejuízos à qualidade do texto, já que a
polifonia constituinte do discurso jornalístico se esvai, a originalidade é cerceada e até
mesmo o prazer da leitura pode ser sufocado.
Apesar dessas conseqüências, a sétima edição do Novo Manual da Redação, da
Folha de S.Paulo, por exemplo, coloca-se como a mais flexível já editada e com menos
prescritivismos. Mesmo assim, segue os passos dados em seu surgimento em 1984,
trazendo não só regras de estilo, mas uma “uma concepção de jornal” (1992:7). A
flexibilidade alardeada pode ser observada, por exemplo, no verbete Objetividade. Se
nos anos 80, o manual orientava que os repórteres da Folha perseguissem a objetividade
em seus textos, agora, o volume é enfático em negar sua existência (op.cit.:19).
O manual do concorrente - O Estado de S.Paulo – nega que sua função seja
tolher a criatividade dos jornalistas ou aplicar-lhes impedimentos. “Seu objetivo é claro:
definir princípios que tornem uniforme a edição do jornal” (1990:11), tratando de “todas
as questões de estilo consideradas fundamentais para a obtenção de um texto elegante e
correto”, alertando para “formas pobres ou viciosas de redação”, “redundâncias
69 Jacira Werle Rodrigues (2003) afirma que são poucas as orientações específicas para a reportagem
enquanto gênero. “A grande maioria das normas refletem ditames universais do jornalismo, adaptados ao
linguajar, aos termos de cada manual” (p.106). Em seu estudo, ela verifica que é possível, mesmo no
jornalismo diário, empreender construções autorais nos textos jornalísticos.
170
comprometedoras” e “modismos absolutamente descartáveis” (op.cit.:83). Correção é
um aspecto relativamente fácil de ser aferido no texto, mas elegância é algo de fácil e
imediata apreensão por todos? Em outras palavras: é possível regulamentar a elegância
textual ou essa credencial é subjetiva e, portanto, exterior a qualquer manual de estilo?
[Nas revistas da Editora Abril, o mesmo problema pode ser identificado. No manual da
empresa (1990), “um texto não precisa de muito mais do que isso para ser lido com
prazer”: clareza na linguagem, precisão nas informações e bom gosto. Que critérios
palpáveis determinam se um texto tem bom gosto ou não?]
Luiz Garcia (1992), que organizou o manual de O Globo, lembra que os
primeiros trabalhos brasileiros dessa natureza surgiram nos anos 50 no Rio de Janeiro.
Muito inspirados nos style books norte-americanos, esses primeiros manuais chegaram
às redações do Diário Carioca e da Tribuna da Imprensa pelas mãos de dois jornalistas
muito preocupados com a modernização (leia-se racionalização) do Jornalismo local:
Pompeu de Souza e Carlos Lacerda, respectivamente. Passado meio século, os manuais
se multiplicaram nas estantes, não se limitaram apenas às redações e migraram também
para as livrarias, e o prescritivismo não só aumentou como também a arrogância na
avaliação de seus papéis. O manual da Zero Hora, por exemplo, não dita apenas regras
de redação e de estilo, mas também de ética jornalística. Nas orientações para a escrita,
extensivas a todos os jornais do Grupo RBS, o estilo dos textos deve se pautar pela
elegância (mais uma vez?) e precisão. Não apenas um conjunto de regras, o manual
alcança status de obra de referência: “Os capítulos reservados a normas de redação e
estilo não substituem o dicionário. Mas talvez sejam seu perfeito complemento”, afirma
entusiasticamente Augusto Nunes na apresentação do livro (1994: 9).
Embora haja um descolamento entre o que Juarez Bahia preconizou sobre os
manuais e a realidade que eles ensejam, as preocupações do autor permanecem: os
171
manuais das empresas não devem servir de camisas-de-força, mas são úteis na
unificação de alguns padrões gráficos e editoriais de jornais e revistas. Mas note-se:
padrões são diferentes de fórmulas. Os primeiros orientam, diferentes das fórmulas que
formatam, determinam, fecham-se enquanto únicos valores em vigor.
Juarez Bahia voltará à questão para dizer que, enquanto uma representação que
se pretende fiel à realidade, o estilo do Jornalismo está mais para uma literatura nãoficcional do que literatura no sentido clássico:
Não é a supra-realidade que interessa ao Jornalismo, e sim a
precisão verificável. Portanto, o que compõe a linguagem do
Jornalismo como cultura de massa é o precisável, o avaliável, o
nítido, o referenciável, o concreto sobre o abstrato, o direto sobre o
figurado, a ênfase do fato e do ato sobre a metáfora e da repetição.
Essa precedência do real sobre o supra-real está no estilo do
Jornalismo, no seu espírito (1990:91).
Tal qual os manuais de redação e estilo, o lead é criado para oferecer um padrão
racional das informações que precisam ser repassadas. É um sistema que funciona nas
notícias breves, nos anúncios mais imediatos. Entretanto, esvazia-se quando o relato vai
além do comunicado do acontecimento ou é insuficiente quando a história carece de
uma narrativa mais complexa, mais imaginativa e original. O lead é útil, mas deve ser
encarado como padrão e não fórmula. Serve a alguns propósitos, assim como nariz de
cera serve a outros. São formas de textualidade, recursos que podem ser lançados no
texto se adequados à ocasião e se não corrompidos em seu uso. “O estilo de notícia mais
livre do que o lead não exclui seriedade, densidade e relevância”, escreveu Bahia
(op.cit.: 91). Renunciar a um em detrimento do outro é uma questão de adequação, de
eficiência, de bom funcionamento textual. Enfim, uma questão de estilo.
Voltamos à temática da escolha. O estilo como escolha e como desvio da norma.
Se ele é, então, uma expressão individual, no Jornalismo, também carrega as
características de um veículo de comunicação e os elementos de uma tradição textual.
172
Segundo Sérgio Villas Boas, no Jornalismo, estilo é o homem, mas também o veículo.
Cada jornal ou revista tem lá “o seu estilo, seu modo de ser, sua linguagem. Não raro,
esta linguagem é definida pelo tipo de leitor que se quer atingir” (1996:39).
Dito isso, é trazido à cena mais uma vez o leitor, o público, o sujeito que está na
ponta da cadeia informativa. Volta à cena o sujeito que consome informação, o que nos
faz lembrar que o processo comunicativo é feito por sujeitos e não meramente por
manuais ou corporações midiáticas, leads ou normas editoriais. A comunicação, e em
especial o Jornalismo, envolve sujeitos que consomem informações e sujeitos que as
produzem e as disseminam. Por mais que se tente, não é possível fazer desaparecer os
sujeitos dessa equação. Por natureza, a atividade é humana e não pode prescindir dos
elos que a compõem. A cada tentativa de matar o autor, mais o estilo se afirma como
um eco da voz do criador. Não só na literatura, mas também no Jornalismo. Há tempos
se alardeia o fim da grande reportagem, mas ela resiste, mantém-se como um gênero
nobre, embora com espaços menos generosos que décadas atrás. Mesmo assim, continua
despertando o interesse do público e de valiosa parte dos jornalistas. Mesmo apesar da
crise anunciada, a reportagem sobrevive até mesmo nos setores mais conservadores da
mídia. Pensar a autoria na reportagem é refletir sobre as condições em que se faz
Jornalismo atualmente; é aferir como se constituem hoje o Jornalismo e a profissão de
repórter; é, de alguma maneira, não aceitar passivamente o desaparecimento do sujeito
numa atividade essencialmente humana.
173
5. 6 A narrativa da contemporaneidade
“As redações são laboratórios assépticos para navegantes solidários,
onde parece mais fácil comunicar-se com os fenômenos siderais
do que com o coração dos leitores. A desumanização é galopante"
Gabriel García Márquez, escritor e jornalista colombiano
“Há uma padronização absolutamente inaceitável. Tudo é igual,
as variações são mínimas. Falta personalidade. Cada matéria
deve ter o seu espírito. (...) Acho que é preciso uma nova reforma.
A que fiz transformou-se em fórmula e automatizou-se "
Pompeu de Souza,introdutor do lead no Jornalismo brasileiro
As tentativas de apagamento do sujeito no Jornalismo funcionam como sintoma
de um amplo processo de desumanização contemporânea. A pretexto da pressa e do
pouco tempo, os indivíduos estabelecem vínculos frágeis em suas relações, priorizam as
demandas pessoais e esquivam-se de projetos solidários e coletivos. Nos hospitais, os
pacientes são números anotados nos prontuários médicos; nas repartições publicas, são
senhas de atendimento; nos exames vestibulares, são números de inscrição; nas
redações, poucas vezes, as pessoas são algo mais do que cifras e estatísticas.
Para retomar o percurso que contemple o humano, a narrativa mudar. E deve
insistir no “compromisso com o humano ser”, afirma Dimas Künsch. Com isso,
a renúncia à reportagem, por parte da imprensa de qualquer
tamanho, representa a resposta o menos adequada possível aos
desafios impostos pela necessidade de uma visão de mundo e de
uma epistemologia aberta à complexidade aos encantos e mistérios
do mundo. Dentro e fora do Jornalismo. A vida e o mundo não se
cansam de mostrar que não cabem em, nem suportam, uma
pirâmide invertida. (2000:294)
Precisa mudar a narrativa e, antes dela, a mediação. Cremilda Medina insiste no
que denomina Epistemologia Pragmática, terreno de compreensão que articula
realidade humana e meio ambiente humanizado. “Quando um saber especializado se dá
conta das condições sociais e humanas em que este saber se realiza, não há como evitar
a crise de degenerescência e a conseqüente ruptura com a gramática construída em torno
das técnicas e das tecnologias assépticas” (1994:179). A crise com o pré-estabelecido
174
resulta numa nova consciência que respeita e cruza não só os saberes
institucionalizados, como também os conhecimentos cotidianos, míticos, artísticos e
religiosos. Assim, a Ciência deixa o centro do saber humano e se desloca para um pátio
mais amplo onde se relaciona com outros saberes. O jornalista que cobre eventos
científicos deixa de fazer divulgação para operar a relação entre diversidade de
conhecimentos existentes. O saber se assume plural provocando novas mediações.
Caminho natural se considerarmos o jornalista um produtor de sentidos atuante
na malha cultural da sociedade, como já definiu Medina (1991:193). Nesta condição, o
mediador-produtor de sentidos age como um “sujeito em relação com os sujeitos-fontes
de informação e os sujeitos fruidores de informação” (196). Esta reconfiguração desloca
o jornalista da posição de força primeira da produção de sentidos para um lugar que se
assemelha a um nó da teia informativa. Uma Epistemologia Pragmática corrói a
estrutura estratificada que impõe pautas e narrativas, dando espaço para uma disposição
mais democrática, respeitadora da diferença, relacionadora. A monologia é substituída
pela dialogia. Deixamos o esquema arborescente para assumir o rizomático70.
A escolha demanda um retorno reflexivo à narrativa. Medina lembra que uma
definição simples é a de que narrativa é “uma das respostas humanas diante do caos”.
Dotada da capacidade de produzir sentidos, ao narrar o mundo, a
inteligência humana organiza o caos em um cosmos. O que se diz da
realidade constitui outra realidade, a simbólica. Sem essa produção
cultural – a narrativa – o humano ser não se expressa, não se afirma
perante a desorganização e as inviabilidades da vida. Mais do que
talento de alguns, poder narrar é uma necessidade vital. (...) Ao se
dizer, o autor se assina como humano com personalidade; ao
desejar contar a história social da atualidade, o jornalista cria uma
marca mediadora que articula as histórias fragmentadas; ao traçar a
poética intimista, que aflora do seu e do inconsciente dos
contemporâneos, o artista conta a história dos desejos. Da
perspectiva individual, sociocomunicacional ou artística, a produção
simbólica oxigena os impasses do caos, da entropia, das
desesperanças, e sonha com um cosmos dinâmico, emancipatório
(2003:47-48)
175
Para ultrapassar os escaninhos classificadores da sociedade pós-moderna, só
mesmo tecendo uma narrativa contemporânea que se alimente na mediação e na autoria.
A assinatura do autor atesta o pertencimento da obra, mas também denuncia em tom de
sussurro um lugar cultural de fala. O autor (o repórter) narra mergulhado no caldo
cultural de seu tempo. Quando lança seus relatos encontra do outro lado leitores também
autores. “O que parece fragmentado pode ser retecido na comunicação social”, conclui
Medina (op.cit.:143).
Como narrar é a questão, adverte Fernando Resende (2002), já que é no texto
que a mediação se processa. A preocupação é com o que chama de “narrativas
jornalísticas demasiadamente atrofiadas” – textos saídos de formas, reducionistas,
resultados de uma prática reduzida à técnica. Para Resende, refletir sobre a narrativa é
encarar o ato jornalístico como prática discursiva, o que permite pensar o Jornalismo
como um campo, onde sujeitos narram a outros sujeitos. É justamente o oposto do que
propôs a construção histórica do discurso jornalístico, que suprimia a figura do narrador.
Prevalece o sujeito da enunciação (que já nem mais sabe se é
jornalista ou a empresa em que trabalha), alguém que escreve, mas
não fala. Como no romance realista do século XVIII, em que o autor
“comporta-se, por vezes, como um deus sem corpo e sem culto e
autoritariamente exige fé no seu testemunho”. Nas narrativas
jornalísticas traçadas pelo texto das lógicas, somos privados do
contato com o sujeito do enunciado. Como mostra a história do
romance, esse fator impõe a condição de se aceitar a onisciência
do sujeito da enunciação, o que, no caso do discurso jornalístico, é
uma imposição raramente possível de se acatar, devido mesmo às
questões ideológicas e políticas amplamente vistas e estudadas no
campo do Jornalismo. A privação cria o paradoxo: como acreditar
na onisciência de quem, na verdade, é destituído da fala?
Se há narrativas atrofiadas no Jornalismo, também existem as que Resende
qualifica de “resistência”. Esses relatos servem de “provas” de que o narrador-jornalista
“é um lugar possível através do qual se pode pensar na existência de jornalistas (reais)
70
Empresto a metáfora dos mil platôs de Deleuze & Guattari (1995).
176
que possam e saibam construir narrativas”. Esse narrador que abre mão das fórmulas
para narrar numa outra perspectiva é o que me interessa aqui. Ele não só lança um olhar
diferenciado para o fato, mas também recebe sua imagem e tece-lhe uma trama com
novos pontos e nós. Como se faz um autor no Jornalismo? De que maneira a autoria se
manifesta na reportagem? Em que circunstâncias a narrativa da contemporaneidade se
efetiva? Estas são questões que passo a perseguir agora.
177
5.7 Condições para uma autoria na reportagem
“Como eu escreveria bem se não existisse!
Se entre a folha branca e a efervescência das palavras
e das histórias que tomam forma e se desvanecem sem que
ninguém as escreva não se interpusesse o incômodo tabique
que é minha pessoa! O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade
, a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento,
os truques do ofício: todos os elementos que tornam reconhecível
como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula
que limita minhas possibilidades. Se eu fosse apenas uma mão decepada
que empunha a pena e escreve... Mas o que moveria essa mão?”
Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno
A autoria é uma função da posição de sujeito. Quer dizer, não há um sujeito
centrado, monolítico, bem como a figura do autor não corresponde necessariamente à da
pessoa cujo nome assina a obra. Mais do que uma coisa em si, o sujeito é uma posição
de discurso a ser ocupada, um lugar de onde se diz (se escreve) algo. Como há
movimento nas mais diversas discursividades, os sujeitos são posições dinâmicas,
móveis, deslocadoras. Uma das funções ativas na condição de sujeito é a de autor, de
criador. Assim, para ser autor, é necessário mobilizar uma série de elementos que
propiciem os requisitos necessários – internos e externos ao sujeito – para ser tratado e
entendido como autor.
No Jornalismo, as condições para o exercício de uma autoria não são as mesmas
para a literatura ou qualquer outra atividade. Isso porque o Jornalismo dispõe de uma
natureza própria, de características, valores e conceitos constituintes que o tornam algo
distinto de qualquer outro campo de entendimento, atuação e tradução da realidade.
Entretanto, tal como na literatura, a autoria surge no Jornalismo (e assim se
mantém) como uma instância jurídica, um conjunto articulado para a identificação e
responsabilização dos pontos de partida de certos textos. Assim, quando alguém assina
um livro ou uma matéria de jornal, a sociedade tem a evidência de quem deve responder
por possíveis conseqüências da divulgação daquelas idéias, conceitos, versões. Ao
nominar o autor, tem-se não apenas o reconhecimento de sua condição de fonte da obra,
mas também a sinalização de quem deve receber posteriores contestações e queixas. A
178
assinatura é reconhecimento, é atribuição, mas também traz o ônus da responsabilidade
sobre a obra.
Uma metáfora sempre foi exaustivamente usada quando o assunto é autoria: o
autor tem a paternidade da obra, e como tal, deve zelar por seu fruto filial, deve se
responsabilizar por ele. O autor arca com as conseqüências de sua criação. Sejam
dividendos da exploração do objeto criado ou sanções e penalidades advindas da ampla
difusão de algo ofensivo. No Jornalismo, a preocupação com a repercussão da
divulgação de certos textos ou imagens é sempre manifestada, surtindo inclusive em
reprimendas judiciais ao veículo de comunicação ou mesmo aos profissionais
envolvidos. Assim, uma primeira característica da autoria no Jornalismo: ela é
entendida primeiro como indicador de responsabilidades. Um texto assinado
identifica com mais facilidade sobre quem devem recair cobranças e compensações
sobre prováveis litígios.
É evidente que – diferente de outras atividades de criação intelectual – o
Jornalismo é um campo de trabalho coletivo. Uma reportagem nasce pelo esforço de
diversos profissionais, do pauteiro ao editor, passando por repórteres, redatores,
ilustradores, fotógrafos e diagramadores. O resultado final é um complexo mosaico da
interferência de distintos sujeitos, em maior ou menor escala. Entretanto, convencionouse o entendimento de que a paternidade da reportagem é do repórter ou do redator com
quem dividiu a tessitura do texto. A natureza complexa e coletiva do trabalho
jornalístico dificulta a clara identificação de quem realmente é o autor da reportagem.
Em 1995, um ano antes de morrer, Perseu Abramo já manifestava preocupação com o
tema: “É tão grande a variedade de fatores e circunstâncias presentes na atividade
jornalística que a plena e cristalina identificação da autoria do que é divulgado constitui
a exceção, não a regra” (1997: 331).
179
Para analisar a questão, Abramo exorta que é preciso levar em conta as
diferenças entre o Jornalismo impresso e o feito para radiodifusão; que é necessário
atentar para as condições e o alcance da empresa para qual se está trabalhando e mesmo
os métodos que caracterizam o processo produtivo dentro da empresa. Para tanto,
Abramo faz uma criteriosa descrição das alterações que o produto jornalístico sofre
dentro do processo que antecede a sua publicização. Apesar dos empecilhos inerentes à
função, não se deve usar o caráter coletivo e difuso como “biombo para escamotear ou
dissolver responsabilidades pessoais e individuais”, reitera (op.cit.: 334). É
precisamente neste trecho que se percebe que a grande preocupação de Perseu Abramo
é a da responsabilidade pessoal sobre o trabalho jornalístico e suas implicações jurídicas
e éticas. Atento às tensões entre capital e trabalho, Abramo defende a tese da
responsabilidade pessoal no trabalho jornalístico a despeito da responsabilidade
sucessiva, que vigora atualmente nos andamentos processuais.
A autoria, então, é vista como um sistema de identificação e responsabilização.
A assinatura da reportagem não é a garantia do direito inalienável do jornalista-autor de
ter seu trabalho reconhecido. Pode funcionar mais como denúncia, como delação de
quem deve assumir os riscos do que foi escrito abaixo71.
Uma segunda característica da autoria jornalística é que ela se dá não na criação
intensiva, maciça, totalizante, como na literatura. Na ficção, o autor cria personagens,
situações, contextos, conflitos, cenários, profundidades psicológicas, sentimentos e
pensamentos. Se assim quiser, nada escapa ao autor na trama. Ele tem o seu domínio,
seu alcance é ilimitado, o tempo é contado pelos seus ponteiros. No Jornalismo, os
compromissos são mais rígidos e o controle não é total. Por conta de suas atribuições
Não estou eximindo a responsabilidade do autor sobre a obra. Pelo contrário: reafirmo isso. Porém, a
autoria não acarreta apenas ônus pelo seu exercício. E o que se percebe é que esta dimensão – a da
responsabilização – se mostra hipertrofiada em detrimento da que vê na autoria um reconhecimento,
atribuição de paternidade criativa. O assento jurídico da autoria é reforçado inclusive no inciso IV do artigo
5º da Constituição Federal: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
71
180
sociais, o jornalista se ocupa de relatar acontecimentos, narrar fatos mais proximamente
de como eles se deram. Não deve fazer ficção, pois o Jornalismo mantém um
comprometimento mais firme com o que se convenciona entender por verdade factual.
Neste sentido, o jornalista faz uma antificção, e tenta apreender o real, tocar o fato e
traduzi-lo da maneira mais clara, fiel e confiável ao seu público. O jornalista atua como
mediador entre os acontecimentos noticiáveis e os cidadãos que se interessam por
aqueles relatos.
Neste sentido, a autoria no Jornalismo se dá na mediação, nas complexas
operações profissionais de destacar elementos e versões importantes para a narração do
fato e na sua costura coerente, cujo resultado possibilite uma leitura daquele fragmento
de realidade. O repórter vai às ruas, colhe depoimentos e se cerca de condições que
atestem a ocorrência do fato. Apura, checa as informações, confronta falas, seleciona o
que julga indispensável para o entendimento geral da situação e tece uma trama que dê
conta dela. Na medida do possível. É justamente aí, nesta mediação, que se dá a autoria.
Em alguns casos, essa autoria fica mais nítida, mais aparente; em outros, não salta aos
sentidos. O que vai diferenciar uma matéria “mais autoral” do que outra é a emergência
mais clara de índices da mediação: sejam marcas discursivas próprias de um sujeito
(pronomes, elementos estruturantes de uma certa formação discursiva, etc.), seja a
impressão de um estilo de escrita (sustentado por algumas construções frasais ou
recorrendo a outros recursos estilísticos) ou ainda outras formas de identificação, que
veremos a seguir. De maneira grosseira, poderíamos dizer que o jornalista pode se
colocar mais ou menos numa reportagem, dependendo da autonomia que tenha em seu
trabalho, da adequação aos objetivos que conduziram a elaboração daquela matéria, do
contexto histórico-social. Se na literatura a criação é uma atitude poética, no Jornalismo,
181
o ato criador é diminuto, sutil, crivado e subsistente na mediação de que o profissional
se ocupa para transmitir da melhor maneira a informação.
Essas limitações a que o profissional se submete acabam atingindo também a
própria configuração da autoria como tal. Isto é, se a autoria depende de um exercício
de estilo, no caso do Jornalismo, serão precisos dois estilos: um que atenda às demandas
do Jornalismo em si e outro que possa ser atribuído àquele autor em especial. Eis mais
uma característica da autoria no Jornalismo: para ser autor na reportagem, é
necessário atender a dois estilos, um estrutural do Jornalismo e outro, pessoal.
Assim, o autor segue as orientações que as gramáticas jornalísticas indicam para se
fazer um texto de reportagem e, paralelamente, insere elementos que lhe são próprios,
singulares. Como se a mediação ocorresse em dois estágios, um mais amplo e outro
mais profundo.
Os compromissos advindos da função social jornalística e as conseqüentes
limitações à criação no texto fazem com que o repórter não se descuide do fato por
esmero do estilo, da forma. Não. Na atividade jornalística, tem preponderância o estilo
jornalístico sobre o pessoal. É necessário que o repórter atenda ao primeiro para que
possa permitir a emergência do segundo. Assim, na autoria jornalística, o exercício do
estilo não se desvia de seu objeto (narrar), mas sutilmente permite uma revelação do seu
narrador, o jornalista-autor. Por conseguinte, a autoria jornalística se dá num ponto
periférico, no estágio de exercício do segundo estilo, o pessoal, não no primeiro, já
que este é plano de imanência na narrativa jornalística.
É curioso observar que a marcação de um estilo em terreno jornalístico fez com
que muitos pensassem que o que se estava fazendo era literatura e não reportagem. Em
determinados casos, a escrita é tão esmerada que torna embaçadas as fronteiras entre um
182
país e outro. Os limites podem estar confusos, mas mesmo que sejam porosos, eles
existem. A tentação de considerar textos jornalísticos bem escritos e com estilo como
literatura parece ser uma forma de reacomodar cada esfera: deixar o Jornalismo com
uma suposta frieza no relato e dar à literatura tudo aquilo que não se confirma no
minifúndio das reportagens72. Contribuem para esse embaralhamento os muitos casos de
dupla militância, onde jornalistas tornaram-se escritores e onde grandes autores da
literatura foram forjados nas redações73. Nesta tese, estou tratando o estilo jornalístico
na sua forma no texto escrito, no conjunto de características estilísticas visíveis na
superfície textual, e não nas técnicas de apuração, por exemplo. Quer dizer, o estilo no
Jornalismo poderia ser observado também na etapa de investigação e coleta das
informações. Para destacar estilos nas técnicas de apuração, poderíamos recorrer ao
Gonzo Journalism, de Hunter S. Thompson, que transcende o ato de narrar e mescla o
próprio narrador ao seu processo74 (inclusive alterado pelo uso e abuso de drogas), ou
mesmo ao estilo do alemão Günter Wallraff, que faz do disfarce seu passaporte para a
notícia75.
Mas se o assunto é autoria, um termo da equação não pode ser ignorado: a obra.
Sim, porque, afinal, há autor sem obra? Não. Um autor só se credencia enquanto tal se é
público o resultado de sua criação, seja um quadro, um livro ou um crime. Existe
homicídio sem cadáver? Há assassinato sem vítima?
72 Dois exemplos apenas: em As religiões do Rio, João do Rio não é o cronista, mas o repórter que, numa
intensa série de reportagens publicada na Gazeta de Notícias em 1904, faz um inventário da fé na então
capital da República. Classificado como obra literária, ensaística e até sociológica, Os sertões é escrita a
partir do trabalho do correspondente Euclides da Cunha para o jornal O Estado de S.Paulo.
73 Alguns escritores que foram jornalistas: Edgar Allan Poe, Walt Whitman, Mark Twain, Jack London, Sinclair
Lewis, Edmund Wilson, Ernest Hemingway, Gabriel García Márquez, John Reed, Rodolfo Walsh, José
Saramago, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Eric Nepumeno, e a lista vai longe. Uma saborosa discussão
sobre o tema pode ser encontrada em “Quanto a literatura Americana deve ao bom Jornalismo”, artigo de
Luiz Carlos Lisboa na revista Jornal dos Jornais, nº 7, outubro de 1999, pp.17 a 19.
74 No Brasil, há um seguidor desta corrente: Arthur Veríssimo, da revista Trip, que vai muito além do que
freqüentemente iria um repórter convencional.
75 Foi assim que o repórter se infiltrou no Bild Zeitung para denunciar a invenção de notícias em Fábrica de
Mentiras; e foi assim que passou dois anos como o turco Ali Sinirlioglu, operário em situação degradante de
183
Neste sentido, para se definir o que é um autor no Jornalismo, é preciso tornar
claro o que é uma obra neste campo, como se forma a sua unidade e o que determina a
sua coesão. Detendo-se no terreno artístico, Michel Guérin (1995) estabelece uma
distinção entre obra e trabalho, opondo os dois termos. Para ele, a obra, entre outros
atributos, tem nobreza, é uma atividade desinteressada do espírito, diferentemente do
embrutecimento que cerca o trabalho. É claro que a obra também custa trabalho, mas
nem todo trabalho se conclui como obra. Eles não são sinônimos, mas mantêm
parentescos interessantes. O trabalho esgota as forças do homem. A obra imortaliza o
homem na medida em que interioriza o trabalho. “Se em certos pontos, a obra enquanto
tal se opõe ao trabalho, em outros aspectos ela vem a se confundir com ele. Existe
trabalho na obra; existe um trabalho da obra” (op.cit.: 24).
No Jornalismo, fica fácil distinguir que o trabalho preenche a rotina ordinária do
repórter e só mesmo uma parcela dos seus resultados – textos, imagens, sentidos – vai
se converter em obra. As numerosas atividades diárias de coleta de dados, entrevistas,
edições e escrituras, escolhas e descartes, hierarquizações e organizações de materiais
fazem parte do trabalho jornalístico. Não são as obras dele. Os frutos, os produtos
resultantes – um documentário, uma reportagem, um artigo, um conjunto de fotos, entre
outros -, esses sim, podem ser considerados obras jornalísticas. Isso se funcionarem
como peças que constituam unidades mais ou menos delimitadas e se satisfizerem
expectativas jornalísticas. Explicando melhor: embora atenda a demandas jornalísticas,
um bloco de notícias não constitui uma unidade porque é parte integrante de um todo
mais coeso e coerente que é a edição inteira do telejornal ou do radiojornal. Assim, este
segmento não pode ser considerado uma obra, uma peça em si. Uma fotografia pode ser
entendida como uma obra jornalística bem como um conjunto de fotos seguindo uma
sobrevivência, de discriminação e humilhação humana em Cabeça de Turco (ambos os títulos lançados no
Brasil pela Editora Globo).
184
mesma temática numa dada cobertura. O mesmo se aplica a uma reportagem isolada e a
série que forma com suas suítes. É por essa razão que escrevi há pouco que as obras
devem se comportar como “peças que constituam unidades mais ou menos delimitadas”.
Intentando descrever o direito autoral no Jornalismo, Manoel Joaquim Pereira
dos Santos vai perseguir uma conceituação de obra jornalística:
É a coexistência dos quatro caracteres fundamentais do Jornalismo,
ou sejam, a atualidade, a universalidade, a oportunidade e a difusão
coletiva, que caracteriza a obra jornalística como tal, distinguindo-a
das demais modalidades de comunicação coletiva, e das diversas
formas de transmissão de informações. (...) Desta constatação
decorre que nem toda produção intelectual constante de um
veículo, onde predominantemente são transmitidas mensagens
jornalísticas, constitui uma obra jornalística. Como tal será
considerada apenas aquela em que concorrem os quatro atributos
básicos acima mencionados. (1981:8)
Atendo-se aos conceitos da área, Santos ainda dirá que a obra jornalística é
factual, “já que tem nos fatos sua condicionante, distinta da obra de ficção, onde atua a
imaginação do autor” (op.cit.:173).
É necessário perceber ainda que a obra jornalística – para além de ter estatuto de
unidade e de submeter-se às gramáticas jornalísticas – não transborda em si qualquer
aura sacralizante como nas obras de arte. São reportagens, fotos, charges, programas
jornalísticos, apenas. Quando deixam de sê-los para se tornarem fetiches – como a
edição de Realidade que traz a reportagem de José Hamilton Ribeiro sobre a Guerra do
Vietnã, por exemplo -, convertem-se em algo a mais do que uma obra jornalística,
alcançando status de um clássico do gênero, operação que não me interessa aqui.
A obra jornalística, então, não sobrevive da própria sacralização, e não necessita
de um tempo maior de permanência. Como o Jornalismo vive o tempo de maneira muito
imediata e opera reiteradamente em atualização, a perenidade não importa para a obra
jornalística. Seu tempo é extremamente perecível, sua vida é volátil, de frágil duração.
185
Uma autoria no Jornalismo depende de uma compreensão diferenciada da obra76:
ela é mais ordinária, não é cercada de aura, sua permanência é ínfima.
Para exercer uma autoria é necessário reunir em si alguma legitimidade,
características que autorizem o indivíduo a apresentar-se na qualidade de autor,
destacando-se do relevo comum do anonimato. Do ponto de vista do jornalista, essa
legitimidade é a primeira condição a ser satisfeita para uma efetiva vivência
autoral na reportagem. Isto é, no momento em que o repórter atende a essa condição –
legitimidade – demarca-se um lugar institucional a partir do qual se pode narrar, de
onde se pode reportar os fatos. Esse lugar institucional é a instância de onde se diz, de
que ponto se conta os acontecimentos. Dessa forma, para termos uma autoria na
narrativa da contemporaneidade, é preciso um lugar de fala, um ponto de partida do
discurso.
A legitimidade vai poder assinalar no jornalista uma qualidade de narrador e um
vínculo institucional no campo do Jornalismo. Assim, para ser autor, é necessário ser
jornalista, repórter e estar desempenhando tal função profissional para algum veículo de
comunicação ou qualquer forma de difusão pública do objeto narrável: sou o repórter da
revista Veja, ele é o jornalista do The Times, etc...
A condição da legitimidade de um autor só é saciada em dois momentos:
primeiramente quando o narrador se manifesta como jornalista na qualidade de repórter
do acontecimento; e depois quando vincula a sua atividade a um veículo, entidade,
empresa ou empreitada jornalística. O primeiro momento coloca o narrador numa
posição social específica, esperada e autorizada a narrar: a do jornalista. O segundo
Uma distinção é necessária. Foucault vincula a obra ao autor, enquanto que Eni Orlandi atrela a obra ao
escritor e o texto ao autor. Segundo Orlandi, não se pode tomar como sinônimos os termos e essa razão já
instauraria a necessidade de uma distinção. Entendo a justificativa, mas não tenho a preocupação de
preservar o conceito de obra, com a aura que lhe competiria, a exemplo de Orlandi. Penso que o caráter
ordinário do Jornalismo ajuda a flexibilizar essa noção, e é sobre esses patamares que trabalho aqui.
76
186
momento é igualmente importante porque ele evidencia a intenção e o objetivo de dar
publicidade ao fato, de difundi-lo publicamente. Essa disseminação – o ato de tornar
comum, público – é uma essencial característica da obra jornalística e do próprio
processo jornalístico.
A necessidade de atender a esses dois momentos – o lugar profissional e o
institucional – satisfazem a primeira condição da autoria na reportagem, a que confere
legitimidade ao narrador. De forma prática, quando se lê uma matéria num jornal ou um
livro-reportagem, e se tem a identificação de um jornalista àquilo vinculado, temos a
fundação de um ponto legítimo de narrativa jornalística, um lugar de onde se pode (e se
aceita) narrar.
Em 11 de abril de 2001, os leitores do caderno Cotidiano da Folha de S.Paulo
depararam-se com um texto diferente em meio às notas que estão acostumados a
encontrar naquela seção de geral: a matéria contava quem era e como vivia o pedreiro
anônimo que teria subido numa torre de alta tensão no interior paulista para sabotar o
sistema energético. Na matéria, o repórter faz uma breve descrição da situação,
revelando que o personagem era um suicida potencial, depois de perder o emprego e a
namorada, e que não atentava contra o serviço público, apesar de ainda estar preso por
isso – artigo 265 do Código Penal. O repórter viajou a Sorocaba para entrevistar o
pedreiro e os demais envolvidos no caso, mas nada teria extraído dos seus depoentes se
não se apresentasse enquanto repórter e não dissesse a que empresa jornalística estava
vinculado.
O leitor, por sua vez, não aceitaria aquele relato como jornalístico se não o
tivesse lido num órgão de imprensa, se não tivesse encontrado aquela narrativa nas
páginas de noticiário e se não lesse logo abaixo do título “Ricardo Kotscho – Especial
para a Folha”. Esses índices é que ajudaram a credenciar tal texto como um relato
187
jornalístico, descrevendo certo fato, sendo legítimo narrador daquela situação. Eles é
que conferiram legitimidade à reportagem.
É evidente que não apenas isso torna a matéria um relato de autor. No caso, o
texto envolvente, o enlace final e todo o olhar dilacerante que Kotscho dirige ao
personagem engendram uma arquitetura discursiva diferente na página, distinta naquele
mar de notas breves e superficiais. A qualidade do texto e a perspectiva da narração dão
forma a uma outra condição necessária para a autoria: a capacidade.
Enquanto a legitimidade é algo que está fundado na lei, na razão ou na justiça, a
capacidade é uma habilidade, uma aptidão. Atributos que se revelam no exercício de um
estilo nas reportagens, pela originalidade, singularidade ou autenticidade que se
desempenha nos textos. A capacidade é uma segunda condição necessária para a
autoria, já que vai sinalizar elementos para além de um lugar autorizado de fala. Assim,
se o repórter demarca um ponto de partida do discurso jornalístico, ele aí sim pode
colocar uma voz, um timbre àquelas frases. Escrever um texto mais elaborado ou não,
estruturar de maneira criativa a matéria, lançar mão de recursos de outros gêneros
textuais, enfim, tudo isso e o que mais se inventar está a cargo do repórter, depende
dele, de sua capacidade.
A capacidade é uma condição para a autoria que privilegia a diferença e não a
repetição. Em termos estilísticos, o relato do repórter irá se diferenciar dos seus
concorrentes e semelhantes, buscando uma angulação nova, uma abordagem distinta,
um encadeamento outro. É importante frisar que a diferença aqui é na forma, no
envolvimento e no tratamento das unidades informativas, e não propriamente no
conteúdo. Isto é, não se espera um furo jornalístico, mas um novo texto sobre o mesmo
fato contado por outros narradores.
188
Para além de carecer de legitimidade, a autoria no Jornalismo pode se
apoiar ainda na capacidade/competência de bem narrar, de seduzir os leitores,
envolvê-los e convencê-los com os relatos apresentados.
Um exemplo no telejornalismo brasileiro: em fevereiro de 2001, o repórter
William Waack foi a Palmeira dos Índios, pequeno município alagoano que teve como
prefeito por dois anos o escritor Graciliano Ramos. Além de tentar resolver os
problemas de sua administração, o prefeito produzia extensos relatórios para o
governador, refletindo sobre a sua condição, suas dificuldades e a própria natureza da
governança pública. Bem capacitado, Waack vai exercer sua autoria na reportagem
quando pega esses documentos e faz um paralelo entre as preocupações do prefeito
Graciliano com as imposições da atual Lei de Responsabilidade Fiscal. Passados setenta
anos entre uma coisa e outra, o repórter costura os assuntos durante um bloco inteiro do
Jornal Nacional num dia de semana ordinário. O tema não é gratuito, ele está na pauta
do noticiário brasileiro, mas a abordagem é que faz a diferença, que deixa uma
assinatura, imprime marcas que são as da autoria.
Num artigo apresentado durante o Congresso da Associación Latinoamericana
de Investigadores de la Comunicación (Alaic) em abril de 2000, em Santiago (Chile), a
pesquisadora Roseméri Laurindo vai se preocupar com a rarefação da autoria no
Jornalismo brasileiro. Sob o título “Noção de autoria no Jornalismo esvai-se com
determinismo dos estudos”, o trabalho se refere a uma pesquisa maior que enfocou o
desempenho de alguns jornalistas e suas condições de produção profissional durante a
cobertura dos fatos que culminaram com o afastamento de Fernando Collor da
presidência da república. O trabalho do repórter Bob Fernandes, na época na revista Isto
É, mereceu atenção da pesquisadora porque foi diferenciado em comparação ao de seus
colegas de trabalho.
189
Essa capacidade de costurar as informações, de elaborar textos diferenciados, de
mostrar outros lados e outros ângulos é sinal de amadurecimento, segundo a
pesquisadora. Ela considera um “apagamento do sujeito como mecanismo de
desresponsabilização do jornalista”, mas pode haver algo mais ali:
No Jornalismo esta consideração poderia apresentar outros
contornos (...), pois o repórter abraça ou não sua condição de
sujeito, independentemente da realidade da inscrição desse
estatuto. Não que a autoria seja exclusiva condição de
responsabilidade, mas pode revelar certo grau de maioridade.
Como se quem assinasse o texto ‘se mostrasse’ ou ‘desejasse’ ser
mais responsável por aquilo que escreve. Outros permaneceriam
escondidos sob anonimato, evidenciando uma autoria difusa.
(2000:11)
Essa disposição depende de uma certa autonomia de ação do repórter, condição
confortável, mas nem sempre existente77. É trabalhando com autonomia que o jornalista
consegue ter uma margem um pouco maior de manobra para operar textos mais
pessoais, exercendo um estilo mais próprio. Como já disse anteriormente, isso não o
exime de satisfazer o que se convencionou chamar de estilo jornalístico. Não. O repórter
deve atendê-lo alcançando assim condições extras para deixar suas digitais autorais na
reportagem. Autoria requer certo grau de autonomia do repórter. Isso pode ser
conseguido com a passagem do tempo de atuação do profissional, com o aumento do
grau de confiança dos superiores hierárquicos, com a apresentação de um trabalho de
qualidade que atenda às expectativas da empresa e que se traduza em maior gradiente de
liberdade de ação do jornalista.
De maneira geral, o que se percebe é que os jornalistas que atuam como autores
parecem se inscrever num outro setor do reportariado, que inclusive aparenta ser uma
Deusa Maria de Souza (1999) discute o regime de autonomia do autor de livros didáticos. Segundo afirma,
tal autoria “está associada, predominantemente, ao sujeito escritor, considerado autor desde que sua
autoridade seja legitimada pela editora que o valida.” (28). De acordo com a pesquisadora, a autoria no
livro didático estaria ligada ao que chama de “ilusão de autoria”. Assim, o autor “é destituído de autonomia,
77
190
célula de privilegiados. Em boa parte dos casos, são os chamados repórteres especiais,
alguns nomes mais conhecidos do mercado ou estrelas da profissão. Entretanto, esse
diagnóstico não está totalmente certo. Há casos de repórteres mais anônimos que
conseguem fazer um trabalho autoral em termos de reportagem, desviando-se das
dificuldades diárias e abrindo espaços para que seus colegas passem a atuar de forma
mais pró-ativa. Veremos um desses casos mais adiante.
A autonomia é uma credencial conquistável, importante para a efetivação de um
ambiente onde possam conviver jornalistas-autores. Essa credencial pode ser obtida
inclusive por lances de ousadia que se dão não só na superfície do texto, mas também
nos procedimentos de coleta e apuração das informações. Um exemplo recente na
imprensa brasileira é Arthur Veríssimo, repórter da revista Trip. Suas matérias se
diferenciam não apenas pelos temas abordados, mas também pela condução dos
assuntos e pela própria forma de como o repórter se envolve nas situações descritas. Os
textos são sempre bem-humorados e fazem questão de evidenciar a presença do
narrador, seja pelo uso de marcas discursivas (como o uso da primeira pessoa ou a
intervenção direta do repórter na fala das fontes) ou mesmo pela conversão do jornalista
em personagem da reportagem. Essas características acabam dando contornos autorais
ao trabalho de Arthur Veríssimo.
Na Trip nº 86, de fevereiro de 2001, por exemplo, o repórter vai à Holanda para
cobrir a 13ª Hight Times Cannabis Cup, o campeonato mundial da maconha que
acontece em Amsterdã. Sob o título “No carnaval da cannabis”, a matéria traz o
jornalista acompanhando, de um ponto a outro da cidade, as provas da competição. Na
página de abertura, logo abaixo de uma foto que reúne o repórter e um dos participantes,
uma irônica legenda dá o tom de Veríssimo: “Sempre circunspecto em sua busca pela
pois, para existir no interior do aparato editorial, precisa estar em conformidade com seus padrões, além de
ter de ocupar o ‘lugar’ que lhe cabe, ou seja, o de fazer concessões” (31).
191
objetividade jornalística, característica que lhe é inata, Arthur abraça o eminente
congressista Ali Babá, o homem das 40 bongadas, orgulhoso de sua plantinha na
abertura da Cannabis Cup”. Nos créditos da matéria, o repórter assina como Arthur
“Cheech & Chong” Veríssimo em alusão à dupla de atores cômicos Cheech Marin &
Tommy Chong que ficou conhecida por filmes como “Queimando tudo” e por uma
postura de apologia à maconha. A postura do repórter na matéria é típica do Gonzo
Journalism, surgido a partir do trabalho de Hunter S. Thompson, que não só conta o que
vê, mas se envolve pessoalmente com o objeto narrável. O humor deliberado78, a ironia
grosseira, a atitude assumida de “aparecer” na matéria e a encarnação de um
personagem na história são elementos que evidenciam uma autoria nas matérias de
Arthur Veríssimo.
A brincadeira com o próprio nome é um recurso freqüentemente usado pelo
jornalista. Na edição 102 da revista, de julho de 2002, ele assina a matéria “Bat
Macumba” com o pai-de-santo Bita do Barão como Arthur Veríssimo de Ogum. Em
abril de 2003, no número 111 da Trip, ele é Arthur “Pica-Pau” Veríssimo na reportagem
“Pau de índio”, em que mostra o ritual dos habitantes da ilha indonésia de Papua de
amarrar os próprios pênis em lanças. Antes disso, em setembro de 2002 (Trip nº 104), o
repórter não só se assina diferente - Arthur “ThuThu” Veríssimo – como cede parte do
nome para o título da matéria sobre tatuagens tribais em Borneo: “Tattoo Veríssimo”.
É evidente que esse exemplo não é o único a atestar o exercício de uma autoria
na reportagem da imprensa brasileira. Entretanto, a sua menção mostra que a autoria
pode se dar em publicações menos massivas e mais dirigidas – a Trip é voltada para um
público mais jovem – e que a autoria não se dá apenas na construção de um bom texto
O humor aparece não só em forma de gags, mas também como trocadilhos. Na edição da Trip de nº 107,
de dezembro de 2002, o título da reportagem em caixa alta cria um jogo de palavras sonoro: ARTHUR
PROCURA SERGUEI. A linha de apoio reforça o auto-deboche: “Um encontro histórico. Frente a frente a
Dercy Gonçalves do Rock e o Bozó do Jornalismo. Tire as crianças da sala. E não tente fazer isso em casa”
78
192
ou na profundidade de uma investigação jornalística. O caso de Arthur Veríssimo realça
muito mais a ousadia do repórter do que propriamente a sua perícia jornalística. Sua
postura despreocupada com a objetividade e a isenção pode até ser reprovada pelos
gramáticos do Jornalismo, mas a personalidade e a criatividade de suas reportagens não
podem ser ignoradas. O caso Veríssimo é um exemplo que ratifica o fato de que a
autoria na reportagem não só depende de autonomia por parte do jornalista como
também de certa dose de ousadia em sua prática.
Para se efetivar, a autoria no Jornalismo deve ser constituída à base de duas
condições. A primeira é a legitimidade, que atesta os lugares de fala institucional e
profissional do jornalista. A segunda condição pode ser a capacidade, que certifica
habilidades ou aptidão para bem narrar, ou ainda uma outra: a autoridade, que é
atribuída a alguém por um ou mais fatores que o colocam em vantagem.
Se a primeira condição legitima o narrador, e a capacidade atesta sua habilidade
para tanto, a autoridade credencia a fala do repórter na medida em que ele ocupa uma
posição privilegiada de discurso. Não se dá ouvidos àquele que não respeitamos, que
não reconhecemos como sujeito autorizado a dizer, com autoridade para tal. Em pelo
menos duas ocasiões da prática jornalística o repórter se reveste de uma autoridade de
fala que o distancia de seus colegas: na qualidade de especialista ou na de testemunha
do fato.
O primeiro caso pode ser vivido quando o jornalista domina um não tão
conhecido idioma numa viagem internacional ou quando tem conhecimentos técnicos
sólidos que o igualam a sua fonte de informação, por exemplo. Com isso, o repórter não
apenas narra o que ouve, mas também entende o comentário de escárnio do premiê
sueco frente a diplomatas de outros países, detalhe que dá novo contexto para as
declarações oficiais. Com isso, o repórter pode inclusive corrigir ou desmentir sua fonte
193
de informação, desmascarando sua fala com argumentos e minúcias técnicas. Esses dois
exemplos ajudam a visualizar situações em que o jornalista não é apenas uma voz que
conta, mas configura também um timbre com autoridade e que deve ser ouvido.
Legitimado e autorizado, o repórter tem fortes condições para efetivar ali uma autoria
em seu trabalho.
Um segundo caso que coloca o profissional num patamar diferenciado de
autoridade de fala é o lugar do testemunho. Nele, o jornalista é espectador privilegiado,
testemunha ocular de um acontecimento e por isso está autorizado a dizer o que captou
com seus sentidos. Ele é o nosso homem lá no ponto de emergência do fato, pronto para
relatar, e nós ficamos aqui prontos para ouvi-lo. Porque consideramos aquela voz
legítima e autorizada, calamo-nos e o jornalista passa a narrar.
Em alguns episódios, essa condição de autoridade é tão acatada pela comunidade
discursiva – jornalistas e público – que a voz autorizada se descola das demais
alcançando um nível diferente de todos. Foi o que aconteceu em 1991, quando Peter
Arnett subiu ao terraço do Hotel al-Rashid em Bagdá para fazer as transmissões
televisivas da Guerra do Golfo para a CNN. Foi o que aconteceu com as reportagens de
Sérgio Dávila e Juca Varella para a Folha de S.Paulo em março de 2003 durante a
invasão anglo-americana ao Iraque. Os repórteres eram os únicos da imprensa brasileira
a acompanhar o início da guerra no centro dos bombardeios.
A força do relato abaixo79 dá a exata medida da autoridade do seu narrador:
A seqüência é de uma rotina assustadora e de uma lógica
insuportável, emprestada dos trovões e dos raios. Primeiro, um clarão
que deixa toda a cidade iluminada, acompanhado da saraivada da
bateria antiaérea, que pode muito pouco contra ele.
Então, uma grande explosão – o maior e mais inesquecível som já
ouvido pelo repórter até hoje -, seguida do deslocamento de ar
correspondente, que vem e volta com quase a mesma intensidade.
Pequeno silêncio. Um fogo começa a subir ao céu em grandes
línguas. Cede apenas para a fumaça preta, espessa.
79
“Som do ‘Big One’ é inesquecível” – Folha de S.Paulo, 22 de março de 2003, p. A15
194
Por fim, o grande silêncio insuportável, só quebrado pela próxima
seqüência, idêntica.
Foi assim o primeiro dia do “Big One”, a mãe de todos os ataques,
que começou na noite de ontem e promete deixar Bagdá de
joelhos. Nem bem nos acalmávamos de uma explosão, vinha outra
ainda maior, em lugar diferente. Enquanto escrevo este texto, são
sete os lugares identificados como atingidos. Confinados no hotel, os
colegas mudamos de quartos em busca da melhor visão, enquanto
outros correm para abrigos antibombas.
Desta vez, o deslocamento de ar dos bombardeios, um deles entre
500 e 1000 metros do local em que estamos, quebra vidros no
caminho e deixa os cachorros e as pombas desesperados, aqueles
correndo no meio das ruas vazias, estas voando até o topo dos
edifícios, como se a medida realmente fosse dar mais segurança.
Duas mulheres, uma vestida de preto e outra de branco, ganham as
calçadas rezando alto e mexendo a cabeça. Alarmes de carro
disparados vão e voltam...
Clarão, explosão
Durante o primeiro estouro, passado o susto inicial, o repórter Juca
Varella lembra de colocarmos os coletes antibalas e os capacetes.
Nos corredores, encontramos outros jornalistas que fizeram o mesmo.
Logo, somos obrigados a entrar de volta no quarto e trancar as
portas: oficiais da polícia secreta de Saddam Hussein, que ficam 24
horas por dia no saguão, começam a invadir alguns apartamentos
selecionados ao acaso e levar embora câmeras fotográficas e de TV
com imagens dos ataques.
Fazem isso no quarto ao lado e no da frente. Batem na nossa porta.
De luzes apagadas, ficamos quietos. Mais três tentativas, e desistem.
Lá fora, no alto, acaba de passar o que parece ser um caça, o
primeiro desde que o conflito começou, não sabemos se de
bandeira iraquiana ou norte-americana. Soa bem próximo e o
barulho e o clarão (e o medo) levam o repórter ao chão. Depois que
some no horizonte, o suposto avião deixa um rastro claro que
demora para ir embora.
Temos de ir. São 22h50 e acaba de passar o segundo caça. Começa
então a nova seqüência: clarão, explosão...
Frente a um texto como o acima – transcrito na íntegra -, questões
jornalisticamente relevantes como precisão, isenção e objetividade perdem-se diante da
intensidade viva da narrativa do testemunho. Assim, pouco importa se o repórter diz não
saber se o jato é invasor ou não; pouco interessa se o jornalista se mantém frio – não, ele
deixa escapar que está com medo. Vale mais descrever em termos imagináveis para o
leitor o que se sente quando um ataque daqueles se dá sobre a cidade. Quais são os sons,
as imagens, as reações das pessoas e animais frente aquilo. Cabe até fazer pequenas
confissões, como a de que o barulho da explosão foi o maior já ouvido até então pelo
195
repórter. Esses elementos dão outro tom ao texto: o caráter autoral, de relato de uma
experiência pessoal que pode ser partilhada com os leitores80.
Na reportagem, a autoridade é uma condição que ajuda a credenciar o
discurso do jornalista, abrindo brechas para a efetivação de uma autoria. Ela pode
se apresentar tanto por um lugar de especialidade ou de testemunho. Mas como a
capacidade, a autoridade é uma segunda condição a ser atendida para um exercício
autoral na reportagem. São necessárias duas condições pessoais para que um
repórter possa se inscrever enquanto autor. A primeira – a legitimidade – sempre
deve ser satisfeita. Num segundo momento, o profissional e a circunstância vão
determinar que segunda condição será atendida: a que atesta a capacidade e
competência do repórter de bem narrar ou a que dá a sua voz um timbre
autorizado a narrar.
De maneira resumida, o que se percebe é que o regime que regula a autoria no
Jornalismo se assenta em algumas regras que estão condicionadas à própria natureza de
constituição do Jornalismo enquanto prática social. Uma atividade prática coletiva, o
Jornalismo é um campo onde nem sempre a autoria é discernível. Como reflete os fatos
(ou tenta fazê-lo), e eles não têm dono, pode-se falar em autoria jornalística quando
preenchidas algumas condições de exercício de estilo e reposicionamento do sujeito do
discurso jornalístico.
Neste sentido, a autoria funciona primeiro como indicador de responsabilidades.
Ela se dá na mediação e não na criação livre como na literatura. Para ser autor na
reportagem, é necessário atender a dois estilos, um estrutural do Jornalismo e outro,
mais pessoal. A autoria jornalística se dá num ponto periférico, no estágio de exercício
80 Na cobertura da guerra do Iraque, além de oferecer o noticiário editado das agências internacionais de
notícia em generosas páginas de seus principais cadernos, a Folha de S.Paulo trazia textos e fotos da dupla
de repórteres e um “Diário de Bagdá”, página especial encimada por fotos dos jornalistas vestidos para a
guerra com reportagens que traduziam o cotidiano do país em meio ao conflito. Despretensiosamente
196
do segundo estilo, o pessoal, não no primeiro, já que este é plano de imanência na
narrativa jornalística. Uma autoria no Jornalismo depende também de uma compreensão
diferenciada da obra jornalística.
São necessárias duas condições pessoais para que um repórter possa ser autor. A
primeira – a legitimidade – sempre deve ser satisfeita, pois é a que funda o lugar
institucional de fala. Num segundo momento, o profissional e a circunstância vão
determinar que segunda condição será atendida: a que atesta a capacidade do repórter de
bem narrar ou a que dá a sua voz um timbre autorizado a narrar.
No Jornalismo contemporâneo, é possível exercer uma autoria em estruturas
jornalísticas cada vez mais hierarquizadas, industrializadas e complexas na medida em
que se constroem condições de autonomia do repórter e o profissional alimenta sua
atuação com doses de ousadia e consciência de sua função social. A margem de
manobra é estreita, e muitos profissionais ou não enxergam o espaço em que podem se
movimentar ou preferem não correr riscos de frustrar seus intentos.
Ser autor é - antes de tudo - uma função a ser encarnada e por isso depende de
vontade e de ação. A diferença entre jornalista e jornalista-autor parece ser semelhante à
existente entre escritor e escrivão.
objetivas, as matérias eram perfis de anônimos, repercussões diretas da guerra à vida social e econômica
dos iraquianos e notas breves que davam conta da confusão e desinformação reinantes em Bagdá.
197
CAPÍTULO 6
Em busca de uma autoria na reportagem
“A transgressão é um gesto relativo ao limite: é aí,
na tênue espessura da linha, que se manifesta o fulgor
da sua passagem, mas talvez também sua trajetória na
totalidade, sua própria origem. A linha que ela cruza
poderia também ser todo o seu espaço”
Michel Foucault – Prefácio à Transgressão
A
autoria no Jornalismo é uma questão que envolve o exercício de um estilo
que vai além do institucional, do consagrado pelas regras jornalísticas. Para
ser autor na reportagem, é necessário não só seguir as normas do Jornalismo,
mas também imprimir um estilo pessoal, deixar marcas, impressões digitais. A autoria
no Jornalismo pressupõe exercício consciente da subjetividade.
Esta tese trata não apenas de Jornalismo, mas de sujeitos-jornalistas, daqueles
que exercem a profissão tentando se desautomatizar das gramáticas (dogmáticas),
buscando uma prática criativa no ato de reportar. Se a projeção de qualquer traço de
subjetividade é tão polêmica na escritura de textos informativos, não é menos discutível,
num trabalho científico, empregar o EU e debruçar-se sobre a própria produção para
investigar aspectos do tema proposto.
Eu faço isso nas páginas a seguir.
E penso que – para manter a coerência - não poderia ser diferente. Se minha
preocupação maior aqui foi delimitar as condições para uma autoria na reportagem, esta
tese não poderia limitar-se aos aspectos teóricos do assunto: é necessário ainda destacar
um caso que exemplifique as tentativas desta inscrição. Nenhum laboratório seria mais
oportuno do que minha própria experiência de repórter. Afinal, ao fazer de mim mesmo
a cobaia desta tese, poderia testar minhas convicções sobre a autoria e, de alguma
forma, contribuir para a reflexão sobre o tema. A opção de fazer um laboratório de si
mesmo pode ser discutível, mas não é ilegítimo ou inválido.
198
Esta tese explora o terreno da autoria, expressão marcada da subjetividade, e não
há aqui nenhum temor em empregar a primeira pessoa do singular. Escolher a mim
mesmo como campo de provas atende a um propósito: articular teoria e prática. Isto é,
não só refletir sobre a autoria, mas aproveitar o ensejo da pesquisa para realizar
experimentações acerca das condições que possibilitem textos com marcas autorais no
Jornalismo. Aí a legitimidade da opção.
Por outro lado, não há receio também de que a investigação se perca em
subjetivismos. O caso de que trataremos a seguir é um exemplo, uma experiência que
ilustra as proposições do capítulo anterior. Se elas se aplicam a mim, podem ser
reproduzidos por outros atores em outros ambientes e em condições semelhantes. Aí a
validade de minha escolha.
Que a validade, a legitimidade e a consistência de meu raciocínio saldem o alto
tributo que hão de me cobrar por mais esta transgressão aos ditames científicos.
6.1 O pesquisador como cobaia
“Usarei a mim mesmo como autor de dois romances
(e, portanto, como cobaia) para analisar casos em que
se verificou uma dessas duas possibilidades”
Umberto Eco – Os limites da interpretação
Sou jornalista desde 1991, há treze anos, portanto. De lá para cá, atuei em
jornais e revistas, bem como em assessorias de imprensa. Passei pelas editorias de
Cultura, Polícia, Política, Geral e Economia. Trabalhei para órgãos de imprensa do
interior de São Paulo, do Paraná e de Santa Catarina. Fui revisor, repórter, free-lancer e
editor, mas me considero mesmo um rato de redação. Há cinco anos, divido-me entre a
reportagem e a docência, experiências tão distantes quanto complementares. Na
Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina, respondo pelas disciplinas
de Legislação e Ética em Jornalismo e Técnica de Reportagem, Entrevista e Pesquisa
199
Jornalística, mas já ministrei as de Redação Jornalística VII, Estética e Cultura de
Massa, e Teoria e Método de Pesquisa.
Na Univali, coordeno ainda um site de análise e crítica da imprensa local, o
Monitor de Mídia (http://www.cehcom.univali.br/monitordemidia), projeto
iniciado em agosto de 2001. Junto às revistas Fluxo e Carga & Cia, ambas editadas
pela Foco Editorial em Curitiba (PR), sou repórter especial, encarregado de enviar
reportagens sobre transporte, logística e infra-estrutura. É na produção de algumas
destas matérias que tentei alargar os limites para a impressão de uma autoria, como
veremos a seguir.
Além desses afazeres, atendo pela vice-presidência do Sindicato dos Jornalistas
de Santa Catarina e “cometo” alguns textos teatrais, por meio de minha participação na
Persona Cia de Teatro, de Florianópolis (SC). Já foram montados “Toda Vontade Mora
Num Útero” (2001), “F.” (2001-2002), “Chata, Fria e Sem Recheio” (2002) e “Castelo
de Cartas” (2004); estão em fase de produção “Urano Quer Mudar” e “O Escultor”,
todas com previsão de estréia em 2004.
(Mas por que essas informações interessam? Porque ajudam a apresentar o
repórter, resumem sua trajetória e evidenciam alguns de seus assuntos de interesse.
Essas podem ser pistas que sinalizem os esforços para a inscrição de uma autoria).
Na academia, a área preponderante de meus trabalhos é a da Ética Jornalística.
Meus interesses acerca do assunto já renderam artigos opinativos, trabalhos científicos e
um livro que se concentra sobre as preocupações com os desvios éticos no estado em
que milito: Monitores de Mídia – como o jornalismo catarinense percebe seus deslizes
éticos (Editoras da UFSC e Univali, 2003).
200
Na política sindical, minhas maiores preocupações estão nas condições de
trabalho do jornalista, sua condição social e a natureza de sua formação. Isto é, como
se pode ser jornalista hoje no Brasil, numa conjuntura social desigual, num mercado de
Comunicações em crise, num ambiente de homogeneização das culturas e de
desinteresse pelas iniciativas de emancipação.
No teatro, diversas vezes, não consegui fugir de histórias onde os personagens
lutam para se definir enquanto sujeitos de suas ações. Em “Toda Vontade Mora Num
Útero”81, duas prisioneiras aguardam a transferência para um novo presídio e, para
administrar seus desejos e não enlouquecer, criam novas personalidades, duplicando-se.
A subjetividade se clivava, distendia-se num mesmo corpo. Na segunda montagem,
“F”82, decidi reunir vontades e subjetividades distintas. As gêmeas siamesas Maria e
Glauss dão carnadura a esse desejo criativo. Em “Castelo de Cartas”83, um personagem
se apossa do nome, da vontade e até mesmo da voz de sua esposa, mas ela tenta resistir.
Em “Urano Quer Mudar”84, um homem estimula sua amada a deixar uma tradição para
viver sua vida, desprendida de qualquer maldição ou sina. Em todos esses casos, uma
temática se repete, se reedita: a da afirmação do individual, do sujeito.
Seria demais dizer que canalizei esses vetores (a ética jornalística, a preocupação
com as condições de trabalho do jornalista e a afirmação do sujeito) para a minha
produção de repórter nos últimos anos em Carga & Cia e Fluxo. Não se deve afirmar
isso, mas também não se pode ignorar que estes aspectos estão ligados ao meu fazer
81 Com Anamaria Vincenzi e Maria da Graça Albino. Direção de Maria Paula Bonilha. A peça teve curtas
temporadas no SESC-Florianópolis e na Udesc em agosto e setembro de 2001, além de ter sido selecionada
para a Mostra Paralela do Festival Nacional de Teatro Isnard Azevedo.
82
No elenco, Igor Lima, Gláucia Grígolo, Maria Paula Bonilha e Malcon Jean Bauer. Direção de Jefferson
Bittencourt. A produção circulou por 13 cidades catarinenses, teve curta temporada em São Paulo e foi a
festivais em Pindamonhangaba, Blumenau, Passo Fundo e Curitiba. Conquistou oito prêmios e foi vista por
mais de 3 mil espectadores.
83
Com Malcon Jean Bauer, Gláucia Grígolo e Igor Lima. Direção de Jefferson Bittencourt. O espetáculo
estreou na Mostra de Teatro de Passo Fundo (RS) em maio deste ano.
84
Protagonizam Paula Braun e Fábio Hostert. Direção de Pepe Sedrez. Estréia em julho durante o Festival
Universitário de Teatro de Blumenau. Em 2003, o texto teve leitura dramática de Margarida Baird e José
Ronaldo Faleiro no mesmo evento.
201
jornalístico, já que não posso cindir-me quando vou para a prática cotidiana. Como
sujeito multifacetado, sou o mosaico que contempla essas personas e outras mais. Os
vetores de interesse podem não ter determinado minha forma de escrever
jornalisticamente, mas têm grande chance de me influenciarem nesses momentos. É
preciso admitir operações mentais inconscientes, acasos e incertezas no complexo
processo de criação e escritura. Nem tudo é claro e transparente. Nem tudo está sob
controle e é visível.
Em termos metodológicos, esta tese pode ser classificada como uma pesquisaexperiência inserida numa epistemologia pragmática, pois pretende delinear o que
constitui os fenômenos do olhar e da autoria na reportagem, tendo como base também
experiências de convívio do próprio pesquisador. Assim, a tese se preocupa com a
descrição, o registro, a análise e a interpretação dos processos atuais, vinculando-os
sempre com a prática profissional exercida em ambiente profissional.
Num primeiro momento, realizei um mergulho na bibliografia sobre Jornalismo
(sua constituição e seus procedimentos operacionais), sobre Epistemologia (as questões
da objetividade e da subjetividade no processo de constituição do conhecimento) e sobre
Autoria (principalmente a constituição dela e questões colaterais como a do estilo). A
seguir, analisarei parte da minha experiência como repórter em duas revistas de
circulação dirigida, editadas nacionalmente. As publicações são as revistas Carga & Cia
e Fluxo, voltadas para as áreas de logística, infra-estrutura e transportes. Desde 2000,
faço reportagens para esses veículos, e desde então venho empreendendo algumas
experiências no campo do texto, testando-me para tornar as matérias cada vez mais
autorais, cada vez mais distintas do padrão rígido de publicações do gênero.
202
Por se voltarem a assuntos muito específicos e públicos tão qualificados, revistas
deste ramo trazem reportagens “mais duras”, com textos menos fluentes, específicas a
iniciados nos temas. Minha experiência como repórter especial tem permitido ver que,
mesmo nesse terreno estreito, há espaço para a criatividade, a leveza e a originalidade.
Tais aspectos auxiliam na visualização de uma autoria. Minhas reportagens são
publicadas (com pouquíssimas alterações de edição) e preenchem espaços razoáveis nas
revistas.
Desde 2001, decidi estabelecer uma programática de pesquisa: avançar nas
experiências textuais e ver até onde se pode ir com a autoria dos textos. Com isso,
passei a cumprir pautas nas revistas, elaborando textos intencionalmente autorais. Os
editores nunca souberam deste meu propósito, nem nunca quis causar suspeita dele. As
matérias eram enviadas de Florianópolis à redação – em Curitiba - e editadas por lá, sem
qualquer interferência minha. Tal qual foram publicadas, serão analisadas.
Metodologicamente, faço um recorte em minha produção desde 2000. Das matérias
publicadas, selecionei dez para a comparação do conteúdo veiculado com os arquivos
originais do autor, e para a indicação dos traços que possibilitam ler ali um exercício de
autoria no jornalismo. Títulos, características e critérios da escolha serão detalhados a
seguir, na seção que descreve os testes desta pesquisa.
Por fim, para contrapor os resultados da análise, apresento os pontos-de-vista de
quem editou tais reportagens: o diretor editorial das publicações, a chefe de redação e a
chefe de reportagem. Durante todo o período analisado, os três foram os primeiros
leitores das matérias e constituíram a instância de decisão sobre suas publicações ou
não. Nas entrevistas, abordo informações relativas aos critérios de edição de uma
reportagem em detrimento de outra, bem como suas posições acerca da autoria nos
textos jornalísticos. Evidentemente, em nenhum momento, foram revelados aos editores
203
o objetivo da pesquisa e a prática do repórter nas matérias. Na verdade, as entrevistas
com os editores funcionam como filtros da pesquisa e devem ser cruzadas com a análise
das reportagens e com as diretrizes teóricas esboçadas no Capítulo 5. O que se quer com
esse cruzamento é o delineamento dos critérios jornalísticos que permitiram a
emergência de uma autoria nas reportagens escolhidas.
204
6.2. O ambiente do laboratório e as condições de
trabalho do repórter
“Pergunta-se pelo futuro dos jornalistas. Eles estão
em vias de extinção. O sistema não quer mais saber deles”
Ignácio Ramonet – A tirania da comunicação
“Eu sempre quis ser jornalista – fuçar, descobrir as coisas,
as coisas que estão por trás das coisas, falar com as pessoas
que admiro, com outras que desprezo, conhecer as que eu
nunca imaginei. E depois sentar e escrever a história do
jeito mais interessante possível, do tamanho pedido e no
prazo que o jornal precisa”
Sérgio Dávila – Nova York antes e depois do atentado
Estávamos no final de 1999, quando tocou o celular. Do outro lado da linha, uma
repórter da sucursal catarinense da Gazeta Mercantil fazia um convite: queria me
indicar como repórter free-lancer para uma revista paranaense da área de transportes.
Havia pouco eu saíra da Editoria de Economia do jornal A Notícia, e a jornalista da
Gazeta estava deixando de mandar matérias para a tal revista. “É pra ser frila fixo e
estou meio sem tempo para eles, entende?”. Sei. Tentei saber um pouco mais da
publicação, mas jornalista sempre tem tanta pressa... Foi o tempo de apanhar o número
da revista e um contato. Foi assim - totalmente por acaso - que começou minha relação
com a Foco Editorial, que tem hoje três títulos no mercado, dois para quem ainda hoje
escrevo – mesmo que bissextamente.
Como não podia ser diferente, a Foco Editorial é uma empresa de comunicação
que vai surgir de olho num precioso filão de mercado.
205
6.2.1 As revistas
Na segunda metade dos anos 90, a região metropolitana de Curitiba (PR) vai se
converter num terreno fértil para o setor de Transportes, alargando tentáculos para área
adjacentes como a de Logística e de Infra-estrutura. Um conjunto de fatores geográficoeconômicos contribui para tornar o Paraná um importante pólo nacional de logística:
•
A forte industrialização na década de 90 com a vinda de diversas
indústrias de peso, nos ramos alimentício, metal-mecânico e automotivo,
principalmente;
•
Os maciços investimentos estatais em obras de infra-estrutura,
notadamente em estradas, acessos e portos. O governo Jaime Lerner
alardeia que aplicou R$ 12 bilhões no setor entre injeções diretas e
renúncias fiscais;
•
A privilegiada localização: o Paraná está colado a São Paulo – o maior
mercado produtivo e consumidor do país – e é porta de escoamento para
os estados do Sul e países do Mercosul;
•
A disponibilidade de um pujante porto, o de Paranaguá, que conseguiu
atrair empresas especializadas em soluções logísticas, armazenagem e
transporte.
Esses fatores agregados a outros resultaram num cenário que coloca o estado
como responsável por 25% das operações logísticas nacionais e num mercado que tem 2
mil transportadoras, só para citar dois indicadores.
Grandes empresas, grandes anunciantes. Em março de 1999, a Foco Editorial
lançou a Carga & Cia, que já se autodenominava a “sucessora da revista Transporte”,
206
uma publicação editada pelo Sindicato das Empresas Transportadoras de Cargas do
Estado do Paraná (Setcepar) e pela Tempo Editorial. Na verdade, a Transporte era uma
revista que não tratava de Logística e Infra-estrutura, assuntos que a nova Carga & Cia
passaria a cobrir e só circulava naquele estado, conforme explicou Rui Cichella,
presidente do Conselho Editorial e também presidente do Setcepar85:
“Mais do que uma simples mudança de nome, trata-se de uma
profunda mexida no projeto gráfico e editorial da publicação. (...)
Carga & Cia também passa, a partir das próximas edições, a ser
vendida em bancas de revistas e a ser distribuída nos estados de
Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além da tradicional presença
em todo o Paraná”.
A Transporte era uma publicação que circulava com mais dificuldade. Marcelo
Motta Vieira era assessor de imprensa do Setcepar e convenceu o sindicato a lançar uma
revista mensal que não tratasse apenas do setor transportador. “Eu era colunista político
na época, no Jornal do Estado, e acabei demitido. Como já conhecia o setor e via nele
um bom filão, criei a Foco Editorial”, conta o jornalista86. Carga & Cia surgiu como
resultado de uma parceria entre a editora e o sindicato. O acordo durou apenas uma
edição. “Quando eles viram quanto custava editar uma revista, a parceria acabou”,
explica Motta Vieira.
A publicação é uma exceção no mercado: é uma das poucas que é produzida fora
de São Paulo, mantém sua periodicidade desde o surgimento e se pauta pela amplidão
na cobertura editorial, não só cobrindo as transportadoras, mas os demais elos da cadeia
de distribuição. “Tratamos de infra-estrutura e isso acarreta em falar de política. Muitos
concorrentes evitam de fazer isso. A gente não abre mão”, diferencia. Para uma
descrição mais efetiva: a Carga & Cia é editada mensalmente, num formato de 21 cm X
28 cm, toda impressa em quadricromia em papel couché fosco. De início, vinha com 48
85
86
Mudando para melhor, editorial da Carga & Cia de nº 1, de março de 1999.
Entrevista ao autor em 23 de abril de 2004, na sede da editora em Curitiba (PR).
207
páginas, reunida num miolo com adição de grampos. A partir do nº 34, de março de
2002, adotou novo projeto gráfico, mais seções fixas, uma nova versão eletrônica na
internet (http://www.cargaecia.com.br) e encadernação com lombada americana. Essas
modificações marcaram os três anos de circulação da revista – que chega a sair com 72
páginas na edição nº 43, por exemplo, mas mantém-se numa média de 60 páginas.
A tiragem inicial foi de 2 mil exemplares, voltados basicamente para as
transportadoras do Paraná. Hoje, com um público leitor mais consolidado, a publicação
tira mensalmente 7 mil exemplares (não auditados) e só circula restritamente ao trade,
mas seu alcance é nacional. A distribuição é feita pela própria editora, mas houve
experiências com a OESP e com a disponibilização do título em bancas de São Paulo e
Rio de Janeiro. Tais opções alcançaram bons resultados, mas eles foram considerados
equivocados pela empresa na estratégia de fixação do título no mercado. “Temos, hoje,
assinantes em todo o país, do sul ao norte, e até mesmo fora do país. Nossa mailling list
é tem uma boa cobertura do setor”, avalia o diretor editorial da Foco.
Entre os anunciantes da Carga & Cia, estão a Ford, a Goodyear, a Volkswagen,
a Autotrac, a Marcopolo, a Busscar, a Volvo, a Scania, a Agrale e a Mercedes-Benz.
Do seu surgimento até abril de 2002, Carga & Cia manteve-se concentrada em
três eixos de cobertura: Transportes (nos diversos modais), Logística (com ênfase nas
soluções adotadas por empresas para problemas cotidianos) e Infra-estrutura
(salientando investimentos e diagnósticos de eficiência). Mesmo com as alterações
feitas ao longo do tempo, a revista se equilibrou entre seções fixas com notas
informativas, artigos analíticos de especialistas e autoridades, matérias sobre
lançamentos no setor automotivo, entrevistas e reportagens mais aprofundadas. Amplo,
o arco de interesse da publicação possibilitava a cobertura das pautas mais díspares: do
alto custo de embarques nos portos brasileiros aos pedágios nas estradas; do escoamento
208
e circulação de produtos às privatizações no sistema elétrico e de transportes; da
automatização na indústria automotiva às fusões de companhias aéreas, de inovações
tecnológicas às descargas de poluentes dos veículos automotores...
Em maio de 2002, Carga & Cia muda mais uma vez. Passa a cobrir apenas
Transportes e Infra-estrutura, e a Foco Editorial lança a Fluxo: “Primeiro filhote da
Carga & Cia (...), a Fluxo chega ao mercado para tratar de temas ligados a Logística,
Armazenagem, Movimentação de Materiais e Tecnologia de Informação”, explicou o
diretor editorial Marcelo Motta Vieira no primeiro editorial da publicação.
Com as mesmas dimensões e formato de Carga & Cia, a Fluxo saiu com tiragem
inicial de 5 mil exemplares, 48 páginas coloridas em papel couché e encadernação com
lombada americana. Circulação nacional, distribuição dirigida, as mesmas instalações
de produção e o mesmo corpo editorial da primeira revista da empresa.
Com a experiência bem-sucedida da Carga & Cia, a Foco Editorial provou o
mercado e percebeu brecha para crescer, segmentando ainda mais os próximos
produtos87. Pela Fluxo, por exemplo, desfilam matérias sobre redução de custos de
operação, casos de logística integrada, soluções para distribuição de cargas perigosas e
perecíveis, estratégias de armazenagem, etiquetagem eletrônica e novidades no campo
da Tecnologia da Informação (TI)... A cada mês, a publicação traz reportagens, seções
fixas, notas, entrevistas e um suplemento especial (Expertise) com artigos de fundo
escritos por consultores do mercado e especialistas acadêmicos. A segmentação se
observa também nos anunciantes da Fluxo: Associação Brasileira de Logística, Iveco,
Águia Sistemas de Armazenagem, Vaspex, Renault, TransTec, América Latina
Logística, Mitsubishi Empilhadeiras...
87 Esta tendência teria mais um episódio em abril de 2003, quando seria lançada a Fórmula Brasil, mais
voltada ao automobilismo e às muitas categorias competitivas que cercam os esportes sobre rodas. A
recessão de 2003 afugentou os anunciantes e a revista deixou de circular em dezembro, com nove números
lançados.
209
Não há estatísticas consolidadas nem tampouco perfis confiáveis do segmento
mercadológico que abrange Fluxo e Carga & Cia. Nota-se, no entanto, que há diversos
títulos disputando os leitores brasileiros e que existe grande diversidade entre os
patamares de qualidade dos produtos, os nichos que exploram e a própria longevidade
dessas publicações. A Revista Ferroviária, por exemplo, é editada há 64 anos pela
Empresa Jornalística dos Transportes Ltda, do Rio de Janeiro. É a mais antiga do setor,
mas já teve concorrentes que circularam pouco, como a Revista Ferrovia, editada pela
Associação dos Engenheiros da Estrada de Ferro Santos à Jundiaí (AEEFSJ) nas
décadas de 80 e 90. Há exemplos que atendem a outros modais, como é o caso da
Revista do Ônibus, da recente Transurbana, da Frota, da AutoData, da Carga Pesada e
da Conexão Marítima, que é bimensal, circula no sul-sudeste e países do Mercosul,
concentrando-se em comércio exterior e no sistema portuário.
O mercado do setor não é fácil. O diretor da Foco Editorial, Marcelo Motta
Vieira, qualifica de “drásticas” as medidas que tomou no início do ano, com a
interrupção na circulação da recente Fórmula Brasil (que durou só nove edições) e com
as mudanças na distribuição de Carga & Cia e Fluxo. “Elas passam a chegar juntas aos
assinantes. São dois títulos diferentes, mas serão distribuídas num pacote. Isso porque
percebemos que estava acontecendo sobreposição de áreas”88. Embora cubram áreas
distintas, a avaliação é de que as revistas se complementam. “Percebemos que a
tendência das transportadoras é se tornar operadoras logísticas”.
Como não há definição clara desse mercado, faltam bases que possam sustentar
análises comparativas entre os títulos. Tal carência não inviabiliza a pesquisa que
apresento aqui, já que ela enfoca uma experiência realizada em veículo dirigido pouco
importando dados mais específicos. Nas páginas que se seguem, interessa mais perceber
como uma certa experimentação teve lugar e que condições a permitiram.
210
6.2.2 A rotina do repórter
As condições de produção do repórter, sim, interessam a esta experiência. É
relevante saber que circunstâncias cercaram o pesquisador-cobaia durante a realização
dos testes.
O material noticioso é editado na redação das revistas, na sede da Foco Editorial,
em Curitiba (PR). Atuo como repórter especial das publicações em Florianópolis (SC), e
prioritariamente cubro assuntos circunscritos nos limites catarinenses, muito embora já
tenha produzido reportagens em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Essa distância me
desvincula de uma rotina convencional de empresa jornalística. Isto é, não acompanho
as reuniões de pauta, o trabalho de edição, os fechamentos e a chegada da revista da
gráfica. O que não significa dizer que fico alheio aos deadlines. Entretanto, não
comungo de uma visão global da edição que se está produzindo, pouco converso com os
editores durante a confecção das matérias e não tenho nenhum acesso às páginas
editadas e diagramadas antes de sua ida e retorno da impressão.
As pautas são me passadas pelos editores, mas houve diversos casos em que
sugeri os assuntos e tive a liberação para cobri-los. Faço entrevistas pessoalmente ou
por telefone, viajo quando necessário e escrevo os textos em casa, enviando-os por email à redação. Mantenho pouco contato com os editores, atendo-me apenas ao
necessário sobre esclarecimentos da pauta e alargamento de prazos. Quase sempre por
telefone. Os prazos para envio das matérias variam de duas semanas até dois meses,
sempre dependendo da programação dos editores e das dificuldades que os temas
reservam. Essas condições permitem-me uma dose de autonomia de trabalho por um
lado e um certo alheamento do processo total de produção de uma revista.
88
Marcelo Motta Vieira, em entrevista ao autor. Curitiba, 23 de abril de 2004.
211
Minha rotina de trabalho é atípica e as contribuições às revistas são espaçadas.
Isso se explica pelo acúmulo de funções e compromissos (que me impede de trabalhar
mais para a Foco Editorial) e pela própria gestão interna das pautas enviadas aos
repórteres (na grande maioria, free-lancers). De fevereiro de 2000 a abril de 2004, eu
havia produzido vinte reportagens para a editora, sendo 14 para a Carga & Cia e seis
para a revista Fluxo. Foram três matérias enviadas em 2000, duas em 2001, dez em
2002 e cinco em 2003.
A seguir a relação completa das reportagens e suas referências:
De volta ao banco escolar
Carga & Cia - Nº 11, Fevereiro/2000
Muito além do just-in-time
Carga & Cia - Nº 14, Maio/2000
Mar de novidades
Carga & Cia - Nº 15, Junho/2000
Sinal Vermelho
Carga & Cia - Nº 23, Março/2001
Os alquimistas estão chegando
Carga & Cia - Nº 23, Março/2001
O perigo está no ar
Carga & Cia - Nº 31, Novembro/2001
É lixo só!
Carga & Cia - Nº 35, Abril/2002
Contêiner de surpresas
Fluxo - Nº 01, Maio/2002
Transportar é uma arte
Carga & Cia - Nº 36, Maio/2002
Suando a camisa
Fluxo - Nº 02, Junho2002
Sempre cabe mais um
Carga & Cia - Nº 38, Julho/2002
Fora com o carimbo
Fluxo - Nº 03, Julho/2002
Um porto que se move
Fluxo - Nº 03, Julho/2002
Volante e giz
Carga & Cia - Nº 39, Agosto/2002
Mais peso para a carga
Carga & Cia - Nº 39, Agosto/2002
Altos negócios, baixos calados
Fluxo - Nº 07, Novembro/2002
Socorro à vista
Carga & Cia - Nº 44, Fevereiro e Março/2003
212
Integrado e complicado
Carga & Cia - Nº 49, Agosto/2003
As vinhas na mira
Fluxo - Nº 14, Agosto/2003
O salário do medo
Carga & Cia - Nº 52, Novembro/2003
Evidentemente, farei um recorte na produção, pinçando alguns casos
significativos no que tange o esforço de inscrição de uma autoria na reportagem, algo
que detalharei na próxima seção.
213
6.2.3 O recorte
Do conjunto de reportagens produzidas para Carga & Cia e Fluxo, selecionei
uma parte para que pudesse aprofundar uma reflexão acerca das tentativas de inscrição
de uma assinatura jornalística. Estabeleci alguns critérios para contribuir nas condições
de verificação.
O primeiro foi a abrangência da amostra dos textos. A seleção deveria dar conta
da extensão de tempo de minha experiência como repórter das revistas. Essa
preocupação visava não trabalhar sobre textos concentrados num único ano ou outro, a
ponto de causar a impressão de que a autoria fosse ali um fenômeno datado, circunscrito
numa fase.
Um segundo critério para seleção do corpus de análise foi a proporcionalidade.
Isto é, eu precisava contemplar textos das duas revistas em número proporcional à
minha contribuição a elas e ao tempo de sua existência no mercado. Assim, o corpus
deveria conter mais matérias publicadas em Carga & Cia do que em Fluxo, já que a
primeira circula desde 1999 e para ela escrevi 14 dos 20 textos no período. Este segundo
critério estabeleceu proporções mais ou menos fixas para cada subconjunto de
reportagens.
Aliado a isso, decidi aplicar um filtro na seleção. Desprezei o primeiro e o
último ano de minha contribuição para a editora. Com isso, criei uma espécie de janela
de eventualidade, dentro da qual teríamos textos que não estivessem sob a influência do
começo de minha relação com a empresa, nem sob a influência da escritura desta tese.
Este foi um critério que priorizou a distância.
Em seguida, passei a reler as reportagens, atendo-me às características textuais
que mais facilmente evidenciassem uma unidade estilística, critério que tem como foco
a pertinência dos objetos de observação com a temática do estudo. Quer dizer,
214
destaquei as matérias onde se pudesse perceber que eu mais tivesse experimentado
textualmente. É evidente que este critério se reveste de muita subjetividade, fator que
poderia interferir decisivamente sobre os resultados da minha análise. Para reduzir essa
possibilidade, resolvi trabalhar com uma amostragem grande frente ao conjunto total
dos textos. Por isso, escolhi dez exemplos dos vinte produzidos – 50% - para dar mais
condições de aleatoriedade e legitimidade. A expressiva amostragem deve funcionar
como mais um filtro de seleção.
Definidos esses critérios, cheguei à seguinte composição do corpus de análise:
dois textos publicados em 2001, cinco em 2002 e três em 2003. Dos quais, seis
circularam nas páginas de Carga & Cia e quatro nas de Fluxo. As unidades de análise,
por ordem de veiculação, são:
Título da reportagem
Referências_________________________
Os alquimistas estão chegando
Carga & Cia - Nº 23, Março/2001
O perigo está no ar
Carga & Cia - Nº 31, Novembro/2001
É lixo só!
Carga & Cia - Nº 35, Abril/2002
Sempre cabe mais um
Carga & Cia - Nº 38, Julho/2002
Fora com o carimbo
Fluxo - Nº 03, Julho/2002
Um porto que se move
Fluxo - Nº 03, Julho/2002
Altos negócios, baixos calados
Fluxo - Nº 07, Novembro/2002
Socorro à vista
Carga & Cia - Nº 44, Fevereiro e Março/2003
As vinhas na mira
Fluxo - Nº 14, Agosto/2003
O salário do medo
Carga & Cia - Nº 52, Novembro/2003
215
Para haver clareza metodológica, é preciso que se diga que, neste tempo todo de
reportagem para as revistas, meus originais sempre foram muito pouco alterados no
processo de edição. Para além das qualidades intrínsecas do material enviado à redação,
quero com esta menção ressaltar o rigor e o respeito com os quais trabalharam os
profissionais que editaram tais reportagens. As análises que procederei mais adiante
serão feitas sobre os textos publicados e, portanto, já revisados e ajustados aos formatos
técnicos das publicações. Os elementos estilísticos e as características autorais passaram
pelo crivo dos editores e estão sedimentados no espírito das reportagens.
216
6.3. As tentativas de inscrição de uma assinatura
“Era como ler uma vida paralela à minha,
e ao falar na primeira pessoa, por um personagem
paralelo a mim, eu gaguejava. Mas depois que aprendi
a tomar distância do eu do livro, minha leitura fluiu.”
Chico Buarque, Budapeste
Foucault inicia o seu A ordem do discurso, dizendo que gostaria de se “insinuar
sub-repticiamente no discurso” de sua aula inaugural no Collège de France, no começo
de dezembro de 1970. Como ele, eu gostaria muito de iniciar esta seção da tese,
deixando de lado todo traço de cabotinismo, e mais alguns vestígios de arrogância,
egocentrismo e presunção. Sei que ao optar pelo caminho de ser cobaia de mim mesmo,
corro os riscos que a interpretação impõe num processo de leitura. Não ignoro o fato de
que os leitores possam considerar minha atitude – analisar o próprio texto para
referendar minhas proposições – um tanto suspeita; que possam ver nisso um exercício
fácil e pretensioso; que vejam aqui um contra-senso aos procedimentos científicos.
Entendo isso, mas absorvo tais críticas em nome da opção metodológica que fiz.
Analisar minhas matérias jornalísticas em busca de uma autoria na reportagem
foi a maneira mais coerente que encontrei para fazê-lo. Remexer nas próprias vísceras
permitiu-me não apenas retornar à prática do repórter que sou, mas ainda refletir sobre o
profissional que pretendo continuar construindo ao longo do tempo. Voltar meu olhar
para o próprio umbigo possibilitou ainda tecer uma crítica aos procedimentos que adoto
e separar inconsistências e recursos descartáveis. Os exemplos que apresento a seguir e
os comentários que os acompanham tentam mapear alguns esforços no sentido de um
exercício autoral na reportagem. Por isso, os dez casos relatados nas próximas páginas
não se colocam servem mais de exemplo de como tentei inscrever uma assinatura
jornalística do que como fórmulas e procedimentos padrões para esse exercício. Nas
matérias que apresento, manifesto mais testemunhos que lições, mais marcas que
carimbos, mais exemplos que modelos.
217
Para além do caminho teórico que os leitores percorreram comigo nas quase
duzentas páginas anteriores, proponho um resto de fôlego para um mergulho da minha
prática na reportagem. Julgo que as tentativas na inscrição de uma assinatura, no
exercício de uma autoria, foram bem sucedidas. Mas não bastam apenas as minhas
intuições. Por isso, ofereço meus exemplos. Ser cobaia de si mesmo pode parecer
confortável, mas traz em si muitos perigos também. Um deles: deixar-se cortar na
própria carne.
218
Carga & Cia. Nº 23. Março de 2001. pp.42-3
Os alquimistas estão chegando
Sem dinheiro para modernizar as unidades, o governo catarinense repassa para a
iniciativa privada a operação de terminais em São Francisco e Itajaí
Na década de 80, era comum a idéia, entre empresas e usuários, de que só um
passe de mágica poderia salvar o sistema portuário brasileiro. Equipamentos obsoletos,
logística inoperante e custos altos faziam dos portos o centro das reclamações de
quem importava e exportava por navio. O cenário começou a mudar em 1993,
quando o governo federal acenou com um sopro de esperança ao publicar a Lei de
Modernização dos Portos, que permitiu uma maior abertura do setor.
Se não produziu milagres, a lei teve o mérito de criar oportunidades para alguns
“magos” se apresentarem. As primeiras modificações se deram nas relações de
trabalho entre operadores portuários e as diversas categorias envolvidas nos negócios.
Nos últimos três anos, as mudanças estão acontecendo na própria exploração dos
negócios nos portos, com a chegada da iniciativa privada e a conquista de parcelas
importantes da movimentação de cargas no país. Em Santa Catarina não é diferente.
Nos dois maiores portos catarinenses – Itajaí e São Francisco do Sul – a iniciativa
privada vem conquistando espaço nos terminais do Estado porque os administradores
(a prefeitura e o governo estadual, respectivamente) não têm caixa para promover as
melhorias exigidas pela modernização do segmento. Como dinheiro não surge na
cartola, a saída foi apelar para o empresariado.
Nas urnas - A idéia de arrendar o Terminal de Contêineres do Porto de Itajaí (Teconvi),
por exemplo, até gerou polêmica durante a campanha eleitoral do ano passado,
concentrando a atenção dos candidatos a prefeito. Os três representantes da
oposição eram contrários à proposta, defendida candidato à reeleição – que acabou
vitorioso – com o argumento de que só a transferência da concessão à iniciativa
privada salvaria o porto, injetando ali R$ 80 milhões em novos investimentos.
Longe de qualquer disputa, seja econômica ou eleitoral, outro porto de Santa
Catarina, o de São Francisco do Sul, deve estar inaugurando mais um terminal neste
ano, com exploração exclusiva pela iniciativa privada. Quem vai administrar o novo
atracadouro é a Terminais Portuários São Francisco do Sul S/A (Terfran), empresa
formada com capital da Cejen Engenharia e dos fundos de pensão Portus (dos
portuários) e Cellos (dos eletricitários). As obras para a construção do novo píer de 255
metros, dragagem e alargamento do canal devem estar totalmente concluídas no
final de 2001, mas, comercialmente, as operações podem começar já a partir deste
mês. “Estamos no final da fase de dragagem”, informa o administrador do terminal,
219
José Carlos Mello Rego.
Hoje, quatro operadores portuários - o consórcio WR, a Litoral, a Ocean Trade e
a Portobello – fazem todo o trabalho em São Francisco do Sul. O diretor financeiro do
porto, João Alberto Ramos Pfeilsteicker, calcula que o novo terminal aumente em 25%
a movimentação total de cargas no porto. Inicialmente, serão 300 mil toneladas a
mais, chegando a 1 milhão de toneladas no final do ano que vem. “Temos quatro
berços, hoje, e a concessão deste novo terminal vale por 25 anos, podendo ser
prorrogada por mais uma vez”, completa Pfeilsteicker. Em dois anos, o consórcio
empresarial vai investir US$ 50 milhões em obras e equipamentos para carregamento e
descarregamento de grãos e outras cargas sólidas. Três navios poderão atracar no
novo terminal simultaneamente.
No Sul do Estado, no Porto de Imbituba, totalmente privado, a administradora
Companhia Docas (CDI) negocia com empresas estrangeiras a criação de um pólo
de concentração de cargas congeladas para serem enviadas ao Porto de Antuérpia,
na Bélgica. As operações seriam no sistema porta-a-porta e significariam a atração de
investimentos de até US$ 5 milhões. Se as expectativas de salto na qualidade dos
serviços dos portos brasileiros serão alcançadas ou não, é pura futurologia. Mas, de
lado a lado, usuários e governo torcem para que a mágica esperada não se mostre
apenas uma mera ilusão.
A pauta desta matéria me pedia um diagnóstico dos portos no Estado. Da
redação da revista em Curitiba, o editor queria um texto “não muito longo” que pudesse
dar conta dos novos investimentos feitos nos terminais e que servisse de uma pequena
radiografia do sistema portuário catarinense, oito anos depois do surgimento da
legislação que pretendia modernizá-lo.
Concentrei-me na produção de um texto que fosse ao mesmo tempo leve e
informativo, amplo mas ancorado em informações atuais e consistentes. A leitura da Lei
de Modernização dos Portos deu-me a impressão de que, se tudo aquilo ocorresse
mesmo, teríamos uma profunda modificação no sistema. Teríamos um milagre, uma
mágica. Vi nisso o mote que poderia conduzir meu texto. E busquei um símbolo que
pudesse sintetizar uma transformação da água para o vinho ou do metal barato em ouro:
220
o alquimista. Esta imagem serviria para dar um fio condutor ao texto, de forma que o
perpassasse por inteiro e desembocasse no seu final.
Para dar unidade à idéia e conferisse força a ela, eu precisava de um título que
contivesse essa metáfora e que facilitasse a direção de leitura que eu almejava. Apelei
para dois recursos que, a princípio, parecem contraditórios, mas que na reportagem
funcionaram complementarmente: espanto e reconhecimento. O título deveria chamar a
atenção por ser muito distinto da maioria dos encontrados na revista, despertando a
atenção do leitor e convidando-o à leitura da matéria. O elemento-surpresa deveria
servir de chamariz para a leitura e permitir um reconhecimento de um outro texto em
que o título teria se inspirado. A intertextualidade deveria, então, ser um recurso para a
construção do título da reportagem. A intertextualidade é a conexão de um texto com
outros tantos, cenário-mosaico de citações e absorções, paródias, apropriações e
montagens. Como o sistema de funcionamento da língua não admite pureza, tais
combinações são previsíveis e ajudam a constituir o infinito das construções textuais.
O que vai permitir o reconhecimento de um texto noutro é o que se denomina
interdiscurso, isto é, uma memória discursiva (cf. Orlandi, 1999). Há uma ligação entre
os discursos com algo que já se disse e que é transformado pela história. É a
historicidade que vai permitir que a paráfrase, que a citação transforme os sentidos
repetidos em novos. Assim, ao eleger o alquimista como síntese da transformação que
eu ligava aos portos, pincei o título da canção de Jorge Ben, do disco A tábua de
esmeralda, de 1974.
O interdiscurso é o que vai possibilitar que o leitor – que tem memória
discursiva para tal – reconheça o título do compositor e possa reatribuir sentidos após a
leitura da matéria. Em outras palavras: o leitor chega à página da matéria, depara-se
com um título estranho para uma publicação como aquela, reconhece a origem daquele
221
título e fica intrigado, tentando entender a conexão entre a cartola “Portos” e a canção.
A leitura da matéria permitirá uma reacomodação de sentidos por parte do leitor. Os
alquimistas deixam de ser as misteriosas figuras da Idade Média e passam a vestir
outros trajes na contemporaneidade. O anúncio de Jorge Ben não perde a força nem o
entusiasmo, renovando a esperança da mudança.
A interdiscursividade não foi um recurso usado exclusivamente por mim naquela
edição da Carga e Cia. O repórter Ewaldo Oliveira tratou de telefonia por satélite num
texto cujo título se apoiava na mesma estratégia: “Longe é um lugar que não existe”. A
diferença entre os casos é a combinação com outros dois recursos de estilo: o
desconcerto e a circularidade. O primeiro “deslocou” o texto dos demais editados na
revista por meio de um título aparentemente alienígena: o que teria em comum Jorge
Ben e a modernização dos portos?
A circularidade, por sua vez, foi construída com base no título, na abertura e na
conclusão da matéria. A metáfora apresentada em “Os alquimistas estão chegando”
perpassa o texto do começo ao final, e a presença nas duas pontas da aparente
linearidade do texto dão uma sensação circular, de retorno ao começo. O recurso dá
unidade ao texto e reforça a idéia que alimenta a metáfora.
Tanto a circularidade, quanto a intertextualidade e o desconcerto são recursos
que serão observados e reconhecidos em outros casos, mais adiante.
222
Carga & Cia. Nº 31. Novembro de 2001. pp.18-9
O perigo está no ar
Controle de emissão de poluentes consegue bons resultados,
mas Estados não fazem inspeção
Imagine 29 milhões de escapamentos lançando milhares de toneladas de
poluentes na atmosfera. Imagine que isso ocorre todos os dias. E que essa massa de
substâncias tóxicas demora para se dissipar, causando irritação e doenças nas
pessoas. Uma câmara de gás? Não, este é o cenário atual da poluição veicular nas
cidades brasileiras. Só na região metropolitana de São Paulo são 12,4 mil toneladas
anuais de fumaça preta (partículas e fuligem), despejados por ônibus, caminhões e
caminhonetes. Apenas em 1996, a Associação Nacional de Transportes Públicos
(ANTP) registrou 7% dos dias do ano com índices alarmantes de concentração de
poluentes, provocando rodízios e transtornos.
A emissão desses gases por veículos automotores é a maior fonte poluidora da
atmosfera, o equivalente a 40% da poluição do ar. São substâncias como monóxido e
dióxido de carbono, óxido de nitrogênio, dióxido de enxofre, chumbo e derivados de
hidrocarbonetos. Nos grandes centros, o quadro se agrava no inverno com a inversão
térmica, quando uma camada de ar frio forma uma redoma na alta atmosfera,
aprisionando o ar quente e impedindo a dispersão dos poluentes. Funciona como
uma estufa venenosa.
Na área automotiva, a preocupação com os gases emitidos pelos carros
ganhou corpo em 1986, quando o governo federal criou o Programa de Controle da
Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve) para reduzir os níveis de emissão,
além de incentivar o desenvolvimento tecnológico, tanto na engenharia automotiva
como em métodos e equipamentos para a realização de ensaios e medições de
poluentes. Entre os resultados alcançados, houve redução de até 98% da emissão de
monóxido de carbono, hidrocarbonetos, óxidos de nitrogênio, e de aldeídos por
veículos leves.
Os culpados – De acordo com os especialistas, não há um tipo de veículo que
polua mais. Cada um – caminhão, automóvel ou picape – contribui com seu conjunto
de poluentes, o que acaba compondo nuvens de alta toxicidade. “Mas não há
dúvidas de que um veículo com motor gerenciado eletronicamente polui menos”,
atesta o engenheiro Manoel Paulo de Toledo, da Companhia de Tecnologia e
Saneamento Ambiental (Cetesb).
Ele cita dois dados para a comparação: “Hoje, 25% da frota mecânica já é
responsável pela metade das emissões. Há 15 anos, um veículo pesava 600 kg, fazia 8
223
quilômetros com um litro e emitia 54 gramas de monóxido de carbono por quilômetro
rodado. Hoje, o peso é o dobro, roda-se pelo menos 10 km com a mesma quantidade
de combustível, mas a emissão caiu para 2 gramas”.
Segundo a lei, todos os veículos – nacionais ou importados – precisam de uma
licença do IBAMA para ser comercializados no país, e só a Cetesb pode avaliar a
configuração do motor dos modelos, liberando-os para o mercado interno. A adoção
do programa produziu sensíveis modificações na indústria, desde a adoção de
catalisadores e injeção eletrônica à instalação de linhas de produção de sistemas
para absorção de vapores de combustível. Equipamentos de medição e laboratórios
para acompanhamento de emissão também foram implantados. A Petrobrás vem
retirando gradativamente o chumbo da gasolina e o teor de enxofre no óleo diesel,
além de adicionar álcool à gasolina. A aplicação de novas tecnologias e sistemas
também melhoraram o funcionamento dos motores, proporcionando uma queima
mais efetiva do combustível.
Inspeção necessário - Mas isso não basta. É necessário que seja colocado em
prática a Inspeção Técnica Veicular, um processo que engatinha lentamente no país.
A idéia era implementar uma operação sistemática que vistoriaria todos os veículos,
apontando quem está dentro da lei ou não, tirando das ruas as chaminés ambulantes.
Em São Paulo, apenas na capital, parte dela deve ser feita pela prefeitura a partir de
março de 2002. Trata-se, porém, de uma exceção no país.
“As vistorias devem ser feitas no momento do licenciamento, e serão retirados
também os veículos com problemas de segurança”, adianta o engenheiro Antonio
Paulo de Toledo. No interior do estado, o cronograma deve atrasar, já que há pouco
tempo para todo o trâmite burocrático.
No Rio de Janeiro, a inspeção de emissões já vem sendo feita, mas não é
obrigatória, deixando uma brecha para os espertalhões. “Os demais estados não
implantaram o programa. Já a parte principal, que consiste na inspeção de
segurança veicular, ainda está no Ministério da Justiça para aprovação, e não tem
prazo ainda para sua implementação”, informa o presidente da Associação de
Engenharia Automotiva (AEA), José Edison Parro.
Acompanhamento - O Proconve atua com rigor na indústria, ditando normas e
especificações e também no monitoramento do ar em algumas cidades. Em São
Paulo, a Cetesb fiscaliza fontes poluidoras e observa a qualidade do ar na capital e
grandes centros do interior. A preocupação é a fumaça preta produzida por motores
a diesel, que além de trazer problemas de saúde à população, reduz a visibilidade nas
ruas e estradas.
Para se ter uma idéia, de 1994 a junho deste ano, a fiscalização a ônibus,
caminhões e picapes cresceu 352%. Os caça-fumaça comparam a cor das descargas
224
dos escapamentos com uma escala internacional, que aponta a concentração dos
poluentes. Desde 1988, mais de 350 mil veículos a diesel foram vistoriados, e só em
1997, 25% dos que trafegam na região metropolitana foram autuados. O dado revela
uma realidade: a frota é velha e não recebe a manutenção necessária.
Desgastes de peças, reparos mal feitos e muita negligência aumentam as
possibilidades dos motores não renderem o esperado e poluírem além do permitido.
Como a inspeção veicular ainda não é uma realidade e os proprietários nem sempre
tomam os cuidados necessários, o Proconve perde o fôlego na redução das emissões.
Operação oxigênio - Em Minas Gerais, também acontece o monitoramento do
ar em três cidades da região metropolitana de Belo Horizonte. Os técnicos realizam
também a Operação Oxigênio, criada para controlar mais de perto a emissão de
fumaça preta dos veículos movidos a óleo diesel.
Nas ruas há três anos, a operação já vistoriou mais de 50 mil veículos,
colocando selos de advertência nos irregulares, aplicando multas de até R$ 4351,05 e
tirando de circulação os reincidentes. Os resultados? A renovação da frota dos
pesados na região metropolitana é um deles. Hoje, 80% dos caminhões e ônibus são
veículos turbinados em substituição aos de motor aspirado. Outra mudança: a
Petrobrás está distribuindo o “diesel metropolitano”, que tem menos enxofre do que o
comum, e é comercializado sob o mesmo preço nos postos.
Mas a poluição veicular não preocupa só os órgãos ambientais. A Associação
de Engenharia Automotiva (AEA) também atua na área. A entidade existe desde
1984, e reúne engenheiros e técnicos da indústria, de institutos de pesquisa e
universidades. São estes profissionais que elaboram diagnósticos e recomendações
para o estabelecimento de normas e especificações, promovem seminários e
discussões sobre o tema.
Como se não bastassem as nuvens tóxicas, outro tipo de poluição veicular já
tira o sono de muita gente: a sonora. Desde 1993 existe um programa nacional de
controle de ruído veicular, mas as ações ainda são muito incipientes. A Cetesb
encaminhou proposta de regulamentação para o controle da frota em uso, mas entre
as preocupações e as mudanças reais há uma grossa cortina de fumaça.
O título original desta matéria era “Câmara de gás”, o que reforçava a imagem
criada na abertura do texto. Como a pauta se referia a um tema mais difícil de ser
visualizado – poluição do ar e sonora -, pensei em lançar mão de uma abertura que
desse concretude ao assunto.
225
Desta forma, apelei para uma abertura imagética, convidando o leitor a imaginar
o que era o conjunto de todos os canos de descarga dos automóveis no país despejando
toxicidade na atmosfera. A construção da figura da câmara de gás – cuja memória
discursiva nos leva aos horrores do Holocausto – foi alicerçada por trechos que
reavivavam o tema, como “funciona como uma estufa venenosa”, “...o Proconve perde
o fôlego na redução das emissões” e “mas entre as preocupações e as mudanças reais há
uma grossa cortina de fumaça”89. A realimentação da metáfora causa uma sensação de
unidade no texto, conduzindo o leitor para os sentidos pretendidos. No texto em
questão, o recurso ajuda também a construir um movimento de leitura circular.
O mesmo expediente de construção de imagens numa abertura de textos foi
usado no exemplo a seguir, como um recurso de estilo.
A expressão “cortina de fumaça” pode remeter o leitor à memória discursiva de uma “cortina de ferro”,
decorrência do final da Segunda Guerra Mundial e da polaridade de forças no mundo.
89
226
Carga & Cia. Nº 35. Abril de 2002. pp.48-9
É lixo só
Além de pedágios caros, da sinalização precária e dos buracos, as estradas servem
de depósito de lixo para motoristas nada educados
Latinhas de cerveja, sacos plásticos, pedaços de papel, restos de pneus. Grãos
de cereais, sujeira doméstica, garrafas e pontas de cigarro. Parafusos, tábuas, fraldas
descartáveis e até colchões. Quem pensa que se está falando de um aterro sanitário,
engana-se: isso é só uma amostra do que é recolhido diariamente ao longo das
rodovias pela Polícia Rodoviária e por equipes de limpeza e conservação. O volume
de lixo encontrado é tão grande que em alguns trechos as margens das pistas mais se
parecem com depósitos a céu aberto. E a impressão que se tem é de que o motorista
não está nem um pouco preocupado com a conservação da estrada, atirando pela
janela tudo aquilo que não quer mais no interior do veículo.
“Este é um problema complexo, que envolve educação e conscientização”,
define Humberto de Souza Gomes, gerente de Engenharia da Ecovia, concessionária
de rodovias no Paraná. A empresa responde por trechos que atravessam perímetros
urbanos, onde a população, muitas vezes, deposita o lixo doméstico nas margens das
estradas. Quem passa pelas rodovias que cortam a região pode conferir isso de perto.
Sem contar os detritos lançados pelos turistas que passam por ali. “Achamos de tudo:
papel, latas, tambores de freio, parafusos, partes de carrocerias. Para se ter uma idéia,
um pino de ferro que se solta de um caminhão e vem na direção de um carro é uma
verdadeira arma!”, alerta o engenheiro da Ecovia.
Não bastasse isso, há outras preocupações para as equipes de limpeza da
concessionária: como o trecho serve de interligação com o Porto de Paranaguá,
muitas cargas são de grãos, que acabam em boa parte, despejados ao longo do
caminho. Dependendo da quantidade, podem entupir os bueiros e as caixas
coletoras, prejudicando o sistema de drenagem da rodovia, causando alagamentos
nas partes mais baixas. “Mas tem outra coisa: o grão de soja que é derramado na
pista, quando esmagado, libera um óleo que reage quimicamente com o asfalto,
ajudando a dissolver mais rapidamente a capa da pista”, explica Humberto.
Campanhas – No interior do Paraná, a Rodonorte, que administra estradas na
região de Ponta Grossa, recolhe 8 toneladas de lixo por mês. Se a quantidade não
parece alarmante, o volume é. Imagine 8 mil quilos de papel, latinhas de refrigerante e
sacos plásticos. Há ainda a ressolagem de pneus de caminhões que se solta e que
fica, muitas vezes, no meio da pista, servindo de obstáculo e armadilha para outros
motoristas. A concessionária tem uma equipe de 637 funcionários que fazem a limpeza
227
diariamente, e um programa de conscientização do usuário, o Rodeverde, com
coletores seletivos de lixo nas bases de atendimento e postos da Polícia, e placas
educativas ao longo da pista.
Na ligação entre Rio de Janeiro e São Paulo, a Nova Dutra retira diariamente
objetos de grande porte das pistas. São pedaços de madeira, metais e borracha que
dificultam o fluxo normal dos veículos. A cada 24 horas, também são recolhidos dois
caminhões de sujeira miúda, como recibos de pedágio, terra, latas e pequenos
detritos.
A concessionária conta com o programa Dutra Limpa, que já distribuiu 300 mil
folhetos e sacos de lixo nas praças de pedágio. Resta saber se o motorista se sensibiliza
com a campanha ou se atira o panfleto pela janela na primeira oportunidade. Como
o inverno está próximo, e a estiagem também, outra preocupação passa a ser a
incidência de focos de incêndio causados por pontas de cigarro acesas.
Achados e perdidos - No interior de São Paulo, a concessionária Triângulo do
Sol também registra o recolhimento de lixo e de outros objetos nas estradas em que é
responsável. Os mais comuns são mochilas e bolsas, mas não fica só nisso. As equipes
de inspeção de tráfego já encontraram, inclusive, colchões que haviam caído das
carrocerias enquanto estavam sendo transportados. Até onde se sabe, quem deixou a
carga para trás não perdeu uma noite de sono sequer.
A Viapar, que administra um lote do Anel de Integração do Paraná, informa
que já encontrou diversos objetos inusitados na pista. Sapatos, documentos e roupas,
telefones celulares, talões de cheque, carrinhos de bebê e até bicicletas. É difícil saber
se os objetos foram esquecidos ou deixados de propósito pelos proprietários. Há casos
em que estes pertences caem das carrocerias, mas em outros, são jogados por
crianças sem que os pais percebam. Quando se trata de telefones celulares, o
esquecimento se dá, na maioria das vezes, da seguinte forma: o proprietário pára no
acostamento para checar algum defeito, faz uma ligação telefônica e deixa o
aparelho em cima do veículo. Resolvido o defeito, parte sem recolher o objeto que
acaba caindo na pista...
De acordo com o chefe do Departamento de Tráfego da Viapar, Luciano
Ricardo Mendes, tudo o que é recolhido fica sob custódia da empresa por seis meses.
Desde 1998, quando a Viapar começou a operar naquele trecho, 40% do que foi
encontrado voltou para as mãos dos seus proprietários. O resto, considerado perdido e
de origem ignorada, foi doado para entidades assistenciais.
Geralmente, quando documentos são recolhidos nas estradas, o primeiro
destino é a Polícia Rodoviária. Carteiras de identidade, fotografias e cartões de
crédito são esquecidos em postos policiais ou mesmo em postos de combustível. Não
existem estatísticas oficiais sobre documentos perdidos, mas na maioria das vezes, eles
228
retornam aos seus titulares. “É relativamente fácil identificar os proprietários, quando se
trata de documentos. Aí, tentamos localizá-los para entregar o que foi perdido”, conta
o chefe da seção de Policiamento e Fiscalização da Polícia Rodoviária Federal em
Santa Catarina, Gilberto Durigon Freitas.
O título “É lixo só” recorre à mesma estratégia lingüística de “Os alquimistas
estão chegando”, pois parafraseia o título de uma conhecida canção de Ary Barroso e
Luiz Peixoto: “É luxo só”, gravada por João Gilberto. Entretanto, é preciso que se diga
que este não é o título que dei à matéria. O original – “Porcos no volante” – foi bem
substituído pelos editores, que repetiram o expediente da intertextualidade.
É evidente que o recurso estilístico não é exclusivo dos textos do repórter, mas
este título em particular não pode ser atribuído a ele, nem tampouco figurar
estatisticamente como um caso em que conseguiu deixar alguma marca mais autoral no
rol dos textos.
229
Carga & Cia. Nº 38. Julho de 2002. pp.16-8
Sempre cabe mais um
De iates e estátuas a animais vivos, há cargas que desafiam a imaginação e a
eficiência dos transportadores em todo o mundo
Mamãe, como é que vêm os bebês? A incômoda pergunta já foi respondida
milhares de vezes com a cegonha levando a culpa. Pois é mais ou menos assim que se
pode pensar quando o assunto é a remessa de cargas incomuns. Como despachar 17
Ferraris da Bélgica para um salão de automóveis nos Estados Unidos? Como os museus
recebem o conjunto de obras para uma megaexposição de arte?
Bem, eles recorrem a cegonhas modernas, empresas especializadas no
transporte de qualquer carga. Mas não são apenas eles. Superstars como Michael
Jackson, o ex-Pink Floyd Roger Waters ou Madonna costumam enviar por via aérea
toneladas de cenários, acessórios e equipamentos de suas turnês mundiais. A
agilidade na entrega também pode salvar vidas. Não fosse o transporte ultra-rápido
de uma perfuratriz de alto impacto de 4 toneladas, a pequena Jéssica McClure não
teria sobrevivido. A garotinha de um ano e meio caiu num poço no Texas, em 1987, e
só foi salva quando o equipamento chegou de avião.
O transporte de cargas incomuns, muito numerosas ou pesando toneladas
envolve uma rede extensa de agentes logísticos, planejamento e conhecimento das
dificuldades operacionais. No mundo, poucos se aventuram a atuar nesse ramo,
dominado por gigantes. No Brasil, o caso mais célebre é o dos Correios, estatal que
efetivamente cobre todo o país e consegue integrar de forma eficiente um território
de dimensões continentais.
Bip-Bip! - O brasileiro se acostumou a identificar na figura do Papa-Léguas o
serviço de entregas rápidas dos Correios, o Sedex. Marcado pela rapidez, o
personagem dos desenhos animados vencia grandes distâncias em pouquíssimo
tempo. Tem gente que leva isso tão a sério que recorre ao Sedex para despachar as
cargas mais inusitadas. A mãe preocupada envia remédio ao filho, o vizinho discreto
recebe a fita de vídeo pornô, o namorado remete um celular para a namorada.
Embora o serviço trabalhe com cargas de até 30 quilos, 80% das encomendas
do Sedex têm até dois quilos. Na maioria das vezes, são documentos, CDs, softwares,
livros, utilidades domésticas. Tem gente que até envia cartão de crédito, talão de
cheques e até dinheiro, embora seja proibido. As máquinas de Raios X triam os
pacotes e separam objetos pontiagudos, materiais explosivos e outros que oferecem
algum risco aos entregadores. Animais vivos e plantas também não são permitidos. Em
2000, foram entregues 85,5 milhões de encomendas pelo Sedex, número que deve
230
chegar a 103 milhões neste ano. O sucesso dessas operações está na logística. Os
correios têm 12.212 agências para captar as encomendas, investiu US$ 32 milhões na
automação dos serviços de tratamento das remessas e tem um verdadeiro exército
nas ruas, composto por 38 mil carteiros. “Nossa especialidade é entregar muita coisa
ao mesmo tempo e em locais muito distantes. Temos agências em todos os 5.561
municípios brasileiros”, informa de Brasília o gerente do Programa de Encomendas dos
Correios, Everton Luiz Machado.
Com uma frota própria de 9,5 mil motos, 4,5 mil veículos leves e 500 pesados, os
Correios transportam pequenas cargas para todos os pontos do planeta, por meio de
conexões e parcerias com a União Postal Universal, que congrega correios de 189
países. Para vencer as distâncias continentais dentro do território brasileiro, o Sedex
contrata nada menos do que 28 linhas aéreas. Diariamente, os aviões a serviço dos
Correios voam 60 mil quilômetros pelo Brasil, levando 740 toneladas de pequenas
encomendas. O que o Papa-léguas estatal faz é de deixar qualquer cegonha com
inveja...
Peso-pesado - Mas se a remessa é maior do que os 30 quilos admitidos pelos
Correios, o cliente pode dispor de empresas especializadas em entregas rápidas. A
FedEx, considerada a líder mundial de transporte aéreo expresso, é uma delas. Os
operadores logísticos da FedEx já precisaram, por exemplo, embarcar um moinho de
vento que vinha da Dinamarca. Talvez até seja uma tarefa simples para quem já
despachou uma bola de neve gigante de Wisconsin para uma criança de Mênfis
(EUA) e para quem já transportou um satélite de 5 toneladas dos EUA para um ponto
perdido na China.
Em alguns casos, é preciso que a transportadora atue como uma cegonheira.
Foi o que aconteceu quando o governo japonês encomendou aos EUA um
helicóptero Sikorsky Black Hawk, de 5 toneladas, que chegou ao aeroporto de Narita
dentro de outra aeronave. Ou quando um iate de competição seguiu de avião da
costa leste americana para a Austrália, durante as Paraolimpíadas de 2000. Na mesma
época, a Rede Globo despachava do Rio de Janeiro toneladas de equipamentos
para a cobertura televisiva dos jogos. A Marco Polo embarca carrocerias de
caminhões por avião, e deve ser assim que chegará ao mercado chinês nos próximos
meses.
Quando a carga é incomum, quatro fatores são levados em conta. O cliente
tem pressa? Se ele quer rapidez, apela-se para os mais eficientes meios de transporte,
as rotas mais curtas, desviando de escalas e entraves. Qual a natureza da carga? O
pacote pode ser radioativo, inflamável, frágil ou ainda estar vivo. As características
vão determinar os cuidados com a embalagem. Qual o peso? Este aspecto diz
respeito à capacidade de transporte dos meios condutores, e pode – muitas vezes –
231
inviabilizar uma estratégia multimodal. Que tamanho tem a remessa? Última
preocupação antes do embarque, mas que determina etapas de toda a operação
de despacho. “Aqui no Brasil nós podemos transportar até 50 toneladas, pois dispomos
de um DC-10 que opera a partir de Viracopos”, explica Guilherme Gatti, diretor de
marketing da FedEx para o Mercosul.
Tem cada uma... – Atualmente, mandar um pacote de até 70 quilos para
qualquer parte do mundo em até 48 horas é tão fácil quanto mandar uma carta
comum. A coisa complica quando a mercadoria é rara, pesada e precisa vencer
milhares de quilômetros. Diante deste desafio, os funcionários da FedEx embarcaram
uma daquelas esculturas da Ilha de Páscoa, de 12 metros de altura e seis toneladas,
do Chile para uma exposição nos Estados Unidos.
Pela América do Sul, não foram poucas as vezes em que conjuntos hípicos
viajaram de um país a outro para participar de grandes prêmios. Jóquei e cavalo vão
confortavelmente instalados no avião, cada um no seu compartimento, e se
reencontram no saguão do aeroporto. Mas este não é o único caso de cargas vivas.
“Há alguns anos, quando nossos aviões retornavam a Menphis, paravam em Manaus.
Lá, eram embarcados peixes ornamentais, que eram levados vivos para lá”, conta.
Atualmente, essas remessas não se repetem. Mas outras são freqüentes, e precisam de
refrigeração exata, nenhum contato manual e total segurança: são amostras de
sangue, de sêmen e outros materiais biológicos. Até testes de paternidade por DNA
são transportados para o exterior. A história da cegonha se repete.
A reportagem acima foi originalmente pautada para a revista Fluxo, sendo
publicada na íntegra na edição de maio de 2002, na estréia da publicação (“Contêiner de
surpresas”). Além do texto acima, havia um box intitulado “Todos a bordo”, que
descrevia os procedimentos e as burocracias no envio de plantas, animais vivos e no
próprio despacho, traslado e desembaraço de cadáveres nos pontos de chegada. Entre as
duas versões, a única diferença foi o descarte do box para a Carga & Cia, já que o
complemento era mais adequado à revista que cobre operações logísticas.
Mais uma vez, lancei mão dos recursos da reportagem “Os alquimistas estão
chegando”: desconcerto e circularidade. Como a pauta previa o deslocamento rápido de
cargas em grandes distâncias e como o símbolo dos Correios – um dos casos a serem
relatados – era uma ave, fundi as duas idéias na conhecida lenda da cegonha que
232
percorre longos caminhos carregando mercadorias bem preciosas. Essa seria a metáfora
que preencheria todo o texto, de forma a dar unidade às suas dispersões. A característica
da circularidade ficou mesmo assegurada quando uma das fontes se referiu a um serviço
especial de transporte de líquidos e materiais biológicos, de sangue a sêmen e até
mesmo exames que atestem paternidade. Encontrado o gancho da matéria e o fio
condutor do texto, parti para um desafio pessoal: criar uma abertura incomum, fora de
qualquer expectativa que uma matéria sobre transporte de cargas poderia conter. O que
seria tão desconexo, desconcertante, inusual? Para reforçar a idéia da cegonha, trouxe
ao texto quem mais – supostamente – acredita na história: imaginei uma criança
perguntando como surgem os bebês. Pode não ser a melhor abertura, mas é criativa e
inusitada, totalmente inesperada para uma matéria sobre logística de embalagem e
circulação de mercadorias90.
Na reportagem a seguir, tentei me ater a um estilo mais frio, mais preso aos
números e às informações apuradas. Afora a frase de abertura – que constrói um
raciocínio tortuoso e aparentemente contraditório -, todo o texto é propositalmente mais
“duro”, se comparado aos já citados. Em meio à aridez dos números, seria possível tecer
uma narrativa mais fluída e leve, mas a opção foi construir um texto pesado,
burocrático, em contraponto com a desburocratização prevista na matéria.
Fiz algo semelhante outras vezes. Vale citar uma em particular: “Mar de novidades”, publicada em Carga
& Cia, nº 15, junho de 2000, começava com um verso do poeta Fernando Pessoa, para quem todo cais é
uma saudade de pedra. Expediente inesperado numa matéria sobre a evolução dos portos catarinenses.
90
233
Fluxo. Nº 03. Julho de 2002. pp.20-1
Fora com o carimbo
Ministério dos Transportes agiliza cobrança eletrônica de tributo para renovação da
marinha mercante. Até outubro, portos do Sul e Sudeste devem se interligar ao sistema
O governo não sabe o tamanho do gargalo, mas sente que o rombo não é
nada pequeno. Alguns técnicos do Ministério dos Transportes estimam que se percam
anualmente alguns milhões de reais com fraudes sobre o Adicional ao Frete para
Renovação da Marinha Mercante (ARFMM), cobrado de navios na movimentação de
cargas importadas nos portos brasileiros. O tributo é recolhido e vai para o Fundo da
Marinha Mercante, voltado para construções e reparos na frota naval. O fundo foi
criado em 1958 e, desde então, o recolhimento do adicional era manual, com guias e
carimbos, hoje facilmente fraudáveis com impressoras domésticas cada vez mais
sofisticadas e softwares gráficos específicos. “Precisávamos virar esta página,
deixando de lado a papelada e os carimbos”, comenta o diretor do Departamento
de Marinha Mercante do Ministério dos Transportes, Vitorino Domenech, responsável
pela implantação do novo sistema de arrecadação, agora eletrônica.
O programa já contempla os portos de Paranaguá, Porto Alegre, Rio Grande,
Itajaí e Vitória e, em breve, deve alcançar São Sebastião, Rio de Janeiro, São
Francisco do Sul, Imbituba e Santos. “Deixaremos Santos por último, para outubro,
porque é o maior porto da América Latina, e precisamos antes ver como se ajusta
com os menore”, justifica Domenech. Interligados ao sistema de cobrança eletrônica,
os portos das regiões sul e sudeste devem logo se conectar ao Siscomex. O objetivo é
implantar o sistema nos 21 portos brasileiros até 2005, mesmo nos do norte e nordeste,
que atualmente contam com isenção na contribuição, amparados em legislação
para o incremento das economias regionais.
Mais agilidade - Mas o que muda com a cobrança eletrônica? Atualmente, o
agente marítimo tem dez dias para recolher a taxa. Além do prazo longo para
receber, o governo corre o risco de fraudes, já que o sistema é manual. Conforme
dados oficiais, as fraudes mais freqüentes se dão em Paranaguá, Santos e Rio de
Janeiro.
Com o novo sistema, o importador tem que enviar eletronicamente os dados
da remessa em até 48 horas antes do navio chegar ao porto, fazer a transação
bancária e, só depois disso, sua carga poderá ser liberada. “O Mercante, que é como
chamamos o novo programa de arrecadação, é importante porque vai possibilitar
dados estatísticos mais reais para tomadas de decisão mais acertadas”, avalia o
secretário executivo do Ministério dos Transportes, Paulo Sérgio de Oliveira Passos. “O
234
que queremos é eliminar a burocracia, dar agilidade à tramitação e implicar os
negócios no recolhimento. Este processo coloca o governo numa posição atualizada,
contemporânea, já que precisamos de mecanismos mais confiáveis e seguros no
comércio exterior”.
Para
o
setor
privado,
além
da
desburocratização
e
agilização
dos
procedimentos para a liberação das cargas importadas, o Mercante permite o registro
do Conhecimento de Embarque em tempo real, e possibilita acesso on-line 24 horas
por dia, sete dias na semana, sem deslocamento físico a qualquer órgão do Ministério.
O Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (ARFMM) tem alíquota
de 25% sobre o valor do frete e, segundo projeções, deve implicar num impacto de
0,82% sobre o preço free-on-board (FOB) das mercadorias importadas por meio
marítimo.
Dependência externa - Segundo as expectativas do governo federal, com a
contenção das fraudes na arrecadação da contribuição para-fiscal, será possível que
os estaleiros recebam mais encomendas, gerem novos empregos e aumentem sua
escala de produção, além de reduzir o nível de dependência externa no balanço de
fretes. Para se ter uma idéia do ocaso do setor, anualmente o Brasil perde até US$ 6
bilhões em afretamento externo. Ou seja: se depende muito dos navios de fora para
trazer as importações encomendadas. Na ponta do lápis, as empresas nacionais não
respondem nem por 40% dos negócios da área, e esta insuficiência de fretes
internacionais é o responsável pelo segundo maior volume de remessas para o
exterior, nas contas do governo. Para quem já teve a segunda indústria naval do
mundo, os números pesam. Hoje, o país ocupa a 16ª posição no ranking, com 5,8
milhões de toneladas de peso bruto (TPB), com uma frota de 126 navios envelhecida
em pelo menos 15 anos. Em 1990, eram 9,5 milhões de TPB e 380 navios. “Por isso, é
preciso retomar o setor, renovando a frota, modernizando os navios e construindo
novos para operar nos nossos portos. É com isso que também reduzimos o chamado
Custo Brasil, que é, na verdade, o custo da ineficiência”, acredita Oliveira Passos.
Em 1999, o Fundo da Marinha Mercante arrecadou R$ 428 milhões, valor que
subiu ligeiramente para R$ 500 milhões no ano seguinte e que alcançou R$ 696 milhões
em 2001. Para este ano, mesmo com a perspectiva de queda no volume das
importações, o governo espera recolher cerca de R$ 700 milhões. Quando o Mercante
estiver operando em toda a malha portuária, o bolo deve crescer em 30%, estimam os
técnicos do Ministério dos Transportes. Em dezembro de 2001, o saldo do fundo era de
R$ 1,33 bilhão.
Próprias pernas – Mas, embora o governo esteja radiante com os mecanismos
que vêm adotando para conter o gargalo, há quem torça o nariz. Na verdade,
setores do mercado defendem a desvinculação entre a indústria naval e a marinha
235
mercante, divórcio que estimularia a iniciativa privada a avançar com a força de suas
próprias hélices. Domenech discorda deste ponto de vista: “Durante o últimos 20 anos,
o país foi perdendo posições e os armadores de fora foram se instalando e ganhando
terreno. Já temos um tributo que vem de uma lei federal, e isso nos propicia recursos
num fundo específico para a renovação da frota”. Ele cita o programa Navega Brasil,
lançado pelo governo federal em 2000, para flexibilizar as condições para
financiamento no setor. Se antes cobria 85% do valor total, hoje o programa atinge
90%, cobrando juros caíram de 4% (e não mais 6%), com prazo de amortização de 20
anos mais 4 de carência. “O BNDES tem linha específica para a indústria naval, e a
preocupação do governo foi manifestada na inclusão deste programa no Plano
Plurianual”, completa.
No exemplo a seguir, retomo duas estratégias textuais usadas anteriormente:
desconcerto e abertura imagética. O primeiro está expresso no contra-senso que construí
no título. Como os números do porto em questão eram muito positivos e como a
evolução dos índices era inegável, cheguei à idéia de que “aquele porto não parava de
crescer”. Na frase-idéia, chamou-me a atenção a locução verbal que continha em si um
tremendo conflito repouso-movimento. Quis aproveitar a mesma contradição trazendo o
porto para o título e fazendo aquele cenário que se coloca como um ponto de segurança,
algo que se movimente.
Criado o desconcerto de “Um porto que se move”, parti para uma abertura que
descrevesse um cenário sobre o qual pudesse ampliar a contradição: trouxe à cena
confusão, sujeira, inoperância. Para depois, negá-los, construindo a lógica definitiva do
texto. No caso desta matéria, os recursos funcionaram combinados: o contra-senso
apoiou o título e a abertura imagética construiu um contexto que seria contestado,
negado, estabelecendo uma nova direção para a narrativa.
236
Fluxo. Nº 03. Julho de 2002. pp.30-1
Um porto que se move
Itajaí se moderniza, cresce a taxas de 30% ao ano e quer ser reconhecido
como o mais eficiente do sul e do Mercosul até 2005
Para muita gente, a idéia de porto está diretamente associada a um local
insalubre, cheio de estivadores musculosos e rudes, confuso e desordenado.
Entretanto, este conceito caminha cada vez mais para o folclore coletivo. Pelo menos
é assim com o Porto de Itajaí, em Santa Catarina, que vem se modernizando,
acumulando bons resultados e se destacando no cenário nacional. Para se ter uma
idéia, desde 1991, o volume movimentado setuplicou, passando de 32,4 mil para 243,5
mil contêineres por ano.
Em todos os anos, exceto em 1995, o porto viu crescer seus resultados, e entre
2000 e 2001 contabilizou os melhores números de sua história: 38% a mais de
contêineres movimentados, consolidando 2,7 milhões de toneladas (crescimento de
31%) e 18% a mais de navios atracados. De acordo com a Associação Brasileira de
Terminais Portuários (ABTP), Itajaí é o porto que vem apresentando melhor
performance no ramo de contêineres, fato que o coloca como o segundo no Brasil
nas exportações de contêineres cheios, devendo ficar atrás apenas de Santos em
2002.
O bom desempenho do porto faz parte da estratégia para alcançar uma meta
ousada: ser reconhecido como o mais eficiente do sul e do Mercosul até 2005. O
desafio está estampado em cada sala da administração do terminal em pôsteres e
quadros, visível aos visitantes e ostensivo aos funcionários, como se fosse um chamado
aos brios. Para ser o mais eficiente na região, Itajaí briga de frente com seus vizinhos
catarinenses – São Francisco do Sul e Imbituba – e com Paranaguá (PR) e Rio Grande
(RS). “Temos investido em obras e em novos procedimentos para agilizar o trabalho e
dar mais eficiência ao porto. Além disso, desde 1996 as tarifas estão intocadas”, relata
o diretor comercial, Héder Moritz.
Parcerias - Único porto municipalizado do país, Itajaí tem conseguido reunir
uma gestão moderna com parcerias estratégicas com o setor privado. No ano
passado, por exemplo, o terminal arrendou área para a construção de um terminal de
contêineres que deve fortalecer ainda mais a movimentação local. Comprou novos
equipamentos de terra e implementou um sistema de qualidade total nas suas
dependências.
Neste momento, está contratando obras de dragagem para o alargamento da
237
bacia de evolução do terminal, que passará de 270 para 300 metros de diâmetro. Os
trabalhos devem ser concluídos ainda neste ano, e com as novas dimensões será
possível a atracação de navios de até 270 metros de comprimento. Cargueiros
maiores também devem lançar seus cabos ao cais quando o calado de 9,9 metros for
aumentado a 11 metros até o final deste ano.
Responsável por 60% do PIB exportado catarinense (US$ 1,5 bilhão), Itajaí
responde por 3,35% das exportações brasileiras, ficando na 9ª posição no ranking
nacional. Em arrecadação de impostos, é o 10º colocado, tendo arrecadado R$ 290,8
milhões em 2001. Com uma cais que não chega a um quilômetro de extensão e 82%
de ocupação média de seus berços de atracação, o porto é o que tem a maior
produtividade nacional. E se Itajaí não é lá um grande porto – como Santos ou Rio de
Janeiro - onde mora o segredo deste sucesso?
Vocação exportadora - Três fatores vêm garantindo este desempenho: a
vinculação do porto à economia catarinense (a 7ª do país), a vocação exportadora
do porto e o segmento em que se especializou, o de contêineres. Em 2001, por
exemplo, enquanto o país mal crescia 2%, Santa Catarina alcançou 3,7%,
desbancando Paraná (3,2%) e São Paulo (2,5%), habituais campeões de expansão
econômica. Como Itajaí escoa boa parte dos negócios catarinenses, o porto pegou
carona nos bons ventos locais. Esta vinculação, entretanto não explica sozinha o
superávit do porto.
É aí que entram outras duas características que colocaram Itajaí em destaque:
seu perfil exportador e o tipo de negócio a que está habituado. Em 2001, as
exportações catarinenses cresceram 11,68%, o que ajudou o saldo da balança
comercial subir 23,53% no mesmo período. Como Itajaí é uma das principais portas de
saída de produtos locais para o mundo – 81% dos volumes das cargas é tipo
exportação, a autoridade portuária tem sorrido sem parar.
“Itajaí
vem
apostando
num
segmento
muito
importante:
a
carga
conteinerizada, o filé mignon do setor”, avalia o secretário executivo do Ministério dos
Transportes, Paulo Sérgio de Oliveira Passos. De todo o volume movimentado, 84%
seguem para outras localidades em contêineres. “A maioria dos navios que aqui
atracam – 59% - é do tipo full-contêiner”, informa o gerente de negócios, Leônidas
Gomes Ferreira.
Especialização - Numa análise geral, Itajaí não é um porto grande, mas é um
entreposto especializado, voltado a determinados negócios. Prova disso é a sua
condição de dispor do maior número de tomadas para contêineres reefers do país,
próprios para cargas congeladas. Até o final do ano, serão 3,5 mil tomadas, contando
o porto e seu entorno.
Esta especialidade atrai os operadores logísticos, como a Link Sul Logística e
238
Armazéns, de Joinville, que se instalou a dois quilômetros do porto, de olho no
crescimento das exportações de carnes. A empresa já é a que dispõe de maior
número de tomadas para atender aos principais frigoríficos da região. É bom lembrar
que as líderes do mercado – Sadia e Perdigão – têm grandes unidades no território
catarinense, e que as safras sulistas de maçã são todas exportadas por Itajaí.
Atípico na administração e no segmento logístico, o Porto de Itajaí pouco
movimenta em termos graneleiros. O maior produto neste ramo é o trigo que vem da
província de Rosário, na Argentina. “A carga chega para abastecer um moinho
vizinho ao porto, e se ele não estivesse instalado por aqui, penso que não
trabalharíamos com granéis”, comenta o gerente de negócios.
Entusiasmo – Se as estatísticas têm deixado os administradores do porto
sorridentes, o desânimo parece não estar mesmo no horizonte deles. No primeiro
trimestre deste ano, o movimento foi 40% maior do que no mesmo período de 2001. Em
abril passado, novo recorde: 302 mil toneladas passaram pelos pátios do porto. Nunca
um mês foi tão intenso.
Apenas nos primeiros cinco meses deste ano – com a movimentação de 1,35
milhão de toneladas – o volume já supera toda a movimentação do ano de 1995.
“Este ano deve ser melhor ainda”, estima o diretor comercial, Héder Moritz. O porto
vem mantendo uma faixa de 24 mil contêineres por mês, e se tudo der certo,
encerrará o ano com crescimento de 30 a 35%.
Entre os novos negócios à frente, há o início de operação de uma linha
específica para o Extremo Oriente, rota que se soma às direcionadas aos EUA, Europa,
Ásia, América Central e África.
Os recursos estilísticos usados na matéria acima repetem-se na abaixo: o título é
desconcertante, apoiado num paralelismo de opostos, e a abertura desenha uma
seqüência de imagens que será desconstruída no parágrafo seguinte (“A história poderia
ter sido esta, mas não foi”). Se em “Um porto que se move”, apelou-se para o
imaginário coletivo, em “Altos negócios, baixos calados”, a abertura é uma autêntica e
confessada peça de ficção, inserida no início da matéria para ser desmentida por ele,
para ser negada e restabelecer uma nova ordem de sentidos.
239
Fluxo. Nº 7. Novembro de 2002. pp.22-3
Altos negócios, baixos calados
Maior companhia de navegação privada do país investe pesado no transporte por
cabotagem. Barcaças cruzam a costa brasileira com madeira e bobinas de aço
No final de uma tarde exaustiva de reuniões, um dos executivos da Aracruz
Celulose voltou seu olhar para a janela e mirou o horizonte de forma interrogativa.
Como transportar matéria-prima da Bahia para o Espírito Santo sem passar pela
congestionada BR-101? De repente, de frente para o mar azul, veio a luz: Por que não
usar a costa brasileira, lançando mão da navegação de cabotagem? No escritório da
Aracruz, todos sorriram e cumprimentaram o executivo pela solução brilhante,
aplaudindo a iniciativa.
A história poderia ter sido esta, mas não foi. Na verdade, embora muitas vezes
a resposta esteja sob o nariz de todos, o óbvio nem sempre é a primeira opção. No
caso da Aracruz, o impasse era real e a solução logística só poderia ser customizada.
Em 1998, a Norsul, maior empresa de navegação privada do país, foi acionada para
um estudo de viabilidade e três anos depois – após consultorias com duas gigantes
escandinavas do ramo – havia um projeto para desenvolvimento de sistema de
transporte. Para levar a madeira extraída do sul baiano, deveria ser construído um
terminal de embarque de cargas na cidade de Caravelas, e a carga contornaria a
costa em barcaças oceânicas, ligadas a empurradores. Este sistema de comboios já
funcionava no Mar Báltico, de onde também se transporta madeira de um país a
outro.
No caso da Aracruz, o sistema prevê uma frota de quatro barcaças e dois
empurradores, sistema que suporta transporte de 5,2 mil toneladas por viagem, com
velocidade média de 12,5 nós num calado de quatro metros. No Espírito Santo, as
toras de madeira vão desembarcar no terminal de Portocel, próximo às instalações da
empresa de celulose. “A indústria queria crescer, mas sofria com o gargalo rodoviário.
Só mesmo este sistema de escoamento de matéria-prima poderia permitir isso. Foi uma
solução com a cara do Brasil”, qualifica o diretor de Desenvolvimento de Negócios da
Norsul, Luiz Philippe Figueiredo. “Isso porque contamos com uma costa imensa, e o
sistema é economicamente mais barato porque os custos operacional, de
manutenção e de investimento são menores que qualquer outra opção”. Além da
viabilidade financeira, a solução logística se apóia também em vantagens técnicas:
operando com barcaças, o embarcador pode fazer mais viagens por semana,
trafegando por trechos com baixo calado e atracando em instalações relativamente
240
simples. O sistema de comboio é mais versátil, fácil de manobrar e não exige
modernos equipamentos nos ancoradouros.
Cifras – O projeto Aracruz já tem sinal verde para começar a funcionar. Neste
mês, o estaleiro carioca Eisa entrega três das quatro barcaças e um dos empurradores
encomendados. O resto do pedido sai do forno até o final de 2004. Num primeiro
momento, a Norsul poderá carregar 1,5 milhão de metros cúbicos de madeira por
ano, volume que deve chegar a 3,4 milhões quando a frota estiver completa.
Para se ter uma idéia, esta carga equivale a 63 mil viagens de caminhões
ultrapesados de 54m3, algo como um caminhão a cada oito minutos, 24 horas por dia,
365 dias por ano. O projeto de construção dos terminais e das barcaças está orçado
em US$ 30 milhões, e conta com financiamento de 85% do BNDES com recursos do
Fundo da Marinha Mercante. A Norsul deve injetar capital próprio para fechar a
conta. Mas este negócio não inaugura a parceria entre Aracruz e Norsul.
As gigantes já trabalham juntas desde 1986, quando a empresa de navegação
começou a operar linhas internacionais de carga geral. Desde então, os fardos de
celulose da Aracruz são levados pelos navios do tipo Open Hatch, e hoje, o volume
transportado anualmente chega a 600 mil toneladas. Além disso, há uma proximidade
corporativa entre as parceiras: a Norsul é controlada pelo grupo norueguês Lorentzen,
que detém participações em diversas empresas, inclusive na Aracruz.
Grandes negócios - No Brasil há 49 anos, o grupo é a ponte entre a maior
produtora de celulose branqueada do mundo – 2 milhões de toneladas/ano – e a
maior companhia de navegação privada do país – 8 milhões de toneladas de cargas
transportadas anualmente em 28 navios e faturamento de US$ 140 milhões. A maioria
dos negócios da Norsul está na área de granel, onde são feitas 70% das operações da
empresa, com transporte de papel, celulose, produtos siderúrgicos e madeira. Sem
contar o ramo petrolífero, o armador responde por grossa fatia do mercado de
cabotagem nacional, e 35% das exportações de celulose de Brasil e Argentina para
Europa e Estados Unidos.
Operando também em linhas de longo curso, a Norsul enxergou nas águas
brasileiras a oportunidade de novos negócios. O desenvolvimento de novas rotas de
transporte de matéria-prima para a Aracruz é só um dos grandes contratos da
navegadora. “Estamos há quase 40 anos sempre voltados à cabotagem, no entanto,
atuando com a maioria de cargas em granel sólido. A operação com contêineres é
recente, e percebemos que o segmento, nos últimos anos, vinha ficando cada vez
mais competitivo. Partimos, então, para operar também num modal diferente: as
barcaças oceânicas transportando em distâncias menores e uma freqüência maior de
viagens”, explica o diretor da Norsul, Luiz Phillipe Figueiredo.
Paralelo ao projeto Aracruz, a Norsul já engatilha investimentos de US$ 40
241
milhões numa solução para o grupo francês Usinor, que desembarca em Santa
Catarina com a Vega do Sul. Neste caso, o trabalho é transportar bobinas de aço da
Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST) do Espírito Santo para São Paulo e Santa
Catarina. Segundo a Norsul, um protocolo já foi assinado prevendo ainda a escoagem
de matéria-prima da Usinor para São Francisco do Sul, onde a multinacional constrói a
sua unidade no sul do país. Com isso, logo que a indústria estiver em funcionamento,
parte da sua produção seguirá pelas barcaças da Norsul para São Paulo, de onde
será distribuída. A Vega do Sul deve beneficiar 1 milhão de toneladas de aço
laminado ao ano, e a previsão é de que o transporte desta carga só comece em
2005.
A circularidade é uma característica estilística bastante presente no rol de textos
apresentados nesta tese. A seguir, mais um exemplo de como este recurso contribui para
inscrever uma assinatura na reportagem.
242
Carga & Cia. Nº 44. Fevereiro e Março de 2003. pp.18-9
Socorro à vista
Busscar aguarda o aval do BNDES para concluir a sua integralização acionária e iniciar
a reestruturação das dívidas, que alcançam cerca de R$ 200 milhões
A segunda maior fabricante de carrocerias de ônibus do Brasil torce para que
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) volte a assumir o
papel de “hospital” defendido pelo seu novo presidente, o economista Carlos Lessa.
Há um ano, a Busscar pediu um empréstimo para a sua reestruturação financeira, que
consiste no pagamento de credores, integralização das ações nas mãos da família
Nielson e obtenção de capital de giro. Passado tanto tempo, o acordo com o BNDES
está na iminência de ser oficializado. A assessoria de imprensa do banco não informa
detalhes da operação, mas a informação que se tem é de que o financiamento beira
os R$ 100 milhões.
Em janeiro, a empresa enviou carta aos credores informando os termos do
documento. As novas condições são de que o BNDES suspende temporariamente a
liquidação dos saldos vencidos e estipula um prazo de carência com os bancos
credores de 12 meses para o início do pagamento do saldo. Trata-se de um respiro
para atender aos fornecedores, que foram classificados em três grupos: os que
receberão em 24 parcelas, os com prazo de 12 meses e os que receberão em seis
meses. O acordo diz ainda que esses fornecedores só poderão emitir novas faturas
com prazo de 45 dias para o seu vencimento. Socorrida pelo BNDES, a Busscar deve
ainda se livrar dos protestos e ações de cobrança que vem recebendo nos últimos
meses. É que o acordo com o banco condiciona os pagamentos aos credores à
retirada dos protestos.
Na empresa, em Joinville (SC), ninguém fala sobre o assunto. A recomendação
é não atender a imprensa e não se manifestar sobre quaisquer aspectos do acordo. A
assessoria de comunicação da Busscar garante que pretende anunciar a conclusão
do acordo com o BNDES tão logo ele se concretize. Este anúncio deveria ter ocorrido
no segundo semestre do ano passado, mas, ao que tudo indica, os entraves
burocráticos frearam a iniciativa. As finanças da Busscar não andam bem das pernas
desde o ano passado e a demora do BNDES só piorou a situação. Entre encargos
sociais e outros passivos, calcula-se que as dívidas cheguem a R$ 200 milhões. Para se
ter uma idéia, em dezembro passado, a empresa chegou a dispensar seus
funcionários por um dia por falta de alimentação, já que a fornecedora – a Embrasa –
havia cortado o abastecimento depois de ficar 45 dias sem receber. No dia seguinte,
243
tudo foi normalizado após a negociação da dívida de R$ 350 mil.
Evitando tragédia - É clássico o tema da disputa pelo poder dentro de uma
família. Em geral, depois de muita intriga, ninguém sobrevive e o negócio vai parar na
mão de terceiros. Muito possivelmente, a presidenta Rosita Nielson não quis repetir a
tragédia na segunda maior encarroçadora de ônibus do país, a Busscar. Há anos, a
empresa sofria com a disputa interna pelo poder, o que poderia abalar a situação
promissora da empresa. Enxergando apenas uma saída, a matriarca abriu a bolsa em
janeiro de 2002, e optou por comprar as ações dos sócios minoritários.
Até então, a viúva de Harold Nielson e os filhos Fábio e Cláudio detinham 56,8%
das ações. Com a aquisição, dois sócios foram afastados do controle: o irmão do expresidente, Valdir Nielson, e o cunhado, Randolfo Raiter. Ambos ainda ocupam cargos
importantes no grupo: o primeiro responde pela HVR Equipamentos Industriais, unidade
que adapta projetos de chassis, e o segundo dirige a Tecnofibras, empresa de
materiais plásticos do grupo. Os dois braços ajudam a sustentar o sucesso da Busscar
dentro e fora do país, que se traduziu em negócios de R$ 520 milhões em 2001.
Com 100% das ações da empresa, Rosita Nielson concentrou ainda mais o
poder do clã na escalada da Busscar. A operação de integralização dependeu de
muita negociação interna e infindáveis reuniões. Parece contraditório, mas ao mesmo
tempo em que Rosita Nielson trazia a Busscar mais para dentro de casa, quem foi
designado para chefiar a empresa nem é da família. A razão é simples: confiança no
vice-presidente, Edson Andrade, que já passou com sucesso por outras multinacionais.
Na montadora há cinco anos, o executivo reverteu números negativos, racionalizou a
gestão e vem liderando o processo de internacionalização. Em setembro de 1998, o
então presidente Harold Nielson contratou Andrade para modernizar a empresa.
Apenas 48 dias depois, um acidente aéreo abalou a empresa, matando o empresário.
Na época, não houve disputa pelo poder no grupo, e todos confiaram a direção a
Andrade. A empresa fechou o ano com um prejuízo líquido de US$ 1,9 milhão, mas em
2000, já buzinava com lucro de US$ 10 milhões. De 1999 a 2001, a Busscar comprou
fábricas no México, em Cuba, na Colômbia, na Venezuela e na Dinamarca.
Atualmente, tem parcerias na Ásia e EUA.
Esperando, esperando – Fora dos muros da empresa, o mercado aguarda
informações e manifestações concretas de restabelecimento da saúde financeira da
Busscar. Não se teme notícias piores, mas há apreensão. O volume de negócios da
empresa é grande, suas exportações pesam na balança e a fatia de mercado é
expressiva. Entre as encarroçadoras, a Busscar é a quinta do mundo e só em 2001
vendeu 5.726 unidades, 35,1% delas para o exterior. De acordo com o balanço anual
da empresa, 2001 foi o melhor período da história da Busscar. As vendas alcançaram
R$ 544,6 milhões, confirmando um crescimento de 27% com relação a 2000. Mesmo
244
aumentando exportações e vendendo para 50 países, a Busscar está no foco do
mercado.
O analista de mercado João da Costa Marques, da Sudameris Corretora,
acompanha o setor automotivo e considera que talvez o salto da Busscar tenha sido
maior que as pernas. “Acredito que a empresa entrou numa guerra de preços para
ganhar fatia de mercado e acabou prejudicando o seu desempenho. No ramo das
encarroçadoras, a margem de lucro é muito estreita e qualquer perda no preço final
se traduz em prejuízo real para a empresa”. Segundo o analista, o segmento depende
de mão-de-obra intensiva e automação, o que demanda custos altos. Daí trabalhar
com margem pequena de lucro. “A Busscar até conquistou mais mercado, mas
acabou se endividando”, avalia.
Costa Marques compara a estratégia da empresa catarinense com a da
concorrente Marcopolo, de Caxias do Sul (RS). A líder do mercado nacional optou por
diferenciar suas receitas, buscando também o mercado internacional, mas protegeuse lançando ações na Bolsa de Valores de São Paulo. Foram negociados 37% do
antigo capital da empresa, que detém mais da metade do mercado brasileiro, e uma
fatia planetária de 6% dos negócios do ramo. “A oferta na Bovespa foi um sucesso, o
que funcionou como um colchão financeiro para a Marcopolo. Isso a deixou mais
confortável com relação a créditos”. Na época, as dívidas estavam próximas do
patrimônio líquido, e isso costuma assustar os bancos que ficam mais renitentes para
conceder empréstimos.
A Busscar tenta a sua saída. Esta não é a primeira vez que a montadora de
Joinville recorre ao BNDES. No final do ano passado, ela conseguiu financiamento
federal de US$ 26,8 milhões para exportar carrocerias e chassis de ônibus para Cuba.
Desta vez, é diferente: o empréstimo não tem apenas caráter de fomento. O caso
lembra a velha discussão sobre o papel do BNDES, que ganhou corpo com o governo
Lula. O ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, quer que o BNDES
mantenha o seu papel de banco de investimento, de fomento, mas o próprio
presidente do banco, Carlos Lessa, acena com a possibilidade de o órgão atuar em
alguns casos como salvador da pátria de algumas empresas. É esperar para ver.
No exemplo acima, o título não é o original sugerido pelo repórter. Na primeira
versão, ele era “Ainda na UTI” e remetia à discussão sobre a vocação do BNDES como
um banco que socorre empresas em dificuldades. Mesmo trocado por um título melhor
(“Socorro à vista”), o gancho se mantém na reportagem, reforçado pela abertura e pela
245
conclusão, que retoma a discussão. Mais uma vez, recorro a uma estrutura circular de
texto, formato que torna as narrativas jornalísticas mais fechadas em si mesmas, de
modo que se apresentem como episódios mais bem acabados.
246
Fluxo. Nº 14. Agosto de 2003. pp. 24-6
As vinhas na mira
Sem deixar a romântica tradição no cultivo da uva, vinícolas investem em alta
tecnologia e soluções logísticas.E se precisar, técnicos fazem até chover...
Conta a lenda que, quando as águas baixaram, Noé deixou a arca e plantou
uma videira nas terras lavadas pelo grande dilúvio. O ato era um símbolo de que o
homem novamente se ligava à terra para viver. A muda prosperou e se espalhou pelo
mundo. Passados milhares de anos, numa outra latitude, algumas famílias também
tentavam recomeçar. Vindas da Itália, encontraram na serra gaúcha o clima e as
condições necessárias para se fixar, e foi a partir dali que passaram a produzir os
melhores vinhos do país.
Quase 130 anos depois, os vinhedos daquela região parecem os mesmos, mas
a infra-estrutura por trás deles mudou muito. Embora ainda sejam mantidas algumas
tradições – como a colheita manual e o toque familiar na condução dos negócios -,
as vinícolas perceberam que era mais do que necessário buscar soluções na
tecnologia. Por isso, hoje, as principais produtoras de vinho não dispensam o
acompanhamento de especialistas, a engenharia genética e até mesmo modernas
técnicas para garantir o melhor clima para o desenvolvimento das uvas.
Como as frutas são sensíveis, ventos fortes e granizo fazem muitos produtores
perderem mais do que o sono. Não é à toa que anualmente é gasto muito dinheiro
com foguetes anti-granizo no Vale dos Vinhedos, no entorno de Bento Gonçalves (RS).
Quando os técnicos percebem formações perigosas no céu, eles disparam foguetes
que dissolvem os blocos de gelo nas nuvens, provocando chuvas mais amenas,
salvando a lavoura, literalmente.
Vinhoduto – Como a qualidade dos vinhos depende do bom desenvolvimento
da matéria-prima, a atenção com as uvas começa bem antes: na escolha das
sementes e sua adequação às condições de solo e clima. Na Vinícola Aurora, a maior
do país, por exemplo, dois centros tecnológicos de viticultura importam mudas e as
reproduzem em suas estufas. Os engenheiros agrônomos desenvolvem variedades de
uva isentas de viroses e totalmente ambientadas à região. Só depois disso é que as
novas mudas são distribuídas aos produtores.
Nesses mesmos laboratórios, testes são feitos com enzimas e leveduras em
busca de vinhos melhores. Este departamento de pesquisa funciona como uma
unidade de vinificação e está integrado aos centros tecnológicos por um complexo
de tubulações especialmente projetadas para a planta da vinícola.
247
O vinhoduto de mais de 4,5 km de extensão foi a solução logística perfeita
para a empresa (veja box). Trouxe economia porque substituiu o transporte por
caminhões-pipa e garantiu mais cuidado na movimentação do vinho: subterrâneo, o
vinhoduto transporta os líquidos sem qualquer alteração de temperatura, o que
assegura fidelidade na cor, no aroma e no sabor.
Negócio familiar – É comum o produto levar no rótulo o nome da família
produtora. Mas este não é o único indicador do apego dos clãs ao negócio do vinho.
A terceira e quarta gerações já dominam o mercado e continuam tocando a
produção na serra gaúcha. Na Casa Valduga, é Luiz – neto dos fundadores da
vinícola – quem acompanha todos os detalhes. Na Miolo, netos e bisnetos do
patriarca Giuseppe, tomam as decisões, mas cercam-se de padrões de gestão
profissional. Para se ter uma idéia, a vinícola desenvolveu um planejamento
estratégico para os próximos dez anos. Se hoje detém 8% do mercado doméstico de
vinhos finos – a sua especialidade -, a Miolo deve produzir neste ano 5 milhões de litros
e faturar R$ 48 milhões. Em 2012, pretende alcançar 12 milhões de litros, um terço disso
para exportação.
Na Vinícola Aurora, toda uva que entra no parque fabril é cultivada em regime
familiar. Aliás, a empresa é uma imensa cooperativa que reúne 1300 produtores de
nove municípios da serra gaúcha. Mas como eles mantêm o mesmo padrão da
matéria-prima? A empresa fornece as mudas, acompanha o cultivo e dá orientação
técnica especializada. Com isso, tudo fica sob controle, e o desvio é mínimo. Na
época da colheita, os produtores chegam a contratar trabalhadores temporários, e é
a vez de outras famílias migrarem para a serra gaúcha no início de janeiro. Colhidos
manualmente, os delicados cachos de uva são depositados em tachos plásticos que
se empilham nos caminhões. A partir dali e até tornarem-se vinho, ninguém mais tem
contato manual com as uvas. Quando os carregamentos chegam aos portões da
vinícola, os tachos se enfileiram nas esteiras mecânicas e seguem direto para a linha
de produção.
Por contrato, os cooperativados produzem exclusivamente para a vinícola, que
tem o compromisso de garantir a compra de toda a matéria-prima. Entretanto, o
termo de exclusividade não impede que concorrentes desleais assediem os
viticultores. Desesperadas por uvas de qualidade, algumas vinícolas chegam a
oferecer preços melhores pelos carregamentos. Quem cede à tentação de um lucro
maior, acaba pagando por descumprir o acertado com a Aurora. “Já houve casos,
sim. Mas, como prevê o contrato, o produtor que fizer isso é automaticamente
excluído do quadro cooperativo”, afirma o diretor operacional da Aurora, Carlos
Zanotto. Esse negócio familiar gera anualmente 46 milhões de quilos de uva que se
convertem em 35 milhões de litros de vinho. Embora a produção seja familiar, ela
248
contrasta com o profissionalismo na gestão que se quer imprimir no Vale dos Vinhedos,
região de 81 quilômetros quadrados que está sob a supervisão da Associação dos
Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos (Aprovale), desde 1995. A
organização zela pela qualidade dos produtos e, no ano passado, criou o primeiro
selo de indicação de procedência de vinhos do país.
Pelo mundo - Tal como acontece com outros produtos certificados – como o
café - o selo marca uma nova etapa no padrão de qualidade na produção e
comercialização dos vinhos no mercado doméstico. Segundo a Aprovale, os vinhos
que trazem o indicador de procedência têm aumentado seus valores agregados,
colocam-se com mais facilidade no mercado e têm mais saída, já que o consumidor
cria uma confiança maior em produtos certificados.
O vinho com sotaque brasileiro, aliás, já chega às mesas mais exigentes do
planeta. Os espumantes, por exemplo, têm nível de competição no primeiro escalão
internacional, e os demais alcançam quatro continentes. Curioso é perceber que o
maior exportador uruguaio de vinho é brasileiro. “O Tanat uruguaio sempre teve um
bom conceito entre os vinhos sul-americanos. Fomos atrás desta qualidade e
adquirimos uma unidade de produção naquele país. Hoje, somos os maiores
vendedores de vinho de lá”, comemora Carlos Zanotto, da Aurora. A vinícola produz
lá as variedades Tanat e Cabernet Sauvignon da linha Marcus James, que chegam ao
Brasil devidamente envasados e rotulados para o mercado nacional.
Compensa colocar nas gôndolas daqui um produto importado que tem knowhow brasileiro? O consumo maciço nesta faixa demonstra que sim. Além do mais, não
poderia ser diferente: a legislação impede que vinhos entrem no país a granel. O
produto precisa estar rotulado, envasado e vedado. Afora esta operação
“brasiguaia”, a Aurora já enche taças nos Estados Unidos, Japão e Finlândia. Cerca de
5% dos negócios são em exportação, faixa que quer chegar a 20% nos próximos cinco
anos, alardeia a empresa. Dentro do país, a distribuição se dá por meio de
representantes em todos os Estados e de centros de distribuição.
A Miolo exporta para Canadá e Estados Unidos, mas os negócios com o
exterior ainda estão se firmando. De todo o faturamento, a fatia estrangeira é de
apenas 1%. “Estamos tendo uma boa recepção lá fora e queremos atingir 4 milhões
de litros exportados anualmente em dez anos”, projeta Carlos Eduardo Correa
Nogueira, gerente da área. As cargas saem prontinhas da empresa para desembarcar
na América do Norte. Os contêineres que partem do porto de Rio Grande (RS) são
inclusive estofados para que não haja perigo às garrafas. “Vinhos são produtos muito
sensíveis e para que não haja muita oscilação no transporte nem variação de
temperatura, colocamos os contêineres no navio, abaixo da linha d´água”, completa
Nogueira. Se há milhares de anos Noé embarcou pessoas e animais, hoje, são garrafas
249
de vinho que cortam os mares para chegar a novas terras. Pensando bem, muita
coisa mudou desde a primeira muda...
BOX
Vinho pela torneira
Para reduzir custos operacionais e diminuir o risco de perdas, a Vinícola Aurora
optou por uma solução logística limpa e barata. Tendo que fazer diariamente o
transporte da produção entre três unidades distantes, a empresa resolveu aposentar
os caminhões-pipa que circulavam pela região de Bento Gonçalves (RS) e instalou um
complexo de encanamentos entre os pontos desejados.
Funcionando desde 1995, o vinhoduto tem 4,3 km de extensão e é composto
por três linhas de dutos, por onde correm 25 milhões de litros de vinho por ano.
Independentes, cada cano é responsável pelo transporte de um líquido, seja vinho,
resíduo industrial ou resíduo tratado. O sistema foi especialmente projetado para a
empresa, e o material sintético usado foi desenvolvido para suportar a pressão do
bombeamento, além de não oxidar nem liberar toxinas que alterem sabor, cor ou
perfume. O encanamento é subterrâneo – o que conserva a temperatura do vinho e
preserva suas características – e fica a uma profundidade que varia de dois a doze
metros, dependendo do trecho.
Há sistemas específicos de bombeamento para cada cano, além de
controladores de pressão e velocidade. Funcionam como corações, impulsionando
um líquido igualmente rubro por baixo da terra. Para acompanhar o tráfego, os
técnicos observam os medidores de vazão, instalados em pontos-chave, onde podem
ser identificados perdas ou qualquer tipo de desvio. Como a carga que por ali passa é
delicada e requer muita assepsia, o vinhoduto tem manutenção diária, à base de
água quente e material de limpeza.
O projeto de construção do vinhoduto levou em conta a necessidade da
empresa de centralizar o volume de efluentes numa única estação de tratamento. Se
conseguisse isso, cortaria custos não só de manejo, mas também na eliminação do
frete dos caminhões-pipa. A idéia bem sucedida livrou o trânsito da cidade dos
veículos, reduziu a emissão de gases poluentes e trouxe mais tranqüilidade a quem
cuida da qualidade do vinho. É que, evitando os sacolejos comuns ao transporte
rodoviário, a vinícola mantém o seu produto mais “descansado” e mais seguro. A idéia
de fazer um vinhoduto veio a calhar, ainda mais numa região como a do Vale dos
Vinhedos. Nesse caso, até a topografia ajudou.
250
A matéria acima foi produzida em dois momentos, e eles são facilmente
percebidos na espessura do texto. Eu soube que havia uma vinícola que trazia vinho do
Uruguai para o Brasil, aplicando nele seus rótulos em português e dando ao produto a
sua marca. Fiquei intrigado com a operação , questionando-me se aquilo valia a pena
logisticamente. Produzi uma pauta em cima da informação e apresentei à Fluxo,
argumentando que teríamos ali um bom caso a ser contado, ainda mais num clima de
inverno. A sugestão foi recebida e passei a cumprir minha pauta.
A primeira versão do texto já trazia destacados os três recursos estilísticos mais
presentes na minha produção jornalística para aquelas publicações: a intertextualidade, a
abertura imagética e a estrutura circular do texto. A primeira característica estava
expressa no título da matéria, uma paráfrase ao famoso romance de John Steinbeck (“As
vinhas da ira”); mas também se manifestava na alusão ao conhecido episódio da Arca de
Noé, na Bíblia.
A abertura do texto – descritiva e sintética - conta um fragmento de como teria
sido o final da história do Dilúvio, apegando-se a um detalhe que serviria de gancho
para todo o texto: uma muda de videira estava ligada ao começo de um novo tempo,
cheio de esperança e de prosperidade. A conclusão retoma a abertura, fechando a
história, como um conto em círculo, a exemplo de outros casos já relatados
anteriormente. Após a primeira versão do texto, os editores pediram texto complementar
que detalhasse a natureza e o funcionamento do vinhoduto, sistema da Vinícola Aurora.
Como eu já havia fechado a história em si mesma e tinha a confirmação de que o
complemento seria um box à matéria, destacado do conjunto anterior, produzi um texto
num tom diferenciado, alheio à primeira narrativa. No box, propositalmente, não se
aplicam as características antes evidenciadas já que se busca um caráter mais técnico
que detalhe o funcionamento do sistema hidráulico de bombeamento do vinho.
251
Carga & Cia. Nº 52. Novembro de 2003. pp. 16-7
O salário do medo
Setor de Transportes é o que mais causa mortes em acidentes de trabalho. Enquanto
especialistas alertam para o perigo, segmento arca com prejuízos e perdas humanas
Pressionados pelo desespero, os motoristas aceitam o frete: levar um delicado
carregamento de explosivos por precárias estradas até um poço de petróleo. A cada
solavanco, a certeza de ter a insegurança como companheira na boléia. A situação
está em O salário do medo, filme clássico francês da década de 50, mas o drama dos
motoristas não é exclusivo do roteiro cinematográfico. Atualmente, trabalhar cruzando
ruas
e
rodovias
brasileiras
é
tão
perigoso
quanto
transportar
nitroglicerina.
Levantamento feito junto ao Ministério do Trabalho e à Previdência Social aponta que
o setor de transportes é o que mais mata em serviço. A categoria dos motoristas é a
maior vítima e está envolvida em um a cada cinco acidentes de trabalho fatais.
Metade dessas mortes se dá em vias públicas.
Durante muitos anos, a grande vilã dos acidentes de trabalho era a construção
civil. Entretanto, embora ainda cause muitas vítimas, o setor vem reduzindo muitos dos
seus índices graças ao aumento das fiscalizações, à adoção de equipamentos e
procedimentos de segurança e às modificações nos ambientes de trabalho. “Nos
canteiros de obras, os pequenos acidentes vêm diminuindo. Em compensação, as
vítimas estão aumentando no trânsito, já que é sempre muito difícil intervir no cotidiano
desses trabalhadores”, explica Roberto Cláudio Lodetti, chefe do setor de Segurança
da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) de Santa Catarina. “O fiscal visita a
transportadora e percebe que lá as condições de trabalho são até aceitáveis, mas o
local de trabalho do motorista é mesmo a estrada. Lá, o ambiente e a rotina são
outros, e é isso que faz a diferença”.
Em 2001, só em Santa Catarina, foram registradas 14 mortes em acidentes de
trabalho no transporte terrestre contra 12 na construção civil. Em São Paulo, foram 85,
no Rio, 23, e no Paraná, 26. É preciso lembrar ainda que a massa trabalhadora
empregada na construção é maior que a nos transportes.
O roteiro desse filme é claro: o país é continental, mais de 60% da produção
seguem por rodovias, as estradas têm má conservação e os prazos de entrega estão
cada vez mais curtos. Assim, o caminhoneiro tem que vencer grandes distâncias em
menos tempo e, com isso, abusa da velocidade, exagera na jornada de trabalho,
dorme menos e, por isso, se arrisca mais em serviço. O resultado: se em 2002, o país
contabilizou 387 mil acidentes de trabalho, mais de 20 mil se deram nas áreas de
252
transporte e armazenagem. A fatia de 5% do total parece pequena, mas é preciso
lembrar que esses são os dados notificados, os oficiais.
Informalidade – Muitos dos acidentes de trabalho nos transportes não são
lançados na conta total. Isso porque há muitos trabalhadores autônomos no
segmento e milhares de casos são registrados apenas como acidentes de trânsito.
Uma pesquisa da Fundação Seade, de São Paulo, revelou a subnotificação de
acidentes de trabalho. Cruzando dados de atestados de óbitos e da Previdência
Social, percebeu-se que em apenas 26,5% dos casos o médico que assinava os laudos
relacionava a morte às condições de trabalho.
Mesmo os números do trânsito são pouco transparentes. De acordo com o
Denatran, no ano 2000, morreram 45 mil pessoas nas vias brasileiras. Entretanto, essas
são apenas as vítimas nos locais. Estima-se que mais um terço desse número morra no
prazo de uma semana por decorrência dos desastres. Esses elementos transformam o
drama que é a vida do trabalhador das estradas num filme de terror. E o que é pior:
não é ficção.
A informalidade ajuda a mascarar a realidade perigosa. Técnicos do governo
brasileiro acreditam que apenas um terço da massa trabalhadora tenha registro em
carteira e, portanto, notifique acidentes e receba benefícios que cubram essas
eventualidades.
Se antes eram autônomos apenas os caminhoneiros que pescavam fretes pelo
país, agora um exército de motoboys e mototaxistas ajuda a aumentar o grupo de
risco. Em Brasília, por exemplo, a cada quatro mortes no trânsito, uma atinge um
motoboy. Na cidade de São Paulo, morre um motociclista por dia. “Não basta apenas
que usem o capacete. A necessidade de realizar mais entregas por dia faz com que
se arrisquem mais. No caso dos caminhoneiros, não é raro que acumulem funções, já
que carregam e descarregam quando chegam aos seus destinos”, relata Lodetti.
Disparidades - Com tese de doutorado sobre acidentes de trânsito, a socióloga
Michele Catherine Henrique alerta para a distância entre os números alardeados e a
situação real. “Questiono as campanhas e os programas na área porque as
estatísticas estão muito aquém do que ocorre por aí. Os acidentes têm sido tratados
como fatos isolados, mas na verdade há uma rede de relações que se estabelece a
partir deles”, critica. Segundo a pesquisadora, as condições de risco de quem
trabalha com transportes têm feito com que, na média, os indivíduos deixem de viver
metade do que poderiam ter vivido. Se a expectativa de vida tem aumentado no
país, a guerra no trânsito tem freado muitas vidas por aí.
Os acidentes de trabalho no ramo de Transportes e Armazenagem têm um
perfil bem definido: atingem mais homens, provocando lesões na coluna e nos
membros, além de problemas ósteo-musculares e estresse. Os acidentes se dão mais
253
no começo da manhã, quando o motorista já está cansado de dirigir a noite toda, e
no da tarde, logo após o almoço quando o sono alcança os trabalhadores que
dormiram menos.
Um outro traço caracteriza a maioria dos casos: tanto empregadores como
funcionários encaram acidentes como inerentes à atividade de trabalho. Esta
complacência deseduca os profissionais para uma cultura de prevenção.
Em qualquer atividade profissional, imperícia, imprudência e desconhecimento
das condições de trabalho respondem por até 80% dos acidentes graves e fatais.
Campanhas informativas e cumprimento ideal de jornadas de trabalho poderiam
modificar o quadro. “Exames médicos devem ser feitos com mais freqüência,
diminuindo riscos. Empregados e patrões precisam se educar. Só assim, vão mudar o
perfil do setor. Se somarmos esforços, tenho certeza de que em um ano derrubamos
em 20% esses números”, aposta o chefe da Segurança no Trabalho em Santa
Catarina, Cláudio Lodetti.
Prejuízos – Vidas não têm preço, mas outros custos também pesam quando o
assunto é acidente de trabalho. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
calcula que se gaste em torno de US$ 76 bilhões em toda a América Latina com isso.
Só em acidentes de trânsito, o Banco Mundial projeta um ralo de US$ 10 bilhões em
todo o planeta. Aliás, em tempos de reformas, esta é uma área que vem chamando
muito a atenção. O INSS concede 55 mil aposentadorias por mês, das quais apenas
21% são por tempo de serviço. O resto atende casos de acidente, aposentadoria e
invalidez.
“Recebemos muita gente aqui que é vítima de acidentes de trabalho, seja em
cadeiras de roda ou mesmo profissionais mutilados nas estradas”, conta o presidente
do Sindicato dos Rodoviários de Florianópolis e Região, Sidinei Medeiros. Mas o
sindicato alerta que os trabalhadores do setor sofrem não só com os acidentes de
trabalho, mas também com um encurtamento da vida profissional. “O motorista que
tem mais de 45 anos não consegue mais ser encaixado. As empresas acham que ele
não rende mais porque pode não agüentar longas jornadas”, queixa-se Medeiros. As
condições dos trabalhadores do setor vêm preocupando as autoridades, mas
modificar a situação é processo a médio e longo prazos. Se O Salário do Medo, o
filme, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, a rotina de mortes no trânsito tem rendido
ao Brasil a medalha de campeão mundial de acidentes. Mas não é vantagem
nenhuma ser protagonista desse filme...
Na reportagem acima, tornam a aparecer a intertextualidade, apoiada por uma
abertura imagética e dando suporte a uma estrutura circular de texto.
254
O título é referência explícita ao filme, confessada no início da história, e
repetido tanto na abertura como na conclusão da reportagem. A matéria (uma narrativa
não-ficcional) se ampara na descrição de uma história inventada (a do filme já citado)
para criar um gancho – o filme - que possa ser retomado em trechos como: “mas o
drama dos motoristas não é exclusivo do roteiro cinematográfico”, “a grande vilã dos
acidentes de trabalho era a construção civil”, “o roteiro desse filme é claro” e “não é
vantagem nenhuma ser protagonista desse filme”. A construção do texto revela uma
estrutura circular, que delimita as fronteiras da história que se propôs narrar. É evidente
que o texto – como qualquer outro – é poroso e contém pontos de fuga, e de entrada.
Entretanto, a circularidade, observada em outros exemplos, é uma característica que se
reedita neste exemplo, contribuindo para os esforços para marcar uma assinatura
jornalística na prática cotidiana.
Concluída a análise do corpus, temos sedimentadas quatro características
recorrentes nas matérias: a intertextualidade, o apoio em aberturas imagéticas, o
recurso a elementos que causem desconcerto/surpresa/curiosidade e a engenharia de
uma estrutura circular de texto.
A intertextualidade mostrou-se um recurso que busca outras referências para
enriquecer os textos, promovendo autêntico cruzamento de áreas, já que sempre se
procurava contemplar saberes exteriores ao Transporte e à Logística, focos das
publicações. No corpus analisado, era um expediente que funcionava como ponto de
fuga, apontando para outros campos, contribuindo para a experiência da leitura. Recurso
estético, mas que auxilia tecnicamente a costura do texto jornalístico.
As aberturas descritivas, que compunham seqüências de imagens ou cenários,
foram usadas como estratégia de atração e sedução dos leitores, suavizando a narrativa
de assuntos difíceis (administração portuária e redução de poluentes, por exemplo) ou
255
delicados (como acidentes de trânsito e socorro a empresas endividadas). Com forte
acento estético, as aberturas lançam as bases para a montagem de uma estrutura circular
do texto. Esta circularidade dá unidade ao todo, fortalecendo a narrativa e marcando
bem o ritmo da história. Os episódios apresentam-se ao leitor mais bem acabados,
fechados em unidades definidas.
Dos recursos observados, o desconcerto é o menos usado, o que não retira sua
importância como elemento estilístico. No conjunto das características, ele ajuda a atrair
a leitura, quebrando a lógica narrativa ou mesmo criando a sensação de que algo é
contraditório, desconexo, desconcertante.
A ocorrência dessas quatro características em pelo menos dez das vinte matérias
produzidas para Carga & Cia e Fluxo desde o ano 2000 imprimem-se como tentativas
bem sucedidas na busca de uma autoria jornalística em reportagem. Bem sucedidas
porque as experiências de confecção de textos mais leves e soltos para publicações
dirigidas a setores mais austeros passaram pelo crivo dos editores e ganharam as bancas.
Bem sucedidas porque não sofreram modificações que desfigurassem os originais
enviados aos editores. Bem sucedidas porque não implicaram em perdas nos conteúdos
informativos em nome da estética textual ou do mero exercício estilístico manifesto
como beletrismo.
O corpus e as características encontradas
Título da Matéria
Os alquimistas estão
chegando
Publicada em
Carga & Cia, nº 23
O perigo está no ar
Carga & Cia, nº 31
É lixo só
Sempre cabe mais um
Carga & Cia, nº 35
Carga & Cia, nº 38
Fora com o carimbo
Um porto que se move
Fluxo, nº 03
Fluxo, nº 03
256
Recursos Estilísticos
Intertextualidade
Estrutura circular de texto
Desconcerto
Abertura imagética
Intertextualidade
Estrutura circular de texto
Abertura imagética
Desconcerto
Estrutura circular de texto
Desconcerto
Desconcerto
Abertura imagética
Altos negócios, baixos calados
Fluxo, nº 07
Socorro à vista
As vinhas na mira
Carga & Cia, nº 44
Fluxo, nº 14
O salário do medo
Carga & Cia, nº 52
Desconcerto
Abertura imagética
Estrutura circular de texto
Intertextualidade
Estrutura circular de texto
Abertura imagética
Intertextualidade
Estrutura circular de texto
Abertura imagética
Houve um esforço para imprimir um estilo nos textos em questão? É preciso
confessar que, em alguns momentos, sim. Mas, na grande maioria das vezes, esses
recursos foram se colocando no texto de maneira natural, entre o instintivo e o racional,
para garantir o bem-estar estético e qualidade técnica jornalística. Até as edições de nº
49 de Carga & Cia e de nº 14 de Fluxo, ambas de agosto de 2003, eu ainda não havia
dissecado os textos em busca de características comuns a fim de categorizá-las. O que
significa que as duas últimas reportagens foram produzidas e redigidas com a
consciência de recursos estilísticos comuns; e que tais matérias tentaram aprofundar
esses expedientes. Mais ainda, isso mostra que – para além de mera experimentação
estilística – a aprovação das matérias pelas instâncias de edição e suas publicações
atestam que há possibilidades concretas do exercício de autoria na reportagem.
257
6.4. O que os editores têm a dizer
“Um editor de jornal é alguém que
separa o joio do trigo. E imprime o joio”
Adlai Stevenson, político norte-americano
“A carreira de um bom repórter, em geral, é
abortada prematuramente pelo oferecimento
de um cargo de chefia, e, dali, para fora do jornalismo.
Um bom editor demora anos para fazer-se mas,
quando fica pronto, um infernal rodízio leva-o para
outra área ou outra empresa”.
Alberto Dines, jornalista brasileiro
Os editores são os primeiros leitores dos repórteres. Recebem o material,
revisam, cortam, alteram, renomeam, ajustam à linha editorial, quando isso é necessário.
Seus olhos são os primeiros a escanear a superfície difusa dos textos produzidos;
escarafuncham, buscam sentidos, analisam se o que têm ali pode ir a público, se deve
chegar ao leitor. Funcionam como primeiro filtro dos textos candidatos a matérias.
Por essas razões, é preciso ouvir os editores. Mais ainda: ao conhecer as bases
em que se apóiam seus critérios de edição, é possível traçar conclusões sobre a validade
ou não das proposições do Capítulo 5 desta tese.
No final de abril de 2004, entrevistei o diretor editorial da Foco, Marcelo Motta
Vieira, e a chefe de reportagem, Adriana Ferronatto, responsáveis pelo trabalho de
edição nas publicações. Todos os textos passam por eles, e é a partir dali que os
números das revistas vão se desenhando antes de chegar aos assinantes. Na mesma
ocasião, conversei ainda com o jornalista Júlio Malhadas Neto, que editou a já extinta
Fórmula Brasil e agora atua como repórter de Carga & Cia e Fluxo. As fontes foram
escolhidas porque estão diretamente envolvidas com aqueles projetos editoriais,
freqüentam a redação e vivem a rotina da editora.
As entrevistas aconteceram no mesmo dia, na redação da Foco Editorial, em
Curitiba (PR). Conversei separadamente com cada um deles, embora os demais
tivessem condições para interferir em respostas, complementando informações, negando
258
ou confirmando versões. Para que as entrevistas fluíssem, não utilizei gravadores,
tomando apenas notas de pontos mais importantes de suas falas. A exemplo de todo o
tempo anterior, não mencionei minhas experiências textuais com nenhuma das fontes, e
também não me coloquei na condição de um colega de redação. Concentrei as perguntas
num único eixo: os critérios dos editores no tratamento das matérias que chegam à
redação. Este aspecto foi desdobrado em três perguntas que se repetiram:
•
Quais são os critérios que você utiliza para editar um texto para Carga &
Cia e/ou Fluxo?
•
Para você, o que é um texto bom, passível de sair nas revistas?
•
Que tipo de texto não entraria em Carga & Cia e/ou Fluxo se você as
tivesse editando?
As questões tentam extrair respostas que tratem da qualidade textual das
reportagens, observando se há margem para experiências mais autorais, com emprego
de estilo ou se existe uma norma ou padrão a ser seguido. Adiante, os principais trechos
dos depoimentos dos editores:
Marcelo Motta Vieira, diretor da Foco Editorial
“Olha, para mim, só há dois tipos de texto: o bom e o ruim. Aqui, na Foco,
seguimos um funcionamento parecido com o da Editora Abril. Há alguém que analisa
toda a edição e se preocupa com a qualidade dos textos veiculados. Tenta dar uma
padronização, mas isso não quer dizer que os vôos textuais dos repórteres não sejam
permitidos. Muito pelo contrário, eles são muito bem-vindos. Tentamos nos espelhar em
fórmulas consagradas de boas revistas como a Veja e a Exame, mas voltando-nos para
os segmentos que atendemos”.
259
“Eu penso que a Folha de S.Paulo influenciou muito a nossa geração. Eu tenho
40 anos e senti isso também. A Folha veio com um esquema industrial pesado, de
planejar a edição, de estabelecer espaços para as matérias, de condicioná-las ao
planejamento da página. Aí, o que aconteceu? Os textos acabaram mecânicos demais,
chatos, quase feitos por robôs. O que a Folha fez? Deu mais espaço para os colunistas.
Ali, a Folha podia se permitir ter estilo, escrever bem (risos). O que eu percebo, de uma
maneira geral, é que os jornalistas que mais escrevem bem são aqueles que mais lêem.
Em termos de informação, eu penso que os textos que publicamos estão num patamar
mais básico, não há lá muita exclusividade, mas temos um bom texto”.
“Não tenho qualquer restrição em termos de texto. Se o repórter fizer uma
reportagem bem feita, com informação, boas fontes e estiver em versos, por exemplo,
eu publico. Não tenho restrição a formatos”.
“Recebemos muitos elogios dos assinantes, e eles se concentram em dois pontos
basicamente: o planejamento gráfico das revistas e a amplitude nas coberturas. Neste
tempo todo, recebi dois ou três elogios apenas à qualidade do texto. Acho que o leitor
não se importa muito com isso. Acho que chama mais a atenção do próprio repórter, do
jornalista”.
“Essa coisa do jornalismo é curiosa mesmo. Tive uma noção mais clara de como
fazer revista quando trabalhei na Veja. Lá na Abril, há o entendimento de que uma
revista precisa de cerca de quatro anos para se consolidar. É claro que existem exceções
e a própria Veja é uma delas. Demorou mais que isso, mas era o carro-chefe da editora e
uma aposta pessoal dos Civita. Embora já contássemos com alguma experiência de
produção da Carga & Cia, também cometemos erros com a Fluxo. Ao fazer a Carga,
vimos que a área da Logística era maior ainda que a de Transportes, por isso criamos
um novo título. Entretanto, descobrimos que essa área não está acostumada a investir
260
em publicidade nem tampouco habituada com jornalismo. Então, não foram poucas as
vezes em que um anunciante meu me ligava dizendo: Pó, Marcelo! Eu anuncio contigo
e é o meu concorrente que sai na capa? Não vou mais anunciar! O cara não entendia que
quem saiu na capa era notícia, tinha assunto e ele não. Outra coisa: há publicações na
área de Logística que mais se parecem com catálogos. São 90% de publicidade
travestida de matéria e 10% de jornalismo de verdade. Nós fazemos diferente, e
pagamos por isso”.
Adriana Ferronatto, chefe de reportagem de Carga & Cia e Fluxo
“Os critérios de edição são os do jornalismo mesmo. Não se foge muito disso.
Para mim, um texto bom começa pela correção gramatical, por um bom português. É
preciso também que seja fluente, sem tropeços, que seja bom de ser lido, gostoso. Não é
porque trabalhamos em revistas segmentadas que devemos fazer textos engessados,
maçantes. É preciso fazer revistas que mantenham o padrão da informação sem serem
chatas. Sabemos para quem escrevemos, mas não precisamos escrever no jargão deles,
com a mesma linguagem das transportadoras, dos caminhoneiros. Escrevemos de uma
maneira que possa ser inteligível para nossos assinantes e outras pessoas que possam se
tornar nossos leitores”.
“Embora a edição fique a cargo de uma única pessoal, recebemos os textos já
previamente editados pelos repórteres. Eles nos enviam o material contendo não só o
texto da matéria, mas sugestão de título, de legenda, fotos, intertítulos e olho. Isso
facilita”.
“Que texto não entra? Ah! O factual não dá. Somos revistas mensais e não
podemos ficar com esse compromisso de jornal diário. Outra coisa: não dá para tolerar
texto sem nexo, sem ligação, que só traz partes que não se conectam, como num
relatório. Matéria em primeira pessoa? Pode passar, sim. Se estiver bem escrita e for
261
adequado, por que não? A revista tem espaço para brincar, para ter um texto mais
informal. Então, o repórter pode fazer uma abertura de texto com mais estilo, ou ainda
com referências a outras áreas, quem sabe. Eu acho que por ser revista, até se exige uma
certa flexibilidade. O que tem é que enriquecer mesmo. Criatividade é essencial. Há
espaço para estilo até pela própria característica do meio”.
Júlio Malhadas Neto, repórter de Carga & Cia e Fluxo, e auxiliar na revisão
“Para mim, um texto ruim é aquele que tem cara de press-release. Não que não
existam releases bem escritos, mas texto de reportagem precisa ser diferente. Não pode
ser cheio de adjetivos, não pode ter um só ponto de vista. Tem que estar correto
gramaticalmente, ter fontes, ter falas que importem para o assunto. O texto bom tem que
estar recheado de fontes qualificadas, conter falas conflitantes para que o leitor julgue e
tome o seu partido. O texto bom também não pode ser uma novela. Tem que ser conciso
sem ser do tipo que a gente na Folha de S.Paulo: telegráfico, moldado, em fórmula”.
“Acho que o bom texto tem que ter um pouco de literatura também. Não pode
ser maçante. Por ser revista, tem que ter um molho, pode-se fazer metáforas, joguinhos
de palavras. Na verdade, acho que o repórter tem que fazer isso: tornar o texto mais
atraente”.
As falas dos editores de Carga & Cia e Fluxo demonstram flexibilidade no trato
com os textos. Mesmo servindo mercados bem delimitados, as publicações permitem
reportagens mais fluentes, textos mais soltos, matérias mais informais. Os editores
garantem que isso não afeta o conteúdo informativo ou a credibilidade das publicações.
Pelo contrário, pode atrair outros leitores. Um pouco dessa flexibilidade é atribuída ao
próprio meio de comunicação que a revista impressa se consolidou.
262
Entretanto, apesar disso, há exemplos nas bancas e nas salas de espera dos
consultórios médicos em que não se vê “literatura”, “informalidade”, “estilo” – para
tomar as palavras das bocas dos editores. O que se percebe é que, entre os editores de
Carga & Cia e Fluxo, vigora um conjunto de critérios de edição que coloca o conteúdo
informativo das matérias sobre o formato como elas se apresentam. Isto é, se as matérias
produzidas contemplarem as demandas jornalísticas, suas formas pouco importarão.
Não há restrição a exercício de estilo nem a experimentações textuais. Essa flexibilidade
resulta em uma liberdade maior por parte dos repórteres na escritura de seus trabalhos.
A flexibilidade dos editores garante autonomia de quem realiza as coberturas. Parece
caber aos repórteres “vôos” mais altos.
É preciso que se diga que, durante as entrevistas, nenhum dos consultados
referiu-se à autoria. Não há entre eles uma reflexão mais aprofundada disso, o que se
traduz numa preocupação menor com relação ao exercício de um estilo ou à
competência textual que aponte para essa direção. Em nenhum momento também os
editores distinguiram o trabalho de um repórter de outro nas revistas da editora. Nem
tampouco apontaram para outros jornalistas-autores de veículos nacionais ou
internacionais. As referências se deram apenas no plano institucional das empresas,
como se elas se configurassem escolas ou correntes jornalísticas.
De maneira geral, o que observei é que a autoria é um assunto que ainda não
atrai tanta atenção e energia dos editores quando se discute qualidade do texto
jornalístico. Embora, ela possa estar impressa nas páginas das revistas que editam, não
há um olhar tão detido sobre essa matéria.
263
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um jornalismo com impressões digitais
“O jornalismo é o exercício diário da inteligência
e a prática cotidiana do caráter”.
Cláudio Abramo, jornalista brasileiro
“O conceito de objetividade tem sido tão desfigurado
que hoje é usado para descrever o próprio problema
que deveria corrigir”
Bill Kovach & Tom Rosenstiel, jornalistas norte-americanos
“Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas”
Carlos Drummond de Andrade – No meio do caminho
O Jornalismo que se arvora no objetivismo é tão diáfano quanto a permanência
dos fatos. No mundo exterior às redações, os acontecimentos se sucedem, repetem-se,
superam-se, desmentem-se. O tempo passa, as coisas acontecem e os jornalistas correm
como loucos na tentativa de congelar a vida em manchetes ou anúncios. Autêntico
trabalho de Sísifo, o Jornalismo alimenta a ilusão de que possa refletir o real, que seja
capaz de manejar fragmentos da realidade sem interferir em suas formas e sentidos.
Iludem-se os profissionais ali envolvidos e parte do público que ainda crê no Jornalismo
como espelho do mundo.
Mas o Jornalismo é também vitrine e janela para a vida. Entre o público e a
paisagem, há um anteparo: transparente, limpo, quase invisível. Mesmo assim,
pensamos que nosso olhar toca a paisagem, esquecendo-nos de que há algo no meio do
caminho que pode distorcer nossa visão, dando a impressão de que a paisagem não está
tanto distante quanto efetivamente está, por exemplo. Usamos vidros nas janelas. Há
vidros nas vitrines. Carregamos lentes apoiadas em nossos narizes. E cotidianamente
nos esquecemos desta inaparente existência; convivemos com ela, como se a ignorando,
como se essas placas de vidro não fizessem o seu papel, como se não interferissem.
264
O Jornalismo ajuda a enxergar o mundo. Funciona como janela, como vitrine;
funciona como lente, como prisma. É tão familiar que quase nos esquecemos dele; e aí,
o que recebemos dos meios de comunicação é absorvido como o fato-em-si, como se
não houvesse mediação. Mas a luz que ilumina a paisagem não chega aos nossos olhos
sem antes passar por lentes, sem antes sofrer refração. Talvez seja proposital esquecer
disso, talvez seja inadvertidamente. Mas a mediação está ali.
O Jornalismo é uma atividade desenvolvida por e para humanos. E concebê-la
isenta de sujeitos é alimentar a ilusão de que os fatos falem por si mesmos, que os
relatos sejam feitos sem nenhuma voz. Neste sentido, sobra pouco espaço para
considerar a objetividade da forma como as gramáticas jornalísticas construíram no
último século. A objetividade – como aquela qualidade de isentar-se completamente de
si para trazer à tona o objeto – sobrevive apenas na boca e na mente dos que crêem nela.
Sua permanência enquanto coisa se dá no pensamento e no discurso. Efeito de
linguagem, dogma profissional ou imperativo ético, a objetividade reside na debilidade
de seu conceito. É claro que se pode tentar apagar as marcas dos sujeitos que realizam o
Jornalismo. Na superfície da língua, tudo é possível: “Veja ouviu o ministro tal”,
“fulano recebeu a Folha de S.Paulo em seu escritório”. Mas os vestígios humanos
permanecem. Alguém já disse, certa vez, que não é possível fazer Jornalismo sem sujar
as mãos. E entre a objetividade dogmatizada e o exercício subjetivo do jornalista há
muita coisa. É evidente que não defendo aqui um Jornalismo individual, pessoal e
isolado. Esta é uma atividade social, coletiva. Também não me refiro a um Jornalismo
impressionista, onde adjetivos inapreensíveis e relatos egocêntricos sustentem as
narrativas do cotidiano. É preciso dialogar, tornar comum, compartilhar.
Não defendo um Jornalismo impressionista, mas um Jornalismo onde as
impressões digitais dos sujeitos que o fazem sejam visíveis, aparentes. Um Jornalismo
265
onde as marcas autorais não sejam soterradas por projetos editoriais pretensamente
objetivos, presumidamente universais. Aponto a necessidade de um Jornalismo que
restitua os narradores como sujeitos do processo, em conjunto com os sujeitos do
público, destinatários da informação. A leitura do mundo pelos meios de comunicação é
um processo complexo de atribuição de sentidos que contribui sobremaneira para a
conversão de indivíduos em sujeitos. No outro extremo, a autoria também se coloca
como um conjunto de operações que funciona na mesma direção: o narrador pode ser
escrivão ou escritor, autor ou mero repetidor de versões.
Nas 265 páginas anteriores, sublinhei que o Jornalismo é uma atividade prática
coletiva, e que nem sempre a autoria numa obra jornalística é discernível. O Jornalismo
reflete/refrata os fatos (ou tenta fazê-lo), e eles não têm dono. Neste contexto, pode-se
falar em autoria jornalística quando preenchidas algumas condições de exercício de
estilo e reposicionamento do sujeito do discurso jornalístico. Neste cenário, a autoria é
entendida primeiro como indicador de responsabilidades, mas ela se efetiva mesmo no
Jornalismo na órbita da mediação.
Assim, para ser autor na reportagem, é necessário atender a dois estilos, um
estrutural do Jornalismo e outro, pessoal. A autoria jornalística se dá num ponto
periférico, no estágio de exercício do segundo estilo (o pessoal), não no primeiro, já que
este é plano de imanência na narrativa jornalística. Uma autoria no Jornalismo depende
de uma compreensão diferenciada da obra jornalística, e por isso não vigoram as
mesmas regras que valem para a obra literária ou artística, por exemplo.
No Jornalismo, para ser autor, é preciso legitimidade. Ela é a primeira condição
a ser satisfeita para uma efetiva vivência autoral na reportagem. Para além disso, a
autoria pode se apoiar ainda na capacidade/competência de bem narrar. Mais ainda:
autoria requer certo grau de autonomia do repórter, flexibilidade das instituições
266
jornalísticas que abrigam esse profissional. Autonomia do repórter e sua correspondente
ousadia na prática cotidiana. Outra condição: a autoridade de quem é especialista ou
testemunha do acontecido, fator que ajuda a credenciar o discurso do jornalista.
Portanto, é possível exercer autoria em estruturas jornalísticas cada vez mais
hierarquizadas, industrializadas e complexas na medida em que se constroem condições
de autonomia do repórter e o profissional alimenta sua atuação com doses de ousadia e
consciência de sua função social.
No Jornalismo impresso, por exemplo, os autores poderiam estar mais evidentes.
E a primeira medida neste sentido é garantir a assinatura do trabalho. Os repórteres
fotográficos já têm assegurado este direito, e recebem seus devidos créditos. Penso que
isso poderia ser estendido aos repórteres, redatores e editores. Penso que deveriam
figurar nas páginas dos jornais e revistas os nomes dos jornalistas que estiveram
envolvidos naqueles relatos. Então, em todos os textos, os leitores veriam nomeados
seus autores e responsáveis. Essa proposição acarreta numa mudança não só como
medida que assegura o direito inalienável de um autor de ser evocado frente a sua obra,
mas também como respeito aos leitores no conhecimento dos efetivos autores dos
textos. A evidência, a proposta da assinatura maciça dos textos nos meios impressos,
permite uma outra coisa: visualizar com mais nitidez a polifonia que vigora nas páginas
da imprensa, as muitas vozes ali no jornal e na revista.
É possível que esta proposta não seja bem recebida nas redações, e possa ainda
ser questionada por setores da academia como algo que redunde na banalização das
assinaturas. Mas independente de qualquer polêmica que alimente, a vocalização desta
proposta se sustenta por um argumento facilmente assimilável: a assinatura de um
trabalho de espírito não é prêmio. Trata-se de crédito devido a quem produz. Assinatura
é reconhecimento, é direito. Inalienável.
267
Há uma premissa que escora a recomendação da assinatura maciça nos trabalhos
jornalísticos: todo discurso tem uma voz que o emite, e ela parte de um sujeito, de um
autor. Mesmo no anonimato das matérias não assinadas, mesmo nas reportagens
televisivas onde não há passagem. Os fatos não falam por si mesmos; eles são contados.
Entre os teóricos da Educação e da Lingüística, há o entendimento de que é através da
aquisição da escrita que o sujeito deixa a posição de enunciador para ocupar a de autor.
Comungo com esta compreensão do processo. E para ser autor, é preciso se colocar
como um princípio de aglutinação, agrupamento. A autoria é ponto de convergência, é
para onde se atraem os sentidos dispersos e se passa a organizá-los. A autoria é ponto de
coerência discursiva, onde são articuladas as mais diversas possibilidades de atribuição
de sentido, selecionando e formatando novas versões. A autoria é ponto de unidade, é
vórtice. Ela está na mesma instância de onde se dispara o olhar. Não é ela quem
determina a medida do olhar, já que ela é a própria distância que separa sujeitos de
objetos e de outros sujeitos.
Funcionando como ponto de reunião e organização de sentidos, a autoria se
materializa na ocupação do espaço que resta entre o sujeito narrador e o narrável. O
domínio desta distância, o preenchimento desta espessura desenha os dois extremos da
complexa operação do olhar: um sujeito-autor e o seu entorno em constante movimento.
A autoria não é o olhar, mas dele depende. Para ser autor, é preciso firmar esse olhar,
manifestá-lo com intensidade e consciência. Duvidar também das próprias retinas
(muitas vezes, fatigadas), lembrar-se da arguta ocorrência de ilusões ópticas. Então, não
basta apenas abrir os olhos – como quem abre janelas - e ver o mundo. Isso é só o meio
do caminho. É necessário se posicionar como sujeito que está mergulhado na realidade e
nas cenas narráveis e lançar um olhar agudo, como quem procura sentidos no livro da
vida.
268
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ANEXOS
As reportagens analisadas
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